Determinação ou determinantes?

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    RESUMO Seres vivos são considerados saudáveis quando em condições de realizar suas pos-sibilidades, e, para os seres humanos, essas possibilidades são produzidas historicamente. Oobjetivo deste trabalho é superar a lógica dos fatores determinantes, compreendendo a saúde

    a partir da produção social do humano nas pessoas e das condições de sua máxima realização.Para a humanidade, as possibilidades são produzidas historicamente pela transformação danatureza, de forma social, afastando os limites que esta impõe ao humano. A compreensão dadeterminação da saúde humana se faz pela análise do modo de produção, do grau de desen-volvimento das forças produtivas e das relações sociais estabelecidas.

    PALAVRAS-CHAVE Saúde; Fatores epidemiológicos; Determinação.

    ABSTRACT Living beings are considered healthy when able to accomplish their possibilities, and,

     for human beings, such possibilities are produced historically. This paper aims to overcome the

    logic of the determining factors, understanding health by the social production of the human on

     people and the conditions of its full realization. For mankind, the possibilities are historically produced by the transformation of nature, performed socially, pushing the limits it imposes on

    their existence. The understanding of the determination of human health is reached through the

    analysis of the mode of production, the degree of development of productive forces and of social

    relations.

    KEYWORDS Health; Epidemiologic factors; Determination.

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    Sobre a saúde, os determinantes da saúde e adeterminação social da saúdeOn health, determinants of health and the social determination of

    health

    Guilherme Souza Cavalcanti de Albuquerque1, Marcelo José de Souza e Silva2 

    1 Doutor em Educação pela

    Universidade Federal do

    Paraná (UFPR) – Curitiba

    (PR), Brasil. Pesquisador

    da Universidade Federal do

    Paraná (UFPR) – Curitiba

    (PR), Brasil.

    guilherme.albuquerque.ufpr@

    gmail.com

    2 Mestre em Educação pela

    Universidade Federal do

    Paraná (UFPR) – Curitiba

    (PR), Brasil. Pesquisador

    da Universidade Federal do

    Paraná (UFPR) – Curitiba

    (PR), Brasil.

    [email protected]

    ENSAIO  | ESSAY 

    DOI: 10.5935/0103-1104.20140082

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    Introdução

    A reflexão sobre a saúde, seus determinantese sua determinação, requer, em primeiro lugar,que se esclareça com que concepção de saúde

    se estará trabalhando. Muitas das reflexões naárea da saúde ou não explicitam a concepçãode saúde sobre a qual se fundam, ou partem dopressuposto de que tal concepção está dada,fruto de um consenso universal que não deixaqualquer margem de dúvida ou divergênciaentre os interlocutores (ALMEIDA FILHO, 2011; FLEURY-TEIXEIRA, 2009). Não é assim. Ao longo da história,a humanidade foi elaborando diversas concep-ções de saúde (FOLADORI, 2011; ALMEIDA FILHO, 2011):por um lado, de acordo com o grau de domínio

    sobre a natureza, sobre a realidade objetiva,com o modo hegemônico de interpretar a re-alidade em cada momento histórico; por outrolado, de acordo com as necessidades apresen-tadas a partir dos interesses dominantes emcada momento, em relação ao funcionamentodo corpo para seu uso.

    Desde as concepções primitivas, fundadasem uma explicação mágica — passando pelasexplicações que correlacionavam o organismohumano com os elementos da natureza, pelas

    explicações religiosas, entre outras —, até asconcepções mais atuais da ausência de doençae estado de completo bem-estar biopsicosso-cial, a humanidade produziu e acumulou di-versas formas de conceituação da saúde. Cadauma delas constitui uma concepção particular,orgânica aos interesses, necessidades e grau deexplicação da realidade que alcançou o pensa-mento hegemônico em cada formação socialnos diferentes momentos históricos.

    No presente texto, procurou-se expor

    uma concepção de saúde fundada no mate-rialismo histórico-dialético como condiçãode realização das conquistas do gênero emcada sujeito, entendendo o ser humano comoum ser que se produz em sociedade e que,diferentemente dos outros animais, impõesua vontade sobre a natureza de forma te-leológica, tornando-a seu corpo inorgânico,que se relaciona dialeticamente com seu

    corpo orgânico. A partir dessa concepção,buscou-se demonstrar sua determinaçãosocial e a necessidade da análise do modo deprodução para sua correta compreensão.

    Sobre a saúde

    Em uma primeira análise, podemos con-siderar que os seres vivos, em geral, estãosaudáveis quando em condições de realizaraquilo que a natureza lhes apresenta comopotencial de realização. Nessa perspectiva,as plantas estão saudáveis quando em con-dições de extrair do solo seus nutrientes,desenvolver sua estrutura, produzir carboi-

    drato e oxigênio através da fotossíntese, pro-duzir flores, frutos, sementes, ou quaisqueroutras formas de reprodução.

    Para os animais em geral, significa estarem condições de obter seu alimento, pro-teger-se, reproduzir-se e ter como expec-tativa de vida aquela que caracteriza suaespécie. Para cada espécie em particular,significa poder realizar aquilo que lhes dáespecificidade. Para a abelha  Apis mellifera,por exemplo, significa, em primeiro lugar,

    ter uma expectativa de vida em torno de60 dias (no caso das operárias), poder voar,colher pólen e néctar, produzir o mel, a cera,o própolis, defender a colmeia dos predado-res etc. Em síntese, realizar aquilo tudo queestá dado geneticamente como possibilidadee que caracteriza a espécie. A realização dopotencial, no entanto, depende da disponi-bilidade dos recursos naturais necessáriospara a sobrevivência e a reprodução.

    Para os seres humanos, a questão é a mesma,

    mas não é igual. É a mesma no que diz respei-to ao fato de estar em condições de realizaraquilo tudo que o gênero humano apresentacomo possibilidade de realização. Não é igualporque, para os seres humanos, essa questãonão está dada e determinada apenas pelas pos-sibilidades e limites impostos pela natureza.

    Os animais não humanos realizamsua existência nos limites impostos pela

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    natureza, obedecendo aos seus instintos.As diversas espécies animais retiram da na-tureza sua sobrevivência adaptando-se àscircunstâncias impostas. Se a natureza nãooferece as condições necessárias, os indi-

    víduos fenecem. Se a espécie não se adaptaao meio natural, extingue-se. Ao longo demuitas gerações (em geral, em milênios), asdiferentes espécies vão-se adaptando às di-versas circunstâncias que a natureza oferece,vivendo dentro de certos limites de tempe-ratura, pressão, luminosidade, entre outros.Porém, é importante destacar que em umamesma geração não ocorre adaptação evolu-tiva da vida animal. Embora, por outro lado,os seres vivos em geral apresentem, como

    mecanismos evolutivos, não somente a trans-missão de “melhores genes para um ambien-te futuro” (FOLADORI, 2011, P. 50), mas também atransmissão de um ambiente modificado(pela sua existência e relação com o meiobiótico e abiótico) para os genes vindouros.

    No caso dos humanos, porém, essa modi-ficação ocorre de modo especial. Estes, pararealizar seu potencial, necessitam dispordos recursos naturais, mas, se todo ser vivoatua modificando o meio, os seres humanos

    têm por característica particular atuar sobrea natureza de forma teleológica, buscandotransformá-la intencionalmente. Através dotrabalho, ação previamente pensada, dirigi-da a um determinado fim (MARX, 1965), os sereshumanos afastam aqueles limites que a natu-reza impõe à plena realização de suas poten-cialidades, ampliando, permanentemente,essas próprias potencialidades.

     A produção social dohumano e a determinaçãoda saúde e da doença

    Ao atuar sobre a natureza para a produção dasua existência, o gênero humano não só crianovas condições de existência como tambémnovos meios de produzir novas condições de

    existência. Assim, cria novas necessidades etorna mais complexas essas condições.

    Para prover sua sobrevivência, os sereshumanos, em conjunto, produzem coisas,como roupas, alimentos, moradias, meios de

    transporte, meios de comunicação, conhe-cimentos, ferramentas, máquinas, fábricas,entre outras. A produção disso tudo só é pos-sível pela divisão social do trabalho — algunsproduzem alimentos, outros produzem cui-dados médicos, automóveis, computadores,máquinas, moradias e assim por diante —,e, com isso, criam-se as condições para quetodos tenham à sua disposição tudo o queuma pessoa isoladamente não conseguiria.Cria-se, portanto, com essa divisão, uma

    relação de interdependência entre os di-versos setores da produção, relação na qualé dada a condição humana. Portanto, umapessoa, isoladamente, não conseguiria viverna condição alcançada pela humanidade,pois não conseguiria produzir tudo o que emsociedade torna-se possível e desenvolverem si todas as potencialidades humanas.

    A sobrevivência humana, como dis-semos, diferentemente da dos outrosanimais, não se dá através de uma relação

    instintiva de subordinação à natureza. Édesta, também, que o humano retira suasobrevivência, mas, através de sua açãointencional modifica a mesma, subordi-nando-a a seus desígnios e, assim, pro-duzindo seus meios de sobrevivência.Não apenas extraindo diretamente danatureza o que necessita, mas produzindoobjetos que nela não existiam através dasua modificação.

    Se a humanidade só retirasse o que a na-

    tureza oferece, como no caso dos outrosanimais, em tempos de frio extremo, de seca,de ‘entressafras’, morreríamos de hipoter-mia, sede ou fome e não conseguiríamos

     jamais voar, explorar o espaço, ou armazenarinformações em um computador. Ao modifi-car a natureza, a humanidade acaba por con-trolar seus processos de forma a adequá-la asuas necessidades.

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    Os demais animais (formigas, abelhas,castor, joão-de-barro, entre outros)também realizam uma atividade que seassemelha ao trabalho humano. Trata-se,porém, de uma ação realizada sempre da

    mesma forma, ‘obedecendo’ ao instintoda espécie. Subordinados à natureza, osdemais animais realizam uma ação quedifere radicalmente do trabalho humano. Oser humano, a partir de uma ideia, realizaprocessos no sentido de torná-la realidade.Idealiza um produto e depois atua sobrea natureza no sentido de produzi-lo. Naspalavras de Marx (1965, P. 140, TRADUÇÃO NOSSA),

    […] antes de executar a construção, a projeta

    em seu cérebro. Ao final do processo de tra-

    balho, brota um resultado que antes de come-

    çar o processo já existia na mente do traba-

    lhador; quer dizer, um resultado que já tinha

    existência ideal.

    A humanidade cultiva plantas ou criaanimais, modifica-os para sua alimenta-ção (do leite faz a manteiga, iogurte etc.),para vestir-se (do couro, da lã de carnei-ro, da seda, faz roupas, sapatos, sacolas

    etc.); utiliza plantas, como o algodão,para produzir suas roupas; utiliza fungos,por exemplo, para a produção de medi-camentos; constrói moradias utilizandoareia, fazendo tijolos de barro, cimento ecal, queimando as rochas, fundindo ligasmetálicas, fazendo vidro a partir da sílica;produz meios de transporte que o levammuito longe e rápido sem exaurir suasenergias, que lhe permitem navegar e voar;produz meios de comunicação que lhe per-

    mitem ver e conversar, em tempo real, comalguém que esteja do outro lado do globoterrestre; constrói aparelhos que lhe per-mitem enxergar microscopicamente ouenxergar a distâncias muitíssimo longas;produz um código de comunicação, expres-sando ideias através de signos (abstrações)orais, as palavras; registra essas ideiasatravés da palavra escrita, estendendo,

    com isto, infinitamente sua memória.Com tudo isso, com a utilização dos meios

    de vida que elabora, a humanidade conse-gue produzir cada vez mais recursos commenor esforço, garantindo a sobrevivência

    de mais gente por mais tempo, com maiorespossibilidades de realização. Reduz-se amortalidade precoce, aumenta-se a longevi-dade, aumentam-se as possibilidades de de-senvolvimento, inclusive do saber, uma vezque cada um vive mais tempo.

    É fundamental percebermos, no entanto,que cada coisa que existe na natureza,uma vez tomada pela humanidade paraum determinado fim, tornada objeto daação humana, torna-se objeto humano.

    São novos objetos, mesmo que não tenhamsido modificados em sua forma e conteúdo,pois se modificaram em seu significado, ouseja, ganharam um novo significado pelaação humana (LUKÁCS, 1979). Um galho deárvore, com a ação humana, vira alavanca,arco, flecha, bengala, espeto; o movimentodas águas, devido à gravidade, ‘torna-se’energia hidráulica, que será transformadaem energia elétrica.

    Ou seja, ao produzir objetos e utilizá-los

    para viver o ser humano produz uma novarealidade e se produz com ela. Isso querdizer que ele é produto da civilização, é umproduto social e não mais somente da na-tureza. O ser humano, portanto, não nascepronto, vai adquirindo a condição humanacom aquilo que a sociedade produz (MARX,2004). É isso que lhe permite objetivar emsi aquilo que caracteriza a condição de hu-manidade. O gênero humano, na atualidade,tem como possibilidade viver próximo de

    100 anos, enxergar o que ocorre no outrolado do mundo, voar, corrigir seu déficitvisual com o uso de óculos, entre outras,mas esta condição não está dada pela natu-reza ao nascer, como está dada aos pássarosa condição de voar.

    O humano continua sendo um ser bioló-gico, sobre o qual, porém, depositam-se inú-meras produções sociais que o caracterizam,

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    que o objetivam, diferentemente dos demaisanimais.

    As formas de objetividade do ser social se de-

    senvolvem, à medida que surge e se explicita

    a práxis social, a partir do ser natural, tornan-

    do-se cada vez mais claramente sociais. Esse

    desenvolvimento, porém, é um processo dia-

    lético, que começa com um salto, com o pôr

    teleológico do trabalho, não podendo ter ne-

    nhuma analogia na natureza. (LUKÁCS, 1979, P. 17).

    É um ser, agora, que precisa utilizar osobjetos humanos produzidos para adquiriro grau de humanidade que a humanidadeatingiu. Precisa ser educado, precisa apren-

    der a utilizar o garfo, a faca, a leitura, ocomputador, os automóveis, os antibióticos,enfim, tudo aquilo que a sociedade produ-ziu e que é necessário para poder viver oquanto tornou possível e realizar aquilo queo gênero humano realiza.

    Desde o momento em que nasce, a criança for-

    ma o seu comportamento sob a influência das

    coisas que se formaram na história: senta-se à

    mesa, come com colher, bebe em xícara e mais

    tarde corta o pão com a faca. Ele assimila aque-

    las habilidades que foram criadas pela história

    social ao longo de milênios. Por meio da fala

    transmitem-lhe os conhecimentos mais ele-

    mentares e posteriormente, por meio da lingua-

    gem, ele assimila na escola as mais importantes

    aquisições da humanidade. A grande maioria de

    conhecimentos, habilidades e procedimentos

    do comportamento de que dispõe o homem

    não são o resultado de sua experiência própria

    mas adquiridos pela assimilação da experiência

    histórico-social de gerações. (LURIA, 1979, P. 73).

    Assim, a vida humana se produz confor-me se organiza, em sociedade, a produçãoe distribuição dos meios de sobrevivência,dos produtos humanos. Realiza-se, portanto,dentro dos limites e possibilidades que o de-senvolvimento das forças produtivas e as re-lações de produção estabelecem (MARX, 1965). A

    vida humana depende, portanto, do grau dedesenvolvimento e da forma como a própriasociedade se organiza.

    Saúde e seus determinantes

    Tomemos a definição de Juan César García,segundo a qual saúde constitui condição de“máximo desenvolvimento das potenciali-dades do homem, de acordo com o grau deavanço obtido pela sociedade em um períodohistórico determinado” (GARCIA, 1989, P. 103).

    Se entendermos, assim, que saúde signi-fica ‘estar vivo e em condição de nos objeti-varmos como humanos, de realizarmos em

    cada um de nós o máximo dentro do que ahumanidade já estabeleceu como possibili-dade’, torna-se muito claro que essa objeti-vação depende não somente da regularidadeanatomofuncional do corpo, mas tambémda possibilidade de apropriação daquiloque a humanidade produziu. Os produtoshumanos aos quais estamos nos referindoe dos quais necessitamos para nos objeti-varmos incluem: alimentos, moradia, edu-cação, meio ambiente, transporte, serviços

    de saúde, hábitos ou estilos de vida, entreoutros, denominados de ‘determinantessociais de saúde’.

    Segundo a Comissão Nacional sobre osDeterminantes Sociais da Saúde (2008),  taisdeterminantes estariam vinculados aos com-portamentos individuais e às condições devida e trabalho, bem como à macroestrutu-ra econômica, social e cultural. Seriam os“fatores sociais, econômicos, culturais, étni-co-raciais, psicológicos e comportamentais

    que influenciam a ocorrência de problemasde saúde e seus fatores de risco na popula-ção” (BUSS; PELLEGRINI FILHO, 2007, P. 78).

    Questões como o grau de autonomia,segurança, reconhecimento, recompensaou frustração diante do esforço, frequente-mente denominadas de determinantes psi-cossociais da saúde  (FLEURY-TEIXEIRA, 2009), sãotambém produtos das diversas formações

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    sociais e desempenham papel importantecomo determinantes da saúde.

    Apesar do vínculo reconhecido pelaComissão Nacional de DeterminantesSociais, exposto acima, há um forte risco de

    ‘culpabilização’ dos sujeitos na adoção dosfatores determinantes como categoria expli-cativa da saúde, diante do que alguns estudosadvertem para o fato de que

    A determinação social da saúde está muito

    além de determinantes isolados e fragmen-

    tados que, sob uma perspectiva reducionis-

    ta, são associados com fatores clássicos de

    riscos e estilos de vida individuais. Não de-

    vemos permitir que o conceito de determi-

    nantes sociais seja banalizado, ou reduzido,

    simplificando-o ao tabagismo, ao sedentaris-

    mo, ou a uma inadequada alimentação. O que

    precisamos reconhecer é que por trás dessas

    práticas, existe uma construção social basea-

    da na lógica de uma cultura hegemônica [...].

    (CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE, 2011, P. 1).

    Alguns estudos buscam solucionar talquestão ressaltando a importância da distin-ção entre os determinantes de saúde dos in-

    divíduos e os de coletivos de indivíduos, umavez que fatores que explicariam as diferen-ças individuais não explicariam as diferen-ças entre grupos sociais ou entre sociedades(BUSS; PELLEGRINI FILHO, 2007).

    As importantes diferenças de mortalidade

    constatadas entre classes sociais ou grupos

    ocupacionais não podem ser explicadas pe-

    los mesmos fatores aos quais se atribuem as

    diferenças entre indivíduos, pois se contro-

    lamos esses fatores (hábito de fumar, dieta,

    sedentarismo etc.), as diferenças entre estes

    estratos sociais permanecem quase inaltera-

    das. (BUSS; PELLEGRINI FILHO, 2007, P. 81). 

    Segundo os autores citados, as diferen-ças seriam marcadas muito mais pelo graude ‘equidade’ na distribuição de renda quepelos fatores individuais biológicos ou

    comportamentais. Sob essa óptica, uma açãoconsistente de saúde deveria atacar a mádistribuição de renda. Os processos sociaisque determinam essa má distribuição, noentanto, não são colocados em questão,

    expondo uma fragilidade fundamental nestetipo de explicação.

    Mesmo os modelos como os de Dahlgrene Whitehead e o de Diderichsen, que buscamampliar o olhar sobre os determinantes, nosentido de superar tal fragilidade explica-tiva e produzir indicações para a ação po-lítica voltada a minimizar os diferenciaisdos diversos grupos sociais, indicam que acondição de saúde e doença dos indivíduosé influenciada pelo contexto social, pelas

    condições de vida e trabalho, ambos rela-cionados às condições macrodeterminantes(econômicas, culturais e ambientais), masnão demonstram as relações dialéticas exis-tentes entre as diversas instâncias, ocultan-do seus nexos de determinação (SOUZA; SILVA;SILVA, 2013).

    Todas as questões apresentadas comodeterminantes das condições de saúde edoença dos indivíduos e dos grupos popula-cionais são analisadas em uma perspectiva

    positivista, fragmentadas, não conexas, semuma base unificadora que as organize racio-nalmente e explique sua ocorrência.

    No exemplo citado, a iniquidade na distri-buição de renda é tomada como característi-ca inerente às formações sociais estudadas,cuja origem ou determinação não se explica.

    As produções mais recentes têm supe-rado a instância de análise singular, de-monstrando que os comportamentos (derisco) ocorrem subordinados às condições

    particulares de existência, nos limites queo modo de vida dos diversos grupos sociaisimpõe. Em decorrência disso, as propostasde intervenção voltadas à melhoria da saúdeincluem: a preocupação com mudanças emnormas culturais, ações educativas de massa,melhoria de acesso a alimentos saudáveis,melhor acesso à água limpa, esgoto, habita-ção adequada, emprego seguro e realizador,

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    ambientes de trabalho saudáveis, serviços desaúde e de educação de qualidade, criaçãode espaços públicos para a prática de espor-tes, proibição de propagandas de alimentose outras substâncias deletérias à saúde, bem

    como o apelo à coesão social e ao fortaleci-mento dos laços de solidariedade entre aspessoas e grupos populacionais, buscandoque os grupos mais fragilizados se fortale-çam no sentido da participação das decisõesda vida social (BUSS; PELLEGRINI FILHO, 2007). 

    Tais ideias, se por um lado contemplamquestões fundamentais na determinação dasaúde, por outro desconsideram que estaspróprias questões são sobredeterminadas,desconsideram que no capitalismo as coisas

    são produzidas pelo seu valor de troca e nãopelo seu valor de uso e que, frequentemen-te, a produção de valores de troca prejudicaou mesmo impede a produção de valoresde uso. Dessa forma, deixando intocados osfundamentos do capitalismo, tais assertivasacabam por assumir um aspecto de pregaçãomoralista. Ao se responsabilizar as própriaspessoas e grupos por suas condições deexistência, dilaceradas pelas necessidadesdo capital, dissemina-se a falácia de que a

    mudança dependeria da boa vontade e dodespertar do humanismo que repousa nasboas almas humanas.

    Afirmações eivadas de boa intenção,apelando à colaboração dos diversossetores da sociedade, como as que propõemintervenções através de políticas macro-econômicas e de mercado de trabalho, deproteção ambiental e de promoção de umacultura de paz e solidariedade no sentidode promover um desenvolvimento susten-

    tável, reduzindo as desigualdades sociais eeconômicas, a violência, a degradação am-biental, que atuem sobre os mecanismosde estratificação social e sobre os diferen-ciais de exposição, de vulnerabilidade ede suas consequências (BUSS; PELLEGRINI FILHO,2007), desconsideram que, para a sociedadecapitalista, é vital promover a exploraçãode imensas parcelas da população, gerando

    a desigualdade. Ou seja, o que o capitalis-mo precisa para sobreviver e progredir éexatamente o oposto do que é preconiza-do, reduzindo o discurso da saúde a umapregação de responsabilização das vítimas

    que deverão encontrar meios de melhorviver, nas condições dadas pela sociedadedo capital, com uma (improvável) colabo-ração das classes sociais a cujos interessesse opõem.

    Os limites rigidamente impostos pela pre-servação do capitalismo ficam evidentes naspífias pretensões ilustradas pelas proposi-ções de ‘diminuir’ diferenciais de exposiçãoa riscos dos grupos que vivem em condiçõesinsalubres ou trabalham em ambientes in-

    seguros. São ações voltadas a ‘mitigar osefeitos’ de um modo de vida patogênico quepermanecerá intocado, como evidencia oenunciado abaixo:

    Quanto ao enfrentamento dos diferenciais de

    vulnerabilidade, são mais efetivas as interven-

    ções que buscam fortalecer a resistência a di-

    versas exposições, como por exemplo, a edu-

    cação das mulheres para diminuir sua própria

    vulnerabilidade e a de seus filhos. (BUSS; PELLE-

    GRINI FILHO, 2007, P. 87).

    Perceber, portanto, que a frustração, apobreza, a privação e o trabalho desgastante,fazem mal à saúde e que a boa saúde dependede acesso a boas condições de moradia, ali-mentação, trabalho, renda e saneamento éimportante, mas insuficiente. Identificarque tais deficiências são determinantes dascondições de saúde é fundamental para bus-carmos saná-las com vistas à conquista da

    saúde, mas insuficiente para compreender-mos a determinação da mesma. O desafio aser enfrentado é compreender porque essascondições se impõem (SANTOS; TEJADA; EWERLING,2012). É imperativo entendermos as relaçõessociais historicamente dadas que estão adeterminar as condições de existência, sobdeterminado modo de produção.

    Estabelecer, simplesmente, uma relação

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    de correspondência entre fatores determi-nantes, tomados como elementos que geramdesiguais condições de saúde e doença, pres-supõe a possibilidade de intervir sobre eles,desconsiderando os limites e possibilidades

    impostos pelo modo de produção dominante.

    A postura de reunir evidência sobre os fatores

    sociais que geram desigualdades em saúde

    reproduz as limitações do paradigma domi-

    nante na epidemiologia e na saúde pública

    […], pois fragmenta a realidade em fatores,

    supondo que isolados mantêm sua capaci-

    dade explicativa e são suscetíveis de serem

    modificados. (ARELLANO; ESCUDERO; MORENO, 2008,

    P. 327, TRADUÇÃO NOSSA).

    Granda e Breilh (1989, P. 39)  nos alertampara o fato de que a colocação científicada análise da determinação da saúde e dadoença requer um rigoroso processo de de-limitação que não a desarticule, como objetode estudo, “do processo geral da sociedade e,ao mesmo tempo, permita reconhecer seusaspectos específicos e situar suas expressõesindividuais”.

    Desconsiderar tais relações faz ocultar

    a determinação social dos processossobre os quais se produz a vida humanaem sociedade, prejudicando a identifi-cação das intervenções necessárias paraas mudanças realmente significativaspara a construção de uma sociedade maissaudável.

    A análise dos ‘fatores determinantes’, sema compreensão da totalidade que os produz,frequentemente leva a localizar nos indiví-duos a origem e a solução das questões da

    saúde e da doença, dando suporte a propo-sições vinculadas à esfera da educação, dareligião, da cidadania responsável, buscandotornar civilizadas as vítimas dos processossociais desumanos.

    Esse tipo de atitude pode induzir a equí-vocos, como a afirmação de Villermé de quea origem social da doença e da morte estariana própria população que, pouco civilizada,

    constituiria uma raça à parte, que se repro-duz em excesso e morre em excesso e quea solução para tal situação seria civilizá-loscom a ajuda da religião, por meio do rigormoral e da cidadania responsável.

    Determinação social dasaúde

    Que tipo de vida, o quanto se poderá viver,que tipo e grau de desgaste, de possibilidadesde desfrute dos bens produzidos, que bensestarão disponíveis, dependem do grau dedesenvolvimento adquirido pelas forças pro-dutivas da sociedade em que se vive. Como

    demonstramos, tudo na vida em sociedade,tudo na vida humana, é determinado, emúltima instância, pelo grau de desenvolvi-mento alcançado pela sociedade, é determi-nado socialmente.

    Mas o fato de ser determinado socialmen-te não inclui apenas a questão do grau de de-senvolvimento das forças produtivas — nãohá, por exemplo, uma correlação direta entreos indicadores de riqueza de uma sociedadee os indicadores de saúde (BUSS; PELLEGRINI FILHO,2007)  —, também depende das relações deprodução, ou seja, de como estão organiza-das na sociedade não somente as relaçõesdas pessoas com a natureza, mas também daspessoas entre si.

    Em sociedades de classes, as relações quese estabelecem entre as classes determinamdiferentes possibilidades e restrições ao de-senvolvimento da vida e, consequentemente,diferentes formas ou possibilidades de viver,adoecer e morrer.

    A possibilidade da apropriação de tais pro-dutos (determinantes da saúde) está dada ousobredeterminada pela formação social queos produz. O acesso aos objetos humanos,produtos do trabalho social, se dá, para cadagrupo, de diferentes formas, na dependênciade como se organiza a vida em cada socie-dade. Ou seja, a forma como se organiza aprodução na sociedade determina diferentes

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    limites e possibilidades de realização da vidapara os diferentes grupos sociais.

    Na sociedade capitalista, uma classedetém a propriedade dos meios de produçãoe outra classe detém apenas sua força de tra-

    balho. A classe que não possui meios de pro-dução próprios precisa vender sua força detrabalho para sobreviver e, assim, terá maiorou menor desgaste no trabalho e maior oumenor possibilidade de acesso aos produ-tos da produção social, a depender da formacomo se insere na produção e no consumo.

    Quando as forças produtivas se desenvol-vem, criam-se as condições para que a pro-dução ocorra com menor desgaste de energiapor parte do trabalhador e com menor dis-

    pêndio de tempo. Melhoram as possibilida-des de realização da vida dos indivíduos, deaumentar a expectativa de vida, de alterar ascausas de adoecimento e morte.

    Se, por exemplo, olharmos para o Brasilcolonial e compararmos com a atuali-dade, veremos que a expectativa de vidaaumentou significativamente e que, senaquela época as causas de morte estavammuito ligadas às doenças infecciosas, hojeestão ligadas mais à violência e às doenças

    crônico-degenerativas.Nas relações capitalistas de produção, no

    entanto, o avanço das forças produtivas nemsempre resulta em melhorias para a classetrabalhadora. Muitas vezes o avanço da pro-dução se dá a partir de maior exploração dotrabalhador. Marx, ao descrever as condi-ções de trabalho que se instauravam com amaquinaria no século XIX, já nos apontavaque

    […] a máquina se converte, nas mãos do capi-

    tal, em um meio objetivo e sistematicamente

    aplicado para extrair mais trabalho dentro do

    mesmo tempo. Isto se consegue de um duplo

    modo: aumentando a velocidade das máqui-

    nas e estendendo o raio de ação da maquina-

    ria que tem que vigiar o mesmo trabalhador,

    ou seja, o raio de trabalho deste. (MARX, 1965, P.

    363-364, TRADUÇÃO NOSSA).

    Como demonstra Laurell (1983), em ummesmo momento histórico, diferentesformas de organizar as sociedades tambémrepercutem de forma diversa sobre a saúde,seja pela diferença no grau de desenvolvi-

    mento das forças produtivas, seja pela dife-rença na forma de se estabelecer as relaçõessociais.

    Os Estados Unidos da América (EUA)possuem melhores condições de saúde do queos países africanos em geral devido, princi-palmente, ao maior grau de desenvolvimentode suas forças produtivas, que faz com queos estadunidenses tenham menor desgastena produção e maior acesso ao consumo deprodutos necessários para manter a saúde,

    como alimentos, medicamentos, entreoutros. Por outro lado, dados de morbidadee mortalidade, comumente utilizados comoindicadores de saúde, como a MortalidadeInfantil (MI), demonstram que nos EUAa MI é superior à de 55 países cujo grau dedesenvolvimento das forças produtivas é, nomáximo, similar ao seu, entre os quais Japão,Suécia, França, Alemanha, Holanda, Canadáe superior, também, à de países como Cuba,Grécia, Portugal, Sérvia, Croácia, Bósnia

    Herzegovina (CENTRAL INTELLIGENCE AGENCY OF THEUNITED STATES OF AMERICA, 2014) que, evidentemen-te, possuem um grau de desenvolvimentodos meios de produção extremamente infe-rior. Em última instância, o que determinatal diferença, nesse caso, são as relações deprodução, que nos EUA são marcadas pelaextrema exploração do homem pelo homem,pela prioridade absoluta da produção devalores de troca sobre valores de uso e peladesigualdade gerada pelo fundamentalismo

    liberal; o que no Canadá procura-se atenuare em Cuba procura-se eliminar.

    Finalmente, em uma sociedade de classes,em um mesmo momento histórico, o modode viver, adoecer e morrer das diferentesclasses e estratos de classe é bastante diverso.Em uma sociedade como a brasileira, porexemplo, já se sabe do que mais adoeceme morrem os médicos, os bancários, os

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    banqueiros, os pedreiros, os engenheiros, osestivadores, os trabalhadores de telemarke-ting, os desempregados, entre outros. Têmuma expectativa de vida bastante diversa eadoecem e morrem por causas bastante dis-

    tintas devido ao modo como se inserem nomundo da produção e no consumo.

    Médicos adoecem e morrem mais porproblemas cardiovasculares e suicidam-semais que a população em geral (MELEIRO, 1998);trabalhadores da construção civil morremprecocemente por queda dos prédios emconstrução (LUCCA; MENDES, 1993). Comparandoos indicadores de morbidade e mortalidadepor tuberculose de São José do Rio Preto, doestado de São Paulo e do Brasil, verifica-se

    que o risco de adoecer é três vezes maiorna área com piores níveis socioeconômicos(VENDRAMINI ET AL., 2005). Segundo Noronha,Figueiredo e Andrade (2010), no Brasil existeuma relação significativa entre indicado-res de saúde e maiores níveis de pobreza,com um pior acesso aos cuidados de saúdee também mortes por causas evitáveis. Osautores também verificaram uma relaçãosignificativa entre o crescimento econômi-co e a proporção de mortes por diabetes e

    câncer.Indivíduos pertencentes à parcela da

    população que detém a posse dos meios deprodução têm possibilidades imensamentemaiores de se colocar em condições de de-senvolver ao máximo suas potencialidades,pela maior possibilidade de apropriar-se dosobjetos humanos produzidos. Porém, essesmesmos indivíduos, estando, também, sub-metidos a relações sociais alienadas, comoocorre no capitalismo, encontram-se em

    condições de subdesenvolvimento das po-tencialidades obtidas pelo gênero humano(MÉSZÁROS, 2009).

    Conclusão

    A partir de nossas análises, expostas breve-mente no presente trabalho, concluímos que

    a doença ocorre de modo diferente nas dife-rentes sociedades, nas diferentes classes eestratos de classes sociais, apesar das seme-lhanças biológicas entre os corpos dos sereshumanos que as compõem.

    Concluímos, também, que a saúde, enten-dida como a possibilidade de objetivação emcada indivíduo do grau de humanidade quea humanidade produziu, apresenta-se demodo diferente nas diferentes sociedades,nas diferentes classes e estratos de classessociais, apesar das semelhanças biológicasentre os corpos dos seres humanos que ascompõem.

    A vida humana é determinada socialmen-te em todas as suas dimensões, inclusive a da

    saúde. Compreender a determinação socialda saúde, portanto, não consiste em compre-ender apenas que a saúde depende do acessoaos objetos humanos, mas que as possibilida-des de realização do humano, e o acesso aosprodutos necessários para tal, dependem dograu de desenvolvimento das forças produti-vas e das relações de produção estabelecidasem cada formação social. A ideia dominante,de identificação dos determinantes, é, por-tanto, insuficiente para direcionar ações de

    saúde que contribuam efetivamente paraa máxima realização do humano. Para tal,seria necessário alterar o modo de produção.

    A possibilidade de criação de um novomodo de produção, voltado prioritária efundamentalmente para a satisfação dasnecessidades da vida, da saúde, da máximarealização do humano em cada um, não éuma questão de fé. Trata-se de uma con-clusão racional a partir da compreensão daontologia do ser humano. O que caracteriza

    o humano é a ação transformadora da rea-lidade, no sentido de satisfazer suas neces-sidades, ou seja, é produzir o que ainda nãoexiste. A condição de humanidade é produ-zida permanentemente pelos humanos. Nãoestamos condenados a viver neste modo deprodução, assim como os animais irracionaisestão presos aos limites de seus instintos. Oque nos difere é a possibilidade de afastar os

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    limites que a natureza nos impõe, ampliandoas possibilidades de realização da vida.

    A condição de máxima realização de cadaindivíduo exige a superação do modo deprodução capitalista que aliena dos sujeitos

    singulares as conquistas do gênero humano.Tal alienação ocorre apesar dos avanços pro-porcionados pelo capitalismo, pelos limitesimpostos pela propriedade privada dosmeios de produção, que promovem o distan-ciamento entre as possibilidades de realiza-ção do indivíduo diante das possibilidadesalcançadas pelo gênero humano. Isso se evi-dencia, por exemplo, nas recorrentes crisesde superprodução ao lado da manutençãode imensos contingentes populacionais em

    condições de carestia, no desemprego estru-tural produzido pela redução da necessidadede trabalho vivo, ao lado do aumento da ex-ploração dos trabalhadores em atividade.

    Segundo Mészáros (2006), a atualidadeé marcada por uma condição inédita depossibilidade de superação do modo deprodução capitalista, mesmo diante da ca-pacidade de criação de medidas de sobrevi-vência e de expansão do capitalismo, com asmanobras manipulatórias de muitos de seus

    problemas. Não há como negar que estamos

    em meio a uma crise de dimensões globais.Vivemos o agravamento da contradiçãoentre a abundância de condições de produ-ção da base material da vida e a restrição doacesso a parcelas crescentes da população

    mundial a essa mesma base, acompanhadada rarefação de respostas satisfatórias dasforças políticas dominantes. Configura-se,ao mesmo tempo, uma situação de insol-vência do modo de produção capitalista, aolado da possibilidade de sua superação poruma ordem social mais favorável à vida. Oexcedente socialmente produzido é cadavez maior e não dirigido à satisfação das ne-cessidades da vida, mas às necessidades deexpansão do capital.

    Parcela cada vez maior da força de tra-balho passa a ser desnecessária para a pro-dução do capital, tendo sua sobrevivênciaameaçada justamente quando poderia tersua vida potencializada. A humanidade játem condições de produzir o necessário paratodos viverem uma vida que proporcioneo desenvolvimento das potencialidades detodos os humanos, com muito menos traba-lho vivo. (POCHMANN, 2013; MÉSZÁROS, 2006). Resta,como tarefa, produzir uma teoria da transi-

    ção para a nova ordem social. s

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    Recebido para publicação em maio de 2014

    Versão final em outubro de 2014

    Conflito de interesses: inexistente

    Suporte financeiro: não houve