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2/2/2014 Diálogo Diplomático: SÉRIE DE RESENHAS E FICHAMENTOS PARA O CACD - 3) CASA GRANDE & SENZALA http://dialogodiplomatico.blogspot.com.br/2008/02/srie-de-resenhas-e-fichamentos-para-o_5449.html 1/6 SÉRIE DE RESENHAS E FICHAMENTOS PARA O CACD - 3) CASA GRANDE & SENZALA Introdução Casa Grande & Senzala é talvez o mais vasto painel da nacionalidade brasileira que já se produziu. Obra ambiciosa, empreende de forma notável a interpretação da sociedade brasileira, a explicação de como o colonizador português, vencendo todos os obstáculos que o clima, a natureza, a escassez de trabalho lhe impunham, fundou aqui uma sociedade moderna, "a maior civilização dos trópicos". Grandiosa não apenas pelo tamanho, mas, principalmente, pelo conteúdo, que desce a um nível de descrição e detalhismo impressionante, Casa Grande & Senzala foi, em vários aspectos, uma obra seminal. Clássico da sociologia e do ensaísmo brasileiro, a obra até hoje continua despertando debates. Para muitos, a maior interpretação da sociedade brasileira de todos os tempos, ícone da nacionalidade brasileira. Para outros tantos, uma peça extremamente bem-construída do conservadorismo das elites que construíram o País e que, enfim, por meio da obra, legitimaram, no mais puro estilo maquiavélico, os meios de que lançaram mão na construção de sua obra civilizatória. O autor Fato é que nenhuma obra pode ser considerada de forma isolada em relação a seu autor. E Gilberto Freyre, tal como sua obra-prima, foi um homem multifacetado, e, por que não dizê-lo, ambíguo. Filho da aristocracia decadente de Pernambuco, Freyre nasceu no Recife em 1900, época em que já as usinas avançavam em detrimento dos engenhos, processo de corrosão do antigo poder do senhor de engenho brilhantemente descrito e analisado nos romances de José Lins do Rego. No final dos anos 1910, Freyre deixa o Brasil e se muda para os Estados Unidos, onde cursaria universidades no Texas e em Nova York. Foi nos Estados Unidos que iniciou sua vida intelectual e acadêmica e que conheceu as obras e os autores que o influenciariam por toda a vida - com destaque para aquele que ele mesmo chamou certa vez de mestre, o antropólogo Franz Boas. Foi com Boas que Freyre disse haver aprendido a distinção que seria fundamental para a compreensão da sociologia freyriana: a distinção entre raça e cultura. Numa época em que o racismo, apoiado nas idéias naturalistas, ganhava força no mundo todo e se imiscuía com a política, na prática e na ideologia do imperialismo tanto quanto no florescimento das idéias (proto)fascistas, a dualidade raça-cultura era quase uma "heresia" acadêmica. E seria a esta "heresia" que Freyre se apegaria em sua empresa mais grandiosa: o entendimento do Brasil. Conservador pela origem aristocrática, mas liberal pela filiação acadêmica: eis apenas uma das muitas contradições que marcam autor e obra, Freyre e Casa Grande & Senzala. O contexto intelectual Publicada em dezembro de 1933 no Rio de Janeiro, Casa Grande & Senzala foi um dos três grandes ensaios que se publicaram sobre o Brasil em menos de uma década, ao lado de "Raízes do Brasil", de Sérgio Buarque de Holanda (1936), e de "Formação do Brasil Contemporâneo", de Caio Prado Jr. (1942). A grande "tríade" da interpretação do País é marcada, no entanto, por perspectivas, visões e métodos próprios. Caio Prado adota uma abordagem histórico-economicista e procura explicar a formação da sociedade brasileira como etapa e conseqüência do processo de acumulação de capital em nível global. Sérgio Buarque prefere uma interpretação sociológica, com base em uma análise das diferentes formas pelas quais se deram as

Diálogo Diplomático_ Série de Resenhas e Fichamentos Para o Cacd - 3) Casa Grande & Senzala

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2/2/2014 Diálogo Diplomático: SÉRIE DE RESENHAS E FICHAMENTOS PARA O CACD - 3) CASA GRANDE & SENZALA

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SÉRIE DE RESENHAS E FICHAMENTOS PARA O CACD - 3) CASA GRANDE &

SENZALA

Introdução

Casa Grande & Senzala é talvez o mais vasto painel da nacionalidade brasileira que já se produziu. Obra

ambiciosa, empreende de forma notável a interpretação da sociedade brasileira, a explicação de como o

colonizador português, vencendo todos os obstáculos que o clima, a natureza, a escassez de trabalho lhe

impunham, fundou aqui uma sociedade moderna, "a maior civ ilização dos trópicos".

Grandiosa não apenas pelo tamanho, mas, principalmente, pelo conteúdo, que desce a um nível de

descrição e detalhismo impressionante, Casa Grande & Senzala foi, em vários aspectos, uma obra seminal.

Clássico da sociologia e do ensaísmo brasileiro, a obra até hoje continua despertando debates. Para

muitos, a maior interpretação da sociedade brasileira de todos os tempos, ícone da nacionalidade

brasileira. Para outros tantos, uma peça extremamente bem-construída do conservadorismo das elites

que construíram o País e que, enfim, por meio da obra, legitimaram, no mais puro estilo maquiavélico, os

meios de que lançaram mão na construção de sua obra civ ilizatória.

O autor

Fato é que nenhuma obra pode ser considerada de forma isolada em relação a seu autor. E Gilberto Frey re,

tal como sua obra-prima, foi um homem multifacetado, e, por que não dizê-lo, ambíguo. Filho da

aristocracia decadente de Pernambuco, Frey re nasceu no Recife em 1900, época em que já as usinas

avançavam em detrimento dos engenhos, processo de corrosão do antigo poder do senhor de engenho

brilhantemente descrito e analisado nos romances de José Lins do Rego. No final dos anos 1910, Frey re

deixa o Brasil e se muda para os Estados Unidos, onde cursaria universidades no Texas e em Nova Y ork.

Foi nos Estados Unidos que iniciou sua v ida intelectual e acadêmica e que conheceu as obras e os autores

que o influenciariam por toda a v ida - com destaque para aquele que ele mesmo chamou certa vez de

mestre, o antropólogo Franz Boas.

Foi com Boas que Frey re disse haver aprendido a distinção que seria fundamental para a compreensão da

sociologia frey riana: a distinção entre raça e cultura. Numa época em que o racismo, apoiado nas idéias

naturalistas, ganhava força no mundo todo e se imiscuía com a política, na prática e na ideologia do

imperialismo tanto quanto no florescimento das idéias (proto)fascistas, a dualidade raça-cultura era quase

uma "heresia" acadêmica. E seria a esta "heresia" que Frey re se apegaria em sua empresa mais grandiosa: o

entendimento do Brasil. Conservador pela origem aristocrática, mas liberal pela filiação acadêmica: eis

apenas uma das muitas contradições que marcam autor e obra, Frey re e Casa Grande & Senzala.

O contexto intelectual

Publicada em dezembro de 1933 no Rio de Janeiro, Casa Grande & Senzala foi um dos três grandes ensaios

que se publicaram sobre o Brasil em menos de uma década, ao lado de "Raízes do Brasil", de Sérgio Buarque

de Holanda (1936), e de "Formação do Brasil Contemporâneo", de Caio Prado Jr. (1942). A grande "tríade"

da interpretação do País é marcada, no entanto, por perspectivas, v isões e métodos próprios. Caio Prado

adota uma abordagem histórico-economicista e procura explicar a formação da sociedade brasileira como

etapa e conseqüência do processo de acumulação de capital em nível global. Sérgio Buarque prefere uma

interpretação sociológica, com base em uma análise das diferentes formas pelas quais se deram as

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empresas colonizadoras de Portugal e Espanha no Novo Mundo e as marcas que deixaram nas

nacionalidades que delas se originaram. Gilberto Frey re flutua entre a sociologia e a antropologia, com

preferência sensível por esta última. Para ele, a interpretação de uma sociedade exige a intepretação de

seus componentes - os indiv íduos -, no nível de seus comportamentos, seus valores, seus costumes, suas

relações (íntimas, inclusive - se não principalmente), suas crenças, sua educação, sua v ida familiar, seu

lazer - em outras palavras, sua cultura.

Confrontando as idéias naturalistas, que atribuíam ao clima e às raças que se instalaram nos trópicos as

mazelas de que sofria o País, Frey re posiciona-se pela cultura como elemento fundamental de

interpretação da construção de uma sociedade, acima até mesmo da economia e da política ("não nos

interessa [...] senão secundariamente, neste ensaio, o aspecto político ou econômico da colonização

portuguesa do Brasil"). Neste sentido, Frey re era um inovador, na medida em que, de forma corajosa,

rompia com uma tradição intelecutal herdada da antropologia européia, que estancava as raças como

superiores e inferiores e, eivada do naturalismo e de um tipo de darwinismo deturpado, atribuía ao

"determinismo do meio" a função explicativa para os fenômenos sociais - inclusive o 'sucesso' e o 'fracasso'

de civ ilizações, povos e nações.

A dialética frey riana

A exploração de antagonismos é o método de que Frey re lança mão na construção da temática de Casa

Grande & Senzala - o próprio título da obra revela o antagonismo fundamental. Pouco afeito ao rigor

teórico e ao cientificismo, Frey re prefere o método ensaístico, quase literário, numa obra rica em

passagens que bem poderiam ter sido extraídas de um romance. Dando rigor à fluidez de sua obra, no

entanto, está o método dialético, que salta aos olhos de forma espontânea, sem que seja necessária uma

análise mais aprofundada. O próprio autor a revela: a formação da sociedade brasileira é

"um processo de equilíbrio de antagonismos. Antagonismos de economia e de cultura. A culturaeuropéia e a indígena. A européia e a africana. A africana e a indígena. A economia agrária e apastoril. A agrária e a mineira. O católico e o herege. O jesuíta e o fazendeiro. O bandeirante e osenhor de engenho. O paulista e o emboaba. O pernambucano e o mascate. O grande proprietário e opária. O bacharel e o analfabeto. Mas predominante sobre todos os antagonismos, o mais geral e omais profundo: o senhor e o escravo".

Talvez não seja exagero detectar aí a influência da dialética hegeliana, cujo exemplo mais citado - pelo

próprio Hegel, aliás - é a dialética do senhor e do escravo. A dialética não é apenas a confrontação de

opostos, de antagonismos; é, antes, uma relação pela qual cada oposto se vê reforçado em sua natureza e

essência pelo outro; é pela relação com o outro que eu me descubro a mim mesmo, tal como sou. O senhor

é senhor apenas porque existe um escravo - sem o escravo, não existe senhor, e v ice-versa. O interessante

da dialética hegeliana é que não apenas a essência se vê reafirmada pelo oposto, mas também se vê, ela

própria, negada. Assim, por exemplo, segundo Hegel, o senhor, ao precisar do escravo para reafirmar seu

status de senhor, torna-se dependente do escravo, até o limite em que, pelo menos no plano ideal, torna-

se escravo de seu escravo - e o escravo, senhor de seu senhor. Uma leitura de Frey re, no entanto, revela

que essa segunda dimensão da dialética hegeliana está ausente. Na obra frey riana, assim como na história

da formação da sociedade brasileira, os papéis de dominadores e dominados estiveram sempre

claramente delimitados.

Mas se a sociedade brasileira formou-se por e com antagonismos, não teriam esses antagonismos levado

ao conflito inev itável entre opostos? Frey re mesmo responde: "entre tantos antagonismos, [têm-se]

condições de confraternização e mobilidade sociais peculiares ao Brasil: a miscigenação".

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As três raças

O núcleo de Casa Grande & Senzala é a descrição e a análise minuciosas que Frey re faz sobre a participação

do branco português, do negro escravo e do indígena ameríndio na formação da sociedade brasileira. Para

Frey re, a miscigenação é o fator essencial para explicar-se o sucesso do colonizador português em sua

empresa nos trópicos e a conseqüente construção da civ ilização brasileira. Rüdiger Bilden, em comentário

sobre a obra de Frey re, afirma que o tripé fundamental da colonização do Brasil pelos portugueses foi a

união entre latifúndio, escrav idão e miscigenação.

A flexibilidade e a adaptabilidade da nação portuguesa foram os fatores básicos que permitiram ao

colonizador "triunfar onde outros europeus falharam". Chegados ao Brasil e cientes de que, nos trópicos, a

colonização exigiria a exploração da terra - diferentemente da colonização por feitorias nas Índias -, os

primeiros colonizadores sofreram de uma carência que poderia provar-se fatal para o sucesso da empresa

colonial: a ausência de mulheres. Afeitos ao contato com outros povos e a sua influência - árabes,

africanos, europeus de origem latina ou céltica, judeus da diáspora -, os portugueses teriam desenvolv ido,

segundo Frey re, a quase ausência do preconceito de raça. Este foi o fator fundamental que lhes facilitaram

tomar para si as mulheres indígenas com a finalidade de procriar e gerar a prole que se incumbiria de

povoar, explorar, defender e expandir a terra. Foi sobre a cunhã, oferecida ao português "de pernas

abertas", que o colonizador exerceu sua primeira e fundamental relação de dominação - fundamental

porque seria a mulher indígena a base da família brasileira, e o mestiço (mameluco), o agente por

excelência da colonização.

À mulher indígena coube estruturar a família brasileira, pelo menos nas primeiras décadas da colonização.

Seu papel, obv iamente, não se resumiu à reprodução. Responsável pela educação de sucessivas gerações

de brasileiros, a mulher indígena, segundo Frey re, impregnou suas marcas nas relações familiares, nos

hábitos, nos costumes, na alimentação, nas brincadeiras infantis, na língua - em v irtualmente toda

dimensão da v ida indiv idual e familiar da sociedade brasileira. O homem indígena, por sua vez, foi

prontamente aliciado ou forçado ao trabalho. O ameríndio, no entanto, pouco acostumado ao trabalho

sedentário da lavoura - o índio dedicava-se à caça e ao trabalho manual artesanal, mas não à agricultura, à

exceção de formas muito rudimentares de cultivo - logo foi considerado como "preguiçoso" e "indolente",

v isão que tanto Frey re quanto Caio Prado derrubam, ao argumentar que o índio apenas não estava

acostumado ao trabalho sistemático da lavoura - preferia a liberdade da caça, da navegação, do nado, da

manufatura. Seu papel na colonização foi, não obstante, crucial:

"índios e mamelucos formaram uma muralha movediça, v iva, que foi alargando em sentidoocidental as fronteiras coloniais do Brasil, ao mesmo tempo que defenderam, na região açucareira,os estabelecimentos agrários dos ataques de piratas estrangeiros".

No processo de colonização dos trópicos, se a cabeça foram os portugueses e os pés, os índios e mestiços,

os braços foram, sem sombra de dúvida, os negros escravos. Vários foram os fatores que levaram o

colonizador a optar pelo braço escravo africano: a falta de aptidão do indígena é um deles, mas talvez não

o mais importante. Caio Prado afirma que os portugueses não apenas estavam afeitos à escrav idão no

norte da África (onde marcavam presença desde pelo menos a navegação a Ceuta, em 1415), como

também tinham a oportunidade de transformá-la numa lucrativa ativ idade mercantil. Na lógica do

mercantilismo imperialista, o tráfico de seres humanos se transformaria numa das ativ idades que

sustentariam a colonização do País. Em mais de três séculos (1526 - 1850), mais de 4 milhões de negros

aportaram na terra brasilis e aqui foram dizimados sob o fogo da fornalha, o açoite do capataz, o tronco do

pelourinho - e, no caso das mulheres escravas, sob a luxúria dos senhores e a crueldade das sinhás.

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Desnecessário dissertar sobre o papel do homem escravo na colonização do Brasil. Foi ele a força motriz

que movimentou a economia açucareira e cafeeira responsável pela sustentação do projeto colonial. Nem

é esse, tampouco, o objetivo de Frey re, uma vez que, como salientado, o autor está preocupado com os

aspectos antropológicos e sociológicos da formação da sociedade brasileira, e não com os aspectos

econômicos. Para compreender aqueles, importa mais considerar o papel da mulher.

A mulher escrava é uma das personagens principais da formação da família e da sociedade brasileiras.

Substituindo à mulher indígena, ela passou a ser o objeto de dominação sexual do senhor, que não a

exercia mais com o intuito fundamental de reproduzir-se, mas, sim, para a satisfação de sua luxúria. É

fundamental compreender que, para Frey re, o papel sexual da escrava foi tão importante quanto o papel

laboral do escravo. A miscigenação continua central - mas, para além dela, é necessário considerar a outra

função que a escrava acabou por desempenhar na colônia brasileira, essencial para se entender a

abordagem de Frey re em relação à escrav idão: a mulher escrava foi o elo, a ponte entre os dois mundos

dialeticamente relacionados da casa grande e da senzala.

"Intoxicação sexual"

Se para Frey re a miscigenação é o elemento central da formação da sociedade brasileira, é natural que a

análise e a minuciosa descrição das relações sexuais ocupe um lugar de destaque em Casa Grande &

Senzala. Para Frey re, "o ambiente em que começou a formação brasileira foi de grande intoxicação

sexual". Se à mulher indígena coube a primazia na formação da família brasileira e da base humana que

ajudaria a colonizar os trópicos, foi a mulher escrava negra que por três séculos se renderia ao poder e à

luxúria dos senhores.

Atribuíam-se ao clima quente a licenciosidade, a depravação e a subordinação que marcaram a v ida

sexual da família patriarcal colonial - no melhor estilo do dito "não há pecado abaixo do Equador". Numa

sociedade fortemente conservadora e pia, em que as mulheres brancas resguardavam suas "v irtudes", era

com negras e mulatas que os senhores satisfaziam seus desejos e impulsos. Nas palavras de Frey re, "a

v irtude da senhora branca apóia-se em grande parte na prostituição da escrava negra". Escolhida dentre as

mais jovens, belas e fortes, as negras que serv iam na casa grande - as mucamas - foram o elo entre o

mundo do senhor e o do escravo, o vetor com o qual penetraram no seio do patriarcado aristocrático

brasileiro os "modos", os "valores", o "molejo", a "doçura", a "fala", o "talento", o "banzo" dos escravos. A

mucama, a ama de leite, a quituteira, a amante foram as mulheres que fecundaram, geraram e criaram a

família brasileira. Brancos e brancas, sinhôs e iaiás tinham com a mulher negra momentos fundamentais

de sua formação: a amamentação, a alimentação, o cuidado materno que muitas vezes era substituído pelo

carinho da ama, as brincadeiras, a iniciação sexual, a v ida sexual não-conjugal, as confidências, as

amizades, as aventuras.

A presença do negro no interior da casa grande ensejou um ambiente que, para Frey re, teria adocicado e

abrandado a crueldade inerente ao sistema escravocrata. Esse é, a bem da verdade, um dos pontos mais

polêmicos da obra do sociólogo.

A presença das mulatas e dos "moleques" na casa grande teria sido fator decisivo, na v isão de Frey re, para

o abrandamento da relação de posse que caracterizava a relação entre senhor e escravo. Diferente do que

ocorrera em outras áreas de escrav idão, especialmente no sul dos Estados Unidos – que Frey re, aliás,

toma como referencial para comparação em várias passagens da obra –, aqui à escrav idão teria sido

acrescentado um elemento de "doçura", de "proximidade", de "amolecimento" da relação senhor e escravo

- cujo fundamento indiscutível é a v iolência. O senhor teria acolhido o negro no seio de sua família, e a

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proximidade desses dois mundos antagônicos da casa grande e da senzala, aliada à quase ausência de

preconceito de cor na natureza do colonizador, foi o fundamento daquilo que muitos analistas da obra de

Frey re identificaram como a “democracia racial”.

Não há passagem no livro que mencione o termo "democracia racial". De fato, essa foi uma construção que

surge apenas na década de 1940. A idéia sobre a qual se cunhou o termo, no entanto, é da autoria de

Frey re. "Democracia racial" seria um sistema de relações interpessoais no seio de uma sociedade apoiado

na ausência de impedimentos psicológicos e legais à formação de uma unidade étnica por meio da

miscigenação, fator central -como v isto - em Casa Grande & Senzala. A mistura de raças e a suposta

ausência de preconceitos raciais (mas não de preconceitos sociais), criadas e reforçadas pela inter-relação

entre casa grande e senzala, teriam sido os elementos fundadores da democracia racial no Brasil. Em lugar

algum do mundo - ou melhor, com povo algum do mundo que não o lusitano - teria surgido um tal padrão

de relacionamentos étnicos e raciais. Em relação a essa característica basicamente portuguesa, Gilberto

Frey re, em conferência pronunciada em Lisboa em 1937 , afirmou que

“há, diante desse problema [...] da mestiçagem [...] uma atitude distintamente, tipicamente,caracteristicamente portuguesa, ou melhor, luso-brasileira, luso-asiática, luso-africana, que nostorna uma unidade psicológica e de cultura fundada sobre um dos acontecimentos, talvez se possadizer, sobre uma das soluções humanas de ordem biológica e ao mesmo tempo social, maissignificativas do nosso tempo: a democracia social através da mistura de raças” (Frey re: 1938, 14).

Frey re posteriormente desenvolveria o conceito de "democracia étnica", que em verdade resume a idéia

de "democracia racial". Vale dizer, no entanto, que o sociólogo pernambucano odesenvolve como

contraponto à propagação das idéias nazi-fascistas; se uma das manifestações do totalitarismo fascista era

o racismo e, no ideário nazista, a defesa da superioridade de raças, seu antídoto era a democracia "social" e

"étnica", que se opunha à democracia meramente política, arremedo de regime democrático e livre. Em

outra conferência, pronunciada no Recife em 1940, Frey re identifica “o imperialismo da democracia sobre

trechos do Brasil ainda indecisos entre essa tradição genuinamente nossa [a "democracia étnica"] e o

racismo v iolentamente anti-brasileiro [sic], o nazi-jesuitismo [sic], o fascismo sob disfarces sedutores,

inclusive o da "hispanidade" (Frey re: 1944, 9).

O conceito de democracia étnica é apenas uma outra forma de expressão da democracia racial. O próprio

Frey re utiliza este último, numa terceira conferência, pronunciada no Rio de Janeiro em 1962, quando se

refere "[à] já brasileiríssima prática da democracia racial através da mestiçagem" (Frey re: 1962, s/p). Seja

como for, percebe-se que é uma idéia calcada na mestiçagem, prática aqui iniciada com a própria chegada

do colonizador e reforçada com o entrelaçamento dos mundos da casa grande e da senzala.

A crítica moderna não poupa ataques ao que chamam de "mito da democracia racial", apontando para a

realidade brasileira, em que negros e brancos não convivem exatamente sob iguais condições de v ida e

oportunidades de ascensão social. Se houve a mestiçagem - e foi ela elemento importante na formação da

identidade nacional -, não parece ter sido ela suficiente para fundar na sociedade brasileira uma

verdadeira democracia de raças e etnias...

Conclusão

Apenas a paixão de Frey re pela descrição e pelo detalhe, colocada a serv iço de uma empresa tão árdua

quanto apresentar um painel da formação da família e da sociedade brasileira, poderia ter rendido uma

obra tão espetacular como Casa Grande & Senzala. Escrita há três quartos de século, sua atualidade é

assombrosa, não apenas porque, como sociedade em constante transformação e ainda jovem - quando

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comparada a culturas e civ ilizações milenares -, o Brasil precisa conhecer-se e reconhecer-se

constantemente, mas, principalmente, porque aborda questões e aspectos de nossa formação ainda não

resolv idos e que, pelo contrário, continuam latentes em nossa trajetória histórica contemporânea. Pode-

se ou não concordar com muitas das idéias defendidas por Frey re, como a "democracia étnica" ou "racial",

o sucesso da colonização portuguesa, a civ ilização dos trópicos, a quase justificativa da escrav idão, cujo

trecho significativo merece transcrição, e cujo determinismo chama a atenção, em um autor que se

contrapunha a essas idéias que, no esteio do pseudo-darwinismo e do naturalismo, estavam em voga à

época:

"No caso brasileiro, porém, parece-nos injusto acusar o govenro português de ter manchado, com ainstituição que hoje tanto nos repugna, sua obra grandiosa de colonização. O meio e ascircunstâncias exigiriam o escravo... Para alguns publicistas foi um erro enorme [a escrav idão]. Masnenhum nos disse até hoje que outro método de suprir as necessidades do trabalho poderia teradotado o colonizador português no Brasil... Tenhamos a honestidade de reconhecer que só acolonização latifundiária e escravocrata teria sido capaz de resistir aos obstáculos enormes que selevantaram à civ ilização no Brasil pelo europeu. Só a casa grande e a senzala. O senhor de engenhorico e o negro capaz de esforço agrícola e a ele obrigado pelo regime de trabalho escravo".

O fato, porém, é que Casa Grande & Senzala é referencial obrigatório para se conhecer o Brasil e a formação

de sua sociedade. O país que temos hoje é conseqüência direta da existência necessariamente conjunta

desses dois mundos, a casa grande e senzala. Para o bem e para o mal - cabe a cada um reflitir - somos

herdeiros do Brasil patriarcal e escravocrata vasculhado e desvendado por Frey re. Se o clássico é aquela

obra que continua referenciando o presente mesmo tempos e tempos depois de haver sido produzida,

Casa Grande & Senzala é, sem dúvida, um dos maiores clássicos da literatura brasileira de todos as épocas.

N .A .: Os conceitos de “raça”, “etnia”, “negro”, “branco”, “mu lato”, “mamelu co” e ou tros termos correlacionados são u sados, neste

artigo, sem qu alqu er ju ízo de valor e/ou pretensão cientí fica. Sabe-se qu e, na atu al idade, a antropologia, a biologia e a sociologia

qu estionam a u ti l idade desses conceitos como categorias descri tivas e anal í ticas das sociedades hu manas e dos indivídu os.

N .A . 2: Casa Grande & Senzala conta com dezenas de edições lançadas ao longo dessas qu ase oito décadas, e mais de u ma foi u ti l izada

para colher as ci tações aqu i reprodu zidas, razão pela qu al optou -se por não colocar o nú mero da página em qu e estão.

Outras obras de Fre yre consultadas:

Freyre, Gi lberto (1938). Conferências na Eu ropa. Rio de Janeiro, Ministério da Edu cação e Saú de.

___________ (1944). “Um engano de José Lins do Rego”. O Jornal , Rio de Janeiro, 25 de janeiro de 1944.

___________ (1962). O Brasi l em face das Á fricas negras e mestiças. Rio de Janeiro, Federação das A ssociações Portu gu esas.

Outras fonte s:

Bresser-Pereira, Lu is Carlos (2000). Relendo Casa Grande e Senzala. Paper on-l ine disponível

em http://www.bresserpereira.org.br/view.asp?cod=548.

Gu imarães, A ntonio Sérgio A l fredo (2001). Democracia Racial . São Pau lo, Universidade de São Pau lo, Facu ldade de Fi losofia, Letras e

Ciências Hu manas. Disponível em http://www.fflch .u sp.br/sociologia/asag/Democracia%20racial .pdf