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2/2/2014 Diálogo Diplomático: SÉRIE DE RESENHAS E FICHAMENTOS PARA O CACD - 3) CASA GRANDE & SENZALA
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SÉRIE DE RESENHAS E FICHAMENTOS PARA O CACD - 3) CASA GRANDE &
SENZALA
Introdução
Casa Grande & Senzala é talvez o mais vasto painel da nacionalidade brasileira que já se produziu. Obra
ambiciosa, empreende de forma notável a interpretação da sociedade brasileira, a explicação de como o
colonizador português, vencendo todos os obstáculos que o clima, a natureza, a escassez de trabalho lhe
impunham, fundou aqui uma sociedade moderna, "a maior civ ilização dos trópicos".
Grandiosa não apenas pelo tamanho, mas, principalmente, pelo conteúdo, que desce a um nível de
descrição e detalhismo impressionante, Casa Grande & Senzala foi, em vários aspectos, uma obra seminal.
Clássico da sociologia e do ensaísmo brasileiro, a obra até hoje continua despertando debates. Para
muitos, a maior interpretação da sociedade brasileira de todos os tempos, ícone da nacionalidade
brasileira. Para outros tantos, uma peça extremamente bem-construída do conservadorismo das elites
que construíram o País e que, enfim, por meio da obra, legitimaram, no mais puro estilo maquiavélico, os
meios de que lançaram mão na construção de sua obra civ ilizatória.
O autor
Fato é que nenhuma obra pode ser considerada de forma isolada em relação a seu autor. E Gilberto Frey re,
tal como sua obra-prima, foi um homem multifacetado, e, por que não dizê-lo, ambíguo. Filho da
aristocracia decadente de Pernambuco, Frey re nasceu no Recife em 1900, época em que já as usinas
avançavam em detrimento dos engenhos, processo de corrosão do antigo poder do senhor de engenho
brilhantemente descrito e analisado nos romances de José Lins do Rego. No final dos anos 1910, Frey re
deixa o Brasil e se muda para os Estados Unidos, onde cursaria universidades no Texas e em Nova Y ork.
Foi nos Estados Unidos que iniciou sua v ida intelectual e acadêmica e que conheceu as obras e os autores
que o influenciariam por toda a v ida - com destaque para aquele que ele mesmo chamou certa vez de
mestre, o antropólogo Franz Boas.
Foi com Boas que Frey re disse haver aprendido a distinção que seria fundamental para a compreensão da
sociologia frey riana: a distinção entre raça e cultura. Numa época em que o racismo, apoiado nas idéias
naturalistas, ganhava força no mundo todo e se imiscuía com a política, na prática e na ideologia do
imperialismo tanto quanto no florescimento das idéias (proto)fascistas, a dualidade raça-cultura era quase
uma "heresia" acadêmica. E seria a esta "heresia" que Frey re se apegaria em sua empresa mais grandiosa: o
entendimento do Brasil. Conservador pela origem aristocrática, mas liberal pela filiação acadêmica: eis
apenas uma das muitas contradições que marcam autor e obra, Frey re e Casa Grande & Senzala.
O contexto intelectual
Publicada em dezembro de 1933 no Rio de Janeiro, Casa Grande & Senzala foi um dos três grandes ensaios
que se publicaram sobre o Brasil em menos de uma década, ao lado de "Raízes do Brasil", de Sérgio Buarque
de Holanda (1936), e de "Formação do Brasil Contemporâneo", de Caio Prado Jr. (1942). A grande "tríade"
da interpretação do País é marcada, no entanto, por perspectivas, v isões e métodos próprios. Caio Prado
adota uma abordagem histórico-economicista e procura explicar a formação da sociedade brasileira como
etapa e conseqüência do processo de acumulação de capital em nível global. Sérgio Buarque prefere uma
interpretação sociológica, com base em uma análise das diferentes formas pelas quais se deram as
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empresas colonizadoras de Portugal e Espanha no Novo Mundo e as marcas que deixaram nas
nacionalidades que delas se originaram. Gilberto Frey re flutua entre a sociologia e a antropologia, com
preferência sensível por esta última. Para ele, a interpretação de uma sociedade exige a intepretação de
seus componentes - os indiv íduos -, no nível de seus comportamentos, seus valores, seus costumes, suas
relações (íntimas, inclusive - se não principalmente), suas crenças, sua educação, sua v ida familiar, seu
lazer - em outras palavras, sua cultura.
Confrontando as idéias naturalistas, que atribuíam ao clima e às raças que se instalaram nos trópicos as
mazelas de que sofria o País, Frey re posiciona-se pela cultura como elemento fundamental de
interpretação da construção de uma sociedade, acima até mesmo da economia e da política ("não nos
interessa [...] senão secundariamente, neste ensaio, o aspecto político ou econômico da colonização
portuguesa do Brasil"). Neste sentido, Frey re era um inovador, na medida em que, de forma corajosa,
rompia com uma tradição intelecutal herdada da antropologia européia, que estancava as raças como
superiores e inferiores e, eivada do naturalismo e de um tipo de darwinismo deturpado, atribuía ao
"determinismo do meio" a função explicativa para os fenômenos sociais - inclusive o 'sucesso' e o 'fracasso'
de civ ilizações, povos e nações.
A dialética frey riana
A exploração de antagonismos é o método de que Frey re lança mão na construção da temática de Casa
Grande & Senzala - o próprio título da obra revela o antagonismo fundamental. Pouco afeito ao rigor
teórico e ao cientificismo, Frey re prefere o método ensaístico, quase literário, numa obra rica em
passagens que bem poderiam ter sido extraídas de um romance. Dando rigor à fluidez de sua obra, no
entanto, está o método dialético, que salta aos olhos de forma espontânea, sem que seja necessária uma
análise mais aprofundada. O próprio autor a revela: a formação da sociedade brasileira é
"um processo de equilíbrio de antagonismos. Antagonismos de economia e de cultura. A culturaeuropéia e a indígena. A européia e a africana. A africana e a indígena. A economia agrária e apastoril. A agrária e a mineira. O católico e o herege. O jesuíta e o fazendeiro. O bandeirante e osenhor de engenho. O paulista e o emboaba. O pernambucano e o mascate. O grande proprietário e opária. O bacharel e o analfabeto. Mas predominante sobre todos os antagonismos, o mais geral e omais profundo: o senhor e o escravo".
Talvez não seja exagero detectar aí a influência da dialética hegeliana, cujo exemplo mais citado - pelo
próprio Hegel, aliás - é a dialética do senhor e do escravo. A dialética não é apenas a confrontação de
opostos, de antagonismos; é, antes, uma relação pela qual cada oposto se vê reforçado em sua natureza e
essência pelo outro; é pela relação com o outro que eu me descubro a mim mesmo, tal como sou. O senhor
é senhor apenas porque existe um escravo - sem o escravo, não existe senhor, e v ice-versa. O interessante
da dialética hegeliana é que não apenas a essência se vê reafirmada pelo oposto, mas também se vê, ela
própria, negada. Assim, por exemplo, segundo Hegel, o senhor, ao precisar do escravo para reafirmar seu
status de senhor, torna-se dependente do escravo, até o limite em que, pelo menos no plano ideal, torna-
se escravo de seu escravo - e o escravo, senhor de seu senhor. Uma leitura de Frey re, no entanto, revela
que essa segunda dimensão da dialética hegeliana está ausente. Na obra frey riana, assim como na história
da formação da sociedade brasileira, os papéis de dominadores e dominados estiveram sempre
claramente delimitados.
Mas se a sociedade brasileira formou-se por e com antagonismos, não teriam esses antagonismos levado
ao conflito inev itável entre opostos? Frey re mesmo responde: "entre tantos antagonismos, [têm-se]
condições de confraternização e mobilidade sociais peculiares ao Brasil: a miscigenação".
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As três raças
O núcleo de Casa Grande & Senzala é a descrição e a análise minuciosas que Frey re faz sobre a participação
do branco português, do negro escravo e do indígena ameríndio na formação da sociedade brasileira. Para
Frey re, a miscigenação é o fator essencial para explicar-se o sucesso do colonizador português em sua
empresa nos trópicos e a conseqüente construção da civ ilização brasileira. Rüdiger Bilden, em comentário
sobre a obra de Frey re, afirma que o tripé fundamental da colonização do Brasil pelos portugueses foi a
união entre latifúndio, escrav idão e miscigenação.
A flexibilidade e a adaptabilidade da nação portuguesa foram os fatores básicos que permitiram ao
colonizador "triunfar onde outros europeus falharam". Chegados ao Brasil e cientes de que, nos trópicos, a
colonização exigiria a exploração da terra - diferentemente da colonização por feitorias nas Índias -, os
primeiros colonizadores sofreram de uma carência que poderia provar-se fatal para o sucesso da empresa
colonial: a ausência de mulheres. Afeitos ao contato com outros povos e a sua influência - árabes,
africanos, europeus de origem latina ou céltica, judeus da diáspora -, os portugueses teriam desenvolv ido,
segundo Frey re, a quase ausência do preconceito de raça. Este foi o fator fundamental que lhes facilitaram
tomar para si as mulheres indígenas com a finalidade de procriar e gerar a prole que se incumbiria de
povoar, explorar, defender e expandir a terra. Foi sobre a cunhã, oferecida ao português "de pernas
abertas", que o colonizador exerceu sua primeira e fundamental relação de dominação - fundamental
porque seria a mulher indígena a base da família brasileira, e o mestiço (mameluco), o agente por
excelência da colonização.
À mulher indígena coube estruturar a família brasileira, pelo menos nas primeiras décadas da colonização.
Seu papel, obv iamente, não se resumiu à reprodução. Responsável pela educação de sucessivas gerações
de brasileiros, a mulher indígena, segundo Frey re, impregnou suas marcas nas relações familiares, nos
hábitos, nos costumes, na alimentação, nas brincadeiras infantis, na língua - em v irtualmente toda
dimensão da v ida indiv idual e familiar da sociedade brasileira. O homem indígena, por sua vez, foi
prontamente aliciado ou forçado ao trabalho. O ameríndio, no entanto, pouco acostumado ao trabalho
sedentário da lavoura - o índio dedicava-se à caça e ao trabalho manual artesanal, mas não à agricultura, à
exceção de formas muito rudimentares de cultivo - logo foi considerado como "preguiçoso" e "indolente",
v isão que tanto Frey re quanto Caio Prado derrubam, ao argumentar que o índio apenas não estava
acostumado ao trabalho sistemático da lavoura - preferia a liberdade da caça, da navegação, do nado, da
manufatura. Seu papel na colonização foi, não obstante, crucial:
"índios e mamelucos formaram uma muralha movediça, v iva, que foi alargando em sentidoocidental as fronteiras coloniais do Brasil, ao mesmo tempo que defenderam, na região açucareira,os estabelecimentos agrários dos ataques de piratas estrangeiros".
No processo de colonização dos trópicos, se a cabeça foram os portugueses e os pés, os índios e mestiços,
os braços foram, sem sombra de dúvida, os negros escravos. Vários foram os fatores que levaram o
colonizador a optar pelo braço escravo africano: a falta de aptidão do indígena é um deles, mas talvez não
o mais importante. Caio Prado afirma que os portugueses não apenas estavam afeitos à escrav idão no
norte da África (onde marcavam presença desde pelo menos a navegação a Ceuta, em 1415), como
também tinham a oportunidade de transformá-la numa lucrativa ativ idade mercantil. Na lógica do
mercantilismo imperialista, o tráfico de seres humanos se transformaria numa das ativ idades que
sustentariam a colonização do País. Em mais de três séculos (1526 - 1850), mais de 4 milhões de negros
aportaram na terra brasilis e aqui foram dizimados sob o fogo da fornalha, o açoite do capataz, o tronco do
pelourinho - e, no caso das mulheres escravas, sob a luxúria dos senhores e a crueldade das sinhás.
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Desnecessário dissertar sobre o papel do homem escravo na colonização do Brasil. Foi ele a força motriz
que movimentou a economia açucareira e cafeeira responsável pela sustentação do projeto colonial. Nem
é esse, tampouco, o objetivo de Frey re, uma vez que, como salientado, o autor está preocupado com os
aspectos antropológicos e sociológicos da formação da sociedade brasileira, e não com os aspectos
econômicos. Para compreender aqueles, importa mais considerar o papel da mulher.
A mulher escrava é uma das personagens principais da formação da família e da sociedade brasileiras.
Substituindo à mulher indígena, ela passou a ser o objeto de dominação sexual do senhor, que não a
exercia mais com o intuito fundamental de reproduzir-se, mas, sim, para a satisfação de sua luxúria. É
fundamental compreender que, para Frey re, o papel sexual da escrava foi tão importante quanto o papel
laboral do escravo. A miscigenação continua central - mas, para além dela, é necessário considerar a outra
função que a escrava acabou por desempenhar na colônia brasileira, essencial para se entender a
abordagem de Frey re em relação à escrav idão: a mulher escrava foi o elo, a ponte entre os dois mundos
dialeticamente relacionados da casa grande e da senzala.
"Intoxicação sexual"
Se para Frey re a miscigenação é o elemento central da formação da sociedade brasileira, é natural que a
análise e a minuciosa descrição das relações sexuais ocupe um lugar de destaque em Casa Grande &
Senzala. Para Frey re, "o ambiente em que começou a formação brasileira foi de grande intoxicação
sexual". Se à mulher indígena coube a primazia na formação da família brasileira e da base humana que
ajudaria a colonizar os trópicos, foi a mulher escrava negra que por três séculos se renderia ao poder e à
luxúria dos senhores.
Atribuíam-se ao clima quente a licenciosidade, a depravação e a subordinação que marcaram a v ida
sexual da família patriarcal colonial - no melhor estilo do dito "não há pecado abaixo do Equador". Numa
sociedade fortemente conservadora e pia, em que as mulheres brancas resguardavam suas "v irtudes", era
com negras e mulatas que os senhores satisfaziam seus desejos e impulsos. Nas palavras de Frey re, "a
v irtude da senhora branca apóia-se em grande parte na prostituição da escrava negra". Escolhida dentre as
mais jovens, belas e fortes, as negras que serv iam na casa grande - as mucamas - foram o elo entre o
mundo do senhor e o do escravo, o vetor com o qual penetraram no seio do patriarcado aristocrático
brasileiro os "modos", os "valores", o "molejo", a "doçura", a "fala", o "talento", o "banzo" dos escravos. A
mucama, a ama de leite, a quituteira, a amante foram as mulheres que fecundaram, geraram e criaram a
família brasileira. Brancos e brancas, sinhôs e iaiás tinham com a mulher negra momentos fundamentais
de sua formação: a amamentação, a alimentação, o cuidado materno que muitas vezes era substituído pelo
carinho da ama, as brincadeiras, a iniciação sexual, a v ida sexual não-conjugal, as confidências, as
amizades, as aventuras.
A presença do negro no interior da casa grande ensejou um ambiente que, para Frey re, teria adocicado e
abrandado a crueldade inerente ao sistema escravocrata. Esse é, a bem da verdade, um dos pontos mais
polêmicos da obra do sociólogo.
A presença das mulatas e dos "moleques" na casa grande teria sido fator decisivo, na v isão de Frey re, para
o abrandamento da relação de posse que caracterizava a relação entre senhor e escravo. Diferente do que
ocorrera em outras áreas de escrav idão, especialmente no sul dos Estados Unidos – que Frey re, aliás,
toma como referencial para comparação em várias passagens da obra –, aqui à escrav idão teria sido
acrescentado um elemento de "doçura", de "proximidade", de "amolecimento" da relação senhor e escravo
- cujo fundamento indiscutível é a v iolência. O senhor teria acolhido o negro no seio de sua família, e a
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proximidade desses dois mundos antagônicos da casa grande e da senzala, aliada à quase ausência de
preconceito de cor na natureza do colonizador, foi o fundamento daquilo que muitos analistas da obra de
Frey re identificaram como a “democracia racial”.
Não há passagem no livro que mencione o termo "democracia racial". De fato, essa foi uma construção que
surge apenas na década de 1940. A idéia sobre a qual se cunhou o termo, no entanto, é da autoria de
Frey re. "Democracia racial" seria um sistema de relações interpessoais no seio de uma sociedade apoiado
na ausência de impedimentos psicológicos e legais à formação de uma unidade étnica por meio da
miscigenação, fator central -como v isto - em Casa Grande & Senzala. A mistura de raças e a suposta
ausência de preconceitos raciais (mas não de preconceitos sociais), criadas e reforçadas pela inter-relação
entre casa grande e senzala, teriam sido os elementos fundadores da democracia racial no Brasil. Em lugar
algum do mundo - ou melhor, com povo algum do mundo que não o lusitano - teria surgido um tal padrão
de relacionamentos étnicos e raciais. Em relação a essa característica basicamente portuguesa, Gilberto
Frey re, em conferência pronunciada em Lisboa em 1937 , afirmou que
“há, diante desse problema [...] da mestiçagem [...] uma atitude distintamente, tipicamente,caracteristicamente portuguesa, ou melhor, luso-brasileira, luso-asiática, luso-africana, que nostorna uma unidade psicológica e de cultura fundada sobre um dos acontecimentos, talvez se possadizer, sobre uma das soluções humanas de ordem biológica e ao mesmo tempo social, maissignificativas do nosso tempo: a democracia social através da mistura de raças” (Frey re: 1938, 14).
Frey re posteriormente desenvolveria o conceito de "democracia étnica", que em verdade resume a idéia
de "democracia racial". Vale dizer, no entanto, que o sociólogo pernambucano odesenvolve como
contraponto à propagação das idéias nazi-fascistas; se uma das manifestações do totalitarismo fascista era
o racismo e, no ideário nazista, a defesa da superioridade de raças, seu antídoto era a democracia "social" e
"étnica", que se opunha à democracia meramente política, arremedo de regime democrático e livre. Em
outra conferência, pronunciada no Recife em 1940, Frey re identifica “o imperialismo da democracia sobre
trechos do Brasil ainda indecisos entre essa tradição genuinamente nossa [a "democracia étnica"] e o
racismo v iolentamente anti-brasileiro [sic], o nazi-jesuitismo [sic], o fascismo sob disfarces sedutores,
inclusive o da "hispanidade" (Frey re: 1944, 9).
O conceito de democracia étnica é apenas uma outra forma de expressão da democracia racial. O próprio
Frey re utiliza este último, numa terceira conferência, pronunciada no Rio de Janeiro em 1962, quando se
refere "[à] já brasileiríssima prática da democracia racial através da mestiçagem" (Frey re: 1962, s/p). Seja
como for, percebe-se que é uma idéia calcada na mestiçagem, prática aqui iniciada com a própria chegada
do colonizador e reforçada com o entrelaçamento dos mundos da casa grande e da senzala.
A crítica moderna não poupa ataques ao que chamam de "mito da democracia racial", apontando para a
realidade brasileira, em que negros e brancos não convivem exatamente sob iguais condições de v ida e
oportunidades de ascensão social. Se houve a mestiçagem - e foi ela elemento importante na formação da
identidade nacional -, não parece ter sido ela suficiente para fundar na sociedade brasileira uma
verdadeira democracia de raças e etnias...
Conclusão
Apenas a paixão de Frey re pela descrição e pelo detalhe, colocada a serv iço de uma empresa tão árdua
quanto apresentar um painel da formação da família e da sociedade brasileira, poderia ter rendido uma
obra tão espetacular como Casa Grande & Senzala. Escrita há três quartos de século, sua atualidade é
assombrosa, não apenas porque, como sociedade em constante transformação e ainda jovem - quando
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comparada a culturas e civ ilizações milenares -, o Brasil precisa conhecer-se e reconhecer-se
constantemente, mas, principalmente, porque aborda questões e aspectos de nossa formação ainda não
resolv idos e que, pelo contrário, continuam latentes em nossa trajetória histórica contemporânea. Pode-
se ou não concordar com muitas das idéias defendidas por Frey re, como a "democracia étnica" ou "racial",
o sucesso da colonização portuguesa, a civ ilização dos trópicos, a quase justificativa da escrav idão, cujo
trecho significativo merece transcrição, e cujo determinismo chama a atenção, em um autor que se
contrapunha a essas idéias que, no esteio do pseudo-darwinismo e do naturalismo, estavam em voga à
época:
"No caso brasileiro, porém, parece-nos injusto acusar o govenro português de ter manchado, com ainstituição que hoje tanto nos repugna, sua obra grandiosa de colonização. O meio e ascircunstâncias exigiriam o escravo... Para alguns publicistas foi um erro enorme [a escrav idão]. Masnenhum nos disse até hoje que outro método de suprir as necessidades do trabalho poderia teradotado o colonizador português no Brasil... Tenhamos a honestidade de reconhecer que só acolonização latifundiária e escravocrata teria sido capaz de resistir aos obstáculos enormes que selevantaram à civ ilização no Brasil pelo europeu. Só a casa grande e a senzala. O senhor de engenhorico e o negro capaz de esforço agrícola e a ele obrigado pelo regime de trabalho escravo".
O fato, porém, é que Casa Grande & Senzala é referencial obrigatório para se conhecer o Brasil e a formação
de sua sociedade. O país que temos hoje é conseqüência direta da existência necessariamente conjunta
desses dois mundos, a casa grande e senzala. Para o bem e para o mal - cabe a cada um reflitir - somos
herdeiros do Brasil patriarcal e escravocrata vasculhado e desvendado por Frey re. Se o clássico é aquela
obra que continua referenciando o presente mesmo tempos e tempos depois de haver sido produzida,
Casa Grande & Senzala é, sem dúvida, um dos maiores clássicos da literatura brasileira de todos as épocas.
N .A .: Os conceitos de “raça”, “etnia”, “negro”, “branco”, “mu lato”, “mamelu co” e ou tros termos correlacionados são u sados, neste
artigo, sem qu alqu er ju ízo de valor e/ou pretensão cientí fica. Sabe-se qu e, na atu al idade, a antropologia, a biologia e a sociologia
qu estionam a u ti l idade desses conceitos como categorias descri tivas e anal í ticas das sociedades hu manas e dos indivídu os.
N .A . 2: Casa Grande & Senzala conta com dezenas de edições lançadas ao longo dessas qu ase oito décadas, e mais de u ma foi u ti l izada
para colher as ci tações aqu i reprodu zidas, razão pela qu al optou -se por não colocar o nú mero da página em qu e estão.
Outras obras de Fre yre consultadas:
Freyre, Gi lberto (1938). Conferências na Eu ropa. Rio de Janeiro, Ministério da Edu cação e Saú de.
___________ (1944). “Um engano de José Lins do Rego”. O Jornal , Rio de Janeiro, 25 de janeiro de 1944.
___________ (1962). O Brasi l em face das Á fricas negras e mestiças. Rio de Janeiro, Federação das A ssociações Portu gu esas.
Outras fonte s:
Bresser-Pereira, Lu is Carlos (2000). Relendo Casa Grande e Senzala. Paper on-l ine disponível
em http://www.bresserpereira.org.br/view.asp?cod=548.
Gu imarães, A ntonio Sérgio A l fredo (2001). Democracia Racial . São Pau lo, Universidade de São Pau lo, Facu ldade de Fi losofia, Letras e
Ciências Hu manas. Disponível em http://www.fflch .u sp.br/sociologia/asag/Democracia%20racial .pdf