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Devir-cidade: pistas histórias de comunidade Lúcia Ozório Pesquisadora: Laboratório EXPERICE - Universidades Paris 8 - Paris 13, França; Laboratório LIPIS - PUC- RJ. Rio de Janeiro, RJ. Membro do GT de Psicologia Comunitária- ANPEPP "Você não imagina o que é morar em Mangueira. Aqui nós temos nossas artes." (D. Mena, in Ozório, 2012 : 45). Introdução Problematizamos uma compreensão da cidade como virtualidade sempre se fazendo. Tratamos da minoritária história, a das comunidades pobres do Rio e Janeiro, mais especificamente, as histórias orais de vida em comum dos moradores da comunidade da Mangueira. Trata-se de histórias que tecem na cidade rede de múltiplos fios que disseminam vozes, experiências com significações diversas. Importante dizer que este trabalho foi demandado por Mangueira num momento em que enfrentava em 2003, a intolerância do programa Tolerância Zero do governo do Estado do Rio de Janeiro. O modo desta comunidade responder às coerções porque passava foi contando suas histórias, nas quais podemos nos familiarizar com seus modos de vida, seus sonhos, suas dores e alegrias e sobretudo seus modos quotidianos de ação social e política, trazendo para a cidade modos únicos de resistir no mundo contemporâneo (Pineau e Le Grand, 1993; Ozório, 2004; 2005; 2007; 2012; 2014; Vilhena, J. e alli., 2005; Delory -Momberger e Niewiadomsky, 2009). Ter acesso a estas histórias é se dar conta da complexidade da situação por que passa a cidade do Rio de Janeiro. Muitos buscam explicações simples, informações como as veiculadas por muitos meios de comunicação que discriminam e criminalizam as comunidades pobres como diferença na cidade. Questões aparentemente marginais,

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Devir-cidade: pistas – histórias de comunidade

Lúcia Ozório Pesquisadora:

Laboratório EXPERICE -

Universidades Paris 8 - Paris 13,

França; Laboratório LIPIS - PUC-

RJ. Rio de Janeiro, RJ. Membro do

GT de Psicologia Comunitária-

ANPEPP

"Você não imagina o que é morar em Mangueira. Aqui nós temos nossas artes."

(D. Mena, in Ozório, 2012 : 45).

Introdução

Problematizamos uma compreensão da cidade como virtualidade sempre se

fazendo. Tratamos da minoritária história, a das comunidades pobres do Rio e Janeiro,

mais especificamente, as histórias orais de vida em comum dos moradores da

comunidade da Mangueira. Trata-se de histórias que tecem na cidade rede de múltiplos

fios que disseminam vozes, experiências com significações diversas. Importante dizer

que este trabalho foi demandado por Mangueira num momento em que enfrentava em

2003, a intolerância do programa Tolerância Zero do governo do Estado do Rio de

Janeiro. O modo desta comunidade responder às coerções porque passava foi contando

suas histórias, nas quais podemos nos familiarizar com seus modos de vida, seus

sonhos, suas dores e alegrias e sobretudo seus modos quotidianos de ação social e

política, trazendo para a cidade modos únicos de resistir no mundo contemporâneo

(Pineau e Le Grand, 1993; Ozório, 2004; 2005; 2007; 2012; 2014; Vilhena, J. e alli.,

2005; Delory -Momberger e Niewiadomsky, 2009).

Ter acesso a estas histórias é se dar conta da complexidade da situação por que

passa a cidade do Rio de Janeiro. Muitos buscam explicações simples, informações

como as veiculadas por muitos meios de comunicação que discriminam e criminalizam

as comunidades pobres como diferença na cidade. Questões aparentemente marginais,

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como a incerteza, a desordem, a contradição, a multiplicidade, as tensões não são

levadas em conta para que se tenha compreensão de um constante vir a ser da cidade

que não pode estar divorciado da complexidade de sua realidade político-social.

(Soares, 2010).

As histórias dos moradores da Mangueira intervêm nesta orquestração midiática

que desloca olhares e busca a invisibilidade de uma luta existente não apenas em

Mangueira, mas em muitas outras comunidades na cidade do Rio de Janeiro.

Abrindo este artigo, trouxemos a fala de D. Mena, antiga moradora de

Mangueira, infelizmente falecida em 2014, que mostra a capacidade desta comunidade

de arte-revolucionar. Viver em Mangueira é exercer uma capacidade de inimaginar.

Como D. Mena diz, não dá para imaginar o que é viver em Mangueira. E nada melhor

do que a história de vida para dar conta da inimaginação, atualizando toda uma trama

desejante que sabe muito bem lidar com o tempo lento, comunitário, com suas

experiências contadas nas suas histórias, intervindo aqui e ali nos discursos

hegemônicos que desejam uma cidade partida (Ventura, 1994), fraturas, dicotomias

entre asfalto / morro / favela / comunidades. D. Mena lembra que se pode esmiuçar o

desejo de outros modos.

Mangueira como diz Portelli (2000) busca com a história oral uma “alternativa

crítica para o século XXI” considerando a memória como “extensão da política”. Um

certo trabalho com a memória, a memória e suas artes, esmiuça as artes de viver,

resistir, na sua capacidade de revolucionar não só o sujeito, mas o socius. Frente ao

capitalismo que desqualifica, ao Estado do Tolerância Zero, à mídia que segrega e

criminaliza, Mangueira mostra que a cidade fala de várias maneiras, com as histórias-

experiências - culturas das comunidades.

O Papo de Roda é nosso dispositivo de trabalho, inventado por Mangueira para

contar suas histórias de vida. O dispositivo é ferramenta que mostra a implicação entre o

trabalhador social/pesquisador com os outros participantes no campo de trabalho.

Lourau (1997) marca uma diferença na inflação semântica, capitalista, do termo

dispositivo. Para o autor há dois princípios fundamentais na teoria da implicação : um

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ético e outro instrumental, algo que se acrescenta à produção de conhecimento. Na

análise das implicações, a escolha de dispositivos, o modo como são usados ajudam

num entendimento dos interesses com os quais o pesquisador/trabalhador está

envolvido.

No Papo de Roda o narrador compartilha suas histórias (orais) de vida com um

coletivo. Uma hermenêutica acontece então, que supõe implicações no sentido de se

com-preender junto, em que são levadas em conta tanto as histórias de vida do narrador

como aquelas dos que participam do processo (Ozório, 2005). A memória que se

constrói no momento da narração das histórias de vida de Mangueira, intervém na

dicotomia clássica indivíduo-sociedade, acabando por delinear um entre-lugar onde um

comum trabalha e está sempre em vias de se fazer. Pode-se falar de uma memória

comum, que intervém no modelo antropológico e metafísico da memória (Foucault,

1979), reconstruindo o passado como ficção do presente (Certeau, 2002), trazendo para

a cena um tempo da memória saturado de agoras (Benjamin, 2000a).

O Papo de Roda, dispositivo multifacético de comunidade

“A gente vai contar as histórias das rezadeiras, das criadoras de porco, das

verdureiras, da gente daqui. A Mangueira está precisando disso. Pessoal pensa que

Mangueira é escola de samba ou marginalidade. Tem no meio disso aí toda a

comunidade, que ninguém conhece . (Celso In: Ozório, 2004:24)

Celso, outro antigo morador da Mangueira, em 2003, quando do início da nossa

pesquisa, exprime o desejo de Mangueira contar suas histórias. E estimula nossas

incursões no biográfico, nosso interesse pela micro-história que não se faz nos lugares

oficiais; o que não deixa de ser uma proposta política, já que se intervém não só num

discurso midiático e também no acadêmico que apresentam tendências de se despregar

das lutas das periferias da cidade. Como diz Veyne, a história é a que escolhemos

(1992). Escolhemos assim histórias que desejam a proliferação de centros periféricos

que intervêm nos centros que querem a dominação e a exclusão (Ozório, 2014).

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Este artigo é um dos desdobramentos de uma pesquisa-processo, que começou em

2003 e chega a 2016, fazendo seus devires. Contou em 2003 e 2004; 2005 e 2006; e

2011e 2012 com o apoio da FAPERJ-UERJ (Ozório, 2004; 2006; 2012). Desde 2007

conta com o apoio dos Laboratórios LIPIS- PUC-RJ e do EXPERICE – Paris 8 e Paris

13, França. É uma pesquisa – expansão que trabalha comumente com Mangueira, opta

por certas perspectivas estético-culturais – as fontes populares da narratividade, que

fazem uma história sem pretenções à perfeição, às estabilidades, aos enquadramentos, e

criam mundos inimagináveis. O principal esteio deste trabalho é a implicação de todos

os participantes da pesquisa, baseada num vínculo de confiança e participações de

diversos matizes, com interações entre o pesquisador e a comunidade.

Celso propõe o exercício de uma contra-memória, buscando afirmar outros

modos-mundos de vida, o da cidade em constante vir a ser (Calvino,1990). Na sua

demanda propõe uma transmissão pela via do compartilhamento e estimula uma

pergunta: num mundo tão pobre em experiências, como dar condições para que se tenha

acesso às experiências destes lugares de mundo?

Estamos num terreno da potência da experiência, matriz da história e da cultura

de um povo. A experiência precisa ocupar o lugar que tem na prática social e política.

Benjamim (2000) já no seu tempo lembrava que as experiências estão em baixa,

advertindo para o poder da informação, decisivamente responsável por esse declínio.

Como diz, as “histórias surpreendentes” estão escassas. Benjamin atentava paro o que

Santos (1998) chama de o autoritarismo da informação. E Celso quer dar visibilidade às

histórias surpreendentes de Mangueira, com alianças entre experiência, história de vida

e cultura.

Adentrando na nossa problemática, perguntamos: como explorar as virtudes da

experiência nas suas alianças com a comunidade e as histórias de vida? Trata-se de

trama que se tece, de práxis que se constrói comumente, ligada de modo indissociável à

experimentações de vida forjadas no cotidiano.

Neste sentido cabe uma preocupação: estamos num momento em que, como diz

Hobsbawm (1997) há um uso indiscriminado e vazio do termo comunidade, ou como

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aponta Bauman (2003), há na modernidade líquida cada vez menos chance da ação em

comum. No entanto, Nancy (2001) dá pistas para se intervir nesta inflação quando

afirma que comunidade serve a múltiplos sentidos, mas a apropriação deste sentido só

pode acontecer na comunidade e como comunidade. Assim, entendemos comunidade

como práxis, como algo que está sempre em vias de se constituir.

O filósofo iraquiano Hussain Agah (2001) enriquece esta compreensão quando

escreve que comunidade é a “ Luta então de um povo como manifestação de seu querer

comum. (...)Manifestá-la ou deixá-la se manifestar. (...) mas realizar esta reivindicação.

Realizar o querer comum (...).Comunidade é uma luta real, se eu ouso dizer, contra

uma realidade pretensamente dada ou mais ainda e muito mais dolorosamente

separadora."(Agah, 2001:1)

Agah nos mostra que a comunidade pode intervir numa realidade que

substantifica tudo, que não tem nenhum real, que separa antes de tudo o privado do

comum, o individual do coletivo. Se a comunidade é, como no sentido que damos aqui,

identificável ao real, ela será então também identificável à práxis comum e aberta da

existência. "É importante dizer que a luta comum ou a comunidade, porque esta não

tem outra definição ou outra "significação" que a luta comum…" .(Agah, 2001:2)

Comunidade enquanto processo, vai se constituindo e nos depara com o que

resiste aos modos do trabalho em comum, buscando instaurar um tempo crítico que

denote a presença de modelos impositivos de ser/estar no mundo.

Importante dizer que comunidade não é uma substância ou uma estrutura. É

talvez efeito de um movimento que se manifesta num espaço-tempo, momento formado

a partir da /na convivência com a diversidade, com multiplicidades infinitas, de relações

que ampliam o compartilhar ou sua possibilidade de acontecer. Comunidade com suas

experimentações singulares porta então uma designação liberadora, não substancial. Ela

é qualquer coisa que resta em aberto.

Desde esta perspectiva, a atividade biográfica comunitária como processualidade

psico-sociohistórica se abre à um comum, experencial, intercultural na construção da

realidade sócio-política.

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No Papo de Roda o comum hibridiza o processo de narração das experiências

que se contam e deixam antever culturas que se gestam. A inimaginação, a criatividade,

o afeto, a inteligencia, a potência de conexão entre modos de vida-culturas cadenciam

um ritmo peculiar, com distâncias e ressonâncias entre as experiências que ao se

contarem reinventam a vida. Uma hermenêutica do com-preender junto atesta uma

comunicação possível que Levi (1997) denomina comunidade de comunicação,

enfatizando um ato dialógico. Se há uma dimensão subjetiva da experiência que escapa

à pura objetividade, há também a práxis de sua hibridização pelo comum que acontece

nesta experiência narrativa (Ozório, 2004; 2006; 2012). Importante dizer que a

compreensão marxista do comum corrobora para que se compreenda este processo

(Marx, 1997), pois como diz este autor, o comum diferencia, cuja práxis busca evitar

confusões e indiferenciações ambíguas. O comum, reservatório de heterogênese, torna

mais visível a diversidade no processo, rompendo com entendimentos de comunidade

como algo fechado, homogêneo.

A memória vinculada ao comum que potencializa o processo narrativo, abre as

experiências para o mundo, o que permite uma reflexão: pode-se falar de práxis, ao

compartilhar narrações de histórias de vida? Se narrar é um recordar singular, narrar em

comum pode ser mais uma singularidade neste recordar. Há aí um re-fazer em comum, a

memória, um re-fazer em comum muitas histórias de vida, um re-fazer a vida. Pode-se

então falar de comunização de experiências (Ozório, 2007; 2012).

O Papo de Roda tem uma similaridade com a Roda de Samba, tradição cultural do

lugar. Assim como se percebe em Mangueira a dança do sambista nos movimentos dos

corpos, em muitas falas, no andar, na singular arquitetura comunitária, com suas

casinhas umas sobre as outras, seus becos e ruas sinuosos, percebe-se também uma

vibração quase musical na memória que se atualiza no Papo de Roda. Esta espécie de

equilíbrio do desequilíbrio que marca alianças com o universo da dança dá todo um

ritmo às narrações. A narrativa em comum trabalha desdobramentos de diversas formas

de tempo: sincronias e diacronias narrativas se trasversalizam, participando do

engendramento da lógica acontecimental. Nestas narrativas há indícios de permissões e

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interdições do lugar, de interferências e turbulências quotidianas, de partilhamento de

incompletudes, silêncios, insuficiências (Ozorio, 2008).

O tempo é reinventado com as histórias das verdureiras, rezadeiras, criadoras de

porcos, comandantes, mães obstinadas, marias metralhadoras, mulheres – foguetes,

soltadores de pipa, crianças que sabem das coisas, sambistas e tantos mais. Vale o que

está dito e ninguém tem nada com isso.

Uma utopía de uma autoría plural de la historia

A produção de um texto de história oral é complexa. O trabalho com fontes orais

dá especial importância ao tempo da memória que se mostra através de suas artes

(Guimarães Neto, 2006). É um tempo saturado de agoras (Benjamin, 2000). E o tempo

dos agoras não é tarefa fácil. Como não é fácil a afirmação de uma utopia: uma autoría

plural da história e suas possíveis consequencias para sua estratégia textual.

O Papo de Roda é único, cadenciado pelas diferenças no processo que dão ao

registro e elaboração das histórias em comum um estatuto de singularidade quanto ao

trabalho com memória, comum. O material utilizado, gravador manual e eventualmente

câmera de filmagem são interferências no processo.

Não se pode esquecer que o Papo de Roda é um dispositivo de história oral e para

funcionar precisa de algumas estratégias.

Para sua organização tem um grupo gestor do qual participam morador(es) da

comunidade mais comprometidos com a pesquisa, reconhecidos por história de lutas

locais. Este grupo se reúne regularmente com a pesquisadora; convida pessoas - as

indicações se relacionam com suas histórias de vida e sua importância para a

comunidade, embora a participação esteja aberta a todos os moradores.

A escolha do local onde vai acontecer tem relação com as pessoas convidadas

para contarem suas vidas e com turbulências locais, que muitas vezes ou o impedem de

acontecer ou o fazem acontecer em outro lugar. Daí sua característica nômade. Vai de

casa em casa na comunidade, mas às vezes é realizado no seu entorno. O lugar

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alternativo tem sido o Sindicato dos Metalúrgicos, conhecido pelas suas lutas não só

contra a ditadura que assolou nosso país durante 20 anos, como contra as mais

diferentes resistências quotidianas às mais diversas formas de exploração. Este sindicato

fica em frente à entrada de uma das comunidades da Mangueira: o morro dos Telégrafos

Sobre a narração em comum, que nele acontece, pondo a funcionar as ferramentas

conceituais, o pesquisador explora interações-chave: pesquisador e participantes,

histórias conhecidas, reminiscências pessoais, suas relações com histórias locais,

passado e presente, memória e comunidade. O pesquisador assume sua implicação,

considerando o Papo de Roda dispositivo inegavelmente político, estimulando

reminiscências importantes historicamente. Mas a trama do comum tece, com estas

estimulações, caminhos variados que abrem debates vários: É possível utilizar os

depoimentos orais coletados como memórias que devem ser analisadas, recortadas e

cruzadas com outras fontes? Ou os relatos devem ser preservados na sua integridade,

sem interpretações para garantir um compromisso com os entrevistados? “Como cruzar

as fontes orais e escritas e garantir acuidade nas interpretações construídas com base

nas entrevistas de História Oral?” pergunta Marieta de Moraes Ferreira prefaciando o

trabalho de Guimarães Neto (2006:14).

As interrogações de Veyne (Ed. Lda. 70) sobre o autoritarismo das fontes

documentais, leva a que se releve a implicação do historiador com o seu trabalho. O

autor sugere uma reflexão que julgamos oportuna: “...o conhecimento histórico é o que

fazem dele as fontes...” (Veyne, Ed. 70, Lda.: 251) e implica o historiador na escrita de

uma história que “... pecará menos pelo que afirma do que pelo que não pensou em

interrogar-se” ( Veyne, ed. 70: 252 ).

São debates que sugerem cautelas na escrita da história oral. As histórias colhidas,

são transcritas e restituídas aos participantes. Alimentamos a utopia de uma autoria

plural da história, sabedores no entanto dos seus limites e possibilidades. Os

participantes têm toda a liberdade como autores para opinar sobre o que deve ou não ser

publicado.

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Na elaboração das histórias de vida utiliza-se o recurso à outras fontes (jornais,

revistas, etc...) que vão compor o trabalho interpretativo de escrita da história, trabalho

ético-político (Veyne, Ed. 70, Lda.). Embora muitos historiadores pós-modernos

privilegiem o documento escrito como “única fonte de pesquisa”, há lembrando Portelli

(1997) um certo preconceito num olhar “positivista” por parte de alguns pesquisadores

acadêmicos que consideram a fonte oral comprometida apenas com o “passado

acabado”.

A narração em comum favorece emergências críticas, que fazem suas cartografias.

Não se sabe onde vão chegar. Foucault (1982) quando analisa seu trabalho de pesquisa

compreende-o como portador do caráter local da crítica, na medida em que se interessa

pelos que foram “... sepultados, mascarados em coerências funcionais ou em sistemas

formais” (Foucault, idem:169). Podemos falar de uma insurreição de experiências no

Papo de Roda, de vidas narradas que enunciam um saber histórico das lutas (Idem:

170) dos moradores de Mangueira, que ali emergem, vão pela cidade e correm mundo.

A história oral de vida, a comunidade, a cidade e seus modos de devir

Vocês precisam ver o ensaio da Mangueira do Amanhã (...) pra ver como tem

criança ... Sou Diretora da Mangueira do Amanhã (...) há 15 anos. Tenho 67 anos. São

quase 2000 ( duas mil) crianças lá dentro da quadra da Escola... É muita criança! E

com as mães e os pais, a quadra fica assim ... É muito legal! (...) Colocamos as portas-

bandeiras, os mestre-salas, os passistas... tudo criança. Colocamos todos pra sambar e

ensaiar... É muito bonitinho! Tem crianças pequenininhas até 6 (seis) anos (...) Vem

criança de muitas partes. Vem ônibus de Belford Roxo. É legal porque evolui as

crianças... Tem criança que foi da Mangueira do Amanhã, já é compositor, é passista

adulto (...) Tem uns que estão viajando pelo mundo (Papo de Roda, 2010. D. Mena, In:

Ozório: 2012:45)

No fragmento da história de D. Mena contada num Papo de Roda, tomamos

conhecimento das suas arte-revoluções como Diretora da Mangueira do Amanhã. Com

estas percebemos o delineamento de uma singular geopolítica da cidade que fala através

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das experiências das comunidades pobres. O samba é aliado desta empreitada

convidando a que se esmiúce a cidade de outro modo. Como diz Carvalho (1987), o

mundo subterrâneo do samba invade o mundo sobreterrâneo das elites, ritmando festas -

ações contra o capital.

A história de vida de D. Mena mostra a importância do testemunho oral que

atualiza uma memória que traz experiências do quotidiano e dá a estas uma dimensão

heterobiográfica. Memória e experiência caminham e fazem seus devires. Trata-se de

história que ratifica a importância da oralidade aliada importante da experiência,

cúmplices que são, estimulam a inimaginação, o simbolismo e seu desejo de emergir.

Daí ser importante lembrar, como diria Portelli (1997), não há “falsas” fontes orais.

Observamos que neste fragemento de história contada por D. Mena Mangueira constrói

um Amanhã tendo toda uma resistência de lutas comunitárias como plano ontológico.

Os aliados indispensáveis desta história são as crianças não só da Mangueira mas de

outros bairros da cidade do Rio de Janeiro.

As crianças através do samba pedem ou anunciam uma outra comunidade de

almas e corpos, um outro jogo, comum, entre as vozes da cidade convidando-nos a

revisitar a “alma encantadora da cidade, suas ruas, seus morros”, já também contada por

João do Rio, no começo dos mil e novecentos.

O samba pede passagem através do ritmo dos corpos e almas das crianças da

cidade que se juntam para dançar. A história de D. Mena dá passagem a uma história

construída pela comunidade de Mangueira que permite iluminar uma dimensão por

muitos inteiramente insuspeitada da práxis do comum de uma comunidade que vive

comunidade, como disse Nancy (Idem).

Agier (2008: 20-21) diz que “(...) as situações, as ações fazem a cidade”, onde o

foco são efetivamente as relações. Mangueira conta uma cidade que se faz através das

histórias orais de vida em comum.

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