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7/24/2019 Desidério Murcho. Aborto, Argumentação e Política
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31/10/2015 Aborto, argumentação e política
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7 de Janeiro de 2007 ⋅ Opinião
Aborto, argumentação e política
Desidério Murcho
Aproxima-se mais um referendo sobre o aborto e a discussãopública começa já a surgir nos jornais e na Internet. Nesta,
como noutras discussões públicas, dá-se um fenómeno social
curioso que importa esclarecer: muitos dos que intervêm no
debate fazem-no com argumentos que carecem de
informação básica e que são epistemicamente circulares.
Os argumentos carecem de informação básica quando as pessoas se recusam aestudar a bibliografia relevante. É um pouco como discutir a química dos vulcões sem
nada saber de química nem de vulcões. Este tipo de fenómeno acontece muitas vezes
no que respeita a matérias filosóficas. Porque muitas pessoas foram vítimas de um
ensino depauperado e enganador da filosofia, que faz pensar que esta não passa de
cultura geral e opiniões avulsas algo arbitrárias e puramente pessoais, pensam que
podem falar de temas filosóficos sem qualquer conhecimento das matérias relevantes.
A mesma atitude não seria aceitável no caso da química, da musicologia ou da
arquitectura. Claro que os temas de importância pública devem ser discutidos
publicamente por pessoas que não são profissionais das áreas em causa, mas fazê-lo
desprezando os profissionais relevantes e a informação que estes disponibilizam não é
aceitável.
Um argumento é epistemicamente circular quando as suas premissas não são mais
plausíveis do que a sua conclusão. O caso mais óbvio e universal de um argumento
epistemicamente circular é um argumento directamente circular, como "Deus existe
porque existe". Geralmente, os argumentos circulares não são directa e obviamente
Crítica
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circulares; são epistemicamente circulares porque usam premissas, ou seja, pontos de
partida, que só são aceitáveis para quem aceita a conclusão; quem não aceita a
conclusão também não aceita as premissas e portanto tais argumentos são inócuos.
Para que um argumento seja bom, tem de reunir três condições: tem de ser válido, ter
premissas verdadeiras e ter premissas mais plausíveis do que a conclusão. Quando
falha a terceira condição, o argumento é mau. Vejamos um exemplo simples: "A vida ésagrada; logo, o aborto não é permissível". Este argumento é um entimema, que não
explicita a seguinte premissa: "Se a vida é sagrada, o aborto não é permissível". O
problema deste argumento é que a premissa de que a vida é sagrada não é mais
plausível do que a conclusão. Aliás, é muitíssimo provável que quem recuse a
conclusão recuse igualmente essa premissa. Por exemplo, um ateu acha que a vida
não é sagrada, porque acha que o conceito de sagrado é pura mitologia: não há "água
benta", há apenas água sobre a qual um padre executou um ritual declarando depois
que tal substância adquiriu uma propriedade imaginária. Analogamente, o ateu defende
que a vida não é literalmente sagrada, porque o sagrado é uma propriedade imaginária.
Claro que o ateu pode considerar que a vida é sagrada num sentido não literal do
termo — no sentido em que a vida deve ser preservada. Mas nem mesmo isto pode ser
defendido coerentemente, pois ninguém defende que a vida das pulgas deve ser
preservada. Vítimas de um antropocentrismo infeliz, as pessoas que defendem que avida é metaforicamente sagrada — isto é, merecedora de respeito e protecção — têm
em vista unicamente a vida humana. Muitas dessas pessoas não se preocupam com a
vida das vacas e dos porcos que consomem todos os dias ao jantar, quanto mais das
pulgas.
Para ser bom, um argumento tem de ter premissas mais plausíveis do que a conclusão
— mas mais plausíveis para quem? A plausibilidade é uma medida do que as pessoaspensam que é mais ou menos verosímil. Em muitos casos, as pessoas concordam no
que respeita à plausibilidade — todas as pessoas aceitarão que é mais plausível que
Bush venha a morrer de ataque de coração do que vítima de um ataque de
extraterrestres. Mas noutros casos as pessoas discordam quanto ao que é mais
plausível. Uma pessoa religiosa poderá defender que a vida é literalmente sagrada,
encarando isso como mais plausível do que a existência de extraterrestres, por
exemplo. Um ateu defenderá exactamente o contrário: que a existência deextraterrestres é mais plausível do que a existência do sagrado. Assim, quando
dizemos que um argumento bom tem de ter premissas mais plausíveis do que a
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conclusão, temos de perguntar imediatamente "Mais plausíveis para quem?". A
resposta óbvia é que as premissas têm de ser mais plausíveis do que a conclusão para
o auditório, para o destinatário do argumento — e não para o emissor, para quem
apresenta o argumento. É por isso que o argumento contra o aborto baseado no
carácter sagrado da vida, ou nos ensinamentos da Igreja, ou na opinião do Papa são
maus argumentos: ainda que as premissas de tais argumentos sejam muitíssimoplausíveis para quem os apresenta, não são plausíveis para os destinatários dos
argumentos. E os destinatários são, com certeza, as pessoas que defendem que o
aborto é permissível. Ou não?
É neste ponto que se torna evidente o fenómeno social mais curioso do debate sobre o
aborto. Como em muitos outros debates públicos, o objectivo não é realmente
persuadir as pessoas de que a posição mais defensável é a nossa. Se o objectivofosse esse, os argumentos das feministas e dos cristãos, para dar apenas dois
exemplos, seriam sinal de carências cognitivas gritantes, pois os argumentos usados
por estas pessoas são geralmente concebidos para serem inócuos para quem não
aceita os seus pontos de partida — a sua atitude religiosa perante a vida, num caso, ou
a sua atitude libertária com respeito à condição feminina, no outro. O que se passa é
que as pessoas usam o debate sobre o aborto para "contar armas". O objectivo da
feminista não é persuadir o religioso, por exemplo, a mudar de ideias; o objectivo é
exaltar quem já aceita os pressupostos feministas, de modo a arregimentar partidários
contra o religioso, exibindo-os publicamente para mostrar a força do movimento. O
mesmo se pode dizer do religioso que argumenta contra a permissibilidade do aborto
com base no carácter sagrado da vida: tudo o que ele quer realmente é apresentar
números impressionantes de apoiantes que partilham a sua fé, contra as bestas dos
ateus e das feministas. Em ambos os casos, trata-se de usar um tema de interessepúblico para acordar do sono complacente aquelas pessoas que no fundo já
concordam connosco mas não se manifestam publicamente. É por isso que se usam
argumentos que são obviamente inócuos para quem discorda de nós — o objectivo não
é persuadir essas pessoas, mas sim esmagá-las com o número de apoiantes da nossa
causa que conseguimos acordar e tornar activos. Curiosamente, esta estratégia de
usar o problema do aborto para "contar armas" falhou completamente aquando do
último referendo. Pois a taxa de abstenção foi tal que se tornou evidente que a maior parte da população não achou necessário juntar-se a qualquer das facções que tão
diligentemente procuravam acordar os seus correligionários.
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Usar um debate público para "contar armas" sugere que quem o faz não acredita pura
e simplesmente na argumentação. Isto é, não acredita que seja possível chegar a
resultados relativamente consensuais usando argumentos com premissas universais,
ou tão universais quanto possível, que todas as pessoas possam aceitar. É por isso
que tal pessoa não tenta sequer persuadir directamente quem não concorda com ela;
ao invés, procura mostrar-lhe indirectamente que, se é feminista, ou católico, ou dedireita, ou de esquerda, ou jovem, ou mulher, etc., então tem de votar num certo
sentido e não noutro. Mas será verdade que não é possível encontrar argumentos que
usem premissas universais, ou tão universais quanto possível? Não é este o lugar para
responder a esta pergunta. Contudo, temos de ter plena consciência de que quem lhe
responde negativamente não aceita realmente os princípios fundamentais de uma
sociedade democrática e livre. Imaginemos uma pessoa religiosa que quer usar o
debate sobre o aborto para "contar armas". Essa pessoa não acredita apenas que não
é possível persuadir os ateus da imoralidade do aborto. Se essa pessoa acreditasse
apenas nisso, teria de dizer algo como "as pessoas religiosas como eu não farão tal
coisa, mas é óbvio que quem não é religioso não terá problemas em fazê-lo — tal como
é óbvio que quem não é religioso não vai à igreja benzer-se com água benta". Ou seja,
o religioso que acreditasse apenas que a questão do aborto é insusceptível de debate
racional que use premissas universais teria de acreditar concomitantemente que cadaqual faria ou não abortos em função da sua posição pessoal sobre o assunto. Se o
religioso quer impedir legalmente o aborto apesar de achar que não há razões públicas
a favor de tal medida, então é antidemocrático: esse religioso quer eliminar os ateus da
sociedade, ou impedi-los de viver a vida à sua maneira. É um pouco como querer
impedir-me de ler um determinado romance por considerar que é blasfemo — apesar
de eu ser ateu e portanto não aceitar a existência de blasfémias. Esta mentalidade é
incompatível com a sociedade democrática e livre em que felizmente vivemos, pois
esta sociedade baseia-se na ideia de que há razões públicas que justificam as nossas
leis. A democracia livre não é a ditadura da maioria; é o respeito tão alargado quanto
possível a diferentes modos de viver, aceitando todos que os únicos limites são os
limites impostos pela argumentação universal partindo de premissas que todos
podemos aceitar como seres racionais — e não como feministas, cristãos,
muçulmanos, conservadores ou revolucionários.
Note-se que não se pode inferir do que acima está exposto que defender que o aborto
não é permissível é inadmissível. Segue-se apenas que defender que o aborto não é
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permissível ou que é permissível recorrendo à "contagem de armas" e à força bruta do
número de apoiantes é uma atitude antidemocrática e ditatorial. O voto dos cidadãos
não deve reflectir as suas origens, preconceitos, modos de vida, opções religiosas ou
ideológicas, mas antes a sua reflexão imparcial, séria e informada sobre o que
consideram obrigatório ou permissível, para toda a gente, à luz da razão pública.
Qualquer decisão pública sobre a permissibilidade ou não do aborto terá de responder a razões universais, que qualquer cidadão de boa-fé possa aceitar, independentemente
das suas opções religiosas, ideológicas ou outras. Procurar impor a toda a população
uma medida que só é defensável usando argumentos feministas ou religiosos é um
acto antidemocrático, inaceitável numa sociedade livre.
Infelizmente, esta é atitude que impera na nossa jovem democracia — e não apenas
em relação ao aborto. Talvez este seja o resultado de um país que só em brevesmomentos conheceu regimes democráticos e livres: não se acredita na argumentação
racional. Enquanto persistir esta descrença, a nossa democracia será frágil e
meramente formal. O debate público sobre o aborto — ou melhor, a algazarra irracional
sobre o aborto — é preocupante precisamente por isso.
Desidério Murcho
Leituras
Sobre argumentação, há um pequeno livrinho traduzido para português que explica o
fundamental: A Arte de Argumentar (Lisboa: Gradiva, 1992). Pedro Galvão organizou A
Ética do Aborto: Perspectivas e Argumentos (Lisboa: Dinalivro, 2005), que reúne seis
artigos fundamentais sobre o problema do aborto (três que defendem a sua
permissibilidade e três que a atacam), além de uma esclarecedora introdução doorganizador. Pedro Madeira escreveu um dos mais esclarecedores ensaios sobre o
problema do aborto: "Argumentos Sobre o Aborto" (Crítica, 2004). O artigo de Mary
Anne Warren, "Aborto" (Crítica, 2004, originalmente publicado em A Companion to
Ethics) apresenta os argumentos fundamentais.
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