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Direito e Democracia Ano I . Edição nº1 . Março/2018 Revista Jurídica da Escola Superior de Advocacia

Direito e Democracia - oabrn.org.br · da militância na seara dos direitos humanos, testemunhada por Dio-nísio. Desse último homenageado ainda juntamos, como memória de ... za

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Direito eDemocracia

Ano I . Edição nº1 . Março/2018

Revista Jurídica da Escola Superior de Advocacia

Revista Jurídica da Escola Superior de Advocacia - OAB/RNAno I, Edição nº 1, Março/2018ISSN...

A reprodução total ou parcial desta publicação é permitida sempre que for citada a fonte.

As opiniões contidas nos artigos são de responsabilidade exclusiva dos autores.

EDITORA CHEFEMaura Marjorie Gomes Nogueira

CONSELHO EDITORIALDjamiro Ferreira Acipreste SobrinhoFábio Fidelis de OliveiraMarcelo Mauricio da SilvaMarco Aurélio de Medeiros JordãoRebeca Câmara AlvesÚrsula Bezerra e Silva Lira

COORDENAÇÃO TÉCNICAMarcelo Mauricio da Silva

PROJETO GRÁFICO,CAPA E DIAGRAMAÇÃOGustavo RibeiroMarketing da OAB/RN

Rua Barão de Serra Branca, s/n – Candelária – CEP 59065-550Natal, Rio Grande do Norte, Brasil

DIRETORIA DA OAB/RN

Presidente: Paulo de Souza Coutinho FilhoVice-Presidente: Marisa Rodrigues de Almeida DiógenesSecretário-Geral: Kaleb Campos FreireSecretária-Geral Adjunta: Priscila Coelho da Fonseca BarretoDiretor-Tesoureiro: Carlos Alberto Marques Júnior

DIRETORIA DA ESA/-RN

Diretora Geral: Marília Almeida MascenaDiretor Tesoureiro: Flaviano da Gama FernandesDiretor de Ensino: Olavo Fernandes Maia NetoDiretor de Pós-Graduação: Alexandre Alberto da Câmara SilvaDiretora da Revista/Editora: Maura Marjorie Gomes NogueiraDiretor de Gestão, Prática Profissional e Residência Jurídica:João Paulo dos Santos MeloDiretora de Cursos Presenciais: Monalissa Dantas Alves da SilvaDiretor de Cursos Telepresenciais e pela Internet de Aperfeiçoamento: Cássio Leandro de Queiroz RodriguesDiretor de Conferências, Congressos e demais eventos:Antonino Pio Cavalcanti de Albuquerque SobrinhoDiretor de Integração: Fabio Luiz Lima SaraivaDiretor de Cursos de Extensão em Direito Digital e PJE:Hallrison Souza Dantas

Expediente

06. PrefácioMarília Almeida Mascena e Paulo de Souza Coutinho Filho

07. EditorialConselho Editorial

Direitos e DemocraciaMarcos José de Castro Guerra

20. O Presidencialismo Brasileiro no Contexto da Crise Política e a Fragilidade da Democracia NacionalMariana de Siqueira

08.

30.

66. A Evolução da Moralidade Jurídica:Da Instituição Como Princípio até a Efetivação com as Normas de ComplianceMayara dos Santos da Silva

80. Quem Tem Medo do STF? Estudo Acerca da Racionalização dos Poderes do Pretório ExcelsoJodilson Iron Gomes de Medeiros

94. A Responsabilidade Civil do EstadoPela Morosidade na Prestação JurisdicionalPriscila Franco

102. Poder(?) de Tributar:Uma Breve Análise Sobre Justiça Tributáriae Estado Democrático de DireitoJaciel Neto

28. Pactuar a Segurança para Reduçãoda ViolênciaMarcos Dionísio Medeiros Caldas

A Abertura Democráticado Supremo Tribunal Federal:

A Influência da Audiência Pública no Julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade

Nº 3510Ana Beatriz Ferreira Rebello Presgrave e Daniela

Vaz Campos

46. A Democracia Representativae a Revogação dos Mandatos em CursoAbraão Luiz Filgueira Lopes

54. Aspectos da Democracia Segundo a Doutrina Social da Igreja: Um Estudo em Homenagem ao Jurista Otto GuerraSilvério Alvesda Silva Filho

Índice

4 . Parlatório . MARÇO/2018

Advogados(as),

A Escola Superior de Advocacia do Rio Grande do Norte, criada através da Resolução nº 003/91, em 14/11/1991, tem a missão de fomentar projetos que promovam a capacitação técnica dos operadores do direito, oportuni-zando o aperfeiçoamento profissional dos advogados inseridos na Seccio-nal Potiguar, através de cursos e capacitações que levam ao aprimoramento e difusão de conhecimentos.

Imbuídos desse espírito, a advocacia potiguar conta agora com mais um espaço para sua produção jurídico-literária: Revista Parlatório, cujo nome não poderia ser mais simpático e apropriado. Afinal, um parlatório é um local para conversas, onde podemos trocar ideias, informações, gerar co-nhecimento e travar saudáveis discussões.

Diante do atual cenário nacional, a temática de Direito e Democracia não poderia ter se mostrado mais acertada, posto que são admiráveis cria-ções humanas cuja efetividade depende de conhecimento e de sua defesa intransigente.

Os artigos que compõem a revista estão sob assinatura de notórios pro-fissionais e diante de sua grande qualidade, enriquecem nosso acervo insti-tucional, constituindo reconhecido material de exame para a comunidade jurídica.

Fica o registro de agradecimento e reconhecimento à toda equipe da revista, que através de sua editora chefe, conselho editorial, coordenação técnica e diagramação, suporte digital e gráfico e colaboradores, dedicaram seu tempo e competência para entregar à advocacia potiguar um trabalho de excelência.

A Escola Superior de Advocacia mantém sua inquietação no propósito de ser um local onde os advogados norte-rio-grandenses possam buscar infor-mação, habilitação, edificação e socialização. Sendo também agora palco de produções jurídicas, que contribuem de forma sólida como uma importante fonte de pesquisa acadêmica e profissional.

Boa leitura!

Marília Almeida MascenaDiretora Geral da ESA/RN

Paulo de Souza Coutinho FilhoPresidente da OAB/RN

Prefácio

A advocacia potiguar conta agora com mais um espaço para sua produção jurídico-literária: Revista Parlatório, cujo nome não poderia ser mais simpático e apropriado. Afinal, um parlatório é um local para conversas, onde podemos trocar ideias, informações, gerar conhecimento e travar saudáveis discussões.

Parlatório . MARÇO/2018 . 5

Editorial

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em sua seccional norte-rio-grandense, ciente de seu compromisso com os esforços científicos de aprimoramento do fazer advocatício também em suas progressões acadêmicas e culturais retoma, através dos esforços em-preendidos pela Escola Superior de Advocacia, a produção periódica com a alvissareira concretização da Revista Parlatório.

O nome, na evocação das mais caras tradições, relaciona os púlpi-tos nos quais a oratória de tantos advogados soube dignificar a liber-dade, como em um altar erguido com a lágrima e o sangue das gera-ções que nos antecederam.

As lições dos mestres, as expres-sões dos causídicos, a reflexão dos doutrinadores, a fala lançada às de-mocráticas assembleias, como hino, ou aos despóticos ouvidos, como grito: em todos os lances o poder da palavra, gládio e escudo pelos que não tem voz ou vez.

E assim, tomando a edição inau-gural sob o signo das esperanças do presente e dos caminhos já trilha-dos é que contamos, além dos au-tores selecionados a partir do edital oportunamente lançado, com os

advogados que aqui comparecem em pontuais contribuições.

A presença dos artigos “A De-mocracia Representativa e a revo-gação dos mandados em curso”, “A responsabilidade civil do Estado pela morosidade na prestação ju-risdicional”, “A Evolução da mo-ralidade jurídica: da instituição como princípio até a efetivação com as normas de compliance” e “Poder (?) de tributar: uma breve análise sobre a justiça tributária e estado democrático de direito” desenvolve, com notável desen-voltura, a conexão entre o ideal democrático e variados ramos da experiência jurídica.

Noutro ângulo, na apresentação de significativas elaborações tex-tuais, os doutores Marcos Guerra, Mariana Siqueira, Ana Beatriz Pres-grave e Silvério Alves representam as vozes da academia e da militân-cia forense no debate sobre o tema da edição inaugural: Direito e De-mocracia.

Nesse mesmo sentido, em refe-rência à memória de lutas empreen-didas na defesa do ideal democrá-tico, a recordação dos advogados Otto de Brito Guerra e Marcos Dio-nísio Medeiros Caldas completam

a lição da teoria conjugada à esfera prática, tão ao gosto da contundente defesa da liberdade dos perseguidos políticos exercida pelo Prof. Otto e da militância na seara dos direitos humanos, testemunhada por Dio-nísio. Desse último homenageado ainda juntamos, como memória de sua inesquecível atuação, o escri-to intitulado “Pactuar a segurança para reduzir a violência”.

Felizes pela oportunidade de lançarmos mais um elemento bi-bliográfico à andaimaria da Escola Superior de Advocacia em sua mis-são de fomento aos quadros reno-vadores da reflexão jurídica poti-guar, entregamos, esperançosos, a primeira edição de um democrático PARLATÓRIO.

Com a palavra, os advogados...

Maura Marjorie Gomes NogueiraEditora Chefe

Djamiro Ferreira AcipresteSobrinho

Fábio Fidelis de OliveiraMarcelo Mauricio da Silva

Marco Aurélio de Medeiros JordãoRebeca Câmara Alves

Úrsula Bezerra LiraMembros do Conselho Editorial

O nome, na evocação das mais caras tradições, relaciona os púlpitos nos quais a oratória de tantos advogados soube

dignificar a liberdade, como em um altar erguido com a lágrima e o sangue das gerações que nos antecederam.

6 . Parlatório . MARÇO/2018

Artigo

Somente um novo pacto poderia modificar nossa Constituição quanto aos “Princípios Fundamentais”, aos “Direitos e Garantias fundamentais, individuais e coletivos”, e ao que nela foram denominados “Direitos So-ciais”.

Pretendemos aqui levantar ques-tões quanto à estreita relação entre DIREITO E DEMOCRACIA, e in-centivar debates que nos permitam uma atuação consequente na defesa dos Direitos ameaçados na crise po-lítica e econômica que atravessamos. Dentre os que militam em prol da Justiça, cabe-nos, aos Advogados, um papel preponderante. Por dispor de grande liberdade e capacidade de iniciativa. Por identificar com clare-za iniciativas que violam Direitos e ameaçam a própria Democracia. E por dispor dos conhecimentos pro-fissionais que nos permitem e ao mesmo tempo nos obrigam a atuar de forma crítica e combativa.

Para Nelson Mandela, conhece-mos uma nação identificando como trata seus prisioneiros. Não a mino-ria de privilegiados, mas os que têm pouco ou nada.

Nossa Constituição de 1988 tal-vez não tenha o melhor formato, mas seguramente representa o me-lhor consenso, obtido em momento crítico. Ela determina direitos e de-veres constitucionais, e nos impõe regras democráticas, republicanas e federativas1.

É fruto de um verdadeiro pacto político-social e econômico, cons-truído laboriosamente por lideran-ças políticas e partidárias, com atu-ante participação da sociedade civil – incluindo militares e entidades re-ligiosas.

Cabe-nos a tarefa de consolidar e aperfeiçoar o que na época foi defini-do como fruto da redemocratização. Não podemos desfigurá-la, e muito menos violentar princípios e objeti-vos claramente explicitados.

A Constituição Federal de 1988 garante com extrema precisão que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos, ou diretamente, nos termos desta Constituição” e estabelece ain-da que os 3 poderes (independentes e harmônicos) atuarão com vistas a construir, garantir e promover ações claramente definidas.

Nesta verdadeira crise política, dispomos de um sólido referencial. E podemos ter clareza sobre uma ta-refa comum. Divididos, esquecemos as lições do incansável Betinho, em um estudo sobre “Democracia e Ci-dadania”2, e em toda sua militância na qual repetia “quem tem fome tem pressa!!!”. Como sempre lembrou, “só a participação cidadã muda um país”. E para cimentar tais mudanças, elencou cinco princípios: Igualdade, Diversidade, Participação, Solidarie-dade e Liberdade. Ao definir cidada-nia, escreve com clareza:

Direito e democracia

Marcos José de Castro GuerraAdvogado. Ex-professor de Direito Internacional. Foi Vice-Presidente da OAB/RN, com múltiplas atuações

na área de Educação e Cooperação internacional. Correio eletrônico: [email protected]

1. Título I dos Princípios Fundamentais. Artigo 1º. Fundamentos da República Federativa, Estado de-mocrático de direito: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o plura-lismo político… Objetivos Fundamentais -Artigo 3º. I - Construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigual-dades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação... Direitos Sociais: Artigo 6º. São direitos sociais a edu-cação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência so-cial, a proteção à maternidade e à infância, a assistên-cia aos desamparados, na forma desta Constituição.

2. Betinho, Herbert José de Souza - Democracia e Cidadania, in Democracia Viva, No. 28, 2006 - IBASE, RJ.

“It is said that no one truly knows

a nation until one has been inside

its jails. A nation should not be

judged by how it treats its highest

citizens, but its lowest ones.”

NELSON ROLIHLAHLA MANDELA

Parlatório . MARÇO/2018 . 7

Cidadania é a consciência de di-reitos democráticos, é a prática de quem está ajudando a construir os valores e as práticas democráticas. No Brasil, cidadania é fundamen-talmente a luta contra a exclusão social e a miséria e mobilização concreta pela mudança do cotidia-no e das estruturas que beneficiam uns e ignoram milhões de outros. E querer mudar a realidade a partir da ação com os outros, da elabo-ração de propostas, da crítica, da solidariedade e da indignação com o que ocorre entre nós3.

Divididos e manipulados, não po-demos cooperar para “democratizar a democracia”, no sentido estudado pelo cientista Boaventura de Sousa Santos4. Vivemos numa democracia sequestrada, o que gera descrença de uma grande maioria desmobilizada.

Descrença resultante da exclusão política e social, da trivialização da participação em atividades de facha-da que chamavam a decidir sobre coisas cada vez menos importantes. Descobrem que não participavam do poder efetivo, mas de “Missas Republicanas” segundo consagra-da expressão de Mitterrand, como grandes Conferencias Nacionais, As-sembleias, Congressos, Manifestos, Notas Públicas. E que as decisões principais, que têm efetivamente consequência na vida da maioria eram tomadas em outras instancias. Descobrem ainda quem são os gran-des beneficiários.

De forma consciente e maquia-vélica, minorias que se apoderaram do poder em nome da proteção dos interesses de poucos privilegiados, ou de uma pseudohegemonia, fazem

3. Betinho – Poder do Cidadão –www.conversas-combetinho.org.br/com_a_palavra/cidadania_fome.htm

4. Boaventura de Sousa Santos, org - Democratizar a de-mocracia - os caminhos da democracia participativa - Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2002.

todo o possível para dividir aqueles que se unidos estivessem poderiam ameaça-las. Em detrimento da gran-de maioria, forjam uma “democracia de baixa intensidade”, sequestrada por forças econômicas poderosas imunes a qualquer transparência e sem passar pelo crivo de uma avalia-ção democrática.

Constatamos um divórcio entre o parlamento e a sociedade, e que os 3 poderes tentam reduzir a participa-ção cidadã exclusivamente ao voto – limitado a cada 4 anos. Atuam muitas vezes como se estivessem a exercer um “poder drone” – como militares de grandes potências que manipu-lam controles eletrônicos a milhares de quilômetros de suas vítimas, para bombardear indiscriminadamente seus adversários. Pouco lhes impor-tam os custos paralelos que atingem populações civis, principalmente crianças e mulheres. Atuam como se ignorassem as consequências de decisões que trazem graves prejuízos para a grande maioria, principalmen-te para os mais frágeis. Agem protegi-dos por uma falsa impunidade e sem

nenhum risco pessoal.Ao manipular seus drones, alguns

de nossos políticos e gestores, esque-cem as promessas feitas nas campa-nhas eleitorais. A partir das quais analistas chegaram a identificar al-gumas vezes o que ficou conhecido como estelionato eleitoral.

Governantes e parlamentares agem como se não estivessem vincu-lados pela Constituição, e pelos com-promissos assumidos em campanha.

Hoje vemos que ações consi-deradas prioritárias não tiveram a dimensão e o alcance necessários, nem resultados concretos e irrever-síveis. Entre outros fatores pela falta de vontade política e de coragem de enfrentar reformas estruturais. Im-portantes Programas de Governo puderam ser facilmente esvaziados, já que não foram constituídos como Políticas Públicas de Estado, que ti-vessem sua continuidade garantida.

8 . Parlatório . MARÇO/2018

Ao invés de aperfeiçoar o Contra-to Social vigente, e de executar polí-ticas que finalmente atendam plena-mente ao dispositivo Constitucional, vemos ao contrário nos últimos me-ses uma tentativa não dissimulada de tentar impor um novo modelo, agora obedecendo ao que ficou conhecido em 1989 como “Consenso de Wa-shington”, que reintroduz opções po-líticas da antiga “comissão trilateral” criada por Rockfeller em 1973. Do famoso “Consenso” ficaram medidas de ajuste macroeconômico impostas pelo FMI e pelo Banco Mundial, que aplicadas recentemente na Europa resultaram em grave crise econômi-ca e política com prejuízos para paí-ses concretos, e principalmente para a maioria da população de gregos, portugueses, italianos, e até de paí-ses com economia mais sólida como a Inglaterra, a França e a Alemanha. Medidas comprovadamente inefica-zes e impopulares, que para serem implantadas muitas vezes exigiram divulgar como verdadeiras informa-ções falsas ou incompletas. Fato que mais uma vez enseja denúncia sobre a sua ilegitimidade diante das garan-tias constitucionais.

Já presentes nas últimas décadas, acentuam-se mais particularmente a partir do início de 2015 as pressões para introduzir o conhecido “neoli-beralismo”, também chamado de mo-dernismo ou conservantismo liberal, defendido entre outros pelo Ministro Meirelles. O qual continua coerente em sua missão confiada pelos Ban-cos, desde quando deixou a direção mundial do BankBoston e aceitou o convite para dirigir o Banco Central

(de 2003 a 2010). Vale salientar que na época exigiu e obteve o “status” de Ministro de Estado, que lhe dava maior liberdade e preponderância.

As principais características do modernismo liberal não se coadu-nam com nosso pacto vigente sob a Constituição Cidadã. De início, deve obedecer “ao mercado” (sic), reduzir drasticamente gastos sociais e subsídios governamentais – sob a alegação de “saúde fiscal”, desregula-mentar o mercado de trabalho, pe-nalizar trabalhadores e aposentados com arrocho salarial, romper uma aliança histórica com sindicatos de trabalhadores e incentivar privatiza-ções, entre outras medidas. São itens que poderiam até vir a ser discutidos para integrar um novo Pacto. Mas não podem ser impostos de forma unilateral e apressada. Algumas me-didas são forçadas literalmente “por decreto”, forma antidemocrática que a sociedade critica há tempo.

Entre outros, por duas vezes o Planalto tentou entregar a Reserva Nacional do Cobre (RENCA), igno-rando direitos da população local e riscos ambientais, e decidindo uni-lateralmente sobre minerais estraté-gicos, em contradição com dispositi-vos constitucionais, como o Art. 225 E o fez novamente através de malo-grados Decretos (9.142 e 9.147, agos-to de 2017) sobre os quais foi preciso recuar, o último tendo seus efeitos suspensos por um curto período.

Vejamos a seguir algumas das propostas que merecem análise so-bre sua constitucionalidade, e que podem ser objeto de luta pelos Direi-tos e pela Democracia.

As principais características

do modernismo liberal não se

coadunam com nosso pacto

vigente sob a Constituição

Cidadã. De início, deve obedecer “ao mercado” (sic), reduzir

drasticamente gastos sociais

e subsídios governamentais, desregulamentar

o mercado de trabalho,

penalizar trabalhadores e

aposentados com arrocho salarial,

romper uma aliança histórica

com sindicatos de trabalhadores

e incentivar privatizações,

entre outras medidas.

2. UM NOVO CONTRATO SOCIAL

Parlatório . MARÇO/2018 . 9

A propaganda governamental di-vulga insistentemente que a Seguri-dade Social é deficitária, e gasta mais que arrecada. Com a ajuda da grande imprensa o Planalto esconde que se apropria de 30% das somas arrecada-das e vinculadas constitucionalmen-te para Previdência Social, Saúde e Educação. E que obteve recentemen-te no Congresso aprovação para au-mentar o desvio de 20% para 30%, e garantir sua prorrogação até 2023. Se fosse deficitária, como abocanhar e desviar 30%? Conforme notícia o próprio Senado, “a principal fonte de recursos da DRU são as contribui-ções sociais, que respondem a cerca de 90% do montante desvinculado”.

Naturalmente algumas decisões impostas à sociedade enfrentam difi-culdades no Congresso, com formas de pressão que violam a autonomia dos 3 poderes. É exemplar o que se passa em relação à Previdência, que tem clara previsão Constitucional, quanto à sua abrangência (Art. 194)5 e seu financiamento (Art. 195)6, em Ca-pitulo sobre a Seguridade Social, no Título VIII – sobre a Ordem Social.

Ou seja, a Constituição vincula, mas Governantes atropelam a Cons-tituição com o beneplácito do Parla-mento e o silêncio da Justiça.

Através de um desvio legalizado, a DRU (Desvinculação de Receitas da União), maneja recursos que são reorientados para o pagamento de juros da dívida pública, que nunca foi auditada, contrariando mais uma vez o que manda a Constituição. Já ve-

tada pela então Presidente Dilma em 2015, a auditoria prevista na LDO de 2018, acaba de ser novamente vetada pelo Presidente Temer.

A propaganda governamental esconde também, por razões incon-fessáveis, uma dívida de sonegado-res que supera R$ 426 Bilhões. E o Governo continua a contratar deve-dores, desrespeitando clara determi-nação Constitucional do § 3º do Art. 1957 de nossa Constituição.

Ainda, estudos da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional vinculam a 115 Deputados e 14 Senadores dí-vidas em aberto num total de R$ 946 milhões, sem que os devedores se de-clarem impedidos de votar a MP 783, que tramita igualmente em regime de urgência. Ela foi apelidada de “Pacote de Bondades”, ao criar um novo pro-grama de refinanciamento das dívi-das que serão parceladas em 14 anos, “inclusive objeto de parcelamentos anteriores rescindidos ou ativos, em discussão administrativa ou judicial, ou ainda provenientes de lançamento de ofício efetuados após a publicação da Medida Provisória” (Sic).

Uma Carta Aberta sobre a Re-forma da Previdência8 publicada em janeiro de 2017 pela OAB e mais de 200 entidades “exige a devida trans-parência” sobre os dados da Seguri-dade Social, e “a suspensão da tra-mitação da PEC 287/2016, até que se discuta democraticamente com a sociedade no sentido de construir al-ternativas... impedindo o retrocesso de direitos sociais”.

A propaganda governamental esconde também, por razões inconfessáveis, uma dívida de sonegadores que supera R$ 426 Bilhões.

5. Art. 194. A seguridade social compreende um conjun-to integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relati-vos à saúde, à previdência e à assistência social. Parágrafo único. Compete ao Poder Público, nos termos da lei, or-ganizar a seguridade social, com base nos seguintes obje-tivos: I - universalidade da cobertura e do atendimento; II - uniformidade E equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais; III - seletividade e distri-butividade na prestação dos benefícios e serviços; IV - ir-redutibilidade do valor dos benefícios; V - eqüidade na forma de participação no custeio; VI - diversidade da base de financiamento; VII - caráter democrático e descentra-lizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados.

6. Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais... § 3º A pessoa jurí-dica em débito com o sistema de seguridade social, como estabelecido em lei, não poderá contratar com o poder público nem dele receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios.

7. § 3º. – A pessoa jurídica em débito com o sistema da seguridade social como estabelecido em lei, não poderá contratar com o poder publico nem dele receber benefí-cios ou incentivos fiscais ou creditícios.

8. http://s.oab.org.br/arquivos/2017/02/carta‐aberta‐so-bre‐a‐reforma‐da‐previdencia‐5.PDF

3. A REFORMA DA PREVIDÊNCIA

10 . Parlatório . MARÇO/2018

Além da pressa em implantar sem maior diálogo suas reformas, como a do sistema educativo, encontramos a mesma metodologia aplicada no que ficou conhecido como Reforma Tra-balhista.

A OAB marcou posição contra o modo como esta Reforma vinha sen-do feita. Em nota do 1º de Maio deste ano, denuncia o ritmo forçado, que assimilamos mais acima ao bombar-deamento dos drones.

Em Regime de Tramitação de Ur-gência, o projeto enviado pelo Exe-cutivo em fins de Dezembro de 2016 teve sua Redação Final aprovada pela Câmara de Deputados em Abril de 2017. Encaminhada ao Senado, foi aprovada em 11 de Julho, e sanciona-da pelo Presidente da República em 13 de Julho. Vale retomar trechos da Nota de 1º de Maio de 2017:

A OAB reafirma seu compromisso de atuar com empenho e destemor na defesa da Constituição Federal, do Estado Democrático de Direito e da sociedade... As propostas de al-terações na legislação trabalhista e na Previdência Social, hoje em an-damento no Congresso Nacional, não podem ser debatidas de forma açodada... Decisões tomadas sem as devidas ponderações sobre seus impactos na sociedade podem vir a causar danos irreparáveis sobre aqueles que são o principal motivo de existência de nosso Estado De-mocrático de Direito, o cidadão... Num momento em que são tantos os percalços enfrentados pelas ins-tituições, cabe ao Congresso Na-cional preservar direitos e garan-

tias sociais, especialmente quando a sociedade sofre os efeitos da crise econômica, com o avanço do de-semprego. Modernizar a legislação trabalhista não pode, sob hipótese alguma, ser pretexto para que se imponham prejuízos irreparáveis aos trabalhadores e trabalhadoras de nosso país.

Pressa e desacertos que justifica-ram ações no STF9. Há um MS de Senadores contra a tramitação da reforma, recusado pela Presidente do Tribunal, conforme Jurispru-dência da Corte, por ser “incabível a judicialização de atos de natureza interna corporis praticados nas Casas Parlamentares”. E uma ADI da PGR em defesa dos direitos, e da própria Constituição, incluindo medida cau-telar – a partir da qual o Ministro Luis Roberto Barroso já pediu escla-recimentos sobre a possibilidade de violação de garantias constitucionais de amplo acesso à jurisdição e a as-sistência judiciaria integral aos ne-cessitados.

Por sua vez, a ANAMATRA – As-sociação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, decidiu que:

o questionamento à aberração im-posta deva ser feito ponto a ponto no STF, e não por meio de uma ADIN”. E ainda, “atacar pontos de inconstitucionalidade no STF mais patentes e permitir que a jurispru-dência dos tribunais da justiça do trabalho construa a melhor in-terpretação desse texto, de acordo com os princípios constitucionais e que regem o direito do trabalho.

4. REFORMA TRABALHISTA

Decisões tomadas sem as devidas

ponderações sobre seus

impactos na sociedade

podem vir a causar danos irreparáveis

sobre aqueles que são o principal

motivo de existência de nosso Estado

Democrático de Direito, o cidadão.

9. ADI 5.766, da PGR, MS 34989.

Parlatório . MARÇO/2018 . 11

Problema crônico no Brasil, a dí-vida pública gera controvérsias, por sua dimensão e pelo fato de ser man-tida como uma verdadeira caixa pre-ta sobre a qual não há transparência, já que os últimos Presidentes veta-ram uma auditoria com participação da sociedade civil.

Vale lembrar que em 2005, hou-ve um resgate antecipado ao FMI, a quem se pagava juros inferiores a 4% ao ano. Desde então o Governo paga juros de mercado, e os bancos se tor-nam mais ricos. A dívida representa em Dezembro de 2016 nada menos que 69,5 % do PIB10. E 45% do or-çamento são reservados aos juros e amortização da dívida, graças aos desvios acima mencionados, através do artifício legal chamado DRU.

Enquanto isto o Planalto e alguns parlamentares apressam-se a im-por medidas sem negociar um novo Pacto Social. Quase sempre em tem-po recorde. Dentre outras, a recen-

te Emenda Constitucional do Teto de Gastos Públicos (PEC 55/2016 e 241/2016, Emenda 95/2016) que autoriza limitar o gasto público pri-mário e praticamente congelar por 20 anos os recursos de setores pro-tegidos constitucionalmente como saúde e educação.

Tudo beneficiando ainda do si-lêncio da Justiça, apesar de ajui-zamento de ações pela AJUFE, a ANAMATRA e a DPU, além do PT, do PSOL, Federações e Confede-rações de trabalhadores11. Trata-se de emenda controvertida também porque retira do Parlamento suas atribuições relacionadas com o or-çamento. Como resultado, ficaram limitadas “as aplicações em ações e serviços públicos de saúde e em ma-nutenção e desenvolvimento do en-sino”. Confirmando a subserviência, as restrições não se aplicam a “gastos com a dívida pública e despesas com aumento de capital de empresas”.

Em 2005, houve um resgate antecipado ao FMI, a quem se pagava juros inferiores a 4% ao ano. Desde então o Governo paga juros de mercado, e os bancos se tornam mais ricos. A dívida representa em Dezembro de 2016 nada menos que 69,5 % do PIB.

10. Dívida pública brasileira – mensuração, composição, evolução e sustentabilidade – josué alfredo pellegrini – se-nado federal – Fev.

11. ADIs 5.715, 5.734, 5.633, 5.643, 5.658 e 5.680.

5. DESPESAS REPRESADAS X DÍVIDA PÚBLICA

12 . Parlatório . MARÇO/2018

12. Tributação e distribuição de renda no Brasil – Sergio Wulff Gobetti e Rodrigo Orair www.ipcundp.org/pub/port/WP136PT_tributacao_e_distribui-cao_de_renda_no_Brasil_novas_evidencias_a_par-tir_das_declaracoes_tribut arias_das_pessoas.pdf

13. https://nacoesunidas.org/wp‐content/uplo-ads/2017/02/NovosPobresBrasil_Portuguese.pdf

6. DESIGUALDADE, CONCENTRAÇÃO DE RENDA E “NOVOS PO-BRES”

Embora tenha se acentuado a de-sigualdade, não é de hoje que a con-centração de renda tem sido favore-cida, assim como os extraordinários e inexplicáveis ganhos do sistema financeiro. Sabe-se que o Brasil é o grande paraíso dos Bancos, segmen-to que se apropria dos maiores lu-cros. Conforme noticia a revista Exa-me, considerando “apenas o lucro atribuído a acionistas controladores, os bancos são os campeões entre as empresas com maiores lucros no pri-meiro trimestre de 2017”.

O fato é que 0,5 % da população ativa, com renda acima de 40 SM mensais (R$ 325.000 anuais) concen-tra 30% da renda total e 43 % de toda a riqueza declarada em bens e ativos financeiros, como revela recente es-tudo do IPEA, de autoria de Sergio W. Gobetti e Rodrigo Otavio Orair.

A concentração de renda brasilei-ra “supera qualquer outro país com informações disponíveis...” O déci-mo mais rico apropria-se de metade da renda das famílias brasileiras (52 %), o centésimo mais rico algo pró-ximo a um quarto (23,2 %), e o mi-

lésimo mais rico chega a um décimo (10,6 %) de toda a renda, índices que ultrapassam os limites considerados toleráveis para as sociedades demo-cráticas, segundo Piketty12. A linha de pobreza foi estipulada em R$ 140,00 per capita e por mês, e soma-ria 20, 8 milhões de brasileiros, além dos 9,30 milhões classificados como de pobreza extrema.

Enquanto isto, 23,4 % da popu-lação ativa vive com menos de 1 sa-lário mínimo. Fatos que nos levam a refletir sobre as disposições cons-titucionais relativas à dignidade e à igualdade.

Para 2017 o Banco Mundial es-tima um aumento da população vivendo na miséria. Teríamos en-tre 2,5 milhões e 3,6 milhões de “novos pobres”13 vítimas da ruptu-ra do Contrato Social – político e econômico acima referido. Segundo o estudo, “em média, esses brasilei-ros têm menos de 40 anos, moram nas zonas urbanas, concluíram pelo menos o Ensino Médio e estavam empregados em 2015, sobretudo no setor de serviços”.

Para 2017 o Banco Mundial

estima um aumento da

população vivendo na

miséria. Teríamos entre

2,5 milhões e 3,6 milhões de “novos pobres”

vítimas da ruptura do

Contrato Social – político e

econômico.

Parlatório . MARÇO/2018 . 13

Voltando à afirmação do Mande-la, falham as políticas públicas não somente nas prisões, uma das maio-res vergonhas nacionais. Aos despri-vilegiados cabem precários serviços essenciais, negam-se direitos sociais e políticos assegurados na consti-tuição. E aponta-se a privatização como solução mágica. Ultimamente, retiram-se garantias e proteção nas relações laborais, na oferta de em-pregos e oportunidades de inclusão efetiva. Alguns poucos acumulam privilégios, e a grande maioria se vê afastada dos resultados concretos da atividade econômica, assim como da participação política.

Neste artigo não nos cabe fazer mais uma lista dos direitos sonega-dos. Ao contrário, falta publicidade a uma lista dos direitos garantidos em nossa Constituição, e aqueles assegurados por tratados interna-cionais dos quais o Brasil é signa-tário. Para que sejam conhecidos e reivindicados, necessitaríamos de transparência, facilidade de acesso à administração e à Justiça, e isto não é desejado efetivamente, fica no dis-curso político da maioria dos candi-datos e dos partidos, assim como de administradores e gestores.

Para que não sejam conhecidos todos estes direitos, ações educativas que já foram chamadas de conscien-tização, foram criminalizadas como “politização”, e não foram retomadas desde a chamada “redemocratização”. Assim, uma forma de paternalismo conseguiu impedir um nível deseja-do de consciência política. Discur-sos políticos e uma mídia invasora e anestesiante escondem a compara-

ção entre as migalhas doadas à po-pulação marginalizada e as fortunas entregues ao sistema financeiro e bancário, numa espiral de endivida-mento desde o início dos anos 2000. A mesma espiral que sistematizou e ampliou o assalto aos cofres públi-cos, desviando somas fabulosas, que resultam na precariedade de servi-ços acima mencionada. Desvios sem precedentes, em sua maioria ainda sem punição nem transparência, que na origem revelam escárnio e falta de pudor, na tentativa de manter-se no poder, ou manter seus partidos, num sistema político-partidário cada vez mais insatisfatório.

Estamos diante de uma debacle, termo pouco conhecido, mas dicio-narizado. Com partidos esvaziados, sem programas consistentes, e com grande número de políticos do execu-tivo e do legislativo sob suspeita. As eleições de 2018 parecem comprome-tidas. Executivo e parte do Legislativo parecem conspirar para criminalizar os políticos, e a política. Um vácuo lhes ajudaria a manter-se no poder, prorrogar seus mandatos. Uma des-crença e desinteresse contribuiriam para que possam impunemente fazer as reformas que desejam (política, tributária, trabalhista, liberdade da imprensa, e toda a agenda acima in-dicada) em detrimento do nosso atual Pacto social-político e econômico.

Impressiona a pressa e a abran-gência da pauta. Em poucos meses, tenta-se fazer apressadamente, sem consulta à sociedade, o que normal-mente exige tempo, clareza, transpa-rência, consultas, debates, concerta-ção e procura de consenso.

Aqui cabe aos Advogados em pri-meira linha, juntamente com Promo-tores e Juízes, pelas razões indicadas no início do artigo, uma participação efetiva ao lado de todos os brasileiros que desejam lutar para aperfeiçoar e consolidar nossa Democracia. Com diálogo aberto, corrigindo eventuais desacertos da Constituição em vigor, mas sem perder o principal, todo o conjunto de direitos por ela assegu-rados e elencados de forma explícita.

OUTROS TANTOS DIREITOS A PRESERVAR

Múltiplos outros direitos garanti-dos pela nossa Constituição de 1988 restam a preservar, aperfeiçoar, con-solidar, tornar mais acessíveis, garan-tir. Já mencionamos que de forma deliberada, desde a redemocratiza-ção, não se retomou o trabalho de educação popular interrompido brutalmente pela Ditadura em 1964. Não houve – e parece não haver ain-da interesse em implantar políticas públicas que estimulem conhecer seus direitos, viabilizar o potencial de crianças, jovens e adultos marginali-zados pela democracia incompleta na qual vivemos, que é magnânima com uma minoria e avarenta com a gran-de maioria – em particular aqueles das camadas mais pobres.

A conscientização e a educação política, conforme Paulo Freire, pa-recem ser percebidos pelos podero-sos como algo que ameaça sua con-tinuidade no poder. Fica mais fácil implantar políticas assistencialistas, provisórias, dependendo do Gover-no. E não política de Estado, com continuidade assegurada.

7. POLÍTICAS PÚBLICAS: DIREITOS SONEGADOS, EDUCAÇÃO BÁSICA E CONSCIENTIZAÇÃO

14 . Parlatório . MARÇO/2018

Nas últimas décadas a prioridade foi criar programas e políticas assis-tencialistas, programas compensa-tórios. Que geram dependência, e gratidão, muitas vezes superficial e inconsciente. A qual não permite identificar a precariedade da ajuda, as ameaças aos seus próprios direitos. E sobretudo evita estimular níveis de consciência crítica – no sentido defi-nido pelo saudoso educador. Nem o fato concreto de que os mesmos Go-vernos que os assistem com migalhas, direcionam somas fabulosas para o sistema financeiro, além da corrup-ção agora mais visível e que começa a ser quantificada.

Vejamos alguns direitos consti-tucionais ameaçados, que poderiam fazer parte de uma agenda. De uma lista de prioridades que seria assumi-da por grupos e pessoas com maior sensibilidade e maior qualificação para cada área, numa ação coletiva e multidisciplinar. Atividades que permitiriam uma ação transforma-dora na qual podem destacar-se Ad-vogados, dos mais antigos aos mais jovens, e estudantes de Direito, em parceria com associações e entidades da sociedade civil. A listagem não é exaustiva, nem a ordem de sua apre-sentação significa prioridades.

1. Desde a redemocratização cobra--se uma reforma do antigo Estatuto do Estrangeiro, elaborado em 1980, na vigência do AI-5 e inspirado na conhecida “Doutrina da Segurança Nacional”. Assunto que representa uma das lacunas da própria Consti-tuição de 1988.

Desde o Governo de Sarney, não se deu prioridade, apesar de múlti-plos projetos de reforma.

Uma primorosa Lei da Migração, foi finalmente aprovada pelo Con-gresso em Abril de 2017 e enviada à Presidência, no mês seguinte. O pro-jeto que teve origem no Senado e foi aprovado também na Câmara de De-putados, foi contemplado com 30 ve-tos. Um inestimável desperdício. Os vetos desfiguraram a laboriosa cons-trução parlamentar, amplamente dis-cutida com a sociedade, cuja coerên-cia e alcance a transformaram numa das mais avançadas leis hoje dispo-níveis sobre o assunto. Sem os vetos, poderia ter sido sancionada perante o corpo diplomático, e comunidades de estrangeiros aqui residentes, com participação direta do novo Secretá-rio Geral da ONU. Com os vetos, não houve maiores menções. Evidenciou vergonhosa e imerecida discrição.

2. Quanto aos Salários, desde o Salá-rio Mínimo até os mais altos salários na função pública, muito resta a fa-zer, e muito temos a temer. De um lado o risco de achatar ainda mais a base da pirâmide, vista a lógica im-placável do novo modelo econômico que tenta impor-se sem ouvir a so-ciedade. Do outro a impune elevação de salários nababescos, e vantagens cumulativas, que lembram a antiga expressão “O céu é o limite”.

Estudos, análise, transparência, poderão nos conduzir a aperfeiço-ar esta questão, numa democracia que recomenda solidariedade e mais igualdade. Na maior parte dos países o chamado leque salarial é natural-mente de 1 a 7, o topo da Adminis-tração percebendo remunerações 7 vezes superior à base. No Brasil temos um leque que ultrapassa o inimaginável: remunerações que re-

Na maior parte dos países

o chamado leque salarial é

naturalmente de 1 a 7, o topo da Administração

percebendo remunerações 7 vezes superior à

base. No Brasil temos um leque que ultrapassa

o inimaginável: remunerações

que representam mais de 50 vezes

a remuneração básica.

Parlatório . MARÇO/2018 . 15

presentam mais de 50 vezes a remu-neração básica.

a) Aqui teríamos uma primeira prio-ridade, um primeiro item para um novo Pacto Social. Propostas devem ser criadas, e já circula uma delas: a renúncia, por uns 10 anos, quando dos aumentos salariais que tentam corrigir a inflação ou remunerar produtividade. Os do topo aceita-riam que se aplique a totalidade do novo índice para os salários da base, e “apenas um décimo” aos salários do topo da pirâmide. Por exemplo, num improvável aumento de 10% para o próximo salário mínimo, este passaria de R$ 937,00 para R$ 1.370,00. Uma diferença de R$ 93,70 Já os que recebem R$ 50.000,00, aceitariam “apenas um décimo”. Na mesma proporção, o novo salário seria R$ 50.550,00, e a diferença de R$ 550,00. Ao longo de um certo pe-ríodo, progressivamente, se chegaria a um leque salarial menos desigual.

b) Uma outra prioridade, que parece inadiável. Respeitar o chamado “teto constitucional”, constantemente des-moralizado por práticas criativas, recurso a privilégios, visão corpo-rativa, e até decisões judiciais. Seria necessário novamente um Pacto? Uma renúncia de direitos, para evitar insegurança jurídica e pesadas ações futuras contra o Estado? Ou simples-mente, um Pacto moral para fazer valer efetivamente o disposto no Art. 37, XI, da Constituição Federal?

c) No setor privado, um esforço par-ticular parece necessário. Em plena economia globalizada, aplicamos salários básicos e até mesmo algu-

mas obrigações trabalhistas que comparativamente favorecem as empresas brasileiras e as distanciam dos custos da concorrência. Onde a real competitividade de nossas em-presas, que vendem quase sempre mais caro seus produtos similares aos europeus ou norte-americanos, os quais pagam salários, bens e ser-viços num outro nível de custos e remuneração? Não duvidemos que o novo modelo de pacto originado no Consenso de Washington, que se pretende importar e impor, fará o impossível para esconder números e fatos, e apresentar versões que não correspondem a toda a verdade.

3. As políticas fiscais podem vir a ser um outro ponto de debate e constru-ção laboriosa. O novo modelo pre-tende implantar os mesmos arrochos que geraram crises profundas entre “gregos e troianos”, já mencionados no início. Respeitando a Constitui-ção, cabe sim ao Estado um papel de solidariedade para com os mais ne-cessitados. É o sentido do Pacto em vigor, que se traduz em nossa Cons-tituição. É o sentido da democracia

que construímos, pela qual lutamos.

4. Privatizar as políticas sociais, des-conhecendo a dignidade e os Direi-tos Humanos, deveria estar fora do programa. Mas é um dos itens sobre os quais teremos provavelmente as maiores dificuldades.

5. Visto o anuncio das 57 privatiza-ções anunciadas, inclusive da Casa da Moeda e da Eletrobrás, temos uma longa lista que necessita aprofunda-mento. Começando por identificar a natureza de cada uma delas, e como aplicar os princípios constitucionais e do Pacto social-econômico e político vigente, sabendo que não é impossível que um rolo compressor venha mais uma vez com imposições de prazo e de forma. Podemos esperar, entre-tanto que não haverá mais clima para difundir dados enganosos, e também para tentar novamente fazer de cada privatização uma forma já manjada de enriquecimento ilícito, de trans-ferência de recursos públicos para apadrinhados. Ou de recursos sub-vencionados oriundos do BNDES, do FAT ou outras fontes conhecidas.

16 . Parlatório . MARÇO/2018

6. Finalmente a chamada Reforma Política é um dos maiores desafios. E será necessário debater sobre o financiamento das campanhas elei-torais, a necessária renovação dos partidos e dos seus candidatos, a limitação do número de mandatos, e uma longa lista que responda aos anseios da sociedade e às exigências da democracia.

Sem criminalizar a política, nem os partidos, parece evidente que exis-tem rejeições, tentativas de queimar candidaturas por antecipação, divi-sões artificiais do eleitorado para fide-lizar sem discutir o essencial, e outras artimanhas de experientes marque-teiros, publicitários, dirigentes de partidos e outras “cobras criadas”.

Se impõe um novo formato de

campanha eleitoral, sem artificialis-mos e custos elevados. Sem recurso às possibilidades cruzadas de desvios de dinheiro, com verdadeira trans-parência na origem dos financia-mentos, e em seus montantes – entre outros itens.

Existem propostas renovadoras, até mesmo a possibilidade de acei-tar “candidatos sem partido”14 – que seriam asseguradas pelo Art. 23 e 29 do Pacto de San José da Costa Rica, dentre todas as formas que devem ser implantadas para renovar e iden-tificar candidatos mais próximos dos anseios e necessidades do povo e da sociedade.

Felizmente temos políticos expe-rientes e comprometidos que pode-rão oxigenar as alternativas a propor.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Bra-sil. Brasília, 1988.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de inconstitucionalidade nº 5633/DF. Relator: Ministra Rosa Weber, 2016. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=5112200>. Acesso em: 21 set. 2017.

Existem propostas

renovadoras, até mesmo a possibilidade

de aceitar “candidatos

sem partido”.

14. ARE 1.054.490.

Parlatório . MARÇO/2018 . 17

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de in-constitucionalidade nº 5643/DF. Relator: Ministra Rosa Weber, 2017. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?inciden-te=5119673>. Acesso em: 21 set. 2017.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de in-constitucionalidade nº 5658/DF. Relator: Ministra Rosa Weber, 2017. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?inciden-te=5132872>. Acesso em: 21 set. 2017.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de in-constitucionalidade nº 5680/DF. Relator: Ministra Rosa Weber, 2017. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?inciden-te=5157574>. Acesso em: 21 set. 2017.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de in-constitucionalidade nº 5715/DF. Relator: Ministra Rosa Weber, 2017. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?inciden-te=5203351>. Acesso em: 21 set. 2017.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de in-constitucionalidade nº 5734/DF. Relator: Ministra Rosa Weber, 2017. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?inciden-te=5215453>. Acesso em: 21 set. 2017.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de in-constitucionalidade nº 5766/DF. Relator: Ministro Ro-berto Barroso, 2017. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?inci-dente=5250582>. Acesso em: 21 set. 2017.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de segu-rança nº 34989/DF. Relator: Ministra Rosa Weber, 2017. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=5223639> Aces-so em: 21 set. 2017.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso extraor-dinário com agravo nº 1054490/RJ. Relator: Ministro Roberto Barroso, 2017. Disponível em: <http://www.stf.

jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?inci-dente=5208032> Acesso em: 21 set. 2017.

GOBETTI, S. W.; ORAIR, R. O. Tributação e distribuição da renda no Brasil: novas evidências a partir das decla-rações tributárias das pessoas físicas. Working Paper, Brasília, n. 136, fev. 2016. Disponível em: <http://www.ipc-undp.org/pub/port/WP136PT_Tributacao_e_dis-tribuicao_da_renda_no_Brasil_novas_evidencias_a_partir_das_declaracoes_tributarias_das_pessoas.pdf>. Acesso em: 20 set. 2017.

OAB e entidades divulgam carta aberta sobre a reforma da previdência. OAB, Brasília, fev. 2017. Disponível em: <http://www.oab.org.br/noticia/54702/oab-e-entidades--divulgam-carta-aberta-sobre-a-reforma-da-previden-cia>. Acesso em: 21 set. 2017.

PELLEGRINI, J. A. Dívida Pública Brasileira: Mensura-ção, composição, evolução e sustentabilidade. Senado Federal: Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consul-toria Legislativa, Brasília, n. 226, fev. 2017. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos--legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td226>. Acesso em: 19 set. 2017.

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SOUZA, Herbert José de (BETINHO) - Poder do cida-dão. Café com Sociologia. Disponível em: <http://cafe-comsociologia.com/2010/06/poder-do-cidadao-texto--de-herbet-de.html>. Acesso em: 19 set. 2017.

WORLD BANK GROUP. Salvaguardas contra a rever-são dos ganhos sociais durante a crise econômica no brasil. Washington, 2017. 19 p.

18 . Parlatório . MARÇO/2018

Artigo

Como resultado dessa desespe-rança compartilhada, a participação política dos cidadãos nas eleições tem caído, bem como tem sido in-crementada a ideia de antipolítica (o que é político é visto como algo ruim, como errado e como elemento que para nada serve).

Há uma demanda por novos no-mes capazes de solucionar a conjun-tura posta. Nomes, de preferência, não ligados historicamente ao que se rotula como político. Nos dizeres de Bauman, a sociedade parece esperar por “homens de pulso” aptos a rea-lizarem o que os políticos, o Estado Nação e os instrumentos democrá-ticos tradicionais são incapazes de fazer1.

A crise democrática atual é, nos dizeres de Bauman, a crise do Es-tado Nação, cuja criação e ideias basilares não foram estruturadas a partir de um mundo interconectado e globalizado. Um candidato à che-fia de Executivo, em sua campanha,

tende a prometer fazeres com foco nos interesses do país que irá gerir e, uma vez eleito, dificilmente cum-prirá com o prometido, pois admi-nistrará um país que deve satisfação não só aos seus sujeitos internos, mas também ao mercado financeiro internacional. Como resultado des-sa soma, os problemas perduram, assim como a descrença da popu-lação nas habilidades dos instru-mentos tradicionais de exercício do poder para resolução de seus pro-blemas mais basilares.

No caso brasileiro, a crise do Es-tado é acentuada pelas peculiarida-des de seu presidencialismo. É jus-tamente esse o ponto de análise do presente artigo. Observando a crise democrática atual, o texto se propõe a analisar o presidencialismo nacio-nal e seus principais dilemas. Para isso, faz descrição de trechos do di-reito constitucional positivo ligados ao assunto, bem como abordagem crítica interdisciplinar do tema.

O Presidencialismo Brasileiro no Contexto

da Crise Política e a Fragilidade da

Democracia Nacional

Mariana de SiqueiraProfessora Adjunta do Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Doutora em

Direito Público pela UFPE. Correio eletrônico: [email protected]

1. BAUMAN, Zigmunt. Bauman examina crise da internet e da política. Disponível em: https://ou-traspalavras.net/posts/bauman-examina-crise-da--internet-e-da-politica/ Acesso em 18 de setembro de 2017.

INTRODUÇÃO

Nos últimos anos tem sido usual a menção à existência de uma crise política ou democrática nacional. Os sentimentos coleti-vos dominantes são o da descren-ça nas atuações do Legislativo e do Executivo e o da incapacidade de seus membros em resolverem os problemas institucionais e so-ciais brasileiros.

Parlatório . MARÇO/2018 . 19

2. Neste sentido: “Além da criação do PSDB e do plebis-cito de 1993, outro fruto do debate em torno do parla-mentarismo na Constituinte teria sido a instituição das medidas provisórias . É o que observa o senador Pedro Simon (PMDB-RS), que, à época, governava o estado do Rio Grande do Sul.” Disponível em: http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2008/09/25/na-constituinte-ten-tativa-de-adocao-do-parlamentarismo-fracassou Acesso em 18 de setembro de 2017.

3. NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. São Pau-lo: Método, 2011. p. 699

4. É oportuno mencionar a existência do Parlamentaris-mo às avessas no período imperial. O modelo é de tal ma-neira rotulado pela existência do poder moderador que mitigava sobremaneira o poder do parlamento. Para saber mais ler: BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitu-cional. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 362 - 364

5. Disponível em:www.justicaeleitoral.jus.br/arquivos/plebiscito-de-1993. Acesso em 18 de setembro de 2017.

2. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E O ATUAL PRESIDENCIALISMO BRASILEIRO

O texto original da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 adotou o presidencialismo como sistema de governo, de modo a concentrar na chefia do executivo as funções de chefia do estado e de chefia de governo. A inspiração es-tadunidense vivida pelos autores da Constituição republicana de 1891 foi mantida décadas depois pelo consti-tuinte de 1988.

O presidencialismo é habitual-mente definido como modelo de sis-tema de governo que reúne nas mãos de um só sujeito as funções de chefiar o Estado e de governar, a ele compe-tirá, por exemplo, a representação da unidade estatal, o dever de proteger a continuidade do Estado, a estrutura-ção das políticas do Estado e a execu-ção de sua administração cotidiana.

É importante mencionar, espe-cialmente no atual contexto de crise e de reflexão sobre mudanças na es-trutura política nacional, que a ado-ção do presidencialismo pelos mem-bros componentes da Assembleia Constituinte brasileira de 1988 não foi palco de unanimidade. Relatos históricos apontam a existência de um forte bloco defensor da positi-vação constitucional do parlamenta-

rismo. Inspirados na experiência de alguns países europeus, alguns dos constituintes, especialmente no iní-cio dos trabalhos da Assembléia, ten-taram aprovar o parlamentarismo no Brasil. Há quem diga, inclusive, que a atual existência de medidas pro-visórias no texto da Constituição é verdadeiro reflexo remanescente das lutas travadas pelo bloco constituinte defensor do parlamentarismo2.

O parlamentarismo é tradicio-nalmente conceituado como sistema político que se opõe ao presidencia-lismo, derivando essa oposição pre-cipuamente do fato de o parlamenta-rismo não viabilizar a concentração das funções de chefia de estado e de chefia de governo nas mãos de um só indivíduo. No parlamentarismo é usual que a chefia de governo fique a cargo do primeiro ministro ou de um membro do parlamento e que a chefia de estado seja exercida pelo monarca ou presidente, as variações existirão conforme o exato modelo de parla-mentarismo adotado pelo país3.

O Brasil, a despeito da polêmica travada na constituinte de 1988, não viveu em sua história constitucional reiteradas experiências parlamenta-ristas, muito pelo contrário, com o

fim do Império e a adoção da Repú-blica, o país entrou no universo presi-dencialista e dele não mais se afastou4.

De todo modo, diante das dis-cussões iniciais realizadas na Cons-tituinte e da ausência de consenso quanto à adoção do presidencialis-mo, o texto do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias trou-xe em seu art. 2º a previsão de um plebiscito popular futuro para a confirmação das escolhas constitu-cionais realizadas quanto à forma de governo e ao sistema de governo. Tal plebiscito foi executado no dia 7 de setembro de 1993 e confirmou a escolha realizada anos antes pela As-sembléia Constituinte.

Dados disponibilizados no sítio eletrônico da justiça eleitoral de-monstram a vitória numérica maciça da força da tradição. No âmbito da forma de governo, a República ven-ceu com o percentual de 66,26% dos votos e, no que tange ao sistema de governo, o presidencialismo saiu vi-torioso com o percentual de 55,67% dos votos5.

“A atual existência de medidas provisórias no texto da Constituição é verdadeiro reflexo remanescente das lutas travadas pelo bloco constituinte defensor do parlamentarismo”SENADOR PEDRO SIMON (PMDB-RS)

20 . Parlatório . MARÇO/2018

Confirmada em plebiscito a ado-ção do presidencialismo, passados aproximados 29 anos da publicação do texto de 1988, é possível reunir de modo breve algumas características basilares do presidencialismo brasi-leiro positivado.

No Brasil, a chefia do Executivo federal é exercida pelo Presidente da República com o auxílio dos Minis-tros de Estado, as suas competências constitucionais são múltiplas e va-riadas, cabendo ao Presidente, por exemplo, propor projeto de emenda à Constituição, editar medidas pro-visórias, propor iniciativa de leis or-dinárias e complementares, indicar os nomes de ministros para cargos em tribunais superiores, indicar os nomes de dirigentes de agências re-guladoras, exercer a direção superior da administração federal, manter relações com estados estrangeiros, celebrar tratados internacionais, dentre outras inúmeras atividades, estando as suas atribuições privati-vas escritas de modo claro no art. 84 da Constituição Federal.

Diante do que se encontra redi-gido no texto constitucional, o Pre-sidente, recebedor de múltiplas tare-fas, é devedor também de satisfações sobre os seus fazeres e abstenções. As inúmeras atuações presidenciais se sujeitam à controle e fiscalização, podendo ser efetuada a responsa-bilização do Presidente em caso de descumprimento dos deveres cons-titucionais que lhe são direcionados. O impeachment é a mais emblemá-tica forma de responsabilização pre-sidencial, especialmente diante do

resultado possível de afastamento definitivo do cargo daquele que foi eleito para ocupá-lo por lapso tem-poral definido na Constituição.

Ainda no que diz respeito ao di-reito constitucional positivo, con-vém mencionar a possibilidade de reeleição presidencial. Tal hipótese não foi prevista no texto original constituinte, sendo fruto de emenda constitucional posterior. No mês de junho de 2017, foram completados 20 anos da aprovação dessa emenda. Hoje, portanto, é possível a reeleição presidencial para mais um mandato subsequente.

Saindo do direito positivo e adentrando em análise crítica de ordem interdisciplinar, é possível dizer que o Brasil, seguindo a linha de muitos dos países latino-america-nos, personifica e pessoaliza a gestão pública de modo bastante forte. O Presidente da República é a própria personificação do poder. Nesse sen-tido, o modo de exercício das atri-buições do Executivo brasileiro é rotulado criticamente por alguns de seus estudiosos como “presidencia-lismo imperial”6. Como consequên-cia do exposto, a agenda política do Congresso é fortemente influencia-da pela pauta presidencial7.

Em contrapartida à adoção de um “presidencialismo imperial” tipi-camente estadunidense, o Brasil pos-sui um modelo legislativo pluriparti-dário e um sistema de representação proporcional para a composição da Câmara dos Deputados. Tais fatos, em conjunto, geram uma dependên-cia da Chefia do Executivo com rela-

3. BREVE PANORAMA DO EXECUTIVO FEDERAL A PARTIR DO TEXTO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E SUAS VIVÊNCIAS

O impeachment é a mais

emblemática forma de

responsabilização presidencial,

especialmente diante do resultado

possível de afastamento definitivo do

cargo daquele que foi eleito

para ocupá-lo por lapso temporal

definido na Constituição.

6. FERNANDES, Florestan. O presidencialismo im-perial. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/118975/20_31OUT88%20-%200013.pdf?sequence=3 Acesso em 18 de setem-bro de 2017.

7. BITTENCOURT, Fernando Moutinho Ramalho. Relações executivo-legislativo no presidencialismo de coalizão: um quadro de referência para estudos de orçamento e controle. Senado: 2012. p. 14-15.

Parlatório . MARÇO/2018 . 21

ção ao Legislativo. Para a implemen-tação de muitas das suas promessas de campanha, o Executivo depende da obtenção de maioria no Legisla-tivo. Aí está a “jabuticaba” presiden-cial ou o dilema institucional, como

disse Sérgio Abranches há alguns anos8. A conjugação de tais fatores e a não adoção do parlamentarismo é peculiaridade Tupiniquim. Sobre ela e suas consequências discorre o tópi-co a seguir.

“A formação do governo, a elaboração de seu programa de ação e do calendário negociado de eventos têm impacto direto sobre a estabilidade futura.”SÉRGIO ABRANCHES

8. ABRANCHES, Sérgio Henrique Hudson de. Presiden-cialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro. Vol. 31, n. 1. 1988. p. 5 - 34.

9. ABRANCHES, Sérgio Henrique Hudson de. Presiden-cialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro. Vol. 31, n. 1. 1988. p. 5 - 34.

10. ABRANCHES, Sérgio Henrique Hudson de. Presi-dencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro. Vol. 31, n. 1. 1988. p. 27-28.

11. ABRANCHES, Sérgio Henrique Hudson de. Presi-dencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro. Vol. 31, n. 1. 1988. p. 19.

4. O PRESIDENCIALISMO BRASILEIRO É DE COALIZÃO? O QUE ISSO SIGNIFICA?

Sérgio Abranches, em artigo pu-blicado em 1988 e denominado “Pre-sidencialismo de Coalizão: O Dilema Institucional Brasileiro”9, realizou cuidadosa análise da realidade na-cional e fez conjecturas sobre o por-vir no contexto da redemocratização brasileira. Em suas palavras, a conju-gação dos itens peculiares nacionais produz um tipo ímpar de práticas políticas realizadas para a produção de maiorias (coalizões). No que diz respeito às coalizões, ele explica:

A formação de coalizões envolve três momentos típicos. Primeiro, a constituição da aliança eleitoral, que requer negociação em torno de diretivas programáticas míni-mas, usualmente amplas e pouco específicas, e de princípios a se-rem obedecidos na formação do governo, após a vitória eleitoral. Segundo, a constituição do gover-no, no qual predomina a disputa por cargos e compromissos rela-tivos a um programa mínimo de governo, ainda bastante genérico. Finalmente, a transformação da aliança em coalizão efetivamente governante, quando emerge, com toda força, o problema da formu-lação da agenda real de políticas, positiva e substantiva, e das con-

dições de sua implementação. É o trânsito entre o segundo e o ter-ceiro momentos que está no ca-minho crítico da consolidação da coalizão e que determina as con-dições fundamentais de sua conti-nuidade. A formação do governo, a elaboração de seu programa de ação e do calendário negociado de eventos têm impacto direto sobre a estabilidade futura10.

Sobre as peculiaridades de nosso presidencialismo, diz Abranches:

É nas combinações mais frequentes entre características institucionais, e não em sua presença isolada, que a lógica e a especificidade de cada modelo emergem. É também aí que se revela a natureza do regi-me até agora praticado no Brasil. Não existe, nas liberais-democra-cias mais estáveis, um só exemplo de associação entre representação proporcional, multipartidarismo e presidencialismo11.

Com a coalizão para a obtenção das maiorias no Congresso, o go-verno objetiva garantir estabilidade para realizar as reformas que consi-dera necessárias e impedir aquelas que sejam contrárias ao seu projeto

22 . Parlatório . MARÇO/2018

político. As práticas políticas para a conquista dessas maiorias acabam por envolver a oferta de cargos po-líticos, cargos em comissão, verbas para os entes federados de origem dos parlamentares, além de ilícitos penais, atos de improbidade e outras formas de corrupção12.

Como tal modalidade de acor-do não é formal, como a pauta a ele inerente oscila, este modelo fomen-ta, de tempos em tempos, as tensões entre Legislativo e Executivo, espe-cialmente num contexto de reelei-ções. Considerando as reeleições, a dependência do Executivo para com o Legislativo aumenta e o “preço” do apoio político também.

Diante da personificação do po-der na figura forte do Presidente, é para ele que se direcionam as ten-sões do modelo e suas consequên-cias. O recente processo de Impea-chment deixou clara a conformação do presidencialismo de coalizão no Brasil e o modo de operacionaliza-ção prática dos acordos.

O controle do Executivo pelo Le-

gislativo, ressalte-se, é algo positivo, a dependência do Executivo para com o Legislativo não é sinônimo neces-sário de crise. O controle visa produ-zir equilíbrio e, em tese, é visto como algo positivo para a democracia. Os problemas em tal contexto nascem não do controle lícito e coerente com o direito positivado, mas sim a partir das práticas cotidianas efetivadas em desrespeito a preceitos éticos basila-res e ao próprio direito positivo. Há, portanto, uma notável fragilidade nas democracias que assentam as suas bases na pessoa do chefe do executi-vo. Em tais realidades, a perspectiva democrática tende a se fragilizar du-rante os processos de divergência en-tre o Executivo e o Legislativo13.

A história presidencial (ou vice--presidencial) do Brasil reforça bem as ideias expostas. De 1926 até hoje, dentre 25 presidentes da República, apenas 5 foram eleitos pelo voto po-pular e permaneceram no posto até o fim: Eurico Gaspar Dutra, Juscelino Kubitschek, Lula, FHC e Dilma em seu primeiro mandato14.

12. BITTENCOURT, Fernando Moutinho Ramalho. Relações executivo-legislativo no presidencialismo de coalizão: um quadro de referência para estudos de orçamento e controle. Senado: 2012. p. 17.

13. GARGARELLA, Roberto. Constitucionalismo latino-americano: a necessidade prioritária de uma reforma política. RIBAS, Luiz Otávio (org.) Consti-tuinte exclusiva. Um outro sistema político é possí-vel. São Paulo: Expressão Popular, 2014. p. 13 – 26.

14. Disponível em: http://exame.abril.com.br/brasil/so-5-presidentes-eleitos-completaram-o-mandato--em-90-anos/ Acesso em 18 de setembro de 2017.

De 1926 até hoje, dentre

25 presidentes da República,

apenas 5 foram eleitos pelo

voto popular e permaneceram

no posto atéo fim.

Parlatório . MARÇO/2018 . 23

15. ABRANCHES, Sérgio Henrique Hudson de. Presi-dencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro. Vol. 31, n. 1. 1988. p. 31.

16. Nesse sentido ver: PINTO, Luís Costa. Judiciário quer ser Poder Moderador; STF já ignora freios e contrapesos. Disponível em: https://www.poder360.com.br/opiniao/justica/judiciario-quer-ser-poder-moderador-stf-ja-ig-nora-freios-e-contrapesos/ Acesso em 18 de setembro de 2017.

17. A expressão aparece entre aspas por corresponder em exatidão ao termo utilizado pelo movimento que defende tal procedimento.

18. DALLARI, Dalmo de Abreu. Constituição e Consti-tuinte. São Paulo: Saraiva, 2010. p.70.

5. O CONTROLE POLÍTICO DA COALISÃO E O JUDICIÁRIO

Sérgio Abranches, no texto aqui já mencionado, expôs a necessidade de ser criado, na Constituição que viria a ser publicada, órgão capaz de controlar essas distorções, essas in-terferências indevidas, para além dos checks and balances tradicionais. A ideia era de algo diferente. Ele falava em um controle político de tal con-juntura, a exemplo do que acontece no exterior15.

O texto constitucional, todavia, não adotou expressamente tal dire-triz.

Como resultado disso, hoje é pos-sível notar um protagonismo do Ju-diciário no controle do Legislativo e Executivo. No caso brasileiro, diante da inafastabilidade da jurisdição pre-vista na Constituição, esse papel se reforça. No âmbito do tema da coa-

lizão, no entanto, não parece ter sido dado ao Judiciário pelo constituinte o papel explícito e habitual de deci-dir politicamente os conflitos entre Legislativo e Executivo.

De todo modo, as polêmicas e dúvidas estruturadas ao redor das re-lações entre Legislativo e Executivo acabam batendo às portas do Supre-mo Tribunal Federal e é nessa seara que se vê fortalecido o atual debate sobre a “crise institucional” entre o Judiciário e o Legislativo.

Sem dúvidas, o Judiciário pos-sui papel fundamental para garan-tir o funcionamento das democra-cias contemporâneas, no entanto, o modo como tem executado as suas atribuições fomenta críticas das mais diversas, havendo quem diga que o Judiciário corresponde ao poder

moderador da atualidade por igno-rar os mecanismos típicos dos freios e contrapesos16.

O Judiciário acaba aparecendo como o Hércules contemporâneo com “doze trabalhos” árduos a rea-lizar. Esse panorama foi previsto pe-los estudiosos da conjuntura, porém não é tido como desejável de modo permanente, especialmente pelo de-sequilíbrio que representa.

O que se nota diante do quadro brasileiro é que o Judiciário sozinho, a despeito das eventuais decisões que profere, não é capaz de controlar o dilema institucional nacional. Fica pendente, portanto, o questiona-mento: O que fazer para solucionar o que hoje já constatamos como inde-sejável numa perspectiva de demo-cracia equilibrada?

6. COMO RESOLVER ESSE DILEMA DEMOCRÁTICO?

Atentando para as crises políticas que se revelam periodicamente no país, são inúmeras as ideias de mu-dança sugeridas, há os que desejam a volta da monarquia, os que defen-dem o retorno da ditadura, os que querem o parlamentarismo como caminho da salvação e os que susten-tam a necessidade de manutenção do presidencialismo, porém com modi-ficações estruturais profundas.

Aqui, pela contemporaneidade do debate, irei me ater ao tema da mudança através da realização de uma “constituinte soberana, parcial e exclusiva”17.

Dalmo de Abreu Dallari, em livro destinado ao tema Constituição e

Constituinte, expõe:

Se a crise tiver como um de suas causas a inadequação da Cons-tituição, nem assim se deve abrir mão da prática constitucional. A solução, caso não possa ser en-contrada na Constituição vigente, será a revisão desta ou então a convocação de uma Assembleia Constituinte para elaborar uma nova Constituição. É indispensá-vel, entretanto, que não se admi-ta um vazio constitucional, um intervalo em constituição durante o qual o povo fique sujeito a um poder arbitrário e absoluto18.

24 . Parlatório . MARÇO/2018

Para o autor, portanto, em tem-pos de crise, é sim possível cogitar mudança constituinte, mesmo dian-te da insegurança que isso possa vir a representar.

Analisando a história de reformas constitucionais do texto de 1988, é possível concluir que o redesenho institucional nacional não é novida-de de 2017. O argumento da ingover-nabilidade motivou (e ainda motiva) mudanças textuais substanciais no passado. Tivemos uma sutil revisão do texto constitucional que acabou por motivar o nada sutil movimento posterior de reformas. No Governo FHC foram 35 emendas constitucio-nais, no Governo Lula 28 emendas, no Governo Dilma 24 e no Governo Temer, até a data de finalização deste texto, 3 emendas.

Sem sombra de dúvidas, o cal-canhar de Aquiles da CF de 1988 reside na previsão de um presiden-cialismo imperial e de coalizão. As crises dele advindas e o argumento da “ingovernabilidade” são os cons-tantes motivadores de mudanças textuais constitucionais. Analisando o caso argentino, Sampay expõe que o calcanhar de Aquiles da reforma constitucional de Perón foi a manu-tenção de um presidencialismo forte, centralizado e personalizado no Exe-cutivo. Ele só se manteve no poder enquanto foi conveniente para as oligarquias. “A Constituição morreu igual a Aquiles, em uma idade preco-ce, em mãos de seu inimigo”19.

Justamente por isso, aponta forte na atualidade o argumento da refor-ma política.

Onde o poder presidencial é o úni-co guardião do poder popular, o

povo dificilmente será respeitado e escutado.Sem mudanças na organização básica do poder a promoção de reformas sociais através da consa-gração de novos direitos termina por não funcionar20.

O hiperpresidencialismo, como afirma Gargarella, afoga o empo-deramento popular prometido pe-las novas constituições (ROBERTO GARGARELLA, p. 24).

As crises estruturadas acabam por fomentar o sentimento de an-tipolítica e com esse sentimento as perdas democráticas se fazem enor-mes. Os políticos são vistos como vilões, o Estado como o responsável pelas desigualdades, o sentimento é o de que a corrupção compensa e de que o voto não faz diferença.

Sobre o futuro, diante da dimi-nuição global do índice de participa-ção popular nas eleições, começam a nascer teorias pós democráticas que refletem sobre a democracia sem povo.

No geral, os analistas da conjun-tura tendem a ver esse vácuo demo-crático como transitório. O que dele virá não se sabe. O resultado certa-mente será consequência das esco-lhas do presente e, como de costume, tal revelado pela história, as oligar-quias tradicionais não farão as esco-lhas necessárias para a reformulação das estruturas.

Como operacionalizar reformas? Como assegurar as mudanças que são demandadas em nome da esta-bilidade democrática, do fim da cor-rupção e do término do desequilíbrio entre os poderes? Como garantir que isso ocorra quando se sabe do mo-

19. SAMPAY apud GARGARELLA, Roberto. Cons-titucionalismo latino-americano: a necessidade prioritária de uma reforma política. RIBAS, Luiz Otávio (org.) Constituinte exclusiva. Um outro sis-tema político é possível. São Paulo: Expressão Popu-lar, 2014. p. 26.

20. SAMPAY apud GARGARELLA, Roberto. Cons-titucionalismo latino-americano: a necessidade prioritária de uma reforma política. RIBAS, Luiz Otávio (org.) Constituinte exclusiva. Um outro sis-tema político é possível. São Paulo: Expressão Popu-lar, 2014. p. 26.

Os políticos são vistos

como vilões, o Estado como o

responsável pelas desigualdades, o

sentimento é o de que a corrupção

compensa e de que o voto nãofaz diferença.

Parlatório . MARÇO/2018 . 25

dus operandi habitual do legislativo? Ele fará essas reformas via emenda constitucional? E os retrocessos que podem vir daí?

É exatamente no contexto de tais temores, que alguns defendem a “constituinte soberana, parcial e ex-clusiva”. Ela seria parcial por prote-ger o núcleo essencial da atual cons-tituição, exclusiva por ser destinada apenas às modificações pontuais do texto constitucional apontadas como essenciais e soberana por ser formada por sujeitos eleitos pelo voto popular com capacidade de instituir regras novas. Quem seria esses sujeitos? Na proposta defendida pelo movimento, visando impedir mais do mesmo, se defende que os candidatos a mem-bros constituinte sejam novos nomes não ocupantes de mandatos no Le-

gislativo e que fiquem impedidos por determinado lapso temporal à novas candidaturas políticas.

Será a constituinte feita? Caso re-alizada, será efetuada com segurança e em defesa real das instituições de-mocráticas? Essas são perguntas que subsistem sem respostas precisas e que acabam por gerar temores e opo-sições à ideia em si.

PARA ONDE IRÁ O LEVIATÃ? BREVES CONCLUSÕES

A partir dos dizeres de Gramsci, é possível dizer que estamos numa fase de interregno. Quando o velho morre e o novo não nasce, segundo Gramsci, neste interregno ocorrem os fenômenos mórbidos mais di-versos. A democracia representativa tradicional e o modelo presidencial

brasileiros são focos de crises, vistos como insuficientes e como necessá-rios objetos de mudanças e aperfei-çoamentos. Estamos no espeço entre o reconhecimento da possível morte do tradicional e das incertezas quan-to ao novo que virá. É preciso conter os fenômenos trágicos que queira se estruturar por hora e racionalizar as mudanças do agora.

Não é possível prever o futuro absolutamente, há espaços para re-formulações sábias, populares, efi-cientes. Minimizar os poderes das oligarquias tradicionais, equilibrar as competências, reduzir privilégios his-tóricos. O que sabe, ainda que pen-dentes dúvidas a respeito de como proceder, é que é preciso retirar da República a ser moldada os resquí-cios de Império que nela subsistem.

ABRANCHES, Sérgio Henrique Hudson de. Presiden-cialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro. Vol. 31, n. 1. 1988. p. 5 – 34.

BAUMAN, Zigmunt. Bauman examina crise da inter-net e da política. Disponível em: https://outraspalavras.net/posts/bauman-examina-crise-da-internet-e-da-poli-tica/ Acesso em 18 de setembro de 2017.

BITTENCOURT, Fernando Moutinho Ramalho. Rela-ções executivo-legislativo no presidencialismo de coa-lizão: um quadro de referência para estudos de orçamen-to e controle. Senado: 2012.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2006.

FERNANDES, Florestan. O presidencialismo imperial. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstre-am/handle/id/118975/20_31OUT88%20-%200013.pdf?-sequence=3 Acesso em 18 de setembro de 2017.

NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. São Pau-lo: Método, 2011.

PINTO, Luís Costa. Judiciário quer ser Poder Modera-dor; STF já ignora freios e contrapesos. Disponível em: https://www.poder360.com.br/opiniao/justica/judicia-rio-quer-ser-poder-moderador-stf-ja-ignora-freios-e--contrapesos/ Acesso em 18 de setembro de 2017.

RIBAS, Luiz Otávio (org.) Constituinte exclusiva. Um outro sistema político é possível. São Paulo: Expressão Popular, 2014.

REFERÊNCIAS

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Artigo

Neste pacto, poderia vir embuti-do a criação dos Conselhos Estadu-ais de Segurança Pública, fortaleci-mento das Ouvidorias de Polícia e criação de uma carreira de Investiga-ção Interna para proteger o policial lotado nas Corregedorias que tam-bém seriam aperfeiçoadas.

Também deveria constar um am-plo exercício de qualificação e requa-lificação contínua dos policiais, so-bretudo, para a defesa da Cidadania.

A partir das discussões no Con-selho Estadual de Segurança e De-fesa Social, poder-se-ia subdividir o estado em núcleos territórios comu-nitários com a participação de repre-sentantes do Judiciário, Ministério Público, Universidades e Serviços de Saúde, Educação, Limpeza e Ilumi-nação Pública e Cultura, dentre ou-tras, que fixariam metas para redu-ção da violência, atenção às vítimas da violência, combate aos preconcei-tos e demais ações de promoção dos Direitos Humanos, avaliadas e corri-gidas periodicamente.

Igualmente deveria contemplar política de Seguro para a família dos policiais mortos em função ou em decorrências desta.

Penso também que a proposta de

Desarmamento teria que ser mais arrojada, com a inteligência debelan-do o fluxo de armas de fogo para as mãos de jovens e demais delinquen-tes, inclusive, gratificando o policial por cada Arma de Fogo apreendida.

Forçosamente teria que cons-tar deste pacto, a recomposição dos plantéis das polícias e instituições o que passaria pela imediata convoca-ção dos policiais civis já formados, convocação de PMs e Agentes Peni-tenciários para cursarem a Academia e a realização de concursos para os Bombeiros e ITEP

Para termos uma ideia do tama-nho do problema na Insegurança Pú-blica no RN, hoje, nos aproximamos rapidamente de 800 homicídios e já em julho, estaremos perigosamente próximos do número de homicídios de 2012 que foi 940.

No meio do caminho da Copa do Mundo em Natal, além dos buracos literais e figurados que querem fazer na Av. Roberto Freire, há um cor-redor da morte de São Gonçalo até Ponta Negra, passando por Igapó, Bom Pastor, Quintas, Cidade da Es-perança, D. Rosado e Lagoa Nova.

Apesar de não está elencado nos te-mas do pacto, pode e deve ser incluído.

Pactuar a Segurança para Reduçãoda Violência1

Marcos Dionísio Medeiros CaldasFoi advogado e assessor jurídico do Estado. Defensor dos Direitos Humanos e presidente do Conselho Estadual

de Direitos Humanos. Dedicou a sua existência a construção de uma sociedade mais equitativa e justa.

1. Texto publicado em homenagem póstuma ao au-tor que faleceu precocemente no dia 11 de fevereiro de 2017.

…e a Promoção dos Direitos Humanos em Territórios Comu-nitários.

Sem desmerecer os temas pro-postos, o grande tema ausente no pacto levantado pela Presidenta Dilma foi a Segurança Pública.

Nenhuma Democracia se sus-tenta com mais de 53000 homicí-dios por ano, em sua maioria es-magadora, condenados também a mais absoluta impunidade.

Claro que também notei a au-sência da regulação da Mídia.

No tocante a Segurança, sem maiores atropelos, bastava dar continuidade à I CONSEG (Con-ferência Nacional de Segurança Pública), depurar as polícias, abrir caminho para o fim da desmilita-rização e criar um arrojado pro-grama de redução de homicídios que vai criando fossos demográ-ficos na população e serial killers por estímulo da ausência estatal.

Parlatório . MARÇO/2018 . 27

28 . Parlatório . MARÇO/2018

Artigo

O Supremo Tribunal Federal (STF), no desempenho de sua função, depara-se com grandes julgamentos, envolvendo preceitos constitucionais que repercutem diretamente na vida dos cidadãos brasileiros.

Neste sentido, sob uma pers-pectiva democrática, destaca-se a importância de o Poder Judiciário brasileiro se abrir para uma maior deliberação e participação da socie-dade civil, estimulando a comunica-ção entre estes dois atores sociais, de modo a direcionar o STF para uma maior abertura do processo de inter-pretação constitucional.

A escolha da Ação Direta de In-constitucionalidade (ADI) 3510 para análise se deu em razão de o tema discutido em seu bojo envolver ele-mentos que extrapolam o âmbito do direito, dizendo respeito a outras áreas do conhecimento humano, tais como: religião, biologia, filosofia,

economia, entre outros.A ADI 3510 questiona a consti-

tucionalidade em bloco do art. 5º e parágrafos da Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005 (Lei de Biosseguran-ça), que permite a utilização de cé-lulas-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento para fins de pesquisa e terapia.

Diante de matéria tão comple-xa, que envolve outros segmentos que não o jurídico, dos quais os ministros do STF não detêm os co-nhecimentos técnicos necessários, mostrou-se necessária a realização da primeira audiência pública da história da Suprema Corte brasilei-ra. Em abril de 2007 se deu a oitiva de especialistas e experts no assun-to, uma vez que seria indispensável a reunião do maior número possível de elementos técnicos, visando uma

A AberturaDemocrática do STF:

A Influência da Audiência Públicano Julgamento da Ação Direta

de Inconstitucionalidade nº 3510

Ana Beatriz Ferreira Rebello PresgraveDoutora em Direito Constitucional pela UFPE. Mestre em Direito Processual Civil pela PUC-SP. Graduada

em Direito pela PUC-SP. Professora do Curso de Graduação e do Programa de Pós-graduação em Direito da UFRN. Estágio pós-doutoral na Westifälische Wilhelms-Universität Münster (WWU). Membro da diretoria do

IPPC. Membro da ABDPRO. Membro do IBDP.

Daniela Vaz CamposGraduada em Direito pela UFRN. Advogada.

INTRODUÇÃO

Parlatório . MARÇO/2018 . 29

1. Todas as referências aos votos dos Ministros e às falas da audiência pública foram extraídas do site do STF, in-cluindo a transcrição da audiência pública. Brasília, DF. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/estfvisualizador-pub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcesso-Eletronico.jsf?seqobjetoincidente=2299631>. Acesso em 03 de abril de 2014 e em 01 de junho de 2017.

decisão que levasse em conta os di-versos aspectos envolvidos.

Dessa forma, pretende-se de-monstrar o aproveitamento da au-diência pública e sua influência no voto dos ministros, fazendo uso das informações veiculadas na audiência, bem como da sua transcrição oficial na sessão relativa a ADI 35101. Além disso, utiliza-se dos votos dos minis-tros no julgamento da citada ação, to-dos obtidos no site do Tribunal.

Assim, foram selecionados den-tre os argumentos defendidos pelos ministros aqueles que teriam um mínimo de correspondência com o discurso desenvolvido pelos especia-listas na audiência pública e os que se mostraram mais relevantes em relação à definição do início da vida humana, seja de modo a adotá-los, contrariá-los ou mesmo ignorá-los. Neste sentido, salienta-se a presença de citações de períodos integrais das exposições dos especialistas, bem como dos posicionamentos defendi-

dos por cada ministro.O presente trabalho tem caráter

descritivo, não possuindo a intenção de determinar como falsos ou verda-deiros os dados expostos pelos espe-cialistas e levados ao conhecimento geral por meio do evento realizado. O objetivo é averiguar o uso da au-diência pública na fundamentação da decisão, bem como a compatibi-lidade entre o posicionamento dos magistrados sobre o tema e os ar-gumentos sustentados no evento, na tentativa de demonstrar até que pon-to os ministros foram influenciados em seu julgamento.

A análise descritiva de cada um dos votos e das falas realizadas na au-diência pública não será explicitada, dada a impossibilidade decorrente do tamanho do presente trabalho. Assim, será feito apenas o cotejamen-to das ideias lançadas nos votos e nas falas da audiência pública, de modo a demonstrar a efetiva utilidade da rea-lização da audiência pública.

A ADI 3510 questiona a constitucionalidade em bloco do art. 5º e parágrafos da Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005 (Lei de Biossegurança).

30 . Parlatório . MARÇO/2018

2. A ADI 3510 E A LEI DE BIOSSEGURANÇA (LEI N. 11.105/2005)

Na ADI 3510 foi discutida pelo STF a constitucionalidade da Lei n. 11.105/2005, que tem como ponto fulcral a pesquisa com células-tron-co envolvendo embriões humanos. Para tanto, foram abordados temas como a conceituação jurídica das células-tronco embrionárias, a legi-timidade das pesquisas com células--tronco embrionárias para fins tera-pêuticos, a proteção constitucional do direito à vida, a descaracterização do aborto em caso de pesquisa com células-tronco, dentre outros.

A referida legislação, ao autorizar o uso de células-tronco de embriões humanos, possibilitou aos cientistas brasileiros equipararem suas pesqui-sas àquelas já desenvolvidas em pa-íses estrangeiros, tornando o estudo da cura de doenças degenerativas ainda mais promissor em nosso país.

O art. 5º e parágrafos da Lei de Biossegurança, todavia, foi criticado e se tornou fonte de questionamentos nos aspectos bioético, moral, jurídi-co e até religioso. As pesquisas com células-tronco embrionárias geraram muita polêmica à época, de forma que diversos setores da sociedade ci-vil se mobilizaram e se manifestaram sobre o tema.

Do ponto de vista jurídico, a

principal discussão se dá em relação à natureza do embrião: seria ele ob-jeto ou sujeito de direito.

A tese sustentada na ação pro-posta pelo então Procurador Geral da República (PGR) foi alicerçada sob a ótica da teoria concepcionista, ou seja, “vida humana acontece na, e a partir da fecundação”. Partindo de tal premissa, alegou que a legislação em tela, ao permitir a realização de pesquisas com os embriões supranu-merários, violaria os preceitos cons-titucionais que consagram o direito à vida (art. 5°, caput) e o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1°, III)2. Dessa maneira, sob uma ótica puramente biológica, tal pesquisa se tornaria impossível, visto ser inequí-voca a condição de seres vivos desses embriões.

O ministro relator da ADI 3510, Carlos Ayres Britto, designou a re-alização de audiência pública, so-bretudo pela obscuridade do tema envolvido no dispositivo que teve sua constitucionalidade impugna-da, tendo como escopo elucidar o conceito de vida, e, especialmente, o momento em que ocorre seu início, trazendo a conhecimento geral o po-sicionamento sobre o tema de diver-sos especialistas.

2. Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Demo-crático de Direito e tem como fundamentos: III - a dignidade da pessoa humana.

A tese sustentada na ação proposta pelo então Procurador Geral da República (PGR) foi alicerçada sob a ótica da teoria concepcionista, ou seja, “vida humana acontece na, e a partir da fecundação”.

Parlatório . MARÇO/2018 . 31

3. “Essa forma especial de governo constitui-se como um modelo ou ideal de justificação do exercício do poder político pautado no debate público entre cidadãos livres e em condições iguais de participação. Diferente da de-mocracia representativa, caracterizada por conferir a le-gitimidade do processo decisório ao resultado eleitoral, onde a participação do cidadão se encerraria no voto, a democracia deliberativa propugna que a legitimidade das decisões políticas deriva de processos de discussão que, orientados pelos princípios da inclusão, do pluralismo, da tolerância, da igualdade participativa, da autonomia e do bem-comum, conferem um reordenamento na lógica de poder tradicional.” (QUEIROZ, Ronaldo Pinheiro de. Ju-risdição constitucional, 2011, p. 12)

4. Deslocando esta concepção para o âmbito do Poder Ju-diciário, Ricardo Tinoco de Góes afirma que “deve-se sim institucionalizar espaços de participação para a discussão tematizada de situações conflitivas e dissensos sobre valo-res, mas de modo a manter a espontaneidade e o autono-mismo que se põem na base de toda e qualquer tentativa legitima de alcançar o consenso. A institucionalização que vem à tona é a que viabiliza concretamente a atuação da cidadania já durante os processos decisórios de tomada de decisão, tornando-a como quer Habermas, ativa, dinâmi-ca, mobilizada e vigilante sem, contudo, substituir do po-der decisório os órgãos jurisdicionais a tanto competentes. (...) O que pela interlocução se adiciona é a obrigatória observância do debate antes da decisão, mas não aquele debate endoprocessual, filiado aos supostos interesses da cidadania, hipoteticamente ideados na toada de uma representação processual ditada pela legalidade. A tônica agora é outra, pois o debate se dá sob a égide dos princí-pios do discurso e da democracia e, por isso, tem que ser amplo, isto é, acessível a todos e participativo, no sentido de dispor sobre iguais condições de atuação da universa-lidade dos interessados e concernidos. (GÓES, Ricardo Tinoco de. Democracia deliberativa e jurisdição: a legi-timidade da decisão judicial a partir e para além da teoria de J. Habermas. Curitiba: Juruá Editora, 2013, p. 223).

5. GÓES, Ricardo Tinoco de. Democracia deliberativa e jurisdição: a legitimidade da decisão judicial a partir e para além da teoria de J. Habermas. Curitiba: Juruá Edi-tora, 2013, p. 231.

6. FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de direito constitucional. 5. ed. Salvador: Juspodium, 2013, p. 1065.

7. “Somente as condições processuais da gênese democrá-tica das leis asseguram a legitimidade do direito. Partindo dessa compreensão democrática, é possível encontrar um sentido para as competências do tribunal constitucional, que corresponde à intenção da divisão de poderes no in-terior do Estado de direito: o tribunal constitucional deve proteger o sistema de direitos que possibilita a autonomia privada e pública dos cidadãos. (...) Por isso, o tribunal constitucional precisa examinar os conteúdos de normas controvertidas especialmente no contexto dos pressupos-tos comunicativos e condições procedimentais do proces-so da legislação democrático.” (HABERMAS, Jurgen. Te-oria de la acción comunicativa: racionalidad de La acción y racionalización social. Madrid: Taurus Humanidades, 2003, p. 326 apud BUZINGNANI, Ana Carolina Silveira. A ética do discurso e a audiência pública: Legitimação da norma jurisdicional. 2011. 147 f. Dissertação (Mestra-do) - Curso de Direito Negocial, Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2011, p. 92).

3. A DEMOCRACIA DELIBERATIVA, A JURISDIÇÃO CONSTITUCIO-NAL E A AUDIÊNCIA PÚBLICA

O modelo de democracia repre-sentativa consiste, em síntese, no exercício do poder político por parte da população através dos seus repre-sentantes eleitos. Neste modelo de democracia, aos representantes, legi-timados pela soberania popular atra-vés do voto, são delegados poderes de atuar e tomar decisões em nome de seus eleitores.

Ocorre que o modelo de demo-cracia representativa vem passando por uma crise generalizada. Além do descontentamento da população com os políticos, constata-se que não há real participação da socieda-de civil na administração e tomada de decisão de seus governantes, figu-rando como mera espectadora frente a seus atos. Assim, percebe-se que a existência de uma ordem política de-mocrática não garante aos cidadãos que eles se mantenham sempre sob o amparo da democracia.

Neste contexto, surge um novo modelo de democracia, que não tem seu papel reduzido à simples figura do voto. Chamada de democracia participativa ou deliberativa3, busca trazer a sociedade civil para o deba-te político, construindo um espaço público de deliberação, no qual os cidadãos têm a possibilidade de par-ticipar de decisões relevantes para toda sociedade. Dessa forma, a par-ticipação dos cidadãos no processo de tomada de decisão legitimaria o processo democrático participativo.

A democracia participativa, sob a perspectiva de Jürgen Habermas, surge como alternativa ao modelo representativo, tendo como escopo a

existência de um processo comuni-cativo exercido por cidadãos na esfe-ra pública, de modo a conferir legiti-midade às discussões políticas, como um novo modelo de justificação de poder e tomada de decisão política4.

Assim, os órgãos jurisdicionais que fazem parte do discurso argu-mentativo com os cidadãos se veem obrigados a considerar o produto des-ta argumentação nas razões que fun-damentam suas decisões, pois são elas o verdadeiro resultado de um proces-so de construção de uma democracia deliberativa frente à jurisdição5.

No sistema brasileiro, o STF é o órgão máximo do Poder Judiciário e responsável por realizar – em último ou único grau - o controle de consti-tucionalidade das normas. Esse con-trole visa garantir a supremacia e a defesa das normas constitucionais frente a possíveis usurpações, deven-do ser compreendido como a verifi-cação de compatibilidade de leis ou atos normativos em relação a uma Constituição6.

Partindo desse pressuposto, na democracia deliberativa harbema-siana, legitima-se a existência de um tribunal constitucional que irá atuar como guardião da Constituição e da vontade soberana do povo, levando em consideração as possíveis detur-pações que podem vir a ocorrer na elaboração de normas pelo Poder Legislativo7.

A ministra Ellen Gracie destaca a relevância da audiência pública no que diz respeito à abertura do Tri-bunal à comunidade científica, que possibilita a angariação de conhe-

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cimento na tentativa de resolução de um caso que envolve matéria tão complexa8, acreditando que a reali-zação deste evento ofereceria ganho de legitimidade técnica à decisão da Suprema Corte.

Por sua vez, o ministro Gilmar Mendes entende que a realização da audiência se justifica por ser uma maneira de outorgar ao STF o cará-ter democrático que se faz essencial na consumação das tarefas que ultra-passam o âmbito jurídico, engloban-do outros segmentos como a moral, a política e a religião, que há muito tempo vêm sendo discutidas sem que se chegue a um consenso. Acre-dita que esta abertura faz do Tribunal um espaço democrático, auferindo legitimidade democrática a suas de-cisões. Segundo seu entendimento, este evento se configura como “um espaço aberto à reflexão e à argu-mentação jurídica e moral, com am-pla repercussão na coletividade e nas instituições democráticas”9.

O ministro Carlos Ayres Britto, relator desta ação e precursor da re-alização da primeira audiência pú-

blica da história da Suprema Corte brasileira, faz referência à democra-cia participativa em seu discurso de abertura do evento10.

No Brasil, a audiência pública, em sede de controle de constitucionali-dade concentrado, também objetiva o fornecimento de informações e esclarecimentos relativos a temas de extrema complexidade, nos quais os membros de nosso Tribunal Cons-titucional não têm o conhecimento técnico para julgá-los adequadamen-te. Como instrumento de democrati-zação deliberativa, a audiência abre as portas para que a sociedade civil possa participar do julgamento de ações de relevância social, além de possibilitar o acesso dos magistrados a convicções e opiniões diversas acer-ca do tema em destaque, conferindo maior legitimidade às suas decisões, aproximando-as da vontade popular.

Dessa forma, salienta-se que ape-sar de a audiência pública não ter o poder de vincular suas decisões, mui-tas vezes observa-se a possibilidade de quem venham a influenciar no jul-gamento dos membros do Tribunal.

No Brasil, a audiência pública também objetiva

o fornecimento de informações e esclarecimentos

relativos a temas de extrema

complexidade, nos quais os membros de

nosso Tribunal Constitucional

não têm o conhecimento

técnico para julgá-los

adequadamente.

Parlatório . MARÇO/2018 . 33

11. Transcrição da audiência pública, p. 137.

12. Transcrição da audiência pública, p. 3-4.

O Supremo Tribunal Federal re-alizou a primeira Audiência Públi-ca de sua história em 24 de abril de 2007, com o objetivo de esclarecer o conceito do início da vida. Devido à grande complexidade do tema, que envolve a delimitação do âmbito de proteção do direito à vida, conceito extremamente técnico, juntamente ao fato de as informações contidas nos autos não serem suficientes para motivar uma decisão, a primeira consulta pública da história do STF reuniu variados especialistas, convi-dados a apresentar suas convicções em relação ao tema em destaque.

Momento histórico que, entre-tanto, não contou com o compareci-mento da maioria dos ministros do Tribunal, estando presentes na aber-tura da sessão apenas o ministro re-lator, Carlos Ayres Britto, a Presiden-te do STF à época, Ellen Gracie, e os ministros Joaquim Barbosa e Gilmar Mendes. Porém, somente o relator da ação e o ministro Joaquim Barbo-sa se mantiveram presentes durante toda a audiência.

Além dos quatro ministros cita-dos, Ricardo Lewandowski, segundo informação dada pelo ministro rela-tor, acompanhou de São Paulo a au-diência pública por transmissões ao vivo de rádio e televisão11.

Ao todo, vinte e dois especialistas trouxeram ao evento suas contribui-ções técnicas relacionadas às suas áreas de atuação acadêmica e profis-sional. Ambos os blocos, mesmo que com ideias antagônicas, contaram com a presença de geneticistas, pes-quisadores, professores e médicos, os quais foram indicados pela Procura-

doria Geral da República, Mesa do Congresso Nacional, Presidência da República, e pelos interessados.

Além disso, a Conferência Nacio-nal dos Bispos do Brasil (CNBB), o Conectas Direitos Humanos e Cen-tro de Direitos Humanos (CDH), o Movimento em Prol da Vida (MO-VITAE) e o Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (ANIS) atuaram na audiência pública como amici curiae.

No que diz respeito à exposição dos palestrantes, a audiência foi di-vida em dois blocos, com o intuito de possibilitar uma maior qualida-de na exposição das opiniões, ten-do como propósito ouvir dois gru-pos distintos, cada um com onze integrantes. Com base científica e grande autonomia para definir o conteúdo de cada apresentação, os especialistas evidenciaram posições contrárias sobre o uso de embriões humanos congelados e pesquisas com células-tronco embrionárias, além de seus entendimentos sobre o início da vida humana.

No turno da manhã, cada um dos blocos desfrutou de metade do tempo disponível. Sendo assim, um sorteio definiu qual seria a ordem de apresentação, determinando que o grupo a favor das pesquisas com cé-lulas-tronco embrionárias iniciasse as exposições. Ao final da apresentação deste grupo, aquele que se opunha às pesquisas pôde também tecer suas considerações sobre o tema. O turno da tarde foi divido da mesma forma, contudo, quem ficou por último para exposição do turno matutino, iniciou a exposição no turno vespertino12.

4. AUDIÊNCIA PÚBLICA NA ADI 3510

A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o Conectas Direitos Humanos e Centro de Direitos Humanos (CDH), o Movimento em Prol da Vida (MOVITAE) e o Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (ANIS) atuaram na audiência pública como amici curiae.

34 . Parlatório . MARÇO/2018

Destaca-se que o ministro relator, que presidiu a audiência, deixou cla-ro que a alternância entre os blocos de expositores não teve como objeti-vo desencadear um debate ou oposi-ção de ideias13. Com o fim de evitar que se estabelecesse um confronto entre os expositores, o ministro teve que ser categórico em alguns mo-mentos, intervindo nas exposições, por entender que alguns especialis-tas estariam contrapondo argumen-tos e ideias de seus colegas. Ademais, estabeleceu que os palestrantes não adentrassem na seara jurídica que envolve o tema, pois os debates jurí-dicos iriam acontecer em outro mo-mento do julgamento.

Integravam o bloco a favor da constitucionalidade da Lei de Bios-segurança, isto é, a favor das pesqui-sas com células-tronco embrionárias

humanas, os seguintes especialistas: Mayana Zatz14, Patrícia Pranke15, Lú-cia Braga16, Stevens Rehen17, Rosália Mendes Otero18, Júlio César Volta-relli19, Ricardo Ribeiro dos Santos20, Lygia Pereira21, Luiz Eugênio de Mo-raes Mello22, Antonio Carlos Cam-pos de Carvalho23 e Débora Diniz24.

Fizeram parte do outro bloco, aquele que pugnava pela procedên-cia da ADI 3510, e consequentemen-te, pela declaração de inconstitucio-nalidade da Lei de Biossegurança, os especialistas a seguir: Lenise Apare-cida Martins Garcia25, Claudia Maria de Castro Batista26, Lílian Piñero-E-ça27, Alice Teixeira Ferreira28, Mar-celo Vaccari Mazetti29, Antônio José Eça30, Elisabeth Kipman Cerqueira31, Rodolfo Nunes32, Herbert Praxe-des33, Dalton Luiz de Paula Ramos34 e Rogério Pazzeti35.

13. Transcrição da audiência pública, p. 3.

14. Pós-doutora em biologia genética pela USP, pre-sidente da Associação Brasileira de Distrofia Muscu-lar e coordenadora do Centro de Estudos do Geno-ma Humano.

15. Farmacêutica, doutora pelo Centro de Genoma de Nova Iorque, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e da PUC-RS E presidente do Instituto de Pesquisa com Célula-Tronco.

16. Neurocientista e pesquisadora-chefe da Rede Sa-rah de Hospitais de Reabilitação e diretora da socie-dade mundial de neurologia.

17. PhD, professor da UFRJ, pesquisador do Scripps Research Institute (Califórnia - EUA) e presidente da Sociedade Brasileira de Neurociências.

18. Professora titular de Biofísica e Fisiologia da Uni-versidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

19. Coordenador da Divisão de Medicina Óssea da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP), e Coordenador da Unidade de Transplante de Medula Óssea da USP.

20. Pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz/Bahia e coordenador científico do Hospital São Rafael.

21. Professora associada do Departamento de Gené-tica e Biologia Evolutiva da USP.

22. Vice-presidente da Federação das Sociedades de Biologia Experimental e professor de fisiologia da Unifesp.

23. Médico, doutor em Ciências Biológicas pela UFRJ. Coordenador de pesquisa do Instituto Nacio-nal de Cardiologia Laranjeiras e professor visitante do Albert Einstein College of Medicine, EUA.

24. Antropóloga pela UnB, diretora da ANIS.

25. Professora-adjunta do Departamento de Biologia Celular da Universidade de Brasília (UnB).

26. Professora-adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

27. Pesquisadora em biologia molecular da Univer-sidade de Bauru e presidente do Instituto de Pesquisa com células-tronco (IPCTRON).

28. Médica e professora da Universidade Federal de São Paulo/Escola Paulista de Medicina (UNIFESPE/EPM).

29. Médico cirurgião-plástico, pesquisador e mestre em cirurgia pela UFSP, colaborador de pesquisa com células-tronco pela USC de Baurú.

30. Médico psiquiatra, mestre em psicologia e pro-fessor de psicopatologia forense, medicina legal e criminologia.

31. Médica especialista em ginecologia e obstretrícia.

32. Mestre e doutor em cirurgia geral pela Universi-dade Federal do Rio de Janeiro.

33. Professor emérito da Faculdade Federal Flumi-nense (UFF) e coordenador do comitê de ética em pesquisa – UFF.

34. Professor de bioética da Universidade de São Paulo.

35. Graduado em Biologia pela Universidade Ma-ckenzie e doutorado em Ciências pela Faculdade de Medicina da USP.

“O ministro relator, que presidiu a audiência, deixou claro que a alternância entre os blocos de expositores não teve como objetivo desencadear um debate ou oposição de ideias”

Parlatório . MARÇO/2018 . 35

Após a exposição dos especialis-tas na audiência pública realizada em 24 de abril de 2007, o Supremo Tribunal Federal agendou para o dia 5 de março de 2008 o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalida-de n. 3510, a qual, conforme já ex-posto acima, pugna pela declaração de inconstitucionalidade do art. 5º e parágrafos da Lei de Biossegurança, objetivando a não permissão da uti-lização de células-tronco embrioná-rias para fins de pesquisa e terapia.

Falaram pelo Ministério Público Federal, o Procurador-Geral da Re-pública; pelo amicus curiae Confe-rência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o professor Ives Gandra da Silva Martins; pela Advocacia-Geral da União, o Ministro José Antônio Dias Toffoli; pelo requerido Con-gresso Nacional, o Dr. Leonardo Mundim; pelo amicus curiae Co-nectas Direitos Humanos e Centro de Direitos Humanos (CDH), o Dr. Oscar Vilhena Vieira; e, pelo amicus

curiae Movimento em Prol da Vida (MOVITAE) e Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (ANIS), o professor Luís Roberto Barroso.

Após as sustentações orais, nesta mesma data, o processo foi suspenso. Todavia, votaram o ministro relator Carlos Britto e a ministra Ellen Gra-cie, os quais julgaram a ação impro-cedente.

No dia 28 de maio de 2008, reto-mou-se o julgamento da ADI 3510 com os votos do ministro Joaquim Barbosa e da Ministra Cármem Lú-cia, que também votaram pela im-procedência da ação. Os ministros Menezes Direito e Ricardo Lewa-ndowski, por sua vez, julgaram-na parcialmente procedente. Já os mi-nistros Eros Grau e Cezar Peluso optaram pela improcedência da ação com ressalvas.

Prosseguindo o julgamento, no dia 29 de maio de 2008, os minis-tros Marco Aurélio e Celso de Mello proferiram seus votos, ambos consi-

Salienta-se que destes vinte e dois especialistas, quatro não cons-tavam da lista de convidados, da re-lação apresentada pela Procurado-ria da República na petição inicial, nem do requerimento apresentado pela CNBB. São eles: Lúcia Willa-dino Braga e Júlio Voltarelli, favorá-veis às pesquisas e Marcelo Vaccari e Antonio José Eça, contrários às pesquisas36.

Depois de feita a divisão dos expositores em dois blocos anta-gônicos, deu-se a fase da oitiva dos depoimentos dos especialistas con-

vidados, que fundamentaram suas opiniões em argumentos técnicos e científicos, dentro do limite de tem-po estabelecido para cada um.

Muito embora tenham os espe-cialistas apresentado seus conheci-mentos acerca das células-tronco e das terapias que podem decorrer de pesquisas as envolvendo, além de outros temas originados desta ques-tão, serão expostas aqui apenas suas opiniões em relação ao conceito de vida e ao momento de seu início, uma vez que esse é o tema central do presente trabalho.

5. JULGAMENTO DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDA-DE Nº 3510

36. LIMA, Rafael Scavone Bellem de. A Audiência Pú-blica realizada na ADI 3510-0: A organização e o apro-veitamento da primeira audiência pública da história do Supremo Tribunal Federal. 2008. 79 f. Monografia (Espe-cialização) - Trabalho de conclusão do curso da Escola de Formação apresentado a Sociedade Brasileira de Direito Público, São Paulo, 2008, p. 22.

36 . Parlatório . MARÇO/2018

derando improcedente a ação. O mi-nistro Gilmar Mendes se posicionou de forma favorável às pesquisas, po-rém com restrições.

Por fim, o STF, por maioria e nos termos do relator, julgou improce-dente a referida ação, vencidos, par-cialmente, em diferentes extensões, os ministros Menezes Direito, Ricar-do Lewandowski, Eros Graus, Cezar Peluso e Gilmar Mendes.

Destarte, em síntese, seis dos

onze ministros que compõem o ple-no do Tribunal optaram pela total improcedência da ADI 3510, decisão que permitiu o uso de embriões hu-manos para pesquisas e terapias com células-tronco embrionárias.

Contrariando a tese defendida pela Procuradoria-Geral da Repúbli-ca, o STF entendeu que tais pesquisas não violam os direitos à vida e à dig-nidade da pessoa humana, preceitos garantidos pela Constituição Federal.

6. ANÁLISE DA RELAÇÃO ENTRE O CONTEÚDO EXPOSTO DA AU-DIÊNCIA PÚBLICA E OS ARGUMENTOS UTILIZADOS NOS VOTOS DOS MINISTROS

Analisando-se os votos dos mi-nistros e o conteúdo das falas na audiência pública, constata-se que por muitas vezes os ministros do STF lançam mão de argumentos si-milares àqueles apresentados pelos especialistas na audiência pública re-alizada por ocasião do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalida-de n. 3510 para justificar seus votos, indicando uma conexão real entre estes discursos.

Ressalta-se que a despeito de al-guns ministros entenderem pela im-portância da realização deste evento, outros optaram por não referencia-rem em seus votos as considerações tecidas na audiência pública, de for-ma que alguns deles não recorreram explicitamente aos argumentos apre-sentados pelos especialistas como for-ma de fundamentar seu julgamento.

Conforme se analisou, os minis-tros Eros Grau, Marco Aurélio, Gil-mar Mendes e Joaquim Barbosa não se utilizaram de forma expressa de nenhuma das considerações tecidas

pelos especialistas no conteúdo de seus votos.

Eros Grau parece ter sido o mais radical dentre os ministros que opta-ram por não usar os argumentos dos especialistas para fundamentação de seus votos, aparentando reduzir a re-levância dos argumentos científicos expostos pelos especialistas convo-cados. Em determinado momento de seu voto, o ministro afirma que os cientistas muitas vezes se portam de forma arrogante, dando a entender que consideram ignorantes aqueles que não são da área, afirmando que “alguns dos que assumem o lugar de quem fala e diz pela Ciência são por-tadores de mais certezas do que os líderes religiosos mais conspícuos”37.

Além disso, alega que muitos cientistas teriam mais interesses econômicos em relação às pesquisas com células-tronco embrionárias, do que propriamente intenções de pro-teger a vida humana38.

Todavia, a despeito de alguns ministros não fazerem referência ao

37. Voto do Min. Eros Grau, p. 2.

38. “É necessário sopitarmos as expansões de infali-bilidade de quem substitui a razão científica por ines-gotável fé na Ciência, transformando-a em expressão de fanatismo religioso. Nem seria preciso, no exer-cício da prudência que nos cabe, levantarmos o véu que algo oculta sob o discurso que se diz ser cientí-fico. Quais interesses aí se manifestam, na escala que vai das patentes até o biopoder? Há um tom críptico nessas expansões [e faço uso aqui do vocábulo com toda a sua carga de ambiguidade] que cumpre afas-tarmos. A amplitude do mercado no âmbito do qual tais interesses predominam referiu-se há pouco o Ministro Ricardo Lewandowski. Não nos iludamos: levantado o véu, o que há sob ele --- não obstante, é verdade, as melhores intenções de grande número dos que acompanham este julgamento --- é o merca-do.” (Voto do Min. Eros Grau, p. 2-3)

Parlatório . MARÇO/2018 . 37

39. O argumento trazido na inicial pelo então Procura-dor-Geral da República é o de que a vida humana começa a partir do momento da fecundação.

40. Ressalta-se que o ministro Menezes Direito, apesar de optar pela teoria da concepção, em determinado momen-to do seu voto, demonstra acreditar que estabelecer, por convenção, um marco para o início da vida não passaria de uma escolha arbitrária.

41. Patricia Pranke, embora adote a teoria das primeiras atividades cerebrais, acredita na essencialidade de o em-brião ser transferido para o útero materno para que possa se desenvolver e sobreviver.

conteúdo evidenciado na audiência, algumas vezes até considerando-as irrelevantes, será demonstrado que os argumentos ali utilizados possi-velmente motivaram o voto de cada um deles. Dessa forma, o aproveita-mento deste evento no julgamento da ADI 3510 não pode ser restringi-do somente aos momentos em que foram mencionadas expressamente as considerações tecidas pelos espe-cialistas.

Serão apresentadas a seguir as principais considerações utilizadas pelos ministros que se encontram em consonância com o que foi ex-posto pelos especialistas na audiên-cia pública acerca do início da vida humana, questão central do presente trabalho e da ADI 351039.

A definição de um marco para o início da vida como condição neces-sária para a apreciação da referida ação, conforme alegado na petição inicial, não se verificou de forma unânime. As ministras Ellen Gra-cie e Cármen Lúcia e os ministros Marco Aurélio, Joaquim Barbosa, Cezar Peluso e Gilmar Mendes, não consideraram imprescindível tal de-finição, chegando até a considerá-la inoportuna e inútil para a análise do caso em questão, qual seja a utiliza-ção das células-tronco embrionárias para fins de pesquisa e terapia.

A escolha por não estabelecer um momento definido para o início da vida com a justificativa de não ser essencial para a discussão trava-da, no âmbito da audiência pública, pode ser observada nas declarações prestadas pelos especialistas Patrícia Pranke, Stevens Rehen, Julio Cesar Voltarelli, Lygia Pereira, Luiz Eugê-nio Mello e Débora Diniz. Destaca-

-se que todos os palestrantes citados integram o bloco a favor das pesqui-sas com células-tronco.

Dentre os ministros do STF que participaram do julgamento da ADI 3510, Carlos Ayres Britto e Menezes Direito40 elegeram a teoria concep-cionista, a qual adota a fecundação do óvulo pelo espermatozoide para delimitar o início da vida humana.

A teoria citada acima pode ser encontrada nas considerações da maioria dos especialistas que se po-sicionaram contra as pesquisas com células-tronco embrionárias, ao defender a tese de que a fecunda-ção daria início a vida, sendo este o principal motivo para que a Lei de Biossegurança fosse declarada in-constitucional. Cita-se os nomes de Lenise Aparecida Garcia, Cláudia Maria Batista, Marcelo Vaccari, An-tonio José Eça, Elizabeth Cerqueira, Rodolfo Nunes, Dalton Ramos e Ro-gério Pazzetti, que se posicionaram neste sentido.

A teoria da nidação, que estabele-ce que o início da vida se dá no mo-mento de implantação do embrião no útero materno, foi defendida de forma explicita pelos especialistas Mayana Zatz, e Antonio Carlos Car-valho, pertencentes ao bloco a favor das pesquisas. Destaca-se que Ri-cardo Ribeiro e Luiz Eugenio Melo, conforme depreende-se do acima exposto, também se manifestaram a favor desta ideia, contudo de forma não tão explicita como os outros es-pecialistas41.

Conforme se observa, no julga-mento da referida ação, parte dos ministros também se posicionou a favor desta teoria para indicar o momento de início da vida huma-

A teoria da nidação, que estabelece que o início da vida se dá no momento de implantação do embrião no útero materno, foi defendida de forma explicita pelos especialistas Mayana Zatz, e Antonio Carlos Carvalho, pertencentes ao bloco a favor das pesquisas.

38 . Parlatório . MARÇO/2018

na, caso das ministras Ellen Gracie e Carmen Lúcia, que o fizeram de forma expressa. É possível identifi-car referência à teoria da nidação no voto do ministro Cezar Peluso e até mesmo no do ministro Eros Grau, que afirmou não se valer dos argu-mentos expostos pelos especialistas, utilizando-se da teoria mencionada de forma a justificar a não existên-cia de vida nos embriões congelados tratados pela Lei de Biossegurança. Por sua vez, o ministro Marco Au-rélio, ao condicionar a existência de vida à gestação, também faz opção por esta teoria.

Salienta-se que o ministro re-lator Ayres Britto, ainda que tenha adotado a teoria concepcionista para o início da vida, em determi-nado momento de seu voto, de-monstra seu entendimento pela ne-cessidade de que haja uma relação entre a mulher e o embrião para que seja gerada uma vida no caso dos embriões fecundados in vitro, o que demonstra confusão em seu discurso.

Neste sentido, também cabe destacar argumento semelhante sustentado pelo especialista Ricar-do Ribeiro, ao entender que a teoria da concepção aplicar-se-ia ao caso de a fecundação ocorrer de forma natural, contudo, ocorrendo artifi-cialmente, a teoria a ser adotada se-ria a da nidação, pois, neste caso, só existiria vida após a implantação do embrião no útero materno.

Já o ministro Celso de Mello, utilizando-se tanto da teoria da ni-dação como da teoria das primeiras atividades cerebrais, justifica a não existência de vida nos embriões criopreservados.

O ministro Ayres Britto, a des-peito de já ter elegido as teorias da concepção e da nidação para justifi-car o surgimento da vida, ao tratar do tema da anencefalia em um mo-mento posterior de seu voto, men-ciona a teoria das primeiras ativida-des cerebrais, alegando que, para o direito, a função cerebral estabele-ceria se o ser possuiria vida ou não, afirmando que os embriões conge-lados a que se refere a Lei de Bios-segurança não possuem tal função. Já o ministro Celso de Mello faz uso desta teoria, de forma a justificar a não existência de vida nos embriões criopreservados, malgrado tenha se utilizado também da teoria da nida-ção para o mesmo fim.

Percebe-se, conforme expos-to acima, que este entendimento tem respaldo no posicionamento sustentado pelos especialistas Pa-trícia Pranke, que defende o início da vida no momento de formação do sistema nervoso, e Luiz Eugê-nio Melo, que a despeito de adotar a teoria da nidação, faz referência à teoria das primeiras atividades ce-rebrais, citando a ANVISA no que diz respeito ao início da formação da estrutura que dará origem ao sistema nervoso, que ocorre no dé-

cimo quarto dia após a fecundação do óvulo pelo espermatozoide.

Ainda em relação à teoria das primeiras atividades cerebrais, os palestrantes Antônio José Eça e Dalton Ramos, ambos contrários à realização das pesquisas com cé-lulas-tronco embrionárias, con-testaram-na na audiência pública, alegando que existe vida humana mesmo antes do marco das duas se-manas que delimita a formação do cérebro do embrião. Esta opinião encontra-se identificada nos votos dos ministros Menezes Direito e Cezar Peluso.

Malgrado a maioria dos espe-cialistas e ministros tenham elegi-do uma das três teorias acima para determinar o momento de início da vida, existem aqueles que entendem que a vida é um processo contínuo de desenvolvimento, ou seja, um ciclo, e não um evento delimitado no tempo. Na audiência pública, fizeram opção por esta ideia os ex-perts Lenise Garcia, Claudia Maria Batista, Antônio José Eça e Elizabe-th Cerqueira, todos palestrantes do bloco contra as pesquisas com célu-las-tronco embrionárias, que defen-dem que o início desse ciclo se dá no momento da concepção.

Este entendimento encontra-se identificado nos votos dos minis-tros Menezes Direito e Marco Auré-lio. Além deles, o ministro Ricardo Lewandowski cogita que tal possi-bilidade pode ser verdadeira.

...a teoria da concepção aplicar-se-ia ao caso de a fecundação ocorrer de forma natural, contudo, ocorrendo artificialmente, a teoria a ser adotada seria a da nidação...

Parlatório . MARÇO/2018 . 39

O ministro Eros Grau também faz uso desta ideia para justificar a não existência de vida nos embriões criopreservados, estabelecendo que estes embriões não se equiparam a um ser em processo de desenvolvi-mento vital, em um útero, isto é, o embrião versado na Lei de Biossegu-rança encontra-se paralisado, à mar-gem de qualquer movimento que possa caracterizar um processo.

O ministro Cezar Peluso parece estar de acordo com Eros Grau, ao entender que a situação dos embri-ões congelados só é equiparável à de etapa inicial de um processo que se suspendeu ou interrompeu.

Ainda em relação ao início da vida, a antropóloga Débora Diniz, na audiência pública, cogitou a possibi-lidade de que poderia haver influ-ência e implicações jurídicas diretas em relação à situação do aborto a de-pender do posicionamento adotado pela Suprema Corte no julgamento da ADI 3510.

Contudo não é o que se observa de acordo com o que foi apresen-tado pelos ministros. Carlos Ayres

Britto, Cármen Lúcia, Eros Grau, Cezar Peluso e Marco Aurélio re-forçam expressamente distinções entre as pesquisas com células-tron-co embrionárias e aborto, depreen-dendo-se que não houve qualquer alteração no que diz respeito à sua situação jurídica.

Constata-se que tal posiciona-mento encontra suporte, na au-diência pública, na declaração de Mayana Zatz, que é, inclusive, citada pelos ministros Cezar Peluso e Car-los Ayres Britto em seus votos.

Os ministros Menezes Direito e Ricardo Lewandowski adotam a concepção de que o embrião huma-no, havendo fecundação, já é consi-derado ser humano, defendendo a ideia de que as células embrionárias, mesmo no estágio pré-implantacio-nal, apresentam uma inegável natu-reza humana. Cezar Peluso parece concordar com os ministros supra-citados, já que apesar de alegar que somente nas pessoas já nascidas en-contra-se a presença de vida, tanto aquelas como os embriões congela-dos possuem atributos humanos.

Os ministros Menezes Direito e Ricardo Lewandowski adotam a concepção de que o embrião humano, havendo fecundação, já é considerado ser humano, defendendo a ideia de que as células embrionárias, mesmo no estágio pré-implantacional, apresentam uma inegável natureza humana.

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Esta ideia parece encontrar res-paldo no que foi dito na audiência pela professora Claudia Maria Batis-ta, que afirma que seriamos huma-nos desde o momento da concepção, todos já pertencendo à espécie homo sapiens a partir deste instante.

O pesquisador Ricardo Ribei-ro, ao defender a teoria da nidação, aduz que, no procedimento de ferti-lização in vitro, o embrião formado nada mais seria do que um “aglome-rado de células”, que só poderia ori-ginar um ser humano ao ser trans-ferido para o útero materno42. Seu entendimento aparenta influenciar a ministra Ellen Gracie, que cita a Lei Britânica, a qual atesta que antes do décimo quarto dia após a fecunda-ção existiria apenas uma massa de células indiferenciadas geradas pela fertilização do óvulo.

Na audiência pública, Julio César Voltarelli, um dos especialistas que defendem a realização das pesquisas com células-tronco embrionárias, li-mita-se a atestar que, em relação às pesquisas, faz-se mais relevante levar em consideração a vida dos pacien-tes que esperam pela cura de suas

doenças do que o próprio debate so-bre o início da vida.

Este comportamento pode ser observado também no voto do mi-nistro relator, que a despeito de ter escolhido um determinado mo-mento para o início da vida, aduz que seria mais importante do que a discussão sobre quando se inicia a vida humana, salvar as vidas dos inúmeros enfermos que possivel-mente se beneficiarão com a reali-zação destas pesquisas, entendendo ser fundamental a liberação da utili-zação dos embriões criopreservados para o estudo.

O uso da expressão “pré-em-brião” é identificado na fala do es-pecialista Luiz Eugênio Melo43, que diferencia o pré-embrião excedente da técnica de fertilização in vitro da-quele transferido para o útero mater-no, acreditando que este momento de transferência seria o marco para a humanização do ser. Este termo também está presente no voto da mi-nistra Ellen Gracie, que afirma que se o pré-embrião não for introduzi-do no útero materno, não poderá ser classificado como pessoa.

42. Ressalta-se que esta declaração foi contestada por Rogério Pazzeti na própria audiência pública.

43. O termo “pré-embrião” também pode ser ob-servado na fala de Lenise Garcia, fazendo uso deste, porém, de forma a não concordar com que ele é em-pregado por alguns cientistas.

“...no procedimento

de fertilização in vitro, o embrião

formado nada mais seria do que um “aglomerado

de células”, que só poderia

originar um ser humano ao ser

transferido para o útero materno”.

RICARDO RIBEIRO

Parlatório . MARÇO/2018 . 41

O entendimento do ministro Jo-aquim Barbosa, de que a escolha do momento para o início da vida de-pende da convicção pessoal de cada pessoa, devendo ser respeitada a es-fera íntima de suas crenças, parece encontrar semelhança com a ideia do pesquisador Stevens Rehen, que en-fatiza ser o início da vida uma ques-tão insolúvel, posto que sua definição envolve critérios que nada têm a ver com ciência, tais como religião, cultu-ra e momento histórico da sociedade.

Cabe ainda ressaltar que alguns ministros se posicionam pela disso-ciação entre a definição do início da vida e o início de sua proteção jurídi-ca. Este entendimento, incitado pelo ministro relator, defende que a tutela

jurídica da vida no ordenamento ju-rídico não coincide, obrigatoriamen-te, com o seu início. Por este motivo, apesar de ter feito escolha pela teoria concepcionista para delimitar o mar-co inicial da vida, entende que esta opção não desencadeia sua prote-ção jurídica desde o instante em que ocorre a fecundação do óvulo pelo espermatozóide.

Ademais, destaca-se que existem ainda aqueles ministros que con-sideram não ser de cabimento do Poder Judiciário a discussão sobre o tema. Segundo o ministro Ricardo Lewandowski, o Judiciário não te-ria as ferramentas necessárias para o debate, entendimento bastante si-milar ao da ministra Carmem Lúcia,

que, em seu voto, alega não compe-tir ao Supremo estabelecer concei-tos que não estejam presentes na Constituição, entendendo que cabe ao Poder Legislativo a opção de in-cluir no ordenamento jurídico bra-sileiro um dos diversos momentos propostos pela ciência para o início da vida humana.

Cabe esclarecer que a dissociação entre a definição do início da vida e o início de sua proteção, bem como a perspectiva de que não caberia ao Poder Judiciário tal definição, não encontram amparo em nenhuma das considerações tecidas na audiência pública, uma vez que aos especia-listas foi alertado que não deveriam adentrar na seara jurídica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho se propôs a demonstrar de que forma a Supre-ma Corte brasileira foi influenciada no seu posicionamento em relação ao início da vida humana pelo co-nhecimento científico apresentado em audiência pública. Esta análise se deu com base no evento ocorrido no âmbito da Ação Direta de Inconstitu-cionalidade n. 3510, que versa sobre as pesquisas com células-tronco em-brionárias humanas provenientes dos embriões excedentes congelados das clínicas de fertilização in vitro, bem como nos votos dos ministros do STF.

Ao limitar seu tema à abordagem do momento em que ocorre o início da vida humana, o presente trabalho expôs as considerações tecidas pe-los especialistas na audiência, bem como os argumentos utilizados pe-los ministros relativamente ao tema.

Por fim, foram exibidos aqueles en-tendimentos que mostraram corres-pondência com o discurso desenvol-vido pelos especialistas, de forma a demonstrar o aproveitamento dos conteúdos expostos na decisão pro-ferida pelo Tribunal sobre o início da vida humana.

Diante disto, não se pode negar que os conhecimentos técnicos trazi-dos pelos especialistas induziram de forma efetiva a visão dos ministros. Ao confrontar os posicionamentos sustentados pelos ministros com os argumentos apresentados na audiên-cia, percebe-se que encontram pleno amparo nos depoimentos prestados.

Constata-se a presença de mui-tas passagens da audiência pública inclusive no voto daqueles ministros que não fizeram referência expressa ao conteúdo proveniente do evento.

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Sobretudo, destaca-se o voto do mi-nistro Eros Grau, que a despeito de reduzir a relevância dos argumentos científicos, utilizou-se de umas das teorias expostas pelos especialistas para justificar a não existência de vida nos embriões congelados trata-dos pela Lei de Biossegurança.

Dessa forma, percebe-se que ape-sar de parte dos ministros não re-correr explicitamente aos argumen-tos apresentados pelos especialistas como forma de fundamentar seus votos, as considerações ali tecidas de fato influenciaram o julgamento de cada um deles, seja de forma direta, com expressa citação e referência às falas dos especialistas, seja de forma indireta, como ocorreu com o minis-tro Eros Grau.

No que concerne à utilização de argumentos científicos como forma de fundamentar decisões judiciais, é possível conferir no caso em estudo a preferência pelas teorias científi-cas sobre outras formas de conheci-mento humano, malgrado tenha se constatado que a ciência é por si só incapaz de definir com precisão um marco para o início da vida humana. Logo, não se defende a posição de que a ciência seja excluída da apre-ciação do STF nos casos pertinentes, mas simplesmente que não se con-verta no único critério utilizado para uma decisão acertada.

Dentre as teorias apresentadas pelos cientistas, infere-se que aquela que foi defendida por mais vezes pe-

los ministros condiciona a implan-tação do embrião no útero materno para que a vida humana tenha início, qual seja a teoria da nidação.

Cabe aqui frisar novamente que esta e todas as outras teorias são acei-tas da mesma forma pela biologia e pela medicina. Assim, questiona-se por qual motivo essa foi justamen-te a preferida dos ministros. Talvez porque ela possa coexistir sem em-pecilhos com as pesquisas com cé-lulas-tronco embrionárias, já que não implicaria na morte de seres humanos, visto que para a teoria da nidação ainda não existiria vida nos embriões crioconservados.

Em relação à realização de audi-ências públicas como instrumento de democratização deliberativa, com a abertura do STF para que a sociedade civil possa participar do julgamento de ações de relevância social, apesar de conferir maior legitimidade às de-cisões da Suprema Corte, ainda não se pode concluir de forma inequívo-ca que as audiências públicas funcio-nem efetivamente como uma esfera pública de participação e deliberação.

Por derradeiro, baseado ainda no julgamento da ADI 3510, verifica-se que uma das maiores dificuldades ao se analisar uma decisão colegiada do STF consiste em saber quais os fun-damentos que a sustentam, pois cada um dos que participaram de sua for-mação fundamentou seu voto em uma razão diferente, o que reduz o grau de certeza e coerência decisória.

A ADI nº 3510 versa sobre as pesquisas com células-tronco embrionárias humanas provenientes dos embriões excedentes congelados das clínicas de fertilização in vitro

Parlatório . MARÇO/2018 . 43

REFERÊNCIAS

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______. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalida-de nº 3510. Brasília, DF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/geral/verPdfPaginado.asp?id=611723&tipo=AC&descricao=Inteiro Teor ADI / 3510>. Acesso em: 01 jun. 2017.

FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de direito constitucional. 5. ed. Salvador: Juspodium, 2013.

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QUEIROZ, Ronaldo Pinheiro de. Jurisdição Constitucional Participativa. Revista Internacional de Direito e Cidadania , v. 11, 2011.

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Artigo

RESUMOAnalisa a forma como a democracia contemporânea se implementa, vis-

lumbrando-a como essencialmente representativa. Tem por objetivos analisar a fundamentação conceitual da democracia representativa, bem como as suas repercussões, notadamente no cenário brasileiro. Para tanto, emprega o mé-todo dedutivo, partindo de revisão bibliográfica da doutrina constitucional e eleitoral, em especial periódicos preocupados com o problema contemporâ-neo da representação. Conclui que, na democracia representativa brasileira, o eleitor não possui instrumentos de exigibilidade para as decisões tomadas por seus representantes, que, podem, assim, ser contrárias aos desígnios do povo. Além disso, constata que o modelo democrático brasileiro não contempla a revogação dos mandatos em curso, o que credita ao processo de redemocrati-zação do país, a exigir maior segurança no exercício dos mandatos.Palavras-chave: Democracia. Representação. Revogação.

INTRODUÇÃO

A Democracia Representativa

e a Revogação dos Mandatos em Curso

Abraão Luiz Filgueira LopesProfessor do Centro Universitário do Rio Grande do Norte/UNI-RN. Advogado.

Correio eletrônico: [email protected]

A democracia é condição neces-sária de qualquer Estado Consti-tucional. Não há Constituição sem democracia, que exsurge, pois, como o sistema de governo próprio e ne-cessário ao Estado Constitucional, do que decorre a ideia do Estado De-mocrático de Direito.

Nas sociedades contemporâneas, a democracia precisa ser exercida de forma indireta, através da escolha,

pelo eleitor, de representantes elei-tos. Quer dizer, ao invés de o próprio eleitor tomar as decisões políticas, ele escolhe um terceiro para decidir em seu lugar, o que cria um natural distanciamento do povo das deci-sões políticas.

Nesse contexto, o presente artigo tem como objetivo inicial investigar a forma como a democracia contem-porânea se realiza, além da própria

Parlatório . MARÇO/2018 . 45

fundamentação doutrinária da cha-mada democracia representativa.

Para tanto, parte de revisão bi-bliográfica na qual aplicado o mé-todo dedutivo, tudo com o objetivo de revelar, ao final as repercussões

da democracia representativa, nota-damente quanto à possibilidade do recall no Brasil, que consiste na re-vogação dos mandatos em curso, a exemplo do que acontece em países como os Estados Unidos.

2. A DEMOCRACIA REPRESENTATIVA COMO EXPRESSÃO DA DE-MOCRACIA CONTEMPORÂNEA

Nas sociedades contemporâne-as, o exercício das faculdades do governo por representantes é uma necessidade face à complexidade da rede social, que frequentemente vin-cula a ação de pessoas e instituições num determinado local a processos que se dão em muitos outros locais e instituições, sendo que, no entanto, nenhuma pessoa pode estar presente em todos os organismos deliberati-vos cujas decisões potencialmente afetam a sua vida, mormente porque esses são numerosos e muito disper-sos (YOUNG, 2006).

A esse modelo de democracia, baseado na representação, dá-se o nome de democracia indireta.

Por democracia indireta, enten-de-se aquela por intermédio da qual o povo, não podendo exercer pes-soal e diretamente as faculdades do governo, elege representantes para fazê-lo em seu lugar, os quais se-rão investidos de mandatos, que, a exemplo do que ocorre no contrato civil, significam a outorga de pode-res a outrem (o outorgado) para, em nome do outorgante, praticar deter-minados atos, vale dizer, deliberar os rumos do Estado e do governo. É por isso que os eleitos exercem mandatos eletivos, não mandados, expressão esta que, em sentido jurídico, remete à ordem, comando.

Essa visão contratualista da re-presentação encerra a chamada teoria jurídica da representação, que dá ensejo a uma relação entre representante e representado ba-seada numa lógica individualista e não-política, na medida em que supõe que os eleitores julgam as qualidades pessoais dos candidatos, ao invés de seus projetos e ideias políticas (URBINATI, 2006). Com isso, o ideal coletivo fica relegado a segundo plano, na medida em que a relação do Estado com a sociedade é deixada ao juízo do representante, que exerce o seu mandato com ple-na liberdade, o que está na base da opção constitucional brasileira pela vedação à revogação dos mandatos em curso, o chamado recall.

A predileção pela lógica jurídica da representação, observe-se, é uma marca do governo representativo li-beral, cuja ampla disseminação nas sociedades ocidentais fez com que essa forma de pensar a representa-ção hoje esteja arraigada em demo-cracias como a brasileira. O perigo da teoria jurídica da representação, contudo, está em reduzir a partici-pação popular na democracia a um mínimo procedimental, a eleição (URBINATI, 2006).

Em reação ao modelo jurídi-co de representação, apresenta-se a

O perigo da teoria jurídica da representação, contudo, está em reduzir a participação popular na democracia a um mínimo procedimental,a eleição.

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chamada teoria política da repre-sentação, que defende a ativação de uma corrente comunicativa en-tre a sociedade política e a civil, de modo a restabelecer o liame entre o individual e o coletivo, tudo num contexto no qual múltiplas fontes de informação e variadas formas de comunicação tornam os cidadãos elementos ativos da democracia. Com isso, a mídia, os movimentos sociais e os partidos políticos darão o tom da representação em uma so-ciedade democrática, tornando o social político (URBINATI, 2006).

Com efeito, mesmo numa de-mocracia essencialmente indireta, é possível criar mecanismos que propiciem uma participação mais ativa do povo, via ativação de ins-trumentos de deliberação coletiva, como, aliás, têm realizado alguns parlamentos brasileiros, com audi-ências públicas e outras formas de consultas populares.

Outrossim, a reação da teoria política da representação frente à predileção por uma lógica con-tratualista do fenômeno da repre-sentação gera uma preocupação

recente com a contemplação, pelas Constituições democráticas con-temporâneas, de instrumentos de democracia direta, que autorizem uma participação efetiva e sem in-termediários do cidadão na tomada de decisões, notadamente quando nada assegura, no contexto da re-presentação, que a vontade do elei-tor determinará as decisões do re-presentante no exercício do poder.

Isso tudo exsurge ainda mais relevante num cenário de crise de representatividade, que decorre, em grande medida, do próprio sistema representativo, afinal a atuação dos representantes geralmente não aten-de aos interesses dos representados, notadamente porque, após a eleição desses representantes, ocorre um distanciamento entre a vontade po-pular e a vontade do mandatário.

E o problema se aprofunda na medida em que o eleitor está des-provido de instrumentos para exi-gir a implementação das medidas e propostas por que os mandatos fo-ram outorgados, ou, mesmo, de um modo geral, para retomar antecipa-damente o mandato.

A crise de representação, en-tão, dá azo a um círculo vicioso, ao acentuar o desinteresse geral pelo poder político, que, por sua vez, aumenta a crise de legitimidade do poder. E isso porque o indivíduo dotado de liberdade democrática escolhe não participar da formação do poder político.

Tamanho é o distanciamento en-tre o representante e o representa-do, que mais contemporaneamente se tem falado na chamada demo-cracia delegativa, termo cunhado por Guillermo O´Donnell, segundo o qual a democracia, sobretudo na América Latina, atualmente se ca-racteriza por uma enorme distância entre representantes e representa-dos (O’DONNELL, 1991).

Numa democracia delegativa, o Chefe do Executivo é autorizado a governar o país da forma como lhe parecer mais conveniente, possuin-do ampla liberdade de agir, dentro do limite da lei, sempre com a ga-rantia de exercer o poder até o fim de seu mandato, justamente em ra-zão da ausência do instrumento do recall. Nessas democracias, os can-didatos vencedores se apresentam como estando acima de todas as partes, isto é, os partidos políticos e dos interesses organizados (STRE-CK, MORAIS, 2009, p. 118).

A esperança fica por conta do novo ambiente discursivo-demo-crático surgido com a internet e as redes sociais, espaço no qual o aprofundamento das discussões políticas pode conduzir a um ama-durecimento democrático do povo e, possivelmente, a um maior envol-vimento com a tomada de decisões relevantes do Estado.

Parlatório . MARÇO/2018 . 47

3. PRINCÍPIO DA LIBERDADE PARA O EXERCÍCIO DOS MANDATOS E A PROIBIÇÃO DO RECALL

O princípio da liberdade para o exercício dos mandatos exsurge como verdadeiro corolário da democracia representativa. De fato, na democra-cia representativa, o povo é alçado à posição preponderante de eleitor de seus representantes, que, por sua vez, no exercício dos mandatos, exercerão as faculdades do governo.

Maurice Hauriou (1927), então, ensina que o representante é autô-nomo e, como tal, deve ser livre para tomar as suas decisões e, no contexto de um órgão de deliberação coleti-va – como a Câmara de Vereadores, a Assembleia Legislativa, a Câmara de Deputados e o Senado Federal -, expressar os seus votos a fim de que, terminada a discussão, possa aderir à determinação mais razoável, que não necessariamente estará harmônica com o desejo do eleitor.

Não à toa, afirma-se que o povo, ao escolher seus representantes, de-legando-lhes o poder, não dispõe de garantia jurídica (ou de qualquer na-tureza) que os obrigue a executar sua vontade (CALIMAN, 2005), de sorte que a titularidade do mandato eleti-vo é do mandatário, tanto jurídica, como politicamente, o que lhe auto-riza atuar livremente, sem imposição de ter que agir segundo as instruções do eleitorado ou do partido (SAL-GADO, 2010).

Em contraponto a essa concep-ção, todavia, Walber de Moura Agra

e Carlos Mario da Silva Veloso (2009, p. 90) defendem que:

O mandato eletivo não pertence ao candidato eleito porque ele não é detentor de parcela da soberania popular, podendo transformá-la em propriedade sua. O poder que advém do povo não pode ser apro-priado de forma privatística. O candidato foi eleito para honrar determinado programa partidário, perdendo esse múnus quando se afasta do compromisso assumido.

Certo é, entretanto, que ainda hoje tem prevalecido o entendimen-to de que o exercente do mandato goza de liberdade, o que, inclusive, foi contemplado, mesmo implicita-mente, pela Constituição brasileira de 1988, que, à falta de norma em sentido diverso, acabou por impor, por ora, a impossibilidade de revo-gação do mandato e a proibição do mandato imperativo.

Isso revela a predileção do cons-tituinte brasileiro por uma teoria eminentemente contratualista da representação, o que, no final das contas, conduz a um maior prestí-gio à liberdade dos mandatários em detrimento de uma maior reserva de poder por parte do eleitor.

Pois bem. A proibição do man-dato imperativo decorre da inde-pendência do representante eleito

em relação ao representado, signifi-cando, ainda, que o mandatário não está sujeito à vontade do mandante (MARTINS, 2008).

Bernard Manin (2006, p. 119), então, bem resume por que as de-mocracias contemporâneas, mesmo agora mais preocupadas com a cria-ção de instrumentos que preservem a soberania popular, usualmente não dispõem de mecanismo que obri-guem determinadas posturas ou de-cisões do mandatário:

(...) existem boas razões para as instituições democráticas não ter mecanismos para obrigar a obedi-ência ao mandato. Nós escolhemos políticas que representam nossos interesses ou candidatos que nos representam como pessoas, mas queremos que os governantes se-jam capazes de governar. Em con-sequência, embora preferíssemos que os governantes se mantives-sem presos às suas promessas, a democracia não contém mecanis-mos institucionais para assegurar que nossas escolhas sejam respei-tadas. (...) as instituições devem permitir lidar com mudanças de condições. Nenhuma plataforma eleitoral pode especificar a priori o que o governo deveria fazer em cada estado contingente de coisas; os governos precisam ter alguma flexibilidade para enfrentar mu-

“O candidato foi eleito para honrar determinadoprograma partidário, perdendo esse múnus quando

se afasta do compromisso assumido.”

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1. Não coincidentemente, ao compartilharem o mes-mo processo recente de redemocratização, os demais países sul-americanos - à exceção da Venezuela, cujo artigo 72 institui o chamado “referendo revocatório” – não contemplam em suas constituições a possibili-dade de revogação dos mandatos em curso.

danças circunstâncias. Se os ci-dadãos esperam que as condições devem mudar e os governos são representativos, não vão amarrar os governos e as instituições.

Já a revogação dos mandatos ele-tivos em curso, que mais interessa ao presente artigo, é consagrada pela expressão em inglês recall – cuja me-lhor acepção no português é revoga-ção – e realiza-se por meio de nova convocação dos eleitores às urnas, desta feita, para decidirem se o man-dato do representante eleito será ou não abreviado.

Trata-se, do ponto de vista obje-tivo, de dispositivo da democracia que autoriza aos eleitores a destitui-ção e substituição de uma autorida-de pública (CRONIN, 1999); e, do ponto de vista subjetivo, representa o direito de um determinado núme-ro de eleitores requerer a imediata remoção de um governante, graças à manutenção pelo povo do maior controle possível sobre os mandatá-rios eleitos (MUNRO, 1949).

Em sentido análogo, a doutrina brasileira define o recall como o direi-to atribuído ao povo de suprimir os efeitos dos mandatos de seus repre-sentantes (TEIXEIRA, 1991), a exsur-gir como verdadeiro direito de arre-pendimento conferido aos cidadãos.

Trata-se de técnica que ganhou notoriedade no ano de 2003, quando os eleitores do estado norte-america-no da Califórnia resolveram retomar o mandato do governador então elei-to, decidindo, pois, que ele não po-deria concluir o mandato. Na mes-ma oportunidade, além de destituir o governador Gray Davis, o eleitor californiano acabou elegendo o ator

Arnold Schwarzenegger para o cargo de governador.

Diferentemente dos Estados Uni-dos, a Constituição brasileira não contempla a possibilidade de abre-viação dos mandatos eletivos através da revogação dos poderes antes con-feridos, via eleições, pelo eleitor. Isso se dá em razão de os agentes políticos serem eleitos para um mandato com prazo certo e determinado, o que exsurge como verdadeira conquis-ta da democracia, ao assegurar que ocupantes de posições políticas (ou militares) de destaque também não exararão determinações voltadas à cessação abrupta dos mandatos1.

Com efeito, ressalvada a possibi-lidade de cassação do mandato por alguma inconformidade legal, a revo-gação do mandato por ato de vontade de quem quer que seja não é admi-tida no ordenamento jurídico brasi-leiro, de sorte que, a exceção aquela condenação, o mandatário cumprirá o mandato em sua inteireza.

Essa temporariedade dos man-datos, por sinal, é uma garantia da democracia não apenas para os can-didatos, mas também para os eleito-res: para o candidato, porque o re-presentante eleito tem a garantia de que, salvo processo legal de cassação, estará investido no cargo público; para o eleitor, porque vê legitimada a sua expectativa de que o represen-tante democraticamente escolhido não será afastado por quem quer que seja, salvo se praticada alguma irre-gularidade.

Enfim, a temporariedade dos mandatos eletivos é uma conquista da democracia – especialmente num país que viveu décadas de ditadura –, a impedir que um representante legi-

Parlatório . MARÇO/2018 . 49

timamente eleito seja destituído pela variação das conveniências políticas.

Diante dessas razões, a ordem constitucional brasileira não dispõe de instrumento que confira aos elei-tores a possibilidade de revogação dos mandatos eletivos em curso, devendo o cidadão, em caso de insatisfação com os representantes eleitos, aguar-dar uma nova eleição para, só então, fazer opção por outro candidato.

Isso só seria mudado caso ins-tituído o recall mediante emenda constitucional, o que não encontraria obstáculos nas cláusulas pétreas defi-nidas no art. 60, § 4º, da Constitui-ção, a despeito de aqui se reputar le-gítimas as razões constitucionais por que não contemplado tal instrumen-to no texto original da Carta de 1988.

Enquanto não editada emen-da constitucional com esse objeto, resta atualmente a possibilidade de cassação do mandato por infrações político-administrativas, ou mesmo por infrações eleitorais que viciem os votos obtidos pelo então candida-to, cassação essa possível de ocorrer mesmo depois de eleito. No primeiro

caso, marcado pela prática de crime de responsabilidade, pode o manda-tário ser cassado num processo de impeachment. Já no segundo caso, a prática de determinadas condutas em campanha eleitoral pode com-prometer a legitimidade da eleição do representante, cabendo a Justiça Eleitoral, nesse caso, cassar o diplo-ma do candidato, isto é, o ato que certifica sua vitória nas urnas e au-toriza a investidura no cargo eletivo.

Interessante notar, a par disso, que há experiência constitucional sulamericana de recall na Venezuela, onde os artigos 72 e 233 da Consti-tuição autorizam a revogação dos mandatos em curso em relação a todos os cargos ocupados por voto popular, desde que tenha transcorri-do pelo menos metade do mandato, com o requerimento de pelo menos 20% do eleitorado da respectiva cir-cunscrição eleitoral.

Na prática, em 2004, lançou-se mão da revisão popular na Venezue-la, processo que conduziu, porém, à permanência de Hugo Chávez na presidência do país.

A prática de determinadas condutas em campanha eleitoral pode comprometer a legitimidade da eleição do representante, cabendo a Justiça Eleitoral, nesse caso, cassar o diploma do candidato, isto é, o ato que certifica sua vitória nas urnas e autoriza a investidura no cargo eletivo.

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CONCLUSÃO

A complexidade das sociedades contemporâneas impõe um afasta-mento natural do povo das decisões políticas, que não poderão ser dire-tamente tomadas pelo cidadão. Em vez disso, os eleitores elegerão re-presentantes, que, no curso de man-datos eletivos, serão responsáveis pelas decisões políticas. A isso dá-se o nome de democracia indireta ou representativa.

Conceitualmente, a representa-ção é explicada pela sedimentada te-oria contratualista, que reforça o dis-tanciamento do povo das decisões ao dar ensejo ao princípio da liberdade para exercício dos mandatos, que tem como corolários a proibição do mandato imperativo e a proibição da revogação dos mandatos em curso.

A proibição do mandato impera-tivo significa a liberdade do repre-sentante eleito pelo voto popular na tomada das decisões, quando não é obrigado a atender aos desígnios dos eleitores, que, por sua vez, não dis-põem de instrumento jurídico ou

mesmo político para exigir essa ou aquela decisão.

Já a proibição da revogação dos mandatos em curso implica a im-possibilidade de abreviação dos mandatos eletivos outorgados aos representantes, ainda que haja ampla insatisfação do corpo de eleitores.

Constatou-se, então, que a veda-ção existente no Brasil em relação à revogação dos mandatos em curso, popularmente conhecida como recall como resultado também do processo de redemocratização, que fez com que o constituinte tivesse uma espe-cial preocupação com a preservação do direito dos eleitos de concluírem o mandato obtido nas urnas, sem pos-sibilidade de agentes externos lhe re-tirarem do exercício do poder.

Assim é que somente irregulari-dades praticadas pelo representante poderão implicar a cassação do man-dato. Isso pelo menos até que seja es-tabelecida a possibilidade do recall no Brasil, algo que demandaria a sua ins-tituição por emenda constitucional.

A proibição do mandato imperativo significa a

liberdade do representante

eleito pelo voto popular

na tomada das decisões, quando

não é obrigado a atender aos desígnios dos

eleitores, que, por sua vez,

não dispõem de instrumento

jurídico ou mesmo político

para exigir essa ou aquela

decisão.

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REPRESENTATIVE DEMOCRA-CY AND THE RECALL

ABSTRACTAnalyzes how contemporary de-

mocracy is implemented, seeing it as essentially representative. The ob-jectives are to analyze the conceptual basis of representative democracy, as well as its repercussions, notably in the brazilian scenario. For that, it uses the deductive method, starting from a bibliographical revision of the constitutional and electoral doctrine, especially periodicals concerned with the contemporary problem of representation. Concludes that, in brazilian representative democracy, the voter does not have instruments of enforceability for the decisions made by his representatives, which may thus be contrary to the designs of the people. In addition, it notes that the BRAZILIAN democratic model does not contemplate the re-call, which credits the process of re-democratization of the country, to demand greater security in the exer-cise of the mandates.Keywords: Democracy. Representa-tion. Recall.

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Artigo

RESUMOEm homenagem ao jurista Otto Guerra, aborda-se, em artigo científico,

pelo uso de revisão bibliográfica, como a Igreja Católica, mediante sua dou-trina social, trata alguns dos diversos aspectos concernentes à democracia. Neste ínterim, analisa-se, também, como a Confederação Nacional dos Bis-pos do Brasil (CNBB), por meio da sua atuação, tanto durante o regime mili-tar quanto contemporaneamente, contribuiu e continua contribuindo para o fortalecimento do pensamento democrático nacional. Por fim, utilizando-se do método de análise dedutivo, conclui-se que a Doutrina Social da Igreja tem forte apreço pelo sistema democrático, defendendo seu resguardo e for-talecimento, seja através de documentos pontifícios e apostólicos, seja através de atuações concretas, como no caso da CNBB.Palavras-Chave: Otto Guerra. Democracia. Doutrina Social da Igreja. CNBB.

INTRODUÇÃO

Aspectos da Democracia Segundo a Doutrina

Social da Igreja:Um Estudo em Homenagem

ao Jurista Otto Guerra

Silvério Alves da Silva FilhoAdvogado. Pós-graduando lato sensu em Direito Processual Civil pelo Centro Universitário

do Rio Grande do Norte/UNI-RN. Correio eletrônico: [email protected]

O presente trabalho tem como iluminação a figura do professor e advogado potiguar Otto de Britto Guerra, intelectual que caminhou por distintas áreas do saber, tais como a exemplo do Direito, do ser-viço social, do jornalismo, história e sociologia do semiárido, Doutrina Social da Igreja Católica etc.

Na vida acadêmica, Guerra foi, desde 1955, um dos primeiros pro-

fessores civilistas da antiga Faculda-de de Direito Estadual (em Natal); concorreu para a idealização da Es-cola de Serviço Social, em 1945, e da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, em 1957; contribuiu, direta-mente para a criação da Universida-de Federal do Rio Grande do Norte, chegando a ser vice-reitor da insti-tuição; integrou e promoveu diversas entidades culturais, dentre as quais

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O pensamento aqui exposto pretende buscar o diálogo com os ensinamentos disponibilizados na referida doutrina, a fim de fomentar um debate saudável, sem fundamentalismos.

a Academia Norte-Rio-Grandense de Letras e o Conselho Estadual de Cultura; seguindo na linha do seu pai, o Desembargador Felipe Guerra, publicou diversos estudos, entre li-vros e artigos, sobre as mais distintas problemáticas do semiárido nordes-tino, notadamente sobre as secas e suas consequências; na seara jorna-lística, colaborou com vários peri-ódicos estaduais e nacionais, tendo sido diretor e redator-chefe do jornal “A Ordem”, da Arquidiocese de Na-tal; acerca da doutrina social católi-ca, compreendeu-a singularmente, ao ponto de ter sido convidado para participar como Conselheiro do Concílio do Vaticano II, em Roma.

Sobre sua vida e sua obra, foram lançados alguns livros, dos quais po-demos citar “Memória Viva de Otto de Brito Guerra”, organizado por Tarcísio Gurgel, e “Otto Guerra: Bi-bliografia e uma Visão do Semi-Ári-do”, de Ridelci Medeiros, Cláudio A. P. Galvão e Terezinha de Q. Aranha. Doutra ponta, recentemente, por

meio de investigações concretizadas pelo do Grupo Filosofia, Direito e Sociedade, formado por professores e alunos do Centro Universitário do Rio Grande do Norte, realizaram-se algumas pesquisas relacionadas à sua obra, tal como estudos acerca da açu-dagem no semiárido e das questões do meio ambiente e do direito fun-damental à água na Doutrina Social da Igreja. Fruto dessas e de outras in-vestigações, será lançado, ainda este ano, o livro “Otto Guerra: Garimpo de Ideias e Reflexões”, organizado pelos professores Fábio Fidelis de Oliveira e Marcelo Maurício da Silva.

Pois bem, o presente artigo, uma homenagem ao citado intelectual, buscará investigar como a Doutrina Social da Igreja Católica aborda as-suntos relacionados ao jogo demo-crático, tais como os princípios do bem comum e da subsidiariedade, a importância do respeito aos direitos humanos, os valores, as instituições e a participação do povo na demo-cracia. Abordar-se-á, ainda, como a

Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) contribuiu, em di-versas ocasiões, para o fortalecimen-to da democracia brasileira, inclusive em colaboração com a Ordem dos Advogados do Brasil.

Para tanto, utilizou-se de revisão bibliográfica, do método de análise dedutivo e de uma investigação qua-litativa, tudo isto feito em face de do-cumentos oficiais da Igreja e de infor-mações públicas, com o propósito de compreender como a perspectiva so-cial do catolicismo encara tais temáti-cas, na teoria e na prática, esta aqui es-tudada por meio da atuação da CNBB.

Por fim, faz-se mister esclarecer que o pensamento aqui exposto não terá o ânimo de exaurir as discus-sões acerca o tema, nem de impor o modo de encarar a realidade trazida por certo ente religioso. Ao revés disto, pretende-se buscar o diálogo com os ensinamentos disponibili-zados na referida doutrina, a fim de fomentar um debate saudável, sem fundamentalismos.

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2. A DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA

Dentre os campos de trabalhado produzidos pelo catolicismo, inte-ressa-nos, aqui, a investigação so-bre a sua doutrina social, formada pelas orientações dadas pela Igreja Católica sobre os temas sociais mais variados, direcionadas não só aos cristãos, mas a “todos os homens de boa vontade”, em busca de um bem comum e do desenvolvimento integral de todas as pessoas (JOÃO XXXIII, 1963, nº 162 e 65).

Analisando esta área, muito bem estudada e divulgada pelo ju-rista Otto Guerra (GALVÃO, 2012, p. 11), constata-se que a Igreja já disponibilizava, desde os cristãos primitivos, doutrina que trazia em si alguma repercussão na seara so-cial. Não obstante, há certo consen-so que essas propostas, à época di-luídas, tornaram-se mais enfáticas e organizadas a partir da encíclica Rerum Norarum, a “carta magna” da doutrina social católica (CAMA-CHO LARAÑA, 1995, p. 11), escri-ta pelo papa Leão XIII, em 1891, sobre as dificuldades sofridas pelo operariado daquela época.

Desde então, consoante as cir-cunstâncias sociais, econômicas e políticas foram se modificando, a Doutrina Social da Igreja foi sen-do atualizada. Analisando a abor-dagem singular levada a efeito por João XXIII na encíclica Mater et Magistra, de 1961, Camacho Laraña (2011, p. 2) assevera que o mundo mudou muito deste então e “a Dou-trina Social da Igreja reflete essa mudança: não trata hoje os mesmos temas que em 1961, nem os trata da

mesma maneira”.Interessante comentar o fato de

que algumas confluências pertinen-tes podem ser encontradas entre Direito e Doutrina Social da Igreja, dentre as quais talvez uma das mais importantes tenha acontecido no direito laboral. Nesse ínterim, o en-tão Ministro do Tribunal Superior do Trabalho José Ajuricaba da Cos-ta e Silva chegou a arrematar que o direito trabalhista “está impregnado desta doutrina, pois sendo uma so-lução de compromisso entre o capi-talismo e o socialismo, repele a luta de classe e o predomínio de uma sobre a outra” (1992, p. 52). Pros-seguindo, o citado jurista assevera: “O Direito do Trabalho pode, pois, ser considerado como a Doutrina Social da Igreja transformada em direito positivo” (1992, p. 53).

Tantas outras confluências po-deriam trazidas aqui, tais como as reflexões sobre Direito Internacio-nal ocorrias na encíclica Populo-rum Progressio; a fundamentação da função social da propriedade

constante na Mater et Magistra; a defesa da observância dos direitos humanos em âmbito internacional consubstanciado na Pacem in Ter-ris; ou, ainda, a abordagem feita pelo atual Papa, Francisco, acerca da ecologia e do direito ambiental, dando-lhe uma perspectiva integral e paradigmática, por meio da encí-clica Laudato Si’.

Ressaltando o peso de alguns destes pontos para a análise de questões sociais em todo o mundo, indagava Otto Guerra:

E quem pode, mesmo não sen-do católico, negar a repercussão mundial de encíclicas como a “Rerum Novarum” de Leão XIII, da “Quadragesimo Anno”, de Pio XI, da “Summi Pontificatus”, de Pio XII, para falar somente des-tas? (GUERRA, 195-?, n.p.)

Pois bem, é nesse ramo do cato-licismo que buscaremos investigar como a Igreja trata alguns aspectos relacionados à democracia.

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3. ALGUNS ELEMENTOS DA DEMOCRACIA NA PERSPECTIVA SO-CIAL CATÓLICA

“...se não há um consenso geral sobre tais valores, se perde o significado da democracia e se compromete a sua estabilidade.”

Quando analisamos os docu-mentos da Doutrina Social Católi-ca, percebemos que esta encara com simpatia o sistema democrático, aqui entendido como aquele que assegura a participação dos cidadãos nas op-ções políticas e garante aos governa-dos a possibilidade tanto de escolher e controlar os governantes, quan-to de substituí-los, pacificamente, quando se fizer oportuno.

A democracia, nessa perspectiva, não pode favorecer a formação de grupos restritos de governantes, que

usurpam o poder do Estado a favor de seus interesses particulares ou dos ob-jetivos ideológicos. Por isso, sua ocor-rência só é verdadeiramente possível num Estado de Direito, constituído sobre uma efetiva concepção de pessoa humana, num ambiente onde existam subsídios suficientes à promoção dos indivíduos, por meio da educação e da formação de verdadeiros valores, e ao resguardo de instituições que assegu-rem a participação popular e o sistema de corresponsabilidade (JOÃO PAU-LO II, 1991, n.º 46).

3.1. DA DEMOCRACIA SEGUNDO A DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA

Segundo o pensamento social ca-tólico, a democracia não é o apenas a consequência de um respeito for-mal a determinações, mas é o fruto de consciente aceitação dos preceitos que inspiram os procedimentos de-mocráticos: a dignidade humana, o acolhimento dos direitos humanos, o tratamento do bem comum como finalidade e critério de regulação da vida pública. Enfim, “se não há um consenso geral sobre tais valores, se perde o significado da democracia e se compromete a sua estabilidade” (PONTIFÍCIO CONSELHO “JUS-TIÇA E PAZ”, 2004, n.º 407).

Nessa perspectiva, o relativismo ético surge como ameaça aos siste-mas democráticos, pois instiga a des-crença na existência de um critério objetivo e universal para estabelecer o fundamento e a correta hierarquia dos valores democráticos. Isto por-que se não existe nenhuma verdade

última que guie e oriente a ação po-lítica, então as ideias e as convicções podem ser facilmente instrumentali-zadas para fins de poder. Uma demo-cracia sem valores converte-se facil-mente num totalitarismo aberto ou dissimulado, como podemos com-preender pelos exemplos históricos (JOÃO PAULO II, 1991, n.º 46).

Exsurge, portanto, a necessida-de de um Estado Democrático de Direito, concebido sob uma ordem moral objetiva e racional, com ins-tituições sólidas e perenes, reconhe-cendo-se, ademais, a importância da tripartição e dos “pesos e contra-pesos” entre os Poderes. É preferí-vel que cada poder seja equilibrado por outros poderes e outras esferas de competência que o mantenham no seu justo limite, devendo serem soberanas a Constituição e a lei, e não a vontade arbitrária dos homens (Ibidem, n. 44).

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No Estado Democrático de Direi-to, o agentes com responsabilidades políticas devem valorizar a dimensão moral da representação, consistindo esta no empenho de compartilhar o destino do povo e em procurar um desfecho razoável para as problemá-ticas sociais. Deste modo, a autori-dade política responsável deve ser desempenhada por meio do auxílio de valores que possibilitem o exercí-cio do função com ânimo de serviço (JOÃO PAULO II, 1988, n.º 42).

Esta busca por valores morais objetivos que guiem a atuação do poder público procura evitar uma das deformações mais graves do

sistema democrático, a saber: a cor-rupção política (Idem, 1987, n.º 44). Isto porque a corrupção é desleal aos valores morais e às normas da justi-ça social; tende a impossibilitar um funcionamento apropriado do Esta-do, influenciando, de modo negati-vo, no relacionamento entre gover-no e governado; introduz um receio cada vez maior no que concerne à política e aos seus representantes, proporcionando o enfraquecimen-to das instituições e dificultando a realização do bem comum de to-dos os cidadãos. Quando eivadas de corrupção, as posturas políticas res-guardam os fins restritos de quantos

possuem os meios para influenciá--las e impedem a realização do bem comum de todos os cidadãos (PON-TIFÍCIO CONSELHO “JUSTIÇA E PAZ”, 2004, n.º 411).

Por isso, o poder público, em qualquer grau, possui o dever de ser-vir o cidadão. Aqueles que detêm car-gos públicos devem buscar uma igua-litária aplicação da Constituição e da lei, além de zelar e pela transparência em todos os atos da administração pública, para que, posto a serviço dos cidadãos, o Estado se comporte como gestor dos bens do povo, ad-ministrando-os lícita e moralmente (JOÃO PAULO II, 1998, n.º 05).

3.2. DO RESPEITO AOS DIREITOS HUMANOS

Um sistema democrático só pode alcançar a sua plena atuação quando cada pessoa e cada povo tiver acesso aos bens primários, tais como vida, alimentação, água, saúde, instrução, trabalho e certeza dos direitos, por meio de um ordenamento das rela-ções internas e internacionais que proporcione a cada um a possibili-dade de participar do “jogo demo-crático” (BENTO XVI, 2006).

Nesta perspectiva, aduz-se que a origem dos direitos do ser humano deve ser procurada na dignidade que pertence a cada pessoa (PAU-LO VI, 1965, n.º 27), sendo tal dig-nidade conatural à vida humana e igual em homem. Por isso, tais di-reitos são universais, invioláveis e inalienáveis (JOÃO XXIII, 1963, n.º 9). Universais, uma vez que estão presentes em todas as pessoas, in-dependentemente de tempo, lugar ou sujeito; invioláveis, porquanto

intrínsecos à pessoa humana e à sua dignidade; inalienáveis, pois nin-guém pode, de modo legítimo, pri-var destes direitos outrem, seja ele quem for, caso contrário estar-se-ia a violentar a sua própria natureza.

A sua tutela cabe tanto ao poder público quanto à sociedade civil, devendo ser efetivada não em razão de cada direito singularmente con-siderado, mas no seu conjunto, por-quanto uma proteção parcial tra-duzir-se-ia em uma espécie de não reconhecimento da igualitária dig-nidade existente entre esses direi-tos. A indivisibilidade, assim como a universalidade, a inviolabilidade e a inalienabilidade, surge como característica distintiva, devendo o poder público, num Estado Demo-crático, promover, integralmente, todas as categorias de direitos hu-manos, a fim de garantir o pleno respeito a cada um deles.

Um sistema democrático só

pode alcançar a sua plena atuação

quando cada pessoa e cada povo

tiver acesso aos bens primários, tais como vida,

alimentação, água, saúde, instrução,

trabalho e certeza dos direitos

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A efetivação do bem comum, “razão de ser dos poderes públicos” (JOÃO XXIII, 1963, n.º 54), sem dúvidas, é um dos princípios funda-mentais que devem guiar um Estado democrático, cuja busca deriva da dignidade e da igualdade de todas as pessoas (PONTIFÍCIO CONSE-LHO “JUSTIÇA E PAZ”, 2004, n.º 164). Para tanto, bem comum pode ser conceituado como sendo o “con-junto de todas as condições de vida social que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da per-sonalidade humana” (JOÃO XXIII, 1963, n.º 58) ou, ainda, como “con-junto de condições da vida social que permitem, tanto aos grupos, como a cada um dos seus membros, atingir mais plena e facilmente a própria perfeição” (PAULO VI, n. 26, 1965).

As exigências do bem comum se originam das condições sociais de cada tempo e estão deveras conecta-das com o respeito e com a promo-ção das pessoas humanas de seus di-

reitos fundamentais (CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, n.º 1907). Tais exigências são concernentes, an-tes de tudo, à busca da paz, a organi-zação razoável dos poderes estatais, a uma ordem jurídica sólida, à prote-ção do meio ambiente, à prestação de serviços indispensáveis às pessoas, tais como alimentação, morada, tra-balho, educação, saúde e transporte.

Para alcançar essas exigências, de-manda-se a colaboração não apenas do Estado, mas de todos os membros da sociedade: ninguém está dispen-sado de colaborar, de acordo com suas possibilidades. Assim, cabe ao Estado garantir a coesão, unidade e organização à sociedade civil. Por meio das instituições políticas, tor-na-se mais fácil o acesso das pessoas aos bens necessários (materiais, cul-turais, morais e espirituais), que pos-sibilitem uma vida digna.

Por isso, cabe ao governo de cada país a missão de adequar com justi-ça os diferentes interesses setoriais,

sendo esta uma das funções mais delicadas do poder público, por ter que proceder a uma correta concilia-ção dos bens particulares de grupos e indivíduos. Deve-se ter em mente, ainda, que os governos devem inter-pretar o bem comum não apenas as posições da maioria, mas também no ponto de vista do bem efetivo de todos os membros da sociedade civil, inclusive os da minoria.

Por fim, saliente-se que, na pers-pectiva social católica, Deus é a fina-lidade última de todas as criaturas, de modo que não se pode olvidar da característica transcendente do bem comum, que ultrapassa, mas tam-bém dá cumprimento, à sua pers-pectiva histórica (JOÃO PAULO II, 1991, n.º 41). Deste modo, uma vi-são estritamente histórica e materia-lista terminaria por compreender o bem comum como simples bem-es-tar econômico, destituído de toda a sua finalidade transcendente, da sua mais determinante razão de ser.

...os governos devem interpretar o bem comum não apenas as posições da maioria, mas também no ponto de vista do bem efetivo de todos os membros da sociedade civil.

3.3. A BUSCA PELO BEM COMUM

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Segundo o princípio da subsi-diariedade, presente já na Rerum Novarum de Leão XIII e realçado na Quadragesimo Anno de Pio XI (1931, n.º 05), o Estado deve presar pela liberdade e proteger o vigor das estruturas sociais intermediárias, como a família, as associações civis, as entidades culturais e econômicas, não sendo recomendado a sua inter-venção na sociedade, senão quando “verdadeiramente o exijam motivos evidentes do bem comum” (JOÃO XXIII, 1961, n.º 116). Deve-se salva-guardar a sociedade civil, compreen-dida enquanto conjunto de relações entre os sujeitos e entidades inter-mediárias, que ocorre em virtude da “subjetividade criativa do cidadão” (JOÃO PAULO II, 1988, n.º15).

Assim, princípio da subsidiarie-dade pode ser encarado tanto num sentido positivo quanto num nega-tivo. Em sua perspectiva positiva, assevera que o Estado deve auxiliar as entidades intermediárias da so-ciedade civil com apoio econômico, institucional e legislativo; em sua

perspectiva negativa, impõe ao Es-tado a abstenção de tudo o que, de fato, limite o espaço das células so-ciais menores e fundamentais.

Segundo o Compêndio de Dou-trina Social da Igreja, são relativos à atuação do princípio da subsidia-riedade: a salvaguarda e a promoção efetiva do primado da pessoa e da fa-mília; a valorização das associações e das organizações intermediárias; a articulação pluralista da sociedade e a representação das suas forças vi-tais; a proteção dos direitos humanos e das minorias; a descentralização da burocracia e da administração; o equilíbrio entre o âmbito público e o privado, com o consequente reco-nhecimento da função social do pri-vado. (2004, n.º 187).

Saliente-se, por fim, que a cor-reta compreensão do bem comum, a proteção da dignidade da pessoa humana, assim como suas implica-ções sociais, deveram ser considera-dos como critério de discernimento no que concerne à aplicação desse princípio.

3.4. O PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE“Estado deve presar pela liberdade e

proteger o vigor das estruturas

sociais intermediárias,

como a família, as associações civis,

as entidades culturais e

econômicas, não sendo

recomendado a sua intervenção

na sociedade, senão quando

‘verdadeiramente o exijam motivos evidentes do bem

comum’”

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3.5. DA PARTICIPAÇÃO POPULAR NA DEMOCRACIA

A participação na vida pública é, ao mesmo tempo, uma das maiores aspirações cidadãs e um dos pilares de todos os sistemas democráticos. Sendo uma das mais importantes garantias da perenidade demo-crática, demanda que os diversos sujeitos da sociedade civil sejam informados, escutados e envolvi-dos neste processo (PONTIFÍCIO CONSELHO “JUSTIÇA E PAZ”,

2004, n.º 190). Deve-se buscar a superação dos

fatores culturais, jurídicos e sociais que dificultam, ou até impossibili-tam, uma participação solidária dos cidadãos no destino da sociedade. Para tanto, faz-se mister a promo-ção educativa dos valores cívicos, com a finalidade de aproximar os sujeitos sociais do apreço e das re-gras da democracia.

Por isso, deve-se evitar práti-cas que tragam consigo, ainda que subsidiariamente, resquícios de autoritarismos políticos, não bas-tando que a participação popular seja garantida na Constituição e na lei, sendo necessário que ocor-ra de modo efetivo e que goze da possibilidade de influenciar mate-rialmente nos rumos das políticas públicas.

4. DOUTRINA SOCIAL NA PRÁTICA: A ATUAÇÃO DA CNBB EM DEFESA DA DEMOCRACIA

4.1. AÇÕES DURANTE O REGIME MILITAR BRASILEIRO

A Confederação dos Bispos do Brasil (CNBB) foi criada em 1952 com o objetivo de coordenar e subsidiar as atividades de orientação religiosa, de condutas beneficentes e filantrópicas, e da atuação social da Igreja Católica em todo o território brasileiro.

Durante o regime militar brasi-leiro, que durou de 1964 a 1985, foi principalmente por meio da CNBB que Igreja Católica realizou questio-namentos e denúncias sobre as práti-cas repressoras do governo.

Com a intensificação da repres-são, Igreja mudou drasticamente sua postura tradicional de neutralidade para uma estratégia de militância em favor dos direitos humanos e da igualdade social. Como consequ-ência, enfrentou dificuldades cres-centes em sua relação com o Estado (CARLOS, 2008, p. 175).

Especialmente a partir do ano de 1969, ganhavam destaque as de-núncias feitas pela CNBB contra a tortura. O Documento Pastoral de

Brasília, mensagem emitida pela As-sembleia Geral do órgão, ocorrida em Brasília em 1970, condenou vee-mentemente a tortura e o terrorismo, este sendo apresentado, também, como uma forma de tortura contra o povo. Foram criticadas, especial-mente, as torturas realizadas pelas “forças da ordem” em face de terro-ristas ou pretensos terroristas (SOU-ZA, 2009, p. 331).

Na seara política, todas estas questões acabavam por gerar um cer-to atrito entre Igreja e o governo mi-litar. Por meio dos boletins da CNBB, expedidos especialmente a partir de 1972, começou-se a veicular contes-tações acerca da diminuição dos po-deres legislativos e da necessidade de se retornar às liberdades democráti-cas e constitucionais. Partindo-se de seus valores espirituais e morais, a Igreja ia reforçando o debate acerca de tais questões, tendo como critério norteador o conceito de dignidade da pessoa humana (Ibidem, p 344).

A atuação da CNBB na defesa da democracia durante o regime militar teve como base uma sólida coope-ração com outras instituições civis, destacando-se aqui a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Como fruto dessa parceria, surgiu, dentre outras, a luta pela anistia ampla, ge-ral e irrestrita, tendo sido aprovado o projeto que a estabelecia em 22 de agosto de 1979.

Outra intervenção importante da CNBB, em parceria com a OAB e ou-tras instituições civis, foi a luta pelas eleições diretas. Como resultado da pressão realizada por essas entidades e pelo povo, a demanda conseguiu ser posta em pauta no Congresso. Mesmo não tendo sido auferido êxi-to imediato, já que Emenda Dante de Oliveira, que estabelecia eleições diretas para presidente da República no Brasil, foi rejeitada, o país veio a se redemocratizar logo depois, com a eleição indireta de Tancredo Ne-ves, em 1985.

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4.2. ALGUMAS AÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Atualmente, a CNBB continua a emitir posicionamentos e a pra-ticar ações concretas referentes à democracia.

Em 2015, por exemplo, afirman-do ser dever da Igreja cooperar com a sociedade para construir o bem co-mum, a CNBB reuniu 1,5 milhões de assinaturas, requerendo a feitura de uma reforma política democrática no país. Defendeu-se, na oportunidade, a participação de todos os setores da sociedade (BRASIL 247, 2015).

Avaliando a crise pela qual o Brasil passava em 2016, às vésperas do impeachment de Dilma Roussef, afirmou que era inadmissível a con-duta dos partidos políticos de ali-mentar a crise econômica por meio do agravamento deliberado da crise política. Asseverou que o momento não era de acirrar os ânimos, mas sim de prosseguir ao exercício do diálogo. Aduziu ainda a necessida-de de se respeitar as manifestações

democráticas, que deveriam ser pacíficas e em prol do bem comum (CNBB, 2016).

Mais recentemente, já em 2017, pronunciou-se sobre a Reforma da Previdência, proposta pelo agora Presidente da República Michel Te-mer. Na ocasião, na qual se posicio-nou contra a reforma, afirmou que os direitos sociais no Brasil haviam sido conquistados com intensa par-ticipação democrática e que qual-quer ameaça a eles merecia imediato repúdio. Defendeu uma reforma que presasse pela inclusão, que buscasse uma auditoria da dívida pública, a taxação de rendimentos das insti-tuições financeiras e a identificação e cobrança efetiva dos devedores da Previdência (CNBB, 2017a).

Em maio deste ano, diante do grave momento político pelo qual o país passava mais uma vez, a CNBB emitiu nova nota, na qual analisava que o Estado democrático de direito,

reconquistado com forte participa-ção popular após o regime de exce-ção, corria riscos na medida em que cresciam o descrédito e o desencan-to com a política e com os Poderes constituídos, cujas práticas haviam se distanciado enormemente dos interesses da população. Seria neces-sária uma profunda reforma política no sistema brasileiro. O descrédito crescente na política poderia propi-ciar o surgimento de “salvadores da pátria” que, substituindo a confiança que deveria ser depositada nas insti-tuições, traria consigo a grave amea-ça do autoritarismo (CNBB, 2017b).

À medida que as contingências sociais vão se modificando, a CNBB vai prestando a sua colaboração, não com o intuito de exaurir as dis-cussões, mas de buscar o diálogo com as outras entidades da socieda-de e do Estado, à procura de solu-ções que enfatizem o resguardo e a promoção da democracia.

Parlatório . MARÇO/2018 . 61

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo, uma home-nagem ao jurista Otto Guerra, apresentou uma breve investigação acerca do modo como a Doutrina Social da Igreja Católica analisa alguns aspectos concernentes à de-mocracia.

Percebeu-se que o estudo desta doutrina faz-se pertinente, primeiro porque os conceitos por ela expostos são, de fato, favoráveis à implemen-tação de um governo democrático, que vise o respeito pelos direitos fundamentais e que preze pela par-ticipação popular na definição das políticas públicas; segundo porque

esta doutrina, por meio, principal-mente, da atuação do laicato e, aqui no Brasil, da CNBB, tende a fornecer um “impulso” a mais para a efetiva-ção de tais valores.

Constatou-se, ainda, que as im-portantes ações da CNBB durante o regime militar brasileiro e após a redemocratização, atuando em de-fesa dos valores democráticos, como o respeito aos direitos humanos, o combate à tortura e a luta pela anis-tia, pelas eleições diretas e por uma reforma política, contribuíram para o fortalecimento do pensamento de-mocrático nacional.

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...as importantes ações da CNBB durante o regime militar brasileiro e após a redemocratização contribuíram para o fortalecimento do pensamento democrático nacional.

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ASPECTS OF DEMOCRACY ACCORDING TO THE SOCIAL DOCTRINE OF THE CHURCH: A STUDY IN HOMAGE TO THE JURIST OTTO GUERRA

ABSTRACTIn honor of the jurist Otto Guer-

ra, a scientific article deals with the use of bibliographical revision, as the Catholic Church, through its social doctrine, addresses some of the va-rious aspects concerning democracy. In the meantime, it is also analyzed how the National Confederation of Bishops of Brazil (CNBB), through its activities as during the military regime as at the current time, con-tributed and continues to contribute to the strengthening of national de-mocratic thought. Finally, using the method of deductive analysis, it is concluded that the Social Doctrine of the Church has a strong appre-ciation for the democratic system, defending its protection and streng-thening, whether through pontifical and apostolic documents, or throu-gh concrete actions, as in Case of the CNBB.Keywords: Otto Guerra. Democra-cy. Social Doctrine of the Church. CNBB.

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Artigo

RESUMOO presente artigo trata do surgimento da moralidade jurídica, da sua ins-

tituição como princípio administrativo na CRFB de 1988, e analisa de quais formas esse princípio se impõe no ordenamento jurídico. Demonstra a partir de então, quais maneiras de fiscalizar a moralidade jurídica propagaram-se no meio público por intermédio dos institutos jurídicos, dos mecanismos de cobrança e fiscalização e também no meio privado, a partir da gestão ética e das regras de compliance. Palavras-chave: Moralidade. Ética. Fiscalização. Compliance.

INTRODUÇÃO

A Evolução da Moralidade Jurídica:

da Instituição como Princípio atéa Efetivação com as Normas de Compliance

Mayara dos Santos da SilvaAdvogada inscrita na OAB/RN.

Este artigo tem como intuito tra-tar da problemática acerca da mora-lidade jurídica, desde as primeiras discussões brasileiras sobre o tema, passando por sua instituição como princípio administrativo na CRFB de 1988, na qual a moralidade pas-sou a elencar o caput do art. 37 da Carta Magna.

Analisando o que ocorreu com o princípio da moralidade nestes 27 anos de Constituição Cidadã, pode-remos demonstrar onde ele foi disse-minado e de quais formas se efetiva, seja no âmbito público ou privado.

No primeiro capítulo, de forma sucinta, demonstraremos o que se entende por moralidade, discorren-

do acerca da dimensão desse termo no Brasil antes de 1988, passando, só então, a analisar o marco que se instituiu ao colocar-se a moralidade como princípio administrativo de obediência pelos três poderes. A par-tir dessa explanação, no segundo ca-pítulo, iremos elencar a legislação na qual se pode verificar a disseminação do princípio da moralidade de forma intrínseca ou extrínseca, textos estes, em sua maioria, elaborados após o advento da CRFB de 1988.

No terceiro capítulo, iremos de-monstrar de que forma a moralida-de jurídica está presente através da gestão ética, seja no setor público ou privado, e quais são as características

Parlatório . MARÇO/2018 . 65

O trabalho tem o intuito de demonstrar o surgimento da moralidade e observar quais mecanismos proporcionam, ou não, a efetivação desse princípio, seja no âmbito público ou no âmbito privado.

que este tipo de gestão deve ter para se propagar. No quarto capítulo, ire-mos conceituar a governança corpo-rativa, que consiste em uma forma de efetivação da moralidade jurídica no âmbito privado. Um de seus objeti-vos é demonstrar que através de boas práticas de governança as empresas podem se desenvolver de forma ética.

Já no quinto capítulo iremos tra-tar das normas de compliance, ter-mo novo no Brasil, mais conhecido no âmbito privado, que consiste em todo o conjunto de normatização necessária para o desenvolvimento da empresa de forma ética. Por fim, na conclusão, poderemos retomar alguns pontos elencados durante o artigo e constatar as mudanças iden-tificadas, de como a moralidade ju-rídica modificou as necessidades no âmbito público e privado.

Considerando que, nessa seara, existem poucas obras acadêmicas, busca-se, a partir desse trabalho, pro-blematizar: quais mudanças ocorre-ram a partir da criação dos institutos que retratam a moralidade?

Os objetivos do presente trabalho consistem em identificar o surgi-

mento do princípio da moralidade; observar quais mecanismos de efe-tivação foram estabelecidos no or-denamento jurídico brasileiro com base no princípio da moralidade; e verificar se houve um aumento des-ses mecanismos.

Como justificativa de ser, o tra-balho tem o intuito de demonstrar o surgimento da moralidade e ob-servar quais mecanismos propor-cionam, ou não, a efetivação desse princípio, seja no âmbito público ou no âmbito privado. Sua relevância organizacional (teórica ou finalida-de) consiste exatamente em avaliar de que forma essa efetivação ocorre, se é ou não satisfatória no contex-to brasileiro atual, ou seja, busca-se saber se há efetividade da norma no plano fático.

Nesta pesquisa, a metodologia implantada consiste, de forma ge-ral, em uma análise qualitativa. Os dados serão coletados de forma pre-dominantemente bibliográfica, ana-lisando- se a perspectiva histórica e o aperfeiçoamento dos institutos a partir da ordem cronológica dos acontecimentos.

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A palavra “moral” decorre do la-tim moralis e há séculos referia-se apenas aos costumes. As primeiras discussões que remontam à palavra moralidade são trazidas da Grécia, mais precisamente com Aristóteles, porém, esta não era uma moralida-de tal como a que entendemos hoje, pois estava mais atrelada às relações entre as pessoas no cotidiano da polis e ao comportamento psíquico humano.

Séculos depois, Henri Welter e Lacharrière desenvolveram, cada um em seu tempo, o início do conceito de moralidade jurídica que existe hoje. Eles acreditavam que a mora-lidade jurídica era fundamental para a boa administração, já que poderia disciplinar o poder discricionário do gestor, porém suas ideias só ganha-ram um desenvolvimento maior na contemporaneidade.

A moralidade administrativa contemporânea difere da moralidade comum, pois aquela está relacionada à ideia de boa administração, da éti-

ca, da probidade, enquanto que esta difere o bem do mal, o aceito do ina-ceitável, e varia de acordo com cada sociedade, cada tempo histórico e com cada cultura de forma que, o que para alguns é totalmente aceitá-vel, para outros é repudiado.

No Brasil, a moralidade desen-volve-se de forma positivada e ini-cialmente voltada para o viés jurí-dico e público apenas no século XX, sendo evidenciada pelo Decreto-Lei n° 3.240, editado em 1941, que já trazia previsão de normas para pes-soas que cometessem crimes aos quais convergissem em prejuízos à Fazenda Pública (MARTINS JÚ-NIOR, 2009, p. 181).

A partir desse recorte histórico da década de 40, a observância para com a moralidade jurídica foi se am-pliando e se aperfeiçoando. É impor-tante destacar que este termo “mo-ralidade jurídica” é relativo, e varia conforme a sociedade e o momento no qual se analisa.

Assim, essa ampliação e aperfei-

2. O PRINCÍPIO DA MORALIDADE

Parlatório . MARÇO/2018 . 67

çoamento do tema sofreram uma estagnação no período ditatorial brasileiro. No entanto, quando a sociedade brasileira se reorganizou politicamente e construiu a Carta Magna de 1988, o tema moralida-de jurídica tornou-se princípio do direito administrativo, elencado no caput do art. 37, concretizando uma tendência jurídica, que se traduz na busca por uma gestão ética, proba, transparente, eficaz, de exercício ple-no e livre de corrupção.

Desta forma, de acordo com o administrativista Garcia (2002), en-tende-se que os atos administrativos devem atender a Lei e também à moralidade administrativa, de for-ma a conjugar uma harmonia entre a situação prática, o interesse do cidadão e o ato praticado pelo ges-tor. Nesse passo, analisa-se todo um contexto para aferir se o equilíbrio desses fatores gera a moralidade ju-rídica almejada.

A moralidade pode ser encontra-da na Constituição Federal de forma explícita em dois dispositivos: no art. 5°, LXXIII, que trata da legitimidade para propor ação popular, cujo esco-po é repelir ato lesivo à moralidade administrativa; e no art. 37, caput, que elenca expressamente a morali-dade como um princípio da Admi-nistração Pública, sendo possível, a partir da exploração dessa última vertente, observar a disseminação de leis que tratam de moralidade.

Atualmente, os princípios vêm ganhando um espaço maior no ce-nário jurídico brasileiro. Pode-se perceber que eles não servem ape-nas para fundamentar decisões ge-néricas. Hoje já existem diversas sanções, sejam elas penais, adminis-

trativas ou cíveis, que decorrem dos princípios implícitos e explícitos na Constituição.

Uma outra acepção, no que tange aos princípios, é a da aplicação da ponderação. Esse instituto é dema-siadamente utilizado pelos nossos juízes, gestores, administradores e por todos que detêm o poder de decisão. A ponderação consiste em escolher, em cada caso concreto, a decisão que se adéque melhor, seja ela para atender a anseios da socie-dade ou para resolver uma lide em particular.

Contudo, o grande pesar dessa acepção, é que a ponderação não é feita, muitas vezes, de forma isonô-mica, no intento de garantir a trans-parência da ação, pois se de um lado existem anseios, e o juiz ou admi-nistrador opta por ponderar, ele não pode fazê-lo sem critérios. É pre-ciso, acima de tudo, demonstrar os critérios que utiliza para resolver os conflitos de forma que haja uma apli-cação transparente, justa e precisa, dando assim publicidade, eficiência e eficácia à decisão.

Como já mencionado, o prin-cípio da moralidade foi positivado na Constituição Brasileira, porém isso ainda não era o suficiente para sua efetiva aplicação. Era necessário disseminar a moralidade em todo o âmbito jurídico, permeando nosso sistema através de leis, decretos, por-tarias, códigos, práticas, normas e regras. Somente com a capilarização do princípio da moralidade no orde-namento jurídico estaríamos todos em busca do mesmo propósito, uma gestão pública e privada alinhada e com o mesmo intuito: dirimir a cor-rupção do nosso país.

É preciso, acima de tudo, demonstrar os critérios que utiliza para resolver os conflitos de forma que haja uma aplicação transparente, justa e precisa, dando assim publicidade, eficiência e eficácia à decisão.

68 . Parlatório . MARÇO/2018

Após o marco que ocorreu com a implementação do princípio da moralidade na Constituição Federal de 1988, era preciso disseminar esse princípio de forma que ele se soli-dificasse no ordenamento jurídico e adquirisse eficiência e eficácia.

Ao longo desses 27 anos de Cons-tituição Cidadã, percebe-se que o ter-mo moralidade está a cada dia mais presente no ordenamento jurídico brasileiro, sendo possível confirmar esse raciocínio a partir da jurispru-dência dos tribunais superiores, das sanções aplicadas em decorrência da falta de moralidade no âmbito jurí-dico, e também a partir do momen-to político que o Brasil vivencia, no qual os cidadãos estão construindo uma participação política mais for-te, aspecto que pode ser observado a partir das manifestações recorrentes no país, principalmente no que tange ao combate à corrupção.

Tendo em vista tal viés, percebe--se que atualmente as pessoas estão extremamente conectadas ao que ocorre no país, se tomarmos como parâmetro algumas décadas atrás. Entretanto, na maioria das vezes, não se busca os meios jurídicos para se propagar o descontentamento, e sim, a internet e as mídias sociais. Como se pode perceber, são essas as ferra-mentas da era digital, que proporcio-nam a propagação de opiniões diver-sas, de manifestações e, também, a disseminação da opinião popular de forma nunca vista em outras épocas.

O cidadão comum possui ao seu alcance diversas ferramentas jurí-dicas de resguardar diversos direi-

tos, que, por vezes, até desconhece. Muitas dessas ferramentas foram legitimadas pela própria Consti-tuição Federal para buscar coibir a corrupção e efetivar a moralidade jurídica. Infelizmente, esses meca-nismos não são de conhecimento de todos, e ainda são pouco aplicados. A título de exemplo, podemos citar a ação popular como um expressivo instrumento de combate ao descum-primento da moralidade.

Assim, é possível identificar a existência de diversas ferramentas para o cidadão buscar a efetivação da moralidade administrativa, exis-tindo, além dessas formas coerciti-vas, que deverão ser utilizadas quan-do essa moralidade jurídica não for observada.

Quando isso ocorre, tornam-se cabíveis os meios coercitivos que o direito elencou para atuar no caso concreto, ou seja, formas impositi-vas, por diversas vezes, encontradas na seara penal, para sancionar aque-les que não atentarem para a morali-dade administrativa.

Dentre as formas indicativas e co-ercitivas, podemos destacar: a Lei de Improbidade Administrativa, a Sú-mula Vinculante n° 13, a Lei de Li-citações, a Lei do Abuso de Poder, a Lei Anticorrupção, a corrupção ativa e passiva tipificada no Código Penal e o Código de Ética do servidor pú-blico federal.

Os atos de improbidade estão elencados na Lei n° 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa ou simplesmente – LIA). Conforme o entendimento de Alexandre de Mo-

3. DISSEMINAÇÃO DO PRINCÍPIO DA MORALIDADE NO ORDENA-MENTO JURÍDICO BRASILEIRO

“A licitação destina-se

a garantir a observância do princípio

constitucional da isonomia, a seleção da

proposta mais vantajosa para

a administração e a promoção do

desenvolvimento nacional

sustentável.

Parlatório . MARÇO/2018 . 69

raes (2007, p. 11), “a possibilidade de responsabilização dos agentes públi-cos por improbidade administrativa depende de prévia previsão legal das condutas ilícitas”.

A LIA possui três artigos princi-pais, que estão divididos de acordo com suas consequências. O art. 9° trata das vantagens que geram en-riquecimento ilícito; o art. 10 trata dos atos que restam prejuízo ao erá-rio; e o art. 11, dos atos que aten-tam contra a administração pública. Assim, de uma forma abrangente, a Lei de Improbidade Administrativa visa combater atos que afrontem à moralidade, principalmente no âm-bito público.

Já a Súmula Vinculante n° 13 do STF, conhecida como Súmula do ne-potismo, visa erradicar essa prática tão comum no funcionalismo públi-co, como elucida o próprio portal do STF1:

A nomeação de cônjuge, compa-nheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da auto-ridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investi-do em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de con-fiança ou, ainda, de função grati-ficada na administração pública direta e indireta em qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste median-te designações recíprocas, viola a Constituição Federal.

Em razão da mencionada súmula, a disposição dos cargos públicos en-

tre algumas famílias tornou-se mais dificultosa, visto que a sociedade já não aceita mais essa prática abusiva e desleal dos detentores do poder.

No que tange à Lei de Licitações, podemos observar o art. 3°, que aduz:

A licitação destina-se a garantir a observância do princípio cons-titucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional susten-tável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralida-de, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convo-catório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos.

Diante do exposto, só é possível haver uma licitação, se esta observar os princípios administrativos elen-cados no art. 37 da Constituição Fe-deral de 1988, em conjunto com os princípios específicos da licitação.

A Lei n° 4898/65 (Lei do Abuso de Poder) retrata, desde a década de 1960, a propagação da responsabi-lidade administrativa, civil e penal para aqueles que abusarem de sua autoridade, seja para com outro ser-vidor público ou para com os cida-dãos em geral.

Uma das temáticas mais recentes sobre o assunto é a Lei n° 12846/13, mais conhecida como Lei Anticor-rupção ou LAC, que modificou as estruturas de atuação, tanto dos en-tes públicos quanto privados, prin-cipalmente no que tange ao combate a corrupção.

1. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante no 13. Diário Oficial da União. Brasília, 29 ago. 2008. p. 1 Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurispru-dencia/menusumario.asp?sumula=1227>. Acesso em: 15 nov. 2015.

70 . Parlatório . MARÇO/2018

A LAC foi um importante ins-trumento demarcatório, haja vista que, a partir dela, as empresas pri-vadas poderão ser responsabiliza-das de forma objetiva se praticarem atos lesivos contra a administra-ção pública nacional e estrangei-ra. Além disso, é possível observar que as empresas estão buscando se adequar, criando códigos de con-duta, aperfeiçoando as práticas de governança corporativa, montando equipes direcionadas ao desenvol-vimento das normas de compliance, e, consequentemente, estão visando proteger seu capital de práticas ilíci-

tas para evitar futuras sanções.O termo moralidade sofreu uma

grande disseminação desde a Cons-tituição Federal de 1988, efetivou-se e tomou forma em vários aspectos da sociedade brasileira. Dentre eles, podemos destacar que, no setor pú-blico, através das legislações criadas desde a promulgação da Consti-tuição até os dias atuais, surgiu um sentimento de busca pela gestão éti-ca, proba, eficiente e eficaz, visando abolir a morosidade do setor público brasileiro através de condutas reves-tidas de ética e que enxergam o cida-dão como um cliente final.

4. GESTÃO ÉTICA

A ética possui um conceito abran-gente que tem o poder de permear todos os aspectos da vida humana, perpassando pelas relações interpes-soais, pelo serviço público e pelas or-ganizações privadas. De acordo com as ideias propostas por Nash (1993), a ética nos negócios estuda, de modo mais específico, o contexto próprio do mercado corporativo e suas im-plicações morais.

Quando analisamos a ética como conceito, podemos concluir que não é possível classificar uma organiza-ção como completamente ética ou antiética, pois esses são conceitos que são construídos todos os dias e podem mudar com apenas uma ação ou omissão.

A partir da explanação do autor Robert Srour (2005), verifica-se que a moralidade administrativa - com-posto fundamental da gestão ética - consiste em um conglomerado com-posto por códigos de padronização,

sistemas de normas simbólicas e fer-ramentas de reprodução social uni-das a discursos abrangentes que são disseminados pela gestão para a for-mação da conduta da coletividade.

A gestão ética possui alguns ob-jetivos a serem atingidos, dentre os quais podemos destacar: a maior consciência das questões éticas no ambiente de trabalho, a coerência na aplicação das possíveis soluções, e principalmente, a prevenção de desastres éticos, que podem com-prometer definitivamente a imagem de uma organização. Para se concre-tizarem, esses objetivos básicos ne-cessitam de aderência do alto escalão da empresa, além de treinamentos abrangentes, que possam contribuir para a rotina de todos os envolvidos.

A gestão ética traduz-se em um alvo almejado, entretanto, diversas vezes não é isso que ocorre e então se faz necessário recorrer aos órgãos e entidades competentes, que pos-

A ética possui um conceito

abrangente que tem o poder de permear todos os aspectos da vida humana, perpassando

pelas relações interpessoais,

pelo serviço público e pelas

organizações privadas.

Parlatório . MARÇO/2018 . 71

suem função investigativa e podem auxiliar na busca por ações ou omis-sões antiéticas.

Alguns exemplos disso são as Co-missões de ética, a Corregedoria-Ge-ral da União, as Corregedorias especí-ficas, as comissões de sindicância ou de inquérito administrativo, o Minis-tério Público, o Tribunal de Contas da União, as Comissões Parlamentares de Inquérito, dentre outros.

O Poder Legislativo e o Judiciário também são alvos de atuação da ges-tão ética. O disposto no art. 116 da Lei n° 8112/90, especificamente nos doze incisos ali contidos, elenca ex-tensivamente os deveres do servidor, valorando implicitamente atitudes éticas.

Apesar do exposto, não pode-mos elencar a gestão ética como um objetivo exclusivo do setor público. Atualmente, ela também consis-te em um desafio aos gestores pri-vados. Para eles, o desafio gira em torno de conciliar os interesses dos acionistas, a realidade do mercado, o ambiente dos negócios e a conduta

humana, fazendo com que todos es-ses fatores se alinhem de forma con-gruente, com um denominador em comum, a ética.

Segundo Alvarez et al (2008, p. 38):

O respeito ao processo ético resul-tará em maior respeito pela orga-nização interna e externamente, aumentando sua credibilidade e integridade. Ética e integridade são essenciais no mercado global, por que empresas percebidas como éticas podem recrutar e reter os melhores empregados e estabelecer relações de longo prazo com ven-dedores, compradores, investidores etc. Além do mais, empresas éticas podem suscitar respeito, reduzindo a pressão de ativistas e da mídia, protegendo sua reputação.

Com efeito, as exigências éticas consistem em uma demanda cres-cente do mercado privado, o que tem levado milhares de empresas a de-senvolverem códigos de ética, práti-

cas de governança corporativa e pro-gramas de compliance, objetivando a transparência e a responsabilidade social. Dessa forma, gestão ética, go-vernança corporativa e compliance devem estar sempre juntas em uma empresa. Faz-se necessário unir estes conceitos de forma que contenham os princípios e valores que guiam a organização.

Por outro lado, podemos obser-var que o grande desafio imposto ao gestor contemporâneo traduz-se em como lidar com os diversos indiví-duos em suas singularidades, já que o comportamento ético deve tradu-zir-se em cada um apesar de suas particularidades.

Diante do exposto, é possível identificar a forma como o princí-pio da moralidade se disseminou no ordenamento jurídico, construindo bases para uma gestão ética, princi-palmente na área pública, criando, também, alicerces na área privada que se disseminaram com a gestão ética, as práticas de governança cor-porativa e as normas de compliance.

72 . Parlatório . MARÇO/2018

De acordo com o Instituto Bra-sileiro de Governança Corporativa – IBGC, a Governança Corporativa consiste em um sistema que busca integrar, através de um relaciona-mento ético, os proprietários, con-selho de administração, diretoria e órgãos de controle.

Para Valmor Slomski et al (2008, p. 3), governança corpora-tiva “é o sistema pelo qual as socie-dades são dirigidas e monitoradas, em que, através de mecanismos específicos, gestores e proprietá-rios procuram assegurar o bom desempenho da empresa para au-mento de sua riqueza”.

Segundo o entendimento de Elísio Serafim et al (2010), a movi-mentação em prol da governança corporativa foi uma resposta aos abusos de dirigentes de grandes empresas, desencadeados no con-texto dos escândalos da década de 1980 nos Estados Unidos, quando foram descobertos esquemas de corrupção, lavagem de dinheiro e desvio de recursos em grandes em-presas norte-americanas.

Esses conflitos fizeram com que as empresas e as partes inte-ressadas no negócio procurassem desenvolver mecanismos de maior acompanhamento e controle, prin-cipalmente por parte dos reais ad-ministradores do negócio. Tal ne-cessidade é recorrente em diversos tipos de empresas, pois os interes-ses dos acionistas nem sempre es-tão alinhados às possibilidades dos administradores de fato. É preciso uma convergência entre interesses e possibilidades para desenvolver um

trabalho único, revestido de ética. De acordo com Rodrigues e

Mendes (2004, p. 114):

A governança corporativa deve atender basicamente ao interesse dos acionistas, em compatibili-zação com os interesses dos em-pregados, clientes, fornecedores, credores e da comunidade em que opera a empresa. Sua operação envolve os grupos de poder vin-culados à condução dos negócios, supervisiona e monitora o desem-penho dos executivos, garantindo a capacidade desses profissionais prestar contas de seus atos aos acionistas e a outros agentes inte-ressados na empresa.

O termo Governança Corpora-tiva é recente no Brasil e ganhou força com a criação do Instituto Brasileiro de Governança Corpo-rativa – IBGC, que, em síntese, é um instituto criado para dissemi-nar boas práticas de governança entre as empresas, adaptando-as às mudanças que ocorrem no merca-do de trabalho.

É possível aplicar as boas práti-cas de governança em empresas de qualquer porte, entretanto, a reali-dade brasileira demonstra que na maioria das vezes, apenas as empre-sas de grande porte possuem uma equipe que trata, exclusivamente, de governança corporativa, de for-ma que esta esteja sempre alinhada aos objetivos da organização.

Na tentativa de disseminar as boas práticas de governança corpo-rativa entre o maior número de inte-

ressados, o IBGC criou o Código de Melhores Práticas de Governança Corporativa, que vem se atualizando constantemente na busca pela exce-lência. De acordo com o Código de Melhores Práticas de Governança Corporativa, os princípios básicos que regem, responsáveis pela lon-gevidade das empresas, são trans-parência, equidade, accountability e responsabilidade corporativa.

Podemos conceituar os princí-pios acima mencionados da seguin-te maneira: transparência consiste em repassar às partes interessadas (os sócios) toda informação que for requisitada por estes e, além disso, todas as informações que sejam necessárias, não apenas as requi-sitadas; equidade traduz a ideia de igualdade entre as partes interes-sadas, o que se converge diversas vezes pelas políticas anti-discri-minatórias elencadas também nos códigos de conduta das empresas; já quando tratamos de accountabi-lity, podemos elencar os meios de prestação de contas, não apenas no âmbito financeiro, mas prestação de contas da atuação em si; a res-ponsabilidade corporativa é verifi-cada pelo comportamento de zelo para com a organização, a partir do sentimento e da atitude de buscar a longevidade da empresa.

Assim, entende-se que a gover-nança corporativa consiste em mais um meio de buscar aplicar no âmbi-to privado a gestão ética, baseada na moralidade, que, unida às normas de compliance, tornam a empresa preparada para atuar de forma ética em todas as situações.

5. GOVERNANÇA CORPORATIVA

Parlatório . MARÇO/2018 . 73

6. NORMAS DE COMPLIANCE

Segundo o Michael Pereira Lira (2013), o termo compliance tem ori-gem do inglês “to comply” que signi-fica agir de acordo com uma regra, uma instrução interna, um comando ou pedido, em resumo significa “es-tar em conformidade”.

A corrupção é um problema glo-bal que atinge desde os países sub-desenvolvidos até as grandes potên-cias, passando, portanto, a ser uma preocupação maior na esfera inter-nacional. Em vista disso, os Estados Unidos editaram uma Lei conhecida como FCPA (Foreign Corrupt Practi-ces Act of 1977), que gerou repercus-são em todo o mundo. A Inglaterra, por sua vez, também editou uma Lei sobre o assunto, que ficou conhecida como UK Bribery Act of 2010.

No Brasil, apesar de o princípio da moralidade ter sido instituído na Constituição Federal de 1988, ape-nas em 2013 o país editou uma Lei especificamente para tratar da cor-rupção. A Lei no 12.846/13, mais co-nhecida como Lei anticorrupção ou LAC, pressionou órgãos públicos e principalmente organizações priva-das na busca da gestão proba.

Devemos lembrar que a corrup-ção, seja no âmbito público ou no privado, tem um custo alto para o país. Ela subtrai recursos que deve-riam alcançar projetos sociais, cons-trução de escolas, hospitais, políticas habitacionais, dentre tantas outras necessidades da população.

A Lei anticorrupção traz para o âmbito jurídico aspectos e reflexos inéditos no âmbito empresarial. Uma das principais inovações é a respon-sabilidade objetiva, civil e adminis-

trativa da pessoa jurídica, conforme demonstrado no art. 2° da Lei no 12.846/13: “as pessoas jurídicas se-rão responsabilizadas objetivamente, nos âmbitos administrativos e civil, pelos atos lesivos previstos nesta Lei praticados em seu interesse ou bene-fício, exclusivo ou não”.

A inovação trazida pela Lei anti-corrupção é que, antes se penalizava apenas a pessoa física, ou seja, o só-cio ou administrador, e a partir da responsabilidade atribuída à pessoa jurídica, o cenário muda e as em-presas reorganizam-se para prevenir a corrupção através das normas de compliance.

Atualmente, as empresas privadas

investem em gestão dos riscos, o que diminui a probabilidade de fraudes internas e gera um ambiente ético e seguro para as organizações.

De acordo com Renato Almei-da dos Santos (2011), “compliance é compreender a natureza e a dinâmi-ca da fraude e da corrupção nas or-ganizações”. Assim, podemos inferir que independentemente do ramo de atuação, é do interesse de toda or-ganização legal cumprir as exigên-cias a fim de preservar sua relação com investidores, com outras orga-nizações, com o governo, e com os stakeholders, preservando, assim, sua imagem perante a sociedade e, prin-cipalmente, seu capital.

“compliance é compreender a natureza e a dinâmica da fraude e da corrupção nas organizações”RENATO ALMEIDA DOS SANTOS

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Além disso, a implantação de programas de compliance que, por um lado geram um gasto, por ou-tro tornam-se um diferencial, pois, quando a empresa investe em ética em suas interações, ela reafirma seus valores e pode se tornar mais atrati-va para o mercado. De acordo com Driscoll et al (1998, p. 37):

Programas de ética e compliance estão estritamente interligados, pois baseiam-se em valores e res-ponsabilidades morais, procuran-do incentivar o cumprimento e a conformidade das leis e das polí-ticas internas, o que por sua vez tende a culminar no fortalecimen-to da cultura ética da organização.

Nos moldes atuais, os programas de ética e compliance devem conter os valores da organização, o seu có-digo de conduta, treinamentos, ca-nais de denúncias e esclarecimentos para os colaboradores, comitês de ética, auditorias internas e externas de ética e compliance, políticas in-ternas e externas que visem dirimir os danos.

Dessa forma, as normas de com-pliance visam como um todo ana-lisar aspectos da vida empresarial e dos meios que a circundam. Al-guns exemplos desses aspectos são a corrupção, a proteção dos ativos da empresa, a regulação setorial, a qualidade dos produtos, o relaciona-mento com os terceiros (partes inte-ressadas), a proteção de informações confidenciais, os conflitos de interes-se, a divulgação de informações pri-vilegiadas, os aspectos ambientais, os crimes de lavagem de dinheiro e colarinho branco, a doação em cam-

panhas políticas, a sonegação fiscal, as fraudes, dentre outras práticas.

De acordo com a Fundação Na-cional da Qualidade, citada na obra de Alexandre Carrasco et al (2011):

Os programas de compliance têm como foco a adoção dos mais ele-vados padrões de ética e conduta na organização, por meio da edu-cação dos funcionários em todos os níveis. Sabe-se, porém, que os riscos de desvios com práticas de fraudes e outros tipos de conduta irregular não são causados apenas pelo comportamento inadequado dos empregados. Os terceiros que atuam em nome da empresa ou mesmo sócios de alguma espécie também têm grande potencial de provocar danos irreparáveis à sua imagem e reputação. Por isso um dos assuntos que vêm sendo deba-tidos atualmente é a importância e a conveniência de as organizações que já implantaram seus progra-mas de compliance e de ética (...) exigirem que seus fornecedores, agentes e terceiros contratados se submetam também a essas regras.

Dessa forma, observamos que, no decorres do tempo, houve uma evolução e crescimento do princípio da moralidade, que se iniciou com a sua positivação na Constituição Fe-deral de 1988, seguida de sua disse-minação no ordenamento jurídico e consequente busca pela gestão ética nas searas pública e privada, apre-sentando significativos avanços, seja com o desenvolvimento de legisla-ção pertinente à temática ou com a criação de práticas de governança, ética e compliance.

Programas de ética e

compliance estão estritamente interligados,

pois baseiam-se em valores e

responsabilidades morais,

procurando incentivar o

cumprimento e a conformidade das leis e das políticas

internas, o que por sua vez tende

a culminar no fortalecimento da

cultura ética da organização.

Parlatório . MARÇO/2018 . 75

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir de todo o exposto ao lon-go do artigo, podemos concluir que a moralidade consistia em um tema pouco discutido no Brasil, mas que, a partir da década de 40, ainda de forma discreta, foi se expandindo. É importante ressaltar que, duran-te a época ditatorial, pouco se falou em moralidade, haja vista o período conturbado o qual o Brasil atraves-sou. Entretanto, foi a partir desse período conturbado que criamos as bases e a necessidade do clamor por moralidade. As pessoas estavam mais conscientes e dispostas a lutar por uma sociedade mais balizada através da moralidade.

Com o advento da Constitui-ção Federal, o termo moralidade foi elencado no art. 37 como princípio básico do direito administrativo, com reflexos em diversos outros arti-gos da Constituição e posteriormen-te elencado em normas especificas.

A partir do momento em que os nossos constituintes originários elencaram o termo moralidade como um princípio do Direito Administra-tivo, isso se tornou um marco. Uma nova forma de tratar termos como moralidade e ética se implantou a partir da necessidade de balizar os atos da gestão.

Com o passar dos anos, o termo moralidade foi se consolidando em diversas áreas da sociedade, princi-palmente no âmbito administrativo e jurídico, e então podemos começar a falar no termo moralidade jurídica, que consistiu nas bases morais apli-cadas ao mundo jurídico, o que gera, eminentemente, reflexos em diversas áreas da nossa sociedade.

A moralidade jurídica se dissemi-nou através de normas que, como re-gra mandamental, fizeram com que a moralidade seja observada e res-peitada. Como exemplo desse tipo de legislação observamos a Lei de improbidade administrativa, a Lei de licitações, a Súmula Vinculante n°13, a Lei anticorrupção, a corrupção ati-va e passiva e o Código de Ética do Servidor Público Federal.

Dessa forma, observamos qual foi a importância de todo esse rol de le-gislação imposto ao longo desses 27 anos de Constituição Cidadã. A par-tir dela o Brasil pôde dar os primei-ros passos na busca pela gestão ética, estabelecendo normas que sancio-nam aqueles que não atentarem para com a moralidade jurídica.

Importante ressaltar que esse de-senvolvimento não refletiu apenas no âmbito público, mas também no âmbito privado. A partir do momen-to que em se tornou obrigatória a observação à moralidade em diver-sas legislações, em especial na Lei anticorrupção, as empresas privadas convergiram seus esforços para se adequar ao novo cenário, desenvol-

vendo códigos de conduta, aplicando boas práticas de governança corpo-rativa e desenvolvendo normas de compliance.

No âmbito privado a grande mu-dança foi a atribuição da responsa-bilidade objetiva à empresa e não apenas aos seus sócios ou adminis-tradores. A partir de então, empresas que têm buscado desenvolver pro-gramas pautados na ética, nas boas práticas de governança e em com-pliance são mais bem vistas por in-vestidores, por outras empresas e por seus próprios funcionários.

Investir em desenvolvimento ético apenas confirma a importância que toda essa legislação causou no mundo jurídico e empresarial. Hoje tão im-portante quanto estar atento ao mer-cado privado, é também estar atento às formas de minimizar os desastres éticos e a corrupção empresarial.

Assim, conclui-se que, nessa ca-deia cronológica, a importância da instituição da moralidade como princípio refletiu em todo o ordena-mento, causando uma busca por um desenvolvimento mais ético, susten-tável e livre da corrupção.

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THE EVOLUTION OF LEGAL MORALITY: THE INSTITUTION AS A PRINCIPLE TO THE EF-FECTIVE COMPLIANCE WITH STANDARDS

ABSTRACTThis article deals with the emer-

gence of legal morality of their ins-titution as a management principle in 1988 CRFB, and analyzes of what forms this principle is imposed by the legal system. It shows from then, what ways to review the legal mora-lity is propagated through the public through the legal institutes, collec-tion and control mechanisms as well as in the private environment, from the ethical management and com-pliance rules.Keywords: Morality. Ethics. Super-vision. Compliance.

78 . Parlatório . MARÇO/2018

Artigo

RESUMOAtualmente muito tem se discutido sobre as razões do patente aumento do

número de causas que são judicializadas. A quantidade de processos repre-senta as inúmeras relações sociais que requerem uma resposta do Judiciário e, graças ao modelo institucional estabelecido nos termos da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, muitas questões poderão ser postas em juízo. Diante disto, verifica-se que o Supremo Tribunal Federal assume papel de preponderância na guarda e interpretação da Constituição, sobre-tudo se considerarmos que ele, enquanto órgão de cúpula do Poder Judiciá-rio, será convidado a dar o parecer final sobre estas questões, tendo as suas decisões meritórias nas ações de controle concentrado efeitos vinculantes e eficácia erga omnes. Neste sentido, partindo-se de uma pesquisa bibliográfi-ca o presente artigo propõe-se a responder: De que modo a Corte Suprema poderá agir sem contrariar os comandos constitucionais? O presente ensaio discorrerá a respeito dos fenômenos da judicialização e do ativismo judicial, ressaltando a modalidade negativa deste ao analisar os votos dos ministros ao indeferirem os pedidos cautelares das Ações Declaratórias de Constituciona-lidade 43 e 44. Visa-se incitar o debate acerca dos deveres e competências que o Pretório Excelso possui enquanto intérprete do Texto Magno, sugerindo ainda algumas técnicas a serem executadas para que haja a racionalização da sua atuação.Palavras-chave: Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Ju-dicialização das questões políticas e relações sociais. Ativismo judicial. Supre-mo Tribunal Federal.

Quem Tem Medodo STF? Estudo Acerca

da Racionalização dos Poderes do Pretório

Excelso

Jodilson Iron Gomes de MedeirosAdvogado inscrito na OAB/RN.

Parlatório . MARÇO/2018 . 79

Atualmente muito tem se discu-tido sobre as razões que dão ensejo ao vertiginoso aumento do número de causas judiciais no Brasil, entre-tanto, é fácil constatarmos que tal fenômeno é decorrência direta das determinações trazidas no bojo da Constituição da República Federati-va do Brasil de 1988. A Constituição Cidadã, atenta aos anseios sociais, prevê um extenso rol de diretos, tra-tando-os de maneira pormenorizada e estabelecendo diversos mecanis-mos para que estes sejam devida-mente garantidos.

O Poder Judiciário assume papel de protagonista na defesa e efetiva-ção de direitos que são estabeleci-dos constitucionalmente, mormente diante da omissão e inércia pratica-das pelos poderes Executivo e Le-gislativo de todas as esferas. Diante disto, caberá ao Supremo Tribunal Federal, enquanto órgão protetor do texto constitucional, estabelecer o sentido e alcance das normas cons-titucionais, sempre velando pela sua aplicação nas relações sociais que são trazidas à sua análise.

Neste passo, assim como Carl Schmitt1, os indivíduos mais atentos

questionam-se e preocupam-se com os limites dos poderes do Pretório Excelso, pois, por tratar-se de órgão de cúpula do Poder Judiciário e cujas decisões nas ações do controle con-centrado possuem efeitos vinculan-tes e eficácia erga omnes, não possui qualquer mecanismo de controle so-bre seus posicionamentos.

O presente artigo discorrerá a respeito dos fenômenos da judiciali-zação e do ativismo judicial, estes de-correntes dos anseios e necessidades sociais em todo o mundo. Além dis-so, tratará a respeito das competên-cias e deveres do STF enquanto ór-gão de cúpula do Poder Judiciário e guardião do Texto Magno, analisan-do de que maneira a Corte Suprema olvida-se de sua responsabilidade enquanto defensora da Carta Política ao indeferir os pedidos liminares nas ADCS 43 e 44 e, agindo como legis-ladora positiva e desempenhando o ativismo judicial de maneira prejudi-cial, dá novo sentido a garantia cons-titucional da presunção de não cul-pabilidade. Ao final, visa-se incitar o debate e propor algumas técnicas para que o Supremo Tribunal Fede-ral possa racionalizar a sua atuação.

INTRODUÇÃO

1. Em sua obra “Der Hüter der Verfassung. Tübingen: Mohr, 1931. P. 7, Carl Schmitt, ressalta a seguinte preo-cupação: “o guardião da Constituição torna-se facilmente seu Senhor”.

O Poder Judiciário assume papel de protagonista na defesa e efetivação de direitos que são estabelecidos constitucionalmente, mormente diante da omissão e inércia praticadas pelos poderes Executivo e Legislativo de todas as esferas.

80 . Parlatório . MARÇO/2018

Segundo dados extraídos da Revista “Justiça em números”2, or-ganizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no ano de 2016, hodiernamente o Brasil conta com cerca de 102 milhões de processos, os quais, sem sombras de dúvidas, evidenciam a crescente judicializa-ção das inúmeras relações que se estabelecem no seio da sociedade.

Do mesmo modo, estes núme-ros também representam a intensa necessidade que os indivíduos pos-suem de ter os seus direitos que são estabelecidos constitucionalmente devidamente efetivados através de uma decisão judicial – sejam os di-reitos que se referem à liberdade, personalidade e propriedade, até aqueles que dizem respeito ao direi-to de ter um meio ambiente saudá-vel, aos direitos trabalhistas, previ-denciários, dentre outros.

O processo de judicialização foi conceituado pelo cientista po-lítico estadunidense Chester Neal Tate (TATE; VALINDER, 1995) o qual entende que o fenômeno sig-

nificaria o deslocamento da esfera de decisão de alguns aspectos que inicialmente caberiam aos poderes Legislativo e Executivo para o setor de atuação do Judiciário.

O fenômeno da judicialização das questões políticas e relações sociais é uma tendência mundial, possuindo como marco propulsor as previsões trazidas nas Consti-tuições de Portugal de 1976 e da Espanha de 1978, tendo tal tendên-cia sido potencializada no texto da Constituição da República Federa-tiva do Brasil de 1988 (BARROSO, 2012, p. 2).

Estas Constituições, distinta-mente das constituições liberais, são desconfiadas do legislador. Por consequência, preferem indicar qual caminho deverá ser tomado para que haja a implementação dos direitos fundamentais, relegando aos Poderes Legislativo e Executi-vo somente a função de execução da vontade do constituinte origi-nário. Neste sentido, é entregue ao Poder Judiciário a função princi-

pal de guarda da Carta Maior, pos-suindo o Supremo Tribunal Fede-ral papel de preponderância neste desiderato.

Como destacado por Luís Ro-berto Barroso, no Brasil grande parte da judicialização é reflexo do sistema institucional previsto em nossa Carta Política, que é mani-festamente ambiciosa e analítica, prevendo pormenorizadamente di-versos assuntos, os quais, graças ao princípio da inafastabilidade do Po-der Judiciário, previsto nos termos do art. 5º, inciso XXXV do Texto Magno, poderão ter suas questões correlatas postas em juízo.

Some-se a isto a ocorrência de inúmeras exigências da sociedade e do descaso do Estado, este manifes-to na inércia e na omissão dos po-deres Legislativo e Executivo para com os direitos dos cidadãos, os quais são obrigados a recorrerem ao Poder Judiciário para que possam ter seus direitos realizados e assim exercer a democracia (NELSON; DE MEDEIROS, 2015, p. 14).

2. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em números. Brasília: CNJ, 2016. Anual. 404 f:il. I Poder Judiciário - estatística - Brasil. II Administração pública - estatística - Brasil. p. 42.

2. JUDICIALIZAÇÃO DAS QUESTÕES POLÍTICAS E SOCIAIS

Parlatório . MARÇO/2018 . 81

Como demonstrado, a crescente judicialização das relações sociais deve-se em grande parte ao perfil institucional adotado pela Consti-tuição da República Federativa do Brasil de 1988, pois esta, símbolo da mudança democrática brasilei-ra, conscientiza as pessoas dos seus próprios direitos e lhes garante ins-trumentos para efetivá-los sem que seja exigida prévia regulamentação legislativa para tanto. Para que isto ocorra, são atribuídas diversas prer-rogativas aos magistrados, o que faz com que o Poder Judiciário transmu-te-se em um verdadeiro poder políti-co, estando habilitado para fazer va-ler a Constituição e as leis, inclusive quando em confronto com os outros poderes (BARROSO, 2012, p. 2).

Cumpre aqui fazer a distinção entre os fenômenos da judicialização e do ativismo judicial, sempre men-cionados quando se discute sobre as razões do acentuado aumento do nú-mero de causas judiciais.

Inicialmente, impende esclarecer que se atribui a Arthur Schlesinger o mérito de ter cunhado a expressão “ativismo judicial”, pois em 1947 ele publicou na revista “Fortune” o artigo “The Supreme Court: 1947” através do qual analisou o comportamento dos juízes frente às ações judiciais, dife-renciando-os entre os “ativistas” (ac-tivists) e “passivistas” (self-restrain) ou “campeões da resistividade judicial” (champions of judicial restraint). Para Arthur Schlensinger os primeiros te-riam como característica o fato de in-serirem em suas decisões as próprias noções de bem comum, ao passo que os passivistas buscavam preservar em

seus juízos a margem de conformação do legislador valorizando uma maior deferência judicial (NELSON; DE MEDEIROS, 2015, p. 14).

Diferentemente da judicialização, que no Brasil vem em manifesta ex-pansão pós Constituição Federal de 1988, tendo como fundamento a or-dem constitucional de afirmação dos direitos fundamentais, nas palavras de Luís Roberto Barroso o ativismo judicial pode ser encarado como uma atitude, um modo específico e proativo de interpretar a Constitui-ção, alargando seu sentido e alcance. E o doutrinador segue afirmando que o ativismo judicial geralmente ocorre diante de situações de reten-ção do Poder Legislativo, do deslo-camento entre a classe política e a sociedade civil, o que faz com que as demandas sociais não sejam atendi-das de maneira efetiva (BARROSO, Op., cit., p. 2).

Em que pese atualmente inexis-tir um consenso doutrinário e ju-risprudencial sobre a conceituação do termo ativismo judicial, diante da velocidade das transformações e aceleração da vida, que requerem a constante e célere efetivação dos direitos, verificamos que este é um fenômeno necessário, fonte de rea-lização democrática. Tal afirmativa pode ser corroborada sobretudo se considerarmos a evidente e sofrida omissão dos poderes Legislativo e Executivo para com os direitos dos indivíduos, oferecendo-lhes políticas públicas pouco eficazes.

Consigne-se que o texto consti-tucional de 1988, por tratar porme-norizadamente de diversos assuntos,

2.1. CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO

“...o ativismo judicial pode ser encarado como uma atitude, um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, alargando seu sentido e alcance; geralmente ocorre diante de situações de retenção do Poder Legislativo, do deslocamento entre a classe política e a sociedade civil, o que faz com que as demandas sociais não sejam atendidas de maneira efetiva.

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aliado a progressiva centralização de poderes no STF, aponta para uma mudança no equilíbrio no sistema de separação de poderes no Brasil, convidando-nos a encontrar o “pon-to de equilíbrio” entre a atuação do poder judiciário e o espaço da legis-lação, ambos necessários para o de-senvolvimento da sociedade.

A referida preocupação foi tra-zida por Luís Roberto Barroso, que com maestria nos alerta: “[...] a im-portância da Constituição – e do Ju-diciário como seu intérprete maior – não pode suprimir, por eviden-te, a política, o governo da maio-ria, nem o papel do Legislativo. A Constituição não pode ser ubíqua” (BARROSO, Op., cit., p. 9).

Registre-se que a judicialização e o ativismo judicial compreendem assuntos como a legitimidade de-mocrática, a politização da justiça e a falta de capacidade institucional do Judiciário para decidir sobre de-

terminadas matérias.Caberá a lei, observados os va-

lores, fins e processo legislativo estabelecidos constitucionalmente, escolher entre os diferentes cená-rios que são inerentes as socieda-des pluralistas, sempre respeitando os comandos trazidos no bojo do estatuto constitucional. Nesta pers-pectiva, caberá ao Supremo Tribu-nal Federal ser deferente para com as decisões tomadas pelos outros poderes, agindo com parcimônia ao analisá-las, fazendo valer nas decisões dos poderes Legislativo e Executivo, e principalmente nas suas, a vontade dos constituintes originários encartada nos coman-dos constitucionais.

Ao cumprirem a sua função os ministros do Supremo Tribunal Federal deverão considerar que o Brasil constitui um Estado Demo-crático de Direito, guiado pelos pre-ceitos constitucionais, possuindo

dentre os seus fundamentos a dig-nidade da pessoa humana. No que concerne a este fundamento, cum-pre registrar que nas palavras do eminente professor Walter Nunes a dignidade da pessoa humana cons-titui fundamento da moralidade democrática e deverá ser respeitada independentemente do momento sociopolítico em que se viva, pois servirá para afastar qualquer trata-mento mais rigoroso por parte dos indivíduos que acreditam que esta seria a única maneira de descobrir a verdade ou mesmo punir o agente (SILVA JÚNIOR, 2005, p. 374).

A seguir serão abordadas as atri-buições que foram conferidas ao Supremo Tribunal Federal através da Constituição da República Fede-rativa do Brasil de 1988, levando-se em consideração o seu papel en-quanto garantidor e efetivador dos direitos fundamentais estabelecidos através do texto constitucional.

3. O PAPEL DO STF ENQUANTO DEFENSOR E INTÉRPRETE DA CONSTITUIÇÃO DE 1988 – DE GUAR-DIÃO AO CONSTANTE RECEIO DE TORNAR-SE SENHOR DA CARTA POLÍTICA

Criado após a proclamação da República, o Supremo Tribunal Fe-deral é o órgão de cúpula do Poder Judiciário, representando um tri-bunal de jurisdição nacional, com as suas funções estabelecidas nos termos do art. 102 do Texto Mag-no. Segundo o dispositivo legal em comento, o STF disporá de compe-tência originária, prevista no art. 102, I; e recursal, a qual abarca os recursos ordinário, previsto nos ter-mos do art. 102, II; e extraordinário, atribuição trazida no art. 102, III do texto constitucional.

Ressalte-se que após as altera-ções trazidas pela Emenda Consti-tucional 45/2004, conhecida como a emenda responsável pela reforma do Judiciário, o texto da Carta Polí-tica passou a prever no artigo 102, § 2º que as decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal nas ações dire-tas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucio-nalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante relativa-mente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública

direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.

Logicamente, ainda que aja es-tritamente nas situações previstas constitucionalmente, caberá ao in-térprete do Texto Magno valer-se do seu intelecto para preencher a lacuna jurídica existente, haja vis-ta que embora a Constituição de 1988 tenha antecipado a situação que exige a aplicação de seu texto, ela não estabelece de que modo à utilização ocorrerá, diferenciando--se de acordo com a situação real analisada.

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A título de ilustração, cumpre mencionar que mesmo para Hans Kelsen, tido como o pai do positi-vismo, a norma jurídica poderia ser encarada como uma “moldura que deveria ser preenchida durante o processo hermenêutico, pois contêm diversos espaços em branco” (KEL-SEN, 1999 apud TEIXEIRA, 2012).

A Constituição da República Fe-derativa do Brasil de 1988, assim como todas as leis, realiza-se através da atividade intelectual do intérpre-te, todavia, a sua interpretação dife-rencia-se das demais normas, pois o seu texto, dado o seu caráter eminen-temente político e modelo institucio-nal adotado, conta com conceitos e categorias jurídicas de elevado grau de generalidade e abstração, o que por vezes ocasiona a intromissão do Judiciário em competências que ini-cialmente são atribuídas aos poderes Legislativo e Executivo.

Como mencionado pelo Minis-tro Celso de Mello ao citar Francisco Campos em seu discurso proferido em nome do Supremo Tribunal Fe-

deral na solenidade de posse do Mi-nistro Gilmar Mendes, ocorrido na Presidência da Suprema Corte do Brasil, em 23.04.2008, verifica-se que “A Constituição está em elaboração permanente nos tribunais incumbi-dos de aplicá-la (...). Nos Tribunais incumbidos da guarda da Constitui-ção, funciona, igualmente, o poder constituinte”3.

Isto posta, constata-se que cabe-rá ao Judiciário criar o direito dian-te da análise do caso concreto, pois conforme mencionado por Ávila (2008, apud NELSON; DE MEDEI-ROS, 2015 p. 17) “o intérprete não só constrói, mas reconstrói sentido, tendo em vista a existência de signi-ficados incorporados ao uso linguís-tico e construídos na comunidade do discurso”. Desta forma, é de fácil comprovação a importância que a criação jurídica pela via da interpre-tação do texto constitucional assu-me, a qual sempre deverá ter como parâmetro a realidade social vigente e a incessante busca pela realização dos direitos fundamentais.

“A Constituição está em elaboração permanente nos tribunais incumbidos de aplicá-la (...). Nos Tribunais incumbidos da guarda da Constituição, funciona, igualmente, o poder constituinte”MINISTRO CELSO DE MELLO, CITANDO FRANCISCO CAMPOS

3. Disponível em: <www.stf.gov.br/arquivo/cms/noti-ciaNoticiaStf/anexo/discursoCM.pdf>. Acesso em 04 de novembro de 2016.

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Por tais razões, o Supremo Tri-bunal Federal não tem mais volta-das para si apenas as atenções de es-pecialistas e operadores do Direito, passando os seus julgados a fazerem parte do cotidiano de todos os cida-dãos. A cada julgamento proferido pelo STF, os quais são amplamente televisionados através da “TV Jus-tiça” e divulgados pela Internet, os indivíduos vão se habituando (e esperando) que delicadas questões sociais sejam decididas pela Corte Suprema.

Ao cumprirem o seu desiderato os ministros do Supremo Tribunal Federal deverão estar cônscios de que, diferentemente do que foi afir-mado por Lassalle, a Constituição de um país é bem mais que um pedaço de papel cuja capacidade de regular e de motivar está limitada aos fato-res reais de poder, estes entendidos como as decisões decorrentes dos poderes políticos. Como bem ressal-tado por Konrad Hesse (HESSE; tra-duzido por Gilmar Ferreira Mendes. 1991. P. 25/26), a Constituição é de-terminada pela realidade social e, ao mesmo tempo, determinante em re-lação a ela, não devendo ser conside-rada, necessariamente, a parte mais fraca em caso de eventual conflito. E o referido jurista segue afirmando que todos os interesses passageiros, ainda quando realizados, não con-seguem compensar o imensurável ganho decorrente do demonstra-do respeito ao texto constitucional, mormente naquelas situações em que a sua observância manifesta-se incômoda.

Ademais, caberá aos intérpretes da Constituição, no caso em análise, aos Ministros do Supremo Tribu-

nal Federal, estabelecerem a ligação entre o Texto Magno e a realidade social, principalmente diante da re-lação de interdependência entre os comandos constitucionais e a situa-ção em que a sociedade se encontra. O estabelecimento do aludido elo se faz necessário para que os ministros possam formular as suas decisões, haja vista que a força normativa da Constituição relaciona-se com a for-ça das questões sociais que são tra-zidas ao seu julgamento e requerem ser normatizadas (NELSON; DE MEDEIROS, 2015, p. 2).

Ao tratar sobre a conexão existen-te entre a dinâmica social e a consti-tucional, Justen Filho (JUSTEN FI-LHO, 2002 p. 9), afirma:

(...) há um fenômeno de interação entre o meio social e a constitui-ção, com efeitos reflexos e perma-nentes. Uma constituição influen-cia e determina a organização social, mas a sociedade também vivencia as normas constitu-cionais (que produz) de modos variáveis e dinâmicos. Por isso, o texto constitucional compor-ta diferentes interpretações e, ao longo da trajetória de um povo, vão-se alterando as concepções jurídicas acerca do significado e extensão das normas (e, mesmo, princípios) constitucionais. A di-namicidade dos processos sociais se reflete sobre a constituição, de modo que as inovações vivencia-das ao interno da sociedade são influenciadas pela disciplina jurí-dica, mas também se refletem so-bre o Direito, mesmo sobre aquele pré-existente (JUSTEN FILHO, 2002, p. 9).

“A dinamicidade dos processos

sociais se reflete sobre a

constituição, de modo que as inovações vivenciadas

ao interno da sociedade são influenciadas

pela disciplina jurídica, mas

também se refletem sobre o Direito, mesmo

sobre aquele pré-existente”JUSTEN FILHO

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Para Justen Filho toda Constitui-ção poderia ser encarada como uma soma de princípios e regras cuja ex-tensão e conteúdo possuem natureza dinâmica. E quanto à necessidade do permanente diálogo entre as re-alidades sociais e constitucionais o referido jurista aduz que “se a cons-tituição permanecesse inalterada, cristalizada segundo a conformação do momento original, haveria uma dissociação entre direito e sociedade, que não é apenas indesejável, mas é impossível” (JUSTEN FILHO p. 9).

Ressalte-se que, ao julgarem, os Ministros deverão inocularem em suas decisões os ideais e objetivos tra-zidos constitucionalmente, sem que olvidem o que a Constituição da Re-pública Federativa do Brasil de 1988 representa para a nossa sociedade.

Ao tratar sobre as funções atri-buídas a Constituição de 1988 Luís Roberto Barroso afirma:

Por essa razão, a Constituição deve desempenhar dois grandes papéis. Um deles é o de estabelecer as regras do jogo democrático, as-

segurando a participação política ampla, o governo da maioria e a alternância no poder. Mas a demo-cracia não se resume ao princípio majoritário. Se houver oito cató-licos e dois muçulmanos em uma sala, não poderá o primeiro grupo deliberar jogar o segundo pela ja-nela, pelo simples fato de estar em maior número. Aí está o segundo grande papel de uma Constituição: proteger valores e direitos funda-mentais, mesmo que contra a von-tade circunstancial de quem tem mais votos (BARROSO, 2012. p. 6).

Luís Roberto Barroso segue discorrendo sobre a função do Su-premo Tribunal Federal enquanto guardião e intérprete do texto cons-titucional, alertando-nos para o se-guinte aspecto:

E o intérprete final da Constitui-ção é o Supremo Tribunal Federal. Seu papel é velar pelas regras do jogo democrático e pelos direitos fundamentais, funcionando como um fórum de princípios – não de

política – e de razão pública – não de doutrinas abrangentes, sejam ideologias políticas ou concepções religiosas (ibidem).

A afirmação acima corrobora a inarredável necessidade de os Mi-nistros do Pretório Excelso atuarem respeitando os ideais e comandos constitucionais e decidirem levando em consideração o que a Constitui-ção da República Federativa do Bra-sil de 1988 representa para a nossa sociedade, haja vista que ela retorna a um modelo político jurídico foca-do na democracia, promovendo a ampliação das liberdades civis e dos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos.

Agir de maneira diversa, afastan-do ou até mesmo reformulando os comandos constitucionais sem con-siderar as retromencionadas funções atribuídas a Constituição de 1988 e a realidade vigente na sociedade, seria contrariar o Texto Magno e abando-nar o seu papel de guardião da Car-ta Política (DIMOULIS; LUNARDI, [s.n] p. 3 e 4).

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Este artigo analisará de que ma-neira o Pretório Excelso, através dos seus Ministros, decidiu pela altera-ção da interpretação do comando constitucional que prevê o princípio da presunção de não culpabilida-de4, tendo este sido o entendimento proferido na decisão que indefere os pedidos liminares das ações declara-tórias de constitucionalidade de nú-meros 43 e 44.

As referidas ADCS’s foram ajui-zadas pelo Partido Ecológico Na-cional (PEN) e o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB), e em ambas, busca-se de-clarar que a aplicação do artigo 283 do Código de Processo Penal (CPP) (Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outu-bro de 1941), cuja redação foi dada pela lei 12.403/2011, está em plena consonância com o texto constitu-cional, haja vista que a Constituição da República Federativa do Brasil ao tratar no Título II Dos Direitos e Ga-rantias Fundamentais, em especial dos direitos e deveres individuais e coletivos, estabelece em seu artigo 5º, LVII que “ninguém será conside-rado culpado até o trânsito em julga-do de sentença penal condenatória”.

Esclareça-se que trânsito em jul-gado pode ser encarado como o es-gotamento de vias recursais, entre-tanto, não quer dizer que todo o réu utilizará de todos os recursos previs-tos, mas terá o direito subjetivo de fazer uso de todos eles, vez que são trazidos legalmente. Isto posto, ve-rifica-se que segundo os comandos constitucionais, somente será consi-

derado culpado aquele que tem em seu desfavor uma sentença, ou até mesmo acórdão, condenatória (o) após o trânsito em julgado5.

Apesar da clareza do comando constitucional em apreciação, o qual dispõe que a prisão somente deverá ocorrer em situações excepcionais ou posteriormente ao trânsito em julgado da sentença condenatória, no dia 05/10/2016 o Supremo Tribu-nal Federal, por maioria de votos, 6 a 5, indeferiu os pedidos cautelares formulados nas ADCS 43 e 44, tendo mantido o entendimento já proferi-do pela Corte em fevereiro do ano de 2016, permitindo a possibilidade de prisão após uma condenação por co-legiado de segunda instância.

Seis dos onze ministros do Supre-mo Tribunal Federal entenderam que qualquer indivíduo poderá começar a cumprir a pena desde que tenha sido condenado por um tribunal de Justiça ou por um Tribunal Regional Federal (TRF), ainda que disponha de recursos pendentes de apreciação no Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou no próprio Pretório Excelso.

Em que pese à clareza do texto constitucional ao prever que nin-guém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença pe-nal condenatória (art. 5º, inciso LVII da CRFB/88), o que não abre espa-ço para quaisquer tipos de dúvidas, ao indeferir os pedidos cautelares nas Ações Declaratórias de Cons-titucionalidade 43 e 44 e permitir a execução antecipada da pena depois da confirmação da condenação por

4. ANÁLISE DO INDEFERIMENTO DOS PEDIDOS CAUTELARES FORMULADOS NAS ADC’S 43 E 44 – A MUTILAÇÃO DA GARANTIA CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE NÃO CULPABILIDADE

4. Nas palavras do eminente professor Walter Nu-nes, em sua obra “Teoria constitucional do processo penal: limitações fundamentais ao exercício do di-reito de punir no sistema jurídico brasileiro”, p. 500 e ss., a previsão do princípio da presunção de não culpabilidade entre os direitos fundamentais é uma das inovações trazidas no bojo da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e, para ele, a escolha pelos constituintes originários para a utili-zação desta terminologia é digna de encômios, haja vista que se houvesse sido acolhido o termo “princí-pio da presunção de inocência”, haveria a inviabili-dade de todo o sistema processual, sobretudo no que concerne às medidas de natureza cautelar. Em seu entender, caso os constituintes originários tivessem preferido o termo “princípio da presunção de ino-cência”, para iniciar-se um processo a prova quanto à culpabilidade do agente deveria ser idêntica àquela que dá a certeza material. Com base nestas conside-rações o ilustre mestre afirma que o nome correto é o da presunção de não culpabilidade, haja vista que ele vigora, com toda a sua essência, quando o juiz, com o seu pronunciamento, pode firmar a culpabi-lidade do acusado.

5. Assad, Thathyana Weinfurter. Do aniversário ao epitáfio: a Constituição e o STF – Disponível em: <http://canalcienciascriminais.jusbrasil.com.br/ar-tigos/392429576/do-aniversario-ao-epitafio-a-cons-tituicao-e-o-stf?utm_medium=email&utm_sour-ce=email-notification> Acesso em 07 de novembro de 2016.

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uma decisão de segundo grau, o Su-premo Tribunal Federal realiza uma superinterpretação da norma, im-pondo a sua vontade enquanto intér-prete do Texto Magno.

Com a decisão adotada, não só políticos sem foro privilegiado, como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o deputado cassado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) poderão vir a ser impactados com o novo entendimen-to imposto pelo Supremo Tribunal Federal. Todos aqueles que depen-dem da retificação de sentença pro-ferida na instância de primeiro grau estarão sujeitos, em um só momento, a lidarem com a lentidão do siste-ma judiciário; a falência do sistema carcerário brasileiro – em iminente colapso; e a descrença na segurança jurídica – por que não nos dizer pró-prios comandos constitucionais.

Ao decidir desta maneira a Su-prema Corte desconsidera a seme-lhança, ou melhor, a reprodução do comando constitucional que prevê o

princípio da não culpabilidade pre-visto de forma diversa, porém com o mesmo sentido, nos termos do arti-go 283 do Código de Processo Penal, objeto das ADCS 43 e 44.

Diante da situação narrada veri-fica-se que o Pretório Excelso afirma o que a Constituição não diz, contra-riando o texto constitucional e assu-mindo a posição de constituinte ori-ginário. Esta atitude é um exemplo claro de ativismo judicial, haja vista que os Ministros decidiram, ceden-do às pressões midiáticas e popula-res, contrariar o texto constitucional e dar novo significado ao direito fun-damental e ao princípio constitucio-nal da presunção da não culpabili-dade, trazidos nos termos do art. 5º, inciso LVII, CRFB/1988.

Desta forma questiona-se: Como o STF poderá cumprir o seu deside-rato sem imiscuir-se nas funções dos demais poderes? Como poderá agir sem contrariar o próprio texto cons-titucional?

5. RACIONALIZAÇÃO DA ATUAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ENQUANTO INTÉRPRETE DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988

Como mencionado no decorrer do presente texto, caberá ao intér-prete do Texto Magno, valendo-se da abstração e generalidade dos princípios constitucionais, agir com o intuito de defender as garantias e direitos fundamentais assegurados a todos os indivíduos, mesmo que para isso seja necessário interpretar de maneira contrária o que é esta-belecido através da legislação ordi-nária. Do mesmo modo, também deverá considerar que atualmente a Constituição funciona como uma es-

pécie de “filtro” para a interpretação de todos os demais ramos jurídicos, tendo os direitos fundamentais espe-cial importância nesta ação, vez que compõem a essência da força nor-mativa da própria Constituição.

Não se pode esquecer que os ministros da Corte Suprema, as-sim como os demais julgadores, são pessoas que possuem uma história, memórias, sentimentos, orientações ideológicas, morais e políticas, so-frendo influências destes fatores para que possam formular as suas opini-

ões e posicionamentos. Ocorre que por tratar-se de um órgão técnico, o Supremo Tribunal Federal deverá decidir as questões que lhe são tra-zidas não só considerando-se a rea-lidade vigente, mas também deverá, e principalmente, levar em consi-deração que também é responsável pela efetivação dos direitos funda-mentais que são trazidos no bojo do texto constitucional, por mais que este posicionamento de certo modo contrarie os desejos de quem possui a maioria dos votos.

Os ministros da Corte Suprema, assim como os demais julgadores, são pessoas que possuem uma história, memórias, sentimentos, orientações ideológicas, morais e políticas, sofrendo influências destes fatores para que possam formular as suas opiniões e posicionamentos.

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Ao julgar, a Corte Suprema de-verá considerar que é dotada de poder representativo, agindo em nome do povo e, por esta razão, deve satisfações à sociedade. Os ministros devem sempre ponderar em quais situações deverão agir como legisladores positivos, pois agir deste modo, por si só, gera ins-tabilidade institucional e, por con-sequência, insegurança jurídica.

Para que haja a racionalização das atividades do Supremo Tribu-nal Federal enquanto intérprete do Texto Magno, ao decidirem os ministros deverão evocar as garan-tias constitucionais que lhes foram outorgadas, representadas na vi-taliciedade, inamovibilidade e ir-redutibilidade de vencimentos, as quais lhes possibilitam decidirem de acordo com o que estabelece a Constituição sem que se sintam pressionados pela mídia e pelos cla-mores de parte da sociedade e sem que julguem objetivando fins espe-cíficos de um determinado grupo.

Neste caso, ceder à pressão po-pular seria encetar um ativismo ju-dicial nocivo aos termos constitu-cionais e as próprias garantias dos indivíduos, pois em nome da von-tade popular se negariam direitos que lhes são inerentes, tendo como intento apenas a satisfação de in-teresses de determinado grupo so-cial. Tal atitude foge por completo da racionalidade jurídica esperada do Pretório Excelso. Ao discorrer sobre a prejudicialidade desta for-ma de ativismo judicial Anderson Vichinkeski Teixeira aduz:

Diante disso, a forma mais nociva de ativismo judicial é aquela que

vincula o julgador a um setor ou setores sociais específicos, em de-trimento de indivíduos cujos inte-resses se encontram juridicamente protegidos, os quais teriam no Ju-diciário o espaço derradeiro para a sua proteção. Não se confunda essa prática com julgar influen-ciado por orientações pessoais, pois, conforme já falamos, qual-quer indivíduo possui preferên-cias políticas, religiosas e morais (bem como sexuais, gastronômi-cas, enológicas, etc.), mas isso não impede que a decisão esteja em plena conformidade com o orde-namento jurídico vigente. Isso parece algo pacífico e sem maio-res complicações. A nocividade maior do ativismo judicial ocorre quando a decisão judicial tem um fim político e depende da negação à tutela de interesses legítimos de alguma parte da ação, funda-mentando-se em argumentos que transcendem a racionalidade ju-rídica (TEIXEIRA, 2012 p. 48).

Ao decidirem, os ministros de-verão estar cônscios de que a sua atividade enquanto intérpretes da Constituição não se limita a darem respostas a um caso concreto mas, principalmente considerando-se as características das decisões definiti-vas de mérito nas ações do controle concentrado, as quais segundo os comandos do art. 102, § 2º possuem eficácia erga omnes e efeito vincu-lante, considerarem os impactos que seus entendimentos produzirão na realidade, bem como se a deci-são servirá de instrumento para a proteção dos direitos fundamentais trazidos no texto constitucional.

Ressaltando os cuidados que deverão ser tomados por todos os magistrados, no caso em análise pelos ministros do Pretório Excel-so, Luís Roberto Barroso aduz:

O juiz, por vocação e treinamen-to, normalmente estará prepara-do para realizar a justiça do caso concreto, a microjustiça. Ele nem sempre dispõe das informações, do tempo e mesmo do conheci-mento para avaliar o impacto de determinadas decisões, proferidas em processos individuais, sobre a realidade de um segmento econô-mico ou sobre a prestação de um serviço público (...) Em suma: o Judiciário quase sempre pode, mas nem sempre deve interferir. Ter uma avaliação criteriosa da própria capacidade institucional e optar por não exercer o poder, em autolimitação espontânea, antes eleva do que diminui.

Ressalte-se que consoante o sis-tema democrático no qual estamos inseridos a criação de novas regras deverá ser exercida por órgãos re-presentativos, sujeitos a mecanis-mos de controle popular. Ao criar regras e não proteger as existentes, a Corte Suprema será cobrada pelas consequências de seus atos, porém, por tratar-se de órgão de cúpula do Poder Judiciário, não existem ins-trumentos institucionais para que estas cobranças sejam realizadas (BARROSO, 2012).

Diante da ausência de mecanis-mos institucionais eficazes a serem utilizados na cobrança e contro-le dos atos do Pretório Excelso, é patente a urgente necessidade que

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este órgão possui de racionalizar a sua atuação. Isto ocorrerá quando a Suprema Corte conscientizar-se de sua própria capacidade institucional, considerando que existem algumas questões que são melhores decidi-das pelos outros poderes; considerar as garantias institucionais que lhe

são outorgadas, haja vista que sendo dotado de poder representativo, de-verá satisfação a toda a sociedade e não apenas a uma parcela dela; e, por fim, estar cônscio de que as consequ-ências das suas decisões ultrapassam o caso concreto apreciado, refletindo na vida de toda a população.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Graças ao modelo institucional estabelecido nos termos da Consti-tuição da República Federativa do Brasil de 1988 o atual sistema Judi-ciário tem de lidar com um núme-ro cada vez maior de processos, os quais refletem a necessidade que os indivíduos tem de verem seus direi-tos garantidos, sobretudo diante da omissão e inércia dos Poderes Legis-lativo e Executivo.

Tem-se assim o mecanismo atra-vés do qual o Poder Judiciário trans-muta-se em um verdadeiro poder político, haja vista que este, enquan-to guardião do texto constitucional, deverá zelar pela sua aplicação e res-peito pela sociedade e pelos próprios poderes.

Processo diverso e experimen-tado especialmente após a promul-gação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o ati-vismo judicial fora entendido por Luís Roberto Barroso como uma atitude, um modo específico e pro-ativo de interpretar a Constituição, alargando seu sentido e alcance a fim de satisfazer as demandas sociais que são negligenciadas diante da omissão dos poderes Legislativo e Executivo para com os direitos dos indivíduos.

Por tratar-se de órgão de cúpu-

la do Poder Judiciário, o Supremo Tribunal Federal tem o seu papel intensificado, convidando-nos a en-contrar o “ponto de equilíbrio” entre a atuação deste poder e o espaço da legislação, ambos necessários para o desenvolvimento da sociedade. Caberá ao Pretório Excelso ser defe-rente para com as decisões adotadas pelos demais poderes, fazendo valer nestas e nas suas próprias delibera-ções a vontade dos constituintes ori-ginários, sobretudo sem olvidar que o Brasil constitui-se de um Estado Democrático de Direito, possuindo dentre os seus fundamentos a digni-dade da pessoa humana.

Como ressaltado pelo Ministro Celso de Mello, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 encontra-se em permanente confecção nos tribunais responsáveis pela sua aplicação, cabendo ao Judi-ciário criar o direito diante da análise do caso concreto, tendo como parâ-metro a realidade social vigente e a incessante busca pela realização dos direitos fundamentais estabelecidos no texto constitucional.

Deste modo, verifica-se que ca-berá aos intérpretes da Constituição, no caso em apreço, aos Ministros do Supremo Tribunal Federal, estabe-

O Supremo Tribunal Federal tem o seu papel intensificado, convidando-nos a encontrar o “ponto de equilíbrio” entre a atuação deste poder e o espaço da legislação, ambos necessários para o desenvolvimento da sociedade.

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lecerem a ligação existente entre o Texto Magno e a realidade social, cônscios de que os benefícios de-correntes da sujeição a interesses passageiros são por diversas vezes menores que as benesses advindas do respeito ao texto constitucional.

Ao agir reformulando ou afas-tando comandos constitucionais, desconsiderando as funções atri-buídas a Magna Carta, o Supremo Tribunal Federal através dos seus ministros, contraria o Texto Magno e abandona o papel de guardião da Carta Política.

Tal atitude fora adotada ao indefe-rir os pedidos cautelares formulados nas ADC’S 43 e 44, pois o Pretório Excelso, através dos seus Ministros, decidiu pela alteração da interpreta-ção do comando constitucional que

prevê o princípio da presunção de não culpabilidade tendo entendido que qualquer indivíduo poderá co-meçar a cumprir a pena desde que tenha sido condenado por um tri-bunal de Justiça ou por um Tribunal Regional Federal (TRF), ainda que disponha de recursos pendentes de apreciação no Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou no próprio Supremo Tribunal Federal.

Configura-se assim uma super interpretação da norma, desconsi-derando a semelhança, ou melhor, a reprodução do comando constitu-cional que prevê o princípio da não culpabilidade previsto de forma diversa, porém com o mesmo sen-tido, nos termos do artigo 283 do Código de Processo Penal, objeto das ADCS 43 e 44.

Diante de todos os argumentos e referências trazidas percebe-se a im-periosa necessidade de o Supremo Tribunal Federal decidir as questões que lhe são trazidas não só conside-rando a realidade vigente, mas tam-bém, e principalmente, conscien-tizar-se de sua própria capacidade institucional, considerando que existem situações que poderão ser melhor decididas por outros pode-res; considerar as garantias institu-cionais que lhe são outorgadas, haja vista que sendo dotado de poder representativo, deverá satisfação a toda a sociedade e não apenas a uma parte dela; e, por fim, estar cônscio de que as consequências das suas decisões ultrapassam o caso concre-to submetido à sua análise, gerando efeitos na vida de toda a população.

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ABSTRACTAcctually, it has been so discus-

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Artigo

RESUMOA situação atual em que se encontram os órgãos de prestação jurisdicional

no país é preocupante, por tamanha precariedade. Ao final, da longa jornada judiciária, muitos conseguem obter decisões terminativas favoráveis, porém não mais efetivas. Precisamos estabelecer de forma mais rígida o alcance da responsabilidade civil do Estado pela morosidade na prestação jurisdicional, assim como, o ideal de justiça no ambiente do Estado Democrático de Direito.Palavras-Chave: Responsabilidade Civil do Estado. Poder Judiciário. Efeti-vidade.

INTRODUÇÃO

A Responsabilidade Civil do Estado

pela Morosidade na Prestação Jurisdicional

Priscila FrancoAdvogada inscrita na OAB/RN.

A possibilidade de responsabi-lização do Estado pelo descumpri-mento, ou deficiente cumprimento dessa tarefa que lhe compete fun-da-se em princípios basilares do Di-reito: princípio da razoável duração do processo; princípio da legalidade; princípio da dignidade da pessoa humana; princípio da celeridade processual; princípio do devido pro-cesso legal; princípio do contraditó-rio e da ampla defesa; princípio da inafastabilidade do acesso à justiça e o princípio da eficiência.

O tema em questão objetiva escla-recer, de forma sucinta, o funciona-

mento do Poder Judiciário na presta-ção jurisdicional, a sua efetividade e os prejuízos causados aos jurisdicio-nados pela morosidade na Justiça.

É preciso atribuir ao Estado a res-ponsabilização civil por essa demo-ra na prestação jurisdicional, assim como, exigir a efetividade dos direitos fundamentais assegurados na Cons-tituição Federal, cuja implementação depende de reformas essenciais e ur-gentes no Poder Judiciário.

Almejar a reparatória contra o Estado seria uma forma de forçá-lo a implementar melhorias no Poder Judiciário.

Parlatório . MARÇO/2018 . 93

Cabe ao Estado o dever de implementar os meios necessários à prestação jurisdicional, como forma de dar a maior efetividade possível à norma constitucional.

O reflexo da morosidade da justi-ça gera um sentimento de revolta na sociedade, a lentidão no julgamento dos processos acarreta num verda-deiro descrédito da população pe-rante a instituição judiciária, por não ver concretizado em tempo hábil a resolução dos conflitos.

O simples fato de a Constituição Federal preceituar, no seu art. 5º, in-ciso XXXV, que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito”, não tem sido uma garantia de uma rápida e efetiva prestação jurisdicional tão almejada por aqueles que a todo instante pro-curam o Judiciário.

Considerando, ainda, que a Emenda Constitucional nº. 45/2004

incluiu como direito fundamental do cidadão a “razoável duração do pro-cesso”, mister se faz tracejar a possí-vel responsabilização do ente estatal pela demora na entrega da prestação jurisdicional.

A responsabilização do Estado em face desse problema deve ser vis-ta como uma metodologia capaz de educar este ente federativo para que se crie uma cultura onde a eficiência e eficácia da prestação jurisdicional seja uma prioridade, e somente as-sim, as injustiças serão sanadas dig-namente;

Importante compreender que fa-lar em lapso temporal dentro desse contexto, é falar também em digni-dade da pessoa humana.

2. ABORDAGEM CONSTITUCIONAL

A razoável duração do processo e a celeridade processual, como prin-cípios constitucionais, foram acres-centadas a Constituição da Repúbli-ca Federativa do Brasil – CRFB, em seu artigo 5º, pelo inciso LXXVIII, por meio da Emenda Constitucio-nal – EC, n.45, promulgada em 08 de dezembro de 2004. A prestação ju-risdicional dentro de um prazo razo-ável e efetivo já vinha prevista, como garantia fundamental do indivíduo, no próprio texto constitucional e nos artigos 8º e 25, da Convenção Ame-ricana sobre Direitos Humanos no Pacto de São José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário.

As clausulas due processo of law já estavam embutidas na Constitui-ção Federal, no art. 5º, inc. LIV, da CRFB e no princípio da eficiência, previsto no art. 37.

Contudo, o constituinte brasi-leiro, seguindo a tendência mun-dial de consagrar, explicitamente, os reclamos sociais, resolveu editar enunciado normativo expresso para evitar quaisquer dúvidas quanto à sua aplicabilidade e legalidade. É a combinação dos direitos de acesso à justiça, do contraditório e da am-pla defesa, do devido processo legal e da eficiência que se alude à forma instrumental mais adequada, com a finalidade da prestação jurisdicional, quando entregue pelo Estado. Cabe ao Estado o dever de implementar os meios necessários à prestação juris-dicional, como forma de dar a maior efetividade possível à norma consti-tucional.

Nossos Tribunais estão adotando a tese de que o direito ao julgamento, sem dilações indevidas, qualifica-se

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como prerrogativa fundamental que decorre da garantia constitucional do due process of law. Ademais, Já exis-tem, em nosso sistema de direito po-sitivo, ainda que de forma difusa, di-versos mecanismos legais destinados a acelerar a prestação jurisdicional, de modo a neutralizar, por parte de magistrados e Tribunais retardamen-tos abusivos ou dilações indevidas na resolução dos litígios. É relevan-te considerar que, a EC nº 45/2004, trouxe mecanismos de celeridade, transparência e controle de qualida-de da atividade jurisdicional. Como por exemplo: a vedação de férias co-letivas, a distribuição imediata dos processos, a possibilidade de delega-ção aos servidores do Judiciário, para a prática de atos de administração e atos de mero expediente sem caráter

decisório, a necessidade de demons-tração expressa de repercussão geral das questões constitucionais discuti-das no caso para fins de conhecimen-to do recurso extraordinário, a insta-lação da justiça itinerante, as súmulas vinculantes e as impeditivas de recur-sos, entre outros.

Todavia, a citada Emenda, trou-xe ínfimos instrumentos processuais capazes de conceder maior celerida-de na tramitação dos processos, não influindo de forma significativa na redução da morosidade da Justiça brasileira.

Sendo assim, não é possível, se-quer, dispor sobre um Estado De-mocrático de Direito, sem assegurar aos constituintes os direitos existen-ciais da prestação jurisdicional efeti-va e digna.

3. RESUMO DE INSTRUMENTOS CAPAZES DE CONTRIBUIR PARA UM JUDICIÁRIO MAIS CÉLERE

Atualmente, no Brasil, existem mais de 90 milhões de processos em tramitação, sendo considerada uma das Justiças mais lentas.

No final do século XX, as críticas à qualidade da prestação jurisdicio-nal se perpetuaram nas sociedades. Em virtude disso, a celeridade pro-cessual foi havida como indispen-sável e, dentre os deveres do juiz foi solenemente inserido no antigo Código de Processo Civil Brasileiro - CPC, velar pela rápida solução do litígio e de denegar toda diligência “inútil” ou “meramente protelatória” (artigo 130).

Com o novo CPC, temos uma expectativa muito grande de que os mecanismos introduzidos nele

tragam um melhoramento nesse sentido e façam com que as ideias plantadas sobre esse tema no código anterior evoluam fazendo com que a Justiça atue de forma mais rápida.

Na década de 1990 foram cria-das dezenas de leis, com intuito de dar maior celeridade na solução dos conflitos levados ao Judiciário. As inovações mais importantes foram: 1) à possibilidade de antecipar o julgamento da lide; 2) a adoção da citação postal; 3) a adoção da audi-ência preliminar para conciliação e saneamento do processo; 4) a am-pliação; 5) o advento dos Juizados Especiais; 6) a adoção da Arbitra-gem, entre outras.

Nos últimos anos diversos tribu-

Na década de 1990 foram

criadas dezenas de leis, com

intuito de dar maior celeridade

na solução dos conflitos levados ao Judiciário. As

inovações mais importantes

foram: 1) à possibilidade

de antecipar o julgamento da

lide; 2) a adoção da citação postal;

3) a adoção da audiência

preliminar para conciliação e saneamento

do processo; 4) a ampliação; 5) o advento dos Juizados Especiais; 6)

a adoção da Arbitragem,

entre outras.

Parlatório . MARÇO/2018 . 95

nais tem se empenhado em realizar cada vez mais mutirões, na tentativa de reduzir o excesso das chamadas demandas de massa (contencioso cível/ consumidor). Contudo, o re-sultado ainda não é suficiente para se vislumbrar uma prestação jurisdicio-nal efetiva e digna.

O legislativo brasileiro criou a Lei n. 11.419/2006, que regulamenta a informatização do processo judicial (os então denominados autos virtu-ais), estabelecendo a possibilidade de

utilização do meio eletrônico na tra-mitação de processos judiciais, co-municação de atos e transmissão de peças processuais, indistintamente, aos processos civil, penal e trabalhis-ta, bem como aos juizados especiais, em qualquer grau de jurisdição. Im-põe-se, assim, o dever de frisar que a própria lei define os principais ter-mos para a implementação da infor-matização do processo judicial.

Na era da informatização, surge ainda outro meio capaz de contri-

buir para um judiciário mais célere, que é a divulgação responsável de propaganda negativa das empresas que mais desrespeitam os Direitos dos Consumidores, o que no caso o Tribunal de Justiça do Rio de Janei-ro foi um dos pioneiros, divulgando lista com as pessoas jurídicas mais acionadas. E, por via de consequ-ência, forçando essas más fornece-doras a se organizarem e buscarem soluções mais céleres nas resoluções dos conflitos.

4. A POSSIBILIDADE DE RESPONSABILIZAR CIVILMENTE O ESTADO PELA DEMORA NA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL

Ultrapassadas as primeiras teo-rias quanto à responsabilidade civil do Estado, o direito do mundo mo-derno passou a utilizar a teoria da responsabilidade objetiva do Estado, isto é, independentemente de culpa o Estado responderá pelos atos em que seus agentes, nessa qualidade causa-rem, incidindo para tanto em práti-cas de atos lícitos ou não, cabendo, porém, ao lesado comprovar a rela-ção causal entre o fato e o dano.

A responsabilidade das pessoas jurídicas de direito público e das pes-soas de direito privado prestadoras de serviços públicos é objetiva, com fulcro no artigo 37, §6º, da CRFB, tendo como alicerce a teoria do ris-co administrativo. Essa responsabili-dade objetiva exige a ocorrência de determinados requisitos: ocorrência de dano; ação ou omissão adminis-trativa; existência de nexo causal entre o dano e a ação ou omissão administrativa e ausência de causa excludente da responsabilidade esta-tal. O mais importante, no que tange

à aplicação da teoria da responsa-bilidade objetiva do Estado, são os devidos pressupostos, que tem este o dever de indenizar o lesado pelos danos que lhe foram causados.

Com relação à possibilidade de responsabilizar civilmente o Estado pela morosidade na prestação jurisdi-cional, com base no artigo 5º, inciso LXXVIII, da CRFB há grande discus-são doutrinária. Para alguns juristas, se a violação decorrer de falha no ser-viço judiciário ou em paralisações in-justificadas do processo, o Estado está sujeito à responsabilidade objetiva, insculpida no artigo 37, §6º, da CRFB. Outros, contudo, adotam a teoria da irresponsabilidade do Estado, quando o assunto é tratar da morosidade na prestação jurisdicional.

A Constituição de 1988 forta-leceu de forma aparente a corrente doutrinária que defende a respon-sabilidade ampla do Estado por atos judiciais, fundada na teoria do risco administrativo. Essa ideia sustenta a aplicabilidade do artigo 37, §6º, pois

o serviço judiciário é uma espécie do gênero serviço público do Estado e o juiz, na qualidade de prestador des-te serviço, é um agente público, que atua em nome do Estado.

A prestação jurisdicional é um serviço público essencial e que por isso, não existe motivo para escusar o Estado de responder pelos danos de-correntes da negligência judiciária ou do péssimo funcionamento da Justiça Brasileira, sem que tal posição ofenda a soberania do Poder Judiciário ou afronte o princípio da autoridade da coisa julgada. Se, no curso de seu fun-cionamento, a administração pública vier a prejudicar o jurisdicionado, fa-z-se necessário à reparação do dano causado ao este, sob pena de macular todo o processo desempenhando na prestação do respectivo serviço públi-co. Logo, a responsabilidade do Estado segue a lógica da socialização do risco, na medida em que toda ação exercida em nome do Estado ou de uma cole-tividade pública engaja a responsabi-lidade do patrimônio administrativo.

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Há quem entenda que pouco a pouco vai perdendo terreno a tese da irresponsabilidade, para surgir em seu lugar o princípio de que o particular tem direito a ser indeni-zado, toda vez que sofra um preju-ízo em consequência do funciona-mento do serviço público.

Dessa forma, cabe registrar que em alguns países da Europa admi-te-se a responsabilidade do Estado, quando do mau funcionamento do Poder Judiciário resultar danos aos jurisdicionados. Como exemplo ci-ta-se o art. 121, da Constituição Es-panhola de 197811: “Los daños cau-sados por erro judicial, así como los que Sean consecuencia del funciona-miento anormal de la Administraci-ón de Justicia, darán derecho a uma indemnización a cargo del Estado, conforme a la ley”.

Mesmo entendimento adota-do na Itália (Lei n. 117/1988), na

França (Leis n. 72-620/1972 e 79-43/1979), na Alemanha, na Polônia e Portugal. Este último, inclusive, já foi condenado pelo Tribunal Euro-peu dos Direitos do Homem, com sede em Estrasburgo, em pelo me-nos seis casos, por ter demorado além do tempo razoável na entrega da prestação jurisdicional. 13 Em 25 de setembro de 2010, noticiou--se pelo sítio eletrônico “Consultor Jurídico”, que a Comissão de Justiça da Câmara dos Deputados da Itália, começava a analisar Projeto de Lei conhecido como “Projeto de Lei do Processo Breve”, que prevê prazo determinado para que um processo comece e termine se não pela con-denação ou absolvição, pelo arqui-vamento dos autos, quando extra-polado o tempo determinado na lei, para sua duração.

Salienta-se que inúmeras são as posições doutrinárias e até juris-

prudenciais com relação à matéria, tanto no direito nacional, quanto no direito comparado. Restando a to-dos os interpretes da ciência jurídi-ca, apenas o dever de refletir sobre a matéria ora apresentada. De certo, é dever do Estado à prestação jurisdi-cional efetiva, o que se dará se ob-servados os princípios fundamen-tais tanto debatidos neste trabalho, como o da razoável duração do pro-cesso e da celeridade processual e o que assegura o acesso à justiça.

Portanto, deve dirigir a res-ponsabilidade pela morosidade na prestação jurisdicional ao Estado, sendo este quem deve se respon-sabilizar pelos incontáveis danos causados aos jurisdicionados pela demora na prestação deste serviço público, devendo indenizar os pre-juízos causados tendo como funda-mento o disposto no art. 37, § 6º, da Carta Maior.

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5. MECANISMOS PARA SANAR A PROBLEMÁTICA DA DEMORA

O novo Código de Processo Civil veio recheado de possibilidades de conciliação, mediação e arbitragem, ou seja, um rol de possibilidades para sanar a problemática da demo-ra, contudo, não basta um dizer que não quer conciliar, é preciso marcar a audiência visando esse objetivo.

Pode parecer ser inútil realizar uma audiência, já sabendo que não haverá acordo, mas o objetivo é in-centivar a conciliação e mudar a mentalidade das partes em relação

ao processo.Inclusive, o não comparecimen-

to a esta audiência resulta em mul-ta, com previsão no art. 334, § 8º do CPC/15, ou seja, trata-se de crime contra a dignidade da justiça.

Outro mecanismo que deve ser utilizado para sanar o problema é a aplicação da justiça restaurativa, baseada num procedimento de con-senso, em que a vítima e o infrator, e, quando apropriado, outras pes-soas ou membros da comunidade

afetados pelo crime, como sujeitos centrais, participam coletiva e ati-vamente na construção de soluções dos traumas e perdas causados pelo crime.

A justiça restaurativa tende a ser um excelente mecanismo ao tocante diminuir o tempo do processo e den-tre suas diversas modalidades pode-mos destacar a mediação, reuniões coletivas abertas à participação de pessoas da família e da comunidade e círculos decisórios.

CONCLUSÃO

Sem grandes esforços concluí-mos que o Estado definitivamen-te deve ser responsabilizado pelo lapso temporal não razoável para o desfecho de cada lide que adentra o judiciário. A responsabilização é um mecanismo pedagógico, punitivo e preventivo.

Pedagógico porque sendo apli-cada essa responsabilização Estatal com rigor uma nova cultura judicial surge de modo, que o tempo passa ser visto como um requisito de em-prego da justiça propriamente dita.

Punitivo, porque se é do Esta-do o dever de zelar pela sociedade, a morosidade judicial configura--se um verdadeiro atentado contra a dignidade humana das partes da lide, como também, a dignidade da própria sociedade, e que, portanto, a reparação recai como uma sanção, podendo ser encarada até certo pon-to como uma maneira de promover uma justiça restaurativa em face da problemática.

Preventivo porque certamente o Estado tomará medidas de sancionar o problema antes que aquilo se torne um caos para ele, além de que, um Estado da Federação tomaria outro como exemplo (efeitos pedagógicos) e traçariam medidas preventivas.

Com a constatação de que a su-peração dos obstáculos para propor-cionar ao jurisdicionado brasileiro integral proteção de seus direitos e garantias fundamentais é um grande desafio, alguns meios devem ser es-tudados na tentativa de sanar todo o caos judicial.

Sendo assim, o novo Código de Processo Civil tem um papel muito importante nessa perspectiva. A pri-meira grande mudança no Código de Processo Civil é o fim da divisão de procedimentos. O Código de Proces-so Civil de 1973, em seu artigo 272, dividia o procedimento comum em ordinário e sumário; mas com o novo Código de Processo Civil de 2015, o procedimento sumário deixou de

O Estado definitivamente deve ser responsabilizado pelo lapso temporal não razoável para o desfecho de cada lide que adentra o judiciário. A responsabilização é um mecanismo pedagógico, punitivo e preventivo.

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existir, aplicando-se, somente o pro-cedimento comum, nos termos do art. 318 do novo CPC.

Nesse passo, o Novo Código de Processo Civil criou mecanismos vi-sando promover a conciliação entre os litigantes, institucionalizando a me-diação nos processos judiciais, na bus-ca da solução de conflitos existentes.

Uma das principais mudanças su-gere a ampla instigação a autocom-posição, em que todos os Tribunais deverão criar centros judiciários de solução consensual, objetivando a realização de sessões e audiências de conciliação e mediação.

Essa prática sugere a coexistên-cia com outros meios extrajudiciais, através de órgãos institucionais, rea-lizadas por intermédio de profissio-nais independentes.

É preciso maior atenção dos juris-tas e especialmente da Administra-ção Pública, pois é está última quem detêm o poder/dever de garantir aos jurisdicionados o mais amplo acesso à Justiça, de modo a tornar a prestação jurisdicional efetiva, se aproximando ao máximo das expectativas e anseios da sociedade por uma real justiça.

No âmbito do Poder Judiciário, é necessário investimento em equi-pamentos, qualificação de funcio-nários, criação de mais Varas e Jui-zados, mais certames públicos para a inclusão de novos funcionários, estagiários e magistrados.

Muito interessante seria uma es-pecialização do Judiciário Estadual, criando-se Varas e Juizados especia-lizados por matérias, a fim de tentar suprir o excesso de processos repeti-tivos de massa que vêm surgindo ao longo dos últimos 20 (vinte) anos; desde a criação da Lei n. 8.078/90,

que regulamentou a Proteção e Defe-sa do Consumidor; o que hoje, já se fala em um aumento de pelo menos 60% nas demandas judiciais, apenas sob a ótica da relação de consumo.

No âmbito do Poder Executivo, o Estado necessita adotar medidas emergenciais ao ponto de permitir, por exemplo, a resolução de um con-flito, pela via administrativa, uma reestruturação nas Agências Regula-doras e Fiscalizadoras, atribuindo a essas a efetividade em suas ações, o que quase não se vê atualmente.

Já no âmbito do Poder Legislativo, o Estado deve adotar uma celeridade na aprovação da legislação que visa ampliar o modelo atual de proteção aos direitos e garantias fundamentais.

Presume-se, portanto que o Es-tado estabelece o mais breve possível instrumentos realmente capazes de contribuir para um avanço na presta-ção jurisdicional, convertendo a sua imagem atual a um modelo que mais se aproxima ao de uma Justiça justa, efetiva e digna, porém, caso não sendo suficientes todos esses esforços, chega-rá o dia em que o Estado deverá ser responsabilizado civilmente pela mo-rosidade na prestação jurisdicional.

Somente com a responsabilização do Estado passaremos observar so-luções pedagógicas, punitivas e pre-ventivas para o razoável tempo de duração do processo.

Por fim, cabe reiterar a lembrança que ofertar um lapso temporal para o desfecho da lide é dar dignidade não somente as partes do processo, mas a toda sociedade, e em caso de omis-são ou até mesmo falência Estatal nessa prestação a responsabilização deste representa um grito de justiça em tempos obscuros.

Parlatório . MARÇO/2018 . 99

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ABSTRACTThe current situation of the ju-

risdictional organs in the country is worrisome, because of such pre-cariousness. At the end of the long judicial journey, many are able to obtain favorable, but no longer effec-tive, termination decisions. We need to establish more rigidly the scope of civil liability of the State for the slowness of judicial provision, as well as the ideal of justice in the environ-ment of the Democratic State of Law.Keywords: State Liability. Poder Ju-diciary. Effectiveness.

100 . Parlatório . MARÇO/2018

Artigo

RESUMOTributação, poder de tributar, justiça tributária e Estado Democrático de

Direito são elementos de um todo que devem estar em constante e perma-nente harmonização. Em uma sociedade justa e organizada, é difícil analisar ou estudar um termo dentre os acima mencionados sem fazer a correlação com os demais, de modo que, na falta de um, faltará plenitude na justiça e, consequentemente na sociedade justa e no Estado Democrático. Assim, tem com objetivo o presente trabalho, fazer uma breve análise sobre a definição de justiça, trazendo o termo para ser visto sob a ótica da tributação e do po-der de tributar do Estado, sendo possível, desse modo, ligá-los ao conceito e estrutura de um Estado Democrático de Direito, para que ao final possa ser percebido que os termos descritos no início desse resumo não podem ser vis-tos de maneira isolada. Para tanto, foi utilizado para a confecção do presente trabalho a pesquisa bibliográfica qualitativa dentre alguns autores nacionais e estrangeiros, de modo que se buscou estudar livros doutrinários, artigos científicos e pesquisas na rede mundial de computadores. Portanto, a partir das pesquisas e estudos realizados, percebeu-se que a real justiça tributária, principalmente no que atine a realidade brasileira, ainda está aquém do ideal e do visto em outros países. Ainda, foi possível observar que em um Estado Democrático de Direito, os órgãos e os entes federativos, possuem competên-cias tributárias, contudo, estas não se traduzem em poder de tributar absoluto em si mesmo.PALAVRAS-CHAVE: Estado Democrático de Direito. Poder de tributar. Jus-tiça tributária. Evolução histórica.

INTRODUÇÃO

Poder(?) de Tributar:Uma Breve Análise sobre Justiça Tributária

e Estado Democrático de Direito

Jaciel NetoAdvogado inscrito na OAB/RN.

Justiça Tributária é um termo que há 25 anos, desde a promulgação da Constituição da República Federati-va do Brasil, vem se tentando alcan-çar em sua plenitude. Porém, o que se tem percebido claramente é que apenas há, desde então, tentativas

frustradas de se alcançar tal objetivo.Não é de se olvidar a evolução his-

tórica que se deu no Brasil e no mun-do frente às lutas de classes tão im-portantes ocorridas. Não fossem tais transformações, talvez o país ainda estivesse acorrentado às amarras de

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um governo submisso aos comandos europeus ainda remanescentes da época da colonização. Felizmente a situação mudou e a história cuidou em registrar tal mudança.

Os fatos geradores dos tributos, nesse compasso, se justificam na me-dida em que, constitucionalmente fa-lando, se comprometem com o valor de Justiça, objeto este tão almejado pelo Estado Democrático de Direito, devendo os mesmos estrita e obriga-tória observância aos indicativos da capacidade econômica, desse modo, fazendo valer os predicados do prin-cípio da capacidade contributiva es-culpido na Carta Maior de 1988.

O Ius Imperi verificado nos tem-pos antigo da sociedade e do Estado, chegou a justificar durante muitos anos as ilegalidades, desproporciona-lidades e irracionalidades que eram cometidas perante a população nas épocas mais remotas. O “poder” de tributar nem sempre refletiu um mo-tivo justo e ideal para a criação, co-brança e arrecadação dos tributos.

Nessa toada, fazendo um breve apanhado conceitual, juntamente

com as aplicações teóricas e evolução histórica, é que se faz uma análise primeiramente da Justiça Tributária, utilizando-se, para tanto, as ilações da professora doutora Inessa da Mota Linhares Vasconcelos (2012), onde se mostra a impossibilidade de se ana-lisar a Justiça Tributária apenas com base se si mesma ou com base em ra-mos específicos do Direito, conside-rando que, uma vez sendo feita a jus-tiça tributária no seio da sociedade, se estará, acima de tudo, corroboran-do para a concretização da Justiça na acepção de sua palavra, nesse ponto, servindo de auxílio, são os estudos de Rawls (1997) e Irapuã Beltrão (2014).

Ainda, analisando o tema da jus-tiça tributária frente ao Estado De-mocrático de Direito, é de bom al-vitre mencionar o fato de como este evoluiu até que se firmasse na maior parte do mundo. A questão da jus-teza na tributação influencia verda-deiramente uma sociedade no que tange a consecução e concretização dos postulados democráticos, sendo impensável nos dias atuais, analisar um sem o outro.

O “poder” de tributar nem sempre refletiu um motivo justo e ideal para a criação, cobrança e arrecadação dos tributos.

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Como em todo conceito aberto da ciência jurídica, analisar o termo justiça tributária é tarefa que se faz de maneira não tão simples e direta. Usualmente, quando se ouve ou se fala do vocábulo justiça em seu mais estrito senso, logo vem na mentalida-de de cada um os sentidos como os de isonomia, equidade, direitos igua-litários, dignidade da pessoa huma-na, dentre outras expressões. Quanto ao tema Justiça Tributária este não podia se dar de modo diferente, vez que também guarda íntima correla-ção com os termos supracitados, ten-do, ainda, como um plus de destaque, os ditames do princípio da capacida-de contributiva e o princípio da veda-ção ao confisco, sempre tomando por base a Carta Maior do país, refletindo inevitavelmente no princípio da dig-nidade da pessoa humana. Para em-basar tais palavras tem-se:

A noção do que venha a ser justiça tributária passa inelutavelmente pela discussão mais geral do que seja a justiça. Do ponto de vis-ta conceitual, isso implica difícil e quiçá intransponível obstáculo epistemológico que impede que sejam estabelecidos os contornos desse objeto cognoscente, cuja es-sência é irrevelável ao conheci-mento comum (VASCONCELOS, 2012, p. 73).

Portanto, como descrito acima, a função de delinear e conceituar os termos justiça, bem como justiça tributária, são obstáculos epistemo-lógicos de difícil transposição que

não se esgotam em simples estudos ou conhecimentos sobre o assun-to, ao contrário, está em constante mutação fazendo companhia a toda mudança de conhecimento que exis-te sobre o assunto. Asseverando:

De fato, a concepção de justiça é variável no tempo e no espaço, como sucede com o bem-estar so-cial. Apesar de relativa, não há como se negar que essa concepção encerra um mínimo de significa-ção. A grande e difícil questão é, pois, firmar um conceito mínimo do que venha a ser justiça (VAS-CONCELOS, 2012, p. 73).

Ainda na tentativa de trazer um pouco da conceituação de justiça, de destaque são as palavras Rawls (1997, p. 3) “A justiça é a primei-ra virtude das instituições sociais, como a verdade o é dos sistemas de pensamento”. Desse modo, tratar a justiça como preceito maior de uma sociedade enquanto instituição or-ganizada é dizer que aquela encon-tra-se em posição sempre de mais destaque, posto que é a base de uma organização civilizada.

Portanto numa sociedade justa as liberdades de cidadania igual são consideradas invioláveis; os direi-tos assegurados pela justiça não estão sujeitos a negociação política ou ao cálculo de interesses sociais. A única coisa que nos permite aceitar uma teoria errônea é a fal-ta de uma teoria melhor; de forma análoga, uma injustiça é tolerável

2. JUSTIÇA TRIBUTÁRIA: CONCEITO, APLICAÇÕES E EVOLUÇÃO HISTÓRICA FRENTE A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS

A única coisa que nos permite

aceitar uma teoria errônea

é a falta de uma teoria melhor; de

forma análoga, uma injustiça

é tolerável somente quando

é necessária para evitar uma

injustiça ainda maior.

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somente quando é necessária para evitar uma injustiça ainda maior. Sendo virtudes primeiras das ati-vidades humanas, a verdade e a justiça são indisponíveis (RAWLS, 1997, p. 4).

Induvidoso falar que, a recente constitucionalização dos direitos no Brasil tornou a questão da justiça ainda mais evidente, trazendo a baila todas as questões sobre o poder de tributar do Estado e a forma como tal atividade é cumprida, para que não seja ferida a isonomia e a capa-cidade contributiva de todos aque-les que sofrem com a incidência das normas tributárias.

Assim sendo, a observância ao estrito cumprimento do princípio da legalidade, a neutralidade estatal, no que tange a não invasão à vida priva-da e financeira dos contribuintes pelo estado e a observação do princípio da capacidade contributiva, são de grande importância para que assim não sejam feridos todos os preceitos constitucionais colocados atualmente em patamar de maior relevância para a aplicação das leis equitativamente, fazendo elo com o seguinte:

Não se pode olvidar que a noção da justiça como equidade está no cerne da concepção contemporâ-nea de justiça tributária. Assim, de que modo deve o Estado impor a seus súditos o pagamento de tri-butos? Que tributos e hipóteses de incidência? Qual alíquota é justa para garantir um bom desempe-nho financeiro da máquina tribu-tária, sem impor ao contribuinte ônus insuportável? Questões desta dimensão sinalizam para a presen-

ça da ideia de justiça na formula-ção de qualquer política tributária (VASCONCELOS, 2012, p. 79).

Dessa maneira, para que se pos-sa alcançar justiça em seus mais alargados termos, imperioso que se passe pela justiça também na tribu-tação, evitando, assim, o aumento das diferenças sociais, os entraves no desenvolvimento econômico do país e tudo mais aquilo que de certa maneira impede a concretização dos ideais almejados pela Carta Magna de 1988. Para ratificar ainda mais tal entendimento, tem-se as seguintes palavras:

[…] a justiça na tributação é o ca-minho para que se chegue à justiça social, com a superação das abissais diferenças que entravam o desen-volvimento nacional. Dessa forma, é com a concretização da justiça tributária, princípio estruturante do sistema jurídico-tributário e de hermenêutica fundamental para a aplicação das normas jurídico-tri-

butárias, que se enseja o alcance da justiça social. (VASCONCELOS, 2012, p. 80).

Indispensável tomar como base toda a evolução e historicidade que se deu no país em tempos mais an-tigos. Marcado pela desigualdade de maneira forte e pela má distribuição das rendas, necessário se faz cor-relacionar tais fatos com a ciência das finanças e também com o pró-prio direito tributário, imbricando com o conceito maior de justiça dos tempos modernos e assim tratando o poder de tributar e a maneira do Estado se gerir financeiramente de forma mais justa. Dessa forma, pas-sou-se a considerar mais o lado da capacidade contributiva, fazendo com que aqueles que mais possuem possam contribuir mais, de modo que os que menos possuem, contri-buam menos.

Nessa evolução da ciência fi-nanceira e do direito tributário, foi possível perceber uma maior distri-buição das riquezas e das rendas, de

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maneira tal que, os ramos do direi-to acima mencionados começaram a ser vistos não apenas meramente eficientes, para serem, a partir de então, vistos sob uma ótica mais justa, sem, no entanto, refugar a eficiência. Então, observa-se que as leis e os sistemas não bastam alme-jarem a eficiência a qualquer custo, tem que ser, no mesmo compasso, justos, para que assim se possa al-cançar, primeira e basicamente a justiça social. Nas palavras de Ira-puã Beltrão:

Não apenas os pensadores da atividade financeira destacam essa necessidade. Na nova vi-rada testemunhada no últi-mo quartel do século passado, muito se recuperou dos instru-mentos das finanças para im-plementação da justiça social, promovendo uma melhoria nas condições de gerais com redistri-buição das riquezas da coletivi-dade para além do sentido pu-ramente de eficiência econômica (BELTRÃO, 2014, p. 106).

Acompanhando tal evolução, se faz de bom alvitre esclarecer que a Carta de 1988 foi no mesmo sen-tido da evolução dos estudos das finanças e dos tributos justos, uma vez que se começou a perceber uma onda internacional com relação ao amadurecimento do sentido de jus-tiça. É como se pode observar nos artigos 3º e 43 da Constituição da República Federativa do Brasil em que é posto todo um modelo res-ponsável pela garantia do estado so-cial e do bem estar social.

No entanto, este bem estar social, não é alcançado de fácil maneira com uma política fiscal e tributá-ria apenas eficiente e econômico, há que se tomar atenção quanto à justificação das normas de redistri-buição, pois na doutrina econômi-ca, o postulado da justiça tributária está ligado a justiça redistributiva, porém, este termo ainda há que ser mais profundamente analisado, uma vez que se pode alcançá-lo tan-to no sentido da redistribuição das capacidades contributivas, como na realocação da aplicação das rendas,

sendo estas ultimas aplicadas da melhor maneira possível para que se possa verificar um bom remaneja-mento das riquezas.

Destacando:

Em razão dos valores assegura-dos ou reconhecidos na Cons-tituição, a atividade financeira pública não pode ser, de forma exclusiva, ponderada na visão econômica, especialmente em razão do princípio da diferença apresentado por Rawls, permi-tindo o atingimento da melhor adequação e resultados sociais - como, no exemplo citado pelo próprio autor estadunidense, quanto as despesas e financia-mento da educação. (BELTRÃO, 2014, p. 107)

Assim, considerando os postula-dos da política fiscal, poderá se al-cançar a destacada justiça tributária não só com a simples criação de tri-butos em si, fazendo do estado um exímio caçador de dinheiro para galgar eficiência econômica, mas,

As leis e os sistemas não

bastam almejarem a eficiência a

qualquer custo, tem que ser justos,

para que se possa alcançar, primeira

e basicamente a justiça social.

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também, buscando formas extrafis-cais para se chegar a uma política fiscal e tributária justas. Daí porque o legislador, e, consequentemente, o Estado, devem observância aos prin-cípios constitucionais para se colo-car em prática os escopos de justiça e bem estar social impregnados na Constituição uma vez que a justiça tributária, bem como a doutrina pá-tria liga-se com o sentido de redistri-buição das riquezas.

Vejamos o seguinte ensinamento:

a justiça fiscal, especial dimensão da justiça política, é a nosso ver, a que oferece a melhor instrumental para a redistribuição de rendas, com a adjudicação de parcelas da riqueza nacional a indivíduos con-cretos. Abrange simultaneamente a justiça orçamentária, a tributá-ria e a financeira (TORRES, 2005, p. 113-114).

Ainda:

a máxima na justiça tributária está vinculado ao postulado de Direito na igualdade fiscal e inclui imposição uniforme segundo a ca-pacidade contributiva econômica. Justiça fiscal em sentido estrito é a execução sistematicamente con-sequente da igualdade tributária e dos princípios, que concretizam o princípio da igualdade (TIPKE, 2008, p. 394).

Efetivamente falando, a questão de uma política tributária/fiscal jus-ta é principalmente fazer com que a tributação gere os melhores recursos do ponto de vista de uma realização racional e econômica, permitindo a

disponibilidade destes para a dimi-nuição das diferenças, tal qual conste dos princípios fundamentais da Car-ta Constitucional de 1988 e larga-mente reconhecido na interpretação da efetividade material do ordena-mento fundamental, devendo estrita observância do legislador.

Continuando de maneira clara, destaca como se deve agir todo o or-denamento fiscal frente aos coman-dos constitucionais postos no art. 3º da Constituição da República:

Mesmo o sistema econômico na-cional foge àquela visão estática de acolher os valores constitucionais, projetando-se para o futuro com o acolhimento das demandas sociais (BELTRÃO, 2014, p. 109).

De tal modo, a política financeira e tributária do Estado vai mais além do que simplesmente produção de leis e mandamentos. Se não for ob-servado os proclames constitucionais desde a criação até o alcance das exa-ções tributárias dificilmente se pode-rá afirmar que foi atingido o objetivo do bem estar social através da redis-tribuição das rendas e das riquezas e assim alcançado a justiça tributária. Para tanto tem-se o seguinte:

Para que a justiça fiscal, por outro lado, seja realizada de modo efeti-vo, o conteúdo da economicidade deve lhe emprestar os predicados para que todas as tomadas de deci-sões tributárias – inclusive na fase legislativa – sejam dadas a partir da avaliação dos meios empregados diante das finalidades a serem atin-gidas (BELTRÃO, 2014, p. 110).

Como se vem observando na so-ciedade atual, desde as manifesta-ções de junho/julho de 2013, a pres-são vinda daquele meio nada mais é que o entendimento que veio se formando em seu interior no sentido de cobrar efetivas e enérgicas ações para que sejam observados os inte-resses da maioria e não de apenas determinados setores pelo legislador brasileiro.

Portanto, da análise do termo jus-tiça tributária, inevitavelmente se ob-serva, também, a análise dos princí-pios fundamentais e constitucionais trazidos no bojo da vigente Consti-tuição Federal, mais especificamente o princípio da capacidade contribu-tiva, princípio da isonomia, da neu-tralização do Estado e dentre outros trazidos anteriormente. Assim:

A justiça, tal como uma espécie de tentáculos, há de alcançar aqueles menos desprovidos de recursos, sejam materiais ou intelectuais, reconhecendo aquele estado de diferença amplamente suscitada pela moderna teoria do direito. A gestão tributária e a política fiscal decorrente deve se prestar a equa-cionar, isonomicamente, os agente sociais de acordo com a sua capa-cidade contributiva para que se dê, de forma plena, a justiça (BEL-TRÃO, 2014, p. 110).

Fica claro o modo como a socie-dade responde e anseia pela justiça no seu termo mais amplo, bem como também, a justiça tributária, indo para as ruas e exigindo dos representantes legais que atuem de modo para que efetive e coloquem em prática este tão importante tema que é a justiça.

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Ser capaz para contribuir com o Estado através de seus tributos ins-tituídos não significa trabalhar, au-ferir renda e acumular riqueza, para, por conseguinte, aquele ficar com a maior parte do inteiro. Tanto é que, se for feita uma rápida visitação his-tórica das mais importantes revolu-ções e transformações acontecidas nos tempos antigos no centro eu-ropeu como na França e Inglaterra, por exemplo, se perceberá que, a in-justiça quanto ao tanto que era dado ao Estado e quanto ao tanto que se tinha a título de retorno - pratica-mente nada naquela época havia de retorno para a sociedade - sempre esteve como plano de fundo, ou seja, a injustiça tributária, consequen-temente a social, sempre serviu de força motriz para as principais trans-formações nas sociedades. Mudança significativa começou a se operar com a Carta Magna de 1.215 do Rei João Sem Terra.

Assim sendo, a medida da tribu-tação é a capacidade contributiva, em uma ocasião em que todos têm o dever de contribuir, contudo, cada um dentro de suas capacidades para tal, sem fazer do poder de tributar do Estado, uma razão para a generalida-de, vindo a gerar injustiça tributária no seio de uma sociedade que deve ser igualmente justa.

A manifestação de riqueza nem sempre se correlaciona com a mani-festação de capacidade contributiva. Algumas vezes, a manifestação de ri-queza de certos contribuintes signi-ficam apenas valores suficientes para a sobrevivência do ser, desse modo, podendo vir a não serem tributados

sem que haja ofensa ao princípio da isonomia.

Desta feita, justiça fiscal, por meio da observância da capacida-de contributiva, seria a capacidade econômica somada a todos os valo-res de proteção do interesse público garantidos pela Constituição, seria a qualificação da capacidade econômi-ca tendo como critério basilar todos os direitos e garantias fundamentais assegurados pela Carta Mãe de 1988 para que, desse modo, se faça possí-vel viver em uma sociedade mais jus-ta e igualitária.

Continuando na análise da justiça tributária inserida no ordenamento jurídico brasileiro e, por conseguin-te, fazendo uma correlação com o Estado Democrático de Direito, vê--se que, o sistema tributário organi-zado e posto como hoje está, foi pos-sível graças a evolução dos estudos no século XIX e, também, a evolução do direito financeiro, fatos estes li-gados ao surgimento do Estado De-mocrático de Direito. Nesse passo, é onde surge todo o sistema de princí-pios que regem o direito tributário, passando este de estudo meramente econômico para estudo jurídico e consequentemente de justiça. Bem descrito nos estudos a seguir:

[...] a construção de um pensa-mento sistemático do direito tri-butário somente foi possível graças ao surgimento do Estado de Di-reito e às pesquisas jurídicos-ad-ministrativas havidas ao longo de todo o século XIX, ao que adicio-namos a contribuição da Doutrina da Ciência das Finanças, naquilo

3. ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E PODER(?) DE TRIBUTAR

A medida da tributação é

a capacidade contributiva,

em uma ocasião em que todos

têm o dever de contribuir,

contudo, cada um dentro de suas

capacidades para tal, sem fazer do

poder de tributar do Estado, uma

razão para a generalidade, vindo a gerar

injustiça tributária no seio de uma sociedade

que deve ser igualmente justa.

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que pode ser assimilado ao Sis-tema Tributário. Desse encontro exsurgem as bases do sistema de princípios, conceitos e de relações peculiares do direito tributário que conhecemos na atualidade. E fo-ram necessários mais de cem anos de evolução e aperfeiçoamento para libertar os tributos da econo-mia e a estes conferir um exausti-vo rigor de juridicidade (TÔRRES, 2011, p. 300).

Originariamente entendia-se o sistema tributário apenas sob os as-pectos econômicos e empíricos, fato este que passou a ser mudado com o surgimento do Estado Democrático de Direito, onde se começou a ana-lisar o sistema tributário sob o enfo-que jurídico.

Um primeiro entendimento me-tódico sobre o sistema tributário nasceu com os estudos de Adolf Wagner onde o mesmo dizia que:

sistema tributário significa a in-dicação dos princípios econômi-cos e jurídicos a serem seguidos, os critérios de justiça tributária e o princípio da diferenciação do sistema tributário, que serviria de distinção dos tributos segundo os fatos representativos de capa-cidade contributiva. (1990, apud TÔRRES, 2011, p. 302)

A partir de então, tendo em vis-ta todos os princípios existentes no ordenamento jurídico o princípio da segurança jurídica foi considerado como um implícito do Estado de Di-reito, consagrado como expressão de certeza jurídica, podendo se afirmar que o Sistema Tributário deve ser

concebido como um permanente es-forço de concretização do conteúdo essencial do princípio da segurança jurídica, servindo este como mais uma maneira de se alcançar a justiça tributária.

Ao seguir na evolução dos tem-pos e dos estudos, já pelo meio do século XX, passou-se a perceber de forma mais contundente que o prin-cípio da segurança jurídica e o siste-ma tributário organizado se encon-travam diretamente ligados com o Estado Democrático de Direito, indo mais além, passando a entendê-los não somente ligados ao Estado De-mocrático em si, mas, também, ao princípio da garantia da legalidade tributária, de forma que as leis tri-butárias muito mais que trazerem em sua essência apenas os fatos e as obrigações jurídicas, devem assegu-rar uma tributação justa e condigna com a realidade do Estado, especial-mente devendo atenção maior aos ditames da isonomia e capacidade contributiva.

Em vista disso, percebe-se que

as garantias e direitos fundamentais trazidos na Carta Maior de 1988, e o ordenamento dos sistemas tribu-tários vieram para corroborar com o sentido de Constituição Material. A conformação das normas à sim-ples legalidade começou a não bastar mais para fundamentar a tributação e o asseguramento da segurança jurídica. Considerando tal fato, as constituições e suas correspondentes normas garantistas passaram a ga-nhar mais destaque como forma de justificar todo o arcabouço tributá-rio, ficando dessa maneira os legisla-dores vinculados e devendo obriga-tória observância aos mandamentos constitucionais.

Assim sendo, é por meio da se-gurança jurídica garantidora dos princípios constitucionais que se tem comprometimento com a con-cretização da realização de um real Estado Democrático de Direito, ten-do como fator basilar o sistema tri-butário ligado intimamente com os valores, garantias e direitos funda-mentais defendidos na Constituição

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Federal, garantindo, assim, justiça funcional aos valores constitucionais tão importantes.

Um Estado Democrático de Di-reito e um sistema tributário jus-to, demonstram a capacidade que os estudos sobre o assunto tiveram de desligar a ideia de que o tributo se mostrava como desenho do Ius Imperi do Estado, em que se funda-mentava a tributação das pessoas unicamente no poder de tributar daquele sem, contudo, observar o poder-dever de concretizar os co-mandos garantistas trazidos em todo o bojo da Constituição, de proteção dos direitos e liberdades individuais dos contribuintes quanto a suas re-ais possibilidades frente as normas e obrigações tributárias.

No novo modelo de constitucio-nalismo dos tempos atuais, a reali-zação e permanente otimização dos princípios constitucionais se mostra como uma das características princi-pais, senão a principal.

Portanto, o exame e observância da segurança jurídica impõe o dever de definir seu conteúdo, alcance e efeitos do Sistema Tributário Cons-titucional, para que se seja possível uma definição básica de suas compe-tências e objetivos.

A partir da nascença e confirma-ção cada vez mais emergente do Esta-do Constitucional de Direito, come-ça a entrar em cena, fazendo como contra peso a tal soberania estatal, os limites e princípios do poder de tri-butar. Os primeiros, de modo obje-tivo, mostrando o alcance do poder estatal na sua atividade legislativa e executiva quanto aos tributos, sen-do assim, tratados como real limite de obrigatória atenção e observância

pelo Estado. Já os segundos, possuin-do um papel mais demonstrativo de como deve ser exercido o poder de tributar, se caracterizando como um conjunto de regras a serem seguidas pelo Estado quando da criação e ad-ministração das obrigações tributá-rias. Assim, hoje, a tributação se liga com a relação constitucional tributá-ria, devendo o poder de tributar ser compreendido como o somatório de todas as competências, na medi-da em que estas são a expressão do poder no qual a soberania se torna reflexo, segundo entendimento:

Na atualidade, como dito, a tribu-tação projeta-se como forma de re-lação constitucional democrática. [...] será a partir da Constituição posta, exclusivamente, como plexo de poderes que investirão o Esta-do como sujeito da ordem inte-restatal, que se poderá falar, com legitimidade, de uma verdadeira soberania estatal como somatório de todas as competências, interna-mente (TÔRRES, p. 307 e 309).

O estudo é, de certa forma, espi-nhoso, pois trata-se de falar de um assunto sensível no que tange a um Estado Democrático de Direito e suas garantias fundamentais de justiça, além de que, os tributos e suas obri-gações, mexem com uma parte me-lindrosa dos contribuintes, o bolso.

Quando se detêm para fazer uma análise mais crítica da situação atu-al do Brasil, logo se percebe que o problema não está na carga tributá-ria por si só. Em sendo assim, países mais desenvolvidos da Europa teriam enfrentado maiores e mais graves di-ficuldades que o Brasil, uma vez que

A tributação projeta-se como

forma de relação constitucional

democrática. [...] será a partir

da Constituição posta,

exclusivamente, como plexo de

poderes que investirão o

Estado como sujeito da ordem

interestatal, que se poderá

falar, com legitimidade, de uma verdadeira

soberania estatal como somatório

de todas as competências, internamente.

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lá, como por exemplo, na Dinamar-ca, Suécia, França e Itália, encontra--se cargas tributária maiores do que a brasileira. Enquanto se tem uma carga tributária brasileira nos atuais 35%, a Dinamarca possui 45,2% e não por isso se percebe a tamanha di-ficuldade em se pagar impostos lá do que aqui, pelo motivo de que existe uma real e concreta redistribuição de tais valores pagos a título de impos-tos para toda a população, de modo que quem mais ostenta condições de pagar impostos, contribui com aque-les que menos têm, fazendo com que toda a sociedade seja beneficiada, do mais pobre ao mais rico, com saúde, educação, segurança e mais outros benefícios garantidos a todos e de ótima qualidade.

Tais fatos causa uma incógnita ainda sem resolução, no sentido de que, será que o Brasil se encontra re-almente libertado daquele estado So-berano dos tempos antigos que ins-

tituía e cobrava impostos no seu ius imperi? Muito pouco se vê no que ati-ne ao retorno dos valores pagos à títu-lo de tributos no Brasil. Quem ganha ou possui mais paga menos, quem menos possui capacidade contribu-tiva pena com os serviços públicos precários do país e assim vai criando um sentimento negativo com relação ao dever de pagar impostos, ficando este a mercê da sonegação pois não há um real e concreto retorno em bem-estar aos cidadãos. Portanto, o que mais se percebe no Brasil hoje é, falta de planejamento tributário a médio e longo prazo, má gestão do dinheiro público, mínimo retorno do valor dos impostos para os serviços básicos, não taxação dos indivíduos de acordo com suas capacidades con-tributivas e uma política tributária que almeja tão somente a entrada de dinheiro nos cofres públicos, fazen-do dessa situação um círculo vicioso sem perspectivas de mudanças.

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Os escritos tratados ao longo do desenvolvimento deste trabalho de-monstram o tamanho da importân-cia que carrega o fato de um Estado apresentar bons números de arre-cadação e fiscalização fiscal, assim como se apresentar como justo tan-to em suas atividades mais habitu-ais, como no processo de tributação.

A população em geral não vê o retorno daquilo que é pago à título de imposto e nesse contexto passa a alimentar um sentimento de que sonegar, evadir ou simplesmente não pagar impostos é tido como “di-reito” adquirido. Ora, jamais uma nação dita democrática de direito albergaria normas que fossem no sentido daqueles pensamentos. Tri-butos existem e, acima deles, existe o dever fundamental de pagá-los.

O pagamento de impostos é o preço que se paga para se dispor de uma sociedade assente na liberdade,

de um lado, e num mínimo de so-lidariedade, do outro. Os cidadãos de uma nação ao mesmo tempo em que são livres são responsáveis pela comunidade em que vivem.

Assim sendo, o limite da tribu-tação é igualmente alcançado com o limite do poder de tributar que carrega o Estado, este se mostran-do como um garantidor de direitos, não podendo invadir a esfera do mínimo existencial dos contribuin-tes, nem muito menos adentrar tan-to ao ponto de se caracterizar um verdadeiro confisco.

Tributação é termo intimamen-te ligado à efetivação. Efetivação de todo o Estado Social Democrático de Direito. Promover ações para conscientizar a população da edu-cação, solidariedade fiscal e, acima de tudo, fiscalização da gestão do di-nheiro público é de suma importân-cia, ainda mais se tratando de Brasil

onde o retorno para o povo de tudo aquilo que se arrecada é vergonhoso.

As garantias e direitos funda-mentais do homem não há como serem efetiva e eficazmente confir-mados onde não haja fluxo orça-mentário para tanto. No entanto, este fluxo, uma vez devendo ser soli-dariamente compartilhado e finan-ciado por toda a população de uma sociedade, não pode estar sujeito a desproporcionalidades por parte do Estado somente em nome do poder de tributar que o mesmo carrega.

Portanto, incontestável dizer, que a grande parcela da população bra-sileira é necessitada das prestações estatais, cumprindo este o seu dever igualitário e distributivo, utilizando para tanto, a justiça na tributação. Os direitos sociais é fator de nivelamen-to da sociedade, deixando o princí-pio da isonomia menos abstrato e amenizando as injustiças sociais.

CONCLUSÃO

REFERÊNCIAS

BELTRÃO, Irapuã. A política tributária para a realização do princípio da justiça. Revista SJRJ, Rio de Janeiro, v. 21, n. 39, p. 95-115, abr. 2014.

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POWER(?) TO TAX: A BRIEF ANALYSIS ABOUT TAX JUSTICE AND DEMOCRATIC RULE OF LAW

ABSTRACTTaxation, power to tax, tax justice

and democratic rule of law are ele-ments of a whole that must be constant and permanent harmonization. In a fair and organized society, it is difficult to analyze or study a term from the above without making the correlation with the other, so that, in the absence of one, it will lack the fullness of justi-ce and consequently in the fair society and the State Democratic. So, the pre-sent study aims, to make a brief analy-sis of the definition of justice, bringing the term to be seen from the perspec-tive of taxation and taxing power of the state, and you can thus connect them to the concept and structure of a democratic state, so that the end can be seen that the terms described at the beginning of this summary can not be seen in isolation. Thus, it was used for the preparation of this work the quali-tative literature among some national and foreign authors, so we tried to stu-dy the doctrinal books, scientific arti-cles and research on the world wide web. Therefore, from the research and studies, it was realized that the real tax justice, especially regarding brazilian reality, still falls short of the ideal and seen in other countries. Still, it was observed that in a democratic state of law, the agencies and the federal enti-ties, have tax powers, however, these do not translate into absolute power to tax itself.KEYWORDS: Democratic State of Law. Power to tax. Tax Justice. Histo-ric evolution.