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Determinismo tecnológico e autoria no contexto pós-conflitos timorense RAQUEL FOLMER CORRÊA IRLAN VON LINSINGEN Resumo A sociedade timorense tem vivido um período de transições relevantes desde o ano de 1975. Ocasião na qual ocorreu o término oficial da colonização portuguesa e o início da ocupação por parte da Indonésia, que durou até 1999. A partir da restauração da independência do país e das primeiras eleições presidenciais, em 2002, foram firmados acordos internacionais em diferentes áreas, como a educacional. Desde 2005, o Brasil envia professores/as brasileiros/as para trabalhar em Timor-Leste com o objetivo de colaborar na formação, em Língua Portuguesa, de docentes timorenses em diferentes níveis de ensino. Nesse contexto, estivemos em Timor-Leste em 2014 para investigar sentidos sobre educação, ciências e tecnologias na coletividade acadêmica timorense cooperante com o Brasil. Os debates gerados naquela ocasião confirmaram algumas percepções inicias de que tanto educação quanto tecnologias são comumente entendidas genericamente, de modo linear e determinista do incremento econômico e social do país, cujo lema fundamental pós-conflitos é “paz e desenvolvimento”. Ao mesmo tempo, surgiram demandas sobre possibilidades e limites nas articulações entre a produção de conhecimentos tradicionais timorenses com a produção científica atual. Tendo em vista a perspectiva educacional dos ECTS latino-americanos, apontamos um caminho possível para estabelecer tais articulações, que contemple um exame crítico sobre tecnologias sociais, problematize a inclusão, considere a cidadania sociotécnica e mobilize para a autoria em ambientes educacionais. Palavras-chave: determinismo tecnológico; autoria; tecnologias sociais; educação CTS; Timor-Leste Considerações gerais sobre Timor-Leste e a cooperação educacional com o Brasil A República Democrática de Timor Lorosa’e (que significa “terra do sol nascente” em língua local) se localiza no Sudeste Asiático, entre outras ilhas da Indonésia. Fica ao norte da Austrália e ocupa a parte oriental da Ilha de Timor, em uma região de limite entre o Oceano Índico e o Pacífico. Timor-Leste, cuja capital é o distrito de Díli, é menor que o estado brasileiro de Sergipe e tem cerca de 1 milhão de habitantes, que são, em sua maioria, de religião católica. Suas línguas oficiais são a Língua Tétum e a Língua Portuguesa e os principais produtos de exportação são o petróleo, o gás natural e o café. Ele está classificado entre os 10 países com menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do planeta, sendo a nação mais pobre da Universidade Federal de Santa Catarina, doutoranda, CAPES. ** Universidade Federal de Santa Catarina, doutor.

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Determinismo tecnológico e autoria no contexto pós-conflitos timorense

RAQUEL FOLMER CORRÊA

IRLAN VON LINSINGEN

Resumo

A sociedade timorense tem vivido um período de transições relevantes desde o ano de 1975.

Ocasião na qual ocorreu o término oficial da colonização portuguesa e o início da ocupação por

parte da Indonésia, que durou até 1999. A partir da restauração da independência do país e das

primeiras eleições presidenciais, em 2002, foram firmados acordos internacionais em diferentes

áreas, como a educacional. Desde 2005, o Brasil envia professores/as brasileiros/as para

trabalhar em Timor-Leste com o objetivo de colaborar na formação, em Língua Portuguesa, de

docentes timorenses em diferentes níveis de ensino. Nesse contexto, estivemos em Timor-Leste

em 2014 para investigar sentidos sobre educação, ciências e tecnologias na coletividade

acadêmica timorense cooperante com o Brasil. Os debates gerados naquela ocasião

confirmaram algumas percepções inicias de que tanto educação quanto tecnologias são

comumente entendidas genericamente, de modo linear e determinista do incremento econômico

e social do país, cujo lema fundamental pós-conflitos é “paz e desenvolvimento”. Ao mesmo

tempo, surgiram demandas sobre possibilidades e limites nas articulações entre a produção de

conhecimentos tradicionais timorenses com a produção científica atual. Tendo em vista a

perspectiva educacional dos ECTS latino-americanos, apontamos um caminho possível para

estabelecer tais articulações, que contemple um exame crítico sobre tecnologias sociais,

problematize a inclusão, considere a cidadania sociotécnica e mobilize para a autoria em

ambientes educacionais.

Palavras-chave: determinismo tecnológico; autoria; tecnologias sociais; educação CTS;

Timor-Leste

Considerações gerais sobre Timor-Leste e a cooperação educacional com o Brasil

A República Democrática de Timor Lorosa’e (que significa “terra do sol nascente” em

língua local) se localiza no Sudeste Asiático, entre outras ilhas da Indonésia. Fica ao norte da

Austrália e ocupa a parte oriental da Ilha de Timor, em uma região de limite entre o Oceano

Índico e o Pacífico. Timor-Leste, cuja capital é o distrito de Díli, é menor que o estado brasileiro

de Sergipe e tem cerca de 1 milhão de habitantes, que são, em sua maioria, de religião católica.

Suas línguas oficiais são a Língua Tétum e a Língua Portuguesa e os principais produtos de

exportação são o petróleo, o gás natural e o café. Ele está classificado entre os 10 países com

menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do planeta, sendo a nação mais pobre da

Universidade Federal de Santa Catarina, doutoranda, CAPES.

** Universidade Federal de Santa Catarina, doutor.

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Ásia (PEREIRA; CASSIANI; LINSINGEN, 2015).

Timor-Leste é um dos países que teve a sua independência mais recentemente, após

uma longa história de conflitos, resistências e conquistas. Na historiografia1, encontramos

relatos de que portugueses (em busca de sândalo) ocuparam territórios timorenses desde o

século XVI, sendo que Timor-Leste foi colônia de Portugal oficialmente até o ano de 19752.

Em 28 de novembro daquele ano, a FRETILIN (Frente Revolucionária de Timor-Leste

Independente), após disputas com outros dois principais grupos políticos (APODETI:

Associação Popular Democrática Timorense, pró integração com a Indonésia e UDT: União

Democrática Timorense, pró manutenção portuguesa), declarou a independência de Timor-

Leste. Contudo, poucos dias depois, em 07 de dezembro do mesmo ano, a Indonésia invadiu o

país.

O período indonésio em Timor-Leste (1975-1999) foi marcado por genocídios em série

e tentativas ostensivas de imposição da cultura e história daqueles sobre esses. Houve proibição

de utilização da Língua Portuguesa, a Língua Indonésia (Bahasa Indonesia) tornou-se oficial

no território timorense e estabeleceu-se uma política sistemática que ignorava as

especificidades timorenses (PEREIRA, 2014). Estima-se que tenham ocorrido cerca de 350 mil

mortes (mais de 1/3 da população timorense) devido à ocupação. Dessas, aproximadamente 50

mil teriam acontecido apenas nos 3 primeiros meses de invasão. Depois, uma concentração

grande de assassinatos ocorreu em 1979, 1984 e 1999.

Nos anos 1990, relatos de violações de Direitos Humanos em Timor-Leste ganharam

destaque nas mídias internacionais. O que gerou pressão para um posicionamento do governo

indonésio em relação à ocupação e, também, chamou a atenção de Portugal para a situação do

país. Em 1999, após mais de vinte anos de ocupação violenta por parte da Indonésia e resistência

timorense, ocorreu o referendo no qual mais de 78% da população de Timor-Leste decidiu por

1 Muitas informações aqui apresentadas sobre Timor-Leste provêm de nossas experiências no país com docentes

e discentes timorenses e são fruto de nossos diários de campo. Por isso, não apresentamos rigorosamente

referências bibliográficas para esses dados. 2 Para além do contexto local, da divulgação de descoberta de petróleo em Timor-Leste, em 1974, lembremos de

alguns contextos internacionais naquele período. Na Europa, em Portugal, houve a Revolução dos Cravos, em abril

de 1974, que ao buscar depor o regime ditatorial vigente, tinha, entre seus objetivos o lema

“democratizar, descolonizar, desenvolver”, que de certo modo pode ser visto como propício à independência de

Timor-Leste. Na Ásia, a formação de partidos ditos com viés comunista na região do Sudeste Asiático, com forte

influência chinesa e vietnamita na região (o Vietnã venceu a guerra contra os EUA, em 1975), estaria relacionada

com a ocupação de Timor-Leste para evitar um possível avanço comunista.

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sua independência daquele país. Entre 1999 e 2002 a Organização das Nações Unidas (ONU)

administrou um governo de transição e em 20 de maio de 2002 foi restaurada a independência

(idem). Naquele ano, os timorenses foram pela primeira vez às urnas para eleger o presidente

da nação. Timor-Leste é parlamentarista.

Dentro de uma estratégia de política internacional (manifestar soberania através de

uma política robusta de relações internacionais, obter uma cadeira permanente no Conselho de

Segurança da ONU e efetivar contratos comerciais, entre outros), o Brasil, já em 2002, firmou

acordos de cooperação com Timor-Leste (PEREIRA; CASSIANI; LINSINGEN, 2015). O

acordo de interesse aqui é o Programa de Qualificação de Docente e Ensino de Língua

Portuguesa no Timor-Leste3 (PQLP), materializado pelo Decreto Nº 5.274, de 18 de novembro

de 2004 e gerido pelo Ministério da Educação (MEC) e pela Coordenação de Aperfeiçoamento

de Pessoal de Nível Superior (CAPES) (idem).

A partir de 2005, o PQLP enviou anualmente até 50 professores/as brasileiros/as para

trabalharem em Timor-Leste em diferentes áreas do sistema educacional timorense. Os

objetivos do programa buscavam contemplar desde a formação inicial e contínua de docentes,

passando pelo fomento ao ensino da Língua Portuguesa, até o apoio ao ensino superior e a

promoção linguístico cultural (idem). Conforme dados do relatório anual do PQLP, de

novembro de 20144, as ações desenvolvidas nesses três objetivos do programa atingiram,

naquele ano, mais de 4.700 timorenses (idem). Pereira (2014) e Pereira, Cassiani e Linsingen

(2015) examinaram dados5 segundo os quais o PQLP representou 37% dos recursos para bolsas

de estudos de estrangeiros oferecidas pela CAPES entre 2005 e 2009.

Para além de estudos sobre o trabalho desses/as docentes brasileiros/as em Timor-

Leste, nossas reflexões, nesse momento, envolvem a investigação que realizamos naquele país,

no ano de 2014. A saber, examinamos sentidos sobre educação, ciências e tecnologias na

coletividade acadêmica timorense cooperante com o Brasil. Nessa inserção, convivemos com

docentes e discentes timorenses, basicamente da Universidade Nacional Timor Lorosa’e

(UNTL). Contexto no qual os debates realizados, especificamente sobre tecnologias sociais e

produção de conhecimentos, mostraram que tanto educação quanto tecnologias são comumente

3 Em 2002, a Língua Portuguesa foi escolhida como língua oficial, juntamente com a Língua Tétum. 4 Disponível em http://www.pqlp.pro.br 5 Do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e da Agência Brasileira de Cooperação (ABC).

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entendidas genericamente, de modo linear e determinista do desenvolvimento econômico e

social do país6.

A partir dessas percepções, a seguir, consideramos alguns aspectos sobre o

determinismo tecnológico e suas relações com processos educacionais tendo em vista o

contexto timorense pós-conflitos, ou, pós-independência.

Perspectivas deterministas sobre tecnologia e processos educacionais

Sentidos deterministas sobre tecnologia são comumente debatidos em discussões sobre

relações entre tecnologias e sociedade. Ellul (1964) destaca a origem do termo em obras do

sociólogo e economista americano Thorstein Veblen, no início do século XX, em textos nos

quais esse autor trata de relações entre automatismo técnico e mercados capitalistas. Mesmo

que o desenvolvimento dessas ideias tenha acontecido desde a modernidade, juntamente com a

perspectiva de progresso, diferentes estudos7 têm mostrado que o determinismo tecnológico se

refere a linhas de pensamento ainda influentes em diferentes sociedades.

Nas perspectivas deterministas sobre tecnologia, busca-se explicar fenômenos sociais

e históricos de acordo com um fator principal: a tecnologia. Considera-se que o

desenvolvimento tecnológico condicionaria essencialmente as mudanças e as estruturas sociais.

Conforme Chandler (1995), esse tipo de pensamento considera que as tecnologias afetariam

inexoravelmente todos os âmbitos sociais. Feenberg (1991) esclarece que o determinismo se

baseia na suposição de que as tecnologias teriam uma lógica funcional autônoma que poderia

ser explicada sem se fazer referência à sociedade.

De modo bastante resumido, destacamos que, segundo concepções deterministas sobre

tecnologia, consideram-se as relações entre tecnologias e sociedade como unidirecionais, das

tecnologias tendo “impacto” na sociedade, ou seja, como algo fora desta. Sustenta-se, também,

6 Um exemplo que pode ilustrar essa nossa percepção é a fala do Primeiro Ministro timorense, Rui Maria Araújo,

durante a I Reunião Extraordinária de Ministros da Educação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa

(CPLP), realizada em abril de 2015, em Díli. Ocasião na qual ele destacou que a educação “e uma prioridade para

todos e encerra em si, pelo seu potencial, a promessa de progresso e inclusão para todas as sociedades. (...) Ela é

tanto uma condição essencial se de fato se aspira a um progresso que beneficie a todos quanto um elemento

estratégico potencializador de valor econômico para os países. (...) A educação e essencial para a emergência de

setores privados mais inovadores e empreendedores, capazes de se adaptarem aos desafios do mundo globalizado”.

Informações disponíveis em: http://www.cplp.org/id-

3534.aspx?Action=1&NewsId=3632&currentPage=2&M=NewsV2&PID=9040 7 Ver, por exemplo, Bimber (1994), Chandler (1995), Corrêa (2010), Dagnino (2008) e Wyatt (2008).

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que o desenvolvimento social, em seus aspectos econômicos, políticos e culturais seja uma

consequência direta e linear do desenvolvimento tecnológico. Assim, a tecnologia seguiria um

curso particular, como se fosse um fenômeno natural, que responderia aos seus próprios

princípios (CHANDLER, 1995; FEENBERG, 1991).

Nossas críticas a perspectivas deterministas sobre tecnologia, já enunciadas em

estudos anteriores, pretendem chamar a atenção para o fato de que esse tipo de pensamento

pode representar uma visão redutora dos relacionamentos entre o desenvolvimento social e o

tecnológico. Supor que as tecnologias, por si mesmas, são capazes de determinar os

comportamentos dos sujeitos, seus hábitos e instituições, pode encobrir as possibilidades de

resistência e transformação de contingências históricas e de modos com que diferentes

coletividades se relacionam diariamente com as tecnologias (CORRÊA, 2010; LINSINGEN;

CORRÊA, 2015).

Existem diversos modos de olhar a questão do determinismo tecnológico. Destacamos

que há uma dimensão cultural significativa que pode ser considerada nesse debate. Os

sociólogos Trevor Pinch e Wiebe Bijker (2008), por exemplo, têm defendido uma orientação

contrária à perspectiva determinista, qual seja, a da Construção Social da Tecnologia (CST)8.

Esses autores trabalham com a ideia de que as forças sociais e culturais também determinam a

mudança técnica. Em múltiplos estudos, eles têm mostrado como a tecnologia é uma construção

social e, para isso, desenvolvem o conceito de marco tecnológico (idem).9

De nossa parte, debatemos sobre os problemas envolvidos com o determinismo

tecnológico tendo em vista processos educacionais. Para isso, além do foco em dimensões

culturais, consideramos possibilidades de superar esse tipo de visão determinista, que

interpretamos como limitadora dos entendimentos sobre as inter-relações entre diversos

conhecimentos, técnicas e coletivos. Compreendemos que a problematização dessas inter-

relações é algo fundamental para a elaboração e execução de processos educativos que

contemplem uma formação humana crítica, integral e permanente.

Tal problematização está presente nos Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia

(ECTS) latino-americanos em perspectiva educacional (educação CTS), em autores como

8 Do inglês, Social Construction of Technology, também conhecida como SCOT. 9 Tal conceito se centra nos significados que os grupos sociais atribuem a um artefato e na gramática que se

desenvolve ao redor desses para explicar como o ambiente social estrutura o desenho de um artefato.

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Linsingen (2007), por exemplo. Em nossas investigações, propomos a incorporação de debates

sobre determinismo tecnológico nas pesquisas sobre processos educacionais. Entendemos que

a superação das premissas do determinismo tecnológico passa, também, pelos planos

educacionais, de modo que seja possível problematizar questões sociotécnicas de maneira

crítica, participativa e colaborativa em diferentes espaços educativos.

Consideramos que uma abordagem educacional CTS possa ser contextualizada, em

sintonia com os aspectos sociais e comprometida em termos curriculares (idem). A educação

CTS pode atender, também, a “questões que envolvem os variados aspectos das relações sociais

e econômicas regionais, abarcando o campo das políticas públicas de C&T com suas percepções

de relevância” (idem, p. 02). Assim, reforçamos a intenção presente em Cassiani e Linsingen

(2010) de que os ECTS se abram cada vez mais aos temas educacionais.

Destacamos que não há muita novidade no fato de que percepções deterministas sobre

tecnologias possam ser herdadas e desenvolverem-se juntamente com as diferentes

sociedades10. Contudo, problematizar tal percepção parece-nos relevante quando discutimos de

modo colaborativo sobre diferentes rumos que a educação CTS pode seguir em Timor-Leste.

Sobretudo em um momento histórico no qual a coletividade acadêmica timorense busca planos

de ações para desenvolver seus currículos11 de maneira autônoma e conectada aos contextos

locais.

Além disso, e do mesmo modo que Pereira, Cassiani e Linsingen (2015, p. 04),

intencionamos que em nossas cooperações com Timor-Leste “busquemos reduzir, quiçá

eliminar, o caráter assistencialista e de colonialidade inevitavelmente existentes em relações

interculturais ou em processos de cooperação internacional”. Para tal feito, consideramos,

sobretudo, as discussões propostas por Santos (2010) e Quijano (2010) acerca da ecologia de

saberes e da colonialidade do poder, respectivamente.

Nesse momento, apontamos um caminho para refletirmos conjuntamente com a

coletividade acadêmica timorense sobre processos educacionais que articulem a produção de

seus conhecimentos tradicionais com a produção científica atual. Esse caminho passa por uma

10 Como destaca Chávarro (2004), o determinismo tecnológico tem seu início relacionado ao auge da ideia de

progresso, pois até o final do século XIX, a crença nos avanços tecnológicos e sua determinação no bem-estar

humano já havia se tornado um dogma. 11 Verificar o estudo de Barbosa e Cassiani (2015) sobre questões curriculares em Timor-Leste. Disponível em:

http://proxy.furb.br/ojs/index.php/dynamis/article/view/5168

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perspectiva crítica sobre tecnologias sociais, que problematize a inclusão, considere a cidadania

sociotécnica e mobilize para a autoria em ambientes educacionais (LINSINGEN; CORRÊA,

2015), como mostramos a seguir.

Tecnologias sociais e autoria em contextos de educação CTS

Ao propormos debates acerca de concepções deterministas sobre tecnologia,

destacamos possibilidades de resistência e de enfrentamento a tais abordagens. Uma dessas

possibilidades é o desenvolvimento de perspectivas críticas sobre tecnologias sociais, sobretudo

em âmbito educacional. Não estamos sozinhos. De modo geral, existem sujeitos articulados em

movimentos sociais, em coletivos da economia solidária e em ativismo em prol de alternativas

à globalização do capital, que propõem ações em torno de tecnologias tendo em vista outra

lógica de desenvolvimento.

Nessa lógica alternativa, consideramos criticamente tecnologias sociais como

produtos, processos e metodologias capazes de solucionar algum tipo de problema sociotécnico

a partir de necessidades e carências sociais, com a participação efetiva das coletividades

atingidas e que atenda aos quesitos de simplicidade, baixo custo, fácil reaplicabilidade e

resposta social. A partir dessa ideia geral, refletimos sobre possibilidades de articulações entre

conhecimentos tradicionais e conhecimentos científicos em Timor-Leste.

Para tal feito, e em consonância com nossa linha de estudos em educação CTS,

buscamos retomar a temática da tecnologia em relação aos contextos e às condições de sua

produção e utilização, de modo a considerar seu caráter histórico e coletivo, que inclui

contradições, interesses políticos e econômicos, bem como valores sociais e morais. Ou seja,

destacamos a ideia de tecnologia (e de tecnologias sociais) como produção humana inerente a

processos educacionais e políticos e não circunscrita apenas ao domínio de técnicas.

Assim, tentamos articular uma perspectiva crítica de tecnologias sociais com a questão

da autoria. Em termos educacionais, as questões que envolvem a noção de autoria são

atualmente bastante debatidas, sobretudo aquelas que se relacionam com educação à distância

e hipertextos. Em nosso caso, fazemos uma distinção entre autor e usuário. Ou seja, um usuário

de tecnologia social, por exemplo, comumente está inserido em uma política pública para

resolução de problemas sociais que foi pensada de modo vertical, que reproduz soluções

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utilizadas em diferentes contextos e não participa, necessariamente, de alguma etapa dos

processos de identificação e resolução dos seus problemas (LINSINGEN; CORRÊA, 2015).

Contrária à noção de usuário, consideramos que através da ideia de autoria seja

possível relacionar posições dos sujeitos em processos educacionais com os sentidos

produzidos a partir dessas posições (GIRALDI, 2010; CASSIANI; GIRALDI; LINSINGEN,

2012). Concordamos com Giraldi (2010) quando a autora afirma que “ao assumir a posição de

autor o sujeito situa-se em uma determinada posição social, filiando-se a uma rede de sentidos.

Assim, para a assunção da autoria é preciso que os processos de ensino/aprendizagem escolar

permitam a abertura de um espaço de dizer” (p. 136).

Pensamos que sujeitos que fazem parte de processos educacionais em um contexto de

construção de autoria podem ter possibilidades de ler e interpretar criticamente a realidade

social na qual estão inseridos, produzir visões e experiências próprias sobre seus problemas

sociotécnicos, além de serem capazes de aprender autonomamente. De modo que seja

possibilitada uma “maior inserção social das pessoas no sentido de se tornarem aptas a

participarem dos processos de tomadas de decisões conscientes e negociadas em assuntos que

envolvam ciência e tecnologia” (LINSINGEN, 2007, p. 13).

Tais participações não são aqui compreendidas como mecanismos de inclusão social.

Consideramos que esse termo, assim como exclusão social, se refere a perspectivas

eurocêntricas, que não contemplam estudos das condições sociais de países periféricos do

capitalismo, em sociedades que não conheceram a plena integração social (MTE, 2007).

Optamos por utilizar o termo vulnerabilidade social (maior ou menor capacidade de diferentes

grupos sociais controlarem as forças que afetam o seu bem-estar) para buscar apreender o

dinamismo dos processos de desigualdade de maneira mais ampla, considerando a existência

de zonas de vulnerabilidade com tendência à precarização e as diferentes estruturas de

oportunidades existentes na atualidade (LINSINGEN; CORRÊA, 2015).

Acreditamos que ao problematizar a inclusão possa ser possível favorecer a construção

de novos sentidos de participação social em processos de co-construção sociotécnica de

tecnologias sociais, favorecendo a consolidação de uma cidadania sociotécnica12. Ao

12 Os termos co-construção sociotécnica e cidadania sociotécnica são aqui adotados com os mesmos sentidos

apresentados por Thomas (2012).

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explorarmos a configuração sociotécnica da sociedade (particularmente na perspectiva de

tecnologias sociais) podemos abrir a caixa preta das tecnologias e expor suas redes

constitutivas. Seus resultados podem passar a ser percebidos como decorrência da participação

indelével e interessada de diferentes grupos sociais (idem).

E é nesses aspectos que refletimos sobre a cooperação com Timor-Leste. Nossas

articulações com docentes e discentes timorenses vai justamente no sentido de pensarmos

coletivamente uma educação CTS: (i) preocupada com uma abordagem educacional que

questione conteúdos e contextos; (ii) que problematize a noção de transferência de

conhecimentos e (iii) que possa mobilizar para a autoria. Assim, consideramos diálogos

possíveis entre conhecimentos estabelecidos e conhecimentos tradicionais/tácitos tendo em

vista que podemos produzir outros/novos conhecimentos.

Contudo, tanto em Timor-Leste como no Brasil ou em outros contextos,

compreendemos que existem potencialidades e limites a serem considerados na discussão (e até

mesmo na elaboração) de tecnologias sociais. Acreditamos que o desenvolvimento de

perspectivas críticas de tecnologias sociais poderá, em alguma medida, e de modos a serem

elaborados em cada contexto, estruturar possibilidades de maior autonomia dos sujeitos

envolvidos. Isso significa pensar em modos de mobilização para a autoria em diversos

ambientes educacionais, tendo em vista possibilidades de participação (cidadania sociotécnica)

nos processos que envolvem questões sociotécnicas.

Assim, refletimos sobre potencialidades relacionadas a tecnologias sociais com

cautela, pois não pretendemos pensá-las de modo determinista. A falta de divulgação de

conhecimentos sociais sobre ciência e tecnologia, que permitam um debate informado e

consciente sobre o tema também merece consideração. Sem ignorarmos os desafios inerentes

a qualquer processo educativo (e em diferentes locais), apostamos no potencial pedagógico das

tecnologias sociais e apresentamos como passos iniciais nesse processo a crítica à noção estrita

de usuário e um exame menos ingênuo (problematizar determinismos) das relações CTS.

Considerações finais

Neste artigo, examinamos possíveis articulações entre diferentes conhecimentos em

Timor-Leste através de uma perspectiva crítica de tecnologias sociais. Para isso, consideramos

o histórico recente de lutas e resistências com o qual o povo timorense esteve envolvido e sua

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atual cooperação educacional com o Brasil. Nesse caminho, refletimos sobre a promoção de

autoria e destacamos possibilidades de participação crítica e informada dos sujeitos em

processos que envolvem ciência e tecnologia (cidadania sociotécnica).

Compreendemos que há um longo caminho a ser trilhado nesse sentido, mas

acreditamos que a abordagem teórica CTS em perspectiva educacional que estamos adotando é

promissora, sobretudo a crítica às noções de usuário em relação à autoria e a determinismos

(tecnológico e social). Com isso, visamos contribuir para debates sobre os temas aqui

apresentados e para a formulação de agendas de pesquisas colaborativas com docentes

timorenses nas quais se considerem as relações entre tecnologias e processos educacionais

tendo em vista possibilidades da efetiva transformação de diferentes realidades sociais.

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Page 11: Determinismo tecnológico e autoria no contexto pós ... · Determinismo tecnológico e autoria no contexto pós-conflitos timorense RAQUEL FOLMER CORRÊA IRLAN VON LINSINGEN Resumo

11

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