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DIREITO PENAL III
Concurso de agentes
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RGS
FACULDADE DE DIREITO
PROFESSOR MARIO ROCHA LOPES FILHO
DIREITO PENAL III
CONCURSO DE PESSOAS
1. Histórico: sistema brasileiro antes e depois de 1984.
2. Conceito: trata-se de cooperação desenvolvida por várias pessoas para o
cometimento de uma infração penal. Ou é a realização conjunta, por
mais de uma pessoa, de uma mesma (ou várias) infração penal. (CB)
Também conhecida como co-autoria, participação, concurso de
delinqüentes, concurso de agentes, cumplicidade. A co-autoria tem como
fundamento a “divisão de trabalho”, em que todos tomam parte,
atuando em conjunto na execução da ação típica. (CB) É o que pode
ocorrer nos crimes “ação dupla” (Beling), como por exemplo, no
estupro, quando um segura e o outro estupra a vítima.(CB). Não há
relação de acessoriedade entre as condutas (CB.)
3. Teorias: basicamente três teorias:
a) unitária ou monista: para esta teoria, em havendo um resultado com
diversidade de condutas, não importa a qualidade destas, todos responderão
1
igualmente e na mesma proporção, pelo resultado típico. Neste ponto, evitou o
legislador uma série de discussões relacionadas com a definição de autoria,
participação, auxílio secundário, participação necessária, etc;
b) teoria pluralista: havendo pluralidade de agentes com diversidade de
condutas, ainda que provocando somente um resultado, cada agente responde
por um delito. Chegou a cogitar de um “delito de concurso” (vários delitos
ligados por uma relação de causalidade). É excepcionalmente adotada pelo
direito brasileiro no aborto, onde a gestante responde por uma infração, e o
agente causador do aborto, por outra (artigos 124 e 126, do CP);
c) teoria dualista: para esta teoria há a separação dos co-autores e
partícipes, uma vez presente a diversidade de condutas na produção de um só
resultado.
3.a. Causalidade física e psíquica. Teoria da equivalência dos
antecedentes causais. Causalidade=elemento material. Necessidade de
demonstração do elemento subjetivo. A ausência de nexo causal ou o
liame subjetivo entre os agentes inviabiliza o reconhecimento do
concurso de pessoas.
4. Co-autoria e participação: Como se disse, o CP de 1940, indevidamente,
equiparou os vários agentes que praticassem uma infração penal, sem fazer a
necessária distinção entre autor e partícipe, promovendo a injustiça da
aplicação da mesma pena para todos. Daí a importância da conceituação de
autor, tendo prevalecido o conceito restrito de autor, daí resultando dois
posicionamentos:
a) teoria formal-objetiva: autor é quem realiza a figura típica e partícipe é
aquele que comete ações fora do tipo, que ficariam impunes não fosse a regra
de extensão que os torna responsáveis. Esta é a teoria majoritariamente
adotada. Exemplo: o assaltante e o motorista.
b) teoria objetivo-normativa (teoria do domínio do fato): autor é quem
realiza a figura típica mas tem o controle da ação dos demais, dividindo-se em
autor executor, autor intelectual e autor mediato. O partícipe seria aquele que
2
colabora para o delito alheio, sem realizar a figura típica nem tampouco
comandar a ação. Ex. Poderoso Chefão, Caçadores de Emoção, etc.
c) Teoria subjetivo-causal: fruto do CP de 1940, não faz distinção entre
autor e partícipe. Assim todo aquele que concorre para o crime,
independentemente da qualidade de sua participação, responderá pelo fato
como se autor fosse.
5. Requisitos do concurso de agentes: a) pluralidade de agentes; b)
relação de causalidade material entre as condutas; c) vinculação
subjetiva (de natureza psicológica) entre os agentes; d) quando da
punição, identidade de infração para todos os agentes; e) existência
de fato punível.
6. Participação de menor importância.
7. Participação dolosamente distinta (ou participação em crime menos
grave). previsibilidade do resultado mais grave. Desvios subjetivos entre
co-autores e partícipes. O agente que desejava perpetrar determinada
infração, sem condição de prever a concretização de crime mais grave, deve
responder pelo que pretendeu fazer, não se podendo imputar a ele conduta
não desejada.
8. Previsibilidade do resultado mais grave.
9. Punição do partícipe: teoria da acessoriedade limitada – ou seja, é
necessário seja apurado que o autor tenha praticado um fato típico e ilícito.
Assim, diante da ausência de tipicidade ou ilicitude na conduta do autor,
não se cogita da punição do partícipe.
10. modalidades de participação: a) instigação: neste caso, o partícipe
atua sobre a vontade do autor. Significa animar, estimular, reforçar uma
idéia existente. b) induzir: significa suscitar uma idéia, tomar a iniciativa
intelectual, fazer surgir no autor idéia até então inexistente. c)
3
cumplicidade: modalidade material de participação, palavras bonitas que
significam auxílio, empréstimo de uma arma, por exemplo.
11. Concurso de agentes e crime plurissubjetivo. O crime plurissubjetivo
exige mais de uma pessoa para a sua configuração. Por ex. art. 288, do CP.
Assim, é desnecessária a utilização da regra de extensão do 29, do CP, pois
a presença de duas ou mais pessoas é garantida pelo tipo penal.
12. Na medida de sua culpabilidade. Expressão introduzida no Brasil pela
reforma do CP/40 e que pretendeu, nitidamente, estabelecer a distinção
entre autor e partícipe, possibilitando o apenamento conforme o juízo de
reprovação que cada agente mereça. A sanção assim estabelecida tem
íntima relação com o princípio da proporcionalidade, ou seja, da pena
estabelecida pelo efetivo dano causado pelo agente ao organismo social.
13. Outras questões pertinentes ao concurso de pessoas:
a) autoria mediata: modalidade de autoria ocorrendo quando o agente
se vale de outra, não imputável como regra, para a execução do
delito. São as seguintes as situações que permitem a autoria mediata:
a1. valer-se de inimputável (criança, doente mental ou
embriagado); a2. coação moral irresistível; a3. obediência
hierárquica; a4. erro de tipo provocado por terceiro; a5. erro de
proibição escusável.
b) concurso entre maior e menor: colaboração, também conhecido
como concurso impropriamente dito, pseudo concurso, ou concurso
aparente, hipótese em que o menor é efetivamente co-autor, mas não
recebe a mesma punição.
c) co-autoria e participação em crime culposo: a respeito, a
doutrina rejeita a hipótese de participação mas admite a co-autoria.
d) autoria colateral.
e) autoria incerta.
4
f) participação por omissão (art. 13, § 2º do CP).
g) conivência: trata-se de participação por omissão impunível, para
aquele que não tem o dever de evitar o resultado.
h) participação posterior à consumação: impossibilidade. Se
houver, dará margem a um tipo específico (art. 348, CP).
Entretanto, se houver ajuste pretérito, poderá tornar-se partícipe.
i) participação em ação alheia: impossibilidade.
13. Circunstâncias incomunicáveis: art. 30, do CP. São aquelas que não se
transmitem aos co-autores e partícipes, pois devem ser consideradas
individualmente no contexto do concurso de agentes.
a) circunstância de caráter pessoal: situação ou particularidade que
envolve o agente, sem constituir elemento inerente à sua pessoa. Ex. confissão
espontânea.
b) condição de caráter pessoal: modo de ser ou qualidade inerente à
pessoa humana. Ex. menoridade, reincidência.
c) circunstâncias e condições de caráter objetivo: comunicabilidade se
houver previsibilidade.
d) elementar do crime: trata-se de um elemento integrante do tipo penal
incriminador.
e) a polêmica do infanticídio.
f) conhecimento da circunstância elementar por parte do co-autor ou
partícipe. O desconhecimento de eventual circunstância elementar inviabiliza a
condenação do co-autor pelo tipo principal. Ex. crime praticado por funcionário
público e particular.
14. Casos de impunibilidade. art. 31, do CP.
15. Circunstâncias incomunicáveis – art. 30 do CP.
5
16. Conceito de elementar: trata-se de elemento integrante do tipo penal incriminador. Ex. “alguém” e “matar” são elementares do delito de homicídio.
17. Condição de caráter pessoal:é o modo de ser ou a qualidade inerente à pessoa humana. Ex. menoridade, reincidência.
18. Circunstância de caráter pessoal: é a situação ou particularidade que envolve o agente, sem constituir elemento inerente a sua própria pessoa. Ex. confissão espontânea, a futilidade do motivo.
19. Circunstâncias e condições de caráter objetivo: comunicam-se, desde que presente a previsibilidade.
1. PENAS: a) Consequência jurídica do delito: a pena é uma exigência amarga, mas
imprescindível, por onde passa o fantasma do abolicionismo penal sempre cogitado mas jamais implementado. Imprescindível, em verdade, é a reforma da pena de prisão, deixando de ser um mal necessário, e se tornando, efetivamente, um instrumento de recuperação do delinquente com o objetivo declarado que envolva seu retorno ao convívio social como homem de bem e com a dívida paga, e, especialmente, que seja aceito pelos membros da sociedade livre. A pena, portanto, justifica-se por sua necessidade, e sua efetividade é – e sempre foi – contaminada pela reincidência que produz inúmeros efeitos na vida do apenado.
b) Histórico. c) Evolução das Penas no Direito Brasileiro.d) Teorias: absoluta ( a pena é o remédio, sendo Kant seu maior
representante com o famoso imperativo categórico); relativas(prevenção geral e especial); ecléticas ( retribuição, prevenção e ressocialização - esta seria uma nova hipótese ?)
e) d) Peculiaridades. Abolicionismo, garantismo, justiça retributiva/restaurativa.
f) Espécies. g) Princípios: humanidade, legalidade (nulla poena sine praevia lege),
taxatividade (nulla poena sine lege certa), personalidade, intervenção mínima ou fragmentária, culpabilidade, individualização, proporcionalidade.
h) Conceito: é a sanção da qual se vale o Estado, prevista previamente e através da utilização de um processo onde haja o respeito às garantias constitucionais do processado, imposta ao infrator como retribuição ao delito por ele perpetrado e com o objetivo jamais alcançado de prevenir a prática de outra (s) infração penal.
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2. ESPÉCIES DE PENAS: basicamente aquelas previstas no artigo 32 do Código Penal – privativas de liberdade, restritivas de direito e de multa. Todavia, o legislador se puxou ao inserir a regra contida no artigo 28, §6º, da Lei 11.343/2006.
3. REGIME DE PENAS
a) Fundamentação para a escolha do regimeb) Aplicação do regime fechado à pena de detenção
Duas posições: a minoritária autoriza a majoritária nãoc) Gravidade do crime e regime fechado Por valoração judicial meramente subjetiva, não é possível a aplicação do
regime mais gravoso
7. Pena fixada no mínimo não autoriza regime mais gravoso
8. Falta de vagas no regime semi-aberto. Inicia cumprimento de pena no regime mais severo. Discussão
9. A execução da pena é balizada na sentença e não na VEC, onde se faz a progressão
10.Conceito e análise do mérito do condenado – diagnóstico e prognóstico
11.Falta grave e execução da pena
12. Lapso temporal e falta grave. Conseqüências – perda da remição. Conseqüência lógica do regime gradual
13. Hipóteses de regressão de regime: a) prática de fato definido como crime dolosob) frustração dos fins da execuçãoc) não pagamento da multa cumulativamente aplicada, podendo fazê-lod) condenação por crime anteriormente praticado, mas que torne a
soma das penas incompatível com o regime
14. Laudo criminológico e o juiz.
15. Perda dos dias remidos e falta grave - art.127 LEP, posição majoritária. Perda dos dias remidos. Não há direito adquirido embora alguns o sustentem
16. Estrangeiro e regime de pena
7
17. Exame criminológico. Obrigatoriedade (?)
18. Direitos do condenado art. 38. Art. 40 e 41 da LEPa) alimentação suficiente e vestuário;b) atribuição de trabalho e sua remuneração;c) previdência social;d) constituição de pecúlio;e) proporcionalidade de tempo entre trabalho, descanso e recreação;f) participação de atividades profissionais, intelectuais, artísticas e
desportivas, compatíveis com sua pena;g) assistência material, jurídica, educacional, social, religiosa e a saúde;h) proteção contra qualquer tipo de sensacionalismo;i) entrevista direta com o advogado;j) visita de cônjuge, companheira, parentes e amigos, em dias
determinados;k) chamamento nominal;l) igualdade de tratamento, salvo quanto às exigências da individualização
da pena;m) avistar-se com o diretor do presídio;n) possibilidade de representação e petição a qualquer autoridade;o) contato com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da
leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes.
19. Direito de cumprir a pena em seu domicilio. Não há direito.
20. Direito à visita íntima – não resolvida pela LEP
21. Detração penal: significado. Prisão provisória e detração. Desconto apenas no feito vinculado. Posição majoritária. Não se desconta o período de um processo em outro. Detração e multa. Possibilidade. Detração não muda o regime de pena; só na execução.
Detração não influencia no prazo do sursis; somente se houver cumprimento de pena. 22. Remição penal – preso provisório: remição e trabalho – redução – impossibilidade – duplo favorecimento.
23. Inexistência de trabalho no presídio onde houver recolhimento – remição ficta?
24. Doença mental do condenado
8
25. Doença mental do imputado
26. Prisão provisória. a) prisão preventiva (311/316 CPP)b) prisão temporária (Lei 7960/89)c) prisão em flagrante (301/310, CPP)d) prisão para extradição
27. Detração e regime inicial de pena. O direito a detração não altera o regime inicial de pena, o que deverá ser feito no âmbito da execução penal. Posição majoritária.
28. Detração e sursis. O direito a detração não altera o prazo inicial da suspensão condicional da pena por ser relacionada a pena imposta e não a este beneficio.
29. Superveniência de doença mental. Conseqüências.
APLICAÇÃO DA PENA.
LEITURA OBRIGATÓRIA DO LIVRO DO SALO DE CARVALHO, “APLICAÇÃO DA PENA E GARANTISMO PENAL.
LEITURA DE APOIO: PALESTRA
LEITURA FUNDAMENTAL: “DAS PENAS E SEUS CRITÉRIOS DE APLICAÇÃO. José Antônio Paganella Boschi.
1. Penas restritivas de direito. Natureza jurídica. Razão de sua previsão legal.
2. Prestação pecuniária. Conceito.
3. Perda de bens e valores
4. Conceito de prestação de serviço a comunidade
5. Conceito de interdição temporária de direitos
6. Conceito de limitação de fim de semana
7. Requisito temporal art.44
9
8. Pena restritiva de direitos e crime hediondo. Jurisprudência favorável, mas não majoritária, pela concessão em alguns crimes, como por exemplo tráfico ilícito de entorpecentes, de acordo com a condição do traficante.
9. PSC – detração penal – admissível
10. PRD – sursis – preferência
11.PRD – leis especiais, inclusive tóxicos, embora a perplexidade inicial admite por ser lei especial e posterior
12.Substituição – sentença – limites – concessão
13.PRD – indeferimento – fundamentação
14.PSC – tempo e prazo. Um dia = 01 hora PSC
15.IFD – mais significativa = limitação da capacidade jurídica do apenado de quem se subtrai um ou mais direitos
16.Reincidência – genérica – específica
ANEXO 1: PALESTRA
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RGS
CICLO DE PALESTRAS DE ATUALIZAÇÃO EM DIREITO
PENAL
APLICAÇÃO DA PENA – 01/09/03
PALESTRANTE: DESEMBARGADOR MARIO ROCHA
LOPES FILHO
DES. MÁRIO ROCHA LOPES FILHO – Certamente apenas parte
de uma manhã será pouco para falar deste assunto, extremamente tormentoso e
cada vez mais preocupante, relacionado com a aplicação da pena. Disse
tormentoso, por exemplo, por competir ao juiz, sem conhecimento nenhum de
10
psicologia ou psiquiatria, avaliar, dentre as circunstâncias judiciais, aquelas
relacionadas com a personalidade do agente, sua culpabilidade, sua conduta social,
especialmente.
É bom lembrar, igualmente, ter vindo aqui, neste dia, para apresentar
este tema polêmico, por óbvio sem a pretensão de esgotar o assunto, esperando,
apenas, contribuir, de alguma forma, para o aprendizado dos senhores e senhoras,
permitindo-me ressaltar o fato de ser um privilégio estar aqui neste dia e falar de
um assunto que gosto muito para tão seleta platéia.
1 BREVÍSSIMO HISTÓRICO
De início, gostaria de registrar que a história da pena, em tempos
imemoriais e antigos, teve sua existência modelada por totens e tabus, com
contornos místicos, enquanto os diversos castigos corporais até a morte,
traduziam as expressões cruentas de defesa e da vingança. Segundo René Ariel
Dotti1 o infrator também poderia ser condenado à perda da paz que se
caracterizava pela expulsão do clã e a impossibilidade de sobrevivência diante das
forças hostis da natureza, da agressão dos animais ou da dificuldade na colheita de
alimentos.
A idéia da pena como instituição de garantia foi obtendo disciplina
através da evolução política da comunidade e determinada autoridade recebia o
poder de castigar em nome dos súditos. Surgiu a chamada pena pública,
impregnada de vingança, que penetra no seio e costumes sociais procurando
alcançar a proporcionalidade (anotem, esta é uma palavra mágica no contexto da
1 DOTTI, René Ariel. Bases e Alternativas para o Sistema de Penas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 31.
11
aplicação da pena) através das formas do talião e da composição. A expulsão foi
substituída pela morte, mutilação, banimento temporário ou perdimento de bens2.
A pena de prisão, como conhecemos, não havia naquela época. O
recolhimento ao cárcere, no mais das vezes, se dava antes do julgamento (mal
comparando, seria uma espécie de prisão preventiva sem a perspectiva da
liberdade) e, fundamentalmente, para garantir a execução das penas corporais,
especialmente a de morte, ou mesmo para fomentar a confissão mediante tortura.
Já na Idade Média, como ponto de partida para os nossos dias,
predominavam as penas corporais, com as ofensas sendo respondidas pela
vingança de sangue ou perda da paz, que foram gradativamente substituídas pela
compositio. Segundo Mariano Ruiz Funes3, o cárcere, como instrumento corporal de
castigo, foi introduzido pelo Direito Canônico, posto que, pelo sofrimento e
solidão, ‘a alma do homem se depura e purga o pecado’. A pena como
instrumento de terror, quando o condenado, antes da execução, falava para
abominar o seu crime, momento assistido pelo povo, em praça pública, onde até
mesmo encenação da execução era feita pelos assistentes, era aplicada com arbítrio
judicial, e o Juiz, naquela época, era um servidor da Coroa, manipulado pelo
representante do clero. Então, não raras vezes, as penas iam muito além do mal
cometido, não havendo limites para a sanção penal.
Naquele período de evolução social, o sujeito sofria a pena, que era
aplicada nos cárceres - como se disse - muito antes de ser julgado, nas torturas que
eram infligidas ao possível criminoso. Numa das formas de tortura, ele era
queimado inteiro em cima de uma cama, com uma vela; depois, introduziam nas
suas unhas uma cunha molhada de óleo e as incendiavam. Naquela circunstância,
o sujeito, se não era o criminoso, tornava-se o criminoso, porque confessava de
qualquer forma.
2 Ibidem. p. 31.3 FUNES, Mariano Ruiz. A Crise nas Prisões. São Paulo: Saraiva, 1953. p. 63.
12
Como no filme Coração Valente, a Igreja estava do lado do Rei, de
Deus, a justiça sempre era divina, e o sujeito era executado em praça pública -
como foi Tiradentes aqui no Brasil, esquartejado - e seus pedaços esparramados
pelo mundo afora de dominação daqueles povos, para mostrar a severidade para
aqueles que contrariavam as leis daquela época.
A primeira reação que houve foi estabelecer uma pena fixa, o que
significava o mal justo pelo mal injusto cometido pelo delinqüente. Esta foi a
primeira medida para a evolução do sistema, merecendo o registro, ainda, que,
através da mudança das estruturas sociais do século XVI, compelida por força dos
descobrimentos marítimos, da expansão colonial das potências européias e o
surgimento da idéia de lucro e do acúmulo de riqueza material, a pena de morte
passou a ser substituída pela pena de trabalhos forçados, inclusive nas galeras.
Antes do Iluminismo, havia o excessivo arbítrio do Juiz na fixação da
pena, e nada disso surgiu de um universo consciente do legislador da época, mas
de uma manifesta necessidade, pois, na Europa, naquele período, um quarto da
população era criminosa. Então, por necessidade de preservação da espécie,
transformou-se o sistema, aplicando penas mais justas.
Significativa, no contexto, foi a obra do frei beneditino Jean Mabillon,
datada do século XVII, como um protesto contra as agruras impostas como
penitência, sugerindo trabalho, melhor higiene e a regulamentação de visitas e foi
o primeiro a usar a palavra proporcionalidade, ou seja, a pena deveria ser
proporcional ao mal cometido.
Também em Roma, como referência histórica importante, Júlio Claro e
Próspero Farinacio, entre 1500 e 1600, foram os primeiros a falar em crime
continuado, porque, naquela época, o sujeito que praticasse o terceiro furto era
13
executado. Para eles, várias condutas com periodicidade e padrão de execução
constituiriam apenas uma infração, daí o crime continuado. Isso está no livro de
Guilherme de Souza Nucci4 de quem aconselho a leitura para quem
eventualmente queira fazer o concurso para o ingresso na magistratura.
Retomando, o objetivo, então, a partir de Beccaria e do Iluminismo, foi a
limitação do excessivo arbítrio judicial, pois o Juiz, em nome de Deus ou do Rei,
era o dono da pena.
Provém do Código Penal Francês de 1810 a idéia de fixação da pena em
seus limites mínimos e máximos. Não havia, até 1810, o mínimo e o máximo da
pena, regramento hoje utilizado para a fixação da pena. Essa concepção do
Código Francês foi ponto de partida para todas as legislações modernas.
Apenas para não deixar passar in albis, na experiência brasileira,
passamos pelo período Imperial, pela Primeira e Segunda República, pelo Estado
Novo, pelo período revolucionário e, a partir de 1940, pela reforma do Código
Penal, e hoje temos uma nova legislação iniciada, especialmente, a partir de 1984.
Assim, vencida a brevíssima introdução histórica, passamos ao tema da
palestra, que trata da aplicação da pena, permitindo-me fazer sucinto comentário a
respeito da figura do julgador, a quem compete, através da utilização de seu poder
discricionário, fixar a pena justa por eventual infração cometida. De início,
registra-se, que a bíblia do magistrado é o Código Penal e, no referente à aplicação
da pena, os artigos 68, 59, 61, 65 e 66, do referido diploma legal.
2 A INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA
4 NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 280.
14
2.1 O juiz
É importante seja dito, ab initio, ser relevante a questão que será
aventada, pois, embora todos os manuais de doutrina façam ou indiquem a forma
pela qual se chega à pena definitiva do cidadão, condenado por uma infração
penal, nenhum deles, a par dos critérios subjetivos elencados no artigo 59,
agregado ao artigo 68, ambos do Código Penal, faz referência de qualquer outro
critério que não seja o mínimo e o máximo da pena cominada.
Este cálculo é feito sempre pelo juiz, a quem é incumbida a tarefa de
não somente julgar o agente, como aplicar a pena e, nos casos específicos do júri
popular, quando condenado o acusado, aplicar tão somente a pena.
O problema é determinar quais são esses critérios que devem ser
utilizados pelo magistrado, que não estão estabelecidos na lei e são extraídos, via
de regra, da consciência do magistrado que, como toda e qualquer pessoa, pode
ou não sofrer influências para o exercício desse juízo de valor.
Quem é esse juiz?
Quais são seus princípios?
Quais são seus critérios?
Estará ele plenamente adequado ao seu tempo?
É necessário fique determinado, desde logo, que tipo de juiz seria o ideal
para, representando o Estado e a sociedade, decidir a respeito de qual pena
mereça, na realidade, o imputado.
Para isso, permito-me invocar, por pertinente, a lição de Roberto Lyra5,
5 LYRA, Roberto. Comentários ao Código Penal. v. II, Revista Forense, 1955. p. 175/177.
15
Pelo Código foram conferidas as maiores responsabilidades, no exercício de individualização, ao juiz, delegou-lhe o legislador, avisadamente, um arbítrio, prudente e relativo, como deve ser todo arbítrio, ditando normas taxativas para limitá-lo e conduzi-lo, no caso concreto.
O arbítrio judicial é o pressuposto das mais elementares concepções do período científico do direito penal: mesmo confinando o problema ao aspecto individual, não tem mais sentido o aforismo de BACON; “optima est lex quae minima reliquit ad arbitrium judicis: optimus judez qui minimu sibi”. Quando a Justiça refletia o absolutismo e os juízes eram apenas carrascos a serviço da mais ingnóbil tirania, não se podia, sequer, falar em julgamento, porque os magistrados estavam, por sua vez, submetidos à força. Então, ótima era a lei que menos arbítrio deixava ao juiz e ótimo o juiz que menos arbítrio se permitia.
Enquanto se mantiver, com a seleção moral e intelectual, a independência da magistratura, o arbítrio judicial, regulado cautelosamente, como fez o Código, só poderá ser salutar. Quando desaparecer aquela condição vital, não haverá juízes, e sim, funcionários sujeitos ao automatismo da violência ilegítima. Então, não se cogitará de ordem jurídica e de seus fenômenos. Com a liberdade dos juízes responsáveis, em atenção à realidade integral de cada homem e de cada fato, dentro do meio, obtém-se o máximo da eqüidade. Deve-se assinalar que, assim, o juiz não atua ex informata conscientia, mas de acordo com as normas processuais que o arbítrio judicial supõe exigentes e religiosamente obedecidas.
A rigor, há arbítrio na lei, no seu apriorismo, na sua abstração, na sua dureza. Nas mãos dos juízes, o texto deixa de ser arbitrário, humanizando-se, sensibilizando-se, adaptando-se à vida e à personalidade de cada homem. Portanto, é a lei que renuncia ao seu egoísmo e vai palpitar, ao ritmo flagrante do convívio social, através da toga. Os mandamentos legais são frios e autoritários. Para o homicídio – de 12 a 30 anos. Por que? Para que? coma liberdade dos juízes responsáveis, não somente em atenção às circunstâncias convencionalmente enumeradas, e sim à
16
realidade integral de cada homem e de cada fato, dentro do meio, obtém-se o máximo de eqüidade, isto é, uma defesa social coincidente, justaposta.
A função judicial rompe as grades do automatismo obscuro e rotineiro que, antes dos réus, prendiam a consciência de seus julgadores. Destrói-se a velha máquina de fabricar justiça, através da igualdade iníqua de um tratamento de superfície, de aparência, de quantidade.
O arbítrio judicial constituíra o melhor instrumento de comunhão entre o direito penal e a ciência penal. Incumbe ao juiz, no exercício desse arbítrio, transfundir nos textos o sangue sempre renovado da sociologia, da antropologia e da psicologia criminais.
Apenas para não deixar passar in albis, é importante registrar a manifesta
atualidade do pensamento de Roberto Lyra, quando fala dos juízes responsáveis,
da necessária humanização da decisão judicial e sua vinculação com a
interdisciplinariedade.
De ressaltar, ainda, para dimensionar a figura do magistrado, o que
dissera Couture no discurso feito em Paris, em 19476.
O juiz é um homem que se move dentro do direito como o prisioneiro dentro de seu cárcere. Tem liberdade para mover-se e nisso atua sua vontade; o direito, entretanto, lhe fixa limites muito estreitos, que não podem ser ultrapassados. O importante, o grave, o verdadeiramente transcendental do direito não está no cárcere, isto é, nos limites, mas no próprio homem.
A Suprema Corte dos Estados Unidos da América do Norte, em uma de suas máximas lapidares, disse que “a Constituição é aquilo que os juízes dizem que ela é”. Essa
6 COUTURE, Eduardo. Introdução ao Estudo do Processo Civil. [s.l]: José Konfino Editor, 1951. p. 87/88.
17
máxima contém o excesso de todas as teorias voluntaristas do direito. Não se lhe pode negar, contudo, profundo conteúdo de realidade vital. E se isso é assim, se o direito é “o que os juízes dizem que é”, como poderemos dispensar o juiz, como elemento necessário, na criação e produção do direito: como poderemos separar a decisão do juiz de seus impulsos, de suas ambições, de suas paixões, de suas debilidades de homem? O direito pode criar um sistema perfeito, no tocante à justiça; mas se esse sistema for aplicado, em última instância, por homens, o direito valerá o que valham esses homens.
O juiz é uma partícula de substância humana que vive e se move dentro do processo. E se essa partícula de substância humana tem dignidade e hierarquia espiritual, o direito terá dignidade e hierarquia espiritual. Mas se o juiz, como homem, cede ante suas debilidades, o direito cederá em sua última e definitiva revelação.
Um dos grandes dramas do nacional-socialismo foi o de criar uma doutrina autoritária do direito e de ter feito do juiz o “Führer” do processo. E a experiência jurídica, dizendo o mínimo, declarou que essa concepção era trágica, não porque o sistema fosse manejado pelos homens, mas porque os homens eram manejados pelo sistema.
Da dignidade do juiz depende a dignidade do direito. O direito valerá, em um país e um momento histórico determinados, o que valham os juízes como homens. O dia em que os juízes tiverem medo, nenhum cidadão poderá dormir tranqüilo.
O juiz, portanto, deve ser um homem de seu tempo, e não deve se
deixar influenciar, para efeito da aplicação da pena, por qualquer outro fator
externo que não seja relacionado diretamente com o processo, pois a sentença não
deve ser um ato de vingança pessoal do juiz, em nome da sociedade, ou do
Estado.
18
Esse é o magistério de Francisco de Assis Toledo7:
Neste momento de crise em que jornalistas leigos em matéria penal pretendem ditar ao legislador o que fazer na legislação penal e aos juízes como julgar os acusados que eles, jornalistas, já condenaram através da mídia, faço votos para que os precedentes da mais alta Corte de Justiça de nosso país, realmente sirvam de modelo para advogados, promotores e juízes brasileiros, não as bravatas daqueles que querem ver na cadeia a panacéia para todos os nossos males sociais e econômicos.
Acrescenta o mesmo autor8 que
o juiz penal, mais do que outros, está adstrito ao princípio da reserva legal. trabalha dentro dos espaços que lhe são traçados pela lei. Não é o herói vingador da justiça, de filmes policiais americanos que, para aplicar o seu talião aos infratores, segue os próprios instintos, rompendo as regras e as normas legais existentes.
Pelas razões apontadas e, para finalizar, deve ser salientada, a manifesta
indispensabilidade da manutenção das garantias constitucionais do magistrado,
que delas desfruta em nome e para a sociedade.
2.2 A Dosimetria da Pena
7 TOLEDO, Francisco de Assis. Revista Jurídica Consulex, Ano III, v. I, n. 26, p. 34.8 Ibidem. p. 37.
19
Posto o debate nestes termos, registra-se haver três momentos distintos
na fixação da pena (aqui iniciamos a segunda parte da palestra): a
individualização legislativa, a judicial e a executória. A legislativa é aquilo que
faz o Congresso Nacional, que tem promovido uma inflação legislativa, bastando
observar quantos crimes foram idealizados pelo legislador, pelas mais diversas
motivações, nesses últimos cinco, seis anos. Até o assédio sexual já está
consagrado dentro do Código Penal, numa cópia fajuta do modelo americano. Lá,
se alguém se sentir agredido ou houver lascívia no olhar de uma pessoa para outra,
o cidadão pode ser processado por assédio sexual e ser condenado a uma
indenização polpuda. A executória diz respeito, fundamentalmente, à execução
das penas e seus incidentes.
Quando se fala em individualização judicial, fala-se em dosimetria da
pena, como se disse, conquista do Iluminismo e garantia constitucional - inc.
XLVI do art. 5º da Constituição Federal. Nelson Hungria dizia: individualização
racional, adequação da pena ao crime cometido.
O caminho para a dosimetria da pena, no nosso sistema, encontra-se
delineado no art. 68 do Código Penal, através do método trifásico (o método
trifásico foi idealizado por Nelson Hungria e está consagrado no artigo 68, do CP;
por outro lado, outra figura lendária, Roberto Lyra, sugerira o método bifásico,
preconizando a avaliação conjunta do artigo 59 com as circunstâncias agravantes e
atenuantes). A respeito, V. Guilherme de Souza Nucci9, que estabelece três
critérios extremamente definitivos e definidos para se chegar a uma pena justa, ou
seja, aplicação da pena-base, da pena provisória e da pena definitiva).
Com relação à pena-base, o nosso legislador confiou no poder
discricionário do juiz e, por isso, o dimensionamento da pena corresponde à
atividade meramente intelectual de parte do magistrado. A lei alcança-lhe,
9 NUCCI, Guilherme de Souza. Obra Citada. p. 272
20
entretanto, dois limites, o limite mínimo e o limite máximo da pena cominada,
nada mais nada menos, e o Juiz, com todas as suas vicissitudes, características,
virtudes, defeitos e sublimações, deverá estabelecer a pena.
Não podemos esquecer, obviamente, que o Juiz não pode utilizar o
Direito Penal como forma de opressão. Não sou abolicionista, nem vinculado ao
Direito Alternativo, mas estou convicto da impossibilidade de utilização do
Direito Penal - e nunca poderia ter sido utilizado - como forma de opressão,
como vem sendo utilizado largamente em nosso país, especialmente das classes
menos favorecidas. O salário é uma forma de opressão, de limitação, como outros
fatores da nossa vida, gerenciados por uma política espúria, autista e
esquizofrênica, como a que se faz no Brasil desde que ele existe.
De qualquer forma, essa discussão é manifestamente pertinente. Quem é
o Juiz que vai estabelecer a pena-base? O Couture menciona, na obra acima
noticiada, a necessidade de sublimação de seus defeitos e a potencialização de suas
virtudes. Isso é fácil nos livros, mas muito difícil de transformar em realidade.
Começando, então, pela pena-base, o art. 59 do Código Penal diz que o
Juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à
personalidade, à motivação, às circunstâncias e conseqüências do crime, e ao
comportamento da vítima, estabelecerá a pena justa e necessária para a reprovação
e prevenção do crime. A redação deste artigo traz, embora embutida, a palavra
mágica proporcionalidade, quando menciona a “pena necessária e suficiente para a
reprovação e prevenção do crime”.
E pena proporcional é seguramente é pena justa.
A primeira exigência referida no art. 59, do CP, é a avaliação da
culpabilidade. Como se deve fazer a avaliação da culpabilidade na fixação de
21
uma pena? Sobre isso existe, em nossa doutrina, alguma divergência. Existem
autores que sustentam que o Juiz não sabe valorar essas circunstâncias na hora de
fixar uma pena , porque a culpabilidade, na teoria do delito, envolveria a potencial
consciência de ilicitude - e ninguém pode alegar ignorância da lei -, imputabilidade
penal e exigibilidade de conduta de acordo com o Direito. Entretanto,
considerando a necessidade da fixação de uma pena, a culpabilidade passa a ter
dois significados, de fundamento da pena e de limite da pena, limite este
conciliável com uma visão da pena como reprovação social da conduta e também
como prevenção, geral ou especial, dependendo do ângulo examinado que
justifique a imposição de uma sanção.
E este limite é fundamental na aplicação da pena, exatamente para que
abusos em nome de qualquer das finalidades atribuídas à pena sejam cometidos,
no limite do necessário e suficiente, mote presente em todo o sistema de penas da
Parte Geral de 1984, e não por acaso10.
Por outro lado, a culpabilidade do agente, repousaria, em primeiro lugar,
na avaliação se o homem, socialmente referido, naquelas circunstâncias fáticas,
possuía autodeterminação e possibilidade de agir de modo diverso. Em segundo
lugar, constatada a possibilidade e conseqüentemente o delito, opera na aplicação
da pena, medindo o grau (quantum) de reprovabilidade, dimensionando a
culpabilidade da conduta. Dessa forma, o juízo de culpabilidade como critério de
graduação da pena deve recair sobre as possibilidades fáticas (materiais) que o
sujeito teve para atuar ou não de acordo com a norma. Assim verificada, fornece
mecanismos para a extração do (des)valor e do grau de reprovabilidade da
conduta11.
10 REALE JUNIOR, Miguel. Instituições de Direito Penal. Parte Geral. v. I. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 186.11 CARVALHO, Salo de. Aplicação da Pena e Garantismo. 2 ed. [s.l]: Lumen Juris, 2002. p. 48.
22
Partindo de tais premissas, entendo como suficiente para motivar o Juiz
a acrescentar alguma pena além do mínimo é a culpabilidade. Como Juiz, nunca
agreguei significativa importância para o resto, sempre me preocupou,
justamente, a reprovação pela conduta adotada pelo réu quando, podendo agir de
modo diverso, atua contrariamente à lei.
Trago um exemplo: foi julgado em Porto Alegre, um professor de nível
médio, que casou com uma moça 25 anos mais jovem do que ele – ela tinha 18, e
ele, 43 anos. Enquanto ele ainda tinha viço - o homem, entre 30 e 45 anos, tem o
período mais produtivo da vida -, ia tudo bem. Quando ela chegou aos seus 28, 30
anos, começou a haver conflitos, porque ela não admitia a censura que ele fazia
por ciúmes, impedindo-a, inclusive, de trabalhar. Isso os levou a uma situação
insuportável, e ela quis separar-se. Ele, inconformado com a separação, querendo
voltar, e ela não, acaba idealizando a morte da mulher. Eles tiveram uma filha de
12 anos. Um dia, ele vem a Porto Alegre, descobre onde ela estava morando,
compra um revólver calibre 38, vê a mulher saindo de casa, caminha na direção
dela, ela de costas para ele, e desfere-lhe dois disparos na nuca. Ela caiu de bruços
e morreu na hora.
Se fôssemos examinar o item culpabilidade e se fossemos desdobrá-lo,
seria possível verificar se ele possuía, ou não, potencial consciência de ilicitude?
Evidente que seria difícil, por sua condição, alegar não possuir condições de aferir
o caráter equivocado de sua conduta. Inclusive, no interrogatório, ele disse saber
que estava errado, mas que não se havia controlado. Então, ele possuía potencial
consciência de ilicitude. É imputável? Também é imputável, não havia, a respeito,
qualquer senão. Por isso, seria exigível – aqui o ponto mais importante – adotasse
ele conduta diversa? Manifestamente exigível. Alguns argumentam com a maior
ou menor censurabilidade do comportamento do agente, esse seria o fundamento
da pena, e outros referem também a intensidade do dolo. Quanto mais intenso o
dolo, - e ele teve dolo intensíssimo – , maior será a pena aplicada.
23
Há outras críticas feitas a respeito deste assunto. Essa questão da
exigibilidade da conduta diversa é lastreada no livre arbítrio e na capacidade de
autodeterminação do agente. Precisamos examinar isso dentro do contexto em
que vive o réu. Quem é esta pessoa, de onde ela veio? Então, todos esses
componentes têm de ser valorados a partir da culpabilidade para se dizer se é
exigível, ou não, a conduta do agente de acordo com o direito.
Outro exemplo que vai nos interessar é o do indivíduo concreto e
socialmente referido. Isso nos traz a idéia de impossibilidade de comparação entre
as pessoas para fixar uma pena.
O Direito Penal é peculiar, a partir do caso concreto por não haver a
menor possibilidade de aplicarmos para duas pessoas a mesma valoração dos
critérios de individualização da pena. Trabalhei dez anos na Vara do Júri e cheguei
a esta conclusão: é impossível estabelecer um parâmetro. Não existe parâmetro de
conduta, de agente, de nada. Precisamos examinar a pena a partir do fato
praticado pelo agente, e cada fato tem a sua coloração, e absolutamente nenhum
réu é igual ao outro.
Outro exemplo que vai mostrar especialmente a necessidade de
verificação da realidade social, trazendo-nos a idéia da impossibilidade de
comparação entre as pessoas para fixar uma pena, aconteceu em Casca, quando
um pai estuprou uma filha de treze anos, resultando prole. Coloquem-se na
situação de magistrados: como se pode valorar a pena de alguém que pratica uma
conduta como essa? Vejam como é difícil nos colocarmos na posição do réu;
numa situação como essas, é absolutamente impossível.
Então, a partir de que dados se faz a valoração? Da realidade social
daquela circunscrição territorial. O fato foi aquele: estuprou a filha e teve uma
24
filha com ela. Interrogado, não se recordava de nada. Como cidadão, fui tomado
de indignação, mas ali, acima de cidadão, eu era Juiz, era preciso analisar os outros
componentes. Seria possível?
Tão logo se soube do fato - e isso não começou no inquérito, começou
dentro do gabinete do Ministério Público, pois a mãe a ele veio reclamar - ,
estabeleceu-se o inquérito, decretou-se a prisão preventiva, ele foi recolhido, e, dez
dias depois, mãe e filha estavam no Foro pedindo que ele fosse solto. Descobriu-
se, depois de uma investigação, que era comum, em determinada região, as mães
entregarem as filhas como pasto sexual para manterem o pai como força de
trabalho em casa.
Do ponto de vista da normalidade social, isso é abominável, mas, em
alguns locais deste País, não só naquele, é possível que tal ocorra. Então, qual
realidade social devemos examinar? A nossa realidade ou a realidade social daquela
pessoa que vive naquele local? Precisamos verificar isso, porque a pena que vai ser
estabelecida tem que ser dimensionada a partir dessa realidade social, não de
outras. No ato de dimensionar-se a pena a partir da culpabilidade, todos os fatores
devem ser sopesados, examinados, verificados, e, ainda assim, alguns dizem que é
manifestamente difícil chegar-se a uma avaliação concreta da culpabilidade12.
Então, a avaliação, a dosimetria da pena deve considerar, modo
manifesto, a realidade social em que vivem as partes envolvidas, e não fora dali.
Precisamos verificar também se o réu tinha possibilidade real de orientação. Seria
dele exigível comportamento diverso, dentro do contexto do fato cometido?
Portanto, a respeito desta questão da culpabilidade, vejam como é problemática a
valoração, a avaliação, o comprometimento que o Juiz deverá ter com relação à
pena-base.
12 A respeito, ver Salo de Carvalho, no seu livro Aplicação da Pena e Garantismo Penal.
25
Sugiro a leitura, com profundidade, a respeito desses assuntos, pois, na
hipótese de um concurso, os examinadores poderão descontar pontos por aquilo
que vocês não fizeram, mas não por aquilo que vocês fizeram, quer dizer, um
exame da doutrina sobre esse assunto. E não são nos livros que estamos
acostumados a ler que se encontra a solução para os nossos problemas. Encontra-
se a solução da discussão a partir de outras investigações, sem prurido, sem
preconceito absolutamente nenhum. O Salo, como se disse, e o Boschi, em sua
obra “Das Penas e Seus Critérios de Aplicação13, por exemplo, falam da
responsabilidade do Juiz na individualização da pena.
Então, a primeira problemática é a culpabilidade. Alguns dizem
culpabilidade inerente ao tipo penal. Alguns também falam que está no tipo. Aí,
fica muito fácil. Analisa-se a culpabilidade dentro do tipo, resolve-se o problema, e
não se precisa falar absolutamente mais nada. Mas, para se fazer uma valoração
consciente, tem-se que examinar todos esses componentes, especialmente esta
questão relacionada à autodeterminação, à exigibilidade de conduta diversa, e o
contexto em que se pode fazer tal exigência. Não se pode fazer um padrão para
valoração de culpabilidade, tem-se que examinar a figura do agente, o crime por
ele cometido e se, dentro do contexto, era exigível que se adotasse
comportamento diverso. A partir daí, será estabelecida a pena. Esse é o fator
determinante da aplicação da pena privativa de liberdade.
O segundo item do art. 59 trata dos antecedentes, sobre os quais existe
muita discussão. Vou apresentar três posicionamentos que são defensáveis, um
mais do que os outros. Em primeiro lugar, o que são antecedentes? Para alguns
Promotores de Justiça, se falarmos do Juizado Especial Criminal, antecedente é
todo e qualquer registro, inclusive policiais não judicializados. Não falamos, por
13 BOSCHI, José Antonio Paganella. Das Penas e Seus Critérios de Aplicação. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.
26
exemplo, que o processo faz parte da regra do jogo? Faz parte. O processamento
por uma infração penal faz parte da regra do jogo.
Vamos supor que alguém atribua a vocês um crime de calúnia. Vocês
responderão ao processo. Se, no final, apurar-se que isso é mentiroso, derivado de
uma denunciação caluniosa, mesmo assim poderá vigorar como um antecedente.
Mas, afinal, o que são antecedentes? Para alguns, é tudo aquilo registrado
e que faz parte, como se disse, da regra do jogo. Para mim, não é. Entendo que
antecedentes, independentemente do que diz a Constituição, só pode ser a decisão
condenatória transitada em julgado. E aí teríamos duas variantes: aquela que pode
ser considerada reincidência e a que não pode ser considerada reincidência. Então,
antecedente seria apenas aquilo que não pode ser considerado reincidência.
Podemos, ainda, aventar três posicionamentos: primeiro, antecedentes
somente os judicializados e com decisão definitiva condenatória; definitiva porque
transitou em julgado. Tudo aquilo que for registro, sem uma condenação, não
pode ser considerado antecedentes. Penso ser muito mais do que razoável esse
entendimento. Mas vejam: eu não poderia dizer a vocês que os desprezassem, pois
há jurisprudência que assim considera. Somente uma Câmara discute esse assunto,
para alguns com um certo exagero. Quer dizer, em nome do Direito Penal do
fato, e não do autor, não se pode falar em antecedentes. O que passou, passou,
não pode ser sopesado contra ele. Ele não pagou a sua dívida? Por que têm de
voltar sempre essas coisas, ad eternum em evidente bis in idem?
Então, no meu entendimento, e em nome da presunção de inocência,
antecedentes são os definitivos. Se não são definitivos, não são antecedentes.
Tenho um amigo que passou por isso, e vi a agonia dele diante de tais
circunstâncias. Acusaram-no de ameaçar de morte a mãe, e era mentira deslavada,
27
pois a irmã, querendo ficar com todo o patrimônio do pai, queria colocar o irmão
na cadeia. Quer dizer, ele tem antecedentes por porte ilegal de arma, por uma
porção de coisas, mas não fez nada. Foi uma denunciação caluniosa. Isso pode ser
considerado antecedente? Vocês acham que isso é razoável? Eu não acho. Há
pessoas que pensam assim, mas, no meu ponto de vista, isso está errado.
Recomendo, a respeito, artigo de Aramis Nassif, como o título “Reincidência. A
necessidade de um novo paradigma”.
Entretanto, por outro lado, há autores que consideram que antecedentes
não dizem respeito à folha penal e seu conceito seria muito mais amplo pois,
como assinala Nilo Batista, ‘... o exame do passado judicial do réu é apenas uma
fração’.14
Por antecedentes, para Miguel Reale Jr.15, deve-se entender a forma de
vida em uma visão abrangente, examinando-se o seu meio de sustento, a sua
dedicação a tarefas honestas, a assunção de responsabilidades familiares.
Por outro lado, o que se pode entender por conduta social? Seria a vida
da pessoa na sociedade toda ou é a vida dela na circunscrição territorial onde vive?
Nós só podemos fazer a valoração da conduta do agente em cima do local em que
ele costumeiramente exerce sua atividade ou mora. Não podemos comparar um
sujeito que vive na Vila Cai-Cai com aquele que vive no Bairro Rio Branco, no
Bairro Moinhos de Vento. Há como se estabelecer comparação? Não. O que mora
na Vila Cai-Cai sobrevive, os outros se divertem, na maioria dos casos - estou
falando daqueles que têm muito dinheiro, porque a maioria das pessoas neste País
faz força para sobreviver. Mas não podemos comparar o sujeito que está na
tranqüilidade, levanta a hora que quer, com aquele sujeito que está de pé desde as
seis horas da manhã lutando para poder sobreviver. Então, temos de examinar a
14 Apud REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de Direito Penal. [s.l]: Forense, 2003. p. 85.15 REALE JÚNIOR, Miguel. Obra Citada. p. 85
28
conduta social dentro do perímetro onde ele costumeiramente exerce todas as
suas atividades, se o delito faz parte do contexto de sua vida ou é, apenas, um fato
alheio e isolado.
Vamos ao seguinte caso: em processo que tramitou perante a 1ª Vara do
Júri de Porto Alegre, três testemunhas de defesa foram arroladas e todas disseram
mais ou menos o:
O Fulano é excepcional, participativo, solidário, comunicativo, sempre pronto para ajudar toda e qualquer pessoa da comunidade, até as sete da noite. Das sete da manhã às sete da noite, ele é exemplar, mas, das sete da noite às sete da manhã, ele é um azougue, ai de quem se atravessar na frente dele. Então, a conduta social do sujeito é examinada como se fosse uma linha, e não um eletrocardiograma, mas ele não pode construir um castelo de dia e, de noite, destruí-lo. Ou ele mantém uma conduta retilínea ou ele não tem essa conduta, e por isso ele merece ser censurado. Era o caso desse rapaz.
Então, examinamos a conduta social dentro da circunscrição territorial, e
ela tem que ser retilínea, ela não pode oscilar como um eletrocardiograma, como
se disse, para cima e para baixo. Impossível, no entanto, a padronização, não se
podendo estabelecer um parâmetro de conduta entre várias pessoas da mesma
comunidade, porque, se para alguns, essa conduta social, mesmo que, de certa
forma, ao arrepio da lei, seja normal, para outros não é, porque vivem noutro
mundo que não o do Direito Penal. Ou seja, o homem escreve a sua própria
biografia, pois todos os atos serão contabilizados em sua história, e todas as sua
decisões fazem parte de um conjunto, que reflete a pessoa do homem, a sua
singularidade16.
16 REALE JÚNIOR, Miguel. Obra Citada. p. 85
29
A respeito da personalidade, o Boschi17 diz – e devemos concordar
com tal assertiva – que tal avaliação é sempre precária, imprecisa, incompleta,
superficial, com as palavras boa, má, impulsiva, expressões que nada dizem.
Outros dizem - e o livro do Salo, já referido, traz isso - que o Juiz não é um
psiquiatra, nem um psicólogo, bastando uma breve revisão bibliográfica para
verificar a impossibilidade de o juiz, um leigo, valorar a personalidade do agente18.
Às vezes, um psiquiatra fica dois anos tratando de uma pessoa e não sabe quem
ele é. Como o Juiz, no primeiro contato, por um único processo, que fala com o
réu uma única vez, vai dizer quem é aquela pessoa? Essa é uma crítica que é
importante, que merece ser contabilizada. Quer dizer, quem é essa pessoa que está
em julgamento, que tipo de personalidade ela tem, qual é a sua índole? Que tipo
de valoração vai ser feita, a respeito, pelo Juiz?
Eu posso, como Juiz, afirmar que um sujeito tem uma personalidade
deturpada sem ter um laudo? Não, por isso é pertinente a lembrança de que é
difícil fazer a valoração. Claro, se o sujeito tem dez antecedentes por furto, e se faz
a valoração por isso, ele já tem uma certa tendência a buscar o lucro fácil. Mas será
que eu estaria valorando devidamente a personalidade do cidadão? Por isso
precisamos, quando se trata de valoração de personalidade, não apenas jogar
palavras no papel, mas valorar a personalidade dentro do possível, até por que a
valoração é obrigatória.
Um fato inegável é a deficiente formação interdisciplinar. Embora
Couture19 tenha referido a possibilidade de um jurista ser um engenheiro social, o
juiz, decisivamente, não é psicólogo e nem psiquiatra. No entanto, será que a
17 BOSCHI, José Antonio Paganella. Obra Citada.18 Seguramente por isso, no Projeto Modificativo do Sistema de Penas consta a eliminação das referências à conduta social e a personalidade pois, além de outros fatos relacionados com a prática e acima estão noticiados, podem conduzir a um subjetivismo excessivo do julgador tornando elástica em demasia a discricionariedade e o subjetivismo do julgador na fixação da pena.19 COUTURE, Eduardo. Obra Citada. p. 86
30
vivência do Juiz lhe daria poderes para identificar qual a personalidade do réu?
Muitas vezes, essa investigação sobre personalidade é operada, como se disse, a
partir de seus antecedentes, não me parecendo a medida mais adequada.
Como será que o Tribunal faz a avaliação da personalidade? Vocês já
examinaram os acórdãos quando o Juiz absolve, e o Tribunal aplica a pena? Sem
querer criticar o Tribunal, por óbvio, mas me parece que essas palavras viraram
lugar comum nas sentenças, e são meras repetições.
E no que se refere à motivação? Anotei de livros: Fonte propulsora
da vontade criminosa, não há crime gratuito ou sem motivo. O que vocês acham?
Trago outro exemplo, envolvendo fato verdadeiro. Havia um réu na
Vara do Júri de Porto Alegre, cujo apelido era Ziguezira. Um dia, ele chegou num
bar e havia um sujeito tomando uma cerveja. Pegou o copo do outro, tomou um
gole, e o sujeito disse para ele: Vem cá, meu, não te dei autorização pra beber no
meu copo de cerveja. O Ziguezira pegou o revólver, deu três tiros e, num espaço
de dois ou três segundos, matou o sujeito. Qual foi a motivação dele?
Fazemos uma idéia de motivação a partir do iter criminis: cogitação,
preparação, execução, consumação. Fazemos um exame a partir dessas fases.
Então, por exemplo, qual é a motivação de quem quer assaltar um banco?
O dinheiro, por óbvio.
No filme “Os Caçadores de Emoções”, qual era a motivação deles?
Adrenalina. O que eles faziam para usufruir da maior adrenalina possível? Eles
praticavam roubos para usufruir da maior onda, do salto de pára-quedas, coisas
ótimas quando se tem dinheiro para gastar. De qualquer forma, há uma motivação
definida. Eles queriam o dinheiro para se divertir, para curtir a vida.
31
Qual foi a motivação do Ziguezira? Qual foi a sua idealização mental? O
retruque do dono da cerveja foi o que o motivou, mas qual seria a sua real
motivação? Depois, como já possuía três processos por fatos semelhantes, pediu
para o Juiz resolver a sua vida. Queria ser julgado, cumprir a pena e tornar-se uma
pessoa de bem. Será que o Juiz resolveria todos os seus problemas se todos os
seus processos fossem julgados? Ele pensava que sim. Em três meses ele foi
julgado em três processos e recebeu 46 anos de cadeia.
Trago mais um exemplo. Determinado dia, uma dentista recém formada,
trabalhava no seu consultório modesto, montado com sacrifício, na Avenida
Bento Gonçalves, quando apareceu um sujeito dizendo que estava com dor de
dente. Ela disse-lhe estar atendendo uma menina, fazendo uma cirurgia, e não
poderia atendê-lo. Pediu-lhe voltasse no outro dia e tomasse um analgésico até lá,
para passar a dor. Ele foi embora, mas, às seis e meia da tarde, voltou. Quando ela
abriu a porta e disse-lhe que não poderia atendê-lo, ele respondeu que era um
assalto. Entrou, fechou a porta, despojou as duas de tudo que elas tinham, pegou
uma tesoura cirúrgica, abriu a parte de cima da roupa da paciente, apalpou seus
seios, sua barriga. Não satisfeito, pegou a dentista, amarrou-a, deitou-a no solo e
começou a arriar suas calças. A moça desesperou-se e conseguiu soltar-se. Ele,
então, desferiu-lhe um soco no rosto, quebrando-lhe o maxilar em três lugares;
depois, cortou-lhe o rosto de fora a fora com a tesoura que tinha na mão. Qual
teria sido a motivação? Ele entrou lá com uma motivação. Então, essa questão
sobre motivação é variável, o sujeito pode começar com uma e passar para outra
ou outras. No caso, ele praticou um roubo - o Tribunal, depois, diminui a pena
dele por considerar tentativa, já que o patrimônio não havia saído da esfera de
vigilância das vítimas -, um atentado violento ao pudor consumado e uma
tentativa de estupro. Levou 16 anos de cadeia.
32
Quer dizer, no contexto, ficou fácil verificar qual foi a efetiva motivação
dele. Primeiro, o lucro fácil; depois, a satisfação da lascívia. E por que será que ele
deu um soco na moça, quebrando-lhe o maxilar? Isso não se sabe, porque ele foi
condenado pelo atentado violento ao pudor, pela tentativa de estupro e pelo
roubo. Entrou dentro do contexto a lesão, no caso do estupro qualificado, e basta,
está dentro do tipo. Nesse caso, percebe-se a efetiva motivação, mas há crimes em
que não se percebe a motivação de forma clara.
Por outro lado, quais circunstâncias devem ser examinadas? Li certa vez
que as circunstâncias do crime é aquilo que está ao derredor do fato, não é o que
está vinculado diretamente ao fato, mas aquilo que colore o fato, que está por
volta. Por exemplo, o sujeito que convida outro para ir a uma pedreira, lugar ermo,
e lá o executa. Estas circunstâncias estão em volta do fato: o lugar ermo, o convite
feito por um pseudo-amigo, isso tudo está em volta do fato. Então, dentro das
circunstâncias, é o que está ao redor, que direta ou indiretamente tem vinculação
com o fato, mas que, como noticia Guilherme de Souza Nucci20 são os elementos
acidentais não participantes da estrutura do tipo, embora envolvendo o delito.
E as conseqüências da infração penal. As conseqüências não são as
relacionadas com o fato diretamente, mas aquilo que a partir dele resta. Num
homicídio, por exemplo, vocês acham que a conseqüência é a morte da vítima?
Não, mas se a vítima possuir três ou quatro filhos, ou se a vítima for arrimo de
família, sobra uma família desamparada, filho sem pai. Essa é a conseqüência da
infração penal. Em alguns casos, não vemos outra que não a morte, porque, se o
sujeito não tem filhos, não tem familiares, não tem nenhuma vinculação com
ninguém, sobra somente a sua morte, mas isso não pode ser considerado para
prejudicar o agente, pois isso está dentro do tipo penal. A pena já é, no homicídio,
de seis a vinte anos.
20 NUCCI, Guilherme de Souza. Obra Citada. p. 249.
33
Por último, dentro dessas avaliações do art. 59, temos o
comportamento da vítima. Essa foi uma homenagem que o legislador fez aos
estudos de vitimologia, em 1984, quando introduziu na fase de aplicação da pena,
a avaliação da conduta da vítima da realização do fato pois não há dúvida de que o
modo de agir da vítima poderá levar ao crime. Até 1984, não havia essa
possibilidade de se valorar; examinava-se, então, essa circunstância dentro da
culpabilidade, mas agora temos um tópico específico.
Um exemplo para deixar cristalizada essa circunstância é um fato
ocorrido em Torres, onde um sujeito tirou uma mulher da zona do meretrício,
casou com ela e teve dois filhos. Motivado pelo relacionamento, conseguiu
construir um patrimônio que totalizava duas casas e dois caminhões. Um de seus
motoristas teve uma doença, e ele teve que viajar sessenta dias por todo o Brasil
entregando carga. Nesses sessenta dias, a mulher resolveu, cansada da vida
doméstica, voltar à lida da noite. Quando ele ficou sabendo, separou-se da mulher,
mas continuava apaixonado. Aliás, a mulher tem essa capacidade de levar os
homens à loucura.
Descornado, determinado dia, foi a um baile e encontrou a ex-mulher.
Estava meio embriagado, e ela, pensando que ele teria ido lá para fiscalizá-la, diz a
ele que, em meia hora, estaria na Praia Grande transando com um sujeito que ela
nem sabia quem era. Ele se encheu de dor, foi até em casa pegar a arma e verificar
se era verdade. Chegando na Praia Grande, estava ela nas preliminares com o
outro homem. Ele puxa a arma e dá três tiros na mulher, matando-a. O sujeito
que estava com ela não foi identificado e bateu o recorde dos 100 metros rasos.
Então, quando ela lhe disse que estaria na Praia Grande, etc., sabendo
que ele era apaixonado por ela, ela o provocou, pois ela o conhecia, sabia que
poderia desencadear essa conduta, que acabou tirando-lhe a vida. Então, ela
possuía esta propensão de ser vítima, como efetivamente foi.
34
Fechada a última das oito circunstâncias judiciais, vamos para a aplicação
da pena-base. Sempre considerei, como disse, a culpabilidade como um fator
decisivo para majorar ou minorar a pena a partir do mínimo, mas sempre na idéia
de proporcionalidade e preponderância. Por exemplo: são oito circunstâncias, e se
o sujeito tiver cinco favoráveis e três desfavoráveis, terá duas favoráveis. Logo, a
pena dele deve-se aproximar do mínimo.
Entretanto, há duas vertentes que talvez vocês já conheçam: a figura do
termo médio e o termo médio do médio. Sobre isso, recomendo a leitura de um
trabalho do Min. Ruy Rosado de Aguiar Júnior, publicado na Revista da AJURIS21.
Ainda assim, alguns sustentam a impossibilidade de a aplicação da pena-
base ficar ao alvedrio do julgador, com a utilização de seu poder discricionário.
Afinal, quem é esse Juiz que vai estabelecer o cálculo da pena-base? Se ele for um
reacionário, a pena vai subir; se ele for um alternativo, a pena vai ficar no mínimo,
ou abaixo. Então, para evitar esses arroubos ou arbitrariedades do Juiz, o
excessivo poder discricionário do Juiz, vamos utilizar um cálculo matemático.
Por primeiro, vamos fazer o cálculo a partir do termo médio, que é a
soma do máximo e do mínimo da pena. Cogitemos de um homicídio doloso
simples. O cálculo seria o seguinte: seis mais vinte, vinte e seis, dividido por dois,
treze. Pegamos o resultado e fazemos a subtração do mínimo da pena, que é seis.
Sobram sete, que se dividem por oito circunstâncias judiciais, chegando-se ao
cálculo de dez meses e cinco dias, aproximadamente, por cada uma das
circunstâncias do art. 59.
Um colega, numa sentença daqui do Rio Grande do Sul, aplicou o
termo médio do médio: somou os treze aos seis, igual a dezenove, dividiu por
21 Revista da AJURIS n.79, 213-240.
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dois, resultado nove anos e seis meses, que, diminuídos de seis, resulta três anos e
seis meses, divididos por oito circunstâncias alcançaria em torno de seis meses
por cada uma delas.
Entretanto, elaborado o cálculo a partir de tais variáveis, aqui trazidas
apenas para ilustrar a preocupação do julgador na individualização da pena, qual o
sentido de apostarmos na capacidade intelectual, na consciência e no poder
discricionário do Juiz. Mais, embora não sejam vedados, tais cálculos não
cogitados pelo legislador, não estando o magistrado obrigado a realizá-los para o
estabelecer da pena-base.
O que poderia ser razoável, então? O réu, por exemplo, num homicídio
simples, sai seis anos. Essa é a pena dele. Se houver uma preponderância entre as
circunstâncias judiciais desfavoráveis ao réu, essa pena afasta-se do mínimo; se for
favorável ao réu, pode ficar bem perto do mínimo, ou neste. Esse é o contexto de
valoração, nenhum outro. Não existe termo médio.
No STJ, parece-me que somente o Min. Cernicchiaro era partidário
disso e já se aposentou. Então, não existe um outro critério que não este da aposta
na capacidade do Juiz. O Juiz é e está preparado para estabelecer o cálculo de uma
pena, é um sujeito que estudou a vida inteira, fez um concurso público, passou
por diversas comunidades, certamente aprendeu, mas não se pode afastar,
evidentemente, a pena deste poder discricionário que é balizado pelo universo
intelectual e pessoal do Juiz. Por isso existe também a garantia do duplo grau de
jurisdição. Se o Juiz errar, o Tribunal poderá consertar.
Falei até agora dos critérios legais, e a questão da co-culpabilidade,
merece, ou não, ser considerada?
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Imaginem colocar um Juiz americano aqui para aplicar a pena a um
brasileiro que cometeu um crime. O Juiz americano vive dentro de outra realidade.
O seu País tem educação, emprego e saúde para todos, tem uma ótima qualidade
de vida, onde a pessoa compra um apartamento, um automóvel e sabe o quanto
vai pagar em toda a sua vida. Quer dizer, são outras circunstâncias. Agora,
imaginem um Juiz brasileiro aplicando uma pena a um sujeito que não tem
educação, saúde e emprego. Esse é só um lado da co-culpabilidade e devemos
considerá-la, igualmente, na execução da pena.
Quando estabelecemos uma pena, vamos supor que chegamos a
dezessete anos, num cálculo frio do art. 59. Não merece o réu ser compensado
por uma pena menor por aquilo que o Estado, descumprindo o regramento
constitucional, deixou de lhe alcançar? Por outro lado, na execução da pena
privativa de liberdade, o sistema garante ao réu seis metros quadrados. Qual réu
tem seis metros quadrados aqui no Estado? Nenhum. Os presos têm, no mínimo,
dez, doze, quinze direitos consagrados na Lei de Execução Penal. São alcançados
efetivamente esses direitos aos presos? Em São Paulo, por exemplo, a maioria dos
réus condenados cumprem a sua pena em delegacias.
No meu entendimento, penso que tal questionamento deve passar pela
valoração do Juiz. Se nós, num sistema justo, devêssemos dar dezessete anos,
alguma compensação deverá ser acrescentada a partir da co-culpabilidade, que
deve ser reconhecida. Nós precisamos admitir que o Estado não cumpre as
obrigações constitucionais, falhando em todos os níveis.
O Desembargador Nereu Giacomoli, por exemplo, quando
jurisdicionava a 1ª Vara do Júri, 1º Juizado, recebeu uma carta do administrador do
Presídio Central, noticiando a impossibilidade de o sistema garantir segurança a
quem quer que fosse encontrado dentro do presídio em resposta à solicitação
derivada de uma ameaça que um preso alegara em audiência. Sem falar do resto,
37
que todo mundo sabe. Ninguém entra nas galerias quando eles lá estão. Nos dias
de hoje, o magistrado da execução penal, tem de negociar com os representantes
das várias facções que habitam os presídios, a vida de um detento. O que nos
mostram do Presídio, portanto, é apenas aquilo que nos deixam ver, o resto não
vemos. Já que o Estado não é responsável, não faz o que deveria fazer, podemos
fechar os olhos para essa realidade?
Como, então, nós podemos não considerar esses componentes,
esquecendo de tais detalhes? Aquele ator, co-autor do homicídio de uma colega
sua, ficou quatro anos e oito meses preso, sem julgamento, para agradar a mídia,
por exemplo. Preso numa cela de delegacia em São Paulo, com quinhentos dentro
de um pátio. Isso são fatos que estão documentados, basta querer ler.
Por outro lado, há mulheres estupradas, e prole daí decorrente, dentro
do IPF. Se mostrasse algumas fotos do IPF, vocês não iriam acreditar - e as
pessoas, pasmem, lá estão para tratamento! O IPF, em passado não muito
distante, sofreu três processos de interdição. Pessoas amarradas nas camas, lá
fazendo suas necessidades, outras sendo assassinadas dentro dos presídios.
Em Osório, certa vez, foi colocado um andarilho dentro de uma cela
destinada a doentes mentais. A cela não tinha piso, era de chão batido, havia uma
latrina de onde saíam ratos e baratas, e o sujeito atirado no chão, embarrado,
dormindo no chão. E não havia praticado crime nenhum!
Dentro do nosso contexto, não podemos mais fechar os olhos para essa
realidade. Sei que é difícil pensar assim, quando nós mesmos poderemos vir a ser
vítimas, mas temos que considerar aquilo que efetivamente o réu merece dentro
de um sistema justo, e o nosso sistema não é justo, é manifestamente injusto, e
isso tem de passar na cabeça de quem vai julgar.
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Retomando. O art. 59 tem de ser todo fundamentado dentro da
realidade apurada no processo, a partir do fato praticado e de acordo com as
características do imputado. Pelo que já foi dito, não há dúvida a respeito das
dificuldades na avaliação da personalidade e da culpabilidade, mas
independentemente disso, a pena deverá ser justa e necessária para a reprovação e
prevenção do crime.
Isso nos traz a idéia da proporcionalidade, e, dentro da
proporcionalidade, não podemos afastar outros componentes exógenos, que estão
fora dessas circunstâncias. Não se pode fugir da realidade. Eu diria que é mais fácil
fugir à realidade do que seguir outro caminho.
De outra banda, nas questões relacionadas com o mal injusto, cometido
pelo delinqüente, por um tempo, Beccaria sugeriu um limite para o Juiz.
Entretanto, ao depois foram ver que não adiantava, que o melhor era não ter um
limite definido. Então, entre não ter e ter limite, o melhor é entregar para quem
tem algum conhecimento decidir, porque, se for para engessar o Juiz, qual seria a
razão de sua existência e previsão? É só colocar os vetores num computador e
pronto.
Tenho dezoito anos de experiência como magistrado. Antes, quando fui
Secretário do Desembargador Cristovan Daiello Moreira, julgava-se trezentos
processos por ano; hoje, no mesmo período, julgam-se dois mil processos no
Cível. Por isso, nas questões dos juros bancários e das inscrições indevidas no
CADIN, SERASA e SPC, já existe acórdão padronizando o entendimento, mas,
no crime, não há padrão, é um por um, e por isso são cerca de quinhentos
processos ou mais, por ano, para cada um, quase dois processos por dia. O carro-
chefe do Tribunal, no Cível, são os processos sobre juros bancários, cartão de
crédito. Constrói-se uma tese e se sustenta, mas, no Crime, não há essa facilidade.
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Voltando ao que eu estava dizendo, por um tempo, pensou-se em se
estabelecer um limite, mas, depois, chegou-se à conclusão de que não se poderia
engessar quem deve decidir, daí a necessidade de se apostar no poder
discricionário do Juiz e dar-lhe elementos.
Como se estabelece a pena provisória? A partir do cálculo das
circunstâncias agravantes e atenuantes. Sobre as agravantes, vou falar somente na
reincidência, tema manifestamente polêmico.Acredito existirem quatro
posicionamentos a respeito. O primeiro é o legal, que refere a reincidência como
uma agravante. O art. 67, do CP, diz que preponderarão, dentre as circunstâncias
agravantes e atenuantes, aquelas relacionadas com a reincidência, com a
personalidade e com a motivação do crime. A reincidência traz conseqüências
nefastas para o agente que comete um crime. Este é o posicionamento legal, se o
sujeito praticou um crime, depois de ser condenado no espaço de cinco anos, é
reincidente, e, como reincidente, ele já vai direto para o regime fechado quando
pratica um crime em que não seja aplicada a pena de multa ou detenção.
O segundo posicionamento - parece-me que Lênio Streck fala disso -,
aponta para a inconstitucionalidade, pois estaria caracterizado o bis in idem, já que
é utilizada uma condenação anterior, em que já houve uma punição, para punir
novamente o agente. Haveria uma inconstitucionalidade. Por outro lado, parece-
me que o Des. Amilton Bueno de Carvalho fala em reincidência, razão da co-
culpabilidade do Estado, como uma atenuante, indagando até que ponto o Estado
é responsável pela reincidência do criminoso. Por fim, Aramis Nassif, em artigo
publicado na Revista da Ajuris de setembro de 2001, Tomo I, justifica a
necessidade de um novo paradigma para a reincidência.
Ilustrando: o percentual de reincidência, hoje, é em torno de 73%.
40
Particularmente, penso que é muita discussão para pouco resultado.
Acredito não valer a pena, a não ser do ponto de vista filosófico, sociológico e
antropológico, discutir esse assunto, pois a reincidência sempre corresponderá a
um percentual pequeno, não definido legalmente, em relação à pena -, por
exemplo, ao homicídio qualificado de doze anos, no máximo, seria agregado um
valor correspondente a oito, seis, cinco, quatro meses. A lei, como se disse, não
estabelece padrão de valor, está na cabeça do Juiz julgar a quantidade da pena
aumentada pela reincidência. Se ele for consciente, vai aumentar pouco, então,
por que discutir?
Impressionam-me, entretanto, os argumentos daqueles que utilizam a
inconstitucionalidade para criticar a reincidência. Na verdade, efetivamente, a
reincidência prejudica o réu em todos os fatos da sua vida dentro do sistema
penal. O Guilherme de Souza Nucci22 alinhava mais de vinte conseqüências da
reincidência. Então, seria manifesto bis in idem, por isso haveria a
inconstitucionalidade, mas é correto lembrar que o STF já adotou posicionamento
contrário a esta tese.
Dentro das atenuantes, temos entendimentos que permitem a diminuição da pena abaixo do mínimo uma vez presente determinadas figuras. A menoridade e a confissão espontânea, são as que me recordo agora que autorizariam a redução da pena abaixo do mínimo legal.
A doutrina majoritária sustenta que, por uma circunstância atenuante, é
impossível reduzir abaixo do mínimo. Alguns afirmam não haver tal vedação,
porque a lei não repetiu na reforma o que estava consagrado no Código Penal de
1940. Havia um artigo que dizia que a pena jamais poderia ser reduzida ao
mínimo. Há decisões do STF neste sentido. De qualquer forma, alguns sustentam
que a pena pode ser reduzida do mínimo por essas circunstâncias atenuantes,
embora a maioria da doutrina não admita essa hipótese. O referido artigo foi
22 NUCCI, Guilherme de Souza. Obra Citada. p. 263.
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subtraído, mas entendo não ser necessário dizer-se o óbvio, ou seja, mínimo é
mínimo e máximo é máximo.
Um outro fator que merece ser considerado nesta discussão é onde está
escrito tenha o réu o direito subjetivo de ter a pena fixada no mínimo, se a
avaliação do art. 59 lhe for favorável? Em lugar nenhum. Mas a doutrina e a
jurisprudência admitem. Penso ser difícil sustentar a pena abaixo do mínimo por
atenuante, mas há pessoas que pensam diferente em relação à possibilidade de
redução nas atenuantes da menoridade e da confissão espontânea.
Aconselho que vocês leiam acórdãos de nosso Tribunal, em que há o
reconhecimento dessa possibilidade. Sou simpático à idéia, mas não me convenci
ainda dos argumentos para admitir esta hipótese. Para mim continua valendo a
regra de que máximo é máximo e mínimo é mínimo, e, se o réu possui todas as
circunstâncias favoráveis, mínimo.
Por exemplo, o sujeito é reincidente e tem a confissão espontânea em
seu favor, agrega-se “x” pela reincidência e diminui-se de “y” pela confissão
espontânea , sobrou “l”. Eu sempre colocava na sentença “fixo a pena em seis
anos, já considerada em favor do acusado a atenuante da menoridade”, por
exemplo. Não é a melhor técnica, mas admite-se, desde que justificado.
Num concurso público para a Magistratura, fazendo de conta que a
prova vale 100, 40% dessa prova são os requisitos formais, que devem ser
obedecidos. Dentre os requisitos formais, na aplicação da pena, vocês terão que
passar por isso.
Por fim, como se calcula a pena definitiva? A partir das causas de
aumento e de diminuição, sempre optando, como diz a lei, pela que mais aumente
ou diminua. Aí, sim, passa a ser um exercício meramente matemático, mas
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devemos considerar, no mais das vezes, a valoração feita dos art. 59, 61 e 65, do
CP, para dimensionar tais circunstâncias. Há livros que dizem isto (o Nucci, por
exemplo)23, mas o Juiz não se separa do art. 59, durante toda a fixação da pena,
salvo algumas circunstâncias, como no caso da tentativa, em que, quanto mais
perto o réu estiver do crime, menor a diminuição, quanto mais distante, maior a
diminuição.
Para finalizar, é importante registrar que os mesmo critérios utilizados
pelo juiz para a fixação da pena, irão determinar a escolha do regime de
encarceramento e as substituições por PRDs (penas restritivas de direito) e a
multa, sendo que, nesta última, deverá ser agregada à regra insculpida no artigo
60, § 2º, do CP.
Muito obrigado pela atenção.
PLATÉIA – Na questão dos antecedentes, o réu não tem bons
antecedentes ou maus antecedentes? Ou é antecedente ou não é?
DES. MÁRIO ROCHA LOPES FILHO – Entendo assim: em
nome da presunção de inocência, sem decisão condenatória transitada em julgado,
não há antecedentes.
Se o sujeito responde a um processo, ele pode ser absolvido, isso faz parte da regra do jogo. Como isso pode pesar contra ele para ter maus antecedentes? Quer dizer que, se ele for absolvido, são bons antecedentes? E se ele for absolvido no art. 386, inc. VI? Li esses dias isso, se não me engano no César Bitencourt. Nada a ver, porque, se ele foi absolvido, não poderá ser julgado novamente pelo mesmo fato. Então, como isso vai pesar contra ele? Até ser absolvido, pesa contra ele; quando ele for absolvido, não pesa mais? Penso que o caminho mais justo, a partir da regra da presunção de inocência, como garantia constitucional do cidadão, é que não pode valer nada, a não ser o que derive de sentença condenatória transitada em julgado. Fique claro que
23 NUCCI, Guilherme de Souza. Obra Citada. p. 274.
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jamais majoraria uma pena-base pelo fato de alguém responder a um processo.
PLATÉIA – E se ele tem vários registros de antecedentes, mas ainda
não transitou em julgado, e se todas as demais circunstâncias do art. 59 são
favoráveis?
DES. MÁRIO ROCHA LOPES FILHO – Pena mínima ou
aproximada do mínimo; para mim, não haveria antecedentes. Certa vez, na Turma
Recursal, apareceu um sujeito que possuía em torno de quinze antecedentes
policiais, tudo por ameaça, vias de fato e lesão corporal. Nunca foi processado.
Como é que ele poderia ter antecedentes? Isso em relação à pena. Como posso
considerar isso para penalizá-lo? No meu entendimento, fica difícil. Ele jamais foi
julgado, extinguiu-se a punibilidade de todos os fatos, como pode pesar contra
ele? Como eu poderia pesar na personalidade isso? E será que ele não se
defendeu, não foi agredido? Não se sabe, porque ele não foi processado. Sustento
que fica difícil, porque, junto com a presunção de inocência, temos outras três
garantias, que são os pilares do processo penal: o devido processo legal, a ampla
defesa e o contraditório. Sem isso não há processo. Então, vou valorar algumas
informações colhidas no sistema inquisitorial, em que o sujeito não possui defesa?
Não faz sentido.
No caso acima referido, parece-me que o Promotor negou-se a oferecer
a transação penal, reconhecendo as anotações policiais como antecedentes. Para
mim isso não são antecedentes; só podem ser considerados antecedentes os
judicializados, condenação transitada em julgado.
O pensamento contrário, ou seja, no sentido de considerar tudo da vida
dele, a maioria considera, mas, no meu ponto de vista, isso não pode pesar, sob
pena de se cometer uma injustiça. São meros registros policiais que hoje dariam
quinze processos no Juizado Especial Criminal. Como se poderia fazer essa
valoração de personalidade? Por um registro policial? Não posso. Se já é difícil em
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juízo, imaginem por um registro policial. Quem vai informar, por exemplo, se o
sujeito é perigoso? As testemunhas do processo, não os antecedentes. Como no
caso específico daquele sujeito que, de manhã, era ótimo e, à noite, era um
azougue. São personalidades esquizofrênicas, ninguém pode viver entre o bem e o
mal, com esse comportamento maniqueísta permanentemente. Mas há quem
considere.
Um Juiz de determinado Estado, num desses encontros do Juizado
Especial, disse o seguinte: “Lá na minha cidade, antes de fazer a audiência no
juizado especial, mando prender o sujeito para ele sentir como é importante o que
ele fez. Solto ele na transação penal”. Quem tem que ser preso é o Juiz, que usa o
poder que tem para ser arbitrário. Ele queria propor, como regra, a prisão
preliminar no Juizado Especial, que é justamente para não punir com pena de
prisão.
PLATÉIA – Mas no caso de diminuição, sim, pode ficar aquém do
mínimo?
DES. MÁRIO ROCHA LOPES FILHO – Na pena definitiva, sim.
A pena igual ao mínimo ou superior ao mínimo vai até a pena provisória, como
regra. Há alguns que sustentam que é possível, porque a menoridade é uma
circunstância atenuante, que prepondera sobre toda e qualquer outra, a confissão
espontânea a partir de uma lei - parece-me que a Lei da Tortura já foi
supervalorizada, a partir da delação premiada, como dizem.
De qualquer forma, sem dúvida alguma, só a partir das causas especiais
ou genéricas de diminuição de pena é que se reduz ao mínimo a pena, não
existindo outra hipótese.
Se vocês seguirem tranqüilamente o que a lei diz no art. 68, vocês jamais
irão errar. Outro aspecto: toda a aplicação da pena, sendo o direito constitucional
do réu nesse sentido, deve ser manifestamente fundamentada, porque o réu tem o
direito de saber por que recebeu aquela quantidade de pena e por que recebeu o
45
regime de pena imposto na sentença. Isso é uma obrigatoriedade estabelecida
especialmente a partir de 1988, ou seja, a individualização da pena, sua motivação,
é um direito constitucional do apenado. Observem: não é um favor, é um direito.
Agradeço a pergunta para poder esclarecer melhor o significado de tal princípio.
O César Bitencourt24 é tão severo em relação a isso, que ele diz que,
mesmo que o Juiz estabeleça a pena no mínimo legal, e não fundamente, anula a
sentença, porque violaria o princípio da acusação, do direito de acusar do Estado.
Então, se não fundamenta para que o réu saiba por que foi condenado,
beneficiando o réu com a pena mínima, estará violando o direito do Estado, que é
de todos nós, de saber por que aplicou aquela pena. Viola o princípio da acusação.
Há uma complexidade nesse tema.
Essas variantes que foram trazidas pelos que pensam o Direito Penal
mais liberal, mais democrático, agregando-se ao réu um dimensionamento menor
de pena em nome de outras circunstâncias que caracterizam a co-culpabilidade,
que envolvem aspectos que nos interessam profundamente e que estimulam várias
discussões.
Espero que vocês pensem assim, pois através da crítica construtiva que
se faz em cima de um determinado tema, é possível chegarmos a uma solução
melhor para o futuro. Não pode uma circunscrição jurisdicional pensar de um
jeito, e os outros só criticarem. Pensam de forma diferente, mas não criam, não
constroem nada, nem estabelecem um debate possível de levar o Direito Penal a
melhores dias. É muito mais fácil criticar do que construir uma hipótese.
Quando falamos de Direito Penal na faculdade, fazemos referência à 5ª
Câmara, porque ela passa a limpo a discussão do Direito Penal em alguns assuntos
que são dogmas. Isso é interessante, porque nos motiva a repensar o sistema. É
fácil dizer que a pena mínima não pode baixar do mínimo até a pena definitiva,
sustenta-se isso com a lei, com a maior parte da doutrina. Mas por que não? Será
que não seria razoável, quando o réu tiver direito à pena mínima, com a avaliação
favorável do art. 59 e ainda tiver duas atenuantes daquelas já referidas? Às vezes, o
24 BITENCOURT, César. Manual de Direito Penal. [s.l]: Saraiva, 2003.
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sujeito é menor e confessa espontaneamente. Vai-se dar a mínima para ele? Não
poderia reduzir um pouquinho? Por que não? Temos que pensar a partir daí.
Estamos justificados a dizer que não, mas por que não? Essa indagação é
pertinente para nos levar a um entendimento superior, melhorar a avaliação sobre
o sistema punitivo.
O nosso Direito Penal, tenho dito na faculdade, é pífio. No Brasil, só vai
para a cadeia quem tem mesmo de ir para a cadeia. Não vai ladrão de galinha para
a cadeia, porque hoje se suspende a pena, pena mínima igual a um ano, suspensão
condicional do processo. Pena superior a dois anos, até quatro, se não for crime
cometido com violência ou grave ameaça, é possível se substituir por PRD – Pena
Restritiva de Direitos. Se não é isso, é o Juizado Especial Criminal. Quer dizer, o
sujeito só vai para a cadeia no Brasil por homicídio, latrocínio, estupro, tráfico de
entorpecentes, dentre outras infrações de igual relevância, ou na reincidência.
Mas observem o seguinte caso: uma senhora, com 70 anos, acusada de
tráfico de entorpecentes, que tinha em casa quatro netos e dois filhos, seis pessoas
para sustentar. Ela passou a vida inteira fazendo faxina, tinha atrite em quase
todos os dedos da mão, e me disse: “Olha, doutor, se o senhor me der um
emprego, eu trabalho, porque eu tenho seis pessoas pra sustentar, e o homem lá
me disse que, ‘se a senhora só entregar na porta da sua casa, quando vierem bater,
a senhora vai receber, líquido, por mês, R$ 1.200,00’”. O que ela vai fazer? E nós,
vamos colocar essa senhora, com seis pessoas para sustentar dentro da sua casa,
na cadeia, com regime integralmente fechado? Resolve o problema da sociedade?
Vocês acham que pobre usa droga? O maior consumo de drogas está na classe
média para cima. Pobre não tem dinheiro para comprar, é muito caro, a não ser
que furte.
Nesse caso, será que resolveria a pena no regime integralmente fechado?
É crime hediondo? Jogar uma senhora de 70 anos na Penitenciária Madre
Pelletier? Dos seis, ela ficaria quatro anos lá dentro? E o Estado vai cuidar dos
filhos, dos netos dela? Não vai. Então, ao invés de nos preocuparmos com um,
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vamos nos preocupar com os seis que vão ficar do lado de fora esperando o
momento de fazer, quem sabe, a mesma coisa.
Essa é a nossa realidade, é esse o contexto que vocês não poderão
esquecer, e aí reside a responsabilidade do Estado. Claro que vocês podem pensar
diferente, é até mais cômodo pensar diferente, porque assim não se tem
responsabilidade nenhuma sobre nada.
Para encerrar, vou contar um episódio que aconteceu em Carlos
Barbosa, para verem como a criatura humana é capaz de surpreender.
Determinado dia, um sujeito foi interrogado acusado de tentativa de homicídio –
ele teria tentado jogar o seu caminhão em cima de uma pessoa que estava
ajoelhada na frente do veículo – . O réu disse:
Doutor, eu não fiz nada disso, ao contrário, ele se
ajoelhou na frente do caminhão e pediu que eu
passasse por cima dele. Eu não queria, ele nem
merecia que eu passasse por cima dele, ele não vale
nada, eu ia estragar o meu caminhão passando por
cima daquele ordinário. Isso é mentira, eu não tentei
matar ninguém.
Ouve-se a primeira versão e pensa-se que quase todos os réus mentem.
Aí vem a vítima e diz: “Doutor, efetivamente ele não tentou me matar, eu implorei
que ele passasse com o caminhão por cima de mim”. Eu pensei, “estão loucos,
vou mandá-los para um psiquiatra”.
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Qual seria o antecedente? O acusado havia tirado da vida fácil (?) uma
mulher, construiu outra com ela, deu-lhe um bar para explorar, e, quando ele
viajava, ela recebia as pessoas atrás do bar, num quartinho com uma cortina.
Ninguém sabia disso, e esse, que era amigo íntimo dele, um dia serviu-se da
mulher do sujeito. O que ela dava por dinheiro, passou a dar por prazer.
Necessária se tornou a inquirição da esposa do réu. Ela foi e levou junto uma
folhinha de papel com firma reconhecida e disse: “Doutor, é verdade o que ele
disse. Tudo aconteceu porque eu fiquei com ele. Vou provar com esse documento,
que levei no cartório, a pedido do meu marido, pra ele poder voltar a ter uma boa
convivência comigo. Eu tinha que dizer pra ele com quem eu tinha ficado
enquanto ele viajava”. Então, ela fez um quadro e escreveu “o japonês da
quitanda, o alemão do fusca vermelho, etc.”. Todos com quem ela havia ficado,
além dos dias estavam registrados naquele papel, e ela foi ao cartório reconhecer
firma de que aquilo era verdade. Essa foi a condição para recebê-la de volta.
Mandei arquivar o processo, com a anuência do Ministério Público, e fui
para a janela assistir eles saírem numa Belina II, ele dirigindo e ela com a mão na
cabeça dele. Nunca vou esquecer aquela cena!
Por isso, essa questão da criatura humana é complicada, temos que
entender que é assim em todos os sentidos, quem julga, quem pratica o crime, a
vítima, tudo que circunda o fato.
Claro que há pessoas com algum problema, são bandidos mesmo.
Ninguém me convenceria do contrário. Pode-se descobrir que são filhos de pai
desconhecido, a mãe se prostituía, mas não é uma constante. Alguns podem
delinqüir em razão dessas circunstâncias, a maioria pratica crimes por isso, mas
nem todos. Mas há pessoas com essa índole, é quase uma patologia. Interessaria
ao Direito Penal?
Como não há mais perguntas, reitero ter sido uma satisfação ter estado
por aqui, nesta manhã, e estarei disponível para qualquer outra informação que,
eventualmente, vierem a necessitar.
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Muito obrigado.
(DEGRAVAÇÃO E REVISÃO REALIZADAS PELO
DEPARTAMENTO DE TAQUIGRAFIA E ESTENOTIPIA DO TJ/RS)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BITENCOURT, César. Manual de Direito Penal. [s.l]: Saraiva, 2003.
BOSCHI, José Antonio Paganella. Das Penas e Seus Critérios de Aplicação. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.
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TOLEDO, Francisco de Assis. Revista Jurídica Consulex, Ano III, v. I, n. 26, p. 34.
REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de Direito Penal. [s.l]: Forense, 2003.
50
APLICAÇÃO DA PENA
RESUMO
1. Por propositura de Nelson Hungria, a legislação brasileira adota o método trifásico para a dosimetria da pena privativa de liberdade e o método bifásico para a mensuração da pena de multa.Fundamento legal, respectivamente, os artigos 68 (PPL) e 49, §§ e 60, caput, e §§ (MULTA).
2. Em relação à PPL, leva-se em consideração, de início, o artigo 59, que envolve 8 circunstâncias judiciais (Pena-base); em seguida, as agravantes e atenuantes, previstas nos artigos 61, 65 e 66 (Pena provisória), todos do CP e, por último, as causas de aumento e/ou diminuição de pena (Pena definitiva)
3. Em relação à pena-base, é corolário lógico que o juiz, sob pena de nulidade, observe todas as circunstâncias judiciais do artigo 59, fundamentando cada item e revelando, assim, as razões pelas quais (fundamentação - individualização) optou por determinada quantidade de pena. É importante lembrar que a justificativa irá pacificar os dois lados que estão envolvidos na sentença condenatória – de um lado o acusado, de outro a sociedade, representada, no mais das vezes, pelo MP.
4. critérios para a dosagem das penas: a lei não estabelece algo que não seja o mínimo e o máximo da pena cominada à determinada infração para a mensuração da pena-base, nem para as agravantes e atenuantes, somente fixando percentuais que irão variar de 1/6 a 2/3 para as causas de aumento ou diminuição da pena, confiando na prudente discricionariedade motivada do magistrado.
5. individualização da pena-base – ponto de partida: embora a doutrina repudie a política da pena mínima, é inegável que, do ponto de vista democrático, o ponto de partida deve ser o mínimo da pena cominada, algo que irá aumentar dependendo da valoração das circunstâncias judiciais. Neste aspecto, a doutrina mais liberal sugere que a valoração da pena-base parta da maior ou menor censura que receba o agente do ponto de vista da culpabilidade. Assim, quanto mais censurável for a conduta do imputado,
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maior será a sanção. Leva-se em conta, para este juízo de valor, especialmente a capacidade de resistência de parte do imputado em relação à prática da infração; por isso, o nível de informação e de recursos, que possua o imputado, irá produzir maior ou menor reprovação social pela conduta adotada. Exemplificando, um delito de roubo perpetrado por quem tem curso superior e emprego fixo com relevante remuneração, em tese, será sancionado mais gravemente do que um indivíduo com instrução reduzida e com parcas oportunidades sociais. É possível, ainda, que nos utilizemos do critério da preponderância das circunstâncias judiciais. Assim, o maior ou menor número de circunstâncias, respectivamente, irá produzir aumento de pena ou sua manutenção nas proximidades do mínimo legal, merecendo o registro que, neste caso, não haverá preponderância de umas sobre as outras. O derradeiro critério, do termo médio, manifestamente injusto e ilegal, não pode ser cogitado, pois seu resultado, sempre direcionado à pena média, acaba por produzir pena exagerada, pois em sendo alcançado valor matemático a cada uma das operacionais, o resultado, havendo algumas negativas, sempre será elevado e além do razoável.
6. Em relação às circunstâncias judiciais, vale aqui a lembrança de Salo de Carvalho e José António Paganella Boschi, que consideram a culpabilidade o fator importante para a dosimetria da pena, pois as demais circunstâncias têm relação com o fato ou envolvem direito penal do autor, algo repudiado pela doutrina democrática.
7. De outro lado, é inviável esquecer da realidade social e da realidade do cárcere. Alguma “compensação” deverá ser contemplada na pena especialmente quando estivermos diante de alguém com parcas oportunidades sociais, algo que poderia ser considerada uma espécie de co-culpabilidade pela omissão do Estado no referente aos vetores essenciais – saúde, educação e oportunidade – antes do cárcere, e depois no cárcere, algo que se representa pelo excesso da população carcerária e as miseráveis condições impostas na execução da pena.
8. Em relação às agravantes e atenuantes: a legislação não estabelece valor matemático para tais circunstâncias legais, confiando na prudente discricionariedade do magistrado; todavia, a doutrina reacionária, olvidando-se das circunstâncias acima referidas, refere o percentual de 1/6 como ponto de partida, podendo ser mais, como Nucci afirma, proporcional à pena aplicada, não se apercebendo que tais aspectos são meramente secundários em relação à pena, jamais podendo alcançar 1/6 da pena, que corresponde, em regra, ao menor percentual de aumento ou diminuição de pena. Assim, se quiséssemos utilizar um percentual, não poderia ser superior a 1/12 da pena-base aplicada.
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9. Das agravantes e atenuantes, preponderam em relação às demais, a reincidência, a confissão espontânea e a menoridade penal, ou maioridade relativa (entre 18 e 21 anos); e esta circunstância é a mais significativa de todas; de outro lado, a jurisprudência uniforme do STJ determina o aumento de pena pela reincidência, algo que a 5ª Câmara do TJ não fazia, e a súmula 231 do mesmo tribunal (STJ) inviabiliza a redução da pena abaixo do mínimo legal.
10. Na pena definitiva, determina o legislador que, em se tratando de causas de aumento e/ou diminuição da parte especial, o juiz poderá se limitar a um só aumento ou diminuição, prevalecendo sempre a causa que mais aumente ou diminua. Aqui o verbo utilizado indica mera possibilidade, preocupado o legislador com a possibilidade da pena zero. De qualquer forma, o critério previsto no § único do artigo 68 não se aplica para as causas de diminuição previstas na parte geral do CP e todas deverão ser contempladas no cálculo.
11. Há três critérios para a dosagem das causas de aumento e diminuição: a)todas as causas de aumento e diminuição devem incidir sobre a pena-base, extraída na 2ª fase da fixação da pena; b) todas as causas incidem umas sobre as outras; c) as causas de aumento incidem sobre a pena extraída na 2ª fase e as de diminuição incidem umas sobre as outras. O critério mais ajustado é o previsto na letra b e todas as causas incidem umas sobre as outras, admitindo eventual compensação.
12. Em relação à pena de multa há duas fases: o número de dias-multa e o valor do dia-multa. O número de dias-multa deverá guardar proporcionalidade com a pena privativa de liberdade; o valor do dia-multa deverá atender a condição econômica do apenado. Assim, quanto mais abonado o agente, maior o valor do dia-multa.
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ANEXO IIEXERCÍCIO DE APLICAÇÃO DA PENA
1. FATO DELITUOSO
No dia 06 de agosto de 2000, em horário indeterminado, na Rua 26 de Maio nº16, Chácara da Fumaça, Vila Safira, nesta Capital, Valdir da Rosa Pereira com animus necandi, com socos, pontapés e mordidas, matou Thifany da Silva Pegarin, produzindo-lhe as lesões descritas do auto de necropsia de fls. 14 e
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15, o qual consigna como causa mortis hemorragia interna consecutiva a ferida de rim direito por instrumento contundente.
Por ocasião dos fatos, Valdir da Rosa Pereira na qualidade de padrasto da vítima, encontrava-se em sua residência, na companhia de Thifany e de outro menor, em razão de a mãe dos mesmos ter saído. Em dado momento, o denunciado, a exemplo do que fazia de forma costumeira e reiterada a ponto de ter, em data anterior, fraturado um braço da vítima, passou a desferir-lhe socos, agressão esta que veio a produzir-lhe a morte, horas depois.
O crime foi praticado por meio cruel, revelando o denunciado ausência de sentimento, piedade e solidariedade humana, infligindo a vítima sofrimento além do necessário para a produção do resultado morte, em face do número, localização e gravidade das lesões.
Fútil o móvel do delito, porquanto o denunciado agiu contra a vítima por irritar-se com seu choro, criança de apenas um ano e sete meses de idade.
O crime foi, ainda, praticado contra menor de quatorze anos.A denunciada Vanderléa concorreu para o fato na medida em que
tendo o dever de vigilância, este decorrente de lei, eis que mãe da vítima, omitiu-se, quando devia e podia agir para evitar o resultado. Também, de modo ativo, quando ela própria agredia a vítima Thifany, desferindo-lhe socos e pontapés e jogando-a ao solo, condutas estas que lhe causaram as lesões corporais descritas no auto de necropsia de fls., as quais contribuíram para o êxito letal.
2. CONSIDERANDO:
a) Valdir é réu primário, conduta social abonada e sua personalidade não tem sinais de deturpações;
b) Vanderléa também é primária, é prostituta e tem a avaliação da personalidade prejudicada diante da conclusão do laudo que reconheceu a sua semi-imputabilidade (art.26 § único do CP).
c) A capitulação do crime, para ambos, está no art. 121, §2°, incisos II e III, c/c com §4°, sendo para Vanderléa na forma do art. 13 §2°, alínea “a”, em conformidade com o art.29 todos do Código Penal. Agrega-se, ainda, a agravante do art. 61, letra “e” com relação a Vanderléa.
d) Salienta-se, por fim que o homicídio esta qualificado pelo motivo fútil e, por isso, a outra qualificadora deverá ser considerada como agravante para ambos.
3. PERGUNTA-SE:
Qual a pena justa e necessária para ser aplicada?
ANEXO IIIARTIGO ARAMIS NASSIF - REINCIDÊNCIA
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REINCIDÊNCIA: NECESSIDADE DE UM NOVO PARADIGMA
1. Introdução
O Código Penal brasileiro prescreve que ocorre a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior (art.63), que, de simples leitura depreende-se tratar de conceito da genérica, pois a específica, de elaboração doutrinária, refere-se ao delito repetido que é da mesma espécie que levou o agente à anterior condenação.
Trata-se de uma agravante25, o que, no espírito legislativo codificado, obriga a uma majoração da pena-base, haja vista o sistema trifásico adotado pela reforma penal de 198426.
Para que seja tecnicamente considerado reincidente, deve haver sentença condenatória transitada em julgado por prática de crime anterior e um lapso de tempo inferior a cinco anos entre a data do cumprimento ou extinção da pena e a infração posterior (Arts. 63 e 64, CP).
Para o ilustre jurisfilósofo Amilton Bueno de Carvalho ela não se afina com a vocação da Carta política, porque a exasperação da pena resultaria em bis in eadem, vez que o condenado estaria sendo punido duas vezes pela mesma prática delituosa.
Entendo que não existe o vício.
Em se tratando de agente punido anteriormente por crime praticado, defendi que a reiteração delituosa vinha marcada por especial carga de censurabilidade, entendimento tomado do conceito tradicional de culpabilidade, pois tinha consciência da ilicitude e das conseqüências de sua conduta, razão porque, até mesmo para distingui-lo do réu primário, merecia apenamento mais severo. Mas refleti profundamente a respeito do tema e confesso minha angústia ao verificar que, se estava certo quanto a constitucionalidade – posição que me permito manter, ainda que tema pelo poder dos argumentos da corrente que a sustenta - estava equivocado quanto ao critério da culpabilidade para o efeito de dar status especialmente punitivo à exasperante. E a expressão de meu equívoco pode ser interpretado nas palavras de Figueiredo Dias:
“A verdadeira função da culpabilidade no sistema punitivo reside efetivamente numa incondicional proibição de excesso; a culpabilidade não é fundamento da pena, mas constitui o seu limite inultrapassável”,
25 Art. 61 - São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime: I - a reincidência; (...)26 A pena-base será fixada atendendo-se ao critério do art. 59 deste Código; em seguida serão consideradas as circunstâncias atenuantes e agravantes; por último, as causas de diminuição e de aumento (Art. 68, CP).
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obtemperando que é “uma barreira intransponível ao intervencionismo punitivo estatal e um veto incondicional aos apetites abusivos que ele possa suscitar”. 27
2. A função da pena: Breves considerações criminológicas.
Acentua Raymond Saleilles28 que a substituição da idéia de que a pena era um mal pelo mal pela de que a pena é um meio para o bem, faz dela um instrumento de regeneração individual e de preservação social. Até a expressão ´pena´ é equivocado e teleologicamente, ela não estaria em castigar pelo ato passado, como se tratasse de satisfazer um sentimento de vingança individual ou coletiva, mas em procurar um resultado no futuro.
Refletir sobre a reincidência é remeter a questão para a discussão, sempre presente, a respeito da função da pena e, se assim fizermos, devemos relacioná-la com o indivíduo, ou seja, àquele a quem a aplicação da sanção atinge. A pena tem como objetivo a recuperação do agente. Trata-se, em tese, de aplicar medidas orientadas para a ressocialização do delinqüente e, por óbvio, significa mais que evitar simplesmente a reincidência. O cumprimento da sanção, para realizar seu conteúdo teleológico, deveria, por exemplo, resultar em preparação profissional, ensinar a fazer uso do ócio de uma forma construtiva, educar, melhorar as relações pessoais e despertar a consciência sócio-axiológico.
Raramente ocorre.
Tratar dessa frustração seria repristinar o antigo debate relativo à nocividade, violência e inadequação do sistema prisional brasileiro, para o momento inútil, mas que serve ao alerta de que, ignorar a reincidência, e considerar apenas a recuperação do apenado com o resultado positivo eventualmente ocorrente, deve ser visto com cautela.
No meu entendimento anterior (acreditava na aplicabilidade fisiológica da pena, ou seja, que a pena tem função, e que esta realização deve ser buscada. Assim poderia concluir que, se não aprendeu com o castigo, da recidiva resultará exasperação da pena. Da meditação que propus, cheguei à desconfortável constatação: aplica-se para a mesma doença o remédio que não curou. Pior, o remédio será sempre o mesmo, até que o paciente morra de seu próprio consumo.
Com a devida vênia, o entendimento pela inconstitucionalidade, de imbatível qualificação jurídica, expressa a falta de alternativas concretas ante a disfunção da pena, mormente se considerarmos a falência do sistema carcerário e, mais amplamente, do sistema penal como um
27 Questões Fundamentais do Direito Penal Revisitadas. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1999. 28 SALEILLES, Raymond. Individualization of punishment. In Criminology, Law Enforcement, & Social Problems Series. Ed. Smith, Patterson Publishing Corporation. Nova York, 1968
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todo. Enfim, o remédio não produz efeito, poderia agravar a doença, e mas mesmo assim é abandonado o tratamento...
Somos incapazes de identificar alternativas que realize teleologicamente a pena. Assim, não é mais que dever do operador do direito, rejeitar o seu segmento mais perverso, qual seja, a exasperação pela reiteração delituosa.
Não há como deixar de reconhecer que, além de tecnicamente correta a tese da inconstitucionalidade, a solução proposta é, pelo menos, mais humana.
Qual o resultado de não se aumentar a pena? Qual o resultado de aumentá-la?
Repita-se: Se não exasperar, é porque a norma do Código penal é inconstitucional, avançamos, progredimos...; se exasperarmos, é porque a norma é constitucional, vez que versa sobre culpabilidade, e de uma ou outra maneira, temos nosso papel por cumprido...
O réu?
Para ele, no seu cotidiano concreto, na sua humanidade, no seu pensar, no seu agir e julgar, nada muda. Para nós, interessa o aspecto técnico...
As questões sobre o réu-objeto, destinatário da norma, o sistema carcerário e o não cumprimento da norma estão fora de cogitação.
Portanto, a investigação criminológica exige a tomada de outros caminhos que não sejam os considerados acima, ainda que com repercussão social, apenas no plano jurídico. É de ver e tentar perceber se a pena, teleologicamente considerada, está atendendo seus objetivos.
Basicamente, considera-se o resultado da inflição penal, na proporcional correspondência do agente durante o período posterior à sua condenação, ou seja, após executada a sanção.
Aos olhos distantes dos despreocupados operadores do direito e da opinião pública em geral, é cômodo declarar que houve êxito na recuperação do agente quando este não reincide, mas que é a expressão do fracasso quando volta a delinqüir.
Nossa visão do problema ( sempre aplicando a lição que não ensina e o remédio que não cura), é o menor trecho da distância que toda a doutrina e jurisprudências brasileiras mantém-se da questão central. Afinal, quais são os critérios para afirmar que houve recuperação ou não do apenado? Basta saber se delinqüiu novamente ou que não o fez? É só esta informação que dispomos e entendemos necessária para assumir as posições perante a lei e a sociedade? Perguntamo-nos sobre os fenômenos criminógenos que levaram ou, melhor, que sempre levaram à reincidência? Está certo submetermo-nos pura e simplesmente ao critério pobre, único e despojado do texto legal?
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É unívoco, seja pela corrente que pretende ser mais liberal, seja pela legalista, o entendimento de que a pena, mormente quando carcerária, tem apresentado resultados altamente insatisfatória e, mais que isto, a privativa faliu como instituição recuperadora. Essa realidade serve para os liberais serem mais generosos e hesitarem quanto ao encarceramento e, para os mais conservadores, para serem mais rigorosos, referindo-se, aqueles, à inutilidade da sanção quando o Estado não propicia meios para a ressocialização e, estes, porque a impunidade seria o causa maior da grande incidência da criminalidade repetida.
Indispensável, fugindo à generalidade da norma, que se distinga a natureza dos delitos praticados pelos reincidentes.
Entendo que há uma significativa diferença, entre o cometimento de um pequeno furto e o violento crime de roubo; entre um crime praticado estado de necessidade e o praticado profissionalmente; entre um crime ocasional forçado pelas circunstâncias e a atividade criminal contínua, especialmente quando envolve reincidência específica. Poder-se-ia dizer que os criminosos (ou ex-criminosos) estão classificados em não reincidentes, reincidentes eventuais e reincidentes habituais, desconsiderando, obviamente, a condenação para os efeitos do estudo, sendo bastante, portanto, a prática criminal.
Daniel Glaser, Professor Emérito de sociologia e especialista em criminologia na University of Southern California, após exaustivo estudos concluiu que existem dois grupos de criminosos, seja entre os reincidentes, seja entre os não reincidentes, que denominou de limpos ou marginais (clear and marginal)29
Entendia que a ´reforma limpa´ formava o grupo que não cometeram nenhum crime após o primeiro ano do anterior e, reforma marginal, quando o agente, nesse mesmo período voltava a delinqüir. Na primeira hipótese, os egressos conseguiam ou recuperavam empregos anteriores, e evitavam a companhia de antigos parceiros de crimes; já o segundo, não mantinham nem recuperavam seus antigos postos de trabalho, voltavam à companhia de criminosos, ou que voltavam ao cárcere em razão de não cumprir as condições da liberdade condicional ou outros benefícios auferidos após a condenação. Já os reincidentes ´limpos´ retornavam ao cárcere por algum motivo grave, ainda que injustificável sob o aspecto jurídico, poderia ser compreendido com mais generosidade pelo seu aspecto sociológico.
Sabemos todos da dificuldade de emprego no Brasil, atualmente e, mais, ainda, quando envolve ex-presidiário.
29 The effectiveness of a prision and parole system. Ed. Bobbs-Merrill, EUA, 1964. Obs. A expressão limpos pode ser entendida como claros. Preferi a primeira pela expressão do meio marginal e policial, quando sem antecedentes o agente, “ tô limpo”.
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Mas estão todos em igualdade de condições no processo judicial e nas sentenças numa estranha e cruel interpretação da norma constitucional que determina a igualdade de todos perante a lei.
Todavia, é de lembrar que o sistema carcerário compromete esta classificação, haja vista que ele mesmo exerce forte influência corruptora sobre o agente, podendo transformar um indivíduo que, em circunstância de liberdade não voltaria cometer crimes e que, pela perversa influência do meio, transforma-se em criminoso.
Os ingleses Mannheim e Wilkins mediante detalhada pesquisa concluíram que os egressos do sistema carcerário voltam a delinqüir logo após o cumprimento da pena, isto é, no primeiro ano após cumprimento da pena anterior. Por outro lado, com o passar do tempo, a índice de reincidência torna-se extremamente reduzido, quando não ocorre a recidiva30. É fácil a ilação: Não é a pena aplicada e sua execução que recupera o agente, mas o meio social no qual passou a viver ou reintegrou-se.
Etiologicamente, então, identifica-se, como determinantes da reincidência fatores sociais ou endogenamente criminogênicos, que não são alcançados pela pena. E se a sanção não pode cumprir sua função, qual a razão do acréscimo pela reincidência?
Por outro lado, o agente que cumpre a pena em liberdade, seja porque ela é substitutiva, seja por força de sursis ou, mesmo, pela suspensão condicional do processo, não tem fiscalização adequada pelo Estado e o que cumpre a pena recolhido, pela omissão oficial, sofre efeitos corruptores qual é o sentido de querer este mesmo Estado exasperar a sanção do reincidente, não pelo seu fracasso pessoal, mas por força da indiferença e violência estatal?
Chama a atenção o fato de que os réus condenados à pena pecuniária no delito anterior, não terá considerada contra si a reincidência, ex vi artigo 77, § 1º, do Código Penal31. Irremissível considerar, que os juizes distinguem-se na consideração do delito, conforme seja sua formação pessoal e cultural. Assim, se um magistrado afeiçoado às idéias da modernidade da ciência penal, atento aos aspectos psico-sociológicos do fenômeno criminogênico, deixar de aplicar uma pena privativa da liberdade, outro, mais severo, afeito ao discurso punitivo que infelicita o meio jurídico brasileiro, não tiver a mesma compreensão, os réus dependerão da sorte para obter ou não o benefício da lei, com todas suas repercussões, benéficas ou nocivas.
MacClintock e Gibson desenvolveram estudos na Inglaterra a respeito do furto praticados especialmente contra comerciantes de rua (camelôs, para nós) e ficaram impressionados com o baixo índice de reincidência entre os infratores. Todavia, constataram, também, que não havia,
30 H.Manhein e L.T. Wilkins. Prediction methods in relation to Borstal Training. Ed. H.S.M.º Londres, 1955.31 A condenação anterior a pena de multa não impede a concessão do benefício (Art. 77, § 1º, CP ).
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efetivamente o êxito na regeneração aparente dos agentes, vez que a realidade é que eles tinham mais habilidade para evitar a ação policial32.
Não é diferente no Brasil atual: A criminalidade de pequeno porte, tais como algumas modalidades de estelionato, v.g. ´conto do vigário´, contravenções como o jogo do bicho (em processo de descriminalização), etc., com alto índice de impunidade, pode gerar disparidade punitiva e, portanto, capaz de comprometer a igualdade propugnada pelo legislador, vez que, em outras espécies de infrações menos importantes, como lesões leves, crimes contra a honra, normalmente encaminham à ação penal e se resolvem com sentenças judiciais. Acontece que, naquela modalidade delinqüencial, os agentes estão preparados para fugir à ação policial, raramente são identificados, enquanto que os últimos raramente fogem à repressão oficial. A conclusão é óbvia: A maior vocação criminal resta premiada.
3. Aspectos psicológicos da reincidência.
Há uma realidade que se assoma desafiadora e ao mesmo tempo desanimadora - aquela pela necessidade da crítica ao status quo doutrinário como fator de aperfeiçoamento e, esta, pela reação nitidamente conservadora e manutencista – mas que resulta, de qualquer maneira, na necessidade vital de que algo precisa ser feito.
Sofremos a influência de nosso crescimento, se existe a partir das informações acumuladas ao longo do tempo e sua transformação conhecimento cultural; da experiência de grupos que integramos, tais como aulas, sessões da Câmara do Tribunal de Justiça, atividades sócio-esportivas, etc, e a partir da do convencimento gerado por tais elementos influentes. De tal quadro não pode ser excluída pelos valores prevalecentes na subcultura do agir humano como ente social e com a corrupção, por adesão a entendimentos diversos daquele formado em construção individual, que pode, certamente, ser denominado e reconhecido como conformador. Nem se exclua a psicologia de almanaque , qual seja, a que recebemos de nossos pais, da mídia, de nosso habitat, enfim, animadora do equívoco subversivo dos preceitos que cientificamente auferimos.
Porque é tão difícil entender a natureza humana? Porque a qualificação da pesquisa psico-social, que alimenta a teoria criminológica moderna – e que deveria desvendar a estrutura, conceitos, perspectivas – se nos aparenta insatisfatória?
Entendo, mesmo perturbado com esta angústia, que qualquer ramo da ciência deveria abastecer-se de elementos simplificadores, mas, ao contrário, conduz-nos a uma tessitura lingüistica extremamente complexa, cuja inteligibilidade fica circunscrita ao meio científico em espécie, que, à leitura leiga, desautorizada pela distância técnica desse conhecimento, transmite-nos uma
32 F.H. McClintock e E. Gibson. Robbery in London. Ed. MacMillan, Londres Inglaterra, 1961.
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imagem de zeloso patrimônio interno, indevassável, egoístico, que, se compartilhado com a choldra ou patuléia, tornar-se-ia banal e seus ´donos´ sentir-se-iam desfalcados de patrimônio intelectual, empobrecidos, com sério abalo à sua vaidade.
As amarras do produto são soltas timidamente através de laudos perícias, etc., que não são mais que fragmentos do conhecimento global, doados pela natureza circunstancial e que, ao fim e ao cabo, é que se lhe dá importância e status.
O direito, como ciência autônoma tem a propensão de pressurizar-se, ao menos na aplicação pela maioria de seus operadores, de verdadeira preguiça intelectual que o despoja de qualidade extrínsecas e epistemológicas importantes para sua completitude, empurrando-os à cômoda leitura dos manuais práticos que tem enriquecido seus autores e entorpecido a mente de seus leitores; ou à interpretação lítero-estática da norma jurídica em intransigente positivismo, pouco importando as conseqüências de eventual injustiça daí decorrente.
Conjugam-se as posturas e deixamos de ler, de nos informar e aperfeiçoar. Ora enquanto o cientista, o filósofo, psicólogo, o antropólogo e outros não simplificar seus textos para contribuir na interpretação universal, renunciando tanto quanto possível ao pedante hermetismo da exposição científica, ou o operador do direito tomem a ousadia de tentar apreender seu sentido, prevalecerá o rançoso obscurantismo da ciência jurídica, certo que esta não sobrevive sem a influências daqueles, se não triste e lamentavelmente sem expressão, o que, por óbvio, só interessa para manter o império da cômoda ignorância e a perpetuação da miséria de espírito. Se assim for ou persistir, o direito estará condenado a desajustar-se frente a sociedade variada e em rápida mudança ou evolução, tornando-se árido em suas abstrações positivistas e epistemologicamente pobre.
Todavia, a incursão aos ramos científicos paralelos e circundantes do direito, assim e ainda que fragmentariamente, com o alerta acima, é imprescindível para tentar apreender o verdadeiro sentido – ou sua falta – da reincidência.
Mas ouso fazê-lo.
Observo que a pena tem como finalidade maior a recuperação do agente, tal como descrito acima, mas, pelo que ela hoje representa, é fácil afirmar que ela é apenas uma mal-necessário. Falta alternativas para a resposta estatal à criminalidade.
Todavia, a reincidência, por ser mera agravante da pena-base (principal?), é periférica, um plus gravoso, um bônus maligno para o recidivo.
As considerações que seguem vão acompanhadas da advertência de que são de autoria de pessoa leiga, e fruto tão-somente de leitura
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investigativa em torno do tema e, assim, sem marca da cientificidade que tão somente aos especialistas socorre.
Lamentavelmente, a etiologia criminal pouco caso dá-se ao fenômeno da estruturação da personalidade do delinqüente, mas criminologicamente, a teoria psicanalítica do delito, mais avançada um pouco que a teoria psicodinâmica - mas com ela imbricada - aponta como causas do crime, três fatores:
“1º - O homem é, por natureza, um ser a- social. Por isso é que Freud refere a criança como um perverso polimórfico e Stekel como um criminoso universal".
2º - A causa do crime é, em última instância, social. O crime - escreve Glover - representa uma das parcelas do preço pago pela domesticação de um animal selvagem por natureza; ou, numa formulação mais atenuada, é uma das consequencias de uma domesticação sem êxito.
3º - durante a infância que se modela a personalidade. É, noutros termos, durante a infância que se definem os equilíbrios ou desequilíbrios que, com carácter duradoiro, hão-de dar origem ao comportamento desviante ou às condutas socialmente aceites´.33
Conforme Agra34, o paradigma atual de caráter científico é o sistêmico-comunicativo-informativo (ou sistêmico-comunicacional-informacional), decorrente da imbricação biopsicossocial estimulante da ocorrência criminal, ou seja, das condições biológicas, ou bio-orgânicas do agente, passíveis de influir na criação criminosa; da sua higidez psicológica, ou não; e, por fim, da influência do meio, do seu habitat, sobre o ânimo ou capacidade de resistência volitiva para o cometimento da transgressão.
Se o crime sofre, para sua consecução e quantificação estatísticas a influência da personalidade do agente, deve ela ser examinada com, um pouco mais de cautela pelo jurista, doutrinária e pragmaticamente para o efeito de ver da utilidade/necessidade da reincidência.
Para Cohen, “as fontes de variação do impulso e das variáveis de controle estão na biografia do indivíduo ou na situação contemporânea e não na sua constituição biológica”.35
Assim, a consideração pretendida destaca o indivíduo em sua circunstância psico-social.
Usa-se para definir alguns distúrbios da personalidade, quase sempre preenchendo o perfil do reincidente o termo ´perverso´, que não se confunde com homógrafa que adjetiva o homem dotado de malignidade, mas que,
33 Segundo Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, em Criminologia: O homem delinqüente e a sociedade criminógena, Coimbra Editora, Coimbra, Portugal, 199734 Agra, C. (1990). Sujet autopoiétique et transgression. In Pierre Mardaga (Ed.) Acteur social et délinquance — une grille de lecture du système de justice pénale, pp. 415-426. Liège : Pierre Mardaga. 35 Deviance Reality and society. S. Box, p. 117. Londres. Inglaterra,
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todavia, pode estar entre os que, objetivamente, pretende-se analisar. Aliás, a Psiquiatria retirou o termo "perversão´de seu jargão, por seu peso pejorativo no senso comum, e colocou em seu lugar o termo "parafilia´para caracterizar a patologia (para desvio; filia aquilo para que a pessoa é atraída).
Segundo Joél Dör, “o perverso regra sua conduta sobre a realização de seus desejos, de seus apetites, sem consideração pelo que se pode chamar de sentimento da dignidade individual e de respeito a outrem ou por carências deste elementos moderadores habituais. Ele cai, assim, no uso abusivo dos tóxicos, na paixão pelo jogo e seu corolário freqüente - a trapaça, a vagabundagem e a deserção – o roubo e suas múltiplas variantes, a pilhagem e a desnutrição, o incêndio voluntário, a prostituição, etc.O perverso encontra muito freqüentemente no bando de malfeitores, a ajuda e a emulação que estendam seu campo de ação e exaltam sua nocividade. (...)De fato, o ´senso moral´ não existe certamente como tal. O indivíduo adapta-se mais ou menos bem à vida social, está mais ou menos apto a conhecer e a compreender as restrições que ela lhe impõe, dá mais ou menos consentimento às suas restrições. Este é o critério que lhe permite determinar a responsabilidade dos perversos que contravêm à lei”.36
Para o psicólogo há um deslizamento sub-reptício para formar a similitude entre a perversão e a delinqüência, que lhe permite afirmar que “alguns meses de prisão não moralizam mais estes reincidentes do que alguns anos de hospitalização”. A criação de estabelecimentos especiais com um regime médico-judiciário apropriado deveria permitir a seu respeito uma segregação salutar”.37
É evidente que a referência ao preso não exclui ao delinqüente que cumpre pena em liberdade, pois o que importa é a necessidade e/ou eficiência da agravante em estudo.
A anomalia psicológica é imperceptível aos operadores do direito, vez que não se exterioriza semiologicamente, manifestãodo-se apenas na sua atuação criminosa. Ela é aceita sem esforço interior do indivíduo para repeli-la, concedendo ou não às regras morais e aos sistemas jurídicos, com o que não viável constantes exames incidentais de insanidade mental, que justifique o tratamento adequado e substitutivo da pena. Então, qual a expecativa para a recuperação do agente o agravamento pela reincidência? Nenhuma e, com isto, ela perde o sentido, pois trai o espírito da norma (ressocializar).
O psicólogo e autor norte-americano J. A. Arlow salientou dois aspectos peculiares às alterações de caráter: o não realista dos comportamentos (estes arranjam-se para ignorar as situações desvantajosas, enquanto os fóbicos as evitam) e, em segundo lugar, uma tendência às mentiras, pouco importantes, aliás, mas que igualmente poupam-no de "encarar a verdade de frente". Assinala variedades particulares de ´perversos´ de caráter: os ´farsantes´e os ´mistificadores, sempre em vias de falsificar a verdade mediante procedimentos pouco culpabilizantes. Isto seria, quer uma necessidade de criar angústia no outro, quer uma forma de tomar o poder
36 DÖR, Joél. DOR, Joel. Estrutura e perversões. Artes Médicas, Porto Alegre, 1991. 37 Ibdem
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sobre ele, ou ainda o prazer de lhe mostrar que o ´possuiu´. Tratar-se-ia, para o autor, de evitar, acima de tudo, a emergência dos fantasmas inconscientes; a ´perversão´de caráter, da mesma forma que o sintoma procuraria dominar uma situação fantasmática perigosa38.
Ora, a aparência de normalidade de tais doentes – e são normais em todo o tempo com exceção do delito – leva a que recebem o mesmo tratamento do que os que, efetivamente, tem consciência plena da ilicitude e por razões egoísticas, gananciosas, repetem a ação incriminada.
Ademais, este indivíduo tem pouca tolerância para a culpa e, muitas vezes, falta de culpa. Tais traços convivem na personalidade do agente, mas, por outro lado, pode sentir vergonha e temer a desaprovação pública por seu ato, mas não desenvolveu sistema internalizado autônomo de controle da conduta.
Se assim é, não há como deixar de ver a razão sócio-jurídica em Salo de Carvalho, na imbricação inevitável com a orientação psicológica supra apresentado, ao sustentar que “..percebe- se, então, que o juízo de culpabilidade a ser realizado pelo juiz é dúp[ice. Primeiramente, deve avaliar se aquele homem no caso concreto possuía autodeterminação e possibilidade de agir de modo diverso. Se negativa a resposta, estamos diante de causa exculpante que descaracteriza o delito. Em constatada a possibilidade, e conseqüentemente o delito, deve o juiz, na aplicação da pena, medir o grau de culpabilidade, ou seja, o quantum de possibilidade alética, para daí calcular a culpabilidade na conduta. Dessa forma, o juízo de culpabilidade como medida da pena deve recair sobre as possibilidades fáticas de o sujeito atuar de acordo com a norma, sendo, assim, extraído seu (des)valor e o grau de reprovabilidade”.39
Interessante, por outro lado, como refere-se à questão da culpabilidade o jurista alemão Claus Roxin. Para ele “... a pena não pode, na minha opinião, ultrapassar a medida da culpa Deste modo, a culpa, que temos declarado inadequada para fundamentar o poder penal do Estado serve, contudo, para o limitar. Como é isto possível? Pois bem, tal é necessário porque os conceitos de dignidade humana e autonomia da pessoa que presidem à nossa Lei Fundamental e a tradição ocidental pressupõem indiscutivelmente o homem como ser capaz de culpa e responsabilidade. Como é sabido, não se pode dizer m segurança se essa imagem de homem, constitutiva para o ordenamento da nossa comunidade, se concilia com as ciências do ser, ou se porventura não se deveria antes caracterizar o homo sapiens como um perigoso animal ou como uma máquina complicada.”
Mais uma vez, franco o fracasso teleológico da reincidência como agravante.
4. Igualdade e desigualdade
Ao tratar do tema ´igualdade´, Hanah Arendt40 lembra que, se não fôssemos iguais, não teríamos a capacidade de entender-nos com os 38 ARLOW, J. A. & BRENNER, C. Psychoanalytic concepts and the Structural Theory. Publicado no International Universities Press.Nova York, 1964. 39 Aplicação da pena e garantismo. Et Amilton Burno de Carvalho. Ed. Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2001.
40 A condição humana. Ed. Forense Universitária, São Paulo, 1981.
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semelhantes nem como nossos ancestrais; não poderíamos fazer planos e projetos para o futuro ou prever as necessidade das gerações que nos sucederão. Todavia, ensina ela, que se não fôssemos diferentes, se cada um de nós não diferisse de outrem, que existiu, existe ou existirá, não precisaríamos de discurso ou das ações para entendermo-nos. Com simples sinais e sons poderíamos transmitir nossas necessidades imediatas, idêntico ao que ocorre com os animais.
A igualdade fundamental insere-nos na categoria de seres humanos. Mas uma desigualdade também fundamental identifica-nos como indivíduo e pessoa. Da convivência das nossas igualdade e desigualdade impõe a primeira como tarefa do homem e não como algo resultante da própria natureza. Refletindo ousadamente sobre a lição de Hanah, a igualdade no momento público de nossas existências tenta afetar nossa desigualdade individual, para que, na exposição externa da desigualdade, possam nossos semelhantes tornar-nos igual. E se esta desigualdade envolver eventual conduta criminosa, o fator igualador é a pena. Isto é, não depende essencialmente de nossa natureza humana que, certamente, poderia ser a via consertadora de nossa descompasso com o meio social, mas de reprimenda estatal, fator externo à nossa composição pessoal que busca a dar o rumo ´certo´ ao desviante, com um tratamento penal igualitário, ou seja, pouca interessa nossa cultura, nosso caldo sociológico, nossa religião, nosso status financeiro, etc., pelo nosso crime ser-nos-á aplicada uma pena e se houver recidiva, uma sanção mais grave e, vezes tantas, cruel Além de castigo mais severo, atinge benefícios periféricos (afeta prescrição, suspensão da pena, etc), tornando cada vez mais desigual a indivíduo, agora no espaço público do castigo, ou seja, o fracasso da reincidência está em tratar desigualmente os iguais, isto é, o homem enquanto ente social; e igualmente os desiguais, isto é, o homem enquanto indivíduo.
A dimensão da personalidade do ser humano autoriza pensar que a norma, teleologicamente justa, porque ´todos são iguais perante a lei...´ (Art. 5º, caput, CF), encaminha para um tratamento concreta e individualmente injusto. O arcabouço normativo está distante de ser algo intrínseco à condição de humanidade do indivíduo, e compõe notável fracasso político ou jurídico como instrumento para restabelecer o apenado como cidadão. Não se trata de sistema homogênico, no sentido do respeito ao homem e ao seu restabelecimento social, mas hegemônico, mas, sim, hegemônico, no sentido de excluir o indivíduo da convivência com seus semelhantes de uma farsa chamada interesse social.
É, então, verdadeira a interpretação assustadora que Gilles Deleuze faz de segmento da obra de Foucault:
“Certamente, a prisão enquanto forma do conteúdo tem ela própria seus enunciados, seus regulamentos. Certamente, o direito penal enquanto forma da expressão, enunciados de delinqüência, tem seus conteúdos: nem que fosse apenas um novo tipo de infrações, atentados à propriedade mais que agressões às pessoas. E as duas formas não
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param de entrar em contato, insinuando-se uma dentro da outra, cada uma arrancando um segmento da outra: o direito penal não pára de remeter à prisão, de fornecer presos, enquanto a prisão não pára de reproduzir a delinqüência, de fazer dela um "objeto” e de realizar ss objetivos que o direito penal concebia _de outra forma (defesa da sociedade, transformação do apenado, modulação da pena, individuação). Há pressuposição recíproca entre as duas formas”41.
Tais paradoxos - não os evitou lei, mas injustamente a agravou - é que me levou a reconsiderar minha posição em relação à agravante em estudo.
A pena é um mal-necessário. A reincidência não. Sem função teleológica, sem aplicação a agravante. Nada a justifica.
BIBLIOGRAFIA
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______Questões Fundamentais do Direito Penal Revisitadas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
41 DELEUZE, Gilles. Foucault. Ed. Brasiliense, Brasília, 1991.
66
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SALEILLES, Raymond. Individualization of punishment. In Criminology, Law Enforcement, & Social Problems Series. Ed. Smith, Patterson Publishing Corporation. Nova York, 1968
CONCURSO DE CRIMES (artigos 69 a 71 do CP)
INTRODUÇÃO
Como já se viu no âmbito da co-autoria, o crime pode ser obra de um como de
vários sujeitos, ocorrendo, nesta hipótese, o “concurso de pessoas”, inserido no
artigo 29, caput, e §§, do Código Penal, mas é perfeitamente possível que um
agente ou mais praticar dois ou mais crimes. Assim, quando um sujeito, mediante
unidade ou pluralidade de comportamentos praticar dois ou mais crimes, surge o
concurso de crimes – concursus delictorum.
Mais. O concurso pode ocorrer em crimes de qualquer espécie, comissivos ou
omissivos, dolosos ou culposos, consumados ou tentados, simples ou qualificados
e ainda entre crimes e contravenção.
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É evidente que, se estivermos diante de um concurso de crimes,
independentemente da modalidade, a pena não poderá ser a mesma aplicada para
quem perpetrar apenas uma infração.
SISTEMAS DE APLICAÇÃO DA PENA
Como noticia Cézar Bitencourt42, o concurso de crimes da origem ao concurso de
penas, que serão aplicadas de acordo com o sistema que for adotado pelo país
correspondente. A rigor, temos quatro sistemas sugeridos pela doutrina para a
imposição do concurso de crimes:
a) Cúmulo material – Esse sistema recomenda a soma das penas de cada um
dos delitos componentes do concurso. Há uma crítica que me parece
indevida que diz que a soma das penas poderá dar uma sanção muito longa,
desproporcionada com a gravidade dos delitos, desnecessária e com
amargos efeitos criminógenos (por exemplo: réu condenado por vários
furtos, reincidente, vai acabar no regime fechado convivendo com
latrocidas). É possível que o réu se ressocialize com a pena menor.
b) Cúmulo jurídico – a pena a ser aplicada deve ser maior do que a
cominada para cada infração isoladamente, sem, no entanto, se chegar a
soma delas (por exemplo: o réu é processado por roubo qualificado, furto
qualificado e furto simples; a pena a ser aplicada envolverá apenas o roubo
que terá pena maior que as demais infrações).
c) Absorção – Considera que a pena do delito mais grave absorve a pena do
delito menos grave, que deveria ser desprezada. Poderíamos usar o
exemplo anterior: haveria o apenamento pela infração mais grave,
42 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, Parte Geral, 1, 11ª edição, Editora Saraiva, 2006, páginas 592/599.
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desprezadas as mais leves. A crítica que se invoca é que várias infrações
menores ficariam impunes, pois o criminoso, após perpetrar crime mais
grave, ficaria imune para as outras infrações. Seria uma espécie de carta de
alforria para quem já delinqüiu.
d) Exasperação – recomenda a aplicação da pena mais grave, aumentada de
determinado percentual, maior ou menor de acordo com o número de
delitos praticados.
e) Observação: alguns autores usar outra nomenclatura que diz a mesma
coisa para algumas das hipóteses anteriores: o Nucci43 vai falar em sistema
do acúmulo material, da acumulação jurídica.
O CONCURSO DE CRIMES NO BRASIL
O Brasil adota o sistema do cúmulo material nas hipóteses de concurso
material e concurso formal impróprio e o da exasperação nas figuras do
concurso formal próprio e crime continuado.
CONCURSO MATERIAL
a. Conceito. Art. 69, do Código Penal
b. Critérios para a aplicação da pena. Como sugere Nucci, é
imprescindível que o magistrado individualize cada uma das condutas
perpetradas pelo agente, pois cada ação poderá ter um iter criminis
diferenciado. Daí por que, ao observar o princípio da individualização, os
43 NUCCI. Guilherme de Souza. Código Penal Comentado, 7ª edição, RT, 2007, páginas 409/426.
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aumentos e reduções corresponderam à conduta do agente em cada uma
das infrações perpetradas.
c. Concurso material e fiança. A súmula 81 do STJ veda a concessão de
fiança quando as penas somadas superem dois anos de reclusão.
d. Aplicação cumulativa de reclusão e detenção. Desnecessária
observação.
e. Concurso material moderado. Art. 75 do CP.
f. Possibilidade de cumulação de pena privativa de liberdade com
restritiva de direitos. Desnecessária observação.
g. Cumprimento sucessivo ou simultâneo de PRDs. Idem.
CONCURSO FORMAL
a. Conceito. V. artigo 70, caput, do CP.
b. Concurso formal perfeito e imperfeito. Distinções.
c. Desígnios autônomos. Significado. A sua caracterização se dá pela
unicidade de ação e multiplicidade de determinação de vontade, com
diversas individualizações. A intenção do legislador foi de retirar o
benefício daquele que, por fim deliberado e direto, pretende atingir dois ou
mais bens jurídicos, vier a cometer a infração com uma única conduta.
d. Concurso material favorável ou benéfico. § único do artigo 70.
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CRIME CONTINUADO
a. origem histórica. O crime continuado é uma ficção jurídica concebida por
razões de política criminal, que considera que os crimes subseqüentes
devem ser tidos como continuação do primeiro, estabelecendo, em outros
termos, o tratamento unitário a uma pluralidade de delitos, com uma forma
especial cogitada para sua punição.
Segundo CB, teriam sido os glosadores e os pós-
glosadores os autores da sua formulação, mas suas bases foram lançadas
definitivamente no século XIV, com a finalidade de que os autores do terceiro
furto pudessem escapar da pena de morte. Aqui são referidos Julio Claro e
Próspero Farinácio, que se preocuparam com o tema quando a Europa era
palco da fome e desolação.
b. Natureza jurídica. Há basicamente duas teorias a respeito do tema: 1ª )
trata-se de uma ficção jurídica. Assim, o delito continuado é uma
pluralidade de crimes apenas porque a lei resolveu conferir ao crime
continuado um tratamento especial, dando ênfase à unidade de desígnio. 2ª)
Trata-se de uma realidade. O crime continuado existe, pois a ação pode
compor-se de vários atos, sem que isso tenha qualquer correspondência
necessária com um ou mais resultados. São partidários da primeira: Heleno
Fragoso, Manoel Pedro Pimentel, dentre outros; da segunda, Balestra, Delitala,
Zaffaroni. Nosso código adotou a primeira, para fins exclusivos de
aplicação da pena, visando atenuar a sanção penal, atento aos critérios
de política criminal.
c. Crime continuado. Teorias.
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1. Teoria subjetiva. Para essa teoria desimporta os aspectos objetivos
que cercam a ação, mas sim o elemento subjetivo caracterizado pela
unidade de propósito ou de desígnio. Foi inicialmente adotada na
Itália, onde se constatou ser insuficiente para a definição do crime
continuado.
2. Teoria objetiva-subjetiva. Exigia a unidade de resolução criminosa
e homogeneidade do modus operandi.
3. Teoria objetiva. Adotada pelo Direito Brasileiro, surgida na
Alemanha, considera apenas os elementos constitutivos
objetivamente, independentemente do aspecto subjetivo – unidade
de desígnio ou unidade de resolução – para a caracterização do crime
continuado.
REQUISITOS DO CRIME CONTINUADO
a. pluralidade de condutas
b. pluralidade de crimes de mesma espécie. Aqui duas teorias
c. nexo da continuidade delitiva. Apurado pelas circunstâncias de tempo,
modo, lugar (conexão espacial), modo de execução e outras semelhantes.
Observação: aqui vou destacar modo de execução e outras semelhantes .
Por modo de execução, a doutrina exige semelhança, não identidade. É o estilo,
é o modo, a forma (por exemplo: o agente que, oferecendo guloseimas e
prometendo auxílio, pratica atentado violento ao pudor com menores). Outras
semelhantes, por sua indeterminação, fica difícil comprovar, mas seria possível,
por exemplo, quando o agente obtem sempre da mesma pessoas as informações
necessárias à prática da infração penal.
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d. palavras mágicas. Periodicidade, homogeneidade de bens jurídicos
atingidos, homogeneidade de processo executório (padrão de execução – o
bandido da luz vermelha, por exemplo)
e. espécies de crimes continuados. 1. simples – caput;
2. qualificado ou específico, § único,
que se configura presentes as seguintes hipóteses: contra vítimas diferentes (se
for a mesma, aplica-se o caput), com violência ou grave ameaça à pessoa e
somente em crimes dolosos.
f. peculiaridades:
1. crime continuado e delito culposo. Possibilidade, pela regra do artigo 71,
que adotou a teoria pura.
2. ações concomitantes, contemporâneas ou simultâneas: não admitem a
continuação delitiva.
3. não há continuação delitiva no crime habitual.
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