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Dez anos de temperos, memórias e histórias no Jardim Lapenna

Dez anos de temperos, memórias e histórias no Jardim Lapenna · 2019. 11. 21. · nham da cozinha. O primeiro parceiro foi o Sesi, que levou para a cozinha do Galpão professores

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Dez anos de temperos, memórias e histórias no

Jardim Lapenna

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SUMÁRIO

Editorial

04 Dez anos

aprEsEntação

06 Memórias & afeto

introdução

08 O Começo de tudo

14 Quem ensina

20 Um caminho de possibilidades

24 Ana Teixeira

32 Edicleuma Nogueira

42 Eliana Zanão

50 Joseilda Silva

60 Jussara Silva

68 Leila Andrade

78 Maisa Melo

86 Nena Maria

96 Sabrina Duarte

104 Sandra Abrantes

30 Torta salgada

38 Pão de mel

48 Bolo de fubá cremoso

56 Pão de beterraba

66 Bolo fofura

74 Bolo de maçã

84 Torta de morango

92 Bolo de cenoura com cobertura de brigadeiro

102 Sopa de ervilha

110 Brigadeiro de laranja

O Projeto

As Histórias

Receitas

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Aos dez anos de idade, já temos muitas cer-tezas: da grandeza do mundo, da delicadeza das coisas, de que as nossas vontades são nossas, assim como os nossos desejos. Este livro celebra exatamente isso, o número dez. Mas de uma maneira diferente, sem teorias, entraves, máscaras. Ele festeja a primeira década como festa de criança, com bolo, salgadinhos, doces, brincadeiras, desejos ao cortar o primeiro pedaço do bolo, abraços, fotografias para guardar no álbum da vida, felicidade e amor.

Ana Claudia, Edicleuma, Eliana, Joseil-da, Jussara, Leila, Maísa, Nena, Sabrina, Sandra. Dez nomes e um elo em comum: a cozinha. Melhor, a cozinha da Oficina Esco-la de Culinária da Fundação Tide Setubal, no Jardim Lapena, em São Miguel Paulista, São Paulo. Dez mulheres que, por meio de suas histórias, recontam os dez anos da Ofi-cina. Esse é o olhar escolhido para traçar a

última década do lugar. Não por números, mas pela jornada de cada uma. Não por te-orias de como a comida pode ter papel im-portante para transformar as pessoas, mas pela vida de cada uma delas. Um olhar ge-neroso, humano e afetuoso como a comida pede. São histórias de mudança, reconcilia-ção, reencontro, transformação, superação, liberdade. Isso porque, por meio da comida, elas conseguiram mostrar para o mundo aquilo que elas já carregavam dentro. São mulheres de força, que descobriram no simples ato de cozinhar um caminho para conquistar o que desejavam, queriam e so-nhavam ser.

Ao longo de dois meses, eu e mais dois jornalistas de olhar aguçado e delicado, Dé-bora Gomes e Eduardo Alves, nos aproxi-mamos e ouvimos essas dez mulheres, que passaram por vários cursos da Oficina, que vivenciaram o Galpão, que descobriam na

Dez anos

EDITORIAL

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proximidade do fogão um lugar de acon-chego. Conversamos também com os pro-fessores e com pessoas que, de alguma forma, fizeram parte dessa década. Nessas conversas teve lugar para lágrimas, para lembranças doídas, para pequenas e gran-des alegrias. Foi intenso e profundo. Por muitas vezes, me perguntei: “será que elas têm ideia da força que carregam?”. Per-ceber em algo tão simples e corriqueiro, como o cozinhar, um caminho de sabedoria e de construção é para poucos, para aque-les que sabem se enxergar.

Este livro traz, assim, a reunião de tudo isso: a saga da Oficina – e como tudo come-çou – e a história dessas mulheres que ilus-tram de maneira poderosa os dez anos do lugar e as centenas de tantas outras alunas que passaram por aquela cozinha. Cada história é seguida de uma receita sugerida e um texto escrito corajosamente por cada

uma delas. Livro para ler, guardar na cozi-nha ou ao alcance das mãos, para consul-tar quando der vontade de preparar aquela receita que aquece o coração, ou simples-mente para nos fazer recordar que comida nunca é só comida. É história, memória, afeto, revolução, transformação e cura.

Meu muito obrigada a Fernanda, Gui-né, Andrelissa e a todos da Fundação que, de alguma maneira, cruzaram meu cami-nho, que acreditaram e confiaram na mi-nha condução e abriram espaço para que este livro nascesse do jeito mais lindo que se pode vir ao mundo... com amor.

a na Hol a n da

*AnA HolAndA é jornalista, escritora, professora e autora do livro Minha Mãe Fazia – Crônicas e Receitas Saborosas e Cheias de Afeto (editora Rocco), e editou este livro com a mesma ansiedade e prazer com que uma criança espera o bolo sair quentinho do forno.

“Perceber em algo tão simples e corriqueiro, como o cozinhar, um caminho de sabedoria e de construção é para poucos, para aqueles que sabem se enxergar”

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Minha relação com a Oficina Escola vem da paixão por culinária que começou na infân-cia, ao conviver com minha avó e minha mãe na cozinha, e da convicção de que cozinhar pode transformar mais que alimentos. É ex-pressão de afeto e generosidade, que pode mo-dificar vidas e diz muito sobre quem somos e de onde viemos.

Sempre que chegava da escola com meus irmãos, no meio da tarde, encontrava a mi-nha avó na cozinha preparando nosso lan-che. Ela tinha origem americana-alemã, era uma mulher dura e severa consigo mesma e com os outros, mas que sabia demonstrar seu afeto cozinhando. Ali, entre as panelas, ela se transformava em uma pessoa amorosa que, ao longo de suas tardes, nos preparava pães e doces maravilhosos. Lembro-me bem dos so-nhos, que faziam jus ao nome, dos pãezinhos quentes e dos pasteizinhos de massa podre, recheados de geleia de morango.

O tempo passou, mas as lembranças dessas tardes adocicadas nunca saíram de mim. Até que, na época em que trabalhei no Centro de Voluntariado de São Paulo, meu caminho se cruzou novamente com o cozinhar. Conheci dois projetos ligados à culinária: um na favela

do Jaguaré, de capacitação de jovens para tra-balhar com chefs de cozinha, e que depois se tornaria a “Gastromotiva”, e o outro, “Alimen-te-se bem por R$ 1”, do SESI. Vi nessas propos-tas a perspectiva de agregar muito em termos sociais: capacitação para o trabalho, inclusão social, redução de desperdício de comida e melhoria de conhecimentos sobre nutrição, beneficiando a saúde.

Alguns anos depois, como conselheira da Fundação Tide Setubal, quis contribuir com nossos objetivos trazendo algum projeto nes-sa área. Naquele momento, estávamos atuan-do na região de São Miguel com o Programa Ação Família, que desenvolvia várias oficinas com as comunidades. Ali, identificamos a pos-sibilidade de parceria com o SESI para levar o caminhão-oficina, equipado com uma cozi-nha, e oferecer o curso “Alimente-se bem por R$ 1” para o público do entorno do CDC – Tide Setubal.

A adesão nos surpreendeu: foi muito dis-putado e me lembro de os monitores comenta-rem que os alunos tratavam a apostila de re-ceitas com muito cuidado, valorizando aquele material, que seria dado àqueles que tivessem frequência mínima de 80% do curso. A partir

Memórias & afeto

APRESENTACÃO

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dessa experiência, decidimos implementar um projeto mais perene nessa área e fomos buscar caminhos para captar recursos – e assim montar uma cozinha no Galpão de Cultura e Cidadania. Inicialmente, o espaço oferecia módulos básicos, como confecção de salgadinhos e bolos. Com o passar do tempo, evoluiu muito, tendo contado até com algu-mas aulas especiais de nossa grande parcei-ra, a chef Mara Sales.

Ao longo desses anos, muitas mulheres tiveram a oportunidade de frequentar a Ofi-cina e perceber que se aventurar nesses mó-dulos era como abrir uma caixa de surpresas: ali puderam se reconhecer como mulheres capazes de realizar algo significativo, recupe-rar sua autoestima, escolher novos caminhos e possibilidades. Algumas conseguiram, in-clusive, independência financeira.

O ato de cozinhar lhes trouxe a possibili-dade de ser escutada, de dividir experiências, de se identificar, de ter uma vivência em um local acolhedor, só com outras mulheres. Em suma, de criar um espaço e um tempo só delas.

Nada melhor do que registrar as histó-rias dessas mulheres para celebrar os dez anos desse projeto. Foi assim que nasceu a

ideia deste livro. Para que ele se tornasse re-alidade, propusemos a realização de uma ofi-cina de escrita. Nela, pudemos ouvir vários depoimentos emocionantes, histórias inspi-radoras, com muitos momentos de dificul-dades, mas também de superação. Creio que todas que participaram saíram fortalecidas e confiantes para prosseguir nesse caminho de transformação, mudando suas vidas, de suas famílias e comunidades.

Como conselheira da Fundação, me sinto gratificada por saber que ajudamos a ressig-nificar a vida de várias pessoas que por ali passaram de uma maneira bonita e potente. Olhando, com respeito e afeto, para o poten-cial delas, e não para a carência. Mostrando a elas que são capazes de ser e de realizar muitas coisas.

ro sE n ugE n t sE t u b a l Conselheira da Fundação Tide Setubal

“Ao longo desses anos, muitas mulheres tiveram a oportunidade de frequentar a Oficina e perceber que se aventurar nesses módulos era como abrir uma caixa de surpresas: ali puderam se reconhecer como mulheres capazes de realizar algo significativo”

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O COMEÇO

DE TUDO

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A frase é de Rose Nugent Setubal, conselheira da Fundação Tide Setubal e uma das responsáveis pela Oficina de Culinária ter saído do espaço do sonho e ter ocupado o lugar da presença. Rose sempre olhou com simpatia projetos que transformavam a vida das pessoas por meio da gastronomia e acreditava que algo assim poderia ser possí-vel no Galpão, espaço em São Miguel Paulis-ta, no Jardim Lapena, na Zona Leste de São Paulo, onde já aconteciam projetos e ações capitaneados pela Fundação Tide Setubal. Foi ela quem alimentou a ideia deste espaço de ensinar a cozinhar dentro do Galpão e quem buscou os recursos e parcerias para que a Oficina nascesse, o que aconteceu em julho de 2009. E o que a ajudou nessa certe-za de necessidade de um espaço para o co-zinhar foi uma pesquisa feita entre as pes-soas que frequentavam, naquele tempo, o Galpão, pelo Programa Ação Família. Nesse material, descobriu-se que muitas mulheres

acreditavam que poderiam ganhar mais ou ajudar nas despesas da casa se soubessem cozinhar – vendendo comida ou trabalhan-do com isso. Estava aí um ótimo motivo para fazer o sonho acontecer: ser caminho para essas pessoas darem passos mais largos na vida por meio dos aprendizados que vi-nham da cozinha.

O primeiro parceiro foi o Sesi, que levou para a cozinha do Galpão professores e a técnica do ensinar – o canal de divulgação inicial era, além do tradicional boca a boca, o jornal Metrô News, distribuído no metrô. “Foi importante porque trouxe credibilida-de para o espaço quando ele ainda dava seus primeiros passos. Conseguimos, por meio dessa parceria, levar o nome da oficina-es-cola para outros bairros e assim veio gente de muitos territórios aprender no Galpão de São Miguel”, conta Wagner Luciano da Silva, ou Guiné, como é conhecido na Fun-dação e na vida. A história de Guiné, aliás, se

“Cozinhar é um ato de afeto, de entregar algo para o outro e o acolher por meio da comida. É também uma maneira de a pessoa dizer para si mesma: consigo, independentemente da minha situação”

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cruza e se confunde com a Oficina Escola de Culinária. Ele começou a trabalhar na Fundação para atuar no Programa Ação Família, mas logo se transformou no elo de conexão e de construção da Oficina. A parceria com o Sesi se manteve por dois anos até que se percebeu a necessidade de seguir com as próprias pernas. Além de ensinar a técnica, a oficina precisava ser um espaço de acolhimento. “Sentí-amos que precisávamos ter um maior entendimento sobre a realidade daque-las pessoas, a origem, a trajetória. Era necessário ir além da técnica e somar a isso um olhar humanizado”, diz Guiné. Foi nesse momento que duas pessoas

essenciais para compor essa história entraram: Lúcio Roberto Batista da Sil-va, o Lúcio, e Daniela Romão da Costa, a Dani. Os dois, naquela época, tinham negócios apoiados pelo Fundo Zona Les-te Sustentável, um programa de recurso financeiro e apoio de formação para em-preendedorismo, por meio de editais. Os dois tinham formação em gastronomia e foram convidados para fazer parte da Oficina como professores. Dani dando aula de confeitaria, ensinando a prepa-rar docinhos e bolos, e Lúcio, de salga-dos. Juntos, eles davam início à forma-ção que se transformou no carro-chefe da Oficina: o kit festa.

Juri reunindo para avaliação e finalização de um dos cursos da Oficina Escola

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Os primeiros cursos da Oficina eram rá-pidos, de duração de, no máximo, quatro au-las: bolos, tortas, comidas típicas regionais, salgados. Sempre tendo como fio condutor a qualidade. “Salgados e bolos sempre foram nossos cursos mais concorridos. Podíamos colocá-los 15 vezes na grade que sempre lo-tava. Sem contar as pessoas que faziam 15 vezes o mesmo curso”, revela, sorrindo, Gui-né. Naquele momento, era possível repetir quantas vezes quisesse a mesma aula. Hoje, não mais. Isso é feito para garantir uma ro-tatividade maior e oferecer a oportunidade de aprender para outras pessoas – todos são gratuitos. As turmas iniciais eram ex-clusivas dos participantes do Programa Ação Família, oferecido para os moradores da região de São Miguel, no Galpão. Mas, como lembra Guiné, “nunca foi só sobre co-zinhar, era também um espaço terapêutico, de encontro, para se relacionar com o outro, ampliar a rede de amigos, ocupar o tempo com uma atividade lúdica, saudável. Era uma rede de apoio para essas mulheres”. E completa: “Lúcio e Dani também sempre foram mais do que professores, eles são par-ceiros. Não iam para o Galpão só para dar aulas, mas se envolviam com as pessoas. Eles entendiam a dinâmica das pessoas, os problemas. Tornaram disponível a agenda e os telefones para muitas delas. Os dois iam muito além do espaço e foi assim que se ini-ciou uma relação próxima e orgânica, que ultrapassou a troca de receitas. Era uma troca de experiência de vida”.

A preocupação com a realidade das pes-soas da região sempre deu o tom dos cursos da Oficina Escola de Culinária, no Jardim Lapena. Os cursos oferecidos sempre tive-ram relação com o cotidiano delas: bolos, salgados, técnicas de congelamento, além das aulas especiais para datas específicas, como a Páscoa. Apesar desse olhar tão apu-rado, no início, alguns tropeços acontece-ram. Um exemplo lembrado por todos foi a compra de equipamentos industriais para a cozinha – batedeira, liquidificador, tudo grande. Depois que tudo estava ali foi que se deram conta de que aqueles acessórios não combinavam com a vida de todo dia. E os equipamentos foram trocados por algo mais simples, que poderia estar numa cozinha da casa de qualquer um. Outro desafio foi adaptar as receitas não apenas para a reali-dade de todos, mas para a bagagem de cada um, acolhendo ali as dificuldades de leitura, por exemplo. Foi um trabalho de construção delicada e atenta, a partir da troca entre alu-nos, professores e equipe técnica.

Com o tempo e o caminhar da oficina, as alunas mais frequentes – e que faziam re-petidamente os cursos – começaram a pe-dir um cardápio mais amplo de aulas, com formações mais profundas. Elas queriam ir além. Foi assim que nasceu o primeiro cur-so de confeitaria profissional, o Básico de Confeitaria, para aquelas que precisavam realizar encomendas com uma variedade e quantidade maior de doces e com bolos de tamanhos mais generosos. Quem iria ensi-

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nar? Dani, claro. A Lúcio coube a tarefa de pensar em um curso que pudesse ajudar as alunas a fortalecer seus negócios – sim, muitas já vislumbravam na cozinha um ca-minho – com ensinamentos sobre entrada e saída de recursos, controle de estoque, ges-tão e como, afinal, poderiam chegar ao pre-ço final do que preparavam. Pararam por aí? Não. Nessa mesma época, o ano era 2012, nasceu também o curso de panificação.

Ao dar passos mais largos, foi necessário se aproximar também daqueles que pode-riam dar suporte para a nova caminhada. E foi assim que aconteceu a aproximação com o Sebrae e o Fundo Zona Leste Sustentável, por exemplo. Tudo feito com o olhar para

aquelas mulheres que queriam ir mais lon-ge – e elas não só queriam como foram bem mais longe do que supunham. “Hoje, esta-mos avançando para oferecer uma forma-ção para pessoas que já enxergam a comida como um negócio”, revela Guiné. “A história da oficina faz parte dessas mulheres e essas mulheres fazem parte da história da ofici-na. Fomos transformando a Oficina Escola a partir de cada pedido”, complementa. Foi assim que surgiu o Curso de Gestão, com dez aulas concebidas a partir da metodologia do microempreendedor paulista. As aulas aconteceram dentro da Universidade Cru-zeiro do Sul. Mas essa foi uma experiência única, que não se repetiu.

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Em 2013, veio mais uma etapa impor-tante para a Oficina. Além do apoio de Rose Setubal, que seguiu ao longo dos anos dan-do suporte para a continuidade do espaço, a Fundação conseguiu a aprovação do pri-meiro edital e a captação de recursos junto ao Instituto Lojas Renner. Isso ampliou a capacidade dos cursos da Oficina Escola. “Crescemos, expandimos os cursos, que eram de dois meses, para quatro. E come-çamos a ter mais experiência com aulas mais elaboradas e especiais. Isso começou a atrair outras pessoas da cidade”, recorda--se Guiné. Foi nesse mesmo período que a Oficina conquistou também a parceria do Instituto Consulado da Mulher, que apoia programas voltados para o fortalecimento de mulheres que empreendem nas perife-rias. “Abriram um edital em São Miguel Paulista e começaram a operar, fazendo um acompanhamento com um capital semente e mais uma mentoria para estruturação dos negócios”, explica Guiné. Assim, por três anos consecutivos, a Oficina contou com o Instituto Lojas Renner, que trouxe para as alunas uma metodologia de forta-lecimento de empreendedores – foram três turmas que se formaram por essa metodo-logia e puderam, a partir disso, entender e estruturar melhor seus negócios ligados à comida – e de parceria com o Consulado da Mulher.

Dez anos depois, a cozinha se renova. No final de 2018, fechou por alguns meses para ser reformada e, a partir daí, ter mais

espaço para um novo movimento, o de se-guir ensinando os princípios básicos da culinária, mas, também, apoiar e apontar caminhos para quem percebe na cozinha um lugar de crescimento. “O Galpão vai seguir tendo muita força nessa agenda de empreendedorismo, com seu poder mobi-lizador, de geração de renda e de espaço de conexões, mas mantendo o acolhimento, com cursos introdutórios. É um espaço, aci-ma de tudo, terapêutico”, acredita Guiné. Os cursos seguem abertos e gratuitos para todos e todas (homens e mulheres), com mais de 16 anos. E qual o horizonte para os próximos dez anos? “Manter a relação de confiança com a comunidade. A Oficina Escola nunca foi da Fundação. A Fundação trouxe a ideia, o projeto, implementou, mas o cuidado daquele espaço para que pudesse existir ao longo do tempo só aconteceu pela parceria com as pessoas da região, em espe-cial aquelas do Jardim Lapena, onde fica o Galpão. É um espaço cuidado por todos”, fi-naliza Guiné, para quem a comida carrega o poder da celebração. Para Rose Setubal, a Oficina tem na sua natureza a longevidade. Por quê? “Porque ela traz autoconfiança, o sentimento de que eu posso, eu consigo. É para si, é para se olhar, conectar-se e ver nisso um caminho de possibilidades a par-tir de algo que não é, teoricamente, comple-xo. É algo que sempre esteve presente na vida dessas pessoas, no entorno. A Oficina transforma vidas e isso faz com que a mu-dança ao redor também aconteça”, acredita.

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Não dá para contar a história da Ofici-na sem falar dos professores Dani e Lúcio. Os dois têm papel importante nisso tudo. Para as alunas, eles não só ensinam, mas apontam ca-minho, as instigam a dar passos mais largos e acolhem quando o momento pede. Quem pas-sa por suas aulas fala de ambos com carinho e admiração. Tanto Dani quanto Lúcio têm na cozinha uma história que se confunde com a da própria vida. Não é lugar só para estar, mas também para ser.

Daniela Romão começou a cozinhar em casa, com a mãe, que fazia doces, bolos e sal-gados para fora. Ela preparava e Dani vendia. Mais tarde, a mãe abriu um bufê e, quando as encomendas eram maiores do que a sua capa-cidade de produzir, era a filha quem a ajudava na empreitada. “Mas eu achava que meu cami-nho era outro. Não enxergava que a comida poderia fazer parte da minha jornada”, diz.

Foi estudar teatro, mas trabalhava, veja só, na cozinha de restaurantes – porque era o que sabia fazer – para pagar as contas. Foi a mãe quem a ensinou a confeitar, a preparar lindos e delicados doces finos, a decorar bolos com pasta americana. Até que, em um determi-nado momento, a mãe precisou de uma ajuda extra e lá foi a filha dar apoio. O pagamento foi tão robusto que Dani começou a entender que a cozinha podia ser, sim, meio de vida. A mãe, claro, a incentivou a fazer gastronomia. E lá foi ela. Depois da faculdade, seguiu tra-balhando com comida até que seu caminho se cruzou com o da Fundação Tide Setubal e com o da Oficina, sempre nas aulas de confeitaria. “A confeitaria, os doces são como um elo de conexão com a minha mãe”, diz. Mas como é dar aula na Oficina? “Minha linguagem tem que chegar a todas, incluir todas. Muitas vão fazer o curso porque estão numa situação de

QUEM ENSINA

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depressão, precisam de uma cura. E a gas-tronomia é um veículo para que se abram, comecem a falar, e é tão lindo de ver como uma vai ficando íntima da outra... Enquanto cozinham, elas vão se fortalecendo e perce-bendo que não estão sozinhas, que perten-cem a um grupo”, reflete. Dani conta que a força e a sensação de que podem realizar algo surge de uma maneira simples, en-quanto cozinham. “Quando veem um doce bonito, muitas deixam escapar um ‘nem parece que fui eu que fiz’. Elas chegam, no início do curso, com uma autoestima baixa, mas, ao longo das aulas, percebem que são capazes, que podem ganhar dinheiro com aquilo e, a partir daí, entendem seu valor. Elas começam a se enxergar.” Um exemplo disso é a transformação, visível, que acon-tece ao longo do curso. No primeiro dia de aula, muitas chegam com um avental sim-ples. Depois, a vestimenta vai ganhando graça e cor. E elas aparecem com roupas vis-tosas, coloridas, bonitas. Algumas chegam a comprar um dólmã, uniforme usado por cozinheiros profissionais. Querem estar bo-

nitas para as selfies na cozinha, para postar nas redes sociais e mostrar para o mundo aquilo que são capazes de realizar – e, em consequência disso, conseguir suas pri-meiras encomendas. “Aquilo que elas não enxergavam na casa delas, que era a pane-la, a colher, que era algo marginalizado, des-valorizado, começam a olhar de uma outra forma. Compram os utensílios e fotografam. Tiram fotos dentro da própria cozinha. Pas-sam a ter orgulho daquele lugar e daquele fazer”, comenta a professora.

Daniela Romão, ou a “professora Dani”, como é carinhosamente chamada pelas alu-nas, tem história e caminho parecido com o de suas pupilas: nunca achou que a cozinha ou a confeitaria a levaria para esse lugar de realização. “Quando entro na sala de aula, tenho a consciência de que não vou ensinar a fazer bolo, mas a fazer outra coisa. O bolo, o doce, é a ferramenta que tenho. Porque o que se aprende lá é outra coisa. É sobre a vida. As alunas voltam a ter contato com a beleza, que podem fazer coisas lindas. Que elas podem. Elas aprendem a estar juntas,

“Minha linguagem tem que chegar a todas, incluir todas” Daniela Romão

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“A alimentação tinha trans-formado a minha vida, e na Oficina eu via essa opor-tunidade de transformar a vida do outro” Lúcio Roberto Batista da Silva

aprendem a força do coletivo. Numa sala de aula tem desde aquela que já vende comida e está indo para aperfeiçoar até a outra que quer aprender como não queimar o bolo. Uma vai aprendendo com a outra. É a força da partilha”, pondera Dani. “A cozinha, hoje, é o que me move”, resume.

Lúcio Roberto Batista da Silva, o profes-sor Lúcio, também tem trajetória similar. Na sua casa de infância, a cozinha sempre foi ponto de encontro e de união. Ele vem de uma família em que as mulheres – mãe e tias – cozinhavam muito bem. E, quando se juntavam, o resultado era uma mesa far-ta, com todos à sua volta. Lúcio se lembra da mãe fazendo bolo e da magia que era vê-lo se transformar no forno. Foi a cozinha, ali-ás, que financiou a educação de Lúcio e do irmão. A mãe preparava, todos os dias, cem sanduíches para que levassem para a escola. O lanche era vendido aos colegas no horá-rio do recreio e os irmãos sempre voltavam para casa com a sacola vazia. Mas o pessoal da cantina começou a se incomodar com a concorrência e Lúcio precisou parar de ven-

der os sanduíches. Mas isso não desanimou os irmãos Batista da Silva, nem a mãe deles. E a dupla passou a vender trufas no bairro de São Miguel, onde moravam. Na hora de decidir qual faculdade fazer, Lúcio viu com naturalidade a possibilidade de fazer gas-tronomia, e foi. “Lá se abriu um novo mundo para mim. As coisas começaram a fazer sen-tido”, diz. Ao longo da faculdade, trabalhou em restaurantes e, depois, com eventos cor-porativos até que começou a dar aulas para a Oficina, no Galpão. “A alimentação tinha transformado a minha vida, e na Oficina eu via essa oportunidade de transformar a vida do outro.” Lúcio se lembra de Dona Ma-ria, que na aula sobre como elaborar uma fi-cha técnica percebeu que os bolos que fazia para vender estavam baratos demais. “Mais do que a técnica, as aulas na Oficina fazem bem para a vida delas”, afirma. “Naquele es-paço da sala de aula, elas também percebem que estão sendo olhadas e cuidadas. Dentro do seu território, que é agressivo, difícil, existe alguém que está ali por elas. Tem o acolhimento, o lugar de refúgio, um ponto

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de fuga e de válvula de escape de uma reali-dade feroz”, fala Lúcio sobre a importância da Oficina na vida das alunas. “Ali, elas são acolhidas sem serem julgadas. Eu as vejo crescerem. Não é só uma aula de culinária, é uma transformação social, é um casulo de onde sai uma borboleta. Eu estou sempre tentando tirá-las desse olhar da vitimização. Chegar ao final de um curso é o primeiro ‘posso’ da vida delas”, diz lindamente. O que é dar aula de culinária na Oficina? “É perce-ber que meu trabalho ganha mais sentido. Tenho muita gratidão em vê-las seguir em frente”, responde com a firmeza de quem sabe que cozinha é território de realização, mas também de sentir.

A cozinheira Mara Salles (ela não gosta de ser chamada de chef, mas de cozinhei-ra) sabe muito bem disso. Mara é uma das principais chefs do país. Ela gosta de prepa-rar comida brasileira e se tornou uma das grandes divulgadoras dos nossos pratos por aqui. Carrega títulos e prêmios, apesar de não gostar de ostentá-los. É proprietária do restaurante Tordesilhas, de comida brasi-

leira (claro!), em São Paulo, e parceira antiga da Oficina, desde o início de tudo. Mara gos-ta de comida boa, simples e bem-feitinha. E gosta de difundir esse olhar em aulas espe-ciais, que ministra pelo menos uma vez ao ano na Oficina Escola – aulas para lá de con-corridas e esperadas. Mas engana-se quem pensa que ela ensina algo sofisticado ou gourmet. Mara é dessas pessoas que gostam de mostrar como fazer o melhor arroz e fei-jão da vida. “O propósito das minhas aulas na Oficina não é dar capacitação, não tenho essa capacidade. Para mim, a cozinha é lu-gar para transformar a vida pessoal e pro-fissional”, diz Mara, para quem a cozinha sempre teve conexão com o afeto e a vida fa-miliar. “Sabe aquela história do medo que as mães têm de que a criança possa ser atraída pelo tráfico, para o crime, na volta da esco-la? Eu achava e ainda acredito que a comida feita em casa pode servir grandemente para evitar isso. Desde que eu era jovem, a casa me chamava. Todas as sextas, eu ia direto para casa, depois da aula, porque era o dia de comer sardinha que a minha mãe fazia.

“Para mim, a cozinha é lugar para transformar a vida pessoal e profissional”Mara Salles

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Cozinh a de a fetos — O prOjetO 19

Comida quente, fazer um feijão, um pão com manteiga, um caldo para aliviar a dor do ou-tro, um carinho. A comida traz esse gestual de carinho, de proximidade e transforma a vida. É uma forma de afeto”, acredita. É esse viés do afeto que Mara leva para a Oficina, dando aulas da “cozinha do dia a dia”, como ela faz questão de dizer. “Ensino algo que elas podem fazer rapidamente, com o que tem a mão. Quero tirar esse bicho-papão de que sem dinheiro você não faz comida boa. Dá para fazer algo muito bom com arroz, fei-jão, linguiça e ovo. Tem um apelo mais emo-cional do que você ensinar a fazer reapro-veitamento”, conta. Um dos pratos que gosta de ensinar, revela Mara, é o arroz. Mas não

qualquer um, ela gosta de mostrar como fa-zer um arroz bem-feito, com gosto de quero mais, daqueles que dão vontade de comer puro, como prato principal. “Fica uma de-lícia”, garante. O resultado? “Uma aluna me disse, depois de fazer a aula do arroz: ‘meni-na, sabe que depois da sua aula nunca mais joguei arroz fora?’”, responde Mara. “Essa história, para mim, valeu todo o tempo do curso. Você precisa fazer uma comida que te emocione. Gosto desse resgate da comida simples, cotidiana”, conta ela, que é filha de um pai lavrador e aprendeu, desde cedo, a cozinhar aquilo que plantava. “Trouxe isso para a minha profissão, a comida como um elo de conexão com a vida.”

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Cozinh a de a fetos — O prOjetO 21

A Oficina Escola de Culinária é caminho para as centenas de pessoas que já passaram por sua cozinha. Ensina e mo-difica não apenas as alunas e alunos, mas também quem ali está, trabalha, se dedica ao espaço e às pessoas.

Lucia Vianna Saboya Salles Real Ama-deo é uma delas. Ela coordenou o programa Ação Família de 2009 a 2016. Quando come-çou a atuar no Galpão, a cozinha da Oficina já funcionava a todo vapor. De cara, ela se apaixonou pelo lugar. “Fiquei encantada pela oportunidade que ela dá para as mu-lheres, o que oferece para a comunidade. Algumas pessoas vão para sociabilizar, ou-tras para transformar aquilo num negócio. E a Oficina abre portas e fortalece a autoes-

tima”, acredita Lucia. Para ela, ali é um espa-ço mágico. “Dentro de toda vulnerabilidade em que estão inseridas, elas aprendem, têm um espaço de escuta, colocam ali seus dons.” Sim, a cozinha do Galpão é um espaço em que delicadeza e força se encontram. “As alunas chegam, deixam a bolsa, a sacola, do lado de fora, e entram ali para ter um momento delas. Dignidade, respeito. Elas sabem que aquele espaço é para elas. Se vão com alguma criança, o pequeno fica em um outro espa-ço, como o Ponto de Leitura, participando de uma oficina infantil. Ali, elas são ouvidas. E por isso as transformações acontecem o tem-po todo”, conta Lucia de um jeito delicado e, ao mesmo tempo, profundo. Qual o papel da comida nisso tudo? “Aprendi muito com os

UM CAMINHO DE POSSIBILIDADES

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professores e com a Mara (Salles). Ela sem-pre falou desse prazer do cozinhar, na comi-da simples, do arroz, do feijão. A Mara me mostrou essa paixão que ela tinha em fazer um arroz, um feijão, com amor, com afeto. Isso eu aprendi ali”, conclui.

O Ponto de Leitura, citado por Lucia, tem, aliás, uma história que se entrelaça o tem-po todo com o da Oficina. Ambos existem há dez anos. Um existindo ao lado do outro, numa simbiose linda de se ver. O lugar é co-ordenado por Antônia Marlucia Martins, Gomes, a Malu, que fala do local de leitura que existe dentro do Galpão com o mesmo orgulho de uma mãe ao citar as qualidades de um filho. “O Ponto de Leitura é o coração da comunidade, é um ponto de terapia ou um ponto de luz, um lugar que aproxima as pessoas da leitura, dos livros, mas também um local seguro de escuta. Gosto que as pes-soas entrem e mexam nos livros sem receio”, diz ela. Malu cria, ao longo do ano, uma série de oficinas e outros projetos que incluem lei-tura e culinária. Todos os anos, nos meses de novembro, ela organiza o Festival do Li-vro e de Literatura de São Miguel Paulista. Desse festival nasceu, por exemplo, livretos sobre a relação entre a comida, a leitura e o afeto. “Nos reuníamos com as mulheres da oficina para falar sobre as lembranças que elas traziam relacionadas à comida e à vida, e depois transformamos isso em histórias”,

recorda Malu. “Ao ter contato com os livros, elas se descobrem leitoras e, ao ver suas his-tórias ali, entendem o valor que têm. É tam-bém um caminho para se abrir e falar de si. E falar de si é algo muito difícil”, pontua ela com sabedoria. Malu também gosta de dei-xar sempre à vista livros que falam sobre comida, como os da poetisa Cora Coralina, para que as mulheres, antes de entrarem na Oficina, possam folhear. “Faço isso para ins-tigá-las. O livro nutre, então ajustamos dois prazeres: a comida e a leitura. Um alimenta o corpo e o outro, a alma”, finaliza.

Quem também aprendeu e ainda apren-de na pequena cozinha afetiva da Oficina Escola é Talita Fernanda Ferreira Ramos, agente de proteção da Fundação, que orga-niza a lista de presença, as apostilas e au-xilia os professores. “Na Oficina aprendi que aquele espaço era muito mais do que cozinhar. Às vezes elas chegavam dizendo que o médico tinha recomendado uma tera-pia, uma atividade de integração. Decidiam fazer as aulas de culinária e, ao longo do curso, dava para ver um fortalecimento. Elas iam para curar um problema do corpo, mas encontravam a si mesmas na cozinha. Curavam a alma. Algumas se reconstruíam. Entravam com a cabeça baixa, não conver-savam, e saíam do curso falando com todo mundo, passavam a entrar na cozinha com a cabeça erguida pelo simples fato, às vezes,

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de ter conseguido fazer um bolo de aniver-sário para o filho. A comida para mim se tornou, a partir do que vivenciei nas ofi-cinas, um momento de prazer, de troca, de aconchego”, diz Talita, que fala com orgulho e brilho nos olhos sobre aquilo que realiza todos os dias no Galpão.

Como diria Guiné, desde o início dessa história, há dez anos, a Oficina não nasceu apenas para ensinar a cozinhar. Ela sempre teve uma função maior – e ainda tem – na vida das pessoas que passam por ali. Não é só sobre cozinhar, mas sobre ser uma rede

de apoio, de escuta, de acolhimento – feito passarinho que precisa se refazer no ninho para, depois de fortalecido e alimentado, poder voltar a voar. É sobre crescer, saber, conhecer, aprender mais sobre elas mes-mas, sobre sua capacidade de realização e, assim, munidas de tantas certezas, seguir com mais garra, coragem e amor por elas mesmas e pelo outro. Porque, como bem acredita Mara Salles, a comida é também uma conexão com a vida.

Vidas que serão apresentadas nas dez histórias a seguir.

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NO SABOR DE UMA

SAUDADEAna Teixeira

3 1 A N O S

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O barulho da panela de pressão e o cheirinho vindo da cozinha não deixavam enganar: era dia de casa cheia. Com uma mistura de mandioca e outros ingredientes, a avó de Ana Cláudia preparava bem rapidinho o famo-so bolo de panela de sua infância, para receber a família, no interior de Per-nambuco. Quando o cheiro começava a se espalhar pelos quatro cantos da casa, até chegar ao portão que dava para a rua, todo mundo já sabia que muito riso, conversa fiada e brincadeiras em torno da mesa tomariam conta do dia. Hoje Ana se lembra de tudo como se não existisse distância nem tempo, e com o carinho de quem tateia com delicadeza as gavetas guardadas da memória.

Ana saiu do Nordeste em 2009, em um desejo de que as coisas fossem di-ferentes da forma como se desenrolavam por lá até então. Na época, ainda sem nem imaginar o quanto a vida se transformaria, Ana trabalhava como doméstica para uma família em Pernambuco, e ouvia vez ou outra os chama-dos insistentes da cunhada, que já morava em São Paulo e tinha o desejo de reunir por perto todos os parentes mais próximos. Quando decidiu fazer as malas e partir, deixando para trás um pedacinho da família e grande par-te do coração, Ana não foi só: teve o apoio do marido – que embarcou junto rumo à nova vida – e dos outros familiares que já moravam há mais tempo na Zona Leste paulista: a sogra e o sogro, a cunhada, amigos. Morando assim, bem pertinho uns dos outros, era como se aquela lembrança de união que sempre fez parte de sua infância ainda prevalecesse, só que com outros per-sonagens, em um cenário bastante diferente daquele de sua lembrança, mas preparado com carinho para receber uma nova história que começava a se desenhar diante dela.

Até aí, Ana se virava na cozinha da forma como aprendeu sozinha: pelo olho e pela curiosidade, sem seguir muita receita. Além da avó e sua vocação para preparar bolos e lanches com tanto apreço, de uma forma tão rápida fei-to mágica, na casa de Ana ninguém nunca gostou de cozinhar. E nem adianta-va pedir com jeitinho: a mãe, Dona Maria, não se rendia de maneira alguma

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à ideia da mudança de cardápio. Se o assunto fosse doce ou sobremesa, então, aí é que ela desconversava mesmo. Mas o gosto infantil por bolos levou Ana, ainda criança, a arriscar em sua primeira aventura na cozi-nha. Aos 7 anos, a pequena juntou uma porção de ingredientes que tinha em casa, em uma massa que ficou tão mole, que nem sequer cresceu. Mas Ana não desistiu. Enquanto não viu pronto o seu primeiro bolo de fubá, o preferido de um dos irmãos, a menina não sossegou: continuou misturan-do ingredientes e sonhos nas panelas de casa, até conseguir assar o bolo perfeito (e saboroso) que tanto queria.

Por um longo espaço de tempo, a vida foi assim: era só a mãe sair e do-brar a esquina que os quatro irmãos corriam para mexer nas coisas da cozinha e descobrir novas travessuras. Nem a cabra que vivia no quintal da casa da família Ribeiro escapou dos experimentos das crianças. Junta-vam-se os irmãos, amarravam as pernas da cabrinha e tiravam o leite que conseguiam, para fazer um pouco de doce e deixar o dia mais gostoso. A bagunça era tanta que bastava a cabra ver de longe um dos quatro que logo saía correndo para fugir e se esconder. E aí, só mesmo muita disposição para conseguir encontrá-la de novo e não levar de volta uns bons coices.

Esses traços e sorrisos de uma infância divertida, cheia de descober-tas e aventuras, não se apagaram nem diante da velocidade do tempo. Fi-caram ainda mais fortes e também se tornaram os principais responsá-veis por preservar dentro do coração de Ana a certeza de que, acontecesse fosse o que fosse durante o percurso da vida, a casa guardada entre tantas lembranças e a saudade das coisas que pareciam passageiras seriam sem-pre um alento e uma força para continuar seguindo adiante.

Caixinha de surpresasE assim aconteceu. A partir dessas pequenas delicadezas e memórias, Ana foi construindo sua força entre doses diárias de coragem, de uma maneira só dela. Tão ansiosa e agitada que sempre foi desde bem peque-na, assim que chegou a São Paulo deu logo um jeito de começar a traba-lhar como caixa da padaria que fica em uma espécie de grande mercado, na região de São Miguel Paulista. Ali, no espaço em que alguns de seus familiares também trabalhavam (e ainda trabalham), podia se encontrar de tudo: carnes, utensílios, uma pequena mercearia e a panificadora, que até hoje serve pão quentinho desde bem cedo, todos os dias. O trabalho que acolheu Ana era quase uma extensão de casa, já que boa parte de seus dias ela passava ali, entre os números das calculadoras e o cheirinho de pão vindo da cozinha.

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Só que antes mesmo que tudo mudasse de direção outra vez, a vida lhe trouxe um presente mais doce que os recheios dos bolos de pote que hoje ela faz para vender aos fins de semana. Logo ali, nesse primeiro ano de tantas mudanças, mais uma marcaria o coração de Ana para sempre: a notícia da chegada de sua primeira filha. Aí, foi um misto de emoções tão grande, mas tão grande, que Ana, por muitos dias, só sabia chorar de alegria e de dúvidas. Foi também nesse período que até pensou por várias vezes em voltar para a casa da mãe e em suas formas de viver de um jeito mais leve, sem tanta pressa nem tantas distâncias como em São Paulo. “Aqui (em São Paulo) é tudo demais: tudo acontece muito rápido. E nada de vida tranquila. Em Pernambuco, a vida era difícil, mas tudo era mais perto. Inclusive minha mãe, de quem eu senti e sinto tanta falta.”

Mas Ana firmou o passo e não partiu. Continuou escrevendo seu caminho na cidade grande e, nove meses depois, a pequena Camille chegava para lhe ensinar outras formas de amor, outras cores, cheiros e sabores. Hoje, com 9 anos, a menina é a maior companheira de Ana. Ajuda nas tarefas de casa, mexe nas panelas, adora quebrar os ovos, protagoniza grandes descobertas atrás do fogão e está sempre por perto para experimentar ou aprovar algu-ma receita que sai da cozinha de casa, principalmente os doces e cupcakes que a mãe faz sempre que não está na padaria cuidando das fornadas de pães fresquinhos.

Após o período de licença-maternidade, logo que voltou ao trabalho na pa-daria, Ana assumiu o cargo de ajudante de padeiro, mesmo sem saber direito o que fazer. Mas de tanto observar o trabalho, ela aprendeu a sovar a massa, a assar cada pão na temperatura e no tempo corretos e a acompanhar o período de crescimento de cada produto. Aos poucos, aquele universo de misturar farinha e ovos se tornou mais claro e familiar em seu caminho, quase como uma preparação para um futuro não muito distante. Mais precisamente, para um domingo de Dia das Mães, em que o padeiro, o mesmo a quem ela auxiliava todos os dias já havia algum tempo, não foi trabalhar: desapareceu sem dar notícias, deixando para trás toda a produção do dia e uma padaria inteira sem um pãozinho sequer.

Quietinha e com um frio danado na barriga, já habituada à rotina de fabri-car primeiro as coisas salgadas para depois iniciar a produção doce e formar toda a vitrine, lá foi Ana, com a cara e a coragem, assumir por um dia a cozi-nha da padaria. Mas, às vezes, a prática (ou, literalmente, a mão na massa) é bem diferente da teoria. E, naquele dia, a primeira fornada de pães feitos por ela foi um desastre! Alguns cresceram demais, outros nem sequer fermenta-ram, alguns ficaram até bonitos na vitrine, mas nem tão agradáveis no sabor.

"Aqui (em São Paulo) é tudo demais: tudo acontece muito rápido. E nada de vida tranquila. Em Pernambuco, a vida era difícil, mas tudo era mais perto. Inclusive minha mãe, de quem eu senti e sinto tanta falta"

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Porém, como naquele tempo de infância em que seus bolos não cresciam, Ana persistiu por dias na tentativa de acerto na cozinha. E o prazo de uma semana sem o padeiro aparecer foi mais que suficiente para que ela aperfeiçoasse o que já sabia e se tornasse craque na produção da panificadora, função que do-mina e comanda até hoje, com maestria. “Hoje nem sinto mais o cheiro do pão assando, por costume do dia a dia. Quando tive férias a primeira vez e fiquei 20 dias longe da padaria, voltei e estranhei: lá de fora eu senti o cheiro de pão assando. O costume faz a gente deixar de perceber um pouco as coisas”. Mas quem passa pertinho da padaria, principalmente pelas manhãs, garante: de lá de dentro saem pães tão gostosos quanto o aroma que se espalha pelo lado de fora e toma conta da rua.

De dentro para foraQuando está em casa, Ana deixa os aromas só para a padaria e não faz pão caseiro nem para vender. Mas, assim como a avó ainda faz até hoje, ela adora preparar lanches e cafés para receber a família e os amigos: faz bolo, ham-búrguer, biscoito, suco, café e uma porção de guloseimas. Também nas horas vagas e nos finais de semana, quando não está na padaria, Ana prepara bolos por encomenda para festas, aniversários e todo evento em que o desejo maior é ter por perto afeto em forma de comida. É assim que consegue colocar em prática o que mais gosta de fazer, que é dar cara, cor e vida aos bolos que hoje saem delicadamente de sua cozinha, nesse movimento doce que ganhou seu coração lá no Galpão. Ana foi aluna logo nas primeiras turmas dos cursos de culinária e aprendeu ali vários truques de confeitaria. Quando chegou, por indicação de uma amiga, era quase Páscoa de 2010 e, mais que aprender sobre a temperatura correta do chocolate para os bombons, a aula despertou nela o desejo de conhecer mais coisas novas. E também se aperfeiçoar na arte que já morava bem dentro dela e só precisava de um empurrãozinho para ganhar vida do lado de fora.

Com o tempo, ali mesmo no Galpão, Ana passou por outros cursos, como o de confeitaria e decoração de bolos, panificação, massas e doces, além das aulas de capacitação, que foram tão importantes para o seu desenvolvimento profissional e pessoal. Afinal, aprender a precificar os produtos feitos por ela, a quantificar e medir os ingredientes, e a dar valor em seu próprio traba-lho, era algo novo em sua vida. Mas, bem aos pouquinhos, essa ideia de que as coisas precisam do espaço e do tempo delas para crescerem, assim como todos os pães fermentados, ganhou espaço em sua vida, junto com um ver-dadeiro amor por ela mesma e por cada coisa pequena que se viu capaz de realizar. “Antes eu era fechada, tinha uma cabeça muito parada, não corria

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atrás de muita coisa para mim. Hoje em dia, sei que eu posso fazer muito. Pos-so trabalhar fora, fazer minhas coisas dentro de casa, viajar sozinha, com minha filha ou podemos ir os três juntos. Antigamente eu não pensava assim. Hoje em dia, acho que a minha cabeça abriu.”

E tantos caminhos se abriram que, atualmente, quando se lembra da me-nina travessa que se aventurava pelos cômodos da antiga casa no interior de Pernambuco, sem nem imaginar que aqueles momentos de união e afeto seriam tão importantes em sua caminhada, Ana se emociona e sente não só saudade, mas também orgulho da mulher que se tornou e da história que con-tinua a escrever entre linhas cheias de propósito, encontro e sabores doces.

Morada de aconchegoPara curar um pouquinho essa tão sentida saudade, Ana tenta visitar os pais em Pernambuco a cada dois anos. É que quando ela – a saudade – aperta de-mais, nada, nem telefone dá jeito: é preciso sentir o gosto, o toque e o cheiro da presença. Os pais, já mais velhos, não se animam a voar até São Paulo. En-tão, quando chegam as férias, ela dá seu jeitinho de embarcar para seu lugar de afeto. É engraçado como facilmente misturamos do lado de dentro de nós alguns ingredientes que fazem as distâncias, as ausências e a saudade cres-cerem de um jeito lento, em fogo baixo para não queimar. E cada coração tem lá a sua maneira de identificar quando é hora de tirar a receita do forno e transformar tudo em abraço. Então, quando o encontro acontece, é só festa! “Tem dias em que eu ligo para a minha avó, que tem hoje 80 e poucos anos. E no telefone ela diz, brincando: ô minha filha, fiz café, você não quer um pouquinho, não? Aí eu respondo com o coração apertado: hoje não, vó. Deixa para outro dia”, diz. Nessas horas, a saudade ganha a forma das xícaras de café da infância, dos adultos sentados à mesa e das crianças todas no chão, esperando o bolo de mandioca ficar pronto em seus minutinhos de panela de pressão. Um tempo que não volta mais, mas que vai viver gravado para sempre na memória e no coração de Ana.

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30 Receitas — Cozinh a de a fetos

Torta salgada

Ingredientes

3 ovos

50 g de queijo ralado

200 ml de leite

100 ml de óleo

2 xícaras (chá) de farinha de trigo

1 colher (sopa) de fermento em pó

Modo de fazer

Coloque o leite, os ovos, o queijo e o óleo no liquidificador. Bata por três minutos. Depois adicione a farinha aos poucos e, por último, o fermento.

Para o recheio, a sugestão é frango com requeijão, frango com palmito ou atum. Coloque metade da massa numa forma untada, uma camada de recheio e depois cubra com o restante. Leve ao forno, pré-aquecido a 180 graus, por cerca de 30 minutos (até que a massa fique dourada).

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“Minha melhor lembrança de cozinha – e de comida – são as reuniões de família na casa da minha avó. Havia sempre muita gente, muitas brincadeiras e sempre muita comida: bolos, pipo-ca, gelatina, café. Só o que eu guardo mais forte na lembrança é o bolo de panela de pressão que mi-nha avó fazia e faz até hoje. Ela está com mais de 80 anos. Mas, se chega uma visita na casa dela, ela corre para fazer esse bolo maravilhoso e super-rá-pido. São lembranças boas da família toda reuni-da, filhos, netos e a casa sempre cheia.

Minha mãe não era de cozinhar, mas, sempre que fazia algo, era com muito amor. E hoje passo para a minha filha o gosto de fazer mesmo o mais simples prato sempre com amor. Hoje, eu sei que tudo o que aprendi na cozinha tem a ver com as pessoas que passaram pela minha vida, sua força e seu incentivo. Mas o Galpão foi o maior e melhor incentivo que pude ter. Tenho muito orgulho de fa-zer parte dessa escola e de ter construído a minha história ali.”

“Tudo o que aprendi na cozinha tem a ver com as pessoas que passaram pela minha vida”

Ana Cláudia Ribeiro Teixeira

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TEMPERO ESPECIAL

3 0 A n O S

Edicleuma Nogueira

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A presença de Edicleuma Nogueira, ou Edi, seu apelido, adoça corações. Ela é aquela dose de calmaria que alcança a alma pela fala tranquila, pelo ouvido atento e, principalmente, pelo senso de respeito ao próximo. Seu sorriso é cativante e abre portas para que um pote de açúcar esparrame doçu-ra pelas situações amargas que a vida apresenta. Desde muito cedo, Edi vive transformações que vão além da sua idade e, com isso, aprende sobre o tempo. Seus caminhos são pautados por quem sabe construir a própria jornada. É essa a lição vivida em casa, com sua mãe, que, segundo ela, é sua heroína, e também é essa que agora transmite para suas filhas. De punhado em punhado, Edi acrescenta ingredientes à receita de sua vida, que não é nada trivial e, sim, recheada de cotidianos desafiadores.

“Comida na Bahia é tudo de bom”, diz Edi, logo após um suspiro de sau-dade. “Uma coisa que me marca até hoje é o macarrão da minha avó. Ela faz com açafrão e fica bem amarelinho…”, recorda e, após alguns segundos de silêncio, ainda solta: “e ela encharca de óleo”. A frase chega como acompa-nhamento de uma gargalhada de quem hoje continua gostando do prato des-se mesmo jeitinho, sem tirar nem pôr. Quando questionada se sabe fazer o famoso macarrão, logo responde: “aqui a gente não faz, não. Na verdade, o tempero de vó é diferente. É tão gostoso que dá vontade de comer puro”. A criadora dessa maravilha é a Ivanilde, apelidada de Duzinha. Ela mora ainda hoje em Irecê, cidade natal de Edi, que fica no sertão da Bahia. Ela conta que Duzinha planta coentro no quintal e, por isso, sempre tem tempero fresco. “A avó colhe e amassa a cabeça do coentro, a semente dele, com sal e outras especiarias.” Sempre que vai para lá, Edi já faz esse pedido especial para a avó, e assim traz na bagagem o tempero que, de certa forma, a ajuda a matar a saudade, aos poucos.

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Relembrando a infância, Edi diz que quase não chovia em Irecê, mas, quando acontecia, aproveitava para brincar de umas das coisas mais favo-ritas: “Lá a terra é vermelha e, quando chovia, fazia aquele barro gostoso de brincar. Eu fazia panelinha, fogãozinho…”. Naquela época, também não havia energia na cidade e, enquanto sua avó cuidava dos afazeres na co-zinha, seu avô assumia o papel de distrair os netos até a hora de dormir. “Lembro do vô contando história no escuro para todos os netos juntos. Era muito bom e divertido.”

Bairro PantanalEdi nasceu em 1989, em Irecê, e, aos 6 anos, junto com os pais e a irmã mais velha, chegou a São Paulo. Depois de dois dias de viagem de ônibus, desem-barcaram todos na capital paulista e foram para a Zona Leste. Fizeram morada em Artur Alvim e Engenheiro Goulart até comprarem uma casa no que, na época, se chamava bairro Pantanal, hoje Vila Nova. De lá para cá, ela não deixou mais esse lugar.

A infância foi toda vivida pelo bairro e rodeada de crianças. “A gente se juntava e fazia pipoca e chá-mate. Sempre tinha comida envolvida.” A quituteira do bairro, que era paranaense, trouxe uma iguaria de sua terra que conquistou o paladar baiano de Edi. Com a boca cheia d’água, conta que ela fazia “Cueca Virada”. “Essa é outra lembrança que tenho da infân-cia. Era uma massinha com açúcar, parecia um bolinho de chuva.” Trata-se de uma massa feita de farinha de trigo e ovos que é aberta para formar uma tira larga e fina, depois frita e polvilhada com açúcar.

Foi ainda no começo da juventude que Edi conheceu Leandro, que, mais tarde, se tornou seu marido, pai de Letícia, hoje com 14 anos, e de Larissa, de 12. Ela conta que ele morava próximo de sua casa. “Não lembro muito dele quando eu era mais nova. Minha mãe trabalhava fora e teve um tempo que precisou me mudar de escola e horário.” Foi nesse período que ela o conheceu. Anos depois, ele a pediu em namoro. Edi casou-se cedo, aos 15 anos, e isso mudou o rumo de sua vida. Ainda durante o período escolar, dedicou-se a cuidar das filhas e, quando elas já estavam um pouco maiores, sentiu que era o momento de retomar seus caminhos.

Foi participando do Programa Ação Família, da Fundação Tide Setu-bal, que Edi ficou sabendo das oficinas. Ela conta que conheceu, pela tia, o Programa, que tem como objetivo melhorar a qualidade de vida e contri-buir para o fortalecimento social dos moradores de São Miguel e região. As duas frequentavam, semanalmente, encontros promovidos pela Ação.

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Foi lá que ouviu, pela primeira vez, falar das formações em culinária e gas-tronomia. “A assistente social falou que eles tinham cursos, e então eu fui conhecer”, conta. E aí não saiu mais de lá. Edi ingressou na turma de 2012. Ela conheceu vários professores ali, mas foi com Dani e Lúcio com quem mais se identificou. “Eles eram mais do que professores, viraram amigos. Eles se preo-cupavam com a gente.” Entre suas lembranças, conta que, certa vez, preparou o que chama de Bolo Boneca. Nele, uma boneca (de verdade) fazia parte da decoração. O bolo era o vestido do brinquedo, que, como uma princesa em pé na mesa, virava a protagonista da festa. O primeiro bolo feito assim pela Edi foi para o aniversário de 6 anos da Larissa, sua filha. Ela já havia começado a frequentar o Galpão e, mais tarde, refez o feito por lá, agora com a ajuda da dupla de professores. “Eu ganhei do Lúcio uma fôrma no modelo de uma saia e fiquei muito feliz. Esse segundo (bolo) ficou mais bonito”, diz, rindo e olhando para a foto de sua apresentação durante o curso. Segundo Edi, o curso que mais marcou sua passagem pela Oficina foi o de panificação e confeitaria. Das formações feitas, foi a que mais a fez viver experiências na cozinha, colocar a mão na massa. Já o curso “Gastronomia, agora eu posso” expandiu sua cons-ciência sobre até onde pode ir com o aprendizado adquirido na Fundação. Ali teve aulas que iam além dos ingredientes, viu que cozinhar e empreender podiam andar lado a lado.

Mas o tempo passado nas oficinas vai além do preparo do bolo, do enrolar docinhos, sovar o pão. Ele ensinou a Edi muito mais do que receitas prontas ou preparos: deu-lhe material para criar e abrir portas em sua vida. Emociona-da, ela conta que o convívio diário na Oficina melhorou sua forma de se rela-cionar com as pessoas. “Eu era muito tímida e ir lá, estar com outras pessoas, me ajudou muito a passar por isso. Durante os cursos, precisávamos falar em público, fazer apresentações. Lembro-me de um dia o Lúcio me pedir ‘tenta me vender alguma coisa’. Fiquei nervosa e tremia, mas foi muito bom para mim”, finaliza. O gosto pela culinária foi tanto que Edi aceitou o conselho dado pelos professores Dani e Lúcio. “Eles me incentivaram a estudar. Disseram para eu fazer cursos e ver se era isso mesmo que eu queria para mim.” Em 2017, Edi ingressou em um curso profissionalizante e, no meio de 2018, se formou Técnica em Cozinha. “O curso me fez ver que eu gosto mesmo é de doce”, disse, aos risos. Quando perguntada sobre o motivo, diz que aprendeu muito sobre cozinha brasileira e internacional, mas panificação e confeitaria mesmo foi pouco. Seu aprendizado nesse sentido é baseado nos conhecimentos recebi-dos em seu tempo na Oficina. Além disso, atribui sua habilidade no curso ao fato de ter recebido muita informação durante o tempo passado na Fundação.

“Eu era muito tímida e ir lá, estar com outras pessoas, me ajudou muito a passar por isso. Durante os cursos, precisávamos falar em público, fazer apresentações. Lembro-me de um dia o Lúcio me pedir ‘tenta me vender alguma coisa”

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“Aprendi muita coisa lá no Galpão, a ficha técnica, por exemplo, o Lúcio me ensinou, e eu revisei durante meu curso técnico. Tudo que eu aprendi antes me ajudou nesse momento”, fala, orgulhosa de suas conquistas.

Minutos em silêncio, olhando para aquela porção de certificados dos cur-sos vividos, as fotos que registram momentos inesperados e, mais do que isso, memórias de uma transformação ocorrida no tempo e no espaço, fazem com que uma imensa sensação de gratidão invada o peito de Edi. Emocionada, diz se sentir muito bem ao saber que tem gente que gosta dela. De saber que co-nheceu pessoas que estarão consigo para o resto de sua vida. “É gostoso falar que tem pessoas que se importam com a gente. O pessoal da Fundação é como se fosse uma segunda família para mim.”

Mão na massaEntre fotos e lembranças, Edi conta que um de seus primeiros trabalhos na área foi conquistado ao lado da professora Dani. Segundo ela, a chef realizava na comunidade alguns eventos que envolviam uma experiência de história, por meio de diferentes aspectos, como música, vestuário, artesanato e, claro, comida. Edi foi convocada para ficar na cozinha ao lado da Dani no preparo do cardápio. “Ela já me dava aula nessa época. Foi muito legal trabalhar nesse projeto e ver que eu conseguia.” E a Oficina também lhe proporcionou outros momentos como esse. No evento de confraternização da própria Fundação, experimentou, mais uma vez, a sensação de se ver completa por meio da co-mida. “Fomos trabalhar na cozinha e, também, servir. Foi muito bom, juntou trabalhar ao lado de quem se admira e com o que gosta.”

Em 2014, após passar um período morando na Bahia com toda a família, Edi voltou a São Paulo e resolveu empreender. Bolo de pote, pão de mel e cal-dos eram comercializados na porta de sua casa, num pequeno balcão impro-visado em sua garagem. O objetivo era complementar a renda da família. No início de 2015, com a chegada da crise econômica, resolveu fechar o negócio, mas não o sonho de ser sua própria chefe. Apesar de não ter mais o balcão em casa, seguiu aceitando encomendas para bolos e doces – todos os itens ensinados a ela durante a Oficina. E Edi faz questão de dizer isso. Durante sua formação na Oficina, por exemplo, aprendeu a melhor maneira de fazer o docinho mais amado do Brasil, o brigadeiro. “Muitas vezes, a gente erra o ponto. Deixa tempo demais no cozimento, deixa duro para enrolar... para co-mer fica mais difícil ainda. Errando o ponto, ele também pode ficar mole e, daí a pouco, começa a murchar. A Dani ensina a gente a colocar ovo no brigadeiro e ele, então, fica perfeito.” Edi foi além e aprendeu que era possível fazê-lo

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com líquidos. “Eu aprendi a fazer brigadeiro de hortelã lá na Oficina. Fiz com chocolate branco, leite condensado, manteiga e o chá de hortelã. Lembro-me que, no dia, fizemos três testes. No último, o Lúcio deu a dica de batermos com um pouco da folha e, assim, ele ficaria verdinho”, relembra. “Meu mundo para quando estou na cozinha. Mesmo quando chega o cansaço, ainda é gostoso. Principalmente se eu estiver preparando um doce, aí parece mesmo que o mundo parou de girar.”

Quando o assunto são as filhas, Edi já vê mais características semelhantes do que só a aparência. “A Letícia é muito parecida comigo. Quando está na cozinha, vejo que ela também para no tempo fazendo comida.” Edi conta que as duas sempre a ajudaram cortando ingredientes, untando a forma e com ou-tros afazeres. “A bagunça é muita, mas eu gosto de vê-las na cozinha”, diz. “A Letícia fez pudim sozinha. Eu estava no serviço e ela me mandou mensagem: ‘mãe, não briga comigo, não, mas vou fazer pudim’”, diz, achando graça de a filha gostar de estar no mesmo lugar que ela. Por meio da comida, percebe, elas fortalecem sua relação e criam novas formas de demonstrar afeto e amor.

Por fim, ao ser perguntada sobre qual receita traduz sua história de vida, responde: pão de mel. “Eu aprendi nos primeiros cursos, que eram sobre geração de renda. Eu fiz direitinho e é a mesma receita que uso até hoje. A massa é bem gostosa e fica sequinha. Adoro quando sobe aquele cheirinho de canela pela casa no momento em que o pão de mel está assando.” Edi diz que seu recheio preferido é de beijinho, mas ela faz o tradicional, de doce de leite, e também de brigadeiro. A cozinha, enfim, é um encontro consigo mesma. É dedicação ao seu próprio prazer.

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38 Receitas — Cozinh a de a fetos

Pão de mel

Ingredientes

2 xícaras (chá) de leite

1 xícara (chá) de açúcar mascavo

1 colher (chá) de canela em pó

1 colher (café) de cravo em pó

½ xícara (chá) de mel

½ xícara (chá) de chocolate em pó

2 xícaras (chá) e farinha de trigo

2 colheres (chá) de fermento em pó

2 colheres (chá) de bicarbonato de sódio

Modo de fazer

Para a massa: coloque todos os ingredientes da massa no liquidificador e bata até homogeneizar. Unte as fôrmas próprias para pão de mel, preencha pela metade e leve para assar, por aproximadamente 25 minutos.

Para o recheio: misture o doce de leite ao creme de leite. Montagem: desenforme os pães de mel e corte-os ao meio, sem separá-los completamente. Recheie cada um e os banhe em cobertura fracionada derretida. Disponha os pães de mel sobre papel-manteiga ou grade e aguarde secar em temperatura ambiente. Após 2 a 4 horas, corte as rebarbas de chocolate e os embale. Dica: nunca banhe o pão de mel ainda morno. Deixe esfriar bem a massa para rechear e banhar no chocolate. Isso garante uma melhor qualidade.

Recheio

1 xícara (chá) de doce de leite

½ xícara (chá) de creme de leite

Cobertura

Cobertura fracionada de chocolate ao leite

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No Galpão, cresci demais. A minha vida pessoal e profissional mudou muito a partir dali. Eu perdi muito da minha timidez, conheci muita gente que foi importante para mim. São pessoas que carrego comigo até hoje. Me lembro das coisas que eu fazia no começo, quando ia na Fundação. Comecei fazendo bolo para a minha família. Lembro da minha tia pedir bolo para seus filhos. Foi um período muito importante. No Galpão, aprendemos a ser mais profissional e aprendemos técnicas. Para mim, era uma esco-la para a vida. Lembro de quando apresentamos

o TCC e, para mim, que sempre fui tímida, foi um desafio expor meu trabalho para os colegas. Mas sempre fomos incentivadas a atravessar nossos desafios. E isso foi muito bom para me ajudar. Sou muito grata a todos que trabalha-ram e trabalham por lá. Foi uma oportunidade para conhecer pessoas e me desenvolver a par-tir disso. Apesar de não ter começado meu em-preendimento ainda, estou trabalhando na área da alimentação e sou muito grata por isso. Torço muito pelo sucesso de todas que fizeram parte da minha história.”

“Uma escola para a vida”Edicleuma Nogueira

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Aulas na Oficina Escola de Culinária

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4141Cozinh a de a fetos — EdiclEu m a Nogu Eir a

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A ARTE DE SE

REINVENTAR3 7 A N o S

Eliana Zanão

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Quase todo mundo tem um sabor de bolo preferido. Às vezes, o cheiro da massa de abacaxi ainda no forno lembra os domingos na casa da avó quando, junto a uma xícara de café, tudo ficava mais gostoso. Os sentidos e o paladar também guardam lembranças que, por tanto tempo vivendo dentro da gente, passam mesmo a fazer parte de nós e de nossa história, sem que nem imaginemos que eles podem ainda, em algum momento, desenhar reinven-ções e recomeços em nossa vida.

Foi mais ou menos assim que aconteceu com a Eliana. Os sabores e todas as novas possibilidades presentes dentro deles a ajudaram a encontrar uma direção um tanto quanto diferente para o seu caminho e a traçar suas formas de se reinventar diante das surpresas que, às vezes, nos seguram pelo braço e nos obrigam a seguir em frente em meio às adversidades. Hoje, Eliana é confeiteira de mão cheia. Pense em um bolo, em um recheio, em uma decora-ção e descreva para ela: mesmo que não saiba muito bem como realizar esse desejo no momento, é só dar um tempinho e logo estará pronto aquele bolo dos sonhos.

Antes de se aventurar nesse mundo da confeitaria, Eliana, que se formou no curso de Administração, trabalhou por um bom tempo nessa área, dentro de uma grande empresa em São Paulo. A rotina de trabalho, oito horas por dia (e às vezes um pouco mais), de segunda a sexta-feira, nunca lhe foi um proble-ma. Pelo contrário: Eliana sempre lidou bem com essas questões e nunca teve medo de muito trabalho. Mas nessas voltas que o mundo (e a vida) dá, Eliana precisou se afastar do cargo e da rotina que levava entre reuniões e planilhas para cuidar da saúde, que andava meio esquecida.

O tempo continuou passando e os cuidados de Eliana consigo mesma pre-cisaram também continuar, e o trabalho administrativo foi ficando cada vez mais para trás. Mesmo quando as coisas tranquilizaram, a dificuldade em en-contrar uma nova vaga que valesse realmente a pena manteve Eliana por mais um tempo em casa, cuidando dos afazeres domésticos. O que ela não sabia ainda é que a vida estava, escondidinha, preparando-lhe uma surpresa que mudaria completamente a direção de seus sonhos e também de seu trabalho.

Eliana Amorimde Castro Zanão, 37 anos

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Cozinh a de a fetos — Eli a na Za não

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Eliana sempre teve o hábito de cozinhar, em casa mesmo, as refeições co-muns do dia a dia – nada que fosse muito elaborado. Até que, um dia, entre as suas tarefas rotineiras em casa, viu em uma rede social a foto de um pão caseiro, que havia sido feito por uma amiga e vizinha. Curiosa e sempre inte-ressada em um bom desafio, tratou de pedir a receita. O problema é que não deu muito certo: um fermento diferente foi o suficiente para o pão não crescer. E foi aí, justo nessa hora, que a vontade de fazer um pão perfeito tomou uma proporção maior em seu caminho, abrindo uma brechinha para os doces e os segredos da cozinha roubarem seu coração.

Mesmo morando em São Miguel, bem pertinho do Galpão, Eliana não sabia da existência das aulas de culinária. Mais ou menos em 2015, na mesma época em que se arriscou na produção de seu primeiro pão, a sogra lhe contou sobre todos os cursos oferecidos na escola e a convidou para conhecer o Galpão – e, quem sabe, se inscrever em algum curso. Rapidinho ela se interessou e quis saber um pouco mais sobre os processos e ensinamentos oferecidos ali. E foi adiante, participando primeiro de um curso livre, onde aprendeu a fazer uma massa de pão de ló, um recheio simples para bolo, bater o chantili da forma correta. As horas passadas em sala de aula foram o suficiente para despertar nela o desejo de participar de novos cursos, aprender mais sobre fermentação de pães, decoração de bolos e confeitaria. E aí Eliana passou a ter em mãos o fermento que faltava para fazer os seus sonhos crescerem.

A primeira encomendaAluna aplicada, tudo o que aprendia em sala de aula, Eliana levava para testar em casa. Nesses momentos, aproveitava para identificar suas próprias dúvi-das ou ter certeza de que realmente tinha absorvido 100% o conteúdo ensi-nado em cada dia de curso. Foi ali, na pequena cozinha do apartamento em que mora com o marido e com a cadelinha Nina, que Eliana fez um bolo com a massa, o recheio e a decoração com chantili, como aprendeu em seu primeiro curso no Galpão. O orgulho em ver pronto aquele bolo que fez sozinha foi tão grande que logo rendeu uma primeira encomenda: a partir da foto que postou em suas redes sociais, uma colega de trabalho do marido de Eliana pediu gen-tilmente que ela produzisse seu bolo de casamento. “Eu só sabia fazer um tipo de massa e um tipo de recheio. Também não tinha ideia de como fazer um bolo maior que aquele que aprendi, de dois quilos. Como era casamento, precisaria ser um bolo de 15 quilos. Fiquei indecisa se aceitava ou não a encomenda, que para mim era um desafio.”

Mas é claro que ela aceitou. Com medo mesmo, mas também com a certe-za de que, se aquela ideia de fazer bolos para vender fosse mesmo algo para

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transformar a sua vida, tudo ao redor se movimentaria para que desse certo. Com a encomenda já aceita, Eliana se empenhou: pediu ajuda aos professores do curso para saber qual a quantidade de ingredientes para um bolo tão gran-de, fez ainda uma versão menor para que a noiva pudesse experimentar e ter a certeza de que era aquele mesmo o seu desejo e, na data marcada, entregou o bolo mais bonito e saboroso, como todos desejavam que fosse. Estava, então, oficialmente aberta a nova missão de Eliana, em espalhar doçuras e alegrias de um jeito que só a confeitaria é capaz de proporcionar.

Com o primeiro passo dado, aos poucos Eliana foi pesquisando e desco-brindo outras receitas, outros recheios e possibilidades de massas, e começou a criar também as suas, em uma época marcada por aprendizados e achados – tão necessários para o desenvolvimento dela como confeiteira. Qualquer re-cheio que tenha coco, por exemplo, é seu preferido: bolo prestígio, bolo vulcão com calda de beijinho, bolo simples molhado com leite condensado e leite de coco. Já aqueles que levam frutas misturadas a outro ingrediente não entram muito no gosto de Eliana. Entre essas descobertas de novos sabores e possibi-lidades de misturas, aos poucos, mesmo gostando mais de fazer e comer coisas salgadas, todo esse universo da confeitaria e da culinária foi tomando conta de sua história, dando-lhe ainda mais certezas de que era aquele o caminho que iria fazê-la feliz.

E por ali ela seguiu. Sempre que podia, participava de novos cursos no Galpão e também em outras escolas: aprendeu a fazer salgados e pães, a utili-zar pasta americana e papel de arroz na decoração dos bolos, a produzir um chantili mais gostoso do que os comprados nos mercados, a ter o seu próprio jeitinho de misturar os ingredientes e a compreender o que a culinária pode-ria modificar em sua vida. Todo esse carinho e também o cuidado, presentes em cada coisa pequena que Eliana faz, aumentou também seu número de en-comendas e de clientes. Em sua cozinha só entram e saem produtos frescos, com ingredientes escolhidos não pelo preço, mas pela qualidade, pois, segun-do ela, é isso que faz um bolo ou qualquer refeição ser mais gostosa: o amor que se tem nas mãos e os ingredientes usados, desde a massa, passando pelo recheio, até chegar à cobertura e à decoração. “Isso também eu aprendi: não adianta nada você fazer um bolo bonito sem usar bons ingredientes, se dentro dele não tem sabor. A gente precisa cuidar dessas coisas que parecem míni-mas, mas que contam tanto no momento em que as pessoas provam aquela receita que a gente entregou.”

Todas essas delicadezas que se constroem por meio dos sabores, além de atrair novos clientes, também cativam aqueles que, às vezes, surgem só pelo

“Isso também eu aprendi: não adianta nada você fazer um bolo bonito sem usar bons ingredientes, se dentro dele não tem sabor”

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desejo de experimentar um bolo bem gostoso. Aí, depois de provar, acabam permanecendo no caminho de Eliana e retornando para novas encomendas e para fazer parte das novas histórias da confeiteira. E o que não falta são casos para guardar na lembrança. Tem cliente que não abre mão e, há três anos, só comemora seu aniversário com bolo feito por ela. Tem pedido feito em cima da hora e que ela consegue entregar em tempo. Tem bolo que fica tão bonito que dá vontade mesmo é de guardar em casa e não entregar. E tem, a cada acontecimento, a certeza de estar fazendo aquilo que se ama.

Desafios que movem sonhosEliana sempre gostou de um bom desafio. Seja um recheio diferente, uma mas-sa que ela nunca fez, uma montagem fora daquelas mais tradicionais: sempre há motivos de sobra para que ela vá e solucione as mais diversas situações com maestria. Um pouco do incentivo para encarar essas novidades vem do marido Ricardo. É ele quem sempre encontra um jeitinho de estimular Eliana a testar coisas novas, a aprimorar aquilo que ela já sabe e a experimentar ou-tros sabores. Juntos, os dois também sempre se aventuram a conhecer lugares novos, desde confeitarias a restaurantes. Claro: para comer e provar pratos diferentes.

Foi justamente para o aniversário do marido que Eliana ousou em um bolo bem inusitado, ao menos para ela: um bolo mousse napolitano, que o próprio Ricardo viu em uma foto na internet e sentiu vontade de provar. A primeira camada era feita de uma massa fininha de chocolate, acompanhada por três camadas de mousse, uma de chocolate branco, outra que pode ser de fram-boesa ou de frutas vermelhas, e por último a de chocolate meio amargo, em uma estrutura que rendeu um passo a passo bem trabalhoso – é preciso es-perar que cada camada fique bem gelada e firme, mas sem congelar, para que tudo dê certo. Foi uma corrida contra o tempo para que tudo ficasse pronto no prazo correto. Mas que, no fim das contas, rendeu uma receita deliciosa e bem bonita aos olhos e ao paladar. “Meu marido me incentiva a fazer coisas mais difíceis. Coisas que eu não faria se ele não me instigasse a produzir. E aí, acabo percebendo que posso fazer até aquilo que parece muito complicado para mim. Esse apoio dele é fundamental para que as coisas aconteçam sem que eu tenha tanto medo delas.”

E não é só esse apoio moral, já tão importante, que Eliana recebe. Ricardo é também um ótimo ajudante: dá palpite nas escolhas de cores, nas combina-ções de sabores e sabe até fazer rosas para confeitar alguns bolos. Segundo Eliana, as flores feitas por ele ficam até mais bonitas do que as que ela mesma faz. Em meio a todos esses desafios gostosos, outro que Eliana hoje já tira de

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letra é o de acertar as cores da pasta americana. Tons muito vivos, como o vermelho e o preto, por exemplo, são mais complicados de se alcançar perfei-tamente, sem dar a impressão de que estão desbotados e também sem carre-gar o sabor amargo dos corantes. “Tem também aqueles recheios que são um verdadeiro desafio. Tem um que faço, com doce de leite, abacaxi e coco, que sempre me faz lembrar da pessoa que me encomendou pela primeira vez. Eu nunca tinha feito esse recheio, e ela me pediu 15 quilos de bolo. E aí eu falei: meu Deus, eu nunca fiz desse sabor, e se não ficar bom do jeito que ela espera? É muito bolo! Aí eu fiz um pequeno para ela experimentar e ela gostou. Essa pessoa já faleceu, e sempre que eu faço esse recheio eu lembro dela.”

Afeto é casaSe não falta determinação no caminho de Eliana, também sobram amor e união em família. Tanto que, hoje, mãe e pai, sogra e sogro moram bem per-tinho dela, na mesma região de São Miguel, e todos estão sempre prontos a ajudar um pouquinho da forma como podem, para fazer o trabalho de Eliana render. Quando falta ingrediente, quando tem muita louça para lavar, quando o tempo é curto para tanta coisa a fazer, sempre tem alguém ali por perto para dar uma mão e até experimentar alguma coisinha que sai da cozinha.

Antes mesmo que Eliana começasse a escrever a sua história entre bolos e confeitos, era na época de Páscoa que os doces tomavam forma na cozinha da casa de sua mãe. Dali, saíam ovos trufados, outros recheados com bombom, e também os mais simples, que ela ajudava a mãe a confeitar e a rechear. Na-quela cozinha de memórias é que surgiam outras gostosuras das quais ela se lembra até hoje, como o bolo de fubá, que é conhecido e apreciado por ficar bem cremoso sem precisar passar por nenhum processo de recheio. “Minha mãe fazia esse bolo quando eu era criança. Depois, crescida, eu tentava fazer igual e não conseguia. Até que, quando fiz meu primeiro curso de panificação, ensinaram essa receita na outra sala do curso de confeitaria e eu perguntei se podiam compartilhar comigo. Aí, fiz em casa e deu certinho. Hoje passo essa mesma receita para todos que me perguntam como é que faz o famoso bolo de fubá cremoso.”

E é em um caderno, todo escrito à mão, que Eliana multiplica suas receitas e guarda todo o seu tesouro, composto por ingredientes, lembranças e todo o amor que cresce em seu caminho, pela doçura de misturar, amassar, assar e realizar sonhos com tanta delicadeza e determinação.

Cozinh a de a fetos — Eli a na Za não

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Bolo de fubá cremoso

Modo de fazer

Bata o fubá, os ovos e a margarina no liquidificador.

Depois, misture os outros ingredientes e leve para assar.

Ingredientes

3 xícaras (chá) de açúcar

4 ovos

2 colheres (sopa) de farinha de trigo

1 xícara e meia (chá) de fubá

2 colheres (sopa) de margarina

100g de queijo ralado

1 colher (sopa) de fermento

Receitas — Cozinh a de a fetos

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“Sempre trabalhei na área administrativa e, por motivos de saúde, parei de trabalhar aos 28 anos. Isso sempre foi muito difícil para mim, pois me sentia totalmente deslocada. Até tentei voltar ao trabalho, mas devido a recaídas parei novamen-te. Isso me fez ficar ainda pior. Eu fazia as coisas em casa, nunca tive muitas inspirações ou recor-dações de comida na minha infância, mas sempre tentava fazer novas receitas. Um dia, vi uma posta-gem de um pão, no Facebook de uma vizinha. Pedi logo a receita, fiz e, para minha surpresa, ficou horrível. Fiquei muito chateada e pensando como eu poderia melhorar. Nesse mesmo tempo, recebi uma postagem de um curso de panificação e vi ali uma oportunidade de aprender o bendito pão. Me inscrevi, fiz o curso, mas não gostei muito. Mas foi ali que conheci pessoas que me apresentaram para a Oficina Escola. Me inscrevi em 2015, final do ano, em um curso de bolos. Vi ali uma oportu-nidade, percebi que era algo que eu queria apren-der e fazer. Mesmo com a desconfiança de algumas pessoas, fui atrás e comecei a divulgar aquilo que

“Vejo o cozinhar como uma forma de me sentir útil novamente”Eliana Amorim de Castro Zanão

preparava em sala de aula e em casa, a partir dos meus aprendizados. Minha primeira encomenda foi de 15 quilos de bolo para um casamento. Pensei em não aceitar, mas ao mesmo tempo me veio na cabeça ‘se é algo que quero fazer, tenho que fazer’. Nesse caso, não era tentar, era acertar porque era um bolo de casamento. Com a ajuda e a orientação dos professores, consegui. E de lá para cá nunca mais parei. Faço bolos, doces, tortas e já fiz salga-dos também. Vejo isso como uma forma de me sen-tir útil novamente. Às vezes trabalhamos muito e, no final do mês, o dinheiro que se recebe não tem tanto valor. Nada é mais gratificante do que ver um bolo pronto e o sorriso das pessoas. Afinal, nunca vi ninguém triste comendo um pedaço de bolo.”

Cozinh a de a fetos — Eli a na Za não

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UM DOCE

NEGÓCIOJ

5 0 a N O s

Joseilda Silva

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51Cozinh a de a fetos — Joseilda silva

“Jô, por favor”, diz logo após pronunciar seu nome completo: Joseilda do Nascimento Silva. Com um sorriso marcante no rosto, parece estar sempre atenta a tudo à sua volta. Com o olhar bem vivo no presente, ela se move. Jô é alegria. Também é multitarefa. Não se assusta com tombo nem com mudança. Não fica parada por nada – enquanto narra sua história, responde a pedidos das clientes, dá orientação sobre as vendas que acontecem na porta de sua casa e pode fazer mais uma porção de outras coisas ao mesmo tempo.

Ela sabe buscar ajuda quando precisa e também oferece quando percebe que pode fazer algo pelo próximo. Sonha acordada e realiza sempre. Seus de-sejos não a tiram do chão e tampouco a afastam do que mais ama, sua família. Jô é daquelas pessoas que estão prontas para passar o café, servir o almoço e preparar o jantar sempre com um sorriso no rosto e muita disposição espalha-da pelo corpo. É disponível para aprender com o que a vida lhe oferece – seja um desafio ou uma oportunidade. Não tem medo de aprender algo novo para botar à mesa (e à venda).

PalafitaJô nasceu no interior do Pará no ano de 1968. É filha caçula do açougueiro Francisco de Assis Nascimento Silva, conhecido como Ceará, e de Raimunda Carvalho. Sua mãe de sangue faleceu durante o parto dela. A irmã de sua mãe, Maria José, ou Dona Zezé, assumiu a casa e a cria dela e de seus sete irmãos. “Minha mãe é minha tia”, conta sorrindo. “Eu só soube disso com mais de 15 anos. A Zezé e meu pai tinham medo que eu tivesse uma reação ruim. Pelo

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contrário, eu fiquei muito agradecida, pois ela que me cuidou. Se eu estu-dei, me formei no Pará e tive recursos é porque eles me criaram”, diz com orgulho. Com a infância fresca na memória, feito o cheiro de pão preparado na hora, comenta que, quando pequena, não podia sair muito. Mas, mesmo assim, sempre foi muito agitada e adorava as brincadeiras que davam espa-ço para essa energia: cemitério, roda. “Eu quase nunca ia brincar na rua, mas, quando conseguia, me acabava.” Entre as brincadeiras prediletas, Jô conta que amava andar de bicicleta. A família não tinha uma, mas ela dava seu jeito para passear em duas rodas. “Uma vez, meu irmão foi em casa com aquelas bicicletas de padeiro, que têm cesto na frente, e eu queria muito andar nela. Ah, não pensei duas vezes, peguei e fui. Até hoje tenho uma cicatriz na perna por conta disso. Eu caí, mas eu andei e fiquei feliz.”

Quando perguntada sobre suas idas à cozinha durante a infância, Jô conta que não gostava de botar a mão nas panelas. Sempre muito ativa, achava que nunca ia passar por lá – nem casar e ter filhos. No entanto, confessa que, mais velha, foi surgindo o desejo por estar mais tempo por esse lugar da casa. “Todas as irmãs sempre gostaram de cozinhar. Nada demais, mas o arroz soltinho e o feijão gostoso sempre foram pratos comuns de todas nós. Eu não era do doce e só fui aprender mais tarde.” Jô conta que, até os 10 anos, morou numa casa de palafita no Belém. “Uma casa grande, com terraço e águas que passavam por baixo”, recorda-se, feliz. Mais tar-de, seu pai também teve um pequeno sítio. Sempre econômico, poupou dinheiro suficiente para juntar à venda dos imóveis e adquirir uma casa de alvenaria, também na capital do Pará. “Minha mãe e meu pai foram muito felizes em seu casamento. Eles nunca brigaram, nunca os vi tristes. Meu pai era meu herói”, diz Jô, com um olhar de quem experimentou aquele doce apresentado no começo da juventude que há tempos não saboreava. Seu pai faleceu em 1999, em São Paulo, quando veio para um tratamento médico. Desde então, Dona Zezé veio morar com ela e sua família na capital paulista.

Terminal TietêMas Jô não escolheu vir para São Paulo. Seu pai, em 1995, comprou uma passagem de ônibus para ela e a obrigou a vir morar com uma prima em Guarulhos. “Casei, por teimosia, muito jovem no Pará. Depois vi que não era o que eu queria”, diz. Jô conta que, na época, tinha 22 anos e se sentiu muito triste e sem perspectiva na vida. Na ocasião, o pai resolveu fazer algo pela filha e a enviou para São Paulo. No ano seguinte, Jô conseguiu um emprego na área de cobrança de uma empresa na Barão de Itapetininga,

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no centro da cidade. Em janeiro de 1997, conheceu o atual marido, Dener. Eles foram apresentados por amigos em comum. “Eu nem quis papo”, diz, rindo. “Mas, em março, fomos para uma festa na Rua 7 de Abril e lá nos conhecemos melhor. Dias depois, ele apareceu com um buquê, me chamando para morar-mos juntos.”

Jô diz que pegou sua TV, aparelho de som e uma mala, que era tudo que tinha na época, deixou a casa de sua prima e foi. “Liguei para a minha mãe e disse: estou indo morar com o Dener.” Dona Zezé perguntou: quem é ele?. “Eu expliquei o que havia acontecido, e ela, então, soltou um ‘Tu é doida!’”, comen-tou a lembrança acompanhada de uma grande gargalhada dos acasos da vida. “Fui para a casa dele e estamos juntos até hoje.” Pouco tempo depois, em 1999, chegou a primeira filha do casal, Vitória. No ano de 2004, Alice nasceu e, em 2008, Júlia, a caçula, complementou a família.

Bolo de chocolateJô seguiu trabalhando na área administrativa até 2012, quando foi desliga-da de seu último emprego. Naquele momento, desapontada, decidiu que não queria mais trabalhar para ninguém. Resolveu empreender. “Eu sempre fui muito falante, sempre vendi coisas nas empresas em que trabalhava. Então, acreditava que iria ter uma loja ou algo assim.” Em setembro do mesmo ano, Jô conta que estava em casa e fez um bolo para as filhas e os amiguinhos delas do condomínio em que moravam. “Todos gostaram e aí eu fiz outro. E naquele momento eu comecei. Era um bolo simples de chocolate com cobertura. Ele não era bonito, mas, com certeza, muito gostoso.” As encomendas começaram a chegar. “A partir daquele dia, comecei a fazer também tortas de frango.”

Na época, o aroma do bolo percorreu a vizinhança pelas mãos das filhas Vitória e Alice. Enquanto Jô batia a massa e cuidava de tudo pela cozinha, as meninas ficavam responsáveis pelas entregas no condomínio. “Quando per-cebi que isso havia virado rotina na nossa vida, resolvi buscar cursos, vi que eu tinha clientela”, diz Jô sobre o momento em que se deu conta de que havia iniciado seu próprio negócio. Entre uma fornada e outra, ela encontrou tempo para começar a sua especialização. “Frequentava aqueles cursos em que eu só assistia às chefs fazendo e anotava tudo. Chegava em casa e tentava fazer.” Até que, um dia, em parceria com uma vizinha, Jô pegou uma encomenda de 2 mil ovos de Páscoa. “Lembro-me de pensar, meu Deus, como vai ser? Eu não sei, mas nós vamos conseguir”, diz, usando o mesmo tom de voz de quem aceitou o desafio de montar na bicicleta do padeiro e pedalar. Ela foi para a cozinha sem hora para sair e colocou suas anotações em prática.

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Oficina-Escola“Descobri a Oficina-Escola de Culinária pela internet. Eu não conhecia o local e nem sabia ir, mas liguei e me matriculei. Foi a primeira turma e era tudo o que eu precisava”, relembra. “Eu preparava os bolos e tortas para deixar para as meninas vender e, então, ia para o curso. Lembro-me de, às vezes, não ter dinheiro para o ônibus, mas não deixava de ir. Pegava emprestado com uma amiga e dizia para as meninas passarem lá e pagar com o dinheiro das vendas”, conta. “A Fundação Tide Setubal foi tudo para mim”, diz Jô, quando perguntada sobre a importância desse aprendizado em sua vida. “Foram essas formações que me abriram portas para eu começar a vender as marmitas em meu condomínio. Aprendi muito com meus professores, a Daniela e o Lúcio. ” Baião de dois, frango à passarinho, salgados e doces de festa… A vizinhança começou a recorrer à Jô.

Sentir, na prática, a rotina de uma cozinha é algo que Jô, que sempre está em movimento, buscava. “No Jardim Lapena, sempre tinha um dia na cozinha. E lá tem tudo para usarmos e não nos preocuparmos”, diz, impressionada com o apoio que encontrou nas oficinas. “No curso de confeitaria, no qual prepará-vamos um bolo em três ou quatro pessoas, eu já dizia para as meninas: ‘bora caprichar no meu’. Eu voltava com ele para casa e vendia. As meninas do curso não acreditavam. Eu precisava muito fazer aquilo. Trazia o bolo na perua, com muito cuidado, para cortar, tirar foto e vender”, diz, emocionada em encontrar uma forma de ultrapassar os desafios da vida e, ao mesmo tempo, orgulhosa de ter vencido essa fase. “Eu não tinha dinheiro para fazer aqui. Vendendo bolos, consegui juntar dinheiro e comecei a fazer em casa.”

Primeiro coffee break“Foi no Tide Setubal que fiz o meu primeiro coffee break, em maio de 2013”, diz, orgulhosa. Jô explica que foi uma oportunidade apresentada pela Funda-ção, e que ela ficou muito feliz. O que não esperava, no entanto, é a data ser a mesma em que tinha uma cirurgia. Impossibilitada de remarcar (a cirurgia e o café da manhã), sua sócia na época assumiu a dianteira do projeto, mesmo sendo Jô a especialista. “Pedi a Deus para me ajudar. Do hospital, eu ficava direcionando minha sócia por telefone, dizendo o que fazer. A enfermeira aparecia e eu dizia: já vou desligar, já vou desligar!”, conta, hoje dando risada, mas reforça o quão desafiador foi. “Tínhamos poucas coisas naquela época, então era preciso improvisar, muitas vezes, para ficar melhor. Evoluí mui-to de lá para cá, inclusive com o que aprendi naquele dia e nas formações. Fui melhorando sempre.” O boca a boca abriu novas portas e outros cafés

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surgiram para Jô. Naquele tempo, ela montava o que hoje se chama Gastro-nomia Doce Sensação. “Sempre contei muito com a Fundação. Eu fazia os cafés, tirava fotos e enviava para o Guiné, que foi quem me convidou para o primeiro coffee break lá, e ele me dava dicas sobre como melhorar a apa-rência do meu trabalho”, diz. “A Fundação me ajudou a resgatar a confiança em mim mesmo.”

Nas suas idas à Oficina, também descobriu o Fundo Zona Leste, que tem o objetivo de apoiar micro e pequenos empreendimentos da região por meio de investimentos financeiros, mas também com a realização de parcerias, oferta de capacitação e suporte à gestão. “O apoio deles me ajudou a construir a cozi-nha em que trabalho hoje. Além disso, pude estudar coisas importantes para tudo que faço aqui”, diz. Com orgulho e carinho, ela mostra todos os seus equi-pamentos: geladeira, fogão, louças e talheres que possibilitam que ela atenda uma centena de pessoas sem precisar dispor de outros materiais alugados. A cozinha profissional de Jô é fresquinha. Ficou pronta em novembro de 2018. “Não quero ficar rica, só quero poder ter condições de aproveitar o convívio com as pessoas que amo e fazer o que gosto.” Foi com o dinheiro do seu trabalho na cozinha que ela viajou com as filhas para Arraial do Cabo, no Rio de Janeiro.

Quando questionada sobre o futuro, os olhos de Jô correm pela cozinha, como se, dentro de um pote, pudesse estar guardado o que a motiva a enfren-tar a vida todos os dias. “Lembro das coisas que eu e minha família passamos, minhas filhas entregando bolos, e estamos hoje aqui, felizes. Fico muito alegre em ouvi-las dizer que sou um exemplo para elas.” Jô vê que seu trabalho deu às filhas algo que ela mesma valoriza em si: correr atrás do que se quer.

“Não quero ficar rica, só quero poder ter condições de aproveitar o convívio com as pessoas que amo e fazer o que gosto”

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Pão de beterraba

Ingredientes

1kg de farinha de trigo

500ml de água de beterraba (1 beterraba cozida)

100g de açúcar

20g de sal

30g de leite em pó

80g de margarina

20g de fermento instantâneo

1 ovo (para pincelar os pães)

Modo de fazer

Cozinhe a beterraba e bata no liquidificador a metade dela com a água. Separe 500 ml dessa água de cozimento da beterraba e coloque em uma bacia, acrescentando açúcar e o fermento, e mexendo até misturar bem.

Em seguida, coloque os demais ingredientes e misture novamente. Ponha a massa na bancada untada de óleo e sove até conseguir o ponto.

Deixe a massa descansar por 10 minutos, coberta com um plástico. Depois disso, faça bolinhas de 30 gramas boleando os pães.

Pincele com gema e deixe fermentar, ou seja, dobrar de tamanho. Em seguida, leve para assar em forno médio de 180 graus.

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“Não tenho uma lembrança marcan-te relacionada a cozinha na minha casa, porém lembrei de um fato muito importante na minha infância. Eu e meus pais, na época, erámos mui-to humildes, sem recursos de festejar os aniver-sários. Mas, mesmo assim, essa data não pas-sava batida. Lembro que minha tia Conceição fazia bolo com recheio e enfeitava com glacê e bolinhas de açúcar prateadas (duras e doces). Como não podíamos comprar refrigerante, ti-nha suco em pó. Na hora dos parabéns, a família toda ficava junto. Éramos felizes. Hoje, amo co-

zinhar. Passo a maior parte do dia na cozinha. Minhas filhas fazem parte da minha história de como tudo se iniciou, em 2011. Eu fazia bolos e tortas, e elas vendiam. Em 2012, conheci a Ofici-na Escola, onde tive a oportunidade de me aper-feiçoar. Lá consegui desenvolver meu próprio negócio e ter uma renda. Atualmente, tenho mi-nha cozinha industrial, com muito comprome-timento e garra. Devo muito a todos do Galpão, que acreditaram em meu trabalho. Amo o que faço e é gratificante e prazeroso levar alegria e satisfação por meio do que cozinho.”

“É gratificante levar alegria por meio do que cozinho”

Joseilda do Nascimento Silva

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Aulas na Oficina Escola de Culinária

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SABORES DE

ENCANTO5 0 A N O S

Jussara da Silva

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Um pouco de farinha, água, ovo e sal. Dessa mistura se formava uma massa bem dura, feita para se abrir com uma garrafa de refrigerante e só depois fritar. É aí que mora um pedacinho da infância de Jussara, vivida, em partes, em uma casa simples, na Bahia. A receita prática e bem rápida de preparar dava origem a uma espécie de pastel sem recheio, que era chamado de “beira seca” e que ela, ainda menina, pedia à mãe para fazer e vendia de porta em porta para ganhar algum dinheiro. Quando saía de casa, cheia dos pacotinhos de beira seca, ela só voltava literalmente com as mãos abanando, depois de ter vendido tudo.

Com 10 anos de idade, ela improvisou seu primeiro comércio: uma merce-aria simples, que a menina montou na sala de casa. Para começar, a pequena juntou os trocados que tinha e deu para que a mãe comprasse algumas coisas, como arroz, feijão e açúcar, para que pudesse começar o pequeno negócio. No princípio, todo o dinheiro que entrava era empregado na compra de mais produtos para a venda, mas logo chegou ao ponto em que toda a brincadeira passou a lhe dar um modesto retorno financeiro. E até os irmãos, mais velhos, trabalhavam para ela, organizando e repondo as mercadorias.

Esse jeito de empreender é uma característica que sempre a acompanhou. Mesmo naqueles momentos em que as coisas aparentam não estar assim tão bem, lá vai ela com sua simpatia e seu coração gigante dar um jeito de recons-truir o que foi partido. E foi assim que dali, da vida e da infância na Bahia, ela se espalhou. Desde a morte de seu pai, a mãe passou a viajar para diversos lugares diferentes e, de tempos em tempos, as mudanças traziam para Jussa-ra a oportunidade de se adaptar a uma nova casa e a uma nova vida. Muitas vezes, não dava tempo nem de se afeiçoar a algum lugar – mal chegavam e já era hora de partir.

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Todo esse movimento que tomou parte de sua infância e também adoles-cência trouxe também um certo cansaço e a necessidade de firmar terreno em algum lugar que pudesse chamar de lar. Foi São Paulo que ganhou o coração de Jussara. Mas todas as possibilidades de crescimento e as ideias do que poderia construir ali não foram as únicas responsáveis por sua decisão de permanecer na cidade. Além de uma nova casa, São Paulo trou-xe a oportunidade de encontrar o amor e, logo aos 16 anos, ela se casou e fincou ali, na Zona Leste, suas primeiras raízes longe da mãe e dos irmãos, para então começar a construir a sua família e a viver uma nova história.

Talento de infânciaPor passar a maior parte da infância sozinha, tendo só sua imaginação como companhia, Jussara precisou aprender a se virar e a preparar as pró-prias refeições. No entanto, quando se mudou para São Paulo, nem sequer pensava em ter a culinária como profissão. Tanto que, antes de trilhar por esse caminho da cozinha, ela se aventurou por outras estradas. Foi ela, por exemplo, quem levou a primeira locadora de fitas de vídeo para o bairro em que mora, na Zona Leste paulista. Na época, o pequeno cômodo, construído por ela e pelo marido em um terreno de família, era o sucesso da região: todo mundo queria levar o seu filme preferido para assistir em casa.

Só que todo o arquivo de fitas e DVDs não resistiu à chegada da internet no bairro. Com a baixa do movimento e dos clientes, mais uma vez Jussara colocou a imaginação em ação e, em poucos dias, ali no pequeno cômodo começava a funcionar uma lan house, com internet boa, computadores rápidos, e a disposição de Jussara em atender cada cliente e encarar um novo desafio. O empreendimento durou cerca de seis anos, aberto de se-gunda a segunda, durante boa parte do dia. Quando fechou as portas, ela decidiu que não abriria ali mais nenhum comércio, um pouco pelo cansaço da rotina sem folgas, mas também pelo desejo de explorar outras áreas.

Nesse período, entrou para a faculdade e estudou por um ano, dedicou--se mais à família composta pelo marido e os dois filhos, tentou um emprego fixo com horário de entrada e de saída, experimentou ver a vida por um ângulo diferente daquele a que estava tão habituada desde menina. No entanto, as tentativas não fizeram muito sucesso. E logo o coração inquieto de Jussara voltou a querer pulsar por um propósito maior: o pensamento de ser, outra vez, a dona do próprio negócio. Mas o que fazer, então? Pensa daqui, conversa dali, imagina de lá... Foi aí que, junto à amiga e hoje sócia, Simone Aparecida, surgiu a ideia de trabalhar com algo que fosse rela-cionado a comida. E, dispostas a executar o plano, começaram a mexer os

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pauzinhos para que tudo pudesse acontecer. O primeiro passo foi a busca por cursos que auxiliassem nesse caminho de aprendizado e aperfeiçoamento. Por meio de pesquisas na internet, descobriram o Galpão, a Oficina Escola e os cursos oferecidos por lá. De imediato se inscreveram e, pouco tempo depois, selecionadas para participar do primeiro curso, começavam uma longa jorna-da de aulas, sabores e aromas novos. Só que Simone não conseguia participar de todos, pois trabalhava muito na época. Já Jussara estava presente em todos: aprendeu sobre panificação, confeitaria, massas, doces, bolos, salgados. E, o mais importante, ganhou força e capacitação suficientes para empreender e trilhar um novo capítulo de sua história, chegando cada vez mais perto de si mesma e desse reencontro guiado pelas receitas e por seus ingredientes. “A gente não aprendia só sobre comida, mas também a calcular quantidade de produtos, a saber por quanto vender alguma coisa, a investir financeiramente pelo tempo necessário, para agora começar a receber os lucros. Tudo o que passamos lá, nos cursos, foi muito importante para que pudéssemos crescer e estar onde estamos hoje.”

A descoberta de um domAli, no Galpão, entre tantas coisas novas para ver e aprender, o desejo de Jussa-ra foi florescendo. No começo, aquele medo grande (e tão comum no princípio) de não dar certo fez com que ela e Simone trabalhassem na cozinha de casa mesmo, produzindo salgados para vender e também algumas encomendas. Toda a divulgação era feita pela internet, por meio de redes sociais e com-partilhamentos de conhecidos e amigos. Aos poucos, a demanda começou a crescer, os elogios foram aparecendo e o desejo de abrir novamente o próprio negócio começou a tomar uma forma mais precisa e forte. Quando perceberam o potencial de tudo o que podiam produzir juntas, tomaram coragem e deci-diram se tornar sócias da lanchonete Point Tropical, que passou a funcionar no mesmo cômodo que abrigava a antiga lan house de Jussara.

Para que tudo pudesse acontecer, as paredes do espaço ganharam novas cores e a cozinha, uma cara nova, recebendo aos poucos vários equipamentos, como freezer, geladeira, fogão, forno, micro-ondas. No hall, onde são servidos os lanches, mesinhas coloridas que também se espalham pela calçada em dias de maior movimento, balcão para atendimento e, claro, espaço para o açaí e o sorvete que, segundo Simone, são os melhores da região. Tudo foi pensado e criado cuidadosamente para receber, aconchegar e servir quem passasse por ali e decidisse ficar. E nem foi muito difícil conquistar uma clientela fiel: o comércio foi o primeiro por perto a vender lanches diferenciados, feitos da forma mais artesanal possível, o que despertou a curiosidade dos vizinhos e

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também da concorrência. Tanto que, pouco tempo depois, muitos comércios surgiram com a mesma ideia e intenção de Jussara: servir lanches rápidos e gostosos, com qualidade e dedicação. Mas isso não diminuiu em nada o movi-mento e o sucesso da lanchonete, nem a desanimou de seguir seu caminho. “Na época, muita gente disse que não ia dar certo, que eu era maluca em abrir uma lanchonete aqui. Mas eu tinha certeza de que era o que eu queria. E quando a gente tem certeza assim, deve ir e fazer o que sente. Desde que vim para cá, em 2017, já vi muita gente também vendendo lanches. Mas meu movimento nunca caiu. Às vezes as pessoas saem de outro lugar e vêm para cá.”

Do cardápio da lanchonete, além do sorvete e do açaí, saem as mais sabo-rosas refeições: sanduíches, hambúrgueres, misto quente, porções variadas, batata frita, e o tão famoso (e gostoso) Hot Dog Especial. Na receita secreta, criada por Jussara, vai um verdadeiro combo de gostosuras de dar água na boca: queijo cheddar, muçarela derretida, purê de batatas, carne desfiada, sal-sicha, milho e mais uma porção de ingredientes que, juntos (e com o tempero de Jussara), ficam ainda mais irresistíveis. E não adianta: a maioria das pessoas que passam pela lanchonete volta rapidinho para comer mais um hot dog, que só a Point Tropical tem.

Para agilizar o trabalho na lanchonete, o armazenamento dos materiais que Jussara e Simone utilizam na cozinha é feito cuidadosamente com o auxílio do que aprenderam nos cursos no Galpão. Tudo é congelado na temperatura correta, em pequenas porções suficientes para preparar cada cachorro-quen-te, assim como os outros pratos que também saem de lá. Em dias de muito movimento, por exemplo, é praticamente impossível se dedicar tanto às pane-las e ao fogão. Então, manter tudo ao alcance das mãos é necessário para que cliente nenhum saia insatisfeito. Todo esse procedimento, que aprenderam nos cursos, ajuda também a evitar o desperdício de alimentos e garante mais praticidade ao trabalho, além de cuidar para que o sabor não se perca, mesmo passando pelo processo de descongelamento.

Em dias comuns, as portas da lanchonete abrem entre às 14h e 15h. E só se fecham por volta de meia-noite. Já nos dias de movimento maior, muitas vezes a cozinha só encerra as atividades lá pelas duas da manhã, ou até um pouco mais tarde. É uma rotina cansativa, com pausa apenas às segundas-feiras, para aproveitar a casa, a família e os filhos. Mas nem Jussara, nem Simone se arre-pendem ou pensam em desistir. Já com dois anos de parceria e de portas abertas do estabelecimento, no coração elas carregam a certeza de ter encontrado na culinária o melhor caminho: aquele que escolheram, seguindo o sabor e o rumo dos próprios sonhos.

“Na época, muita gente disse que não ia dar certo, que eu era maluca em abrir uma lanchonete aqui. Mas eu tinha certeza de que era o que eu queria. E quando a gente tem certeza assim, deve ir e fazer o que sente”

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E, por falar neles, o que não falta são bons desejos na lista mental de próxi-mas realizações. Jussara nem guarda muita coisa, além da vontade de ampliar a lanchonete e começar também a venda de pizzas, para agradar a todos os clientes, sem exceção. Abrir uma outra loja na rua principal do bairro também é uma das metas que se desenham entre os pensamentos e a vontade de seguir com leveza por um caminho honesto e livre, cheio de sabores, aromas e muita luta. Caminho esse, inclusive, que já lhe trouxe tantos medos e incertezas, mas também muitas alegrias. E é por elas que Jussara não deixa de acreditar e de ter esperanças em dias mais doces.

Mas nem pense que a vida de Jussara é feita só de salgado e hot dog. Não. Essa doçura dos dias, às vezes, vem também em forma de bolo e de algumas lembranças guardadas entre as receitas mais antigas. Ali, em meio a tantas coisas salgadas no dia a dia da lanchonete, quase não sobra tempo para pensar em cozinhar outros pratos. Mas, sempre que dá, do forno sai um bolo quenti-nho, de uma receita tradicional de família, que ela não passa para ninguém e faz questão de preservar na memória, no olfato e no paladar. Aí, é só preparar o café e se aconchegar entre as lembranças e os sabores de tantas histórias a contar e ainda muitas outras para viver.

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66 Receitas — Cozinh a de a fetos

Bolo fofura

Ingredientes

5 ovos

2 xícaras e meia (chá) de açúcar

3 colheres (sopa) de margarina

4 xícaras (chá) de farinha de trigo

2 xícaras e meia (chá) de leite

1 colher (sopa) rasa de fermento

Modo de fazer

Separe as gemas da clara. Bata as claras em neve e deixe à parte.

Bata as gemas e a margarina até que formem um creme homogêneo. Depois, vá acrescentando a farinha de trigo (se peneirar a farinha, ela fica mais fina e o bolo, ainda mais fofo). Acrescente as claras em neve e, aos poucos, coloque também o leite.

Por último, adicione o fermento. Asse por uns 45 minutos em forno médio.

“Aos 10 de idade, comecei a entender certas coisas que aconteciam ao meu redor. Uma delas era a dificuldade da minha mãe em criar os três filhos sozinha. Sem em-prego, se prostituindo e muitas vezes pedindo esmola. Eu observei que ti-nha que fazer algo. Como fui muito observadora, na época, enxerguei uma ótima oportunidade por meio de um aperitivo que estava vindo como acompanhamento e brinde em uma cerveja. E que todos adoravam – eu só não entendia o sucesso daquele ape-ritivo. Então, lembrei que minha mãe fazia umas bolinhas doces e um pas-tel tipo beira seca. Chamei minha mãe e disse a ela que gostaria que fizesse aquela beira seca para eu vender em alguns bares do bairro. Minha mãe não deu muito crédito ao pedido. Mas

“Chegando ao Galpão, minha mente começou a criar imaginações”

Jussara Ferreira da Silva

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insisti muito e ela não só fez como também me ensi-nou a fazer. Então eu ia fazendo e vendendo. Cada dia que passava eu ia melhorando e os salgados iam ficando mais gostosos. Só que, do nada, apa-receu uma outra pessoa vendendo também e, por incrível que pareça, era da minha idade, 10 anos. No primeiro dia, senti muita raiva dela e queria atropelá-la, mas não era possível. Já no quarto dia, fiquei com muito dó dela, porque percebi que ela voltava com todas as beiras secas para casa. Então decidi ensiná-la e vender as delas, logo depois que as minhas acabavam. O negócio ia dando certo. E eu estava muito feliz. Consegui juntar dinheiro e pedir para minha mãe montar uma minimercearia num espaço pequeno que tinha na minha casa. Eu pagava para os meus irmãos mais velhos cuidarem e continuava vendendo minhas beiras secas.

Mas, devido a problemas com minha mãe, de-cidi ir embora da cidade. Depois disso, parei de trabalhar por conta. Pensei ‘deixa que minha mãe se vira do jeito que ela quiser’. E comecei a fase da

minha adolescência curtindo, não me importan-do com o que tinha ou deixava de ter e nem lem-brando o que minha mãe fazia. Aos 16, casei. Então resolvi montar uma lan house, de onde me cansei muito rápido. Fechei o negócio e fui me dedicar só à minha família. Mas ficar parada era pior que na época da lan house. Então pesquisei na internet algum curso que poderia fazer para trabalhar em casa. E no meio da pesquisa apareceu o Galpão Tide Setubal, que oferecia cursos gratuitos. Era tudo o que precisa, afinal eu não tinha uma renda para pagar pelo curso. Pensei que aquilo seria interes-sante para aprender a cozinhar para as crianças. Chegando ao Galpão, entre vários cursos e pessoas, minha mente começou a criar imaginações. Minha confiança, daquela menininha que vendia aquelas beiras secas, estava voltando a ter vida. Seria pos-sível? Então me inscrevi no Galpão para aprender confeitaria e terminei o curso. E me senti mais apta. Estava, assim, pronta para dar vida ao Point Tropi-cal, a melhor lanchonete do bairro.”

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O DOM DE

CUIDAR4 1 A n O s

Leila Andrade

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No tacho em que a vida é feita, Leila tem como ingredientes a per-sonalidade forte e carinhosa do pai e também a habilidade de mostrar afeto por meio da comida, herança da mãe. Essa alquimia lhe ensina a pegar no colo quem precisa de amparo e, com isso, o seu dom, o cuidar, se fortalece quando ela abre espaço para o propósito de sua vida. Leila nutre quem está à sua volta com carinho, amor e alimento, que, mais do que nutrientes, leva emoções e sensações que vão além do que se pode explicar em uma simples receita. Sua história é recheada de muitos sabores que se apresentam em forma de coragem, compaixão, alegrias e experiências das mais diversas. De tudo que já viveu, aprendeu a usar o tempo como ferramenta principal para a sua transformação, e agora sabe a importância de acreditar no seu potencial.

Leila nasceu e cresceu em São Paulo. Sua mãe, Waldeci, a Wal, nasceu no interior da Bahia e, com 17 anos, foi para a capital paulista, onde ficou. Seu pai, David, é pernambucano, de Pesqueira, mas cresceu no Piauí. “Meu pai conta que, quando ele era criança, houve uma seca muito grande e a família saiu da cidade e se arranjou no Piauí.” Aos poucos, os irmãos de seu pai migraram para São Paulo até a hora em que chegou a vez do próprio David.

Da união de David e Waldeci, Leila é a filha do meio. Ednaldo é o mais velho e Luciana, a caçula.

Era começar a juntar o óleo, o alho e a cebola no fundo de uma panela e Leila e Luciana, irmãs inseparáveis desde a infância, já se aconchegavam pela cozinha, o mais próximo do fogão que podiam. “O cheiro de arroz frito lembra muito a minha infância. Minha mãe deixava a gente comer ele assim, e adoráva-mos”, diz, fechando os olhos para voltar no tempo. Outra delícia preparada na cozinha da Wal era a carne cozida com legumes. “Ela colocava batata, cebola, abóbora e, depois de feito, ia tudo para um prato só na mesa, e fazia o famoso

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capitão. Ela amassava a comida com a mão, fazendo um bolinho, e nos dava o almoço enquanto eu e minha irmã pulávamos pela sala.” Leila conta que o sabor dessa carne era único e que a lembrança ficou para sempre com ela.

Na casa, dificilmente entrava algo industrializado. A mãe preparava tudo com muito amor e carinho. “Minha mãe fazia cocada, doces, pães e sempre foi natural para a gente ter tudo fresco desse jeito. É a forma dela de dar carinho.”

Pão de melLeila conta que considera o pão de mel seu filho. Ele surgiu em sua vida num momento muito delicado e importante, como uma luz no escuro. “A partir dele, eu consegui começar, mesmo de forma inconsciente, a ir saindo da depressão”, conta. Anos antes, Leila já vinha vivendo com depressão e síndrome do pânico, mas, durante seu emprego em uma clínica, sentiu os sintomas mais fortes em decorrência do alto estresse que encontrou por ali e que não combinava com seu estilo de vida. Seu chamado para trabalhar na área da saúde começou muito antes daquela experiência, quando a vida lhe dizia sobre seu dom, o cuidar. “Durante muito tempo, um hospital quis me contratar, me oferecer um plano de carreira, mas eu dizia que aquilo não era para mim.”

Mais tarde, no entanto, Leila começou a trabalhar em um consultório médico, como secretária, e se aproximou um pouco desse universo. Com o objetivo de evoluir, aceitou uma posição em uma clínica dermatológica, que lhe abriu a oportunidade de se aprofundar em alguns procedimentos e, então, resolveu investir em uma formação como auxiliar de enfermagem. Lá, conheceu a professora Luciana, que lhe deixou um ensinamento impor-tante. “Ela é um ser humano sem igual. Dizia que o curso de enfermagem abria um leque gigante para a gente. O cuidar não era só a enfermagem, que podíamos ir além. Aquilo me marcou muito e, mais tarde, fui entender.”

Durante o tempo na clínica, sentiu seus limites serem testados, princi-palmente porque não queria ficar desempregada. “A gente se acostuma a ter nossa rotina, então fui brigando comigo mesma. Eu pensava em estudar mais o assunto, mesmo sabendo que não era minha vocação. Eu queria me estabilizar.” E emenda: “mas, em um determinado momento, eu parei mesmo. De repente, me vi não tirando um prato do lugar, era como se eu tivesse parado de funcionar”, finaliza. Na ocasião, Leila conta que só saía de casa para ir ao terapeuta, uma vez por semana, e ao médico, uma vez por mês. “Ficava tanto tempo em casa, no silêncio e no escuro, que, quando saía, a luz do dia fazia meus olhos doerem”, diz.

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Em casa, Leila, aos poucos, voltou seus esforços para uma atividade que lhe acompanhava sempre: preparar trufas. Sua mãe era promotora de vendas na época e, então, tudo que a Leila preparava, ela levava para vender entre as co-legas de trabalho. “Eu sempre mexi com chocolate, algo que aprendi com uma amiga e, naquele momento, vi que era uma forma de ajudar na renda da casa.”

Até que um dia chegou um pedido das colegas de trabalho da mãe de Leila: por que você não faz pão de mel? “Achei uma receita, comecei a testar e gostei. Aí fui fazendo, e as meninas que trabalhavam com a minha mãe compravam e até botavam preço”, diz, rindo hoje dos pequenos empurrões que a vida dá. Leila ficou tão especialista em pão de mel que ganhou fãs, inclusive entre pessoas que não comiam o doce. Seu segredo, conta ela, é olhar para ele percebendo mais do que alimento, é ver no doce algo para aguçar sensações. O pão de mel fez isso por ela, deu um sentido para as emoções de Leila. E, como se a vida dela fosse um tacho de doce de leite sendo preparado para aquela receita, ela, inconscientemente, sentiu novamente sua jornada se movimentar.

O próximo passo dessa receita foi dado com a ajuda de sua amiga, Priscila, que então a convidou para fazer os doces de seu casamento. “Eu nunca tinha feito, então disse que precisava aprender”, comenta. Na época, ela ainda estava em depressão, e sua amiga disse que seu irmão conhecia uma chef, e que ele poderia ajudá-la a encontrar um curso. Foi assim que Leila teve o primeiro contato com Daniela Romão. Coincidentemente, ela estava para iniciar o cur-so de doces finos para casamento. “No meu primeiro dia na Oficina Escola de Culinária, minha cunhada, Cristiane, me levou até lá. Eu não conhecia a comu-nidade em que o Galpão estava, mesmo morando na região há algum tempo.” Essa sensação do desconhecido assombrou Leila, que ainda vivia os sintomas da depressão e do pânico na pele. Ela se recorda de entrar e fazer a inscrição, assistir à aula e sentir os sintomas de quem ainda não estava pronta para lidar com o inexplorado. “Eu pensava em como sairia dali. Aí pedi para acompanhar as meninas que iam para o mesmo sentido que eu. Meu coração estava muito acelerado e me lembro do alívio ao chegar em casa.”

Na segurança do lar, ela resolveu conversar sobre a experiência com a irmã, Luciana, que a incentivou a se manter por lá. “Eu estava assustada, vivia com medo de tudo, mas ela me tranquilizou e consegui voltar, sozinha.” Leila havia gostado da experiência na Oficina e, de alguma forma, queria seguir. “Mais do que a Oficina, me senti acolhida pelo Jardim Lapena e por todas aque-las pessoas, e fui ficando.” Leila conta que foi fazendo curso após curso. “Para mim, era o modo de eu conseguir sair de casa que não fosse ir para a terapia ou para o médico”, diz, relembrando esses tempos. Quando estava no fim das capacitações, começou a se preocupar em, sem a Oficina, não conseguir mais

“No meu primeiro dia na Oficina Escola de Culinária, minha cunhada, Cristiane, me levou até lá. Eu não conhecia a comunidade em que o Galpão estava, mesmo morando na região há algum tempo”

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sair de casa novamente. Junto de uma amiga feita ali entre os balcões da escola, a Cida, então lhe veio a ideia: “a gente pode vir ajudar vocês?”. Os professores Lúcio e Daniela não tinham ajudantes na época e acabaram aceitando que as duas fossem assistentes durante os próximos cursos.

Um dia antes de assumirem a nova função no Galpão, Cida teve um pro-blema de saúde e não pôde comparecer ao voluntariado. “Foi mais um desafio para mim. Me perguntava: ‘como eu vou sozinha?’. Até então era algo que eu havia assumido com mais gente, estava mais segura, mas agora estava sozinha. Eu disse, tenho que ir, mesmo morrendo de medo, ou poderia nunca mais sair de casa. Sabia que eu precisava sair e seguir tendo contato com pessoas”, diz, mostrando a determinação em sua fala, mesmo quando o medo teima em que-rer queimar o fundo da panela. Mais tarde, sua dedicação voluntária trans-formou-se em uma oportunidade de trabalho. “Sempre recebi muito carinho na Oficina, nossa ligação se liga pelo camafeu de nozes”, diz, rindo das coin-cidências da vida. O detalhe aqui é que, no fim, os docinhos do casamento da Priscila, que eram o objetivo inicial, seguiram por outras mãos. Mas, mesmo assim, neles moravam outra demanda, que ia além do sabor que representam numa festa.

Cuscuz doceLeila aprendeu a cozinhar observando. Quando sua mãe começou a trabalhar fora, ela se aproximou do fogão para ajudá-la e, sem perceber, passou, à sua maneira, a cuidar de todos que ali moravam.

Em uma das formações na Oficina, Leila levou para a sala de aula uma recei-ta de seu avô, que se tornou costume na família: o cuscuz doce. Ela conta que o pai de sua mãe, José Pedro, o Zé, era hipertenso e que, por isso, o médico proibiu o consumo de sal. Como bom nordestino, ele era apaixonado pela iguaria e tinha muita dificuldade de abrir mão dele. Sua esposa, Maria do Carmo, a avó Maria do Caju, começou então a prepará-lo com açúcar. “O cuscuz nordestino não é salgado para mim, ele é doce, sempre foi”, diz Leila, rindo da criatividade de sua avó na cozinha. “O cuscuz doce foi a forma que a minha avó encontrou de fazer algo que meu avô apreciava muito, é a forma que ela cuidava dele”, finaliza. Dali em diante, toda a família aprendeu a comê-lo apenas desse jeito.

Assim como foi para sua avó, a cozinha para Leila tem esse significado, a forma de cuidar do outro, mas também de si. Quando questionada sobre como é que se sente entre panelas e fogão, ela diz se esquecer de tudo. “Sou eu e a cozinha, não vejo mais nada, me desconecto. Fico 12, 13 horas trabalhando de forma muito natural. Estar nesse espaço me faz tão bem. Mexer com doces me traz alegrias”, diz. Indo mais adiante hoje, Leila vê na nutrição sua tranqui-

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lidade. “Me sinto feliz na cozinha e a nutrição tem me ensinado a olhar mais firme para o simples. O arroz, o simples feijão, aquela comida caseira, tudo isso tem tanto valor e tem me deixado tão feliz quanto preparar o doce.” Leila, em 2019, se forma como técnica em nutrição e conta que esse desejo de caminhar no significado do nutrir veio de dentro da Oficina. “Foi numa conversa com o Lúcio que esse assunto surgiu. Na Oficina, eu enxerguei que o alimento fazia parte da minha vida e que eu poderia ter aquilo como profissão. Até então era um bico.”

Leila sempre se interessou em saber o que era o alimento, como funcionava no organismo, o que dá a união deles, o que fazer ou não. “Sinto que tenho uma percepção profunda do alimento”, diz, analisando sua relação com sua esco-lha profissional. “Lembro do Lúcio me dizer que esse poderia ser o caminho e, então, comecei a buscar cursos.” E completa: “hoje, estudando nutrição, as minhas colegas falam ‘Leilinha, você vai cuidar bem da gente?’, e eu digo ‘Eu não vou, não, vou deixar passar fome’”, comenta, aos risos, apontando que também é vista pelo cuidado junto aos amigos do curso – como um dia também ela foi cuidada na Oficina.

Aprendendo e ensinandoDepois de todas as experiências vividas até aqui, Leila diz que hoje já fica bem em grupos, fora de casa. Tudo isso faz parte da sua trajetória. “Hoje fico bem na sala de aula, por exemplo, consigo lidar com as pessoas e não sinto mais medo.” E, quando pensa sobre o futuro, conta que o vê ora aprendendo, ora ensinando. Vê-se na cozinha, perto dos alimentos. “Hoje eu já não faço muitos planos, apesar de sempre ter objetivos. Sei que quero fazer um curso superior em Nutrição. Eu nunca tinha imaginado fazer uma faculdade, hoje eu enten-do que eu posso”, diz, emocionada. “No Galpão, a gente vê que o aprendizado não para. E com a nutrição eu vi que eu sei aprender com o outro e que posso ensinar também”, conta Leila, sonhando com um dia poder ter uma carreira acadêmica também. Ela diz que hoje entende o que sua professora no curso de enfermagem dizia. “Existem várias formas de cuidar, e a minha é essa, por meio do alimento. Assim como a minha avó, com o cuscuz, com meu avô. Assim como minha mãe, que cozinha para dizer ‘eu te amo’.” Uma das formas que Leila gosta de cuidar é servindo um bolo de maçã, uma de suas receitas preferidas, que colocamos a seguir.

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Bolo de maçã

Ingredientes

Para o crumble

115g de manteiga sem sal

170g de açúcar

2 colheres (chá) de canela em pó

¼ de colher (chá) de sal

160g de farinha de trigo

Para a massa:

1 xícara (chá) de aveia em flocos finos

1 tablete de margarina

1 xícara (chá) de açúcar

3 ovos

3 maçãs descascadas e cortadas em cubos

1 xícara e meia (chá) de farinha de trigo

1 colher (chá) de canela em pó

1 colher (sopa) de fermento em pó

Modo de fazer

Para o crumble, misture a manteiga, o açúcar, a canela e o sal. Em seguida, junte a farinha até formar uma farofa e reserve.

Para a massa, em uma tigela, bata a margarina e o açúcar até obter um creme. Junte os ovos, as maçãs e misture bem. Adicione a aveia e a farinha de trigo e continue a misturar até obter uma massa espessa. Acrescente canela em pó e o fermento. Unte uma fôrma com margarina e coloque a massa. Polvilhe, sobre a massa, o crumble.

Leve para assar em forno pré-aquecido a 180 graus por, aproximadamente, 40 minutos.

Receitas — Cozinh a de a fetos

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“Hoje entendo, percebo o quanto a Oficina Escola de Culinária tem um papel de transforma-ção na minha vida, de poder viver sem medo dos outros. Quando cheguei lá, foi por conta de um ca-samento de uma amiga, que me pediu para fazer os doces da festa dela. Eu sempre tive amor em fazer doces (trufas, pão de mel), mas nunca havia feito doces de casamento. Essa mesma amiga me falou que ia me ajudar com cursos gratuitos (eu estava desempregada na época). Foi aí que ela me colocou em contato com a Dani, a Daniela Romão, via Face-book. E, por coincidência, o lugar onde a Dani dava aulas, o Galpão, tinha cursos de doces finos para casamento. Liguei para a Talita, que solicitou que eu chegasse mais cedo para fazer a inscrição e já realizar a aula. E foi o que eu fiz. Minha cunhada me levou até lá e então fiz o primeiro curso de uma série de cursos livres, com os professores Dani e Lúcio. Depois me inscrevi no curso de capacitação de panificação e confeitaria. No final desse curso, fiquei um pouco sem chão por saber que não iria mais ir até lá de segunda a sexta, como estava fa-zendo havia meses. Aquele lugar tinha se tornado parte da minha vida.

Até começar o curso, eu estava havia cerca de dois anos sem sair de casa, com depressão, sín-drome do pânico, estresse pós-traumático. Tinha medo de gente, resultado de um assédio moral que sofri no local onde trabalhei por alguns anos.

“O alimento me ajudou a me refazer, redescobrir e recomeçar”Leila Carmo de Andrade

Achava que não conseguiria mais ter uma vida social normal. Após o término da capacitação, me voluntariei com outra amiga para ajudar o Lúcio nas aulas. Para nossa surpresa, ele permitiu. No dia de começarmos, minha amiga foi levada às pressas para o hospital. Estava com câncer de ovário e teve que ser operada com urgência. Fui sozinha e aí co-meçou mais uma jornada. Quando menos esperei, por meio do trabalho voluntário, fui convidada para trabalhar como contratada. Felicidade que não cabia dentro de mim. Ali encontrei, como tan-tas outras mulheres, acolhimento e respeito. Nessa história, como em tantas outras, o alimento me aju-dou a me refazer, redescobrir e recomeçar. Hoje, dei mais um passo nessa caminhada, com o curso de Nutrição e Dietética, que tem me feito pensar e aprender mais o quanto o alimento faz parte da minha vida sempre.”

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Aulas na Oficina Escola de Culinária

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Maisa Melo

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Maisa é feito festa tranquila. Recebe bem, acomoda os convidados e, aos poucos, vai servindo porções da sua história. Brinda cada momento cotidiano com um toque especial e uma experiência única. E, desse modo, mostra que todas as suas passagens pela vida são adocicadas – mesmo em dias difíceis. Com uma fatia de bolo bem servida nas mãos, abre caminho para mostrar seus sentimentos e sensações diante do que viveu e, indo além, dos sonhos que guarda para si e sua família. Nesse prato, cabe o respeito por quem faz parte do seu passado e por quem escolheu construir o futuro ao seu lado. Maisa mantém o mesmo entusiasmo para receber outras pessoas que irão passar por ela ao longo da festa que é a vida.

Ela nasceu em São Paulo, em Pirituba. Seus pais, Jesumiro, apelidado de Gelso, e Maria, são filhos de outros Estados. O pai é baiano, de Jequié, e a mãe, mineira, de Januária. Os dois se encontraram na capital paulista e desde então não se separaram mais. “Minha mãe morava aqui ao lado quando meu pai veio para cá com um primo e alugaram essa casa que hoje é nossa. Eles casaram e fi-caram por aqui.” Maisa conta que Gelso e Maria são pessoas simples e que sem-pre trabalharam muito desde que desembarcaram em São Paulo. Ela lembra que, quando pequena, sua mãe, que era empregada doméstica, a levava junto para o trabalho. “Quando comecei a estudar, passei a ficar com vizinhos para não faltar na escola”, diz. O pai foi metalúrgico e, ao longo da vida, construiu um pequeno bar no mesmo terreno da casa deles, e hoje dedica-se ao comércio, mesmo depois de aposentado. Ela herdou a garra e o pragmatismo dos dois.

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“Meus pais sempre foram pés no chão. Se eu quero fazer algo, diziam, eu tenho que ter meios.” Com orgulho, diz que faz o mesmo. “Se eu não tenho recurso, não tem por que gastar sem necessidade. Esse pensamento vem muito dos meus pais”, diz. Aos 16 anos, ingressou em um curso técnico: mecânica. À primeira vista, o que queria era sua independência financeira, mas, ao longo dos estudos, mudou de opinião. “Eu percebi que gostava de mecânica e aí o foco não foi mais só a bolsa. Minha turma tinha 13 meninos e duas meninas. Achava interessante as pessoas olharem e verem uma mu-lher trabalhando com isso”, diz, orgulhosa da sua trajetória na profissão.

Memórias docesUm ano para a Bahia. Noutro, rumo a Minas. Maisa conta que sua rotina de férias ao longo da meninice foi assim. “Meus pais intercalavam as viagens para poder ver as duas famílias.” Apesar de se encontrar pouco com eles, ela tem a recordação da casa cheia de primos e tios. As avós, como não po-deria deixar de ser, além da presença em forma de pensamento, também aguçam sentimentos pelo paladar. “Eu me lembro muito bem dos biscoitos que a minha avó de Minas fazia.” O ginete é um biscoito feito de polvilho doce, manteiga e ovos. “Minha vó, para fazer o biscoito, fazia um furo com a faca no fundo na latinha de extrato de tomate, que era algo muito difícil de encontrar na roça, e a enchia com a massa. Ela apertava a massa com as mãos para que, do outro lado, saísse no formato do corte em cima da forma”, e emenda: “eu, criança, ficava encantada com aquilo e pensava, como a vó conseguia?”.

A avó Evangelina, a Vanju, que é mãe da Maria, mora até hoje em Janu-ária e é quem faz biscoitos como ninguém. Maisa conta ainda que, além de ginete, ela faz o peta. “É um biscoito bem seco, simples, mas eu olho para ele e logo me lembro da infância. Lembro da minha avó preparando. Ela tinha um quartinho na casa da roça que era a dispensa. Eu adorava me esconder lá e, quando me achavam, eu estava comendo peta.” Não adianta trazer o biscoito comprado. Maisa sabe logo diferenciar um do outro. “Minha mãe foi viajar para Minas e trouxe, mas não foi a minha vó que fez, então não é a mesma coisa”, diz, rindo. Da Bahia, a recordação chega em forma de doce (de leite) e requeijão. “Quando criança, para mim, requeijão se fazia na Bahia, e queijo era em Minas”, diz. Na Bahia, morava a avó Rita, que fa-leceu há três anos. De lá, além da memória adocicada que ocupa o paladar, o olfato também é instigado e, com isso, os olhos da Maisa se enchem. “Sabe quando você conta uma recordação e na hora dá vontade de chorar? Minha avó morou muitos anos na roça. Eles foram mais tarde para a cidade em

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busca de uma vida mais tranquila e levaram muitas coisas. Lembro de chegar lá na casa e encontrar um armário que estava na casa antiga. Quando eu o abri, senti o mesmo cheiro que sentia lá, quando pequena. O cheiro ainda estava lá e, de repente, eu podia ver tudo que eu vivi na casa dela”, diz, emocionada.

Festa de aniversário“Eu nunca tive uma festa de aniversário”, conta Maisa. “Mas, em compensação, minha mãe juntava o dinheiro que tinha e me falava: ‘hoje eu vou te levar para passear’.” Ela conta que, então, as duas iam ao shopping, brincavam e faziam compras. Os aniversários de Maisa sempre foram repletos de amor e carinho, não precisavam de bolo e brigadeiro. “O que ela podia fazer era aquilo.” Mas, quando sua filha Lorena, hoje com 6 anos, fez seu primeiro aniversário, Maisa organizou para a pequena uma festa com direito a bolo e docinhos. “Engravidei em 2012 e, quando a Lorena completou um ano, resolvi fazer uma festinha. Eu nunca tinha feito nada, mas fui pesquisar e fazer. Preparei cupcake, docinhos, tortinhas de morango. Fazer aquilo tudo me encantou”, diz ela. Maisa conta que, na época, ficou tão empolgada com o que conseguiu realizar que resolveu estudar sobre aquilo. “Pensei, vou fazer um curso de doces.” Mas, naquele momento, estava desempregada e não podia investir muito na formação. A solução foi encontrar algo gratuito. Pesquisando, chegou até à Oficina.

O primeiro desafio enfrentado para embarcar nas aventuras pela cozinha foi a distância. Moradora do extremo norte de São Paulo, precisava viajar duas horas de transporte público para chegar à Oficina, que acontece na Zona Leste da cidade, em São Miguel. Com a filha ainda pequena, Maisa considerou não voltar mais em função disso, mas seu marido a encorajou a seguir. “Entre 2012 e 2013, eu fiz o primeiro curso lá, de cupcakes e docinhos, e fiquei encantada”, diz ela ao relembrar seus primeiros dias no Galpão. E emenda: “na Fundação, não só os professores, mas todos são sempre muito atenciosos, e isso nos incentiva muito. Eu digo que, se fosse um curso pago, acho que não seria tão bom quanto foi lá.” O segundo curso foi o de confeitaria. Ela conta que esse, mais longo, demandava ir todos os dias até a Oficina. “Lembro-me que, quando tínhamos aulas práticas, eu voltava para casa muitas vezes com um bolo todo confeitado. Imagina voltar, no horário de pico, no trem, com um bolo nas mãos... Era um desafio”, diz, rindo.

Maisa se lembra ainda da turma ansiosa para colocar a mão na massa, en-quanto os professores insistiam em compartilhar informações teóricas. “Os professores diziam que era preciso passar aquelas informações. Não podiam deixar a gente entrar na cozinha e não saber tudo que envolve fazer um bolo.” Hoje, ela acredita que aquele aprendizado fez muita diferença no seu dia a

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dia na cozinha. “Se eu não tivesse aprendido aquilo, não saberia calcular o preço de um bolo, por exemplo.” O local do aprendizado também fez diferença para botar mais fermento na paixão da Maisa pela confeitaria. “Lembro-me da (professora) Dani dizendo que a gente precisava provar tal chocolate, que era o melhor, e a gente precisava conhecer, ter noção do que era”, comenta. “Os nos-sos professores sempre foram muito preocupados em mostrar o melhor para a gente. Sempre foram muito dedicados e, então, não tem como não aproveitar.”

Quando perguntada sobre momentos marcantes vividos por lá, Maisa se recorda da humildade sempre presente na Oficina. “Lembro de ver os profes-sores compartilharem suas receitas. Não era assim: eu tenho um bolo para você fazer, e eu, que sou chef, faço este. Não, o bolo que eu faço hoje é o mesmo bolo que a Dani e o (professor) Lúcio fazem. Para mim, foi muito marcante, poder dizer que o bolo que eu faço hoje é o mesmo feito por um chef”, diz.

EncomendasLogo que começou o curso, Maisa já pensou em aceitar encomendas. “Apa-reciam pedidos que eu não sabia nem como fazer”, diz, relembrando o misto de empolgação e ansiedade. “Eu aproveitava para perguntar muito aos pro-fessores, além de usar o que já tinha aprendido e fazer buscas na internet”, complementa. Hoje, ela recebe mais pedidos de bolos e doces. “Com o tempo, fiz cupcakes, sobremesas e tortas doces. Algumas pessoas perguntavam se eu fazia tortas salgadas, e eu dizia que sim. Eu nunca tinha feito, mas aprendia para entregar.”

Depois da primeira festa de aniversário da filha Lorena, Maisa começou a conciliar a carreira em metalurgia com a confeitaria. “Montei um perfil no Facebook para divulgar meu trabalho, além de usar outras redes sociais. Aí eu trabalhava fora e fazia doces em casa.” Quando precisou, pela primeira vez, atender a uma encomenda de bem-casados, foi a Oficina que a ajudou. “Lembro de enviar mensagem para a Dani e dizer, pelo amor de Deus, a calda do bem-casado não está dando certo.” Com o apoio da professora, acertou o ponto e pôde fazer a entrega a tempo. Mais tarde, conta que outras colegas de curso precisaram de apoio com o mesmo pedido, e ela pôde compartilhar. “Elas vieram me pedir ajuda e eu falei para não se preocuparem, eu tinha uma receita muito boa da Dani.”

Maisa conta que, na Oficina, sentiu-se cheia de força para encarar mais desafios, fazer o que nunca tinha pensado ainda. “Os professores motivaram muito a gente. Eles faziam com que acreditássemos no nosso potencial. E isso foi uma coisa que mexeu muito comigo. Lá, eu entendi que não importa o que você faça, pode ser um brigadeiro... se você investir, for atrás, você vai conse-

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guir, você vai vender”, comenta, mostrando a garra que aprendeu nos balcões da cozinha da Oficina. Resultado disso é que, hoje, além das receitas, também aprendeu (sozinha) como preparar ovos de páscoa e panetones.

Receitas do coraçãoQuando pensa na receita que resume sua vida, sem titubear, Maisa responde: brigadeiro. “A nossa vida tem que ser a simplicidade do brigadeiro. Quem não gosta dele, não é mesmo? No mais, a gente sofre porque quer.” E ela não quer. Maisa, que tem os dois pés no chão, conta que, hoje, vê que ainda precisa se manter com a profissão de metalúrgica em função da renda, mas que estar na cozinha, preparando doces, é algo que lhe dá muito prazer, e por isso não abre mão. “Por várias vezes, já precisei virar a noite fazendo doces e bolos para conseguir entregar. Eles não podem ser feitos antes numa festa, precisam chegar frescos. Então, para atender a alguns pedidos, trabalho bastante. É uma coisa que eu gosto muito, sabe? Então, você não vai me ver mal-humorada.”

Em sua casa, todos têm uma receita do coração. Lorena é apaixonada por cupcakes, além de gostar muito de bolo. A paixão pela confeitaria parece ter mordido a pequena também, que sempre quer ajudar a mãe. “É muito legal você ver um filho se espelhar em você, escutar que, quando crescer, quer ser como você. Ela fica por perto e quer me ajudar sempre”, diz, emocionada ao ver a filha desejando seguir seus passos. Maisa descobriu que a cozinha, mais do que afeto em forma de alimento, a conecta com a pequena. E emenda: “é muito legal saber que tudo começou com ela, inclusive o nome, Loren Doces e Decorações, e ver o quanto ela gosta disso tudo que temos hoje.” Já a receita preferida do marido, Michel, é a torta de morango. “Eu faço e ele come com gosto, diz que não é igual à da padaria porque eu estou fazendo para ele. Pre-parar a torta me marca muito porque faço com carinho.” Receita, aliás, que ela compartilha a seguir.

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84 Receitas — Cozinh a de a fetos

Torta de morango

Ingredientes

Para a massa

2 xícaras (chá) de farinha de trigo

1/3 de xícara (chá) de açúcar

2 gemas

100g de manteiga

Para o creme

1 lata de leite condensado

A mesma medida de leite

2 gemas

2 colheres (sopa) de maizena dissolvida no leite.

Modo de fazer

Para preparar a massa, misture a farinha, a manteiga e o açúcar. Depois acrescente as gemas e misture até que ela fique homogênea. Abra a massa na fôrma de fundo removível e coloque-a para assar até dourar. Leve ao forno pré-aquecido por volta de 30 minutos. Deixe esfriar e desenforme.

Para fazer o creme, misture os ingredientes e leve ao fogo até engrossar. Deixe esfriar, cubra a torta com o creme e coloque morangos por cima. Para finalizar, cubra com gelatina de morango. Faça a gelatina com um pouco mais da metade da água que é pedida na embalagem. Quando começar a endurecer, use-a para cobrir a torta. Por fim, leve as tortas para a geladeira.

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“Cada vez que surgia uma encomenda, me desdobrava para fazer, para comprar os ingre-dientes, para ver a melhor receita, para cuidar de cada detalhe. A confeitaria surgiu em minha vida depois da chegada da Lorena, minha primeira fi-lha, que hoje tem seis anos. Depois do primeiro aniversário dela, resolvi me dedicar, aprender, crescer nessa área. Com o passar do tempo, cada encomenda teve um toque especial, com a aju-da daquela que foi minha inspiração. Enquanto todos queriam fugir da bagunça da cozinha, da louça suja, do barulho da batedeira, Lorena es-tava ali do meu lado, com seu jeitinho delicado, com a ajuda da cadeira para alcançar a pia, com o avental igual ao da mamãe. A missão de emba-

“A confeitaria aumentou o vínculo entre mãe e filha”Maisa Dias Melo

lar as trufas era dela, as forminhas dos doces era ela quem abria, os bolos de pote era ela quem fe-chava e, quando o chantili chegasse ao ponto, era ela quem iria me avisar. Enfim, cada detalhe, por mínimo que fosse, ela estava e ainda está ao meu lado e com a promessa de que, quando crescer, será como eu, que fará doces, que irá me ajudar. Ser a inspiração dela, escutar que sou a melhor confeiteira do mundo, poder estar ao lado dela, mostrando o quanto é incrível fazer aquilo que se gosta, colocar tanto amor em um prato, dividir o nosso tempo juntas, aumentou o vínculo de mãe e filha. A comida, a confeitaria nos trouxe isso: o companheirismo e o amor tão presente.”

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UM DELICIOSO

SONHO AZUL

2 9 A N O S

Nena Maria

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A fatia generosa de bolo de cenoura com cobertura de chocolate, que sai quentinha da cozinha junto a uma xícara de café coado na hora, não deixa enganar: é aconchego que mora em cada cantinho da delicada Blue Dream, o “sonho azul” da Nena Maria. A bicicleta retrô parada na porta da doceria para contar as especialidades do cardápio parece até nos transportar das ruas de União de Vila Nova para as travessas e os cafés mais delicados de Paris.

Poderia bem ser uma cena de filme, mas a realidade é que todo o amor que sempre moveu os sonhos de Nena foi o principal ingrediente para pintar as paredes e construir a história da Blue Dream, que, só com um ano de vida, já tem muitos casos e memórias de afeto para contar. Tudo ali começou aos pouquinhos, em uma força-tarefa que contou com uma pitadinha da ajuda e do carinho do pai, da mãe, de parentes e amigos próximos, oferecendo o que sabiam fazer para possibilitar que a doceria existisse. Na época, Nena e o ma-rido Eliel não tinham o dinheiro suficiente para tirar aquele sonho do papel. Ou contavam com a ajuda que podiam ou não conseguiriam abrir as portas do cômodo onde a loja tinha que existir. É: tinha que ser ali, pois era aquele o lugar que Nena imaginara para construir a doceria desde o início, quando os planos estavam apenas na cabeça. Sempre que passava pela Rua Ripsalis e via a loja aberta, abrigando um outro comércio, logo pensava: “é aqui que vai ser a minha doceria”.

E foi assim que aconteceu. Em um belo dia de verão, viu, enfim, a placa de “aluga-se” na porta do estabelecimento. Na cabeça e no coração dela, se não fosse ali, naquela oportunidade, talvez o sonho tão grande seguisse se apagando um pouquinho a cada dia, até desaparecer por completo e não mais se realizar. Os primeiros meses de aluguel do estabelecimento foram pagos com o empréstimo de 2 mil reais que Nena e Eliel tinham feito para pagar a documentação da moto que usavam para ir de um lado a outro, e também para fazer as entregas dos doces que, na época, os dois produziam em casa. Com a garantia do imóvel e a chave já na mão, aos poucos o cômodo foi ganhando outra cara. Quebra daqui, reforma dali, mais um pouco de cor e, em alguns

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dias, lá estava a Blue Dream, pronta para abrir as portas com toda a sua doçura e sua riqueza de detalhes: louças de porcelana que Nena guardava em casa, mesas e cadeiras de madeira compradas da ex-patroa de Eliel, qua-dros colorindo ainda mais a parede, espelho grande para que os clientes pudessem se ver e fazer fotos, cantinho para as crianças se divertirem com brinquedos e mesas pequenas, uma cristaleira com objetos de afeto e a tão sonhada vitrine de doces. Na cozinha? Todos os utensílios que batiam e assavam bolos eram da casa de Nena, de onde ela e Eliel se mudaram para sair das despesas do aluguel e empregar toda a renda no desenvolvimento da doceria.

No começo foi bem difícil: era preciso vigiar o forno do fogão que, já velhinho, desligava sozinho. E, se isso acontecesse sem ninguém perceber, os bolos não cresciam. Com os recheios e doces, que eram feitos em uma panela comum, também era preciso muito cuidado e atenção para mexer de forma contínua no tempo correto, revezando os braços para não perder o ritmo e nem desandar os cremes e recheios. Mas, inseparáveis desde o dia em que se conheceram, ela e Eliel seguraram as pontas um do outro por mais ou menos seis meses, até terem condições para comprar novos equipamentos que pudessem melhorar e agilizar, aos poucos, o trabalho do dia a dia. Primeiro foi o forno, com capacidade para assar até oito bo-los de uma única vez. Depois veio a batedeira bem mais potente e rápida. Aí chegou também a panela que mexe o doce sozinha até chegar ao ponto certo. E assim, aos poucos, a cozinha ganhava outro tom e um novo ânimo, enquanto o cardápio da doceria crescia para ir além dos bolos, com doces variados, bombons, barcas de açaí, coxinhas de brigadeiro com morango e as tão famosas taças de sorvete decoradas com creme de avelã, confeitos coloridos e o que mais mandar a imaginação e o paladar.

Doce encontroDe preferências tão parecidas, é que também se deu o encontro de Nena e Eliel, lá nos meados de 2015. Na época, ela assistia às aulas em um curso de confeitaria e ele estudava em uma outra turma, onde se ensinavam truques sobre massas e panificação. A paixão dele pela cozinha é coisa que o acom-panha desde bem pequeno, como uma herança de sua avó, que sempre tirou das panelas as mais saborosas receitas (algumas delas, inclusive, foram adaptadas para fazer parte do cardápio da Blue Dream). Quando conheceu Nena, Eliel trabalhava na cozinha de um restaurante e ela ganhava a vida com a fotografia, sua outra profissão por formação e também por amor. Toda essa ideia de entrar em um curso de confeitaria só veio depois, por

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um desejo dela em aprender mais sobre como preparar e decorar os bolos. E foi dali, dos corredores da escola, que o casal seguiu para partilhar a vida e, literalmente, completar os sonhos um do outro.

Antes da Blue Dream nascer, os dois começaram a produzir em casa para vender, barcas de açaí decoradas e bem coloridas. Na época, tanto Nena quanto Eliel estavam desempregados e aquela foi a primeira solução que encontra-ram para preencher os espaços vazios da renda mensal. Enquanto Nena fazia postagens em redes sociais divulgando as barcas, era Eliel quem cuidava das entregas, utilizando uma caixa de isopor e uma bicicleta. Os bolos vieram logo depois, feitos por encomenda ou também vendidos em pedaços, cada dia em um sabor diferente. No início, a demanda era bem pequena, coisa de um ou dois bolos por mês. Mas eles não desistiram. Aos poucos, por indicações e recomendações de amigos e conhecidos, esse volume começou a crescer e a produção na pequena cozinha da casa de dois cômodos aumentou considera-velmente. Muitas vezes, a batedeira era o único som que quebrava o silêncio da madrugada de trabalho, em um esforço conjunto para que tudo ficasse pronto até o dia seguinte. Ali, enquanto um cuidava de assar o bolo, o outro preparava o recheio e, juntos, os dois conduziam a arte de realizar desejos e espalhar sorrisos, entre pastas americanas, chantilis e papel de arroz.

Hoje é também assim que funciona a produção na cozinha da Blue Dream: em parceria. Embora Nena cuide mais das vendas e do atendimento na loja, deixan-do para Eliel o comando da produção na cozinha, às vezes, enquanto ele recheia e cobre um bolo, ela se responsabiliza por modelar com muita criatividade e habilidade a pasta americana, além de dar os últimos detalhes na cobertura. Dessa forma, em uma bonita parceria, o amor entre eles sai um pouco do coração e se transforma em aroma, cor e sabor, para se espalhar em outros cantos por aí. “Passamos 24 horas juntos, todos os dias. As pessoas até perguntam quem fez tal bolo, mas não tem como dizer porque, na maioria das vezes, fazemos juntos. Aí eles mudam a pergunta: querem saber quem fez o quê. Um tem uma habilidade diferente da do outro, e assim a gente se completa. Eu digo sempre que sou o braço direito dele e que ele é meu braço esquerdo.”

Dois amoresNena cresceu na região de São Miguel, onde é conhecida por toda a vizinhança. Como lembrança de uma infância feliz, ela carrega ainda hoje a sua paixão pelas artes e pela fotografia, um amor tão grande que, quando completou 15 anos, em vez de desejar uma grande festa como faziam as amigas da escola, Nena pediu para a mãe, de presente, uma câmera fotográfica como as que ela via nas lojas. Ali ela já sabia o que queria ser quando crescesse: fotógrafa. E

“Eu digo sempre que sou o braço direito dele e que ele é meu braço esquerdo”

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por isso, mais velha, entrou para a faculdade e se formou, cumprindo mais um objetivo escrito em sua lista de metas. Por muito tempo, o sustento dela e do filho Miguel, de 9 anos, veio dos ensaios fotográficos que ela fazia e faz até hoje, ainda que com uma frequência menor, só para não deixar tão de lado esse amor que a acompanha desde menina.

Dessa infância, Nena lembra também que, em sua casa, ninguém nunca gostou muito de cozinhar. A mãe nem sequer pensava em aprender a fazer receitas mais elaboradas, que demandassem um tempo maior ou habilidades muito mirabolantes na cozinha. Quando seu filho era mais novo, Nena desco-briu que Miguel era intolerante a lactose, o que a levou a repensar a comida com mais amor e também a cozinhar em casa de uma maneira mais natural e leve. A sorte mesmo é que o pequeno nunca gostou muito de doces, o que torna mais fácil a adaptação à vida entre tantos bolos e brigadeiros. Embora sempre tenha se interessado pela arte de cozinhar, o desejo de Nena em par-ticipar do primeiro curso de confeitaria veio mesmo depois de um bolo que ela se arriscou a fazer para o aniversário de uma prima, e que ficou tão feio que nenhum dos convidados, nem ela mesma, quis comer. As aulas, então, surgiram como uma oportunidade para Nena aprender algo novo e despertar seus sentidos para o afeto presente na delicadeza de misturar ingredientes e descobrir novos sabores bem doces.

Assim que esse curso de confeitaria terminou, ela partiu para outra etapa: a de sonhar com a doceria que iria abrir e que, nesse momento, já estava ali, toda desenhada em sua cabeça, exatamente como é hoje. Foi mais ou menos nessa época que voltou para o Galpão, para participar de cursos livres e de capacitação, onde aprendeu, além de truques da cozinha, um pouco mais so-bre empreendedorismo e as práticas administrativas que tornariam possível a realização de seu sonho. Embora as lições fossem novidade em sua vida, o espaço onde as aulas aconteciam era mais que familiar para ela, pois lá atrás, aos 19 anos, Nena foi uma das primeiras a ver surgir e a participar dos cursos livres ministrados na Oficina Escola. Logo que se formaram as primeiras tur-mas, ela fazia parte do Núcleo de Jovens que desenvolviam trabalhos junto à comunidade e também junto ao Galpão. “Quando voltei para o Galpão, aprendi uma porção de coisas que não sabia. Por exemplo, a fazer o que chamamos de ficha técnica, que é listar tudo que a gente tem de gastos com um produto. Às vezes, se não se tem muito essa noção de preço, quantidade de ingredientes e de gastos em uma receita, a gente acaba vendendo um bolo sem pagar nem o material. Aí, se não fazemos os cálculos de tudo, não se tem lucro nenhum. Por isso também foi tão importante para mim passar de novo pelo Galpão. Foi necessário para que a doceria funcionasse como ela é hoje.”

“Quando voltei para o Galpão, aprendi uma porção de coisas que não sabia. (...) Por isso também foi tão importante para mim passar de novo pelo Galpão. Foi necessário para que a doceria funcionasse como ela é hoje”

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A partir das aulas, das conversas com professores e das trocas com outras alunas, Nena passou a ter nas mãos todas as ferramentas necessárias para superar as dificuldades do caminho e não ter medo de ir adiante na realização dos seus objetivos. Estava pronta também para encarar com amor todas as mudanças e presentes que a vida lhe reservasse dali por diante. Tanto que até de um programa de TV ela participou: uma competição para escolher o melhor confeiteiro do Brasil, em um período bem anterior ao de abrir a sua doceria, mas que também lhe trouxe muitos aprendizados e superações dos próprios limites.

Quem a vê de longe, tão pequenininha e cheia de delicadezas, pode até não imaginar quanta força e determinação guiam seu caminho. Todos os obstácu-los encontrados serviram só para ajudar Nena a não desistir, mesmo naqueles momentos em que o coração desanda e fica ali, pensando só por alguns segun-dos em parar e seguir outro destino, longe de seus sonhos.

Afeto que se multiplicaNessas horas, o carinho e a fidelidade dos clientes, além de fazerem da Blue Dre-am uma fonte de doçuras e de um amor que só cresce, permitem também que Nena, mesmo nas horas mais escorregadias, não entregue os pontos e desista. Coisas que podem parecer tão insignificantes, mas que, no fundo, sustentam as paredes e a realidade desse “sonho azul”. Às vezes, um sorriso de quem entra e experimenta um bolo, uma palavra de incentivo de alguém que viu todo o esforço do começo, uma mensagem de uma pessoa que agradece pelo afeto em forma de sabor: tudo isso é fermento para que os bolos e a certeza de seus valores só cresçam mais e mais. “Hoje quero ensinar para o meu filho a ter a própria lista de objetivos. Quero que ele entenda que a gente pode ter aquilo que deseja, veja nossas conquistas tomando forma, sem fazer mal a ninguém. Existem muitos caminhos em nossa vida. Você escolhe o errado se você quiser.”

Na lista de Nena, muitos sonhos coloridos ainda aguardam por seu momen-to de se tornarem realidade. Uma viagem para Disney, outra para Portugal, mais uma para conhecer Paris, além de novas unidades da doceria, que ela deseja abrir em outros pontos de São Paulo. Ter força e coragem para persistir atrás da realização de seus objetivos guardados na lista e no coração também é desejo que não falta. Até que tudo isso se torne realidade, Nena garante que tem muito trabalho pela frente, com a mesma delicadeza dos começos e todo o afeto que fazem dela e da Blue Dream a realidade mais doce e afetuosa de São Miguel.

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Bolo de cenoura com cobertura de brigadeiro

Ingredientes

Para a massa

3 ovos

1 xícara (chá) de óleo de soja

2 cenouras bem grandes (ou 3 se forem médias)

2 xícaras (chá) de farinha de trigo

2 xícaras (chá) de açúcar

1 colher (sopa) de fermento em pó.

Para a cobertura

4 colheres (sopa) cheias de açúcar

2 colheres (sopa) cheias de chocolate em pó

1 colher (sopa) de manteiga

Um pouquinho de leite, apenas para desmanchar

Modo de fazer

Para a massa Bata a cenoura, os ovos e o óleo no liquidificador. Em uma vasilha à parte, misture os outros ingredientes e coloque em tabuleiro untado. Asse em forno médio, pré-aquecido, por 30 a 40 minutos.

Para a cobertura Coloque todos os ingredientes em uma panela e leve ao fogo, sempre mexendo, até ferver um pouco. Faça furos no bolo para o chocolate escorrer pelo meio do bolo.

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“Eu não aprendi a cozinhar com a mi-nha mãe, minha avó ou alguém da família. Me lembro da minha tia, hoje já falecida, que criou meu pai. E, assim que meu pai se casou com minha mãe, ela foi morar com eles. Quando comecei a entender as coisas, com meus 10 anos, essa tia já estava com seus 80 anos. E lembro do meu pai falando dos pra-tos que ela cozinhava: pudim de pão, doce de bana-na, doce de maçã. Mas, como ela estava já de idade e bem doente, não conseguia mais fazer nada. Meu pai sempre pedia para minha mãe fazer, mas ela nunca tinha interesse. Queria muito ter aprendido com a minha tia essas receitas que meu pai fala com tanto carinho. Quando minha tia faleceu, eu esta-va com 18 anos. Logo depois, comecei a participar do Núcleo, um projeto para jovens da Fundação. Na sequência, chegou a notícia da construção do Galpão e das aulas de culinária. Ali, vi a chance de aprender o que não tive tempo com minha tia ou com minha mãe. Participei da primeira turma e aprendi tanta coisa... O Núcleo acabou, me afas-tei do Galpão e da cozinha e fui para a faculdade. Trabalhei em farmácia, me casei, tive uma filha e

“Minha vida era outra, mas faltava alguma coisa, faltava a cozinha”Nena Maria

me separei. Minha vida era outra, mas no fundo faltava alguma coisa e eu não sabia o que era. Co-nheci uma pessoa que era da cozinha, um cara com muitas histórias de cozinha. E vi que era isso que faltava em mim.

Me casei com um confeiteiro e ali vieram todas as lembranças, da infância e do Galpão. E assim voltei para o Galpão, depois de oito anos. Come-cei o curso de capacitação e vários cursos livres. Cresci, aprendi e amadureci. E hoje tenho uma doceria, que me completa em todos os sentidos. Minha mãe ainda não cozinha maravilhosamente bem, mas agora ela consegue fazer alguns pratos diferentes. Sinto que ela está gostando da cozinha do jeitinho dela.”

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Aulas na Oficina Escola de Culinária

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UM CANTINHO

PARA O AFETO MORAR

2 8 A N O s

Sabrina Duarte

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A lembrança de observar a avó na cozinha, separando o feijão antes de colocar na panela de pressão para cozinhar, transporta Sabrina para um lugar onde tudo é mais leve, delicado e saboroso. Ali, nesse espaço precioso da memória, seu avô, sentado em um banquinho no quintal da casa antiga, descasca e corta laranjas após o almoço, enquanto chama os netos para dis-tribuir rodelas da fruta como sobremesa, garantindo o riso e a felicidade dos mais pequenos. É desses detalhes guardados diante do passar do tempo que se constroem as referências e a paixão de Sabrina pelo aroma, pelos gestos e pelos sabores que envolvem a cozinha e a gastronomia.

Todo esse universo que a cerca desde menina trouxe a ela um gosto pe-culiar pelas misturas e pelas invenções gastronômicas. Filha única, quando criança Sabrina aproveitava os momentos sozinha, quando a mãe saía de casa, para correr para a cozinha e experimentar novas combinações de ingredien-tes, sem nem saber muito bem o que fazia ali. A bagunça era tão grande que nem dava para esconder ou fingir que nada tinha acontecido na cozinha da casa localizada em São Miguel Paulista, região em que ela cresceu e passou boa parte da adolescência. E foi assim, de tanto se aventurar entre ingredientes diferentes, que aos 9 anos Sabrina assou seu primeiro bolo que deu realmente certo: um vistoso e sedutor bolo de brigadeiro. A tarefa foi executada com tanto sucesso que surpreendeu até a mãe, que nunca foi muito boa em cozinhar.

Para almoço, o básico arroz, feijão e carne de panela alimentavam toda a família, e quem mais quisesse se aconchegar para partilhar a comida e jogar conversa fora. Dos doces? Às vezes até saía um pudim de leite ou uma mousse para a sobremesa, mas sempre sem passar muito disso. Ainda assim, mesmo não se arriscando entre receitas tão mirabolantes, foi a convivência entre mãe e filha que transmitiu para Sabrina um pouco dessa vontade de experimentar e de criar sabores novos. Lá entre as panelas, a mãe tratava de ensinar a ela exatamente como era feito o arroz ou quanto tempo de fervura era necessário para cozinhar o feijão. Se com a avó Sabrina aprendia pela observação, foi com a mãe que ela compreendeu a importância de esperar o tempo certo de cada ingrediente se misturar, assim como o amadurecimento de cada fase que atravessa a sua vida precisa também da sua hora correta. “Lembro do cheiro

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da comida da minha avó, do sabor do arroz dela, como se ele fosse feito hoje. E não adianta: a gente pode fazer do mesmo jeitinho, que não fica igual ao que ela fazia. Mas aqueles momentos foram gravados na memória, associados a toda essa vivência que eu tive, todo esse afeto que sempre esteve presente nos momentos em casa e em família.”

Essa afeição tão delicada pela cozinha e pela gastronomia aos pouquinhos aproximou Sabrina ainda mais de si mesma, em uma longa jornada de reencon-tros e redescobertas: tudo guiado pela comida e pelos pequenos prazeres que ela proporciona. A princípio, já mais velha e prosseguindo por esse caminho de encontro em meio aos sabores, uma das primeiras transformações em sua vida se deu em uma sala de aula, em um curso de culinária, no qual ela entrou para distrair o tempo e aprender melhor sobre os segredos do cozinhar.

Entre o ir e o virFoi nas aulas no Galpão que Sabrina começou a despertar realmente para o ato de cozinhar como algo mais amplo, cheio de mistérios e novidades. Até então, ela nem pensava que a gastronomia poderia se tornar um caminho pro-fissional e uma forma de empreender. A ideia era que tudo aquilo se tornasse mesmo um hobby, um passatempo para enganar as horas vagas. Na época, ela chegou até os cursos por uma dica e indicação da professora Daniela, com quem Sabrina trabalhava em um outro projeto. Com a curiosidade desperta, ela se inscreveu e começou a participar dos cursos na Oficina Escola de Culi-nária, primeiro em aulas mais curtas, que eram realizadas ao longo de um dia. Foi também nesse período que as vivências nos cursos livres incentivaram dentro do coração de Sabrina a vocação sempre presente para a gastronomia. Ali, entre as receitas e panelas, os seus olhos voltavam a brilhar como na época da infância com a companhia dos avós e aquela magia guardada com zelo pela memória.

No entanto, todo esse movimento durou um espaço curto de tempo: por conta de um novo trabalho que atravessou seu caminho, Sabrina precisou abandonar as aulas e também se afastar do Galpão. Só mais tarde, quase um ano depois, ela conseguiu voltar, dessa vez para integrar as turmas de cursos mais longos e aprender sobre pães, massas, bolos e toda a dedicação que mora em cada etapa da produção de uma receita. O tempo ali, anotando ingredientes e ouvindo histórias, serviu mais uma vez para completar os espaços vazios que dançavam em sua vida e em seu coração, além de moldar dentro dela alguns sonhos e desejos novos.

Mas passarinho, quando aprende o voo, quer ir ainda mais longe. E, mais uma vez, Sabrina precisou partir do Galpão. Dessa vez, para aproveitar a chance nova de se mudar e passar dois anos na cidade de Paraty, no Rio de

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Janeiro. Lá, o trabalho em uma pousada à beira-mar deu a ela a oportunidade de colocar em prática um pouco do que aprendeu na Oficina Escola: para o café da manhã, Sabrina preparava os bolos e pães mais gostosos, que servia aos hóspedes todos os dias ao amanhecer.

Entre tantas idas e vindas, dois anos depois, já de volta a São Paulo, o desejo de seguir profissionalmente pelo caminho da gastronomia lhe chamou. E lá foi ela, cheia de determinação, inscrever-se nos cursos do Galpão para aprimo-rar e ampliar tudo o que ela já sabia sobre cozinha e afeto. Nessa época, sem ter um emprego fixo, recém-chegada de um lugar diferente, Sabrina começou também a fazer pães de mel para vender. Alguns, a mãe levava e vendia na escola em que trabalhava; outros, Sabrina dividia entre a vizinhança, mais um pouco ela comercializava em reuniões e saraus organizados por amigos. E, desse jeito, não sobrava nenhum e a produção precisou aumentar: foi do-brando, triplicando de tamanho, até chegar ao ponto em que Sabrina entrava madrugada adentro fazendo pães de mel, e às vezes palha italiana, para vender no dia seguinte.

A família também colaborava com o seu desenvolvimento na culinária. Sempre que organizavam uma festa ou um evento, era Sabrina que chamavam para produzir todo o cardápio. Tinha caldo, torta, salgado, doce. E tudo ela preparava sozinha, às vezes para servir 60 pessoas, outras vezes chegando até a receber cem convidados. Com a vida assim, misturando-se entre sonhos e determinação para realizá-los, ainda sobrava espaço na cabeça e no coração para guardar um desejo antigo, que a acompanhava já havia alguns anos. An-tes mesmo de se mudar de São Paulo, um professor da Oficina Escola contou a ela sobre um Curso Técnico em Cozinha, oferecido em uma escola na cidade de São Paulo. Além dos cursos livres e dos aprendizados no Galpão, Sabrina queria ter um diploma, fruto de uma temporada de estudos a fundo sobre os segredos e as delícias da gastronomia.

No fim de 2016, depois de fazer uma prova de habilidades específicas, lá estava ela, aprovada para ingressar na turma de 2017 do Curso Técnico em Cozinha. E aí Sabrina não parou mais. Seus dias se alternavam entre os cursos no Galpão pela tarde e as aulas na faculdade durante a noite: ficava o dia todo respirando gastronomia. Por coincidência, nesse período, a equipe do Galpão precisou de uma estagiária para auxiliar nas demandas do dia a dia. Disposta a caminhar ainda mais perto daquilo que ela já sabia que a fazia realmente feliz, prontamente preparou e enviou o seu currículo, cheia de vontades de preencher a vaga e de aprender ainda mais em um local que, para ela, sempre foi sinônimo de acolhimento e afeto. Demorou um pouco e, alternando entre a expectativa e a ansiedade, Sabrina fez a entrevista para concorrer ao trabalho dos sonhos de tantas mulheres que também participavam dos cursos. Algum

“Lembro do cheiro da comida da minha avó, do sabor do arroz dela, como se ele fosse feito hoje”

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tempo depois, ela recebeu a confirmação: era, então, estagiária oficial da Ofi-cina Escola de Culinária, no Galpão em São Miguel. “A Oficina Escola foi um divisor de águas em minha vida. Porque comecei a enxergar coisas que não enxergava. Comecei a perceber perspectivas de vida que até então não tinha. Eu nunca pensei em fazer qualquer coisa para vender, sempre fazia comida em casa, mas não imaginava que poderia, por meio disso, ganhar dinheiro, empreender. A Oficina Escola me fez não só pensar a gastronomia de uma maneira profissional como também pensar a cozinha como afeto, cozinhar em forma de carinho para as pessoas.”

O estágio lhe abriu várias portas e levou Sabrina para lugares em que nun-ca tinha imaginado estar. Foi a eventos gastronômicos, participou de feiras de culinária, esteve com grandes chefs de cozinha, e conheceu um mundo novo, cheio de possibilidades e estradas que ela ainda não tinha descoberto. Além dos sabores e aromas, tudo isso foi importante para que encontrasse outros sentidos que haviam se perdido dentro de si mesma, com o passar dos anos. Logo que voltou ao Galpão pela terceira e decisiva vez, em 2016, estava com depressão e sempre se pegava pensando que tudo o que fazia não dava certo ou que não era boa o suficiente para realizar determinadas tarefas. Estar ali, em um lugar de tanta troca, conversas e os mais diversos aprendizados, en-tre várias mulheres de lugares diferentes, com histórias também diferentes, trouxe a ela uma nova perspectiva e mais força para seguir pelos caminhos que se desenhavam diante de sua vida.

Aos poucos, Sabrina compreendeu que, mais do que se desenvolver pro-fissionalmente, aquela oportunidade de estar dentro da Oficina Escola era um propósito para que ela pudesse crescer também como pessoa. A menina que tinha vergonha, falava pouco e não sabia aceitar elogios aos poucos abriu es-paço para a mulher que tinha tantas certezas de seus sonhos, da sua força e da sua própria capacidade de realizar qualquer coisa, desde que carregasse um coração aberto, cheio de coragem e determinação para seguir adiante. “Meu maior aprendizado, nesse tempo, foi acreditar mais em mim e ter perseveran-ça. Eu escutava muito as mulheres e os professores. Exercia a escuta e tentava dar o meu melhor o tempo todo. Eu ficava atenta a todas as dicas que eles me davam, a todas as histórias de vida partilhadas, e com isso fui crescendo. De 2016 para cá, minha vida deu uma virada muito grande.”

Toda essa mudança só lhe trouxe alegrias inumeráveis. Quando se formou, no meio de 2018 e com o fim do período de estágio na Oficina Escola, a ideia de não conseguir um trabalho nem teve tempo de passar por sua cabeça. Ali, naquele momento, Sabrina não tinha mais medo de arriscar e de lutar por seus objetivos. Ela sabia também que, da mesma forma que todas as coisas se encaminharam de uma forma tão bonita e gentil nos últimos anos de sua vida,

“A Oficina Escola foi um divisor de águas em minha vida. Porque comecei a enxergar coisas que não enxergava. Comecei a perceber perspectivas de vida que até então não tinha”

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o ciclo de boas oportunidades e reencontros continuaria lhe ofertando chances generosas de amadurecimento. E assim foi. Depois da formatura, Sabrina passou a fazer parte da equipe de Cultura da Fundação, responsável pela manutenção do Galpão, desempenhando atividades bem diferentes daquelas relacionadas à culi-nária. Mas, mesmo assim, a gastronomia não foi deixada de lado. No tempo livre, é da cozinha da casa no centro de São Paulo, onde mora hoje de forma independente e mais distante da mãe, que saem receitas gostosas, sempre com um espacinho para um afago e aquele gosto bom que só o que é preparado com amor tem. A casa, de portas abertas para receber os amigos e partilhar sorrisos, guarda também todo o carinho e a leveza que Sabrina transpira, vive e transmite a quem fica por perto.

Partilha e afagoEsse gosto delicado por receber e compartilhar a comida com quem se ama é coisa que Sabrina aprendeu na infância e nunca mais esqueceu. Além das doces lem-branças daquele tempo, ela guarda também o cheiro e o sabor de uma receita especial: a sopa de ervilhas que a mãe fazia. Nos dias mais frios, aquele caldo simples e grosso, que se preparava aos poucos na cozinha, incendiava a casa in-teira, aquecendo o corpo e também o coração de quem provasse. Naquele tempo, Sabrina tinha só 4 anos, mas se lembra como se fosse hoje: quando a sopa vem à memória, vem também a lembrança do frio e da sensação de acolhimento que só aquele caldo lhe dava.

De tanto ver a mãe mexendo no fogão e preparando os ingredientes, Sabrina aprendeu todos os segredos da sopa. Mas nunca se atreveu a fazer sozinha. Até que, em uma aula do curso de caldos na Oficina Escola, a receita surgiu entre os aprendizados e toda a memória da infância tomou conta do coração dela. Quan-do chegou em casa, correu para comprar os ingredientes e preparar sozinha a sua primeira sopa de ervilhas. E, desde então, sempre tem o caldo saboroso feito por ela na festa junina da família e nos dias mais frios em São Paulo. “Quando estou chateada com alguma coisa, muito agitada, ansiosa, estressada, vou para a cozinha. Ou sigo para o mercado, para a feira, compro algumas coisas e começo a fazer um prato para colocar as ideias no lugar. Tanto que eu falo que a cozinha é a minha maior e melhor terapia.”

Em casa, sempre que prepara a sopa de ervilhas, Sabrina chama alguém para comer e dividir aquele momento gostoso: um amigo, um vizinho, um parente, alguém que esteja próximo. Porque ali, no coração dela, é para isso que serve a comida: para dividir os momentos bons e guardá-los na memória, para sempre ter delicadezas a lembrar depois. Além do mais, é esse um dos pratos que ela mais gos-ta, justo por oferecer tanto conforto e carinho, em meio a suas recordações. Para Sabrina, sopa é o sinônimo mais saboroso de partilha. E cozinhar é a forma mais simples e ao mesmo tempo grandiosa de abraçar a si mesma e também ao outro.

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Sopa de ervilha

Ingredientes

500g de ervilha seca partida

200g de bacon

1 gomo de linguiça calabresa

5 dentes de alho

1 cenoura média ralada

1 cebola picada

Salsinha, ervas finas e pimenta do reino a gosto

Sal a gosto

Modo de fazer

Frite a calabresa e o bacon em uma panela de pressão. Depois, coloque a cebola, a cenoura e por último o alho. Em seguida, refogue a ervilha e coloque água quente, mais ou menos quatro dedos acima dos ingredientes.

O segredo é colocar na pressão no fogo baixo e cuidar para não queimar o fundo. Deixe cozinhar por cerca de 15 a 20 minutos, depois que pegar pressão. Sirva com queijo ralado e pedacinhos de pão.

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“Dias chuvosos me dão vontade de tomar sopa e, quando penso nisso, logo vem à cabeça a sopa de ervilha. Quando era criança, morávamos em uma pequena casa, e minha mãe a fazia nos dias de chuva. Só de pensar me transporto para 1993. Lembro de quanto amor havia naquela casinha, das brin-cadeiras na rua sem saída, de me balançar no

salgueiro chorão, de como eu morria de medo do Esqueleto e da She-Ra (os cachorros da vi-zinha), das festas de aniversário com ki-suco e dos bolos decorados com abacaxi... Acho que vem daí o meu amor por sopas e caldos. Sopa é afago na alma. É tanto amor que deve ser por isso que, sempre que tem um encontro, sou chamada para fazer.”

“Da infância, vem meu amor por sopas e caldos” Sabrina Ferreira Duarte

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A CURA PELA

COMIDA5 0 A n O s

Sandra Abrantes

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Conversar com Sandra Abrantes é como degustar aquela gulosei-ma com gosto de infância que, bem suave, se espalha devagar pela boca e vai ganhando nossa atenção. Quando percebemos, já queremos mais. Sua história é um mergulho profundo em raízes marcantes presentes em muitas mulheres fortes pelo Brasil. E nem por toda dificuldade que possa já ter sido vivida, deixa faltar afeto em suas palavras, ações e, principalmente, em sua cozinha.

Sandra é sinônimo de garra e determinação e também de dias mais doces na vida de muita gente que atravessa seu caminho. É o desejo de fazer valer o amor recebido de seu pai e o carinho que quer passar para seus filhos. É pos-sível ver tudo isso em sua busca pela perfeição em cada docinho preparado por suas mãos. Com delicadeza, decora o bolo, molda o beijinho e o brigadeiro que, neste momento, devem estar em alguma mesa de festa enquanto você lê a sua história. É o amor em forma de comida que a moveu para grandes trans-formações em sua vida – e na de outros.

Filha do motorista de ônibus Armando Francisco, e da dona de casa Dioni-zia, Sandra chegou ao mundo pelas mãos de uma parteira no final da década de 1960, no bairro de Itaquera, Zona Leste de São Paulo. Na figura paterna, ela sempre encontrou aconchego e admiração. “Ele era um homem muito traba-lhador, sempre foi meu companheiro e um grande amigo. Minha inspiração de vida.” A mãe, segundo Sandra, não sabia ser doce e amorosa como o pai. “Ela foi criada afastada da própria família, trabalhando desde muito cedo e morando na casa dos patrões. Em seguida, perdeu totalmente o contato com os pais. Ela nunca recebeu esse carinho. Por isso, era diferente do meu pai. Independente disso, ela sempre foi uma boa pessoa”, conta.

Na casa, também cresceu rodeada de irmãos. Ao todo, oito: cinco homens e três mulheres. Sandra é a irmã do meio. Os mais velhos começavam a trabalhar enquanto os mais novos ajudavam nas tarefas do lar. Sandra lembra, saudosa, que, aos 10, seu pai lhe ensinou sobre a rotina da casa e que essas lições mar-

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caram sua infância. “Ele me explicava como cuidar da casa, falava sobre a importância de pagar as contas e reservar dinheiro para as despesas que surgiam ao longo do mês. Eu prestava muita atenção, pois gostava de ouvi-lo e aprendi muito com ele.” E emenda: “meu pai sempre me apoiou, incentivou e mostrou como administrar um lar. E me ensinou a cozinhar.”

Entre as panelas, nasceu uma das demonstrações de afeto mais marcan-tes entre os dois. Foi com seu Armando que Sandra aprendeu a fazer não só o arroz, mas também o feijão e toda a alimentação básica que sustentava a casa e ia para a mesa diariamente. Nessa época, sob orientação do pai, ela passou a cozinhar para todos. Apesar do prato chegar para a grande família, era o patriarca sua inspiração. “Ele me ensinava muito e aprendi a ter gosto pela cozinha para agradá-lo”, comenta. Com os olhos brilhantes, Sandra relembra: “meu pai me ensinou a fazer pururuca. Ele dizia que o torresmo, que ele gostava muito, fazia o alimento deslizar”. O cozinhar, mais do que necessidade, é afeto e estima.

O primeiro boloEm 2010, Sandra viveu a depressão. Até aquele ano, ela vinha recebendo um auxílio por invalidez em função de fortes dores na coluna. Naquele momento, no entanto, seu benefício foi negado e ela se viu, de repente, precisando do apoio financeiro de outras pessoas – quando sempre fez por ajudar. Aquela situação a levou para uma tristeza profunda. Desde muito jovem, sempre foi independente. Casou-se cedo, aos 17 anos, e aos 19 se separou. Nesse meio-tempo, teve a Lilian, sua filha mais velha. Mesmo de volta à casa dos pais, agora com um bebê, nunca deixou de trabalhar. Teve empregos em fábricas metalúrgicas, de brinquedo e de tecelagem. Nessa trajetória profissional, somam-se nove anos.

Em 1996, ingressou em um novo trabalho, dessa vez em um hospital, como camareira. A partir do seu empenho, foi promovida. Em 1998, assu-miu o cargo de escriturária de nutrição. “Aí eu deslanchei. Lembro de ficar observando os cardápios e a maneira como os cozinheiros trabalhavam. Eles tinham gosto pelo que faziam, então eu pensava: é isso que eu quero”, diz Sandra, com um sorriso grande no rosto. Na infância, ela queria ser bancária – talvez por influência do pai, que, de alguma forma, entre seus ensinamentos, lhe dava aulas de administração desde cedo. “Queria mexer com dinheiro e dizia isso aos meus irmãos.” Parou de estudar para casar e foi terminar o Ensino Médio quando sua filha completou 10 anos. Foi nesse período que recebeu a promoção no hospital. Descobriu que lidar com papéis e documentos na nova função, de certa forma, a fazia se sentir

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realizando aquele desejo antigo da meninice, que brotava ao lado da conexão com o cozinhar. Em 2002, quando estava prestes a receber mais um reconhe-cimento (iria se tornar escriturária da diretoria), descobriu um problema na coluna que a afastou do trabalho por completo.

Até que, em 2010, quando se sentiu desafiada pela depressão, Sandra encon-trou na cozinha, no lugar onde nasceu o afeto entre pai e filha, o aconchego e o amor que só ela poderia dar a si mesma. Encontrou sua cura. Sabendo que precisava buscar a alegria de viver e a sua independência, foi em busca de uma solução para seu caso no que sempre fez a vida toda com muita garra e gosto: trabalhar. Foi a irmã mais velha, Antônia, que deu o pontapé inicial. Para comemorar seu aniversário, pediu a Sandra que preparasse um bolo. Mas ela queria um bolo de festa. “Eu já fazia bolos secos, de vó, mas nunca tinha feito um assim, de aniversário. Aí pensei: vamos ver no que dá”, relembra. O bolo tinha recheio e cobertura: doce de leite com ameixa. Deu certo. Foi assim, desse jeitinho, que nasceu seu negócio, “Sandra Abrantes – Bolos e Doces Gourmet”. “Se sou capaz de fazer este bolo”, pensava na época, “sou capaz de fazer muito mais”. A situação fez sua autoestima levantar. Sandra ainda não sabia, mas dava o primeiro passo em direção à cura da depressão.

Uma porta para o futuroÀ medida que ia descobrindo a extensão da culinária em sua vida, mais dese-java se desenvolver profissionalmente. Nos doces, além de uma nova motiva-ção, descobriu o potencial de renda para torná-la independente novamente. Em 2014, pela internet, ficou sabendo das formações em gastronomia que a Fundação Tide Setubal oferece no bairro em que mora, São Miguel Paulista. Sandra lembra de ligar e ser uma das primeiras inscritas. Também guarda, com muita emoção, o prazer e a importância dessa conquista em sua história de vida. “Participar das oficinas foi como abrir portas para o meu aperfeiço-amento. Queria melhorar a qualidade dos meus produtos e, com isso, ter a garantia da minha própria renda.” A partir dos aprendizados na Oficina, entre 2014 e 2017, disse que conseguiu diferenciar seus produtos e atrair clientes para mudar de vida.

Com muito orgulho, Sandra mostra uma pasta com apostilas e certificados de formação. Cada um marcado por uma história de sua jornada pela gastrono-mia, em parceria com a Fundação Tide Setubal. Sua primeira ida ao Galpão foi para estudar lanchinhos, os famosos finger foods, num curso livre, de poucos encontros. Nas aulas, conheceu gente que está presente na sua vida até hoje. “É legal ver pessoas que não se conhecem querendo ajudar umas às outras e mantendo essa amizade”, diz. Depois desse, muitos outros vieram, como Ham-

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búrgueres e Sucos Gourmet, Comidas Brasileiras, Brownies e outros dedicados a datas especiais, como Natal. Com saudade do tempo passado por lá, ela se lem-bra dos momentos durante a formação de Comidas de Boteco, quando vivenciou o trabalho em time. Sandra se recorda das iguarias sendo preparadas pelas equipes, espalhadas entre os fogões e bancadas da Oficina. “Tanta coisa boa aconteceu nesse dia. Nos divertimos muito. Depois de tudo pronto, degustamos cada item. Também convidamos os funcionários da Fundação para comer com a gente. Foi muito bom”, diz ela, como se, ao recontar essa história, pudesse vol-tar no tempo e sentir o sabor daqueles quitutes. Mais do que isso, sentir também o cheiro da união vivida na data. “Quando estava na Oficina, esquecia de tudo do lado de fora, esquecia, inclusive, dos problemas. Vivia aquele momento, o prazer de estar lá e cozinhar, a emoção de fazer o que eles estavam nos ensi-nando.” Com esse sentimento, Sandra diz ter aprendido muito no Galpão. Na formação de Panificação & Confeitaria, que levou dois meses, com os chefs da Oficina, Lúcio Roberto e Daniela Romão, adquiriu informações que garantem seu diferencial de negócio até hoje. “Da venda à produção, hoje sigo o que me foi passado nos cursos. Aprendi com eles o que é perfeição. Tudo que sei sobre qualidade, sobre como atrair e cuidar dos meus clientes. Toda essa formação me marcou bastante.”

No dia da apresentação final para a bancada, Sandra conta que se sentiu desafiada a apresentar algo inédito. “Todo mundo aprendeu a mesma coisa, eu precisava levar um diferencial”. Por muito tempo, Sandra vendeu pão de mel e trufas e, a partir dessa experiência, resolveu criar algo novo para mostrar como trabalho de conclusão de curso da formação em Panificação & Confei-taria. “Levei um pão de mel recheado com geleia de abacaxi, com raspas de gengibre. Marcou, viu? Quando eles comeram, disseram: Sandra, que pão de mel é esse? Na gastronomia, tem novidade todo dia. É possível aprender algo diferente sempre. Não existe isso de ‘eu sei cozinhar’. Cada dia tem uma coisa nova para conhecer. Era isso que eu via na Oficina.”

Universo particular“Cozinhar e, principalmente, fazer doces é um universo muito bom. Eu fecho a porta da cozinha, fico concentrada e trabalho imaginando o prazer da pessoa que vai estar comendo logo mais o que estou preparando.” Essa é a sensação de Sandra quando fala sobre como é o seu trabalho, o mergulho que dá para dentro de suas receitas e para junto dos seus confeitos. O melhor horário para dedicar-se aos doces e encomendas, segundo ela, é à noite. Por volta das 23h, começa a se organizar. Seus dois filhos do segundo casamento, Larissa, de 19 anos, e André Luís, de 11, já foram para seus quartos e, então, ela tem como

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companhia apenas seus utensílios e ingredientes no lugar do mundo que gosta de chamar de seu, a cozinha. “Quando pego encomendas grandes, fico até às 3h da manhã. Além da casa estar mais fresca, eu rendo mais”, diz, animada. “Gosto de assar o bolo num dia, rechear no outro e, então, só depois eu confeito. É um processo que o deixa mais gostoso. O recheio penetra pela massa, que fica mais molhadinha”. Sandra explica que sua rotina fica agitada, em geral, a partir de quinta, quando se programa para compras e inicia os preparos com o objetivo de finalizar as entregas que devem ser feitas no fim de semana. Mesmo usando a cozinha de sua casa, enfatiza que segue todos os padrões de qualidade e higiene estabelecidos para quem manipula alimentos. Tudo aprendido no Galpão.

Sandra conta que, em 2010, quando se encontrou na cozinha, começou usar seu dom para ajudar quem precisa de alimento – e afeto em forma de comida. Ela é uma das cozinheiras do Projeto Grupo Esperança e Amor, em sua comunidade. Eles distribuem refeições para moradores de rua em São Miguel Paulista. Semanalmente, ela se reúne com um grupo para cozinhar, montar os pratos e distribuir. “Levei muito do que aprendi no Galpão para lá e melhoramos nossos serviços com isso”, ressalta. “Fico muito feliz em poder ajudar quem está necessitando de apoio. E é muito prazeroso poder fazer isso cozinhando, algo que eu gosto e me completa.”

“De 2014 para cá, quando conheci o Galpão, minha vida melhorou muito. Eles não me ensinaram apenas a cozinhar, aprendi a administrar meu próprio negócio. Mais do que isso, trouxe ensinamentos para dentro da minha casa. Hoje sei até guardar dinheiro para poder viajar com a minha família”, conta. Sandra se dá conta que hoje tem em sua vida as duas coisas que a conectavam com o pai: o prazer em cozinhar e o gerenciamento das finanças da casa. E, de quebra, ainda inspira seus filhos. “Eles são bastante determinados, assim como eu. Quando quero uma coisa, vou atrás. Eles acompanham minha trajetória com a confeitaria. E também sabem que, o que decidirem, estarei apoiando”, finaliza. O que ela espera para o futuro? “Crescer como empreendedora. Não quero ficar só no bairro, quero ir além. Agora eu acredito no meu potencial. No futuro, espero ter uma loja de bolos e doces para festa e vender para várias regiões.” Ela entende, agora, que pode.

“De 2014 para cá, quando conheci o Galpão, minha vida melhorou muito. Eles não me ensinaram apenas a cozinhar, aprendi a administrar meu próprio negócio”

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110 Receitas — Cozinh a de a fetos

Brigadeiro de laranja

Ingredientes

1 lata de leite condensado

1 lata de creme de leite

1 colher (sopa) de margarina sem sal

Raspas de uma laranja-pera

Chocolate meio amargo ralado, para decorar

Modo de fazer

Lave a casca da laranja e seque. Depois disso, passe no ralador.

Em uma panela, coloque o leite condensado, o creme de leite, a margarina, a raspa da laranja e cozinhe até dar o ponto.

Deixe esfriar.

Umedeça as mãos com água, enrole o brigadeiro e passe no chocolate meio amargo para confeitar.

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“Minha relação com a comida come-çou na infância, quando meu pai me ensinou a cozinhar. Foi o básico, como um arroz, um feijão e a mistura preferida dele, o torresmo. Com o pas-sar dos anos, continuei cozinhando para meus familiares, mas sem entender o quanto isso iria ser importante para a minha vida. Quando en-trei em uma depressão profunda, e sem meu pai comigo, pude encontrar adoráveis amigas, que me levaram para cozinhar em uma casa ONG. Lá pude ver que o meu problema era tão peque-

no perto do sofrimento daqueles moradores de rua que acabei descobrindo que cozinhar para as pessoas era a cura da vida. Depois disso, nunca mais parei. Comecei a fazer vários cursos, pen-sando em melhorar a qualidade e poder agradar ao paladar das pessoas. Os cursos eram todos gratuitos – eu não tinha condições para pagar – e, dessa forma, acabei conhecendo o Galpão Cultura e Cidadania. Hoje posso dizer que mi-nha renda familiar vem de todo o aprendizado que tive nessa escola.”

“Descobri que cozinhar para o outro é a cura da vida”Sandra Dias Francisco Abrantes

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FICHA TÉCNICA

CONTEÚDO E PRODUÇÃO

Fundação Tide Setubal

AUTORIA

Ana Holanda

REPORTAGEM

Débora Gomes e Eduardo Alves

COORDENAÇÃO EDITORIAL

Fernanda Nobre

DESIGN E ILUSTRAÇÃO

Estúdio Nono

REVISÃO

Alexandre Carvalho

FOTOS DAS ATIVIDADES

Acervo Fundação Tide Setubal (Vanderson Atalaia, Gustavo Porto, Tadeu Mafra)

FOTOS DAS MULHERES

Liz DóreaNena Maria (foto Edicleuma Nogueira)

Agradecimentos

Agradecemos a todos e todas que passaram pelas atividades para aprender, se aproximar, sentir os cheiros e os sabores da Oficina Escola de Culinária do Jardim Lapenna e juntos ajudaram a temperar essa história.

Em especial, as parcerias que colaboraram para tornar essa história possível: Instituto Consulado da Mulher; Instituto Lojas Renner; Mara Salles, Chef do Restaurante Tordesilhas; Revista Prazeres da Mesa, em parceria com o SENAC-SP, por meio do Jantar do Século; SESI-SP e a Universidade Cruzeiro do Sul.