Devir criança e cognição

Embed Size (px)

Citation preview

  • 373

    Desenvolvimento Cognitivo: O Tempo Cronolgicoe a Ordem das Estruturas

    No campo dos estudos da cognio, as teorias dodesenvolvimento trazem como novidade a introduodo problema do tempo. Trata-se a do tempocronolgico, que responde pela construo das estruturascognitivas numa ordem sucessiva. A noo dedesenvolvimento assume caractersticas prximas ederivadas da noo biolgica de evoluo, onde as idias-chave so aquelas de modificao e genealogia (Gould,1997). Enquanto processo de modificao, a evoluodiz respeito s transformaes das formas ao longo dotempo; enquanto genealogia, a evoluo organiza taisformas em linhagens, por elos de filiao e descendncia.As teorias do desenvolvimento cognitivo so pautadasnessas coordenadas; o que as caracteriza colocar oproblema da transformao temporal da cognio emtermos de gnese, descendncia ou filiao. A criana,bem como o adulto, so entendidos atravs de suas

    Devir-Criana e a Cognio Contempornea

    O Devir-Criana e a Cognio Contempornea

    Virgnia Kastrup 1 2Universidade Federal do Rio de Janeiro

    ResumoO texto compara duas concepes acerca das transformaes temporais da cognio - aquela das teorias do desenvolvimento,entendida sob o signo da convergncia e do fechamento, e aquela baseada nas idias de Bergson, Deleuze e Guattari, pautada nasidias de divergncia e de diferenciao. Nas teorias do desenvolvimento cognitivo destacado o conceito de tempo cronolgico,o regime de filiao das estruturas e a idia do ultrapassamento da forma de conhecimento da criana pela do adulto. A partirda concepo bergsoniana de coexistncia dos tempos, trabalhado o conceito de devir-criana de G. Deleuze e F. Guattari, queafirma a tendncia inventiva que resta presente enquanto virtualidade em toda formao cognitiva, adulta ou infantil, ecaracteriza a cognio contempornea.Palavras-chave: Devir-criana; desenvolvimento cognitivo; contemporneo.

    Child-Becoming and Contemporary Cognition

    AbstractThis paper compared two conceptions of time transformations one related to theories of development, based on the notionsof convergency and closure; and the other related to the theories of Bergson, Deleuze and Guattari, which are based on theideas of divergency and differentiation. Analysing the theories of cognitive development we call attention to the concept ofchronological time, the regimen of structure filiation, and the overcoming of the childs form of knowledge by that of theadult. Guided by the Bergsons idea of coexistence of times, Deleuze and Guattaris concept of child-becoming, which statesthe inventive tendency that remains in the form of virtuality in every cognitive formation in adults and children and thatcharacterizes contemporary cognition are discussed.Keywords: Child-becoming; cognitive development; contemporary time.

    formas ou estruturas especficas de conhecer. Tais teoriastm ainda como caracterstica tomar o homem adultocomo ponto de chegada e termo eminente da srie detransformaes que tm lugar na cognio da criana. preciso notar ainda que, autorizando comparaes entreas estruturas cognitivas da criana e do adulto a partirdessas coordenadas, a noo de desenvolvimento traz,como uma espcie de contrapeso, a idia de progresso2 .Como a colocao do problema das transformaestemporais da cognio tem como horizonte a formaadulta de conhecer, a cognio da criana assombradapela idia do dficit. Pergunta-se ento o que falta cognio da criana para chegar cognio do adulto.

    Em outras palavras, nas teorias do desenvolvimentoo problema da transformao temporal da cognio

    1 Endereo para correspondncia: Rua Lopes Trovo, 237, apto. 801,Icara, Niteri, Rio de Janeiro, 24220-070. Fone: (21) 6108447. E-mail:[email protected] Apoio CNPq

    2 A associao da idia de progresso ao conceito de evoluo tem hoje arecusa terminante de bilogos destacados como S. J. Gould (1997) e F.Jacob (1983). Para Gould, a idia de progresso, que aparece atravs dereferncias a uma maior complexidade ou eficincia dos seres maisevoludos, apenas expressa uma crena ocidental e revela-se como umpreconceito social que visa garantir o direito do homem de dominar eexplorar o planeta. Por sua vez, Jacob sugere, em lugar do progresso, queo critrio da evoluo a abertura do cdigo gentico para a aprendizagem,que permite ao organismo expandir seu meio.

    Psicologia: Reflexo e Crtica, 2000, 13(3), pp.373-382

  • 374

    colocado a partir de duas coordenadas. A primeira horizontal e diz respeito considerao de sua ocorrnciano curso de um tempo histrico, seqencial e cronolgico.A segunda vertical, referindo-se a uma ordem desucesso marcada pelo progresso. Tomando comoexemplo o construtivismo de J. Piaget, verifica-se que astransformaes temporais so por certo genealgicas.Cabe Psicologia explicar a gnese das estruturascognitivas, sua derivao umas das outras por filiaoprogressiva durante um processo de construo, ou seja,acompanhar suas transformaes da criana ao adulto.Encontra-se a a primeira coordenada: o tempo histrico,sucessivo e seqencial. Introduzir o tempo ento explicara gnese, a construo das estruturas intelectuais.Traduzindo o problema do tempo como sendo dedesenvolvimento cognitivo, Piaget caracteriza a crianapor certas estruturas intelectuais que tendem a serintegradas e subordinadas ao modo adulto de conhecer,representado pelas estruturas lgico-matemticas. Acoordenada vertical aparece atravs da colocao doproblema epistemolgico, que move a investigao dePiaget. Como o problema explicar a construo dasestruturas que so condio de possibilidade doconhecimento cientfico, a questo da subjetividade ficadefinida no mbito do sujeito epistmico, e no enquantosingularidade (Moura, 1995). Cabe ressaltar que oproblema epistemolgico dirige a investigao piagetianapara o comportamento da criana frente a situaeslgicas, como tarefas de conservao de quantidades,classificao e seriao. Buscando encontrar as estruturaslgicas da criana, encontra uma pr-lgica ou semi-lgica,que evidencia um dficit ou uma falta, que serultrapassada pelo modo adulto de conhecer3 .

    O prprio Piaget (1972/1978) destaca que doisaspectos fundamentais do tempo marcam suaabordagem: a durao e a ordem de sucesso. A durao definida como um intervalo entre as estruturas que soconstrudas numa ordem fixa, sucessiva e hierrquica. Istosignifica que Piaget fala da durao e da transformaotemporal da cognio tendo em vista seus pontos deparada relativa - as estruturas cognitivas que caracterizamos estgios do desenvolvimento - e sugere critrios paraa comparao entre as capacidades cognitivascorrespondentes. Refere-se tambm a um ultrapassamentodos estgios anteriores pelos estgios posteriores. Segundoseu ponto de vista h progresso efetivo no

    A infncia surge como um longo perodo depreparao para o modo adulto de conhecer e pensar,caracterizado pelo estgio das operaes lgico-formais.A questo ento: o que falta criana para pensar comoum cientista? notvel que a investigao concentra-seem certos setores do conhecimento que se revestem designificao epistemolgica. Nesta linha, ganhamimportncia fenmenos cognitivos como a construodos conceitos de nmero, velocidade e causalidade. Resultada que, na caracterizao da cognio da criana, freqente a utilizao de categorias negativas: inexistnciade pensamento, ausncia de funo simblica,irreversibilidade das formas, inteligncia pr-operatria,pr-lgica, etc. Desenvolver-se , deste ponto de vista,superar deficincias cognitivas, completar lacunas, deixarpara trs estruturas cognitivas imperfeitas que impedema criana de conhecer como um cientista. A adoo deuma perspectiva epistemolgica faz com que o problemade tais transformaes seja colocado sob a gide doprogresso e da previsibilidade e a investigao da crianareste assombrada pela forma adulta de conhecer. Atravsde um modelo de desenvolvimento por estgios e emsintonia com a idia de dficit, o desenvolvimentoultrapassa e deixa para trs a criana, pensada sob a formade estruturas intelectuais mais rgidas e pobres. Adotando uma perspectiva histrica, Aris (1978)teve uma grande importncia para o estudo da criana,revelando o modo como a forma infantil de viver, pensare sentir, foi gestada no perodo que vai da Idade Mdiaao sculo XVIII. At ento, a criana era entendida comoum ser diferente apenas quantitativamente do adulto,menor em tamanho e em fora. Os estudos da psicologiahistrica trazem luz os alicerces da psicologia dodesenvolvimento, ou melhor, as bases histricas daconcepo naturalista de criana, que perpassa a psicologiae a pedagogia. A partir de Aris, evidencia-se que com aformao histrica da noo de criana atravs de prticasconcretas - sobretudo educacionais e familiares - asdiferenas quantitativas cedem lugar a diferenasqualitativas. A criana surge como um ser distinto doadulto por sua maneira prpria de perceber, conhecer esentir. No entanto, a diferena quantitativa entre o adultoe a criana, em princpio expulsa, retorna e a questo dodficit intelectual assombrar, como o fantasma

    desenvolvimento e o processo de assimilao-acomodao o mecanismo invariante que explica talprogresso, respondendo pela construo de novasestruturas, inexistentes nos estgios mais elementares. pelo acrscimo e integrao de estruturas, ao mesmotempo necessrias e inditas, que o dficit intelectual dacriana superado.

    3 Historiando a entrada de Piaget no campo da Psicologia Cognitiva,Gardner (1987, p. 116) faz referncia ao interesse demonstrado peloento bilogo pelos tipos de erros cometidos pelas crianas nos testesde inteligncia.

    Psicologia: Reflexo e Crtica, 2000, 13(3), pp.373-382

    Virgnia Kastrup

  • 375

    reminescente de um problema mal resolvido, as teoriasdo desenvolvimento cognitivo.

    Cabe notar ainda que para Piaget o desenvolvimentorepresenta um movimento de fechamento do sistemacognitivo (Kastrup, 1999, 1997a). As estruturas lgico-formais, que coroam o desenvolvimento cognitivo, sodefinidas como estruturas extemporneas (Piaget,1970/1978). A possibilidade de serem desestabilizadas,e portanto, modificadas, tende a desaparecer, em funodo equilbrio mvel que possuem. Em outros termos, asformas terminais so ditas atemporais, pois o processode equilibrao majorante, que orienta sua construo,trabalha no sentido de minimizar a instabilidade inicialdo sistema cognitivo. O que se revela ento que, tendocomo fundamento o modelo da equilibrao e comohorizonte as estruturas do pensamento lgico-matemtico, Piaget pensa as transformaes cognitivassob o signo da convergncia e do fechamento. Conclui-se que,sob tal tica, progressivamente fechada, ao longo dodesenvolvimento, a possibilidade de inveno de outrasformas de conhecer, distintas da forma lgico-matemtica.

    A Coexistncia dos Tempos e a Criana comoVirtualidade

    Encontra-se em Bergson (1897/1990) uma concepode tempo distinta do tempo cronolgico, e que seapresenta como coexistncia de todos os tempos. Trata-se de uma concepo que Deleuze (1966/1991) denominaparadoxal, posto que presente, passado e futuro no sesucedem, no se perdem, mas subsistem comocoexistncia virtual. Pode-se perguntar ento o que ficasendo a criana e seu modo prprio de conhecer numaperspectiva filosfica desta natureza. Certamente elaproblematiza a noo de desenvolvimento cognitivo porestgios, ao mesmo tempo que abre possibilidades paraum conceito positivo de criana, que evita pens-la comopossuidora de um modo de conhecer que ultrapassadoem favor de formas e estruturas mais avanadas. Aquesto da criana e de seu modo prprio de conhecerno aparece tematizada de forma sistemtica na obra deBergson, o que no impede que se busque em seus textose em sua concepo de tempo direes para pensar acriana de uma forma positiva, e no sob a gide dodficit ou da falta.

    No conceito de evoluo criadora encontram-sealguns elementos para pensar a transformao temporalda cognio. Para Bergson (1907/1979) a evoluo nosegue uma s direo, no possui uma trajetria nica,mas desenvolve-se em forma de feixe, de modorizomtico. Enquanto Piaget encontra na vida biolgica

    o fundamento da atividade cognitiva, ou seja, omecanismo de auto-regulao que assegura a equilibraomajorante, Bergson define a vida como fora explosivae suas formas como portadoras de um equilbrio instveldas tendncias. Sob tal perspectiva, toda transformaoao longo da evoluo ocorre sob o signo da divergncia eda diferenciao. Segundo Bergson, o lan vital bifurca-seem duas tendncia divergentes - tendncia repetitiva etendncia inventiva - que se misturam nas formasatualizadas. Toda forma atualizada - e a podemos ver ocaso do sistema cognitivo infantil ou adulto - um mistode matria e tempo, guardando uma abertura eencontrando-se sujeito instabilizao.

    Por outro lado, existem na obra de Bergson algumasreferncias que definem a criana como portadora devirtualidade, englobando em si pessoas diversas quepodiam manter-se fundidas juntas porque estavam emestado nascente (Bergson, 1907/1979, p. 156). A criana vista ainda como estando, por esta razo, mais pertoda natureza que o adulto (Bergson, 1934/1979, p. 149).Tais referncias do testemunho de que, para Bergson,h na cognio da criana uma prevalncia da tendnciatemporal e inventiva. Numa filosofia que considera acoexistncia das tendncias e dos tempos, o modo deconhecer da criana no algo a ser ultrapassado nemindicativo de um dficit em relao s formas cognitivasterminais, mas um modo de conhecer que assegura aabertura da cognio e persiste como virtualidade. Nocontexto de uma evoluo criadora, onde as tendnciasdivergentes mantm-se em equilbrio instvel, o infantile o adulto coexistem no interior da cognio e adimenso infantil vai se destacar como uma tendnciasempre virtual, capaz de fazer divergir as formas eestruturas constitudas.

    A coexistncia das tendncias e dos tempos no planovirtual no impede que se revelem diferenas no planodas formas de conhecer que se atualizam no adulto e na criana.Quando Bergson (1907/1979) afirma que a criana estmais prxima do virtual que o adulto, reconhece queexista alguma perda efetiva, embora circunscrita ao planodos formas atualizadas, quando as formas adultasassumem uma rigidez que dificulta a continuidade de suadiferenciao. De todo modo, o caminho outro emrelao quele seguido pelas teorias do desenvolvimentocognitivo pautadas na noo de estgio e na idia de umasubsuno do modo infantil no modo adulto deconhecer. Bergson coloca: Na realidade estamosincessantemente fazendo escolhas, e sem cessar tambmdeixamos de lado muitas coisas. O itinerrio quepercorremos no tempo est juncado dos resduos de tudoque comevamos a ser, de tudo que poderamos ter

    Psicologia: Reflexo e Crtica, 2000, 13(3), pp.373-382

    O Devir-Criana e a Cognio Contempornea

    Alexande1Realce

    Alexande1Realce

  • 376

    vindo a ser. Mas a natureza, que dispe de um nmeroincalculvel de vias, de modo algum se restringe asemelhantes sacrifcios. Ela conserva as tendncias que sebifurcaram ao crescer (Bergson, 1907/1979, p. 156).Para Bergson, haveria sempre uma criana no adulto,revelada nos movimentos divergentes da cognio.Embora reconhea que em toda bifurcao h escolhaou seleo de um caminho, o que implica no abandonode outras possibilidades, inconcebvel do ponto de vistabergsoniano a idia de uma perda irreversvel de nossosdevires, que asseguram a abertura para o novo e apossibilidade de inveno de novas formas de conhecer.Pois, se este fosse o caso, no perderamos certoscaminhos, mas a possibilidade de sair de nosso modopredominante de conhecer e o desenvolvimento seria umobstculo inveno. A partir de tudo isso, fica clara adistino entre a concepo piagetiana de transformaescognitivas que se do sob o signo da convergncia e dofechamento e a concepo bergsoniana, pautada nas idiasde divergncia e de diferenciao. Na segunda maneira de pensarencontram-se elementos para conceber um processo deinveno da cognio que persiste enquanto virtualidadena cognio do adulto, no sendo obstaculizado pelodesenvolvimento.

    Em resumo, as teorias do desenvolvimento, como asteorias da evoluo, tm como problema explicar a gnesedas formas, isto , o engendramento de umas pelas outrasnuma ordem sucessiva e seqencial. No entanto, o temada transformao temporal da cognio revela-se maisamplo. A Psicologia do desenvolvimento cognitivodescreve um certo regime de transformao temporalda cognio - o regime de filiao - mas no parece queas transformaes temporais se limitem a um nicoregime, nem tampouco que tal regime seja o mais fecundopara pensar a cognio. A atualidade nos lana frente atantos fatos novos e exigentes de sentido envolvendo ainveno da cognio, que as idias de gnese, filiao eultrapassamento parecem no dar conta. Talvez ascomparaes entre a criana e o adulto, baseadas nomodelo gentico-estrutural e na idia do dficit nosdeixem de mos vazias para o entendimento da cogniocontempornea.

    O Conceito de Devir-Criana de G. Deleuze e F.Guattari

    Seguindo a linha bergsoniana de conceber o tempo,G. Deleuze e F. Guattari formulam o conceito de devir-criana. Deleuze e Guattari (1980/1997) reconhecem natese bergsoniana do tempo como virtual, comocoexistncia de duraes distintas e heterogneas, oprincpio de uma realidade prpria ao devir. Em

    consonncia com Bergson, o conceito de devir-crianaporta a idia de uma criana que persiste no adultoenquanto virtualidade e enquanto condio de divergnciae diferenciao da cognio, abrindo caminho para aexplorao da dimenso inventiva da cognio. O que sev a sugerido um giro no ponto de partida dainvestigao, um redirecionamento da ateno, que sedesloca ento das formas estabilizadas para o movimentoque as retira desta condio, ou antes, daquilo que transformado para aquilo que o prprio movimentode transformao. Neste caso, operada uma subversodo modelo gentico-estrutural e o devir - empregadocomo um substantivo - passa ao primeiro plano. Aforma-criana, assim como a forma-adulto, sero apenasestados de coisas, pontos de parada, imagens sucessivas,formas dispostas ao longo do regime temporal da gnesee da descendncia. Por esta razo, o conceito de devir-criana aparece como uma referncia importante paraum redimensionamento do problema da cognio dacriana e, conforme veremos, da cogniocontempornea. Ele indica uma direo para oentendimento das transformaes temporais da cognioe tambm para o que seja a criana, fornecendo umaalternativa concreta para os limites da investigao sobrea inveno pela psicologia (Kastrup, 1999).

    Deleuze e Guattari falam da coexistncia deduraes muito diferentes, superiores e inferiores nossa, e todas comunicantes (1980/1997, p.18). Areferncia a uma espessura temporal onde coexistemduraes diversas bastante diferente do tempocronolgico que constitui a referncia das psicologias dodesenvolvimento. Ao invs de sustentarem a idia deformas e estruturas da cognio que obedecem a umasucesso, onde as da criana so subsumidas pelo adulto,Deleuze e Guattari afirmam: ...uma criana coexisteconosco, numa zona de vizinhana ou num bloco de devir,numa linha de desterritorializao que nos arrasta a ambos- contrariamente criana que fomos, da qual noslembramos ou que fantasmamos, criana molar da qualo adulto o futuro (p.92). Falar em devir-criana dacognio conceber sua operao politemporal, seumovimento entre diversos plats ou camadas de tempo.

    Afirmar uma cognio em devir no o mesmo quereconhecer sua natureza histrica. Pois o tempo quecaracteriza a histria ainda o tempo cronolgico dosacontecimentos sucessivos - passado, presente e futuro.O devir no eqivale a uma transformao temporal quese concretiza no decurso do tempo histrico.Diferentemente, uma transformao temporal que sed no presente, caracterizando-se inclusive por operaruma bifurcao em relao s formaes histricas, aos

    Psicologia: Reflexo e Crtica, 2000, 13(3), pp.373-382

    Virgnia Kastrup

    Alexande1Realce

    Alexande1Realce

  • 377

    regimes de funcionamento que caracterizam os estratos.Pode-se dizer que, neste sentido, ele a designao porexcelncia do que h de contemporneo na cognio(Kastrup, 1997b). No se define como passagem de umaforma a outra, mas sobretudo como movimento quefaz tenso com as formas. Deleuze e Guattari cuidamtambm em distinguir o devir de outras noes com asquais ele poderia ser confundido: identificao, imitao,metamorfose, desenvolvimento ou produo.Esclarecem: Devir no certamente imitar, nemidentificar-se; nem produzir, produzir uma filiao,produzir por filiao. [...] ele no se reduz, ele no nosconduz a parecer, nem ser, nem eqivaler, nemproduzir (Deleuze & Guattari, 1980/1997, p.19). Devir-criana no manter com a criana qualquer relao desemelhana, no imitar a criana. A criana no a formana qual nos tornamos estando em devir. Devir-crianano regredir a um estgio anterior do desenvolvimento,pois o devir no corresponde a uma ordem classificatrianem genealgica (Deleuze & Guattari, 1980/1997).

    O estudo que toma a cognio em desenvolvimentose empenha em descrever as estruturas que so construdasnum fechamento progressivo, mas o estudo da cognioem devir revela uma cognio bifurcante e inventiva. Odevir no se faz por subidas verticais, mas por alianas,desterritorializao e fuga das formas, fazendo com queoutros regimes e outros territrios possam vir a serconstitudos. Mas preciso ter cuidado em no definir odevir por aquilo que ele pode vir a criar. Devir no podeser confundido com metamorfose. No passagem deuma forma a outra, pois o que o caracteriza no sopontos de parada ou de desacelerao, nem um termofinal qualquer.

    O conceito de devir no visa a explicar as formas.Como foi visto acima, pensar a transformao temporalperspectivada pelo problema da criao de formas umponto comum entre as teoria da evoluo e dodesenvolvimento. Para Deleuze e Guattari (1980/1997)o devir surge, diferentemente, como uma espcie deinvoluo, pois ele justamente um movimento dedissoluo das formas criadas. So suas palavras:Preferimos ento chamar de involuo essa forma deevoluo que se faz entre heterogneos, sobretudo coma condio que no se confunda involuo com regresso.O devir involutivo, a involuo criadora. (p.19). Nose trata de regresso a antigas formas. O que define odevir uma atividade no meio molecular, denso e invisvel,que subsiste entre as formas visveis. A cognio em deviracessa este meio molecular. No coloca em relao sujeitose objetos, formas cognitivas e objetos conhecidos, mas a cognio operando fora das regras, fora das formas.

    O devir cognitivo no se define por um regime especfico,no apenas um outro regime, mas uma outra dimenso,um outro plano de funcionamento, onde as categoriasda representao - sujeito, objeto, leis, formas, estruturas- revelam-se inoperantes.

    Deleuze e Guattari (1980/1997) distinguem doisplanos: o plano de organizao e de desenvolvimento e o plano deconsistncia ou composio. O plano de organizao e dedesenvolvimento corresponde s condies depossibilidade das formas visveis. um plano estruturalou gentico, e os dois ao mesmo tempo, plano dasorganizaes formadas em seus desenvolvimentos, planogentico dos desenvolvimentos evolutivos em suasorganizaes (p. 54). Ele condio de desenvolvimentoe gnese das formas e tambm de formao dos sujeitos,mas um plano transcendente, pois ele prprio no seencontra sujeito criao. Pode-se concluir que tal plano aquele que tem sido habitualmente concebido eexplorado pelas teorias do desenvolvimento cognitivo.A abordagem estrutural, associada ao carter teleonmicodo desenvolvimento e aos princpios invariantes quefundamentam a transformao temporal das estruturas,do testemunho desta concluso.

    Por outro lado, Deleuze e Guattari (1980/1997)explicitam que h um outro plano, denominado planode consistncia ou de composio. Trata-se de um planoque no habitado por formas, mas por foras, linhas,partculas em movimento, que esto aqum das formasexistentes e visveis e, ao mesmo tempo, constituem ascondies de criao destas formas, sejam elas sujeitosou objetos. Trata-se de um plano movente e quecaracteriza uma ontologia criacionista. As formasemergem deste plano, distinguindo-se e individuando-sepela composio e agenciamento entre as linhas,movimentos e foras que a circulam. As formas sedistinguem, mas no se separam do plano de composio,sendo nele relanadas e restando sempre imersas no planode onde emergiram. Isto significa que as formas nopossuem limites fechados, mas continuam envolvidasnum movimento de criao. Deleuze e Guattaridescrevem-no como um plano onde no h maisabsolutamente formas e desenvolvimento de formas; nemsujeitos nem formaes de sujeitos. No h estruturasnem gneses. H apenas relaes de movimento erepouso, de velocidade e lentido entre elementos noformados, molculas e partculas de toda espcie (p.55).No h desenvolvimentos, mas agenciamentos e ligaesentre partculas que do consistncia s formas. No setrata de um plano de transcendncia, mas de imanncia,que no pra de se transformar com aquilo que ocorrenele e com o que se d a partir dele j que, como dissemos,

    Psicologia: Reflexo e Crtica, 2000, 13(3), pp.373-382

    O Devir-Criana e a Cognio Contempornea

    Alexande1Realce

    Alexande1Realce

    Alexande1Realce

    Alexande1Realce

  • 378

    as formas emergentes so nele relanadas, participandoda auto-criao permanente do plano de composio.Pode-se dizer ainda que ele indica um funcionamento nosentido contrrio ao da estrutura ou da gnese, pois aforma no pra de ser dissolvida para liberar tempos evelocidades (p.56), ou seja, a forma no cessa de involuir.A considerao da existncia deste plano, que ditotambm plano molecular, indica uma dimensoontolgica que vai alm das formas visveis. Pode-se dizerainda que toda transformao das formas passa peloplano de composio. justamente por este plano que odevir se define.

    Fica evidenciado que, do ponto de vista do devir, adistino mais importante no entre o invariante e ohistrico, ambos referidos ao plano de organizao e dedesenvolvimento, mas entre os dois planos descritosacima. H tambm comunicao entre estes planos. Pode-se passar de um a outro, ou seja, as formas podeminvoluir e entrar em devir, assim como o devir podeconfigurar formas que tendem a escapam dele. O devir-criana da cognio corresponde primeira hiptese,enquanto as teorias do desenvolvimento descrevem oresultado da segunda. preciso ter claro ainda que odevir-criana no exclusivo da forma-criana ou doque Deleuze e Guattari (1980/1997) chamam de crianamolar. A criana molar uma configurao visvel,traduzvel por certos comportamentos e traos distintivos.Pode-se dizer que a criana de que tem falado aPsicologia que se refere apenas ao plano de organizaoe desenvolvimento. No entanto, a criana molecular, queeqivale ao devir-criana, s pode ser abordada se, almdo plano de organizao, a Psicologia tomar comoreferncia tambm o plano de consistncia e decomposio.

    Embora o problema no seja diretamente abordadona obra de Deleuze e Guattari (1980/1997), precisoidentificar algo que seja prprio ao devir-criana, ou seja,algo que daria conta de sua especificidade em relaodos demais devires, como o devir-animal e o devir-mulher, que tambm fazem parte do repertrio dessesautores. A primeira pista algo que pode ser expressocomo uma relao de experimentao mais direta como meio molecular. No texto O que as crianas dizem? de1997, Deleuze afirma: a criana no pra de dizer o quefaz ou tenta fazer: explorar os meios, por trajetosdinmicos, e traar o mapa correspondente (p.73). Omeio evocado no eqivale ao que a psicologia costumachamar de ambiente, que composto por formas eobjetos, mas um meio molecular composto de fluxosmateriais, foras tendenciais ou de partculas aqum dolimiar da percepo das formas. a explorao direta

    deste meio que aparece como primeiro elemento para acaracterizao da cognio da criana. Seguindo esta idia,pode-se avanar um pouco mais pensando que explorardiretamente o meio molecular significa agir desprovidode um programa, entendendo programa em sentidociberntico, como a conjugao de uma memria comum projeto (Jacob, 1983, p.10).

    Ora, a assimilao da cognio a um programa foium dos pontos que marcou o surgimento das cinciascognitivas a partir da segunda metade deste sculo. Apsicologia, desde sempre envolvida com a busca das leise princpios invariantes da cognio, insere-se a partirdesta poca num debate transdisciplinar. A noo deprograma, junto quelas de informao, cdigo,processamento simblico, input-output e outras oriundasda teoria da informao e da ciberntica, concorre paraa criao da nova verso do cognitivismo ocognitivismo computacional. Mais uma vez, a nfase recaisobre o modelo estrutural e trabalhada agora aequivalncia entre a cognio humana e as mquinascibernticas. O computador tomado como um sistemaequivalente, ao mesmo tempo que a cognio assume afeio de um software, sendo entendida como portadorade regras gravadas numa memria e que possui um planoque dirige seu funcionamento.

    interessante notar, entretanto, que a consideraode um programa invariante quase simultaneamenteacompanhada da investigao das possibilidades daimplementao de modificaes do programa (Dupuy,1996). Em ambas as direes h a pesquisa e odesenvolvimento tecnolgico de mquinas quemodelizam a cognio. Na primeira direo, que a docognitivismo computacional, o modelo buscado o deum solucionador geral de problemas, materializao damquina universal de Turing, capaz de realizar qualqueroperao desenvolvida pela cognio humana. Nasegunda direo, que a da abordagem conexionista, ofoco incide sobre mquinas capazes de aprender, deformar regras locais frente a tarefas especficas e chegara configuraes que so inseparveis de sua histria detransformaes. O conexionismo abandona o sonho depossuir uma mquina com uma inteligncia geral, emfavor da capacidade de dot-la de performances flexveis eespecficas, como a categorizao e o reconhecimento.Nesse caso, a mquina cognitiva no se define porsmbolos e regras, mas pela conexo densa e acentradade milhares de elementos simples, maneira das redesneurais, da qual emergem propriedades globais. ParaAndler (1987) pesquisas conexionistas como as deHofstadter (1987) e McClelland, Rumelhart e Hinton(1987) trabalham ao nvel de um gro mais fino da

    Psicologia: Reflexo e Crtica, 2000, 13(3), pp.373-382

    Virgnia Kastrup

    Alexande1Realce

    Alexande1Realce

  • 379

    cognio, renovando a investigao por apontar umafluidez da cognio humana que as abordagenscognitivistas no consideravam. Ainda nesta linha,Maturana e Varela (1990) desenvolvem trabalhos no quedenominam autopoiese dos sistemas vivos, identificandonos aparatos imunolgico, neurofisiolgico e cognitivopropriedades auto-criadoras. Para estes autores, ofechamento espacial do sistema autopoitico, a partir deuma complexa rede de elementos em interao, coexistee condio para sua abertura temporal. O sistema atingido e entra em transformao no em funo deinformaes provenientes de objetos ou formas dadas,mas de perturbaes provocadas por um certo fluxomaterial. a partir da perturbao causada por um fluxode luz que um objeto pode ser visto, a partir de umfluxo sonoro uma msica reconhecida. Tais pesquisasexploram uma cognio complexa, onde o nvel dasdensas conexes neurais e o das regras emergentes, onvel sub-simblico e o simblico coexistem comodistintos e indissociveis, mas irredutveis um ao outro.

    A histria da modelizao da cognio atravs dasmquinas de informao revela, segundo Varela (s.d.), aocorrncia de uma progressiva substituio do modelodo perito o expert - pelo modelo da criana. Trata-sede uma observao interessante, pois indica que nessetipo de investigao a criana signo de umfuncionamento cognitivo desprovido de regras a priori.O que prepondera a no a existncia de um programafechado, cuja memria definiria um plano de atividades,mas um programa ainda um programa - que se definiriapor sua capacidade de transformao e aprendizagemde novas configuraes. O que se tem em mira oprocesso capaz de conduzir formao de regras. concebido um movimento, uma instabilidade, umaespcie de caotizao do funcionamento cognitivo e astransformaes temporais das mquinas conexionistaspossuem resultados at certo ponto imprevisveis. Aspesquisas conexionistas vm buscando trabalhar no limiteda modelizao, experimentando at onde pode chegara auto-programao das mquinas cognitivas. O devir-criana talvez reste sendo no modelizvel, o noalgoritmizvel da cognio, mas o conexionismo despertanosso interesse pelo deslocamento que opera do planodas formas e estruturas, para o plano das conexes emrede, para o plano molecular, onde habita o gro maisfino da cognio.

    preciso avanar na idia de que o devir-criana dacognio uma atividade que no guiada por umprograma, que no controlada por regras prvias quedeterminariam a ao futura. uma atividade cognitivaque pode ser dita exploratria ou experimental pois no

    aguarda pr-requisitos, no espera regras, mas lana-seno presente imediato, possuindo uma velocidade que afaz deslizar e ocupar as brechas que existem entre asformas j conhecidas. Bergson reconhece isto quandoafirma que a criana quer procurar e inventar, sempre espreita de novidade, impaciente com a regra (Bergson,1934/1979, p.149). A impacincia da criana, que noespera um programa ou regras de ao, revela seu devir-criana. Parece que se encontra a uma espcie de duraoou velocidade que permite pensar a especificidade dodevir-criana. Esta impacincia com a regra tem comocontrapartida uma molecularizao da percepo e umaexplorao motora mais fina, sintonizada com a fluidezda matria com a qual entra em contato direto. O contatofora da regra acoplamento imediato, porque no se fazatravs da mediao da representao dos objetos, nemdas formas habituais de conhecer e agir. H a umadimenso da subjetividade que transborda das estruturasestabilizadas e que se conecta com uma dimenso domundo material que tambm escapa das gestalten bemdefinidas, das boas formas. nesta regio, onde acognio se moleculariza e o mundo transborda dasformas representadas, que a inveno pode ocorrer.

    Completando a afirmao de Deleuze (1997) temosque a criana, enquanto age, vai, por trajetos dinmicos,traar o mapa correspondente (p. 73). Ora, a crianacartgrafa acessa um meio que transborda o mundo dosobjetos. Este feito de qualidades, substncias, potnciase acontecimentos, que configuram uma multiplicidademovente, instvel, sempre longe do equilbrio, uma espciede matria fluida. O mapa que a criana traa, e queconfigura seu mtodo ou programa de ao, confunde-se ento com este meio em movimento que ela explora.O mapa do movimento por isto mapa em movimento.Suas regras so locais e temporrias e seu meio de aocomposto de variaes materiais invisveis, inapreensveispelas estruturas histricas e pela representao. Esto nomeio do mundo, constituindo o fluxo que corre entre asformas, que transborda dos objetos e das formasconhecidas.

    Pode-se constatar que, em suas descries, Bergson eDeleuze no se limitam criana molar, mas identificamtambm a criana molecular. Suas observaes tocamno fato da criana carregar consigo menos histria etambm menos um projeto de ao que o adulto, masnem por isso aguardar por eles para orientar sua aes.Talvez pela criana viver mais plenamente a experinciaque se d no presente imediato e a encontrar o impulsoque a inclina para o futuro, Bergson e Deleuze tenham sereferido a ela para falar dessa dimenso da cognio que

    Psicologia: Reflexo e Crtica, 2000, 13(3), pp.373-382

    O Devir-Criana e a Cognio Contempornea

    Alexande1Realce

    Alexande1Realce

    Alexande1Realce

    Alexande1Realce

  • 380

    escorrega por entre as formas e, experimentalmente,acessa intensidades, potncias e acontecimentos.

    Para Deleuze e Parnet (1977) os devires so sempreaparalelos, fenmenos de dupla captura. O movimentoinvolutivo do devir implica um processo demolecularizao das formas percebidas e, ao mesmotempo, um processo de desmanchamento das formaessubjetivas ou de dessubjetivao. O conceito de blocode devir expressa a idia de que no nos tornamos algumacoisa sem que esta prpria coisa se torne outra, entre elamesma em devir. Deve-se lembrar que o devir nocomunica formas, mas pontos diferenciais. Salta dediferencial em diferencial, sempre em bloco e acomunicao se d como uma espcie de contgio noplano molecular.

    Para esclarecer o conceito de bloco de devir, pode-seretomar um texto de Michel Tournier (1973) que perguntaem seu ttulo: Existe uma literatura infantil?. Nele Tournierapresenta algumas idias sobre a criana que vojustamente na direo de um deslocamento da colocaodo problema de uma forma-criana para um devir-criana. Tournier autor do livro Sexta-feira ou os limbos doPacfico - uma das inmeras verses do Robinson Cruso deDaniel Defoe - que introduz uma modificao at certoponto desconcertante para aqueles que conhecem ahistria original. No romance de Tournier o heri, aofinal, decide ficar na ilha, ao invs de voltar para a Europa.Tournier relata que escreveu sua verso introduzindo naobra de Defoe referncias etnogrficas e filosficascontemporneas, mas mais tarde julga seu livroexorbitante em referncias, com uma filosofia indiscretae mesmo excessiva. Decide ento reescrever a histria,dando a ela uma verso mais curta, gil, leve e lmpida,onde a Filosofia viria oculta, ou melhor, clandestina emcertos acontecimentos ou em novos episdios narrativos.Segundo Tournier, s ao final, e com surpresa, descobriuque havia escrito um livro para crianas, que denominaento Vendredi ou la vie sauvage. Aps enfrentar uma sriede problemas para publicar este livro na Frana - e bom lembrar que Sexta-feira ou os limbos do Pacfico haviasido publicado por mais de uma dezena de editoras,dentro e fora da Frana - Tournier resolve perguntar seexiste algo que defina um livro como infantil. Com todaradicalidade, interroga se existe, enfim, uma literaturainfantil. Sua resposta que a literatura para crianas apenas uma obra de arte que alia simplicidade e preciso.Tal literatura pode ser fruda por qualquer um e noexclusivamente por crianas. Tournier aponta tal virtudenas fbulas de la Fontaine, no Alice de Lewis Carrol, naslendas orientais, nos contos de Grimm e Andersen eoutros que, como lembra, no foram escritos

    especialmente para o pblico infantil. Mas tais escritoresescreviam to bem, sua escrita era to lmpida e concisaque podiam ser entendidos por uma criana.

    Tournier (1973) comenta em seguida que o RobinsonCruso de Defoe produziu enorme quantidade derecriaes e avalia que a fora desta obra resideexatamente no fato dela criar uma necessidade irresistvelde ser reescrita. O contato com a obra literria gera umaincitao a criar, uma espcie de contgio do processode criao. Estimula a inventividade dos leitores (p. 34).A potncia da criao surge ento como potncia decontagiar, incitando o leitor a escrever, gerando um devir-escritor no leitor. O interessante que no ocorre umcontgio das formas, mas do processo de criao,gerando a produo de outras obras, inclusive portadorasde outros sentidos. Tournier conclui ento que a obra dearte dotada de uma virtude pedaggica. LembrandoMontaigne, que afirmou que ensinar uma criana no como encher um vaso, mas como acender uma fogueira,Tournier indica haver uma virtude pedaggica na fico. interessante notar como o tema da aprendizagem surgeressignificado a partir de uma perspectiva criacionista eartstica. De acordo com a perspectiva ambientalista,aprendizagem significava aquisio de respostas ou deregras que assegurariam a adaptao a um meiopreviamente dado. No sentido indicado por Tournier,que remonta a Montaigne, a aprendizagem surge comoprocesso de criao de si e do mundo, de formarecproca e indissocivel.

    interessante notar tambm como, de acordo comtal perspectiva, a aprendizagem se d num bloco de devir.No exemplo enfocado acima, a leitura do texto provocano leitor um devir-criana, convoca a criana que subsistecontempornea com as formas adultas de conhecer. Poisela comea quando se acessa algo que no estava naspalavras, nas frases, ou no texto formatado pelo escritor,mas nas suas entrelinhas, naquilo que vinha clandestino,invisvel aos olhos que s vem antigas formas, que sopresas de automatismos recognitivos. Entretanto, os olhosmais acurados, que possuem uma percepo mais fina,acessam esta outra dimenso do texto. Esta dimenso dacognio que escorrega por entre as formas e,experimentalmente, acessa as intensidades, potncias eacontecimentos do texto o devir-criana. A a cognioage sem programa, e exatamente por isto toca naquiloque no poderia ser previsto, nem pelo prprio autor. Ocontato com o texto literrio promove devires cognitivosos mais diversos. No caso destacado por Tournier (1973),o devir-criana se transmuta num devir-escritor. Mas oescritor em que se devm no o mesmo que escreveu olivro que se l, mas um outro, que escreve um outro livro,

    Psicologia: Reflexo e Crtica, 2000, 13(3), pp.373-382

    Virgnia Kastrup

  • 381

    que continua a afetar e contagiar aquele que aprendeuno a ler, simplesmente, mas a ler deixando-se levar porum devir-criana, isto , sem programa, explorando, edeixando-se contagiar pelo movimento de criao quehabita o texto.

    preciso atentar ainda que h um devir-criana, umdevir-mulher, um devir-animal, mas no h devir-homem. H um devir-criana do homem, mas no hum devir-homem da criana (Deleuze & Guattari, 1980/1997, p. 89). Este outro ponto importante a ser marcado,pois desfaz possveis equvocos na interpretao dasteorias do desenvolvimento. Para Deleuze e Guattari ohomem uma figura molar, uma forma. Sua entradaem devir resulta justamente da possibilidade de acessar oplano molecular, mas isto s se faz atravs do devir-criana, do devir-mulher, do devir-animal, ou seja, dasoutras velocidades e lentides que se encontram no planode composio. Encontra-se neste ponto uma perspectivadiametralmente oposta quela adotada pelas teorias dodesenvolvimento cognitivo. Pensar o devir-criana dohomem em lugar de estudar a criana tendo como pontode chegada e como forma eminente na srie genealgicadas estruturas cognitivas a forma do homem adulto, eisa a inverso radical que se evidencia no confronto entreestas duas abordagens da cognio. No salto de um planoa outro, as teorias do desenvolvimento adotam o modeloda territorializao. As perturbaes e instabilidades quetm lugar no sistema cognitivo, constituem movimentosde desterritorializao relativa, pois desembocam emcompensaes e apenas ganham sentido quandoconstituem um retorno a um equilbrio. Mesmo quandoeste equilbrio assume a feio de um equilbrio processual,a nfase nas formas territorializadas. Em contrapartida,o conceito de devir-criana orienta a investigao para omovimento de desterritorializao, fuga edesmanchamento das formas. Por isto o devir-criana dito movimento de desterritorializao absoluta. Tom-lo como ponto de partida significa deixar de pensar oprocesso de transformao temporal atravs das formasque dele resultam, ou seja, o processo atravs do produto,o movimento pelo parado, a inveno pelo invento.

    A complexidade da cognio infantil advm de duasdimenses molar e molecular irredutveis uma outra.Trabalhos em Psicologia do Desenvolvimentoidentificaram estruturas ou formas molares quecorrespondem territorializao da cognio infantil. Taisformas dotam a cognio de uma estabilidade relativa, esem elas o devir-criana, enquanto movimento dedesterritorializao, no seria efetivado. preciso queexistam formas, pois no h devir seno das formas eencontramos a o lugar dos estudos da Psicologia do

    desenvolvimento. No entanto, a cognio da criana, porsua natureza, exige uma psicologia igualmente complexaque, alm das formas e estruturas da cognio infantil,acesse o devir-criana e que, ao invs de basear-se apenasno plano de desenvolvimento e organizao, busqueacolher em seu campo de investigao os movimentosinvolutivos, dissipativos, de desmanchamento das formasconstitudas e que evidenciam, de maneira s vezes sutil, adimenso molecular da cognio infantil e seuenraizamento no plano de consistncia ou composio.

    A Cognio ContemporneaA ateno atualidade faz ver que as transformaes

    da cognio no se restringem a uma sucesso linear nema um caminho privilegiado. Retraar a marcha em direo forma homem adulto de conhecer faz da criana umaforma negativa, prestes a ser ultrapassada pelo adulto.Se, ao contrrio, busca-se o devir-criana - e isto tanto naforma-criana quanto na forma-homem atinge-se ocontemporneo no seio da cognio. A criana, como oadulto, experimenta na atualidade novas formas deconhecer e viver, mas o devir-criana remete s pontasde presente que subsistem na cognio. As idias decontemporaneidade e atualidade no se referem a ummomento histrico, mas a uma dimenso experimental,de transformao e movimento que o presente encarna(Kastrup, 1997b). Nesta linha, a investigao da cogniocontempornea no pode se esgotar na identificao dasnovas formas, mas deve buscar apreender a raiz datransformao temporal, o sempre novo que se d nacognio por sua dimenso experimental. O conceito dedevir-criana surge ento como ponto de onde se devepartir para a investigao da cognio contempornea.

    Na cognio contempornea as estruturas, as formas,ou mesmo as formaes histricas existentes coexistemcom os devires que vm se esboando. Amplia-se odomnio da Psicologia entendendo a atualidade comoum campo movente, onde certos regimes defuncionamento cognitivo ou estratos histricosconstitudos encontram-se em tenso com aprocessualidade ou inventividade da cognio. Desteponto de vista, o presente revela-se espesso, politemporal,estendendo-se sobre o passado e o futuro. Possuindouma espessura temporal, o presente no sucede o passadonem precede o futuro, mas faz coexistirem estes tempos.Pode-se dizer que a experimentao coexiste com ahistria e o presente com o passado, apontando para ofuturo. Como afirma Castro (1992) preciso que aPsicologia do Desenvolvimento explore outrasconcepes de tempo alm do tempo cronolgico.Fecundando os estudos das psicologias do

    Psicologia: Reflexo e Crtica, 2000, 13(3), pp.373-382

    O Devir-Criana e a Cognio Contempornea

    Alexande1Realce

  • 382

    desenvolvimento com as filosofias do virtual etrabalhando com a idia da coexistncia dos tempos,pode-se encontrar na criana um modo positivo deconhecer, encarnao sempre atual da tendncia inventivada cognio.

    As transformaes so notveis no que diz respeitos formas de viver a infncia na atualidade. A precocidadedos comportamentos sexuais, os atos de violnciapraticados por crianas, as agendas cheias decompromissos da criana das classes mdia e alta, todosestes fatos, amplamente divulgados pela imprensa nacionale internacional, levam a que se fale numa abreviao emesmo num fim da infncia nos dias atuais. Por certono encontraremos a criana contempornea seestivermos tomados pela perspectiva da criana molar epela nostalgia das antigas formas da subjetividade infantil.Por outro lado, procurando identificar onde est a crianacontempornea vemos que ela se mantm viva no devir-criana. Encontramo-la na criana sem-terra, nos meninosde rua, na criana superprotegida pela bab eletrnica oupela parafernlia tecnolgica. Em resumo, o conceito dedevir-criana evita a miopia causada pelo pressupostoda identidade e a nostalgia de uma infncia naturalizada,ao mesmo tempo que localiza a criana contempornea. ilustrativo evocar uma imagem vigorosa que abre olivro de fotografias Terra de Sebastio Salgado. Trsmeninos habitantes do serto do Cear contemplam suaobra: uma fazenda construda de ossos de animais mortos,provavelmente vtimas da seca. O cemitrio torna-serebanho e a morte transmutada em vida no campo.Transmutao feita de restos, restos que do corpo aodesejo de inveno de um outro mundo. A perguntaretorna: o que, na conduta cognitiva desses meninos, dindcios do infantil? No a forma que interessa, pois amarca maior do infantil, o que faz delas ainda crianas por certo um devir cognitivo. A fora da imagem deSebastio Salgado deve-se ao fato de que, nacontemplao do brinquedo construdo, da obra de arte,expressa-se a fora no mensurvel do devir criana.

    Referncias

    Andler, D. (1987). Progrs en situation dincertitude. Le Dbat - mergence du Cognitif, 47, 5-25.

    Aris, P. (1978). Histria social da criana e da famlia. Rio de Janeiro: Zahar.Bergson, H. (1979). A evoluo criadora. Em Coleo Os Pensadores (pp.

    153-205). So Paulo: Abril Cultural. (Original publicado em 1907)

    Bergson, H. (1979). O pensamento e o movente Introduo. Em ColeoOs pensadores (pp. 99-151). So Paulo: Abril Cultural. (Original publicadoem 1934)

    Bergson, H. (1990). Matria e memria. So Paulo: Martins Fontes. (Original publicado em 1897)

    Castro, L. R. (1992). Desenvolvimento humano: Uma perspectiva paradigmtica sobre a temporalidade. Psicologia: Reflexo e Crtica, 5, 99-110.

    Changeux, J. P. & Danchin, A. (1978). Aprender por estabilizao dassinapses ao curso do desenvolvimento. Em E. Morin & M. Piattelli-Palmarini (Orgs.), O crebro humano - A unidade do homem (pp. 55-85). SoPaulo: Cultrix-EDUSP.

    Deleuze, G. & Parnet, C. (1977). Dialogues. Paris: Flammarion.Deleuze, G. & Guattari, F. (1997). Devir intenso, devir animal, devir imper

    ceptvel. Em G. Deleuze & F. Guattari (Orgs.), Mil plats (Vol. 4, pp.11-113). Rio de Janeiro: Ed. 34 Letras. (Original publicado em 1980)

    Deleuze, G. (1997). O que as crianas dizem? Em G. Deleuze (Org.), Crtica e clnica (pp. 73-79). Rio de Janeiro: Ed. 34 Letras.

    Deleuze, G. (1966/1991). Le Bergsonisme. Paris: PUF.Dreyfus, H. (1992). La porte philosophique du connexionnisme. Em D.

    Andler (Org.), Introduction aux sciences cognitives (pp. 352-373). Paris:Gallimard.

    Dupuy, J. P. (1996). Nas origens das cincias cognitivas. So Paulo: UNESP.Gardner, H. (1987). The minds new science. New York: Basic Books.Gould, S. J. (1997). Trs aspectos da evoluo. Em J. Brockman & K. Mat

    son (Orgs.), As coisas so assim - pequeno repertrio cientfico do mundo que noscerca (pp. 95-100). So Paulo: Companhia das Letras.

    Hofstadter, D. (1987). Cognition, subcognition: sortir du rve de Boole.Le Dbat - mergence du Cognitif, 47, 26-44.

    Jacob, F. (1983). A lgica da vida. Rio de Janeiro: Graal.Kastrup, V. (1997a). Sabedoria e iluses de um cientista - Uma resposta s

    crticas de Piaget a Bergson. Revista do Departamento de Psicologia da UFF,9(2/3), 38-50.

    Kastrup, V. (1997b). A cognio contempornea e a aprendizagem inventiva. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 49(4), 108-122.

    Kastrup, V. (1999). A inveno de si e do mundo - Uma introduo do tempo e do coletivo no estudo da cognio. Campinas, So Paulo: Papirus.

    Maturana, H. & Varela, F. (1990). El arbol del conocimiento. Madrid: Debate.McClelland, J., Rumelhardt D. E. & Hinton, G. E. (1987). Une nouvelle

    approche de la cognition: Le conexionnisme. Le Dbat mergence duCognitif, 47, 45-64.

    Mehler, J. (1978). Conhecer por desaprendizagem. Em E. Morin & M.Piattelli-Palmarini (Orgs.), O crebro humano - A unidade do homem (pp. 23-35). So Paulo: Cultrix-EDUSP.

    Moura, M. L. S. (1995). A epistemologia gentica e a prtica pedaggica. Cadernos de Psicologia, 3, 39-69.

    Piaget, J. (1978). A epistemologia gentica. So Paulo: Abril Cultural. (Original publicado em 1970)

    Piaget, J. (1978). Problemas de psicologia gentica. So Paulo: Abril Cultural. (Original publicado em 1972)

    Piaget, J. & Inhelder, B. (1978). A psicologia da criana. So Paulo - Rio de Janeiro: Difel. (Original publicado em 1972)

    Tournier, M. (1973). Existe uma literatura infantil? O Correio da UNESCO, 1, 33-34.

    Varela, F. (s.d). Conhecer As cincias cognitivas: Tendncias e perspectivas. Lisboa: Instituto Piaget.

    Recebido em 28.07.1999Primeira reviso em 14.10.1999Segunda reviso em 17.11.1999

    Aceito em 19.01.2000

    Sobre a autora:Virgnia Kastrup Doutora em Psicologia pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo,Pesquisadora do CNPq e Professora do Instituto de Psicologia, onde leciona no Curso de Ps-Graduao em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

    Psicologia: Reflexo e Crtica, 2000, 13(3), pp.373-382

    Virgnia Kastrup