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Caras x Bundas: uma construção paródica1
Caras x Bundas: a parodic construction
Bruna Lapa2
RESUMO
Neste artigo busca-se discutir a construção narrativa da revista Bundas, identificando, na sua relação com a revista Caras, não só os elementos que caracterizem uma paródia, mas como –principalmente – o que eles revelam sobre a publicação. O estudo examina as imagens produzidas pela publicação em seu potencial discursivo, fundamentais para uma entendimento mais completo do que se propunha a revista. Busca-se, então aplicar tal conceito ao objeto empírico Bundas, não apenas na sua relação a obra parodiada, mas como também à um discurso e uma forma de agir que parecia “guiar” a outra publicação.
PALAVRAS-CHAVE: Revista Bundas. Revista Caras. Paródia. Sátira
ABSTRACT
This article seeks to discuss the narrative construction of Bundas magazine, identifying, in their relationship with the magazine Caras, not only the elements that characterize a parody, but as -mainly - what they reveal about the publication. The study examines the images produced by the publication in its discursive potential, essential for a more complete understanding of what it proposed the magazine. The aim is to then apply this concept to the empirical object Bundas, not only in its relationship to work parodied, but as also to a speech and a course of action which seemed to "guide" to another publication.
KAY-WORDS: Bundas Magazine; Caras magazine; parody; satire;
Introdução:
O humor, de acordo com Ricy Goodwin (2011), pode, em sua forma mais afiada,
provocar juntamente com os risos reflexões mais amplas e críticas. Para isso no entanto, é
preciso que o texto humorado em questão funcione com fluidez, tendo suas peças
encaixadas de forma que a estrutura conduza a determinado entendimento.
1 Trabalho apresentado no GT Dispositivos e textualidades midiáticas.2 Esse artigo foi desenvolvido pela aluna Bruna Lapa da Guia veiculada ao Programa de Pós Graduação da Pontifícia Universidade Católica de Minas.
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Tal pensamento conecta-se ao que parecia ser o eixo que guiava a revista Bundas:
provocar, através do humor,do riso e da irreverência, as reflexões necessárias para o início
da mudança almejada. Busca-se então, nesse trabalho, a análise de uma das estratégias
discursivas utilizadas pela revista, a paródia. A ideia principal do artigo é tentar analisar
comparativamente imagens da revista Bundas e da Revista Caras para trabalhar a relação
entre essas publicações e seus sentidos, sob a luz do conceito de paródia (Hutcheon).
Para entender o conceito de Linda Hutcheon, parte-se da visão de linguagem de
Bakhtin, fundamentada em um caráter dialógico. Para o autor, toda enunciação faz parte de
um processo de comunicação ininterrupto e assim se conecta à outros enunciados e a um
contexto, produzindo sentidos (SILVA, 2005). A escolha do conceito de paródia sob a
ótica da autora se deu pelo seu caráter mais amplo, que vai além da visão de expor ao
ridículo – embora não a anule por completo, considerando uma capacidade de
distanciamento crítico. Assim interessa aqui, entender como a paródia se dá, em Bundas, a
partir das imagens como elementos de discurso, para isso optou-se por analisar um ensaio
fotográfico, intitulado “Claudinette vai ao Spa” e publicado na nona edição de Bundas.
A cara de Bundas:
A revista Bundas foi lançada em 1999 pela Editora Pererê Ltda –do cartunista
Ziraldo. Com uma tiragem inicial de 120.000 exemplares distribuídos por todo território
nacional e em Portugal, contava com uma equipe de redatores constituída de grandes nomes
da imprensa como Millôr, Jaguar, Chico Caruso, Nani, Aroeira, Adão Iturrusgarai, Luis
Fernando Veríssimo, Emir Sader, entre muitos outros.
Nesse primeiro número, o editorialista de Bundas – o escritor Luís Fernando
Veríssimo – avisava que a revista estava chegando para “dizer as coisas às claras e por
inteiro diante dessa social democracia que não ousa dizer seu nome em público, dessa
tempestade de bosta que ameaça nos soterrar, exercendo o nosso elementar direito de
defesa" (VERÍSSIMO, 1999, p.6). E afirmava que deveria “oferecer um retrato mais
arredondado da multifacetada realidade brasileira”. Dar o outro lado. Oferecia-se como, por
princípio, uma revista que visava apresentar, por meio do humor, uma nova perspectiva dos
fatos, diferenciada das divulgadas pela grande mídia. O caráter independente da revista –
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que proporcionava à equipe uma maior liberdade de expressão (tanto relacionada a temas,
como à formatos e modos de enunciação) –se dava por sua configuração própria, sem
vínculos a grandes editoras ou até mesmo a grandes publicidades, visto que em Bundas as
propagandas eram raras e, em sua maioria, relacionadas a bares, eventos e lançamento de
livros. No entanto, essa falta de inserções publicitárias foi apontada pela própria revista
como um dos elementos que a levaram ao fim (pela questão financeira), 77 exemplares
após seu início.
Quando perguntado sobre o surgimento da revista, em entrevista para o website
Portal Educacional, 3do Grupo Positivo, Ziraldo afirmou que “a Bundas só existiu porque
existiu o Pasquim”. Para entender esse aspecto, é preciso considerar, em primeiro lugar,
que grande parte dos componentes da então nova equipe já havia se consagrado no humor e
no jornalismo alternativo por meio de O Pasquim. Segundo Ziraldo, esses profissionais –
que, durante a ditadura, transformaram o jornal em instrumento de resistência contra a
censura imposta pelo regime militar e contra o conservadorismo que caracterizava a
sociedade daquele período – viram, no final dos anos 1990, a oportunidade de falar sobre
tudo que os incomodava.
O Pasquim era feito para uma massa de leitores que tinha uma coisa em comum, facilmente detectável: eram todos pela liberdade de imprensa contra a ditadura. As coisas agora estão muito mais difusas. Muitas pessoas nem percebem a extensão do ridículo de acatar todas as ordens da sociedade de consumo nem têm ideia de como não têm vontade própria, do quanto são desindividualizadas. E nem imaginam que ser indivíduos possa ser melhor. Tem gente que acha legal mostrar a piscina da sua casa de campo ou a bunda de sua mulher. Vamos ver se o pessoal se toca, né gente? 4 (ZIRALDO, 1999).
Diferentemente do Pasquim, o contexto era outro, não havia mais um regime
ditatorial para cercear a liberdade de expressão. O formato também havia sido modificado.
A revista apresentava a possibilidade de maior leveza (e maior temporalidade), o que era
propício para explorar o humor e a opinião. Proporcionava também uma estrutura mais
3 ? Ziraldo, em entrevista concedida ao website Educacional, disponível no site http://www. educacional.com.br/entrevistas/interativa/entint_0010.asp
4
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flexível, sem uma linearidade que guiasse todos os textos. A essência, contudo, ainda
parecia ser a mesma: estimular por meio do riso e da irreverência, as reflexões necessárias
para o início da mudança pretendida, almejada: liberdade conjugada à redução da
desigualdade, ao combate à fome e à miséria, à garantia do emprego e à educação para
todos.
Evidentemente, tendo sido marcadas por épocas e contextos tão distintos, as duas
publicações moveram-se por objetivos e abordagens diferentes. A mídia alternativa da
década de 1970 precisava enfrentar a censura e repressão, ao passo que, na década de 1990,
o Brasil experimentava um processo de redemocratização. A luta já não era contra a
ditadura, visto que o regime vigente era, agora, cunhado pela democracia. No entanto,
parecia ser desejo do grupo de Bundas oferecer um veículo capaz de apresentar uma visão
de mundo diferente daquelas veiculadas pela mídia tradicional do período, isto é, uma visão
marcada pela busca da consolidação da democracia, mas também de mudanças
permanentes, capazes de contribuir para a construção de um país cada vez mais justo e
menos desigual.
Nesse sentido, a revista explorava o humor para abordar temas que considerava
sérios. Ironizava, debochava e “avacalhava” para produzir críticas e reflexões. Além de
buscar estrategicamente o riso, recorria também à linguagem que seduz. O coloquialismo,
antes inovador, agora era utilizado para reafirmar as posições e opiniões da revista – e para
torná-las acessíveis a todos. Essa questão foi abordada logo na primeira edição, na coluna
“Professor Caga-Regras” de Moacir Werneck de Castro que expressava a dificuldade do
autor de produzir estratégias discursivas e linguagens que fossem inovadoras naquele
contexto. Argumentava que, tendo em vista que O pasquim já havia quebrado a maior parte
dos paradigmas linguísticos em veículos de comunicação, a utilização desses recursos,
depois dele, não parecia mais algo “novo” ou que chocasse. Dessa forma, conclui que os
veículos modernos enfrentavam um novo desafio. Entre outras passagens, esse trecho
revela que Bundas emerge com a “aura” do Pasquim, refletindo o senso de humor que
fizera sucesso outrora, mas buscando a todo o momento atualizá-lo.
A Bundas abordava os problemas de gestão governamental com frequência, sempre
com críticas afiadas ao governo, sobretudo ao presidente da República e ao então senador
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Antônio Carlos Magalhães. Não por acaso. Em função de problemas estruturais
decorrentes do mais novo plano de combate à inflação – o Plano Real, instituído em janeiro
de 1999 –, o Brasil passou por um período de desvalorização cambial. Embora bem
sucedido em 1994, o Plano Real enfrentava dificuldades no processo de implementação de
algumas das ações previstas, tais como as que envolviam o baixo investimento estatal, juros
elevados e um câmbio semi-fixo sobrevalorizado, que gerou, ao longo dos anos, um
acúmulo de problemas econômicos estruturais. A abertura indiscriminada da economia
também provocou consequências negativas, como o crescimento dos déficits comerciais e o
enfraquecimento da indústria nacional (CALDAS, 2003).
De maneira geral, a atuação do governo na economia foi pauta frequente e
enfatizada pela Bundas. Em um dos editoriais, a associação entre políticas públicas,
desenvolvimento social e economia se torna evidente em uma abordagem crítica que
compara a economia à gastroenterologia: “Os economistas determinam que tipos de fome
devem ser saciadas ou inibidas e, como os médicos, prescrevem suas receitas em linguagem
cifrada” (VERÍSSIMO,1999, p.5). O editorial sugere que há um tipo de economista que
pratica o que ele chama de “gastroenterologia sem vísceras” – uma indicação de que esses
economistas não incluem “gente” nos cálculos trabalhados. Veríssimo denuncia, assim, o
que julga ser uma política econômica marcada pelo “descaso pela emergência social, pelo
ronco da barriga”. Aqui, a revista só fazia confirmar uma característica muito própria do
suporte revista, no qual a opinião declarada ocupa espaços próprios, seja nos artigos, nas
colunas, editoriais ou charges (BOFF, 2012;).
As charges, cartuns, caricaturas e tirinhas foram elementos de destaque na
construção narrativa da Bundas. Era nesse tipo de mensagem gráfica que as críticas ficavam
mais visíveis, diretas e claras, partindo de um humor que procurava ridicularizar pessoas e
situações para propor reflexões acerca de problemas que eram sérios e caros ao cidadão
comum – como a necessidade de emprego, salário digno, escolas, saúde e moradia. As
charges, os cartuns e as caricaturas estavam em todas as partes, inundando as páginas,
espalhando-se por todo o corpo da publicação: às vezes nas colunas e tirinhas fixas, outras
vezes espremidas entre textos longos. Esse aspecto refletia o perfil da equipe, constituída de
desenhistas e mestres do humor como Ziraldo, Jaguar e Millor – profissionais que já
haviam revolucionado o humor na época do Pasquim. Para Paulo Caruso, o humor dos anos VIII Encontro dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação de Minas Gerais
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70 foi marcado também pela rebeldia bem humorada ao golpe de 64. Talvez seja esse o
aspecto que o leva a afirmar que “um fenômeno como o Pasquim não ocorreria com o
mesmo ímpeto num regime de liberdades democráticas, o confronto com a ditadura era a
mola propulsora do deboche e irreverência que o semanário ipanemense levou a todo país”
(CARUSO, 1997 p. 79).
Estudioso dos processos de configuração de gêneros discursivos no Brasil, o
pesquisador Alex Caldas Simões chama a atenção para alguns nomes relevantes nesse
campo, a começar por Ziraldo, Jaguar, Millôr e todos aqueles que trabalhavam no
Pasquim. Esses seriam os chamados “resistentes”, em função do combate à ditadura e à
censura – que os fez produzir ilustrações mais politizadas e críticas. Havia também uma
preocupação com a arte, que deveria se inspirar em características mais brasileiras. Nessa
época, surgiu, dentro do Pasquim, o Bicho, uma revista de quadrinhos que refletia trabalhos
“não enlatados”, isto é, não importados (SIMÕES, 2010, p.14).
Com o fim do regime ditatorial e da restrição à liberdade, as ilustrações passaram a
lidar com temas e contextos menos polêmicos. Por consequência, perderam um pouco da
carga política, voltando-se para temas comportamentais. De acordo com Caruso, cartunistas
como Glauco, Angeli e Laerte, influenciados pelo movimento underground norte-
americano, aderiram, naquele contexto, ao trinômio “Sexo, Drogas & Rock’ n Roll”. Alex
Simões classifica esse grupo como “a nova geração”. Em Bundas, as duas “gerações” de
artistas de ilustrações se combinavam e se completavam, tornando-se um marco do humor
no início do século XXI.
Anunciava-se, assim, o eixo de uma estratégia discursiva fundamentada na liberdade
irrestrita de pensamento e expressão, como se fosse uma espécie de revanche à censura
imposta pela ditadura que, durante mais de duas décadas, calou a imprensa brasileira
durante o regime militar. Era então a hora de não se calar e quase nada estava imune ao seu
humor afiado, nem mesmo a própria revista, ou o Ziraldo –eleito como “Bundão da
Semana” em uma das edições.
No entanto, vale destacar a relação da revista com outra publicação, a revista
Caras,da editora Abril. Afinal, não era a toa que Bundas se chamava Bundas. Mesmo em
detalhes, como escolha da fonte de seu título, branca em fundo vermelho (na capa) tornava-
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se claro o tom paródico e satírico pretendido. As comparações e menções frequentemente
apareciam em algum lugar da revista. Bom exemplo está no primeiro editorial da revista,
quando Veríssimo afirma que assim como Caras, Bundas “mostrará brasileiros em
situações ridículas, dizendo coisas desconexas, em cores”. Em outro exemplo, na terceira
edição, o autor visando ironizar e criticar as privatizações ocorridas no governo FHC afirma
que assim como Caras possui uma ilha, Bundas compraria um país : O Brasil – que estaria
sendo vendido “por uma ninharia”.
A revista chegou a ser processada pela publicação do texto O castelo de Bundas, por
Benedito B. de Paiva – em seu quarto número. No qual nomeava o Castelo de Caras,
localizado em Itaipava e pertencente à Smith de Vasconcelos , como Castelo de Bundas,
chegando a reinventar ironicamente história da propriedade e à apelidar seu idealizador, o
Barão Smith, de “Barão de Merda”. Por ordem judicial precisou, se retratar publicando
uma nota quatro edições depois. Porém , a provocação ainda encontrava lugar no título “ O
primeiro processo a gente nunca esquece”. No entanto, era através de elementos gráficos e
imagens que tais provocações ganhavam um tom crítico e humorístico mais potente.
O corpo e a Imagem
Quando o primeiro exemplar de Bundas chegou às bancas em 16 de junho de 1999,
provavelmente sua capa não passou despercebida, nem seu título. Em letras garrafais
afirmava “Indecente é a cara”, prometia “ A nata do humor e do jornalismo brasileiro está
dentro” e ainda provocava “Paguem para ver!”. O lugar de destaque era, no entanto,
ocupado pela fotografia de uma bunda mascarada (como a máscara da Tiazinha, famosa
dançarina da época), ilustrando o título. Assim, aquela primeira capa revelava ao leitor o
tom irreverente que se tornaria uma das marcas registradas da revista.
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Fonte : Revista Bundas. Primeia edição.Capa. Editora Pererê. Rio de Janeiro 1999.
Depois dessa, de um total de 77 capas, 22 teriam o corpo humano como
protagonista, sendo dessas, 8 ocupadas por outras bundas, a maioria femininas. O que é
indicial para se entender a relação da revista com a imagem do corpo. A primeira edição,
por exemplo, tinha como proposta apresentar a nova publicação e dar o “tom” dos
exemplares que viriam posteriormente, assim explorou com diversos recursos –norteados
pelo humor- o próprio título, Bundas. O que foi abordado, por exemplo, em uma ilustração
em que um leitor ao chegar na banca de revista, se depara com várias capas de diversas
publicações -todas elas com imagens de bundas –e pergunta “ tem Caras?”. Logo abaixo,
um quadrinho explicava:
Esse cartum foi publicado na Manchete em 1996 e logo depois reproduzido numa
matéria da revista de Domingo. Aí nasceu a ideia de trocarmos todas as revistas
da banca por uma só, chamada Bundas (ZIRALDO, 1999)
Observa-se no entanto que em Bundas, as imagens referentes ao corpo vinham mais
carregadas de doses da ousadia característica do anos 1990 –período marcado por uma
empolgação gerada pela redemocratização –ou de elementos próprios do humor, da ironia,
da paródia ( principalmente, quando em alusão à revista Caras), e até mesmo em função de
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piadas que pareciam não se preocupar com o que é mais politicamente correto hoje em dia
do que a de um culto à determinado padrão de corpo divulgado pela mídia.
Bundas se insere, entretanto, em uma sociedade cuja cultura se mostra tão
comprometida com o valor imagético que aprendeu a conviver com um constante
“deslizamento entre imagens (SIBILIA, 2013, p. 119)”. Em uma vertigem que iniciou no
começo do século XX, por meio de aparatos tecnológicos e se intensificava no início do
século XXI. Instaurando, portanto, um novo regime do visível (BRASIL; LISSOVSKY;
MORETINNI, 2013, p.7). O que afeta, consequentemente, como essa sociedade produz,
consome e resignifica tais imagens.
De acordo com Lucia Santaella, as representações da mídia produzem um profundo
efeito sobre as experiências do corpo. Já que elas possuem, de certa forma, a capacidade de
provocar imaginários e desejos. A mídia pode assim funcionar como um dos principais
difusores do culto da beleza do corpo como forma de comportamento (SANTAELLA
2004). Assim como em Bundas, na revista Caras também pode-se notar que a questão do
corpo preenche suas páginas com frequência, mas diferente do caráter mais humorado e
satírico e –algumas vezes- erotizado de Bundas, em Caras parece ser mais forte a
legitimação de certos padrões de beleza. Tal percepção se dá pela revista publicar imagens
que revelam corpos e figurines – em sua maioria- parecidos, próximos à determinado ideal
do belo, marcado por fatores como magreza, elegancia, cabelos lisos e sedosos, por
exemplo .
De toda forma, ambas as revistas são preenchidas em grande parte por imagens –
seja fotografias, charges, cartuns ou ilustrações. Ambas possuem no visível e imagético
características fortes que as ajudam a compor cada narrativa. É interessante portanto, que
no caso de Bundas, também são as imagens e, suas repetições, ferramentas que intensificam
estratégias como a paródia.
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Caminhos teóricos: uma noção de paródia
Em seu livro Um teoria da Paródia, Linda Hutcheon aborda – percorrendo um
caminho de análise voltado, em especial, à arte do século XX – o conceito de forma
diferenciada da encontrada no senso comum ao ir além da visão de imitação
ridicularizadora ou cômica. De acordo com a autora, a paródia é “na sua irônica
transcontextualização inversão, repetição com diferença (HUTCHEON, 1985, p.48)”. Pode
remodelar formas familiares para dizer algo de sério com maior impacto.
Considera-se assim, a paródia como um gênero complexo marcado por um
distanciamento crítico entre o texto a ser parodiado e a nova obra, incorporando,
geralmente, uma distância assinalada pela ironia. A paródia é por natureza interdiscursiva,
dialógica e de voz dupla, conecta-se obrigatoriamente à outra obra e a seu contexto,
consequentemente transcontextualizada. De acordo com Hutcheon, para Bakhtin, a paródia
é “um híbrido dia logístico intencional. Dentro dela, linguagens e estilos iluminam-se ativa
e mutuamente (HUTCHEON, 1985, p. 90). Vale lembrar ,no entanto, que o alvo da paródia
nem sempre é o texto parodiado em si, mas sim, uma questão que o cerca.
“A inversão irônica é uma característica de toda paródia (HUTCHEON, 1985,
p.18)”. Sendo a ironia o principal mecanismo de retórica para despertar a atenção do leitor
para a dramatização presente, agindo no discurso paródico como uma estratégia que
permite ao decodificador avaliar e interpretar (HUTCHEON, 1985). Portanto, desempenha
papeis fundamentais na construção da paródia, é responsável por assinalar o contraste
semântico entre o que está dito e o que é significado e também – a nível pragmático- por
sinalizar uma avaliação.
Ambas as funções –inversão semântica e avaliação pragmática –estão implícitas na raiz grega, eironeia, que sugere dissimulação e interrogação: há uma divisão ou contraste de sentidos e também um questionar, ou julgar. A ironia funciona, pois, quer como antífrase, quer como estratégia avaliadora que implica uma atitude do agente codificador para com o texto em si, atitude que, por sua vez, permite e exige a interpretação e avaliação do decodificador (HUTCHEON, 1985, p.73)
No entanto, é relevante ressaltar que, para a autora, o prazer da ironia na paródia
está mais próximo do empenho do leitor no vai e vem textual, e de sua competência
semiótica, do que no humor em si e da ridicularização, está entre o distanciamento e a
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cumplicidade. Ou seja, para que a paródia complete seu sentido, é preciso que ela seja
compreendida, assim, exige que seu leitor entenda as referências, perceba a ironia e
construa uma percepção a partir do que está dito, complementando o primeiro plano com o
conhecimento e reconhecimento de um contexto ao fundo. A compreensão gera alguma
reação, certa cumplicidade, para que a crítica atinja seu objetivo. Assim se o leitor
desconhece o texto parodiado ou os elementos que fazem dessa paródia repetição e também
diferença, o sentido proposto não se cumpre.
Por outras palavras, a paródia não envolve apenas um ènoncè estrutural, mas também a enonciation inteira do discurso. Este ato enunciativo inclui um emissor da frase, um receptor desta, um tempo e um lugar, discursos que a precedem e se lhe seguem – em resumo todo um contexto (HUTCHEON,1985, p.35)
Por meio da ironia, como estratégia principal, e não o cômico, a autora propõe lidar
com a ideia de distanciamento crítico do texto parodiado, o que não significa
necessariamente depreciá-lo. No entanto, dizer que a paródia não é obrigatoriamente
ridicularizadora não descarta a possibilidade de também, em certas ocasiões, vir a ser. É o
que ocorre quando ela se conecta a outros gêneros, como, por exemplo, a sátira.
Hutcheon explica que diferenciar os dois gêneros é importante pelo fato de que são
facilmente confundidos e tomados como algo único,já que muitas vezes são usados
conjuntamente. Ambos implicam em um distanciamento crítico, e consequentemente, em
juízo de valor, no entanto , geralmente, a sátira utiliza tal distanciamento para fazer
afirmações de cunho negativo à respeito do texto parodiado, o que pode não acontecer na
paródia (HUTCHEON, 1985).
A sátira , diferente da paródia é “simultaneamente moral e social no seu alcance e
aperfeiçoadora na sua atenção (HUCTHEON, 1985 p.28). Enquanto a paródia se refere
sempre a outra obra, sendo assim intramuro, a sátira é extramuro já que não se reporta à
nenhuma realidade modelada anterior, e sim à problemas da sociedade. O riso também é
um fator diferenciador, acompanha sempre à sátira, no entanto isso não ocorre com a
mesma obrigatoriedade na paródia (HUTCHEON, 1985). Em outras palavras, a sátira não
parte de outra obra, ela se utiliza do cômico para tecer críticas sobre uma realidade que
pode incluir costumes, atitudes e estruturas sociais. Posto isso, interessa neste trabalho –
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devido ao humor como eixo central que guia a revista analisada- a ideia da junção dos dois
gêneros em uma paródia satírica e de que forma esse artifício se constrói ao longo da
revista.
Trazendo o humor para a discussão, torna-se relevante abordar o que Hutcheon
denomina de “paradoxo da paródia” recorrendo à percepção de canarvalização
desenvolvida por Bakhtin. Embora Linda Hutcheon discorde em diversos pontos do autor,
identifica ligações estreitas entre o que Bakhtin chama de paródia carnavalesca e a
transgressão autorizada dos textos paródicos.
De acordo com Michael Gardiner (2010, p.225), o mundo medieval era visto como
terrível e alienante, em um período que a teocracia explorava o sentimento de medo para
legitimar suas hierarquias e subjulgar a população. O carnaval de Bakhtin apresentava-se
então como uma oportunidade – mesmo que temporária –de subverter as ordens e combater
o horror . As regras normais encontravam-se suspensas e passíveis de – dentro do carnaval
ser reconfiguradas. “Por intermédio do riso do povo e do aviltamento dos símbolos, o terror
abstrato do desconhecido “fazia-se carne”, transformando em “monstro grotesco” feito pra
fazer rir e para ser dominado(GARDINER, 2010, p. 225)”. Dessa forma, nesses festivais,
os clichês, inversões, imitações, a linguagem menos formal e o riso eram os artifícios
utilizados ara expor ao ridículo e à profanação aquilo que era oficial. Assim essa potência
crítica tornava-se crucial no carnaval.
O carnaval no entanto era um espaço autorizado. Era legalizado e permito pela
Igreja Medieval, dentro do limite temporal imposto. Suas transgressões, embora não
oficiais, eram assim permitidas. Á esta situação, Hutcheon denomina de “paradoxo da
subversão legalizada”. O que quer dizer que tal qual ao carnaval, o texto paródico também
pode ocorrer em um “lugar” autorizado, possuindo certa licença especial para transgredir a
ordem, sendo que dentro da temporalidade estipulada e dos limites do texto parodiado, ou
seja, de sua “reconhecibilidade” (HUTCHEON, 1985, p.96). O que se aplica ao discurso
paródico satírico aqui trabalhado. “Todas as suas transgressões paródicas se mantém
legitimadas, autorizadas pelo próprio ato de inscreverem o texto parodiado que lhes serve
de fundo, ainda com distanciação crítica de vários graus (HUTCHEON, 1985, p.106)”.
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Uma Paródia Satírica
Como visto, a revista produzia críticas sociopolíticas e análises de questões que
preocupavam o cidadão comum. Para isso, recorria ao humor – seja no desenho, seja ao
longo dos textos que compõem os editoriais, os artigos, colunas, notícias, entre outros. Por
meio do humor – e, consequentemente, do riso – pretendia-se não somente atrair leitor, mas
propor debates inspirados em temas e dilemas políticos, culturais e socioeconômicos,
revelando nuances do ser humano e seus sistemas de poder. Como bem observa Alain
Deligne (2011), é provável que seja o riso – e não o trabalho, como afirmara Hegel – o
elemento que distingue o homem do restante dos animais. Embora o humor e a crítica
estivessem presentes –de forma frequente em todos os formatos -eram nas imagens que tais
estratégias se destacavam de forma mais visível.
Baseado nisto, optou-se nesse trabalho por dirigir uma maior atenção aos casos nos
quais a paródia – aliada à sátira- como estratégia discursiva ficou evidente através das
imagens. Embora a paródia também se torne presente de formas diversas em outros
formatos na revista, interessava aqui buscar um maior entendimento acerca do uso da
imagem em sua construção narrativa, das histórias que elas podiam contar. Assim, nesse
artigo, escolheu-se analisar o ensaio “Claudinete volta do Spa”, publicado na 9º edição.
Nele, a personagem Claudinete é mostrada em uma galeria de fotos posando ao lado
de flores, comento uma coxinha em um boteco ou escolhendo calças em uma loja de
departamento, lugares e ações distanciados do modo de vida da elite. Trata-se de uma
referência bem humorada e satírica às galerias de foto da Caras , em que celebridades e
socialites exibem seus carros, mansões e objetos de marcas de alto custo, marcas de um
determinado estilo de vida.
A revista Caras, diferente de Bundas é marcada por um padrão gráfico composto
por fontes, alinhamentos e desenhos de páginas muito próprios. Ao imitar esta configuração
em “Claudinette volta do Spa”, o que Bundas fez foi uma repetição com diferença. Através
desta diagramação específica, Bundas faz de sua página uma imagem que remete às VIII Encontro dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação de Minas Gerais
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imagens presentes em Caras e ao modo específico de mostrá-las. No entanto, vai além da
mera imitação humorada, já que ao colocar Claudinette – uma personagem visivelmente
comum em situações simples e cotidianas –ao invés do que seria esperado em Caras
(famosos em situação de luxo), a imagem provoca um novo sentido e um potencial crítico.
Logo, se configura uma paródia e uma sátira ao inverter as posições e ironizar
valores sociais, satirizando e ridicularizando pressupostos de uma elite. Esse exemplo
também é válido para retomar a discussão anterior à respeito das imagens do corpo na
mídia ao comparar o padrão de beleza geralmente veiculado por Caras à figura comum – e
fora destes padrões- de Claudinette, que se mostra “orgulhosa” do seu novo visual. A
declaração destacada na página “Agora sei o que é ser um objeto sexual” reforça essa ideia.
Dessa forma a inversão de padrões – colocando Claudinette no lugar que em Caras
seria direcionado à uma socialite ou celebridade com características compátiveis ao padrão
de beleza convencinal, como magreza – possibilita de forma humorada uma crítica que
ironiza também o ideal de estilo e de ser belo amplamente divulgado na mídia. Ideal este
que se conecta também à valores de determinadas classes sociais mais favorecidas e a uma
lógica de Mercado e consumo. Percebe-se portanto que o “alvo” pretendido por esta
paródia parece ir além de Caras enquanto uma revista concorrente, buscando, assim, atingir
determinados valores disseminados pela publicação.
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Fonte: Imagem divulgada na internet de umas das páginas da revista Caras
Neste caso, é por meio da diagramação que a paródia torna-se evidente. Se a matéria
fosse descontextualizada ou desconectada da obra parodiada ou reconfigurada, o sentido se
perderia. Assim a imagem mostra-se como potente elemento narrativo. Mesmo que não
houvesse o texto que acompanha, bastaria olhar para as fotos, para as cores e para a
maneira como elas estão dispostas na página para se atingir o resultado desejado – se
houvesse conhecimento prévio da origem daquele padrão gráfico e do que ele representa.
Considerações Finais
Desde seus primeiros exemplares, a revista Bundas imprimiu a seu conteúdo, sob
inegável influência de O Pasquim, a marca de um espírito contestador e revolucionário.
Emerge assim, demonstrando uma forma de “ressaca” dos tempos da censura imposta pela
ditadura. Bundas vivenciava o momento de uma revanche discursiva, em que era permitido
falar, discutir e argumentar livremente. Para isso, recorreu ao humor afiado, ao riso e ironia VIII Encontro dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação de Minas Gerais
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e à paródia. Tanto quanto o humor, as imagens na revista – quer fosse ilustradas ou
fotografadas – são elementos discursivos de grande potencial na construção da narrativa da
revista como um todo.
O conceito de paródia aplicado à realidade de Bundas também torna-se relevante na
discussão por ser uma estratégia do dizer, que mais do que imitar pelo simples traço cômico
e riso, faz um distanciamento crítico da obra parodiada, marcando assim as diferenças entre
elas. O que gera uma reflexão mais aprofundada. Ao se utilizar da paródia, Bundas parecia
pretender falar e fazer pensar sobre uma sociedade esvaziada de sonhos, que vivia para o
consumo, que prezava mansões e piscinas – e que se recusava a reconhecer o exército de
miseráveis nas regiões mais pobres do país.
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