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Revista Brasileira de Ensino de F´ ısica, vol. 38, nº 2, e2502 (2016) www.scielo.br/rbef DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S1806-11173822122 Desenvolvimento em Ensino de F´ ısica cbnd Licenc ¸a Creative Commons Dificuldades conceituais e matem´ aticas apresentadas por alunos de f´ ısica dos per´ ıodos finais Conceptual and mathematical difficulties presented by Physics students at the final semesters of the course Tiago Dest´ effani Admiral * Instituto Federal de Educa¸c˜ ao, Ciˆ encia e Tecnologia Fluminense, Campos dos Goytacazes, RJ Brasil Recebido em 2 de setembro de 2015. Aceito em 30 de setembro de 2015 Este artigo descreve uma pesquisa realizada com estudantes de licenciatura em f´ ısica de duas institui¸ oes ublicas distintas. O grupo de 23 estudantes observados foi exclusivamente composto de alunos de sexto, etimo e oitavo per´ ıodos. A pesquisa buscou identificar poss´ ıveis problemas conceituais dos alunos, suas habilidades para identificar o grau de dificuldade do problema e tamb´ em averiguou secundariamente at´ e que ponto os licenciandos dominam o c´ alculo como ferramenta para solu¸ ao de problemas. Foi apresentado aos alunos um problema retirado de uma prova de vestibular de uma universidade federal. Essa quest˜ ao, devido a um erro na elabora¸c˜ao, n˜ao tem como ser resolvida apenas com ferramentas matem´aticas de Ensino edio. Os alunos ainda responderam a um question´ ario semiestruturado que refletia suas percep¸ oes sobre o problema. Com base na an´alise de conte´ udo do material escrito, obtido por meio da coleta de dados, percebemos que apenas dois estudantes obtiveram ˆ exito na tarefa que lhes foi concedida, sendo que mais da metade deles falharam ao interpretarem conceitualmente o problema. Palavras-chave: ensino de f´ ısica, ensino de matem´ atica, problemas conceituais. This article describes a research with physics undergraduate students in two distinct public institutions. The group of 23 observed students was composed exclusively of students from sixth, seventh and eighth period. The research sought to identify possible conceptual problems of the students, their abilities to identify the level of difficulty of the problem; also, it was examined the extent that undergraduates dominate mathematical calculus as a tool for troubleshooting. It was presented to the students a problem taken from a federal university college entrance test. Due to an error in the preparation, this problem can only be solved with higher education mathematical tools. Students also answered a semi-structured questionnaire that identified their perceptions about the problem. Based on the analysis of the written collected material, we see that only two students were successful in the task, and more than half of them failed to interpret the problem conceptually. Keywords: Physics education, Mathematics education, conceptual problems. 1. Introdu¸ ao A resolu¸ ao de um problema de f´ ısica pode envolver a mobiliza¸c˜ao simultˆanea de conceitos cient´ ıficos, leis, rela¸c˜oes entre grandezas distintas e ferramen- tasmatem´aticas.Essacombina¸c˜aodehabilidades demanda uma integra¸ ao de conhecimentos diferen- tes, tarefa que, por vezes, pode ser a respons´avel pelo insucesso na tentativa de o aluno resolver um problema. * Endere¸ co de correspondˆ encia: tdesteff[email protected]. As ferramentas matem´aticas utilizadas na re- solu¸c˜ao s˜ao os elementos que nos permitem clas- sificar uma quest˜ao de f´ ısica como adequada para avaliar um aluno de Ensino M´ edio ou superior. Em linhas gerais, grande parte dos conceitos de f´ ısica apresentados aos alunos de Ensino M´ edio s˜ ao os mes- mos utilizados por alunos de gradua¸ ao na resolu¸ ao de problemas de f´ ısica b´ asica. A principal diferen¸ ca est´a no fato de que aos alunos de ensino superior s˜aoapresentadoscasosmaispr´oximosdesitua¸c˜oes reais, e defini¸c˜oes matematicamente mais precisas. Copyright by Sociedade Brasileira de F´ ısica. Printed in Brazil.

Dificuldades conceituais e matem´aticas apresentadas por … · 2016-07-11 · matem´aticas necess´arias para a sua solu¸c˜ao e veri-ficou se a manipula¸c˜ao do ferramental

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Revista Brasileira de Ensino de Fısica, vol. 38, nº 2, e2502 (2016)www.scielo.br/rbefDOI: http://dx.doi.org/10.1590/S1806-11173822122

Desenvolvimento em Ensino de Fısicacbnd

Licenca Creative Commons

Dificuldades conceituais e matematicas apresentadaspor alunos de fısica dos perıodos finais

Conceptual and mathematical difficulties presented by Physics students at the final semestersof the course

Tiago Desteffani Admiral∗

Instituto Federal de Educacao, Ciencia e Tecnologia Fluminense, Campos dos Goytacazes, RJ Brasil

Recebido em 2 de setembro de 2015. Aceito em 30 de setembro de 2015

Este artigo descreve uma pesquisa realizada com estudantes de licenciatura em fısica de duas instituicoespublicas distintas. O grupo de 23 estudantes observados foi exclusivamente composto de alunos de sexto,setimo e oitavo perıodos. A pesquisa buscou identificar possıveis problemas conceituais dos alunos, suashabilidades para identificar o grau de dificuldade do problema e tambem averiguou secundariamente ate queponto os licenciandos dominam o calculo como ferramenta para solucao de problemas. Foi apresentado aosalunos um problema retirado de uma prova de vestibular de uma universidade federal. Essa questao, devidoa um erro na elaboracao, nao tem como ser resolvida apenas com ferramentas matematicas de EnsinoMedio. Os alunos ainda responderam a um questionario semiestruturado que refletia suas percepcoes sobreo problema. Com base na analise de conteudo do material escrito, obtido por meio da coleta de dados,percebemos que apenas dois estudantes obtiveram exito na tarefa que lhes foi concedida, sendo que maisda metade deles falharam ao interpretarem conceitualmente o problema.Palavras-chave: ensino de fısica, ensino de matematica, problemas conceituais.

This article describes a research with physics undergraduate students in two distinct public institutions.The group of 23 observed students was composed exclusively of students from sixth, seventh and eighthperiod. The research sought to identify possible conceptual problems of the students, their abilities toidentify the level of difficulty of the problem; also, it was examined the extent that undergraduates dominatemathematical calculus as a tool for troubleshooting. It was presented to the students a problem taken froma federal university college entrance test. Due to an error in the preparation, this problem can only besolved with higher education mathematical tools. Students also answered a semi-structured questionnairethat identified their perceptions about the problem. Based on the analysis of the written collected material,we see that only two students were successful in the task, and more than half of them failed to interpretthe problem conceptually.Keywords: Physics education, Mathematics education, conceptual problems.

1. Introducao

A resolucao de um problema de fısica pode envolvera mobilizacao simultanea de conceitos cientıficos,leis, relacoes entre grandezas distintas e ferramen-tas matematicas. Essa combinacao de habilidadesdemanda uma integracao de conhecimentos diferen-tes, tarefa que, por vezes, pode ser a responsavelpelo insucesso na tentativa de o aluno resolver umproblema.

∗Endereco de correspondencia: [email protected].

As ferramentas matematicas utilizadas na re-solucao sao os elementos que nos permitem clas-sificar uma questao de fısica como adequada paraavaliar um aluno de Ensino Medio ou superior. Emlinhas gerais, grande parte dos conceitos de fısicaapresentados aos alunos de Ensino Medio sao os mes-mos utilizados por alunos de graduacao na resolucaode problemas de fısica basica. A principal diferencaesta no fato de que aos alunos de ensino superiorsao apresentados casos mais proximos de situacoesreais, e definicoes matematicamente mais precisas.

Copyright by Sociedade Brasileira de Fısica. Printed in Brazil.

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e2502-2 Dificuldades conceituais e matematicas apresentadas por alunos de fısica dos perıodos finais

Entretanto, de acordo com Barbeta e Yamamoto [1],as dificuldades enfrentadas pelos alunos no estudode fısica sao, muitas vezes, erroneamente atribuıdasa deficiencia dos alunos em manipular o ferramentalmatematico. Os autores aplicaram um teste adap-tado de outro, conhecido como Mechanics BaselineTest, e identificaram que grande parte dos alunosdo grupo estudado demonstrou conhecimentos desenso comum em relacao a alguns conceitos fısicos.

Para alguns autores [1, 2], os problemas de or-dem conceitual, apresentados pelos alunos no ensinosuperior, sao determinantes para o insucesso na ten-tativa de resolver problemas. Alem disso, os autoresdefendem que a fısica e a matematica estao pro-fundamente relacionadas, e que os conhecimentosmatematicos tem influencia na compreensao dosconceitos fısicos. Uma vez que grande parte dos con-ceitos fısicos e baseada em modelos matematicos, odialogo entre as duas areas tende a produzir efeitospositivos no ensino de fısica. E essencial para umaluno do curso de licenciatura em fısica, na qualidadede futuro professor, identificar as condicoes e su-posicoes conceituais que estao implıcitas na situacao-problema de uma questao e, com base nessa analise,selecionar as ferramentas necessarias a solucao doproblema.

Mesmo que um aluno tenha determinado correta-mente a forma de resolver um problema, ele aindaprecisa dominar as ferramentas necessarias para re-solve-lo. Na falta de um dos requisitos, o problemanao sera resolvido. De acordo com Pietrocola [2], arelacao entre o conhecimento matematico e fısicovai muito alem de uma mera dependencia mecanica,conhecimento matematico possui tambem o papelde aperfeicoar a compreensao de modelos e conceitosfısicos de forma dialetica.

Esta pesquisa buscou determinar ate que pontoo grupo de licenciandos observados foi capaz deidentificar a real complexidade de um problemaapresentado mediante a interpretacao fısica ade-quada a situacao. Como objetivo complementar, apesquisa mostrou que a maioria dos alunos nao foicapaz de identificar corretamente as ferramentasmatematicas necessarias para a sua solucao e veri-ficou se a manipulacao do ferramental matematicofoi bem-sucedida.

2. Analise da questao proposta

Foi proposta aos alunos uma questao de fısica, cujaorigem nao foi identificada. A pesquisa analisou

inclusive a opiniao dos alunos em relacao a classi-ficacao da questao de Ensino Medio ou superior. Aquestao fez parte de um vestibular de uma universi-dade federal.

O objetivo do artigo nao e tecer crıticas a ins-tituicao e/ou entidade elaboradora de itens, porisso nao sera mencionada aqui a origem da questao.A pressao para que a elaboracao de uma questaode vestibular seja inedita, desafiadora, coerente,realıstica e contextualizada para nıvel medio naoe uma exigencia nada trivial e, por vezes, inviavel,dependendo do conteudo abordado, dadas principal-mente as limitacoes das ferramentas matematicasapresentadas pelos alunos.

Mais adiante e apresentada a questao tal como foiutilizada originalmente como questao de vestibulare, em seguida, a solucao proposta por nos, de acordocom a situacao descrita.

1 – Observe esta figura:

Nessa figura, duas barras metalicas fixas e separa-das por uma distancia d igual a 20 cm formam umplano, cuja inclinacao em relacao ao plano horizon-tal e igual θ = 30°. No espaco, tem-se um campomagnetico uniforme (B) igual a 1,5 T, perpendi-cular ao plano inclinado e entrando nele, conformedemonstrado na figura. As duas barras sao ligadaspor um resistor com resistencia R igual a 2 Ω. Ou-tra barra metalica, de massa m = 100 g, desloca-sesobre as barras fixas, a partir do repouso e dos ex-tremos superiores das barras inclinadas e tambemsem atrito. Suponha que as resistencias das barrassejam desprezıveis e a aceleracao da gravidade nolocal seja igual a 10 m/s2. Assinale a alternativa quecontem o valor correto do instante em que a barraem movimento atinge a velocidade terminal.

A) 5,00 segundos.B) 1,00 segundo.C) 4,00 segundos.

Revista Brasileira de Ensino de Fısica, vol. 38, nº 2, e2502, 2016 DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S1806-11173822122

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D) 2,22 segundos.Solucao: inicialmente a barra se encontra em re-

pouso em relacao ao solo e, abandonada a partirdessa condicao, e acelerada sob a influencia da gravi-dade. Considerando a perspectiva de um observadorque esta posicionado na parte superior do planoformado pelos trilhos, e, paralelamente as linhas decampo, podemos representar as forcas que atuamsobre a barra pela Fig. 1.

Conforme a barra desliza sobre os trilhos, o fluxomagnetico, no circuito formado pelos trilhos, barrae resistor, aumentara gradativamente. Tambem au-mentara a forca magnetica que atua sobre a barraque, por sua vez, e diretamente proporcional a cor-rente induzida no circuito. Exatamente o fato de aforca magnetica nao ser constante faz com que essaquestao nao seja resolvida por um aluno de EnsinoMedio. De acordo com a segunda Lei de Newton,temos que, na direcao x,

m.g.senθ(+i)

+B.d.I (t)(−i)

=

m.a (t)(+i), (1)

em que m e a massa da barra, g e a aceleracao dagravidade, θ e o angulo de inclinacao do plano, de a distancia entre as barras laterais que formam oplano e B e o modulo do campo magnetico. Cadatermo esta multiplicado por um vetor unitario queindica seu respectivo sentido, visto que todos com-partilham a direcao. Vale ressaltar que a corrente

Figura 1: Esquema do plano inclinado que contem os tri-lhos e a barra, visao superior.

eletrica citada na equacao acima varia com o tempo.Segundo a Lei de Faraday, temos que

ε = −dΦdt. (2)

O modulo do fluxo magnetico (Φ), no caso parti-cular em que o campo magnetico e uniforme, podeser “obtido pelo produto entre o modulo do campomagnetico B, da area A, e o cosseno do angulo θformado entre os vetores n e B” [3]. Desse modo

Φ = B.A (t) . cos (θ) . (3)

O angulo entre os vetores n e B pode ser obtidoatraves da Fig. 1. Substituindo a Eq. (3) na Eq. (2)obteremos

ε = −d [B.A (t) . cos (π)]dt

. (4)

Simplificando a Eq. (4) teremos

ε = B.d.d[x (t)]dt

. (5)

O termo[

d[x(t)]dt

], que representa a taxa variacao

da dimensao x em relacao ao tempo, define a velo-cidade instantanea da barra [v(t)] durante o movi-mento. Utilizando primeira lei de Ohm, temos quea corrente induzida e dada por

I (t) = B.d

Rv (t) , (6)

em que I (t) e a corrente induzida e R e a resistenciaeletrica fornecida como parametro no problema. Aosubstituirmos a Eq. (6) na Eq. (1), e reorganizarmos,teremos que, em modulo,

d[v (t)]dt

+(B2d2

R.m

).v (t)− g.senθ = 0. (7)

Para simplificarmos a solucao desta EDO, usare-mos

p =(B2d2

R.m

), e q = g.senθ. (8)

Pelo metodo de solucao do fator integrante, deacordo com William e Richard [4], temos que asolucao geral dessa equacao diferencial ordinaria decoeficientes constantes e da forma

v (t) = e−∫p .dt.

(∫ q .e∫

p .dt.dt+ C). (9)

DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S1806-11173822122 Revista Brasileira de Ensino de Fısica, vol. 38, nº 2, e2502, 2016

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e2502-4 Dificuldades conceituais e matematicas apresentadas por alunos de fısica dos perıodos finais

Ao resolvermos a expressao (9), obteremos comosolucao

v (t) = q

p+ C.e−p.t. (10)

Aplicando a condicao de contorno v(0) = 0 paradeterminar a constante de integracao, resultara em

v (t) = q

p.(1− e−p.t

). (11)

Ao substituirmos na Eq. (11) as constantes p e q,definidas na Eq. (8), obteremos a equacao

v (t) = R.m.g.senθB2d2 .

[1− e

−(

B2d2R.m

)t] (

+i). (12)

A Eq. (12) representa a forma como a velocidadeda barra varia com o tempo. A determinacao davelocidade limite e obtida analisando o comporta-mento dessa funcao para valores de tempo muitograndes, nesse caso teremos, em modulo,

limt→∞

v(t) = R.m.g.senθB2d2 . (13)

Ao substituirmos os valores numericos oferecidospelo enunciado da questao, na expressao (13), cons-tatamos que a velocidade limite e de 11,11 m/s.Observe que, decorrido o valor de tempo sugeridopelo gabarito da prova (letra d, 2,22 s), a velocidadeda barra tera atingido 63,2% do valor da velocidadelimite. E relevante deixar aqui registradas duas ob-servacoes sobre os itens: em primeiro lugar (e menosimportante), os itens nao apresentam ordenamentocrescente, conforme recomendam as orientacoes paraelaboracao dos itens na resposta; em segundo lugar,os itens sao todos valores inteiros, exceto o itemD, o que, de certa forma, denuncia que o item temgrande chances de ser a resposta ‘correta’.

Embora seja bem diferente do valor real da ve-locidade limite, esse valor sugerido pelo gabarito,nao coincidentemente, tambem possui um signifi-cado fısico. Para sistemas que decaem em regimeexponencial, como a descarga de um capacitor, otempo que decorre, ate que o capacitor tenha des-carregado 63,2%, e conhecido como tempo carac-terıstico ou constante de tempo. O tempo carac-terıstico, usualmente representado pela letra gregatau (τ), corresponde ao tempo em que o sistemacomeca a responder mais acentuadamente ao regimede equilıbrio.

Analogamente, a resolucao de um problema decircuito RC apresenta uma EDO da seguinte forma

dq

dt+ 1RC

q = Ve

R, (14)

onde que q e funcao do tempo e os parametros R, Ce V e sao constantes. Ao solucionarmos essa EDO,com condicoes de contorno similares ao do nossoproblema, obteremos como solucao

q = CVe

(1− e−

tRC

). (15)

Da mesma forma que nessa equacao, em que otermo RC e chamado de tempo caracterıstico, perce-bemos que, em nossa solucao, analogamente a cons-tante (p), que acompanha o termo v(t) na EDO,tambem aparece na resposta final, nao coinciden-temente ela fornece o valor (2,22 s) da respostasugerida pelo gabarito. Isso decorre da aproximacaosugerida implicitamente pelo elaborador da questao,para solucionar o problema sem utilizar calculo di-ferencial, ao assumir que o modulo da aceleracao econstante (g.senθ).

Entretanto, essa aproximacao e imprecisa tantosob o aspecto numerico quanto conceitual. Esse pro-blema apresenta uma aceleracao cujo modulo variacom o tempo. Tal variacao e obtida por meio daderivada da Eq. (12) em funcao de t

a (t) = g.senθ.e−(

B2d2R.m

)t. (16)

Para valores de tempo muito pequenos, a ace-leracao se aproxima muito do valor sugerido paraa aproximacao; entretanto, quanto maior o tempodecorrido, tanto mais proxima de zero sera a ace-leracao, o que nos leva a deduzir que, quanto maioresforem os valores de tempo, mais proximo o sistemaestara de executar um movimento uniforme. A ex-plicacao dessa afirmacao pode ser obtida quandoinvestigamos o limite da funcao a(t), com t tendendoao infinito

limt→∞

a (t) = 0. (17)

A consequencia imediata desse resultado e que,quanto maiores os valores de tempo, tanto maisproxima de zero sera a aceleracao do sistema, o queconfigura o movimento como uniforme. A Fig. 2ilustra como varia o modulo da aceleracao com otempo.

Revista Brasileira de Ensino de Fısica, vol. 38, nº 2, e2502, 2016 DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S1806-11173822122

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Figura 2: Aceleracao vs. tempo.

3. Metodologia e coleta de dados

A pesquisa foi realizada com um total 23 alunos docurso de licenciatura em fısica de duas instituicoesdistintas: Instituto Federal Fluminense, campus Cen-tro, Campos dos Goytacazes - RJ, e UniversidadeEstadual do Norte Fluminense, Campos dos Goyta-cazes - RJ.

Os estudantes selecionados para participarem dapesquisa foram os alunos que estavam cursandoo sexto, setimo e oitavo perıodos. Essa condicaose justifica, pois, para que o estudante desenvolvacorretamente a questao, ele deve ter cursado asdisciplinas de calculo e as disciplinas basicas demecanica e eletromagnetismo.

Embora o numero total de estudantes observadosseja relativamente pequeno, essas duas instituicoesatendem uma grande regiao, que engloba o sul doestado do Espırito Santo e norte fluminense. Nessasregioes, essas sao as principais instituicoes publicasque oferecem o curso de licenciatura em fısica. Porisso, a representatividade dos dados se reforca em vir-tude da dimensao geografica que essas instituicoesatendem. Somando-se a esse fato, e notoria a in-formacao de que usualmente se encontram poucosalunos [5] nos perıodos finais dos cursos de fısica. Acoleta de dados foi realizada no perıodo de 3/2015a 6/2015.

Para a coleta de dados, foi utilizado um ques-tionario semiestruturado. Minayo [6] define que umquestionario semiestruturado “combina perguntas fe-chadas (ou estruturadas) e abertas (discursivas), emque o entrevistado tem a possibilidade de discorrero tema proposto, sem respostas ou condicoes prefi-xadas pelo pesquisador”. Esse formulario contem oproblema e cinco questoes sobre o problema e suascaracterısticas, sendo quatro questoes objetivas e

uma discursiva. Os alunos foram orientados a res-ponder ao questionario com tranquilidade e lhes foiesclarecido que nao se tratava de uma avaliacao outeste, mas de uma pesquisa de opiniao, e ainda queeles se sentissem a vontade para tentar resolver aquestao da forma como acreditavam ser a correta.Os alunos tiveram um tempo de aproximadamente40 minutos para resolver o problema e responder aoquestionario.

4. Resultados e discussao

Como nao faz parte dos objetivos deste trabalhorealizar nenhum tipo de comparacao referente aodesempenho de alunos de instituicoes diferentes,os dados foram agrupados e tratados como unicoconjunto. Todos ja haviam cursado as disciplinasnecessarias para conseguir resolver o problema, fo-ram apresentados ao mesmo problema e tiveram omesmo tempo para resolve-lo. Desse modo, acredi-tamos que seja razoavel agrupar os dados e fazera analise em conjunto. A Tabela 1 mostra a distri-buicao das respostas dos alunos.

Ao analisarmos as respostas dos alunos aos itens,constatamos que oito assinalaram, na primeiraquestao do questionario, que o problema era ade-quado a um aluno do Ensino Medio. Esse grupo dealunos que representam um terco do total obvia-mente nao percebeu as implicacoes mais complexasdo problema. Os demais 15 alunos responderam queesse problema e mais adequado a um aluno de ensinosuperior. Mais adiante, ao analisarmos a questao dis-cursiva, poderemos inferir mais precisamente o quelevou os alunos a responder aos itens dessa maneira.

Quando perguntados sobre a possibilidade de oproblema ter apresentado dados suficientes para aresolucao, 18 alunos responderam que sim e apenascinco responderam que nao. Todos os cinco alu-nos que responderam que a questao nao apresentoudados suficientes para resolucao tambem assinala-

Tabela 1: Numero de alunos que responderam a cada itemdas questoes.

Questoes/respostas aos itens 1 2 3 4 5Questao 1 8 15 - - -Questao 2 18 5 - - -Questao 3(a) 0 1 3 11 8Questao 3(b) 3 3 7 8 2Questao 4 7 5 11 - -

DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S1806-11173822122 Revista Brasileira de Ensino de Fısica, vol. 38, nº 2, e2502, 2016

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ram, no item anterior, que o problema era adequadoao Ensino Medio. Os 18 alunos restantes que assi-nalaram que o problema ofereceu todos os dadosnecessarios a solucao pareciam ter compreendido asituacao-problema corretamente. Entretanto, coma analise dos outros itens do questionario, fica evi-dente que apenas uma pequena parte soube justificarcorretamente essa escolha

A terceira pergunta do questionario possuıa doisitens: o primeiro perguntava sobre o nıvel de dificul-dade desse problema do ponto de vista de um alunode Ensino Medio; o segundo pergunta a mesma coisa,mas para um aluno de ensino superior. Na escalade 1 a 5, nao houve marcacao na opcao 1, que cor-respondia a “muito facil”. Houve uma marcacao naopcao 2, que correspondia a “facil”, entretanto oaluno que assinalou essa alternativa havia marcadoanteriormente que a questao tratava de uma questaode Ensino Medio e tambem que havia dados sufi-cientes para resolve-la. Tres alunos consideraramque essa seria uma questao de nıvel de dificuldaderazoavel para um aluno de Ensino Medio, enquanto11 alunos afirmaram que essa questao seria difıcilpara um aluno de Ensino Medio.

Percebemos que, ate aqui, independentemente donıvel de dificuldade atribuıdo a questao, esses 15 alu-nos acreditam que um aluno de Ensino Medio poderesolver esse problema de maneira correta. Apenasoito alunos assinalaram o item cinco, que corres-pondia a “impossıvel”, para um aluno de EnsinoMedio.

A quarta questao perguntava se o licenciando,na condicao de futuro professor, usaria o problemaem suas avaliacoes para Ensino Medio. Sete alunosassinalaram que usariam a questao na ıntegra, cincoafirmaram que nao usariam a questao e 11 alunosindicaram que usariam com adaptacoes.

Podemos categorizar as informacoes contidas naquestao 5 de acordo com seus nucleos de significa-dos [7], e essa categorizacao pode ser organizadaconforme criterios previamente estabelecidos, seme-lhancas ou analogias entre as falas [8]. Para que semantivesse o sigilo, os alunos foram identificadoscom numeros de 1 a 23. Essa numeracao nao foiarbitraria, esta em ordem crescente de acordo com odesempenho. A classificacao obedeceu aos criteriosde desempenho do aluno na resolucao da questao, asaber:

• Identificou corretamente a natureza das forcasque atuam no sistema (aspecto conceitual);• Definiu corretamente o somatorio de forcas,

identificando a forca magnetica e aceleracaocomo funcoes do tempo;• Identificou corretamente quais ferramentas ma-

tematicas seriam necessarias para a solucao;• Executou com exito as operacoes matematicas

necessarias.

Quando os alunos apresentaram desempenhossemelhantes, conseguindo atingir as mesmas ha-bilidades, utilizamos como criterio de desempate,a “coerencia” nas respostas do questionario. Essecriterio passou pela comparacao entre as respostasdadas no questionario e o desempenho na resolucaoda questao, por exemplo, o Aluno 1, que afirmouque a questao era de nıvel medio (pela resposta daquestao 1); que tinha dados suficientes (pela questao2); classificou a questao como facil para um alunode superior (questao 3 – b), mas nao conseguiu de-senvolver nenhum dos criterios de desempenho demaneira correta.

Dos 11 alunos que afirmaram que usariam o pro-blema para avaliar seus alunos de Ensino Medio,10 responderam a questao 5. Do grupo de alunosque responderam a quinta questao, tres sugeriramadaptacoes irrelevantes, sob o aspecto da adequacaoconceitual e matematica do problema para o alunode Ensino Medio, como a qualidade da figura, porexemplo.

Mesmo que o aspecto visual do problema apre-sente algum tipo de imprecisao, nao e a qualidadeda figura a responsavel pelo fato de um aluno deEnsino Medio nao poder resolver o problema. Orga-nizando as demais sugestoes, encontramos dois tiposde padroes diferentes nas respostas. Uma categoriade sugestoes consiste basicamente no grupo de alu-nos que alegaram que a questao deveria apresentaruma “contextualizacao” ou uma “situacao problema”mais elaborada. Pudemos observar similaridades queconvergem nesse sentido em cinco respostas e, parailustrarmos, podemos indicar a resposta do Aluno10:

Aluno 10: “Para ficar melhor elaborada aquestao deveria conter uma aplicacao docotidiano do aluno, uma situacao praticapara contextualizacao”

Revista Brasileira de Ensino de Fısica, vol. 38, nº 2, e2502, 2016 DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S1806-11173822122

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Por fim um grupo, constituıdo de apenas doisalunos, fez sugestoes que indicam que eles realmenteperceberam o motivo pelo qual a questao e im-possıvel de ser resolvida por um aluno de EnsinoMedio. As respostas dos alunos foram agrupadasnessa categorizacao por conterem a explicacao deta-lhada da forca magnetica que age sobre a barra, ouindıcios de que os alunos perceberam que ela variacom o tempo. As respostas estao transcritas abaixo:

Aluno 22: “Mudaria a situacao para umaforca constante puxando na horizontal,pois a forca magnetica nao e uniforme ateo equilıbrio”.Aluno 23: “Nao pediria o tempo ate queentre em MRU porque o aluno nao sabe-ria calcular com uma aceleracao variavel,cobraria so o valor da velocidade limite”.

Embora nao esteja escrito explicitamente na res-posta do Aluno 23, ele interpretou corretamenteque a forca magnetica que atua sobre a barra naoe constante ate que ela atinja o movimento uni-forme. Podemos garantir isso pelo fato de que essefoi o unico aluno que conseguiu resolver com su-cesso a questao da forma como foi apresentada nestetrabalho. Outros alunos conseguiram determinar aforma de resolve-la, mas nao obtiveram exito namanipulacao matematica.

Identificamos que o principal problema de inter-pretacao conceitual apresentado pelos alunos foi anao compreensao das circunstancias que tornam aforca magnetica que atua sobre a barra variavel.Com base na analise das respostas dos alunos, erro-neamente a forca foi considerada constante.

Por fim, apenas dois alunos, conseguiram deter-minar o caminho exato para a solucao do problemae as ferramentas matematicas necessarias e utiliza-las corretamente. Na realidade, o resultado finalfoi obtido apenas pelo Aluno 23, e o Aluno 22 naoconseguiu determinar corretamente a constante deintegracao do P.V.I. apos a solucao da E.D.O. Maspodemos considerar que ele, apesar do deslize, temo conhecimento que e necessario para analisar cor-retamente e resolver o problema.

5. Consideracoes finais

No intuito de contribuir com resultados citados ante-riormente por pesquisas realizadas em outras regioes

e realidades, esta pesquisa sugere que as dificuldadesna formacao inicial do aluno de fısica, no que dizrespeito as dificuldades conceituais, nao sao pontu-ais.

Em face dos dados obtidos da observacao, pude-mos perceber um grande percentual de alunos comdificuldades em aferir conceitualmente o grau dedificuldade da questao apresentada, bem como exe-cutar o calculo necessario para resolve-la. Menos dametade dos estudantes demonstrou o conhecimentoesperado para o nıvel em que se encontram.

Fazendo uma reflexao sobre o contexto da pes-quisa, devemos estar cientes de que diversos ele-mentos sao passıveis de analise e influenciam nodesempenho dos alunos. Os aspectos qualitativos,referentes a observacao durante a aplicacao do ques-tionario, sugerem fortemente que os alunos se empe-nharam na tarefa que lhes foi concedida. Ao analisaresse comportamento, estamos convencidos de queas respostas dos alunos refletem, de maneira muitoproxima da realidade, o nıvel de conhecimento nomomento da aplicacao do questionario.

O isolamento disciplinar entre fısica e Matematicacertamente apresenta indicativos de ineficiencia quetambem foram relatados em trabalhos anterioresja citados neste artigo. E possıvel que a excessivamecanizacao no ensino de calculo, que pode apre-sentar certa eficiencia no aspecto procedimental emrelacao aos algoritmos, dificulte ao aluno estabeleceras relacoes de aplicabilidade no campo da fısica, asquais, muitas vezes, subsidiam o proprio conheci-mento teorico.

Esforcos bem-sucedidos estao sendo apresentados,cada vez mais frequentemente, no intuito de sanaressa dificuldade dos alunos. Pesquisas recentes [9]sugerem que cursos de calculo direcionado a alunosde cursos especıficos tendem a apresentar resultadospositivos de aprendizagem. Ignorar a dificuldade doaluno atribuindo a culpa a sua formacao anteriore, muito provavelmente, uma atitude que de nadaservira para fazer que o professor conclua com exitoseu trabalho, que e ensinar.

Referencias

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e2502-8 Dificuldades conceituais e matematicas apresentadas por alunos de fısica dos perıodos finais

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