Direito e Linguagem- Debate 1- Intinerário para Pasárgada- Boaventura S. Santos

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    Notas sobre a Histria Jur dico-Social de Pasrgada

    Boaventura de Sousa Santos

    I

    Introduo

    Este texto faz parte de um estudo sociolgico sobre as estruturas jurdicas intemasde uma favela do Rio de J aneiro, a que dou o nome fictcio de Pasrgada 1 . Esteestudo tem por objetivo analisar em profundidade uma situao de pluralismo

    jurdico com vista elaborao de uma teoria sobre as relaes entre Estado edireito nas sociedades capitalistas. Existe uma situao de pluralismo jurdico

    sempre que no mesmo espao geopoltico vigoram (oficialmente ou no) mais deuma ordem jurdica. Esta pluralidade normativa pode ter uma fundamentaoeconmica, rcica, profissional ou outra; pode corresponder a um perodo deruptura social como, por exemplo, um perodo de transformao revolucionria; oupode ainda resultar, como no caso de Pasrgada, da conformao especfica doconflito de classes numa rea determinada da reproduo social - neste caso, ahabitao.

    1 Este estudo, cuja pesquisa de campo foi realizada no vero de 1970, constituiu uma tese dedoutoramento apresentada na Universidade de Yale (U. S. A.) em 1973 e intitulada Law AgainstLaw: Legal Reasoning in Pasargada Law. Foi publicado pelo Centro Inter- cultural deDocumentacion de Cuernavaca (Mxico) em 1974. Uma verso bastante reduzida e revista foipublicada sob o ttulo "The Law o! the Oppressed: The Construction and Reproduction o! Legality inPasargada" na Law and Society Review, vol. 12 (1974), pp. 5 -126. Encontra-se em preparao averso portuguesa integral.

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    A favela um espao territorial, cuja relativa autonomia decorre, entre outrosfatores, da ilegalidade coletiva da habitao luz do direito oficial brasileiro. Estailegalidade coletiva condiciona de modo estrutural o relacionamento dacomunidade enquanto tal com o aparelho jurdico-poltico do Estado brasileiro. Nocaso especfico de Pasrgada, pode detectar-se a vigncia no-oficial e precriade um direito interno e informal, gerido, entre outros, pela associao demoradores, e aplicvel preveno e resoluo de conflitos no seio dacomunidade decorrentes da luta pela habitao. Este direito no-oficial - o direitode Pasrgada como lhe poderei chamar - vigora em paralelo (ou em conflito) com

    o direito oficial brasileiro e desta duplicidade jurdica que se alimentaestruturalmente a ordem jurdica de Pasrgada. Entre os dois direitos estabelece-se uma relao de pluralismo jurdico extremamente complexa, que s umaanlise muito minuciosa pode revelar. Muito em geral pode dizer-se que no setrata de uma relao igualitria, j que o direito de Pasrgada sempre e demltiplas formas um direito dependente em relao ao direito oficial brasileiro.Recorrendo a uma categoria da economia poltica, pode dizer-se que se trata deuma troca desigual de juridicidade que reflete e reproduz, a nvel scio-jurdico, asrelaes de desigualdade entre as classes cujos interesses se espelham num enoutro direito.A anlise da ordem jurdica de Pasrgada circunscreve-se, no que interessa paraeste estudo, aos recursos internos que so mobilizados para prevenir e resolverconflitos decorrentes da propriedade ou posse da terra e dos direitos sobreconstrues (casas e barracos) que nesta se implantam 2 . atravs da anlise dos

    2 Em qualquer sociedade moderna ou em vias de modernizao, a terra tende a ser consideradacomo um recurso de muito valor, tanto em reas urbanas como em reas rurais. Desta maneira, osistema jurdico tende a desenvolver medidas e estratgias atravs das quais a segurana e aestabilidade das relaes sociais que envolvem a terra estejam garantidas. Como diz W. S.Holdsworth, "as regras que regem a maneira pela qual a terra pode ser possuda, usada oualienada devem ser sempre de muita importncia para o Estado. A estabilidade do Estado e obem-estar dos seus cidados em todas as pocas dependem consideravelmente do direito depropriedade sobre as terras". (An Historical Introduction to the Land Law, Oxford, 1927, p. 3.) Noadmira, pois, que em Pasrgada se tenham desenvolvido mecanismos jurdicos informais e nooficiais destinados a garantir o mnimo de segurana e de estabilidade das relaes sociais

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    tipos de conflitos e dos seus modos de resoluo que melhor se surpreende odireito de Pasrgada em ao, isto , enquanto prtica social. Esta anlise, feitanum certo momento do desenvolvimento de Pasrgada, requer, para sercompleta, a incluso de uma dimenso histrica. Mais concretamente, trata-se desaber como se constituram e desenvolveram, a partir da formao da favela, asnormas e as formas jurdicas e os rgos de deciso jurdica, que hoje se centram volta da associao de moradores e de outros plos de organizao comunitriaautnoma, que continuam a subsistir, ainda que de modo cada vez mais precrio,anos depois do apogeu do desenvolvimento comunitrio no incio da dcada de

    60.

    O texto que se segue circunscreve-se anlise da primeira parte desta evoluo emesmo assim de modo muito lacunoso. As dificuldades da investigao histricano domnio scio-jurdico so inmeras, sobretudo quando o objetivo captar a

    gnese das formas e estruturas jurdicas. As dificuldades so ainda maioresquando, como no caso presente, quase total a carncia de documentaoescrita. Para as obviar, recorri a entrevistas com os moradores mais antigos de

    Pasrgada e sobretudo com aqueles que ali viveram desde o incio dacomunidade. sabido que este mtodo sociolgico tem muitas limitaes e que origor do conhecimento atravs dele obtido sempre muito problemtico. E isto tanto mais assim quando se trata de pesquisar "questes jurdicas" porque,consoante a perspectiva analtica usada pelo entrevistador, tais questes, ou sereferem a fatos que no ultrapassam os umbrais de um quotidiano, por vezeslongnqo, ou envolvem mitos e tabus volta dos quais o conhecimento e o

    desconhecimento social se organizam estratgica e "caprichosamente". Emqualquer dos casos, as respostas dos entrevistados tendem a padecer de vcios,tais como lacunas e distores de percepo e memria, prejuzos ticos ououtros (sobrevalorizao do presente em relao ao passado e vice-versa),induo das respostas, ou seja, adequao destas ao esteretipo do entrevistador

    centradas na terra e na habitao, uma vez que, pelas razes apresentadas no texto, talestabilidade e segurana no podiam ser garantidas pelo direito oficial brasileiro

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    e das suas preferncias. Em condies como estas, a tentao grande paracompensar as deficincias de informao com sobre-interpretao.

    II

    Os Maus Velhos Tempos Quando os primeiros habitantes se fixaram em

    Pasrgada em meados da dcada de 30, existia muita terra disponvel. Cadamorador demarcava o seu pedao de terra e construa o seu barraco, deixandoem geral espaos abertos para o cultivo de verduras, plantio de rvores ou paracriao de animais domsticos. Segundo os mais antigos moradores dePasrgada, naquela poca quase no existiam conflitos entre os habitantesenvolvendo direitos sobre aterra e ashabitaes. "No havia necessidade debrigas", dizem eles. Os barracos eram de construo muito primitiva, pouco valortendo. Podiam ser construdos ou demolidos em questo de horas. Por outro lado,uma vez que existia muita terra desocupada, qualquer conflito relacionado com aposse da terra (limites, preferncias e servides) poderia ser evitado facilmentecom a simples mudana de uma das partes do conflito para outro lugar no morro.Mas o povoado cresceu muito rapidamente e a qualidade das construesmelhorou consideravelmente, de tal modo que na segunda metade da dcada de40 eram j freqentes os conflitos envolvendo a propriedade e aposse da terra.Quando se pergunta aos moradores mais antigos a maneira como naquela poca

    tais conflitos eram resolvidos, eles respondem invariavelmente: "Violncia, a ei domais forte. Quando, a fim de evitar, em alguma medida, distores de percepoe de memria, se procura obter informaes com base num paralelo entre o modocomo os conflitos eram tratados naquele tempo e como so tratados agora, freqente obter-se uma resposta deste teor: "Oh! Agora diferente. Agora asquestes so tratadas em paz e tenta-se decidir de acordo com a justia. Naquelapoca eram resolvidas com facas e revlveres". Este tipo de resposta envolve

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    ainda uma certa distoro, porque no verdade que hoje em dia todos osconflitos sejam pacificamente resolvidos, muito embora no seja menos verdadeem Pasrgada do que o na sociedade brasileira em geral. A luz de informaesobtidas e tendo em conta a possibilidade de distoro, talvez seguro concluirque a probabilidade de relaes sociais pacficas envolvendo a propriedade e aposse da terra e o tratamento tambm pacfico dos conflitos decorrentes de taisrelaes hoje muito mais elevada do que h 20 ou 30 anos.

    O aumento da violncia numa primeira fase da histria de Pasrgada resultaobviamente de uma pluralidade de fatores. Entre eles apenas se referem dois que

    tm mais pertinncia para os objetivos do presente estudo: por um lado, aindisponibilidade ou inacessibilidade estrutural dos mecanismos de ordenao econtrole social prprios do sistema jurdico brasileiro e, por outro lado, ainexistncia de mecanismos alternativos, de origem comunitria, capazes deexercer, ainda que de modo diferente e apenas nos limites da comunidade,funes semelhantes s dos mecanismos oficiais. No que respeita ao primeirofator, a indisponibilidade diz-se estrutural, sempre que as suas razestranscendem o domnio motivacional e, portanto, o nvel dos eventos da interaosocial, independentemente do grau de universalizao desta. Entre osmecanismos oficiais de ordenao e controle social, sero referidos dois: a polciae os tribunais. A polcia no tinha delegacias em Pasrgada e, mesmo se astivesse, improvvel que fossem solicitadas pela populao para intervir emcasos de conflito, e as delegacias policiais nas reas urbanizadas prximastambm no eram chamadas a agir. Quando se pergunta aos moradores maisantigos as razes por que eles no usavam os servios da polcia, eles primeiro

    riem pela surpresa que lhes causa tal pergunta - to bvio a resposta. Depoisfazem um esforo para expressar o bvio. Desde os primrdios da ocupao domorro, a comunidade "entendeu" que estava numa contnua luta com a polcia.Antes de os terrenos de Pasrgada passarem para o domnio pblico, vriasforam as tentativas empreendidas pela polcia para expulsar em massa osmoradores. E mesmo depois disso a sobrevivncia da comunidade nunca estevegarantida, uma vez que se conheciam casos de remoo de favelas construdas

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    em terrenos do Estado. Chamar a polcia aumentaria a visibilidade de Pasrgadacomo comunidade ilegal e poderia eventualmente criar pretextos para remoo.

    Outros fatores contribuam ainda para que a polcia fosse vista como um inimigopelos moradores de Pasrgada. Criminosos, suspeitos, vagabundos e em geral"maus elementos" eram considerados pela polcia como formando umaconsidervel proporo da populao de Pasrgada. Por conseguinte, pelo quecontam as testemunhas desse tempo (que no , neste aspecto, muito diferentedo tempo presente), a polcia fazia incurses repressivas, isto , "dava batidas" nacomunidade com muita freqncia. Estas batidas eram to ineficientes do ponto

    de vista de objetivos policiais quanto eram repugnantes para os moradores quedelas eram vtimas. Aqueles que de fato eram "maus elementos" quase nuncaeram apanhados e as pessoas inocentes eram levadas com freqncia paraprises de onde no eram libertadas a no ser atravs de suborno. Nestecontexto, e mesmo colocando de lado perigos envolvidos, no existia qualquerpropsito til em chamar a polcia em caso de conflito. Se a vtima ou, em geral, apessoa prejudicada chamasse a polcia, sabia que esta provavelmente no sedisporia a vir (a menos que por outros motivos tivesse nisso interesse) e, seviesse, o culpado e todas as relevantes testemunhas j teriam ento desaparecidoou, se no, quando interrogadas, fariam o possvel para no fornecer quaisquerinformaes teis. Por outro lado, o morador que chamasse a polcia seriaconsiderado traidor ou informante (cagete) pelos outros moradores e isso poderiafazer perigar a sua permanncia na comunidade.No existe razo para duvidar da exatido deste relato, tanto mais que ele serefere a comportamentos e atitudes que continuam ainda hoje a constituir, emgrande parte, o quotidiano das relaes entre os moradores de Pasrgada e apolcia. Apesar de ter agora delegacia em Pasrgada, a polcia continua adesempenhar um papel mnimo na preveno e na resoluo de conflitos. Noobstante os seus esforos no sentido de uma aceitao mais positiva por parte dacomunidade, continua a ser vista por esta como uma fora hostil investida defunes estritamente repressivas.

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    Para alm da polcia (ou em complemento da ao desta), os tribunais constituemo outro mecanismo oficial de ordenao e controle social a que os habitantes dePasrgada poderiam, em teoria, recorrer para prevenir ou resolver conflitosinternos de natureza jurdica. Tal recurso estava, no entanto, igualmente vedado evrias so as razes apontadas pelos moradores mais velhos para tal fato. Emprimeiro lugar, juzes e advogados eram vistos como demasiado distanciados dasclasses baixas para poder entender as necessidades e as aspiraes dos pobres.Em segundo lugar, os servios profissionais dos advogados eram muito caros.Segundo a descrio de um dos moradores, "ns estvamos brigando por

    barracos e pedaos de terra que, do ponto de vista dos advogados, no valiamnada. Alm disso, quando voc contrata um advogado, voc duma classe maisbaixa do que a dele e ele fica muito a fim de fazer acordos com outros advogadose com o juiz, que podem prejudicar os seus interesses. Ento ele vem a voc comaquele jeito de falar de advogado e tenta convencer que foi o melhor que ele podiafazer por voc, e que, afinal de contas, o acordo no to mau assim. E voc nopode fazer nada". Esta observao, embora referida a atitudes para com osadvogados na poca inicial de Pasrgada, baseia-se provavelmente emexperincia e percepes adquiridas muito tempo depois. Em qualquer caso,pressupe um conhecimento bastante ntimo da ao dos advogados que duvidofosse comum em Pasrgada h 20 ou 30 anos atrs. Comum era (e continua aser) a idia de que os servios dos advogados so muito caros e, por isso, longedo alcance das posses escassas das classes baixas, uma idia, alis,profundamente enraizada na conscincia jurdica popular e, portanto,correspondente a uma experincia histrica longa 3 .Uma terceira razo invocada

    pelos moradores de Pasrgada para no recorrerem aos tribunais reside no fatode saberem desde o incio que a comunidade era ilegal luz do direito oficial, quer

    3 Sobre as razes econmicas e extra-econmicas do uso diferenciado das instituies jurdicassegundo as classes sociais, razes essas que conferem o carter de justia de classe justiaproduzida pelo aparelho jurdico do Estado nas sociedades capitalistas, vide J . Carlin e J . Howard,"Legal Representation and Class J ustice", in V. Aubert, Sociology of Law, Lon- dres, 1969 (1975),pp. 332-50 .

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    quanto ocupao da terra, quer quanto aos barracos que nela se iamconstruindo. Na expresso perspicaz de um deles, "ns ramos e somos ilegais".Recorrer aos tribunais para resolver conflitos sobre terras e habitaes no s eraintil como perigoso. Era intil porque "os tribunais tm que seguir o cdigo e pelocdigo ns no tnhamos nenhum direito". Era perigoso porque trazer a situaoilegal da comunidade ateno dos servios do Estado poderia lev-los a "nos

    jogar na cadeia". Esta srie de observaes requer uma anlise detalhada,porque esclarece alguns aspectos bsicos da gnese e estrutura da ordem

    jurdica interna de Pasrgada. A expresso "ns ramos e somos ilegais", que, no

    seu contexto semntico, liga o status de ilegalidade com a prpria condiohumana dos habitantes de Pasrgada, pode ser interpretada como indicao deque nas atitudes destes para com o sistema jurdico nacional tudo se passa comose a legalidade da posse da terra se repercutisse sobre todas as outras relaessociais, mesmo sobre aquelas que nada tm a ver com a terra ou com ahabitao. Tal seria o caso se, por exemplo, um conflito jurdico de ndoleestritamente pessoal no fosse levado ateno dos operadores do sistema

    jurdico nacional, pela suspeita das partes de que a ilegalidade do seu statusresidencial afetasse desfavoravelmente o modo como o conflito seria processadopelos tribunais. No tenho provas cabais do funcionamento deste mecanismo defeedback e julgo que seria muito difcil, seno impossvel, obt-las. Na verdade,apesar de a inacessibilidade dos tribunais em relao aos conflitos envolvendoterras ocupadas por favelas assumir aspectos peculiares luz da inexistncia ounulidade legal dos respectivos ttulos de propriedade e de posse, necessrioreconhecer que tal inacessibilidade geral em relao aos problemas jurdicos

    das classes baixas residindo ou no em favelas e constitui, por isso, uma dasmanifestaes mais evidentes da natureza classista do aparelho jurdico doEstado numa sociedade capitalista 4.

    4 A prova plena da existncia do mecanismo de feedback exigiria, em obedincia aos mtodos deverificao sociolgicos estabelecidos, que se tomassem dois grupos representativos das classesbaixas brasileiras, homogneos na totalidade das caractersticas consideradas importantes eapenas diferindo quanto ao status residencial (tendo um status residencial legal e o outro, ilegal).Seria ento registrado, ao longo de uma seqiincia temporal consi- derada razovel e por modo

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    No entanto, em muitas entrevistas com os moradores de Pasrgada obtivedeclaraes nas quais a idia do mecanismo de feedback subentendida. Eisuma declarao tpica: "parece que, somente porque a terra no nossa, oEstado no tem obrigao de nos fornecer gua e luz eltrica e a polcia podeinvadir nossas casas quando bem entende. Existem mesmo patres que recusamcandidatos a emprego quando estes do endereo numa favela". O significadoimplcito deste extrato de entrevista que, de acordo com os princpios de justia,a ilegalidade da posse da terra nas favelas no se deveria repercutir sobre aproviso de servios pblicos pelo Estado ou sobre o comportamento da polcia edos patres. No contexto em que esta declarao foi feita 5, significa tambm que omecanismo de feedback, embora existindo de fato, no sequer legal face aosistema jurdico oficial. Na realidade, o feedback legal no que respeita provisode servios pblicos referidos. De acordo com as leis gerais e com as disposiesdo cdigo urbano, o fornecimento por parte do Estado de servios pblicos, taiscomo gua, esgotos, luz eltrica, pavimentao, limitado a reas cuja utilizao

    tenha sido aprovada nos termos da legislao em vigor 6. No que respeita aocomportamento da polcia 7, foi possvel, depois de algumas entrevistas com

    quantificado, o recurso aos tribunais em caso de conflitos devidamente tipificados. Ver-se-ia entose se verificavam diferenas significativas que pudessem ser atribuveis varivel independenteadotada (a qualidade jurdica oficial do status residencial). Mas, mesmo recorrendo a todo estearsenal metodolgico, seria sempre impossvel controlar completamente todas as restantescategorias (potenciais variveis independentes). Haveria assim sempre o risco de estas interviremno processo causal (ou simplesmente correlacional), oferecendo hipteses alternativas deexplicao.

    5 Ns estvamos a discutir situaes em que o direito constante dos cdigos e demais legislaes(a "Iaw in books" da filosofia anglo-saxnia de propenso sociolgica) no se coaduna com odireito efetivamente aplicado e praticado (a "Iaw in action "). 6 Isso no significa que o Estado tenha suprido todas as reas urbanizadas com os serviospblicos referidos. Nem to pouco significa que tais servios tenham sido recusados em absolutos favelas. Por exemplo, ao tempo em que foi realizada a pesquisa de campo (vero de 1970), oento Estado da Guanabara iniciava a instalao da rede de gua em Pasrgada. Em verdade, osmoradores da favela esto habituados a ver iniciado o forneci mento de servios pblicos emperodos pr-eleitorais (como era o caso em Pasrgada) para ser interrompido ou abandonadologo aps as eleies 7 Em face das tenses entre a comunidade e a polcia, nunca contactei os policiais com baseoperacional em Pasrgada. Qualquer contato com a polcia colocaria em perigo a continuidade daminha pesquisa. Assim, e na medida em que a polcia faz parte das "vias judiciais" ("Iaw-ways") de

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    policiais trabalhando noutras favelas, confirmar a disparidade entre o direito noslivros e o direito na prtica. Indiferente ao disposto na lei, a polcia tende a agirsegundo o princpio de que, uma vez que os favelados esto ilegalmentedomiciliados, no tm razes para reclamar quando a polcia invade suas casas"no cumprimento do dever".A anlise da expresso "ns ramos e somos ilegais" parece indicar que a idiade uma capitis diminutio geral (de uma ilegalidade quase existencial) e a prticasocial em que ela se espelhou e reforou agiram como fatores bloqueantes doacesso aos tribunais. O estatuto (e, portanto, os limites) desta declarao de

    ilegalidade encontra-se precisado na expresso, tambm j mencionada, de que"os tribunais tm que observar o cdigo e pelo cdigo ns no tnhamos nenhumdireito". J untamente com a anterior, esta citao ilustra bem a ambigidadeprofunda da conscincia popular do direito nas sociedades caracterizadas porgrandes diferenas de classes. Por um lado, a apreciao realista de que o direitodo Estado o que est nos cdigos e de que nem estes nem os juzes, que tmpor obrigao aplic-lo, se preocupam com as exigncias de justia social. Poroutro lado, o reconhecimento implcito da existncia de um outro direito, para almdos cdigos e muito mais justo que estes, luz do qual so devidamenteavaliadas as condies durssimas em que as classes baixas so obrigadas a lutarpelo direito habitao.Da discusso precedente conclui-se que, para alm das razes diretamenteeconmicas, o estatuto de ilegalidade da comunidade favelada e o bloqueamentoideolgico que lhe foi concomitante criaram uma situao de indisponibilidade ouinacessibilidade estrutural dos mecanismos oficiais de ordenao e controle social.

    Esta situao poderia ter sido de algum modo neutralizada, se entretanto setivessem desenvolvido na comunidade mecanismos internos, informais e no. -oficiais, capazes de articular e exercer uma legalidade e uma jurisdioalternativas para vigorar dentro da comunidade. Sucede, no entanto, que na fase

    Pasrgada, a limitao bvia da minha pesquisa consiste em apresentar o ponto de vista dacomunidade em relao polcia sem o comparar com o ponto de vista da polcia em relao comunidade. Essa limitao foi, contudo, conscientemente assumida e aceita com base naponderao relativa das limitaes decorrentes das estratgias alternativas de pesquisa.

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    da histria de Pasrgada que estamos a analisar tais mecanismos no surgiram enem surpreende que assim tenha sido. A existncia de tais mecanismospressupe um ndice bastante elevado de organizao comunitria, queobviamente no existia ao tempo. Mesmo hoje, numa altura em que Pasrgada

    j uma velha e estvel comunidade, a sua organizao ainda baseada numapluralidade de redes de ao social frouxamente estruturadas. de suspeitar que,quando a comunidade era muito mais jovem e ainda em processo de formao, asua organizao social fosse ainda mais precria e totalmente desprovida dequalquer plo centralizador.

    A indisponibilidade estrutural dos mecanismos oficiais de ordenao e controlesocial e a ausncia de mecanismos no-oficiais comunitrios criaram umasituao que designarei por privatizao possessiva do direito. uma situaosusceptvel de ocorrer, por exemplo, em sociedades muito jovens constitudas margem de estatutos organizativos definidos, como o caso da sociedade defronteira, ou em sociedades em fase de ruptura (devido a revoluo, guerra, etc.) ede desestruturao e reestruturao profundas. Esta situao caracteriza-se pelaapropriao individual da criao e aplicao das normas que regempotencialmente a conduta social. Cada unidade social constitui-se em centro deproduo de juridicidade com uma vocao universalizante circunscrita esferados interesses econmicos ou outros dessa mesma unidade. Na medida em que arealizao social de tais interesses se processa harmoniosamente, isto , semocorrncia de conflitos entre os vrios centros individuais de juridicidade, a relaoentre estes de extrema autonomia e tolerncia recprocas. No momento, porm,em que os conflitos surgem, o choque no meramente entre reivindicaes

    fticas ou normas jurdicas isoladas, antes entre duas ordens jurdicas, duaspretenses globais de juridicidade ou ainda entre duas vocaes contraditrias(mutuamente exclusivas) de universalizao jurdica. Nestas condies, o conflitoatinge rapidamente uma intensidade extrema, pois que tende a generalizar-se atodas as relaes sociais entre as partes conflitantes, inclusivamente quelas noenvolvidas inicialmente no conflito. O conflito entre dois poderes soberanos entreos quais nenhum poder mediador pode interceder. um conflito global e insolvel.

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    Cria-se, assim, uma situao de suspenso jurdica, ou melhor, de ajuridicidadecuja superao tende a ser determinada pela violncia. A privatizao possessivado direito constitui-se por uma dialtica entre a tolerncia extrema e a violnciaprxima. esta dialtica que se detecta em Pasrgada na fase da sua histria queestivemos a analisar .

    Texto preparado pelo Autor com base em sua tese de doutoramento apresentada Universidadede Yale em 1973 sob o ttulo Law Against Law: Legal Reasoning in Pasar- gada Law.