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DIREITO PROCESSUAL
PENAL Paulo de Sousa Mendes
大象城堡 | 葡京的法律的大学
Paulo de Sousa Mendes
大象城堡
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Índice
I – Noções Gerais ........................................................................................................ 6
§1.º - Modelos de Processo Penal............................................................................................... 6
1. A tradição acusatória ............................................................................................................ 6
2. A tradição inquisitória .......................................................................................................... 6
Modelo misto ............................................................................................................................ 7
II – Tramitação do Processo Penal ............................................................................. 8
§3.º - As formas de processo ....................................................................................................... 8
Nota histórica ............................................................................................................................ 8
As formas de processo atuais .................................................................................................. 8
O caráter subsidiário da forma de processo comum ........................................................... 8
A gravidade dos crimes e as formas de processo ................................................................. 8
A natureza processual dos crimes e as formas de processo ............................................... 9
§3.º - As diligências pré ou extra-processuais ........................................................................... 9
A polémica sobre a possibilidade de realização de pré-inquéritos .................................... 9
A prevenção criminal ............................................................................................................... 9
As averiguações preliminares ................................................................................................ 10
§5.º - A tramitação do processo comum ................................................................................. 11
As fases do processo comum ................................................................................................ 11
Aquisição da notícia de crime ............................................................................................... 11
O auto de notícia .................................................................................................................... 11
As medidas cautelares e de polícia ....................................................................................... 11
O inquérito .............................................................................................................................. 12
A instrução ............................................................................................................................... 21
O julgamento ........................................................................................................................... 26
§6.º - A tramitação dos processos especiais ............................................................................ 28
O processo sumário ............................................................................................................... 29
O processo abreviado ............................................................................................................ 30
O processo sumaríssimo ........................................................................................................ 30
III – Os sujeitos processuais ...................................................................................... 31
§7.º - A Parte Geral do Código de Processo Penal ................................................................ 31
Os sujeitos processuais clássicos .......................................................................................... 31
Os sujeitos processuais no Código de Processo Penal ..................................................... 32
§8.º - O Tribunal ......................................................................................................................... 32
Direito Processual Penal
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§
A função jurisdicional ............................................................................................................ 32
Princípios de administração da justiça ................................................................................. 32
Regras de competência .......................................................................................................... 32
Competência por conexão ..................................................................................................... 33
Competência territorial do magistrado do Ministério Público para o inquérito ........... 34
Declaração de incompetência ............................................................................................... 34
Impedimentos e suspeições ................................................................................................... 34
§9.º - O Ministério Público ........................................................................................................ 36
A principal função do Ministério Público ........................................................................... 36
O Ministério Público como parte acusadora? .................................................................... 37
Atribuições do Ministério Público no processo ................................................................. 37
Restrições ao exercício da ação penal pelo Ministério Público ........................................ 37
A intervenção dos órgãos de polícia criminal ..................................................................... 38
§10.º - O Arguido........................................................................................................................ 39
As garantias do suspeito ........................................................................................................ 39
A constituição de arguido ...................................................................................................... 40
O defensor ............................................................................................................................... 43
§11.º - O Assistente .................................................................................................................... 43
A função do assistente ........................................................................................................... 43
O regime específico dos crimes particulares ....................................................................... 45
§12.º - As partes civis ................................................................................................................. 46
O lesado ................................................................................................................................... 46
As partes civis .......................................................................................................................... 46
O princípio da adesão ............................................................................................................ 46
IV – Os princípios do Processo Penal ....................................................................... 47
§13.º - Noções gerais .................................................................................................................. 47
Princípios do início do procedimento ................................................................................. 47
Princípios da prossecução do procedimento ...................................................................... 50
Princípios relativos à prova ................................................................................................... 57
Princípios relativos à forma ................................................................................................... 62
V – O Objeto do Processo ......................................................................................... 62
§14.º - O problema da identidade do objeto do processo .................................................... 62
Os princípios da definição e conhecimento do objeto do processo ............................... 63
O critério da identidade do objeto do processo ................................................................. 63
A alteração dos factos ............................................................................................................ 64
A fixação do objeto do processo .......................................................................................... 64
Paulo de Sousa Mendes
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§15.º - O regime da alteração substancial de factos ............................................................... 65
Os factos novos autonomizáveis .......................................................................................... 65
Os casos duvidosos ................................................................................................................ 65
Os factos novos não autonomizáveis .................................................................................. 66
Casos peculiares ...................................................................................................................... 69
VI – As medidas de Coação e de Garantia Patrimonial ............................................. 71
§16.º - As medidas de coação .................................................................................................... 71
Os critérios de aplicação das medidas de coação ............................................................... 71
As medidas de coação em particular .................................................................................... 72
A impugnação das medidas de coação ................................................................................ 74
VII – A sucessão de leis processuais penais materiais e o princípio da aplicação da
lei penal mais favorável ............................................................................................. 74
§17.º - Aplicação do princípio da lei penal favorável à sucessão de normas processuais
penais materiais ........................................................................................................................... 74
Especificidades e autonomia do Direito Processual Penal ............................................... 74
Normas processuais penais materiais e normas processuais penais formais ................. 76
A sujeição das normas processuais penais materiais ao princípio constitucional da
aplicação da lei penal favorável: proibição da retroatividade desfavorável e imposição da
retroatividade favorável (artigos 18.º, n.º2 e 3, 29.º, n.º4, 2.ª parte, e 282.º, n.º3, 2.ª parte
CRP e 2.º, n.º4 CP) ................................................................................................................. 79
Tempus delictu (artigo 3.º CP) – irretroatividade da lei processual penal material
desfavorável e retroatividade da favorável .......................................................................... 82
§18.º - Aplicação do princípio da lei penal favorável à sucessão de leis sobre a prescrição
....................................................................................................................................................... 85
Normas processuais penais materiais .................................................................................. 85
Causas de interrupção ou de suspensão da prescrição ...................................................... 86
§19.º - Aplicação do princípio da lei penal favorável à sucessão de lei sobre a queixa e a
acusação particular ...................................................................................................................... 87
Pressupostos processuais (positivos) de responsabilização penal ................................... 87
Crítica da atribuição de natureza exclusivamente processual ........................................... 88
Passagem de crime público a semipúblico (ou particular) e vice-versa .......................... 88
Distinção entre direito de apresentação de queixa e direito de desistência da queixa:
condição de procedibilidade; causa de extinção do processo .......................................... 89
Termo a quo da contagem do prazo ..................................................................................... 91
Oposição à desistência da queixa ......................................................................................... 92
§20.º - Presunção de inocência do arguido (artigo 32.º, n.º2 CRP) e prisão preventiva
(artigos 28.º CRP e 191.º e seguintes CPP) ............................................................................. 93
Motivação e objeto deste capítulo ........................................................................................ 93
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§
Aplicação retroativa da Lei Nova que encurta o prazo da prisão preventiva ................ 93
Do desvirtuamento da função processual da prisão preventiva à neutralidade do
princípio constitucional da presunção de inocência do arguido e, consequentemente, à
violação ope legis ou ope iudicis do direito da liberdade individual ...................................... 95
VIII – A prova ............................................................................................................ 98
§21.º - O regime jurídico da prova ........................................................................................... 98
As definições de prova ........................................................................................................... 98
O regime dos meios de prova ............................................................................................... 98
§22.º - As proibições de prova ................................................................................................ 100
As proibições de produção de prova ................................................................................. 100
As proibições de valoração de prova ................................................................................. 102
A invalidade do ato processual ........................................................................................... 104
O efeito à distância das proibições de prova .................................................................... 108
As garantias de defesa contra o ato inválido ..................................................................... 110
As consequências penais da violação das proibições de prova ...................................... 111
Aproveitamos a oportunidade de, desejando a maior fortuna na empresa de
libertação em que consiste o 4.º ano, reiterar a necessidade de consulta dos
manuais
Paulo de Sousa Mendes
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I – Noções Gerais1
§1.º - Modelos de Processo Penal
Ao longo da História surgiram diferentes sistemas de processo penal. É usual ordená-los em
função de duas tradições antagónicas:
1. A tradição acusatória: alguns autores apontam como origem as instituições
judiciais gregas e romanas. A Magna Carta (1215) também é referida como um marco
do processo acusatório.
a. Definição do modelo acusatório: a trave mestra do modelo acusatório é a
separação entre a entidade que acusa e a entidade que julga. Tal separação
garante a imparcialidade do julgador.
b. Características: historicamente, o impulso processo pertencia ao ofendido.
O processo acusatório não visava a descoberta da verdade material, mas antes
a descoberta da verdade processual, aquela que resulta do confronto entre a
acusação e a defesa. O debate processual era feito em moldes contraditórios
e a função do juiz era a de um árbitro acima das partes. Tendencialmente,
havia igualdade de armas entre a acusação e a defesa. Em princípio, todos os
meios de prova eram admitidos e esses elementos eram depois valorados
conforme a livre apreciação do julgador. As próprias partes produzem a
prova, havendo distribuição do ónus da prova. Privilegiava-se a oralidade. O
processo era público. A sentença fazia caso julgado.
2. A tradição inquisitória: a tradição inquisitória teve origem no Baixo Império
Romano, continuando no processo inquisitório canónico da Idade Média. Acabou
por se transformar num processo inquisitório laico a ser transplantado
paulatinamente para o Direito comum europeu a partir do século XII, mas sobretudo
durante os séculos XVI a XVIII, designadamente a partir dos Códigos Penais e
Processuais Penais dos primórdios do Estado moderno.
a. Definição do modelo inquisitório: a principal característica deste modelo
consiste na concentração do poder de investigar, acusar e julgar numa única
entidade. Segundo uma fórmula clássica, é o modelo do juiz-acusador. É
óbvio que se a pessoa que investiga, acusa e julga for a mesma, então ao julgar
já não terá a imparcialidade necessária para formar um novo juízo, pois,
entretanto, já formou e consolidou a sua opinião durante a investigação.
b. Características: a inquisição era promovida ex officio, apoiando-se no
conhecimento privado do magistrado ou numa denúncia que podia ser
mantida secreta. Por exemplo, nos Tribunais do Santo Oficio do século XVI
em Portugal (Évora, Lisboa e Coimbra), o réu não sabia quem o tinha
denunciado, nem sequer sabia o que constava da denúncia. Como era
utilizado o sistema das contraditas (ou seja, o réu tinha de enumerar as
pessoas cujo depoimento seria inválido por razões de inimizade ou suspeição
1 MENDES, Paulo de Sousa; Lições de Direito Processual Penal; 2.ª Reimpressão da edição de Setembro de 2013; Almedina Editores; Coimbra, 2014.
Direito Processual Penal
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pessoal), ao tentar adivinhar quem o denunciara, acabava trazendo sem
querer novos depoentes ao processo e alargava assim as possibilidades de
denúncia e acusação. O modelo inquisitório privilegiava a descoberta da
verdade material, a qualquer preço. Isso levava muitas vezes ao uso da tortura.
Retrospetivamente, é fácil de perceber que a tortura como meio de obtenção
de prova, mesmo abstraindo da questão da dignidade humana, nem sequer
levava o inquisidor à descoberta da verdade. Basta dizer que uma pessoa sob
tortura acaba por “confessar” tudo o que quiserem. Os meios de prova
admitidos eram, entre outros, a confissão, as testemunhas, os documentos, o
duelo, etc. Só que a confissão funcionava como rainha das provas. Eram
utilizadas provas tarifadas (ou seja, meios de prova de valor rígido). Em rigor,
era um sistema de dispensa de prova, pois assentavam em autênticas ficções
de prova. O processo era secreto, escrito e não contraditório. A sentença não
fazia caso julgado, sendo a absolvição uma simples absolvição da instância,
pelo que o processo podia ser reaberto. Em vista disso tudo, o modelo
inquisitório é o oposto da ideia atual de garantismo penal. Mas não se pode,
ainda hoje, desprezar o facto de o processo inquisitório ter surgido
historicamente com o intuito de promover a descoberta da verdade material,
ademais regulamentando os procedimentos de investigação e reconhecendo
ao réu certos direitos de defesa. Só que o processo inquisitório acabaria por
se perverter de tal maneira que se transformou no paradigma de todas as
injustiças, através do abuso do segredo da instrução, do emprego da tortura
e da atribuição de um poder arbitrário ao juiz.
É sabido, porém, que os sistemas históricos nunca obedeceram propriamente a esquemas
pré-concebidos, nem foram completamente impermeáveis às influencias recíprocas. Seja
como for, alguns sistemas históricos deram corpo de forma paradigmática a uma ou outra
dessas duas tradições. Por isso, é possível, sem grande artifício, conceber dois modelos
abstratos de processo penal a partir dos sistemas históricos concretos e apontar as
características mestras desses modelos, prescindindo, do mesmo passo, de fazer descrições
históricas exaustivas.
Modelo misto: em França, o ataque ao processo inquisitório foi complementado com a
defesa do modelo acusatório, segundo o exemplo das instituições judiciais e procedimentos
praticados em Inglaterra, tal como fora proposto por Montesquieu e foi realmente levado à
prática na sequência da Revolução Francesa. Mas não vingou. O modelo misto surgiu com
o processo reformado ou napoleónico, através do Code d’Instruction Criminelle de 1808. A
estrutura do modelo misto era essencialmente acusatória, mas o processo foi divido em duas
fases separadas:
1. A instrução: destinada a investigar o crime e os seus agentes, era dirigida por um
magistrado especializado, o juge d’instruction, ficando a iniciativa e a titularidade da ação
penal nas mãos de um oficial do poder executivo junto do poder judicial, o procureur
imperial (depois procureur de la République). Em obediência à tradição inquisitória, a
instrução era escrita, secreta e não contraditória. Nessa fase definia-se o objeto do
processo e a partir da acusação pública os factos ficavam fixados de tal maneira que
eram esses e não outros que teriam de ser julgados.
2. O julgamento: destinada ao apuramento das responsabilidades do réu, estava
organizada segundo o modelo acusatório. O tribunal orientava-se pela busca da
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verdade, à luz do contraditório. Prevalecia a oralidade e a publicidade da audiência
de julgamento. É claro que a sentença fazia caso julgado.
II – Tramitação do Processo Penal
§3.º - As formas de processo
Nota histórica: no sistema do CPP de 1929, o processo penal podia ser comum ou especial.
Os processo especiais contido no Código eram: o processo de ausentes, os processos por
difamação, calúnia e injúria, os processos por infrações cometidas por juízes de Direito de
primeira instância e magistrados do Ministério Público junto deles, no exercício das suas
funções ou por causa delas, os processos por infrações cometidas pelas mesmas entidades,
mas fora das suas funções, os processos por infrações cometidas por juízes das Relações ou
do Supremo Tribunal de Justiça, pelos magistrados do Ministério Público junto deles, ou por
outros de igual categoria e a reforma dos autos perdidos, extraviados ou destruídos. Quanto
ao processo comum, podia revestir cinco formas: querela, correcional, polícia correcional,
transgressão e sumário.
As formas de processo atuais: no sistema do CPP de 1987, há duas grandes modalidades
de processo:
1. A forma comum;
2. As formas especiais: inicialmente, as formas especiais eram o
a. O processo sumário;
b. O processo sumaríssimo; e,
c. A 25 agosto 1998, foi criada mais outra forma de processo especial o
processo abreviado (artigos 391.º-A e seguintes CPP).
O caráter subsidiário da forma de processo comum: o processo comum tem um
caráter subsidiário: quer dizer, só se aplica quando não tiver qualquer forma especial.
A gravidade dos crimes e as formas de processo: tendencialmente, os crimes mais
graves são julgados na forma de processo comum. É natural: essa é a forma que oferece mais
garantias de defesa, o que não quer dizer que as outras as não deem. Por conseguinte, é a
mais adequada para os crimes mais graves. Por sua vez, os processos especiais serão, por
regra, condicionados pela gravidade da pena:
1. O processo sumário deixou, porém, de estar limitado aos casos em que não pode
ser aplicada pena de prisão superior a cinco anos (artigo 181.º, n.º1 e 2 CPP).
2. O processo abreviado só tem lugar em caso de crime punível com pena de prisão
não superior a cinco anos ou com pena de multa (artigo 391.º-A, n.º1 CPP).
3. Em processo sumaríssimo só cabem os casos de crime punível com pena de prisão
não superior a cinco anos ou só com pena de multa (artigo 192.º, n.º1 CPP). Nem
sempre, porém, os crimes menos graves são processados nas formas especiais.
Direito Processual Penal
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§
A natureza processual dos crimes e as formas de processo: os crimes públicos não
têm a respetiva tramitação condicionada de modo algum. Os crimes semipúblicos têm o
início do procedimento dependente de queixa do ofendido (artigo 49.º, n.º1 CPP), mas
depois podem ser julgados em qualquer forma de processo. Os crimes particulares têm o
processamento condicionado por queixa (artigos 50.º, n.º1 e 246.º, n.º4 CPP), constituição
de assistente (artigo 68.º, n.º2 CPP) e acusação particular (artigo 285.º, n.º1 CPP), mas só não
podem ser processados em processo sumário (não pode haver, neste caso, a detenção em
flagrante delito, que é requisito do processo sumário, nos termos do artigo 255.º, nº.4 CPP).
Em 1998 passaram a poder ser processados em processo sumaríssimo (artigo 392.º, nº.4 CPP)
e também na nova forma de processo especial, o processo abreviado (artigo 391.º-B, n.º3
CPP).
§3.º - As diligências pré ou extra-processuais
A polémica sobre a possibilidade de realização de pré-inquéritos: o CPP de 1987
foi pensado de maneira a não permitir a existência de fases de pré ou extra-processuais, aliás,
como nos diz Figueiredo Dias:
«fases que – bem o mostra a experiência recente com o inquérito dito policial ou preliminar –,
sob a alegação de constituírem coisa privada relativamente ao processo, ou representam um gasto
inútil e tempo e de esforços, ou se tornam particularmente vulneráveis a abusos resultantes de
simples mudanças (ou burlas) de etiquetas».
Mas a evolução recente do Direito Penal e do Direito Processual Penal ditou, entretanto, o
aparecimento de diferentes modalidades de pré-inquérito.
A prevenção criminal: a primeira dificuldade, neste contexto, ocorre com a crescente
importância da prevenção criminal, cujas fronteiras relativamente à investigação criminal não
são fáceis de traçar. Na Europa, pode falar-se de uma autêntica viragem preventiva a partir
dos anos 80 do século passado. Em Portugal, a Lei de Organização da Investigação Criminal
atribuiu aos OPC competência para desenvolverem ações de prevenção e investigação. No
âmbito do combate ao tráfico de drogas são admitidas ações de prevenção a realizar pela
Polícia Judiciária (PJ), Guarda Nacional Republicana (GNR), Polícia de Segurança Pública
(PSP) e Direção Geral das Alfandegas (DGA), havendo inclusive brigadas anticrime da GNR
com competência de prevenção e investigação, devendo as notícias de crime eventualmente
obtidas ser comunicadas imediatamente ao Ministério Público. No domínio do combate ao
branqueamento de capitais, as autoridades de supervisão e fiscalização do setor financeiro
têm poderes para efetuar inspeções nas entidades supervisionadas, devendo informar o
Procurador-Geral da República (PGR) e a Unidade de Informação Financeira dos factos que
indiciem a prática de crimes de branqueamento que porventura tenham descoberto nas
inspeções por si efetuadas. Em tema de ações de prevenção criminal, cabe também referir a
possibilidade de utilização de técnicas especiais de atuação, designadamente as ações
encobertas. Nos termos do Regime Jurídico das Ações Encobertas para Fins de Prevenção
e Investigação Criminal, as mesmas são admissíveis no âmbito da prevenção de um vasto
catálogo de crimes graves, tais como o homicídio voluntário, desde que o agente não seja
conhecido, organizações terroristas, associações criminosas, roubo em instituições bancárias,
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✒ tráfico de droga, branqueamento de capitais e muitos outros crimes. As ações encobertas a
realizar no âmbito da prevenção criminal devem, porém, ser sempre autorizadas pelo juiz do
Tribunal Central de Instrução Criminal, mediante proposta do Magistrado do Ministério
Público junto do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP). A
necessidade de incrementar a operatividade da prevenção penal tem servido de justificação
para a autorização legal destes métodos ocultos de atuação por parte das polícias. Mas há
vozes muito críticas na doutrina. Eis, por exemplo, a de Germano Marques da Silva:
«A pretexto do combate ao terrorismo e à criminalidade violenta ou altamente organizada, as
derrogações ao Direito comum, assim como a adoção de métodos particulares de investigação, e
não só de natureza reativa, mas também preventiva, de que são paradigmáticas as ações
encobertas, tantas vezes na fronteira da provocação, como nos dão conta os frequentes incidentes
nos nossos tribunais, tendem a transformar-se na norma».
Na verdade, o Estado português até já foi condenado pelo Tribunal Europeu dos Direitos
do Homem, por ter usado agentes encobertos para a provocação ao crime. Seja como for, a
própria lei proíbe agora expressamente a provocação ao crime por parte dos agentes
encobertos ou infiltrados, mas autoriza a prática de atos preparatórios ou de execução de
uma infração em qualquer forma de comparticipação diversa da instigação e da autoria
mediata. Sem dúvida que a doutrina terá de contribuir para uma demarcação clara entre a
prevenção e a investigação criminal.
As averiguações preliminares: para além da prevenção criminal, há outras espécies de
pré-averiguações em domínios que já seriam, em princípio, de pura investigação criminal. No
domínio dos crimes contra o mercado de valores mobiliários, a Comissão do Mercado de
Valores Mobiliários (CMVM) tem competência para a realização de averiguações
preliminares, cujas conclusões e documentos associados, caso se traduzam na notícia de um
crime, devem ser remetidas à autoridade judiciária competente, nos termos dos artigos 383.º
e 386.º CVM. Será que a existência de averiguações preliminares, conduzidas por entidades
independentes do Ministério Público, contende com princípios jurídicos constitucionais, já
que a ação penal só pode ser exercida pelo Ministério Público, nos termos do artigo 219.º,
n.º1 CRP? Em princípio, a resposta será negativa. As averiguações preliminares são parte
integrante dos poderes de supervisão da CMVM, na medida em que cabem ainda na função
de acompanhamento dos mercados e de fiscalização do cumprimento das normas de atuação
dos intermediários financeiros e demais participantes do mercado. Naturalmente, a atividade
de supervisão permite muitas vezes a deteção de ilícitos, que tanto podem ser
contraordenações como crimes. Em especial, as averiguações preliminares visam apurar a
possível existência de um crime (artigo 383.º, n.º2 CVM), mas não constituem um inquérito
em processo penal. Desde logo, distinguem-se formalmente do inquérito em processo penal
por serem por uma autoridade administrativa independente e não pelo Ministério Público. À
CMVM compete apenas analisar os elementos recolhidos na sua atividade de supervisão e
verificar se contêm indícios da existência de um crime contra o mercado de valores
mobiliários. No final, o Ministério Público receberá então os autos das averiguações
preliminares concluídas com a obtenção da notícia de crimes, evitando-se assim que sejam
remetidos para investigação criminal elementos inconsistentes e obstando-se a que o cidadão
seja desnecessariamente objeto de um processo criminal à partida votado ao insucesso por
razões técnicas. A questão das averiguações preliminares é, no entanto, muito polémica na
doutrina portuguesa, e não só, na medida em que a sujeição do suspeito a uma investigação
administrativa não lhe permite que beneficie os direitos de defesa reconhecidos ao arguido
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em processo penal, antes podendo deixá-lo exposto a uma maior insegurança jurídica e
podendo ser ameaçado pela possibilidade de abuso por parte da Administração.
§5.º - A tramitação do processo comum
As fases do processo comum: o processo comum é o que tem a tramitação mais
complexa. Tradicionalmente, diz-se que o processo comum obedece a três grandes fases:
1. O inquérito (artigos 262.º e seguintes CPP);
2. A instrução (artigos 286.º e seguintes CPP);
3. O julgamento (artigos 311.º CPP).
O inquérito e o julgamento são as fases obrigatórias do processo comum. Enfim, o
julgamento só é obrigatório se houver acusação ou pronúncia. A instrução é uma fase
facultativa. Alguma doutrina prefere falar em cinco fases do processo comum:
1. A aquisição da notícia do crime (artigos 241.º e seguintes CPP);
2. O inquérito;
3. A instrução;
4. O julgamento; e
5. Os recursos.
Aquisição da notícia de crime: o processo começa com a aquisição da notícia do crime
(artigos 241.º e seguintes CPP). O Ministério Público adquire a notícia do crime por uma das
seguintes três formas (artigo 241.º CPP):
1. Conhecimento próprio;
2. Por intermédio dos Órgão de Polícia Criminal (OPC);
3. Mediante denúncia: a propósito desta denúncia, distingue-se os casos de:
a. Denúncia obrigatória: impende sobre as entidades policiais e, mais
genericamente, sobre todos os funcionários (artigo 242.º CPP);
b. Denúncia facultativa (artigo 244.º CPP).
Adianta-se, desde já, que é admissível a denúncia contra desconhecidos, visto caber
nas finalidades do inquérito a determinação dos agentes da infração (artigo 262.º, n.º1
CPP).
O auto de notícia: o artigo 243.º, n.º1 CPP, dispõe que sempre que uma autoridade
judiciária, um OPC ou outra entidade policial presenciarem qualquer crime de denúncia
obrigatória, levantam ou mandam levantar auto de notícia, descrevendo os factos que
constituem o crime, entre outros aspetos. O auto de notícia não prova o crime, mas prova
os factos materiais dele constantes, enquanto prova bastante (artigo 169.º, ex vi artigo 99.º,
n.º4 CPP).
As medidas cautelares e de polícia: os artigos 248.º a 253.º CPP tratam das medidas
cautelares e de polícia, que podem ser necessárias tanto anteriormente ao processo como
durante o trato sucessivo. Os OPC devem praticar todos os atos cautelares necessários e
urgentes para preservar os meios de prova, mesmo antes de receberem ordem da autoridade
judiciária competente (artigo 249.º, n.º1 CPP). Estes atos de polícia só serão integrados no
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✒ processo mediante validação da autoridade judiciária competente. Os OPC podem ter
necessidade de proceder à identificação de pessoas (artigo 250.º CPP). Os OPC podem
proceder por sua iniciativa a revistas e buscas, em caso de urgência (artigo 251.º CPP).
Também podem proceder a buscas domiciliárias por sua iniciativa aquando de detenção em
flagrante por crime a que corresponda pena de prisão (artigo 174.º, n.º5, alínea c) CPP). Os
OPC podem ordenar a suspensão da remessa de qualquer correspondência nas estações de
correios e de telecomunicações (artigo 252.º, n.º3 CPP).
O inquérito: o inquérito é uma fase de investigação obrigatória na forma de processo
comum.
1. A decisão de abertura do inquérito: a lei dispõe que, ressalvadas as exceções
previstas no CPP (i.e., os casos de procedimento dependente de queixa, não se tendo
esta verificado, ou então os casos de verificação dos pressupostos do processo
sumário, em que o inquérito é substituído por um interrogatório sumário a efetuar
pelo Ministério Público), a notícia de um crime dá sempre lugar à abertura de
inquérito (artigo 262.º, n.º2 CPP). Este normativo contém uma consagração do
princípio da legalidade. O conceito de legalidade aqui utilizado consiste na ideia de
que a atividade do Ministério Público se desenvolve sob o signo da estrita vinculação
à lei, não obedecendo a razões políticas. O fundamento do princípio da legalidade é
a igualdade na aplicação do Direito. Portanto, não cabe ao Ministério Público fazer
considerações de oportunidade. O princípio da oportunidade é geralmente definido
à custa do seu contrário, que é o princípio da legalidade. Não tem definição legal, até
porque, num sistema norteado pelo princípio da legalidade, a oportunidade só pode
surgir com caráter excecional, enquanto expressão de limitações àquele princípio.
Quer isto dizer que o Ministério Público tem de abrir inquérito face a qualquer
denúncia, mesmo a mais inconsistente? Seria um erro dizer que sim. Na verdade, o
Ministério Público tem de avaliar se a denúncia constitui ou não uma notícia de crime,
devendo a seguir decidir, em função disso, se é de abrir ou não inquérito (artigos 58.º,
n.º1, alíneas a) e d), e 246.º, n.º5, alínea a) CPP), não obstante todas as denúncias
ficarem registadas, mesmo as manifestamente infundadas (artigo 247.º, n.º5 CPP).
Essa avaliação não deve, porém, ser confundida com o juízo de oportunidade, a
menos que se tenha do Ministério Público a ideia de que é apenas um robô que regista
denúncias e promove automaticamente inquéritos.
2. O ato de abertura do inquérito: o inquérito inicia-se com um despacho do
Ministério Público a determinar a sua abertura. Este é o primeiro ato do
procedimento e sem ele o processo é nulo, nos termos do artigo 119.º, alínea b) CPP,
por falta de promoção do Ministério Público, que é quem tem legitimidade para
promover o processo penal, nos termos do artigo 48.º CPP. Já se tem entendido que
o ato de abertura do inquérito por parte do Ministério Público pode ser um ato tácito.
Feita a comunicação pelos OPC da notícia de um crime (artigo 248.º, n.º1 CPP), se
o magistrado do Ministério Público competente não avocasse o inquérito seria
considerada delegada a competência para a prática dos atos de inquérito. Só que o
Código não prevê atos tácitos e, portanto, esse entendimento não parece ser de
admitir.
3. O âmbito e a finalidade do inquérito: o âmbito e a finalidade do inquérito vêm
expressos na lei (artigo 262.º, n.º1 CPP). Trata-se de investigar a existência de um
crime, descobrir quem foram os seus agentes e recolher as provas, em ordem à
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decisão sobre a acusação. O inquérito é a fase em que o processo comum adquire o
máximo dramatismo porque pode envolver a perseguição dos próprios agentes do
crime, até para efeito de aplicação de medidas de coação, inclusive a mais grave de
todas que é a prisão preventiva. Implica também a descoberta e conservação das
provas. Estas provas podem ser não apenas relativas ao facto, mas também relativas
à personalidade do agente, nos termos da perícia de personalidade que consta do
artigo 160.º CPP.
4. A direção do inquérito: a direção do inquérito cabe exclusivamente ao Ministério
Público. O Ministério Público é, como se diz, dominus do inquérito (artigos 48.º e
263.º, n.º1 CPP). Por razões de eficácia, o Ministério Público tem de contar na sua
ação com a colaboração dos OPC (artigo 263.º, n.º2 CPP). Em princípio, o Ministério
Público pratica todos os atos de inquérito, salvo os que são da competência do juiz
de instrução ou cabem na cooperação internacional, nos casos em que a Polícia
Judiciária é a recetora do pedido. Mas também cabe na regra geral a possibilidade de
o Ministério Público delegar nos OPC o encargo de procederem a quaisquer
diligências e investigações relativas ao inquérito. Os atos que cabem ao Ministério
Público e não podem ser delegados nos OPC resultam da conjugação dos artigos
267.º e 270.º, nº2 CPP, sem prejuízo de outros atos que a lei expressamente
determinar que sejam presididos ou praticados pelo Ministério Público. Por sua vez,
os atos que podem ser delegados nos OPC constam do artigo 270.º, nº.1 e 3 CPP. A
delegação pode ser efetuada por despacho de natureza genérica que indique os tipos
de crime ou os limites das penas aplicáveis, nos termos do artigo 270.º, n.º4 CPP. A
outra faceta do inquérito é a salvaguarda dos direitos dos cidadãos que estão a ser
investigados. Isto implica que ao nível de certos atos do inquérito tenha de haver
intervenção do juiz de instrução. É exemplo disso o caso de aplicação de medidas de
coação, que são requeridas pelo Ministério Público na fase do inquérito, mas que só
podem ser aplicadas pelo juiz de instrução, nos termos do artigo 194.º, n.º1 CPP.
Muitos outros atos, designadamente os que vêm enunciados nos artigos 268.º e 269.º
CPP, têm de ser ordenados ou autorizados pelo juiz de instrução.
5. Publicidade e segredo de justiça: o inquérito é de natureza inquisitória e, em
princípio, deveria estar coberto pelo segredo de justiça. Mas a revisão de 2007 do
Código, acabou por conduzir à substituição do princípio do segredo por um novo
princípio da publicidade do inquérito (artigo 86.º, n.º1 CPP). Seja como for, o juiz de
instrução pode, mediante requerimento do arguido, do assistente ou do ofendido e
ouvido o Ministério Público, determinar, por despacho irrecorrível, a sujeição do
processo, em fase de inquérito, a segredo de justiça (artigo 86.º, n.º2 CPP). Além de
que o Ministério Público pode, se entender que os interesses da investigação ou os
direitos dos sujeitos processuais o justificam, determinar a aplicação ao processo,
durante a fase de inquérito, do segredo de justiça, ficando essa decisão sujeita a
validação pelo juiz de instrução no prazo máximo de setenta e duas horas (artigo 86.º,
n.º3 CPP). Apesar da estranheza do regime regra da publicidade no inquérito, a
verdade é que o novo regime acabou sendo incorporado de forma pacífica na prática
da investigação criminal. Importa distinguir a questão do segredo de justiça da
questão do acesso ao conteúdo de atos ou documentos que é indispensável para o
exercício de direitos, designadamente do arguido, mesmo que o inquérito se encontre
sujeito a segredo de justiça. Nesta matéria, rege o artigo 89.º, n.º1 CPP.
6. Os prazos do inquérito: os prazos do inquérito vêm previstos no artigo 276.º e
seguintes CPP. São, em regra, de 6 meses, se houver arguidos presos ou sob
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✒ obrigação de permanência na habitação, ou de 8 meses, se os não houver, mas em
situações excecionais ambos os prazos podem ser prorrogados, até um máximo de
12 meses (artigo 276.º, n.º2 CPP) ou de 18 meses (artigo 276.º, n.º3 CPP). É certo
que não advém qualquer efeito para a validade do processo da circunstância de o
Ministério Público não dar por encerrado o inquérito nos correspondentes prazos.
Na verdade, costuma dizer-se que tais prazos são meramente ordenadores. Mas, para
evitar a ultrapassagem dos prazos do inquérito, a revisão do Código de 2007 criou
vários mecanismos, a saber:
a. A obrigação de o magistrado titular do processo comunicar ao superior
hierárquico imediato a violação de qualquer prazo, indicando as
razões do atraso e o período necessário para concluir o inquérito (artigo
276.º, n.º6 CPP);
b. A possibilidade de o superior hierárquico avocar o processo (artigo
276.º, n.º7 CPP); e
c. O fim do segredo de justiça, salvo se o juiz de instrução determinar, a
requerimento do Ministério Público, que o acesso aos autos seja
adiado por um período máximo de 3 meses, o qual poderá ser
prorrogado por uma só vez, em certas circunstâncias (artigo 89.º, n.º6
CPP). Essa prorrogação não pode ir para além da concessão de novo prazo
de 3 meses, embora a lei não o diga assim, mas fale apenas em um prazo
objetivamente indispensável à conclusão da investigação.
O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º5/2010 fixou, porém, a seguinte
jurisprudência:
«O prazo do adiamento do acesso aos autos a que se refere a segunda parte do artigo
89.º, n.º 6, do CPP, é fixado pelo juiz de instrução pelo período de tempo que se
mostrar objetivamente indispensável à conclusão da investigação, sem estar limitado
pelo prazo máximo de três meses, referido na mesma norma».
Não podemos deixar de discordar do sentido desta jurisprudência. Na sequência do
trabalho de monitorização da Reforma Penal de 2007 desenvolvido pelo
Observatório Permanente de Justiça (OPJ), esta viria, de facto, a concluir que:
«Ao estabelecer a conexão entre o tempo do segredo e os prazos de duração máxima
do inquérito e não alterando estes últimos, a lei veio criar constrangimentos à
investigação em alguns processos de criminalidade grave e complexa, podendo levar a
que a mesma seja tornada pública num tempo demasiado curto, inviabilizando assim
o seu sucesso».
Em função disso, a OPJ avançou a proposta de alteração dos prazos de inquérito
para os caso de criminalidade mais grave e complexa:
«O equilíbrio entre direitos dos sujeitos processuais a um processo célere e o dever do
Estado em perseguir e punir aquela criminalidade determina que se recomende a
alteração do prazo de inquérito».
Acolhendo as recomendações, a Lei n.º26/2010, 30 agosto, alterou os prazos de
duração máxima do inquérito para
a. Crimes de catálogo (artigo 276.º, n.º3, alínea a) CPP),
b. Casos em que o procedimento se revelar de excecional complexidade
(artigo 276.º, n.º3, alínea b) CPP)
c. Crimes de catálogo quando o procedimento se revelar de excecional
complexidade (artigo 276.º, n.º2, alínea c) CPP),
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passando de uma duração máxima, respetivamente, de 8, 10 e 12 meses (no regime
anterior) para os atuais 14, 16 e 18 meses, se não houver arguidos presos (artigo 276.º,
n.º3 CPP). Finalmente, o Código mantém ainda a previsão do incidente de aceleração
processual para o caso de terem sido excedidos os prazos (artigo 108.º, 109.º e 276.º,
n.º8 CPP).
7. Nulidades do inquérito: a insuficiência do inquérito, por não terem sido praticados
atos legalmente obrigatórios, é cominada com a nulidade pelo artigo 120.º, n.º2, alínea
f) CPP. Trata-se de nulidade dependente de arguição, que deve ser arguida até ao
encerramento do debate instrutório ou, não havendo instrução, até cinco dias após a
notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito, nos termos do artigo 120.º,
n.º3, alínea c) CPP. Para as formas de processo especiais rege a alínea f).
8. A conclusão do inquérito: o inquérito pode terminar de várias maneiras, a saber:
a. Um despacho de arquivamento do inquérito (artigo 277.º CPP);
b. Um despacho de acusação (artigo 283.º ou 285.º CPP);
c. Um arquivamento em caso de dispensa de pena (artigo 280.º CPP);
d. Uma suspensão provisória do processo (artigo 281.º CPP);
e. O envio do processo para a forma sumaríssima (artigo 392.º e seguintes
CPP);
f. O envio do processo para mediação (Lei n.º 21/2007, 12 junho).
9. O arquivamento do inquérito: o Ministério Público deve decidir-se – na falta de
indícios suficientes para a descoberta da verdade – pelo arquivamento do inquérito,
nos termos do artigo 277.º CPP. Deste arquivamento cabe a possibilidade de
intervenção hierárquica, como prevê o artigo 278.º, n.º1 CPP. O Ministério Público
é uma magistratura hierarquizada. Isto significa que pode haver uma intervenção
hierárquica (Costa Pinto):
«No prazo de 20 dias a contar da data em que a abertura de instrução já não puder
ser requerida, o imediato superior hierárquico do magistrado do Ministério Público
pode determinar que seja formulada acusação ou que as investigações prossigam,
indicando, neste caso, as diligências a efetuar e o prazo para o seu cumprimento».
Com a revisão de 2007, o assistente e o denunciante com a faculdade de se constituir
assistente passaram expressamente a poder requerer a intervenção hierárquica.
Passado o prazo de 40 dias em que poderia haver intervenção hierárquica (artigo
278.º, n.º1 CPP), que integra já o prazo de 20 dias contados desde a notificação do
despacho de arquivamento ao assistente ou ao denunciante com faculdade de se
constituir assistente, em que poderia ter havido requerimento para abertura da
instrução por parte do assistente (artigo 287.º, n.º1, alínea b) CPP), a possibilidade de
reabertura do inquérito só existe nos termos do artigo 279.º CPP: ou seja, quando
houver novos elementos de prova, sob pena de violação do princípio ne bis in idem.
Atualmente, o conceito de arquivamento (artigo 277.º CP) inclui também os casos
em que, no Direito anterior, o processo ficava a aguardar a produção de melhor prova.
Aliás, atendendo agora no teor do artigo 279.º, n.º1 CPP, pode mesmo dizer-se que
o requerimento passa agora, todo ele, a ser um arquivamento à espera de melhor
prova, pois que, com base numa mera interpretação declarativa do preceito agora
mesmo citado, o inquérito só pode (leia-se: pode sempre) ser reaberto se surgirem
novos elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo Ministério
Público no despacho de arquivamento. Quer isto dizer que, mesmo naqueles casos
em que o Ministério Público tenha porventura concluído que não houve crime ou
que não foi o arguido a praticá-lo (artigo 277.º, n.º1 CPP), o inquérito poderia, à
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✒ primeira vista, ser reaberto com novos elementos de prova. Em função do cenário
legal vigente, cremos, infelizmente, que se tornou mais difícil de defender a antiga
doutrina que via no arquivamento negador da responsabilidade do arguido (mutatis
mutandis, atual artigo 277.º, n.º1 CPP) um arquivamento definitivo (obviamente, se
não tiver sido revogado pelo superior hierárquico). Há de convir-se, porém, que não
se pode aceitar agora que o arguido seja, sem mais, laçado num limbo de indefinições,
suportando as contínuas ameaças contra a sua liberdade e a sua segurança à conta da
inatacável possibilidade de reabertura do inquérito, oficiosamente ou a requerimento.
Seguramente, não lhe pode ser vedada a possibilidade de requerer diligências idóneas
a pôr cobro à indefinição da sua situação. Cabe perguntar: quais diligências? Não se
vê que tais diligências possam ser coisa diversa de um requerimento para abertura da
instrução, com vista à obtenção de um despacho de não pronúncia, o qual tem o
caráter de ato jurisdicional e, por isso mesmo, deve ter a força de caso julgado (artigo
308.º, n.º1, in fine CPP), pese embora nunca surja no atual Código qualquer alusão
ao caso julgado. Só podemos, pois, ficar surpreendidos quando, afinal, verificamos
que o legislador limita as hipóteses de requerimento do arguido para abertura da
instrução aos casos em que tenha sido contra ele deduzida acusação pelo Ministério
Público (ou pelo assistente, em caso de procedimento dependente de acusação
particular), nos termos do artigo 287.º, n.º1, alínea a) CPC. Tais limites legais ao
requerimento do arguido para abertura da instrução padecem de
inconstitucionalidade material, por violação das garantias de processo criminal (artigo
32.º CRP), seja porque não pode ser vedado ao arguido o direito ao recurso, quando
haja nisso um legítimo interesse (como é sabido, o requerimento para abertura da
instrução é, materialmente, um recurso), seja porque ele tem o direito a ser julgado
(o direito à definição da sua situação) no mais curto prazo compatível com as
garantias de defesa.
10. O despacho de acusação: nos termos do artigo 283.º, n.º1 CPP, quando o
Ministério Público tiver recolhido indícios suficientes de que foi cometido crime e
tiver identificado os seus agentes, deduz acusação. Como se esclarece no artigo 283.º,
n.º2 CPP,
«Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade
razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena
ou uma medida de segurança».
O critério para o Ministério Público deduzir acusação, segundo cremos, deve apontar
para um juízo categórico e não dubitativo. No entender de Castanheira Neves, numa
formulação particularmente feliz, esse juízo revela
«a mesma exigência de prova e de convicção probatória, a mesma exigência de verdade,
requerida pelo julgamento final»,
apenas com a diferença de que o material probatório recolhido pelo Ministério
Público na fase do inquérito não é, por definição, tão completo quanto as provas
disponíveis no momento do julgamento, nem foi sujeito, ainda, a contraditório. Por
conseguinte, o Ministério Público tem de ficar convencido da culpa do arguido com
um grau de convicção próximo da certeza, ainda que qualificada como elevado grau
de probabilidade, que é a certeza possível para as necessidades da vida. O elevado
grau de probabilidade como critério normativo para afirmação da suficiência dos
indícios é uma exigência do próprio princípio da presunção de inocência. Se o
Ministério Público não lograr atingir essa convicção, então deve arquivar o inquérito.
Na verdade, a possibilidade razoável refere-se sobre a possibilidade de futura
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condenação em julgamento. Ou seja, o Ministério Público ainda terá de se convencer
de que, se houver julgamento, o arguido será condenado. Trata-se, pois, de uma
prognose da condenação. Ora, o Ministério Público pode ter mobilizado todos os
meios de obtenção de provas possíveis e não ter logrado juntar elementos que
garantam uma condenação em juízo. O melhor exemplo é o das declarações
confessórias do arguido em fase de inquérito. Só a confissão do arguido em
julgamento pode dispensar a produção de prova relativa aos factos imputados (artigo
344.º, n.º2, alínea a) CPP) e as declarações confessórias do arguido no inquérito
poderão não se repetir na audiência de julgamento, sendo até o mais provável que
uma defesa técnica aconselhe o exercício do direito ao silêncio. Não pode, pois, o
Ministério Público proferir despacho de acusação com base apenas nas declarações
confessórias, não obstante poder estar absolutamente convencido da culpa do
arguido. A exigência de uma possibilidade razoável de vir a ser aplicada, por força das
provas recolhidas, uma pena ou uma medida de segurança ao arguido impõe, pois,
ao Ministério Público que faça um cuidadoso escrutínio da consistência dos meios
de prova que conseguiu juntar, só podendo e devendo acusar de for mais provável a
futura condenação do arguido que a possibilidade da sua absolvição, como sucederia,
de resto, se o despacho de acusação se baseasse apenas nas declarações confessórias.
a. O Ministério Público pode acusar nos crimes públicos e, nos crimes semi-
públicos, a única diferença reside na circunstância de o impulso processual
inicial depender da apresentação da queixa, enquanto condição de
procedibilidade, mas nesta fase isso já não interessa, a menos que o queixoso
desista da queixa (artigo 116.º, n.º2 CP).
b. Os crimes particulares têm um regime especial. Nestes, é também
necessária a queixa e, juntamente com esta, a declaração da vítima de que se
pretende constituir como assistente (artigo 246.º, n.º4 CPP), tendo de se
constituir efetivamente como tal antes do final do inquérito para que não haja
arquivamento, mais exatamente no prazo de 10 dias a contar daquela
declaração (artigo 68.º, n.º2 CPP). Nos termos do artigo 285.º, n.º1 CPP,
«findo o inquérito, […] o Ministério Público notifica o assistente para que
este deduza em 10 dias, querendo, acusação particular».
De notar que, apesar de ser um crime particular, foi o Ministério Público que
dirigiu o inquérito. Se houver acusação particular, nos termos do artigo 285.º,
n.º4 CPP:
«o Ministério Público pode, nos cinco dias posteriores à apresentação da
acusação particular, acusar pelos mesmos factos, por parte deles ou por outros
que não importem uma alteração substancial daqueles».
O Ministério Público pode, o que não significa que deva. O processo
continua e nas fases subsequentes o Ministério Público, que só está
comprometido com a descoberta da verdade, pode indevidamente estar
contra a versão da acusação particular. À primeira vista, o despacho de
acusação do Ministério Público aparece como alternativa ao despacho de
arquivamento, mas é uma ilusão. Na verdade, o Ministério Público, mesmo
que já tenha reunido indícios suficientes de que foi cometido crime e tenha
identificado os seus agentes, ainda não pode acusar. No sistema do CPP, o
despacho de acusação é subsidiário das chamadas medidas de diversão
processual.
Paulo de Sousa Mendes
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✒ 11. Âmbito do princípio da oportunidade: o conceito de bagatelas penais não é
legalmente reconhecido, ma sé amplamente utilizado na doutrina para referir um
fenómeno que emergiu no domínio das infrações contra o património e a economia
sobretudo a partir do final da Segunda Guerra Mundial. As bagatelas penais exercem
uma tremenda pressão sobre o sistema de administração da justiça, além de que
acarretam o dilema da falta de proporção da pena relativamente à infração quando a
lei é aplicada ou da desvalorização social do Direito Penal quando falha essa aplicação
efetiva. As bagatelas penais causam enormes prejuízos sociais globais e não podem, por
conseguinte, ser desprezadas. Mas a plena aplicação da lei penal implicaria a rutura
do sistema de administração da justiça. Há várias soluções para os problemas postos
pelas ditas bagatelas penais mas só interessam agora as que passam pelo Direito
Processual Penal. As soluções de Direito Processual Penal também são várias,
cabendo distinguir as que respeitam o princípio da legalidade na íntegra e as que, em
vez disso, homenageiam o princípio contrário da oportunidade. No nossos sistema
processual penal temos uma dominância do princípio da legalidade, mas temperada
por algumas expressões de oportunidade. As soluções de processo penal orientadas
pelo princípio da oportunidade passam pelas busca do consenso, informalidade,
eficácia, celeridade, falta de publicidade, diversão e ressocialização. O CPP de 1987
consagrou várias expressões de oportunidade. Tanto o arquivamento em caso de
dispensa de pena (artigo 280.º CPP) e a suspensão provisória do processos (artigo
281.º CPP) como o processo sumaríssimo (artigo 392.º e seguintes CPP) rendem
homenagem à nova atitude inspirada na ideia de diversão do processo, provinda do
legado científico do interacionismo simbólico (labelling approach), de molde a poupar
o arguido à cerimónia degradante da audiência de julgamento, amplificadora das
sequelas da estigmatização. Também rendem homenagem à ideia de consenso. No
processo penal, há um espaço de conflito associado à criminalidade grave: o crime
relativamente à vítima e à sociedade. Importante é que o consenso, mormente
quando for baseado num consentimento do arguido para a obtenção dos mesmos
efeitos de lesão da sua esfera de direitos fundamentais constitucionalmente
garantidos que seriam obtidos através do modelo de conflito, seja atingido através do
respeito pela sua autonomia ética. Quer dizer: o acordo não lhe pode ser extorquido.
No espaço do consenso visa-se acentuar a ideia de ressocialização do delinquente
com a sua participação. Quer dizer: a sua disponibilidade para aceitar uma decisão
sugerida pelas instâncias formais de controlo social.
a. O arquivamento em caso de dispensa de pena: o arquivamento em caso
de dispensa de pena (artigo 280.º CPP) é um mecanismo alternativo à
acusação, que permite a conclusão pura e simples do processo penal nos
casos em que poderia ter lugar a dispensa de pena. São pressupostos do
arquivamento em caso de dispensa de pena, a determinar pelo Ministério
Público no caso concreto:
i. Haver indícios suficientes da prática de um crime público ou semipúblico;
ii. Haver possibilidade legal da dispensa de pena se o procedimento chegar à fase de
julgamento (artigos 35.º, n.º2, 74.º, 143.º, n.º3, 148.º, n.º2, 186.º, 250.º,
n.º3, 286.º, 294.º, n.º3, 364.º, 374.º-B, n.º1 CP).
É requisito do arquivamento em caso de dispensa de pena que o Ministério
Público obtenha a concordância do juiz de instrução. O artigo 280.º, n.º1
CPP, não se aplica aos crimes particulares, uma vez que o titular do direito
de acusação é o assistente e a lei não lhe reconhece a faculdade de determinar
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o arquivamento, não podendo, neste caso, o Ministério Público determinar o
arquivamento.
b. A suspensão provisória do processo: a suspensão provisória do processo
é um arquivamento contra injunções e regras de conduta. É pressuposto da
suspensão provisória do processo que o crime seja de pequena ou média
gravidade. Conforme o artigo 281.º, n.º1 CPP, é preciso que o crime seja
punível com pena de prisão máxima não superior a cinco anos, em termos
de medida legal da pena, ou com sanção diferente da prisão. São requisitos
da suspensão provisoria do processo, a determinar pelo Ministério Público
no caso concreto:
i. Que haja concordância do juiz de instrução: a concordância do juiz de
instrução com o Ministério Público não se situa no mesmo plano do
requisito da alínea a) do n.º1 do artigo 281.º CPP, que exige ainda a
concordância do arguido e do assistente. A concordância do juiz de
instrução com o pedido do Ministério Público empresta um caráter
jurisdicional à solução de consenso.
ii. Que haja concordância do arguido e do assistente: a é a manifestação do
próprio consenso entre o arguido e a vítima. Repare-se ainda que na
alínea a) se diz assistente. Donde, é preciso que o ofendido se tenha
constituído como tal. A lei dispensa, pois, a concordância do
ofendido quando não se tiver constituído como assistente. No
entanto, a prática tem demonstrado que o Ministério Público, quando
propõe esta medida, geralmente tem o cuidado de se munir da
concordância do ofendido mesmo nos casos em que este não se
constituiu como assistente.
iii. Que não tenha havido condenação anterior por crime da mesma natureza ou
aplicação anterior de suspensão provisória de processo por crime da mesma
natureza: antes da revisão de 2007 do CPP, exigia-se a ausência de
antecedentes criminais do arguido. Dizia-se que, se o que se visava
era fugir ao processo de estigmatização operado pelas próprias
instâncias formais de controlo social, então pouco sentido teria
aplicar uma medida de diversão a alguém que já tinha entrado no
vórtice desse processo de seleção. Simplesmente, a prática
demonstrou que uma das principais razões para a fraca aplicação
deste instituto se ficara a dever precisamente a esta exigência de falta
de antecedentes criminais. A solução foi substituir a exigência de falta
de antecedentes criminais por ausência de condenação anterior por
crime da mesma natureza (artigo 281.º, n.º1, alínea b) CPP) ou de
aplicação anterior da suspensão provisória de processo por crime da
mesma natureza (artigo 281.º, n.º1, alínea c) CPP).
iv. Que não haja lugar a medida de segurança de internamento: compreende-se
porque esta medida obedece a critérios de mera defesa social e não a
critérios de ressocialização;
v. Que a culpa não tenha um grau elevado: antes de 2007, exigia-se que a culpa
tivesse caráter diminuto, mas agora basta que não tenha um grau
elevado;
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✒ vi. Que não fiquem prejudicados os fins da prevenção geral: explica-se na medida
em que a prevenção geral é uma das finalidades da pena criminal,
senão a principal.
Tais são os requisitos para que a suspensão provisória do processo possa ter
lugar. Uma vez verificados no caso concreto, são oponíveis ao arguido uma
série de injunções ou regras de conduta. Já tem sido contestada a
constitucionalidade material da suspensão provisória do processo. O
principal argumento passa por referir que as injunções ou regras de conduta
previstas no artigo 281.º, n.º2 CPP, são autênticas penas, em sentido material.
Por vezes, algumas destas injunções ou regras ede conduta têm efeitos mais
perniciosos para o arguido do que a própria aplicação de uma pena. Assim, a
inconstitucionalidade material resultaria do facto de ser o Ministério Público
a aplicar penas, sem julgamento. Não cremos, porém, que o argumento seja
válido se as injunções oponíveis ao arguido respeitarem a sua liberdade. Há
quem contraponha, ato contínuo, que o arguido não tem liberdade de escolha,
pois a alternativa é o prosseguimento do processo com todas as desvantagens
que isso lhe acarretaria, inclusivamente a possibilidade da condenação. Só que
este argumento prova muito pouco, uma vez que, se porventura se concluísse
que a medida de diversão era inconstitucional, a alternativa era nenhuma, era
o julgamento e a eventual condenação. Aqueles que, como base num
argumento de respeito pela autonomia ética do arguido, atacam a
constitucionalidade material das medidas de diversão nada mais oferecem
como alternativa do que o recurso ás tradicionais medidas de resolução do
conflito, impedindo o processo penal de integrar quaisquer soluções de
consenso para a pequena e média criminalidade. Será interessante
percebermos a aplicação na prática. De início, notava-se que havia um grave
défice de aplicação e dizia-se que as magistraturas não estavam habituadas às
medidas de diversão processual. Mas a dificuldade de aplicação do instituto
talvez fosse a principal razão para o Ministério Público continuar a preferir
os procedimentos tradicionais. Senão, vejamos: se for decretada uma
suspensão provisória do processo, terá de haver, na maior parte das vezes,
algum tipo de monitorização para saber se o arguido está ou não a cumprir
as injunções ou regras de conduta que lhe foram impostas. Na maior parte
dos casos, o controlo acaba por não ser feito. Não se estranha, pois, que a
injunção mais frequentemente aplicada seja a de entregar ao Estado ou a
instituições privadas de solidariedade social certa quantia, nos termos do
artigo 281.º, n.º2, alínea c) CPC. Como disso se faz prova documentalmente
e o documento comprovativo é entregue ao Ministério Público, é, portanto,
fácil de fazer o controlo. Mas se for uma injunção ou regra de conduta de
realização continuada, então provavelmente não restará outra hipótese, nos
termos do n.º4 do mesmo artigo, a não ser entregar o controlo aos serviços
de reinserção social, a órgãos de polícia criminal e às autoridades
administrativas. A aplicação de injunções ou regras de conduta é, assim,
muito mais complexa do que lavrar um despacho de acusação, precisamente
pela necessidade de controlo. Após a revisão de 2007, o CPP impõe, exceto
nos crimes em que a medida legal da pena não o admita, que o Ministério
Público privilegie uma solução de consenso, em vez de uma solução de
conflito. As alterações clarificam a obrigatoriedade da sua aplicação quando
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verificados os respetivos pressupostos e requisitos. Com efeito, o atual corpo
do n.º1 do artigo 281.º CPC diz expressamente que o Ministério Público
determina a suspensão do processo. A Lei Quadro da Política Criminal (Lei
n.º17/2006, 23 maio) previu, no seu artigo 6.º, que as orientações de política
criminal pudessem compreender a indicação de tipos de crimes ou de
fenómenos criminais em relação aos quais se justifique especialmente a
suspensão provisória do processo, mas também dos outros institutos de
diversão processual.
c. O envio do processo para a forma sumaríssima: o uso da forma de
processo sumaríssimo deverá ter lugar quando não for possível suspender
provisoriamente o processo, sendo que esta suspensão se aplicará só se não
for possível o arquivamento em caso de dispensa de pena. No sistema do
CPP, o processo sumaríssimo é considerado uma forma de processo especial.
Portanto, o ponto será tratado quando estudarmos os processos especiais.
d. O envio do processo para mediação: fenómeno diferente é a diversão por
meio de mediação. Em Portugal, a mediação penal foi criada através da Lei
n.º 21/2007, 12 junho. O mais comum é o sistema integrado, em que a
mediação funciona como uma alternativa ao procedimento criminal, que
cessa em caso de acordo. Nestes termos, a regulação da mediação e dos seus
procedimentos cabe ao Estado e é definida por lei, tendo por objetivo
garantir um sistema uniformizado. Neste modelo, o encaminhamento dos
processos para a mediação é maioritariamente da responsabilidade dos
magistrados do Ministério Público. A mediação penal é uma manifestação da
ideia de justiça restaurativa.
A instrução: do despacho de acusação ou de arquivamento do inquérito não cabe recurso.
Materialmente, o recurso é substituído pela possibilidade de passagem à fase de instrução
(artigo 286.º e seguintes CPP). No fundo, as funções que caberiam a um recurso são, neste
caso, cumpridas com um requerimento para abertura da instrução (RAI) por parte do arguido
ou do assistente, conforme os casos. A fase de instrução é, pois, uma fase facultativa. A
instrução serve para apreciar a bondade da decisão do Ministério Público de acusar ou de
arquivar o processo ou, no caso dos crimes particulares, a bondade da acusação particular. A
instrução pode servir, a título complementar, para reformular o próprio objeto do processo.
O princípio da acusação estipula não só que deve haver separação entre a entidade que acusa
e aquela que julga, mas também que deve haver fixação da matéria que é submetida a
julgamento por uma entidade diferente daquela que julga. Na verdade, se a entidade que julga
pudesse adicionar novos factos ao objeto do processo, ela mesma estaria a assumir, assim,
funções de acusação. No processo penal, tem de haver fixação do objeto do processo, de tal
maneira que, quando se chega à fase do julgamento, o objeto do processo é aquele e não
outro. O que, além do mais, também cumpre uma função de garantia dos direitos de defesa
do arguido, pois só assim ele sabe de que factos é que terá de se defender- Tendencialmente,
o objeto do processo fixa-se no final do inquérito, com a acusação. A matéria que é objeto
de investigação por parte do Ministério Público, quando este abre inquérito, é ainda fluída.
Aquilo que vai constituir o objeto do processo será o resultado da delimitação da matéria em
bruto que exista no início da investigação e que se fixará com a acusação. Mas o objeto do
processo pode ainda vir a ser alargado através do RAI do assistente, como veremos.
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✒ 1. O requerimento para abertura da instrução do arguido: o arguido pode requerer
a abertura da instrução, nos termos do artigo 287,º, n.º1, alínea a) CPP:
«relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de
procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação».
Ou seja, o arguido pode suscitar o controlo jurisdicional da acusação do Ministério
Público (ou do assistente). E não se deve, de maneira alguma, impor limites a esta
faculdade de abertura da instrução, sob pena de se violar o preceito constitucional
que diz que a instrução visa a garantia dos direitos de defesa. No entanto, a alínea a)
parece circunscrever o RAI do arguido à discussão dos factos. A análise do n.º2 não
contraria esta impressão, pois diz que o requerimento deve conter uma súmula das
razões de facto e de Direito. Este e parece significar que o arguido não pode requerer
instrução somente para discutir a matéria de Direito. Mas há argumentos importantes
a justificar que o arguido deva poder requerer a abertura de instrução só para discutir
questões de Direito:
a. Pensando na desejável igualdade de armas entre o arguido e o
assistente, verificamos que o assistente tem sempre oportunidade de
discutir, se quiser, só questões de Direito, na medida em que, aderindo
à acusação do Ministério Público, pode relativamente aos factos
constantes da mesma proceder a qualificações jurídicas diversas, o que
já não teria nada de paralelo na situação do arguido se lhe negássemos o
direito a requerer a abertura de instrução só para discutir questões de Direito;
b. Pensando no despacho de acusação do Ministério Público,
poderíamos fazer um raciocínio nestes termos: a regra é que cabe
recurso de todos os despachos cuja irrecorribilidade não estiver
prevista na lei (artigo 399.º CPP). É verdade que não há recurso do
despacho de acusação, mas isso só acontece porque o recurso é,
materialmente, o acesso à fase de instrução. Mas então estar-se-ia a impedir
o respetivo RAI só para discutir razões de Direito, apesar de uma distinta
qualificação jurídica dos factos poder acarretar consequências importantes
para o arguido em fase de julgamento.
Em tese geral, vemos assim que há todas as vantagens em considerar que o arguido
deveria poder requerer a abertura da instrução só para discutir a matéria de Direito.
Resta saber se a lei o permite ou não. Em última análise, o artigo 287.º CPP não veda
a possibilidade de o arguido discutir apenas razões de Direito. Senão vejamos, a alínea
a) do n.º1 só menciona, é verdade, a possibilidade de abertura da instrução
relativamente a factos, mas não é só a questão probatória que se relaciona com os
factos, é também a questão da qualificação jurídica. De resto, o arguido pode indicar,
no respetivo RAI, quais as diligências de tipo probatório que entende que o juiz de
instrução deverá levar a cabo, mas nada o obriga a solicitar tais diligências. Pode
limitar-se a atacar os factos ou, simplesmente, limitar-se a atacar as qualificações
jurídicas da acusação.
2. O requerimento para abertura da instrução do assistente: o assistente pode
requerer a abertura da instrução, se o procedimento criminal não depender de
acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver
deduzido acusação, nos termos da alínea b) do n.º1 do artigo 287.º CPP. Isto significa
que, se tiver havido arquivamento do inquérito, o assistente pode requerer abertura
da instrução. Mas há ainda outras situações em que o assistente pode fazê-lo. Mesmo
quando há ainda outras situações em que o assistente pode requerer abertura da
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instrução por entender que havia factos pelos quais o Ministério Público não acusou
e devia ter acusado. Podem ser factos diversos daqueles que constam da acusação.
Daí que a instrução possa servir para reformular o objeto do processo. Se o assistente
requerer a abertura da instrução relativamente a factos que não constam da acusação
do Ministério Público, embora tenha havido acusação, o juiz de instrução terá de
debruçar-se sobre os factos que constam da acusação do Ministério Público e sobre
os factos que constam do RAI do assistente, podendo assim, no final da instrução,
proferir um despacho de pronúncia que incida sobre todos estes factos, o que
constituirá um objeto mais vasto do que aquele que constava já da acusação do
Ministério Público. As situações em que o assistente pode requerer abertura da
instrução são, portanto, mais complexas do que aquelas em que a mesma pode ser
requerida pelo arguido. Outro problema refere-se à questão de saber se o assistente
pode requerer a abertura da instrução apenas relativamente a factos ou também
relativamente, e só, a questões de Direito. Por outras palavras, se o assistente poderá
requerer a abertura da instrução só com base numa discordância acerca da
qualificação jurídica dos factos feita pelo Ministério Público na acusação. A
generalidade da doutrina entende que não, aliás com toda a razão. Isto porque, se os
factos forem os mesmos, o assistente terá sempre a faculdade de acusar também, nos
termos do artigo 284.º CPP. A circunstância de existir uma acusação pública não
impede que haja também uma acusação pelo assistente. Estamos a falar, é claro, da
acusação por crimes públicos e semipúblicos, e não por crimes particulares, a
propósito dos quais rege o artigo 285.º CPP. Se os factos forem uns e o assistente
não concordar com a qualificação jurídica feita pelo Ministério Público, então di-lo-
á na sua própria acusação. Não se vê, porém, qual seria o interesse de o assistente
requerer abertura da instrução com base em discordâncias sobre a qualificação
jurídica feita pelo Ministério Público, por isso mesmo que já tem o mecanismo da
acusação subordinada ao seu alcance. De resto, um mecanismo de que o arguido
analogicamente não dispõe. Por isso, se entende que o RAI do assistente só deve
poder existir relativamente a factos. Enfim, relativamente a factos que constituam
uma alteração substancial do objeto do processo, já não quanto a factos novos que
constituam uma alteração não substancial.
3. Da instrução em geral: na fase de instrução só podem intervir os sujeitos
processuais, a saber:
a. O tribunal;
b. O Ministério Público;
c. O arguido e o seu defensor;
d. O assistente.
A intervenção das partes civis, que são os lesados que têm direito a uma
indemnização, está excluída pela própria lei, nos termos do artigo 289.º, n.º1 CPP. A
instrução, ao contrário do inquérito, obedece ao princípio do contraditório. Implica
sempre a realização de um debate oral e contraditório, nos termos do mesmo
normativo. O segredo de justiça abrangia, antes da revisão de 2007, a instrução, nos
termos da antiga redação do artigo 86.º, n.º1 CPP. Agora, o processo penal é, em
princípio, público, nos termos da atual redação do artigo 86.º, n.º1 CPP:
«o processo penal é, sob pena de nulidade, público, ressalvadas as exceções previstas
na lei».
Seja como for, a sujeição do processo a segredo de justiça nunca pode abranger mais
do que a fase de inquérito, nos termos do n.º2. A publicidade da instrução não
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✒ significa, porém, que todos os atos processuais na fase de instrução sejam abertos ao
público em geral. A Lei n.º26/2010, 20 agosto, restringiu o direito de assistência
apenas à realização do debate instrutório, nos termos do artigo 86.º, n.º6, alínea a)
CPP. Os prazos de duração máxima da instrução constam do artigo 306.º, n.º1 CPP:
«O juiz encerra a instrução nos prazos máximos de dois meses, se houver arguidos
presos ou sob obrigação de permanência na habitação, ou de quatro meses, se não os
houver».
O prazo de dois meses pode ser elevado para três nos casos do n.º2.
4. O encerramento da instrução: no fim da instrução, a decisão instrutória pode ser,
em princípio, uma de duas (artigo 307.º, n.º1 CPP):
a. O juiz de instrução termina a instrução com um despacho de
pronúncia: havendo este despacho, nem sempre cabe recurso do mesmo.
Temos de distinguir duas situações:
i. Um despacho de pronúncia ser nulo: nos termos do artigo 309.º, n.º1 CPP
«A decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o
arguido pelos factos que constituam alteração substancial dos
descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou
no requerimento para abertura da instrução».
Quando o juiz de instrução lavra um despacho de pronúncia em que
inclui factos que constituem uma alteração substancial do objeto do
processo, esse despacho é nulo. Esta nulidade é sanável, como consta
do n.º2, porque tem de ser arguida no prazo de oito dias contados da
data da notificação da decisão. O despacho de pronúncia nulo não é
recorrível, é antes reclamável. A reclamação é para a própria entidade
que proferiu a decisão. A entidade que proferiu o despacho pode
deferir ou indeferir a reclamação. Se tivermos um despacho de
indeferimento da reclamação da nulidade, este sim, é um despacho
recorrível, com base no artigo 310.º, n.º3 CPP. Este normativo,
sistematicamente, faria mais sentido como n.º3 do artigo 309.º CPP.
Acresce que talvez nem sequer fosse necessário de todo. Na verdade,
não é mais do que uma instanciação da regra geral do artigo 399.º
CPP, onde se diz, a propósito dos recursos, que
«É permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos,
cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei».
Diz-se, nos termos do artigo 310.º, n.º3 CPP que
«É recorrível o despacho que indeferir a arguição da nulidade
cominada no artigo anterior».
O despacho aqui mencionado não é já o despacho de pronúncia nulo,
mas sim o despacho de indeferimento da reclamação da nulidade do
despacho de pronúncia nulo.
ii. Um despacho de pronúncia ser válido: é válido o despacho que pronunciar
o arguido por factos que constem do objeto do processo. Ou seja,
em que não há pronúncia por factos que constituam uma alteração
substancial. Mais concretamente, é válido o despacho de pronúncia
que incidir:
1. Sobre factos constantes da acusação do Ministério Público;
2. Sobre factos constantes da acusação particular (nos crimes particulares);
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3. Sobre factos constantes do RAI do assistente e que não constem da
acusação do Ministério Público;
4. Sobre factos que constituem alteração do objeto do processo, mas que não
constituem uma alteração substancial.
São, por conseguinte, quatro hipóteses em que o despacho de
pronúncia do juiz de instrução é válido. Ora, o artigo 310.º, n.º1 CPP,
contém uma regra excecional relativamente à regra geral do artigo
399.º CPP. A lei determina que o despacho não é recorrível, se a
pronúncia incidir sobre factos constantes da acusação do Ministério
Público (a chamada dupla conforme, por referência às duas decisões
coincidentes de duas autoridades judiciárias diferentes). Mas este é
apenas um dos quatros casos possíveis de despacho de pronúncia
válido. O despacho de pronúncia válido é, portanto, recorrível
quando incidir sobre factos que não constam da acusação do
Ministério Público. O artigo 310.º, n.º1 CPP é uma regra excecional,
que admite interpretação enunciativa a contrario: fora do caso previsto
no artigo 310.º, n.º1 CPP, o despacho de pronúncia válido e recorrível.
De resto, é a regra geral do artigo 399.º CPP. A revisão de 2007 do
CPP tornou irrecorrível a pronúncia conforme com a acusação do
Ministério Público (artigo 310.º, n.º1 CPP)
«mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões
prévias ou incidentes».
O despacho de não pronúncia é recorrível nos termos gerais do artigo 399.º
CPP.
b. O juiz de instrução termina-a com um despacho de não pronúncia.
5. A crise da instrução: tem ganho expressão a ideia de que a instrução deverá ser
eliminada, o que só seria possível, porém, se fosse revisto o texto do artigo 32.º, n.º4
CRP. Figueiredo Dias é o principal mentor desta ideia:
«continuo, todavia, a prever o dia em que a instrução terá eliminada como fase
processual; e tanto mais quando, como agora, já a fase de inquérito se tornou pública
e, consequentemente, contraditória. Uma tal eliminação será consequência, por uma
parte, de o modelo preconizado pelo CPP para esta fase – como simples comprovação
por um juiz de instrução da decisão do Ministério Público de deduzir acusação ou de
arquivar o inquérito – não ter podido ser até hoje cumprido pela praxis; antes ter sido
frequentemente desvirtuado em direção a um simulacro de julgamento, antecipado e
provisório, inadmissível à luz dos princípios gerais e de um mínimo de eficiência,
jurídica e socialmente exigível, do processo penal».
No pensamento de Figueiredo Dias, a instrução deveria ser substituída, à maneira
alemã, por uma simples decisão do tribunal de julgamento de abrir a audiência ou
ordenar o arquivamento ou, à maneira norte-americana, por uma espécie de audiência
preliminar, tendo o autor citado manifestado, desde sempre, a sua preferência por
esta última solução. Não importa discutir se a fase de instrução é uma singularidade
do sistema processual penal português, ademais nascida das nossas vicissitudes
histórico-constitucionais, ou se, pelo contrário, colheu inspiração em qualquer
ordenamento processual penal estrangeiro. Nada disso justificaria que a instrução
fosse eliminada, nem substituída por um mero debate instrutório. Tudo se resume a
saber se a instrução cumpre ou não, insubstituíveis funções de garantia dos direitos
dos diversos sujeitos processuais, mormente do arguido. A instrução é indispensável
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✒ para o arguido poder requerer a realização de diligências de prova. Se a instrução
fosse transformada num mero debate instrutório, então seria um adereço processual
inútil, pois transformar-se-ia num simulacro da audiência de julgamento, quando o
que verdadeiramente interessa ao arguido é a possibilidade de colmatar uma
investigação deficiente através da realização de específicas diligências probatórias que
poderiam e deveriam ter sido realizadas. Cabe aqui lembrar que já existiu uma fase
de mero debate instrutório na forma de processo abreviado, o qual foi eliminado na
revisão de 2007 do CPP precisamente por se considerar que os 30 dias que a lei
concedia para o encerramento do debate instrutório não eram compatíveis com a
realização de quaisquer diligências de prova, o que, por conseguinte, tornava o debate
instrutório inútil. A instrução é também indispensável para o assistente poder
requerer o alagamento do objeto do processo, de modo a integrar factos que
constituam uma alteração substancial relativamente aos que constam da acusação
pública, ou até requerer a própria criação desse objeto, nos casos em que constituam
uma alteração substancial relativamente aos que constam da acusação pública, ou até
requerer a própria criação desse objeto, nos casos em que tenha havido arquivamento
do inquérito. Não vale o argumento de que a instrução poderá ser desviada, por parte
do arguido, para finalidades meramente dilatórias, pois o juiz de instrução tem o
poder-dever de impedir quaisquer expedientes dilatórios. Na verdade, o juiz de
instrução pode recusar a realização de diligências inúteis e a sua recusa é – desde a
revisão de 1998 do CPP – insindicável por via de recurso (artigo 291.º, n.º2 CPP). É
verdade que, na prática, a instrução pode ultrapassar os prazos legais, meramente
ordenadores, mas isso só acontecerá em processos penais de elevada complexidade.
Por via de regra, a fase de instrução não é foco de atrasos processuais, não se
justificando, por isso mesmo, centrar a reflexão sobre uma eventual necessidade de
reforma do processo penal português nesta questão.
O julgamento: a fase de julgamento subdivide-se em três momentos essenciais:
1. Os atos preliminares: o primeiro dos atos preliminares é o saneamento do processo,
previsto no artigo 311.º CPP.
a. Saneamento do processo: a verificação pelo juiz presidente das nulidades e
outras questões prévias ou incidentais tem sempre lugar, quer tenha ou não
havido instrução, não obstante tais questões já deverem ter sido conhecidas
pelo juiz de instrução no despacho de pronúncia (artigo 308.º, n.º3 CPC).
Mas pode suceder que tenham passado despercebidas ou então que tenham
surgido ou sido suscitadas já depois da pronúncia. Caso não tenha havido
instrução, o presidente pode rejeitar a acusação, mas só se a considerar
manifestamente infundada, nos termos da alínea a) do nº2 do artigo 311.º
CPP. O problema é a determinação exata do alcance dos poderes do
presidente no que toca à rejeição de uma acusação, tanto mais que não é fácil
saber quando é que a mesma pode ser considerada manifestamente infundada,
nem isso resulta suficientemente esclarecido através das quatro alíneas do
n.º3 do artigo 311.º CPP. É frequente a afirmação de que a rejeição de uma
acusação não é uma decisão de mérito. Mas não se vê como poderia o
presidente rejeitar uma acusação sem fazer uma apreciação crítica dos
indícios recolhidos nos autos e a qualificação jurídica dos mesmos. Não se
trata, porém, de colmatar a falta de instrução, já que o presidente não pode
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aqui ordenar diligência de investigação para esclarecer as dúvidas que
porventura lhe surjam da consulta dos autos, ao contrário do que se passa na
instrução. Daí que o presidente deva receber a acusação por muito fracos que
sejam os indícios, porquanto não tem poderes para melhor esclarecer as suas
dúvidas. Isto se dúvidas houver, pois se tiver antes a certeza da
improcedência da acusação, então, tem meso de recusá-la, aliás, com base no
mesmo dever de objetividade que levaria nesse caso o juiz de instrução a
proferir um despacho de não pronúncia. Em que casos deve então o
presidente rejeitar uma acusação? O presidente terá de fazer a triagem dos
casos em que há insuficiência crassa da própria acusação, ainda que tais
insuficiências só tenham a ver com a matéria de Direito. As alíneas do n.º3
do artigo 311.º CPP admitem mais casos do que o s que nos vêm logo à ideia
através de uma leitura do preceito. Em especial, a alínea d) abrange
praticamente todos os problemas relativos à definição do crime e à aplicação
da pena, exigindo-se apenas que esses problemas se verifiquem com tal
evidência que se possa declarar fora de qualquer dúvida razoável que falta no
caso concreto um pressuposto da pena ou da punibilidade do agente. As
situações abrangidas são, entre outras, as seguintes:
i. A atipicidade da conduta;
ii. A justificação do facto; ou
iii. A exclusão da culpa do agente;
iv. A falta de condições de punibilidade; ou, até,
v. A falta de meras condições de procedibilidade; ou,
vi. Inclusivamente, obstáculos à punição do tipo da amnistia ou do decurso de prazos
de prescrição.
Os efeitos de uma rejeição judicial da acusação variam consoante ponha
termo ao processo, declarando inadmissível o procedimento, ou apenas
considere que a acusação sofre de nulidades que podem ser eliminadas
mediante a repetição de certos atos (artigo 122.º, n.º2 CPP). Neste caso, o
juiz remete o processo para a fase de inquérito para que o Ministério Público
possa proceder ao seu saneamento, prosseguindo posteriormente. Quanto à
rejeição que põe termo ao processo, é uma decisão final que produz efeitos
de caso julgado material, e não apenas de caso julgado formal. Mas avisa-se
que esta é uma afirmação muito polémica na doutrina. O despacho proferido
ao abrigo do artigo 311.º, n.º2, alínea b) CPP, tem por fim o controlo da
legalidade da acusação subsidiária, dado ter havido a instrução. Tanto abrange
a acusação do assistente como, nos crimes particulares, a do Ministério
Público (artigo 385.º, n.º4 CPP). O despacho que rejeita a acusação é
recorrível nos termos gerais (artigo 399.º CPP).
b. Data da audiência: resolvidas essas questões, o presidente marca dia, hora
e local para a audiência, nos termos do artigo 312.º, n.º1 CPP. O despacho
que recebe a acusação, marcando data para julgamento, não é suscetível de
recurso, por força do artigo 313.º, n.º4 CPP. De resto, é uma solução análoga
à do artigo 310.º, n.º1 CPP, mas de âmbito não inteiramente coincidente, pois
o despacho que designa dia para julgamento não é recorrível mesmo que a
acusação recebida seja a do assistente, nos crimes particulares.
c. Contestação e rol de testemunhas: a partir da notificação do despacho que
designa dia para a audiência começa a contar o prazo de 20 dias, nos termos
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✒ do n.º1 do artigo 315.º CPP, para o arguido apresentar contestação, bem
como para juntar o rol de testemunhas. A contestação não é obrigatória, além
de que nada impede que o arguido apresente só a contestação ou só o rol de
testemunhas. A contestação não está sujeita a formalidades especiais (artigo
315.º, n.º2 CPP). Em princípio, o rol não pode ultrapassar o máximo de 20
testemunhas (artigo 283.º, nº.3, alínea d) e n.º7, ex vi artigo 315.º, n.º4 CPP).
2. A audiência de julgamento: a audiência de julgamento está regulada
pormenorizadamente no artigo 321.º e seguintes CPP. A audiência de julgamento
obedece ao princípio da publicidade (artigo 321.º, n.º1 CPP), de mais a mais com
sede constitucional (artigo 206.º CRP). Esta é uma garantia do arguido contra a
arbitrariedade na aplicação do Direito. Existem restrições ao princípio da publicidade
em processo penal, um princípio herdado do modelo acusatório, mas só durante a
fase investigatória (artigo 86.º, n.º1 CPP). A audiência de julgamento obedece
também ao princípio do contraditório, nos termos do artigo 327.º, n.º2 CPP. NA
verdade, o juiz tem amplos poderes de investigação ex officio, independentemente da
prova que é carreada para o processo pelos diversos sujeitos processuais. A matéria
da produção da prova está regulada no artigo 340.º e seguintes CPP. A audiência de
julgamento está submetida aos princípios da concentração, da imediação, da
oralidade e da identidade do juiz.
3. A sentença: a sentença é um texto que obedece aos requisitos que constam do artigo
374.º CPP. Para a produção da sentença é preciso todo um procedimento que
envolve, designadamente, a avaliação da questão da culpabilidade, nos termos do
artigo 368.º CPP. O crime é, na sua definição formal, uma ação típica, ilícita, culposa
e punível. Todas estas questões vêm referidas neste artigo, n.º2:
a. Tipicidade (alínea a);
b. Autoria e comparticipação (alínea b);
c. Imputabilidade (alínea c);
d. Causas de justificação do facto ou de exclusão de culpa (alínea d);
e. Condições de punibilidade (alínea e);
f. Alínea f), saber se se verificaram os pressupostos de que depende o
arbitramento da indemnização civil.
A questão da determinação da sanção vem prevista no artigo 369.º CPP. A
determinação da sanção poderá implicar uma intervenção dos serviços de reinserção
social, através de um relatório social sobre a personalidade e o caráter do arguido
(artigo 370.º CPP). Após a sentença, entramos já na fase dos recursos.
§6.º - A tramitação dos processos especiais
As formas especiais do processo prevalecem sobre a forma comum, constituindo nulidade
sanável a utilização da forma comum quando deva ser utilizada a forma especial (artigo 120.º,
n.º2, alínea a) CPP). A obrigatoriedade das formas especiais do processo surge ainda
reforçada pela preferência que é dada às outras formas especiais quando for verificada a
inadmissibilidade legal do processo sumário no caso concreto (artigo 390.º, n.º1, alínea a)
CPP). Por sua vez, o emprego de uma forma especial do processo fora dos casos previstos
na lei é cominado com nulidade insanável (artigo 119.º, alínea f) CPP).
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§
O processo sumário:
1. Requisitos: os requisitos do processo sumário são os seguintes:
a. Detenção em flagrante delito (artigo 381.º, n.º1 CPP);
b. Realizada por autoridade judiciária ou entidade policial (artigo 381.º,
n.º1, alínea a) CPP), ou então por outra pessoa, desde que, neste caso, o
detido seja entregue, num prazo que não exceda duas horas, a uma das
entidades referidas na alínea anterior, sendo então redigido auto sumário
da entrega (artigo 381.º, n.º1, alínea b) CPP);
c. Audiência num prazo máximo de 48 horas (artigo 387.º, n.º1, ressalvados
os casos previstos no n.º2 CPP);
d. Crime que não integre o catálogo (artigo 381.º, n.2º CPP): este requisito
resultou da revisão do CPP de 2013 cuja principal consequência é a
admissibilidade, em princípio, de aplicação do processo sumário a todo o tipo
de criminalidade, incluindo os homicídios. Tal alargamento implicou
alterações às normas de competência material e funcional, na medida em que
o tribunal singular passou a ter competência para julgar qualquer crime em
que tenha havido detenção em flagrante delito (artigo 16.º, n.º2, alínea c)
CPP).
O processo sumário pode durar mais tempo do que o processo abreviado, que fora
inicialmente pensado como um sucedâneo mais moroso do processo sumário.
2. Libertação do arguido: não há relação entre a tramitação na forma de processo
sumário e a manutenção da detenção em flagrante delito, pois o processo sumário
pode prosseguir com o arguido em liberdade, sendo de até de prever que, na prática,
tal constituirá a regra para a maioria dos casos. A lei distingue consoante (artigo 385.º,
n.º1 CPP):
a. A detenção em flagrante delito se refira a crime punível com pena de
prisão cujo limite máximo não seja superior a cinco anos (mesmo em
concurso de infrações): a regra é a libertação do arguido após a detenção e
o cumprimento das demais formalidades (salvo as exceções previstas nas
alíneas a), b) e c));
b. A detenção em flagrante delito se refira a crime punível com pena de
prisão superior: a regra é a manutenção da detenção até o arguido ser
presente ao Ministério Públio, junto do tribunal competente para julgamento,
nunca podendo ultrapassar as 48 horas após a detenção. No caso excecional
de a autoridade de polícia criminal ter fundadas razões para prever que tal
apresentação não poderá ocorrer no referido prazo de 48 horas, então
prevalecerá a obrigação de libertação imediata do arguido, devendo ser
lavrado relatório fundamentado da ocorrência e transmitido de imediato com
o respetivo auto do Ministério Público (artigo 385.º, n.º3 CPP).
3. Tramitação prévia ao julgamento: a forma sumária do processo penal obedece à
ideia de que, quando a prova é relativamente simples de fazer porque se baseia na
evidência que é própria das situações de flagrante delito, se deve saltar fases para se
chegar o mais rapidamente possível ao julgamento. Por comparação como a forma
do processo comum, uma fase que é totalmente sacrificada é a instrução (artigo 286.º,
n.º3 CPP). Já é discutível se pode, ou não, haver inquérito no processo sumário. É
claro que falamos de inquérito em sentido material, enquanto realização de diligências
investigatórias, pois é indiscutível que, em sentido formal, o inquérito não aparece na
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✒ lei a propósito desta forma de processo. Por via de regra, a apresentação do arguido
ao tribunal competente para julgamento deve ter lugar imediatamente, ou no mais
curto prazo possível. Detenção em flagrante delito (artigos 255.º e 256º. CPP),
constituição do suspeito como arguido, que é obrigatória nos casos de detenção em
flagrante delito (artigo 58.º, n.º1, alínea c) CPP), imediata apresentação do arguido ao
Ministério Público (artigo 382.º, n.º1 CPP), a fim de este realizar um interrogatório
sumário ao arguido, se o julgar conveniente (artigo 382.º, n.º2 CPP), e apresenta-lo,
sendo caso disso, ao tribunal competente para realizar o julgamento (ou, em
alternativa, promover junto do juiz de instrução o arquivamento em caso de dispensa
de pena ou a aplicação da suspensão provisória do processo, nos termos dos artigos
382.º, n.º2 e 384.º, n.º1 e 2 CPP). Tudo isto se passa de uma maneira tão rápida que
acaba não dando ocasião ao Ministério Público para fazer um inquérito, a menos que
este precise de tempo para reunir mais provas (artigo 382.º, n.º4 CPP). Também pode
o arguido solicitar a realização de diligências de prova (artigo 382.º, n.º3 CPP). Nestes
dois casos, as diligências de investigação podem ser realizadas, mantendo-se a forma
do processo sumário, se for respeitado o prazo de quinze dias a contar da detenção
para a realização da audiência (artigo 387.º, n.º2, alínea b) e c) CPP). Por conseguinte,
a lei autoriza a realização de pequenos inquéritos no âmbito do processo sumário. A
celeridade é um princípio geral do julgamento em processo sumário (artigo 386.º,
n.º2 CPP). Só que a celeridade não deve, em caso algum, prejudicar as garantias do
arguido. É por isso que se prevê que a audiência possa ser adiada até quinze dias para
preparação da defesa do arguido ou para realização de diligências probatórias (artigo
387.º, n.º2, alíneas b) e c) CPP). A acusação é dispensável nos crimes puníveis com
pena de prisão até cinco anos, quando tenha sido lavrado auto de notícia, mas é
indispensável no caso de crime punível com pena superior (artigo 389.º, n.º1 CPP).
No primeiro caso, o Ministério Público pode complementar a factualidade constante
do auto de notícia através de despacho proferido antes da apresentação do arguido a
julgamento (artigo 389.º, n.º2 CPP). Trata-se de uma norma de clarificação de um
procedimento por vezes controverso, o que é de aplaudir.
4. Tramitação da audiência de julgamento: a tramitação da audiência obedece às
normas do processo comum, mas adaptadas ao mínimo indispensável ao
conhecimento e boa decisão da causa, em ordem a garantir a celeridade do processo
(artigo 386.º, n.º1 CPP). A audiência de julgamento tem de ser iniciada até ao limite
de 20 dias após a detenção (artigo 387.º, n.º2, alínea c) CPP). Depois de iniciada, a
prova pode ser produzida até ao limite máximo de 60 ou 90 dias, consoante se tratar
de crimes puníveis com pena de prisão até 5 anos ou com pena superior (artig0 387.º,
n.º9 CPP). Tais prazos podem ainda ser prorrogados até ao limite de 90 ou 120 dias,
respetivamente, por razões fundamentadas (artigo 387.º, n.º10 CPP).
O processo abreviado: os requisitos do processo abreviado são:
1. A evidência probatória (artigo 391.º-A, n.º1 e 3 CPP);
2. Crime cujo máximo da pena legal não exceda os cinco anos de prisão (artigo
391.º-A, n.º1 CPP) ou até com pena legal superior a isso, desde que o Ministério
Público, na acusação, entenda que não deve ser aplicada, em concreto, pena
de prisão superior a cinco anos (artigo 391.º-A, n.º2 CPP);
3. A duração máxima de inquérito de 90 dias (artigo 391.º-B, n.º2 CPP).
O processo sumaríssimo: os requisitos do processo sumaríssimo são:
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§
1. A promoção pelo Ministério Público, oficiosa ou a requerimento do arguido
(artigo 392.º, n.º1 CPP);
2. Crime cujo máximo da pena legal não exceda os cinco anos de prisão e não
deva ser aplicada, em concreto, pena ou medida de segurança privativa da
liberdade (artigo 392.º, n.º1 CPP);
3. O acordo do juiz (artigo 395.º, n.º1 CPP);
4. A concordância do arguido (artigo 396.º CPP);
5. A concordância do assistente, só no caso de crimes particulares (artigo 392.º,
n.º2 CPP).
No caso de o arguido deduzir oposição, o juiz ordena o reenvio do processo para outra forma
que lhe caiba (artigo 398.º, n.º1 CPP).
III – Os sujeitos processuais
§7.º - A Parte Geral do Código de Processo Penal
Figueiredo Dias utiliza uma imagem feliz acerca do CPP ao dizer que, se quisermos descobrir
nele alguma parte geral, então é a que trata dos sujeitos processuais. No Código Penal, o
intérprete é em grande medida orientado por essa estruturação em duas partes: geral e
especial. Na parte geral tem uma função organizadora da interpretação, na medida em que as
questões que nela são tratadas não têm de ser repetidas depois na parte especial a propósito
de cada crime. No CPP, ficamos com a impressão de que não há uma estruturação tão
perfeita, mas, se virmos melhor, até há: são os sujeitos processuais. Na verdade, a explicação
dos direitos, deveres e poderes dos sujeitos processuais é feita por uma só vez no CPP,
tornando-se assim desnecessárias repetições quando se passa à caracterização das diversas
formas e fases da tramitação processual.
Os sujeitos processuais clássicos: há uma definição clássica de sujeitos processuais, que
foi dada por Ernst Beling: definia os sujeitos processuais como aqueles participantes
processuais cujo papel é de tal maneira relevante que sem eles um processo no sentido do
Direito vigente seria impensável. Seria uma relação de causalidade necessária entre os sujeitos
processuais e o próprio processo, de tal sorte que se tirássemos um só daqueles intervenientes
deixaria de haver processo. De acordo com esta ideia de causalidade necessária, havia três
sujeitos processuais, a saber:
1. O garante da ordem jurídica;
2. O autor;
3. O réu.
Ou seja: o moderno processo penal era um actus legitimus personarum: judicis, actoris et rei. Todos
os outros intervenientes seriam meros participantes processuais. Seriam, portanto, o tribunal,
o Ministério Público e, finalmente, o réu.
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✒ Os sujeitos processuais no Código de Processo Penal: Figueiredo Dias define os
sujeitos processuais como aqueles participantes a quem pertencem
«direitos (que surgem, muitas vezes, sob a forma de poderes-deveres ou de ofícios de Direito
Público) autónomos de conformação da concreta tramitação do processo como um todo, em vista
da sua decisão final».
No Processo Penal português, Figueiredo dias defende que há, para além do tribunal, do
Ministério Público e do arguido, mais dois sujeitos processuais: o defensor e o assistente.
§8.º - O Tribunal
A função jurisdicional: os tribunais são os órgãos do Estado através dos quais é exercida
a função soberana de administração da justiça, a chamada função jurisdicional (artigos 110.º,
n.º1 e 202.º, n.º1 CRP). Os princípios fundamentais relativos à administração de justiça,
organização dos tribunais e estatuto dos juízes não podiam, pois, deixar de figurar na
Constituição (artigos 202.º e seguintes, 209.º e seguintes e 215.º e seguintes CRP).
Princípios de administração da justiça: todos os princípios constitucionais de
administração da justiça visam garantir a objetividade e a imparcialidade do julgamento. Em
especial, cabe aqui mencionar:
1. O princípio da independência judicial: o princípio da independência judicial
significa que o tribunal só está submetido à lei, que os juízes devem aplicar dentro
dos limites da sua própria consciência (artigo 203.º CRP). A independência judicial é
garantia através da independência pessoal e objetiva do próprio juiz, na medida em
que os magistrados judiciais, embora sujeitos a responsabilidade disciplinar, nunca
são sujeitos a supervisão administrativa (artigo 216.º, n.º2 CRP). Como garantia de
independência pessoal, acresce ainda que os magistrados judiciais, em princípio, são
indestituíveis e inamovíveis contra a sua vontade (artigo 216.º, n.º1 CRP).
2. O princípio do juiz natural ou legal: o princípio do juiz natural ou legal significa
que nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em
lei anterior, o que tem por finalidade evitar a designação arbitrária ou política de um
tribunal ou juiz para resolver um caso determinado (artigos 32.º, n.º9 CRP). A
concretização do juiz natural ou legal passa pela determinação do tribunal
competente para o julgamento.
Regras de competência: apenas os tribunais comuns, ou judiciais, têm jurisdição em
matéria penal (artigos 211.º, n.º1 CRP). A jurisdição penal é depois repartida por diversos
tribunais judiciais, em função de vários critérios de competência. Por isso se diz que a
competência de um tribunal é a medida ou âmbito da sua jurisdição. A distinção de critérios
para a delimitação da competência do tribunal abrange os seguintes aspetos:
1. A competência em razão do processo (competência funcional): o ponto a
destacar é que têm de intervir no processo pelo menos dois juízes, um para a fase de
investigação e outro para a fase de julgamento, só assim se podendo garantir o
princípio da independência judicial. Nessa conformidade, o artigo 40.º CPP
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§
determina que nenhum juiz pode intervir em julgamento relativo a processo em que
tiver:
a. Aplicado medida de coação; ou
b. Presidido a debate instrutório.
A fase dos recursos e a fase de execução das penas basta referir a tal propósito os
artigos 11.º, 12.º e 18.º CPP.
2. A competência em razão da espécie ou gravidade do crime, ou então da
qualidade do arguido (competência material): e de referir que a mesma se
desdobra por duas vertentes:
a. A competência em razão da hierarquia do tribunal: satisfaz a necessidade
de entregar aos tribunais superiores, logo em 1.ª instância, a competência para
o julgamento de crimes praticados por titulares de altos cargos políticos ou
magistrados no exercício das suas funções;
b. A competência em razão da estrutura do tribunal: reflete a forma como
os tribunais das diferentes hierarquias se organizam para dar conta dos
respetivos âmbitos de competência material.
3. A competência em razão do lugar (competência territorial): a competência
territorial é determinada com um:
a. Critério geral: aponta para o lugar do delito, que depende de se tratar de um
i. Crime de resultado consumado (artigo 19.º, n.º1 CPP);
ii. Crime de sangue (artigo 19.º, n.º2 CPP);
iii. Crime consumado habitual, duradouro ou permanente (artigo 19.º, n.º3 CPP);
iv. Crime tentado ou ato preparatório punível como tal (artigo 19.º, n.º4 CPP);
v. Crime cometido a bordo de navio ou aeronave (artigo 20.º CPP).
A casuística dessas situações é, sem dúvida, muito rica e variada, só que, et
pour cause, não cabe nesta apresentação resumida.
que é complementado com
b. Critérios supletivos: aplicam-se a
i. Delitos de localização duvidosa ou desconhecida, dando-se prevalência ao
tribunal da área em que primeiro surgiu a notícia do crime (artigo 21.º,
n.º1 CPP); assim, como
ii. Delitos cometidos no estrangeiro, dando-se então prevalência ao lugar da
localização do agente ou do seu domicílio (artigo 22.º, n.º1 CPP).
Competência por conexão: um crime praticado por um único agente dá lugar a um
processo-crime. Pela lógica, vários crimes (concurso de crimes) ou vários agentes
(comparticipação criminosa) dariam lugar a vários processos crime, mas é fácil de ver que,
nesses e noutros casos afins (artigo 24.º CPP), justificar-se-á o processamento conjunto.
Dessa forma consegue-se obter alguma economia na produção de prova, evita-se a
multiplicação de diligências de obtenção de prova, previne-se a contradição de julgados,
facilita-se a atribuição de um pena única ao mesmo agente nas situações de concurso de
crimes, etc. Nesses casos, organizar-se-á, portanto, um só processo para uma pluralidade de
crimes ou de responsabilidades criminais (artigo 29.º, n.º1 CPP). Há casos, porém, que
podem gerar um problema de competência por conexão, quer dizer: uma alteração às regras
gerais da competência. Nesses casos, a competência será então determinada pelas regras
especiais dos artigos 27.º e 28.º CPP. Oficiosamente, ou a requerimento do Ministério
Público, do arguido, do assistente ou do lesado, o juiz poderá fazer cessar a conexão e
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✒ ordenar a separação de algum ou alguns dos processos, se houver nisso interesse atendíveis
(artigo 30.º CPP).
Competência territorial do magistrado do Ministério Público para o inquérito:
o CPP trata desenvolvidamente das regras de competência do tribunal, em função da fase de
julgamento. Mas o problema da competência territorial coloca-se sempre muito antes disso,
em função da análise da fase de inquérito. Na determinação da competência territorial do
magistrado ou agente do Ministério Público para a realização do inquérito aplicar-se-ão,
mutatis mutandis, as disposições do Código sobre competência territorial do tribunal (artigo
264.º CPP). Em caso de urgência ou de perigo na demora, qualquer magistrado ou agente do
Ministério Público é competente para a realização de atos de inquérito (artigo 264.º, n.º4
CPP).
Declaração de incompetência: o vício de incompetência não deve ser confundido com
o vício da falta de jurisdição penal. A falta de jurisdição implica a inexistência da própria
sentença que por isso mesmo não é exequível, o que pode e deve ser reconhecido ou
verificado em qualquer momento por qualquer juiz que intervenha na eventual execução.
1. Incompetência material: o tribunal deve levantar e decidir oficiosamente a questão
da competência material durante todo o processo, além de que a questão pode ser
suscitada pelo Ministério Público, pelo arguido e pelo assistente, até ao trânsito em
julgado da decisão final (artigo 32.º, n.º1 CPP). Declarada a incompetência do
tribunal, o processo é remetido para o tribunal competente, o qual determinará os
atos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que possível, a repetição
dos atos necessários para conhecer da causa (artigo 33.º, n.º1 e 2 CPP). O artigo 33.º,
n.º1 CPP obriga ao envio do processo para o tribunal competente, anulando apenas
os atos que se não teriam praticado se perante ele tivesse corrido o processo. Por
outro lado, o n.º2 do mesmo artigo ressalva os atos processuais urgentes que podem
e devem ainda ser praticados pelo tribunal incompetente. O vício de incompetência
material do tribunal é, assim, uma nulidade (atípica) insanável, cujo regime se explica
por um princípio de máximo aproveitamento dos atos processuais.
2. Incompetência territorial: só pode ser deduzida e declarada até ao início do debate
instrutório, tratando-se de instrução, ou até ao início da audiência de julgamento,
tratando-se de tribunal de julgamento (artigo 32.º, n.º2 CPP).
Impedimentos e suspeições: a imparcialidade do juiz deve ser garantida a todo o custo.
Por isso, o juiz é impedido de julgar se tiver uma relação de parentesco ou outro tipo de
proximidade com algum dos participantes processuais (artigos 39.º e 40.º CPP). As situações
de impedimento do juiz são reguladas taxativamente e não podem, portanto, ser aplicadas
por analogia. Os impedimentos devem ser declarados oficiosamente (artigo 41.º, n.º1 CPP),
embora a declaração também possa ser requerida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo
assistente ou pela parte civil (artigo 41.º, n.º2 CPP). Para além das situações de impedimento,
o juiz pode ser recusado por suspeição. A lei usa simplesmente um conceito indeterminado
de motivo, sério ou grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade (artigo
43.º, n.º1 CPP). A declaração de suspeição poderá ser requerida pelo Ministério Público, pelo
arguido, pelo assistente ou pelas partes civis (artigo 43.º, n.º2 CPP). O juiz não pode declarar-
se voluntariamente suspeito, mas poderá pedir escusa (artigo 43.º, n.º4 CPP).
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§9.º - O Ministério Público
A principal função do Ministério Público: o Ministério Público é o órgão do Estado
encarregado de exercer a ação penal (artigo 219.º, n.º1 CRP). O exercício da ação penal é, de
resto, a principal função do Ministério Público.
1. O estatuto do Ministério Público e dos seus agentes: no desempenho dessa
função, o Ministério Público apresenta as seguintes características:
a. Enquanto órgão do Estado, é um órgão judiciário, na medida em que
colabora com o tribunal na administração da justiça;
b. Constitui uma magistratura autónoma (artigo 219º., n.º2 CRP), no
sentido em que goza de autonomia funcional, guiando-se por critérios de
legalidade e estrita objetividade, a que se junta uma autonomia orgânica, dada
pela exclusiva competência da Procuradoria-Geral da República para
nomeação, colocação, transferência e desenvolvimento na carreira dos
representantes do Ministério Público (artigo 219.º, n.º5 CRP).
c. É integrado por magistrados responsáveis, que são, no entanto,
subordinados hierarquicamente (artigos 219.º, n.º4 CRP), na medida em
que têm de observar diretivas, ordens e instruções, mas devem recusá-las se
forem ilegais e podem recusá-las com fundamento em grave violação da
consciência jurídica. Só que o superior hierárquico pode avocar o processo
ou redistribui-lo a outro subordinado.
As diretivas genéricas doo Procurador-Geral da República não dão margem para
recusa. O Procurador-Geral emite diretivas de organização ou de interpretação, que
devem ser publicadas e vinculam os magistrados Para além disso, o Procurador-Geral
da República tem também a (assim chamada na praxis) bomba atómica, quer dizer, pode
escolher um magistrado para dirigir um processo em concreto.
2. A posição institucional do Ministério Público e dos seus agentes: na estrutura
da divisão dos poderes soberanos do Estado, o Ministério Público ocupa uma
posição institucional ambígua e, além disso, polémica. Pergunta-se: afinal cabe no
poder executivo, como órgão administrativo, ou no poder judicial, como colaborador
do juiz na atividade jurisdicional. A nomeação e a exoneração do Procurador-Geral
da República pelo Presidente da República, sob proposta do Governo (artigos 133.º,
alínea m), e 220.º, n.º3 CRP), coloca o próprio Ministério Público, de certa forma, na
órbita do poder executivo. Acresce que o Procurador-Geral da República deve
obediência às eventuais instruções genéricas do Ministro da Justiça, o que acentua a
referida ligação ao poder executivo. Por outro lado, o Ministério Público participa na
execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, o que, mais uma
vez, o assemelha a um órgão administrativo. Seria preferível, em vez disso, a plena
judicialização do Ministério Público, garantindo deste modo a independência dos
seus agentes e aproximando o seu estatuto ao da magistratura judicial (artigos 215.º
a 218.º CRP). Em Portugal, o Ministério Público goza de autonomia orgânica e
funcional, mas os seus agentes atuam, como vimos, com subordinação hierárquica.
Certamente seria possível aprofundar a independência dos agentes do Ministério
Público, mas a plena judicialização só faria sentido no quadro da tradição clássica do
princípio da legalidade penal, em que o Ministério Público não desenvolveria de
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política criminal, até porque a única política criminal admissível era rigorosamente
intra-sistemática em relação ao Direito Penal e aceitava, portanto, o crime como um
dado, que tinha de ser sujeito ao devido processo legal, sem margem para a definição
de prioridades na repressão da criminalidade. Atualmente, a política criminal pode
não esgotar as suas injunções no contexto de um auto-referente sistema penal,
embora nunca deva extravasar do quadro axiológico da Constituição. Assim, a
política criminal tem de procurar constantemente respostas para os complexos
problemas da nova criminalidade. Tais problemas exigem respostas articuladas, que
não se compaginam com a judicialização dos agentes do Ministério Público, com
cada um dos seus representantes agindo desgarradamente, como se a criminalidade
pudesse ser eficazmente controlada com cada qual gerindo e promovendo à vez os
processos que lhe são distribuídos. Definitivamente, este não é o modelo reclamado
pela realidade atual. Por outra parte, deveria ser aprofundada a participação do
Ministério Público, enquanto órgão, na execução da política criminal definida pelos
órgãos de soberania, promovendo a prestação de contas (accountability) do
Procurador-Geral da República diante do Parlamento, no contexto definido pela Lei-
Quadro da Política Criminal.
O Ministério Público como parte acusadora? O Ministério Público, no quadro da
estrutura acusatória do processo penal, é essencial ao contraditório, mas não é parte no
processo, já que não tem um interesse direito em demandar, mas prossegue apenas o
interesse da justiça. Quando muito, o Ministério Público é parte em sentido formal, enquanto
titular do Direito Processual de ação, mas não parte em sentido material, enquanto titular de
um interesse jurídico próprio. Se quisermos, o Ministério Público é assim uma parte imparcial.
Seguramente, o empenhamento do Ministério Público e dos Órgão de Polícia Criminal é
natural, além de que é indispensável para a descoberta das provas do crime. No nosso sistema
processual penal, o Ministério Público pode, em qualquer processo, sentir que tem de tomar
a posição ou a defesa do arguido. Até na fase dos recursos, o Ministério Público tem de
tomar a posição ou a defesa do arguido. Até na fase dos recursos, o Ministério Público pode
recorrer no exclusivo interesse do arguido. Isto compreende-se porque vai mudando o
conhecimento da matéria de facto ao longo do processo, não sendo o Ministério Público
uma parte interessada na condenação, pois só está comprometido com a descoberta da
verdade. De um ponto de vista mais pragmático e humano, há mudanças que advêm de o
próprio agente do Ministério Público em cada uma das fases do processo não ser o mesmo,
podendo ter visões diferentes do mérito do processo.
Atribuições do Ministério Público no processo: ao Ministério Público compete
exercer a ação penal (artigo 48.º CPP). Mais concretamente, as atribuições do Ministério
Público vêm no artigo 53.º, n.º2 CPP. Trata-se de uma enumeração genérica, mas não taxativa.
Restrições ao exercício da ação penal pelo Ministério Público: a promoção da
ação penal pelo Ministério Público depende da natureza processual dos crimes. Há que
distinguir entre:
1. Crimes públicos: o Ministério Público exerce a ação penal com total autonomia,
ainda que os ofendidos, ou os seus representantes, possam tomar a posição de
assistente para influenciar o curso do processo;
2. Crimes semipúblicos: a promoção do procedimento criminal pelo Ministério
Público depende de queixa ou de participação do ofendido (artigo 49.º, n.º1 CPP),
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✒ seguindo no resto o regime do procedimento nos crimes públicos, a menos que haja
desistência da queixa, seguida de homologação por entidade competente, o que fará
cessar a intervenção do Ministério Público no processo (artigo 51.º CPP);
3. Crimes particulares: o procedimento criminal também depende de queixa ou de
participação do ofendido, além de que depende ainda da constituição de assistente e
da dedução de acusação particular por parte deste (artigo 50.º, n.º1 CPP).
Quanto ao concurso de crimes públicos e semipúblicos ou particulares, rege o artigo 52.º
CPP. Quanto a crimes cometidos por titulares de certos cargos políticos, há também
restrições ao exercício da ação penal pelo Ministério Público (artigo 130.º e 157.º CRP).
A intervenção dos órgãos de polícia criminal: ao Ministério Público, enquanto
detentor da ação penal, cabe a direção do inquérito, assistido pelos Órgãos de Polícia
Criminal, enquanto auxiliares das autoridades judiciárias (artigos 53.º, n.º2, alínea b) e 263.º,
n.º1 CPP). Os Órgãos de Polícia Criminal atual sob a direta orientação do Ministério Público
e na sua dependência funcional (artigos 56.º e 263.º, n.º2 CPP). O problema está na correta
delimitação da relação do Ministério Público com os Órgãos de Polícia Criminal, que passa
pelos seguintes aspetos:
1. As polícias não podem, por iniciativa própria, abrir inquérito relativamente a
nenhuma notícia de crime que tenham adquirido;
2. O Código não tolera sequer a realização de inquéritos policiais preliminares
que envolvam a realização de diligências de investigação. Pelo contrário, a lei
manda que a notícia do crime adquirida pelos Órgão de Polícia Criminal, por
conhecimento próprio ou mediante denúncia, seja transmitida ao Ministério Público
no mais curto prazo, que não pode exceder 10 dias (artigos 241.º, 242.º, n.º1, 243.º,
n.º3, 245.º e 248.º, n.º1 CPP). Note-se que os Órgãos de Polícia Criminal devem
transmitir ao Ministério Público todas as notícias de crime pois não têm competência
para decidir quais devem, ou não, dar lugar à abertura de inquérito (artigos 246.º, n.º3,
6 e 7 e 248.º, n.º2 CPC). Na sequência, o Ministério Público procederá ao registo da
denúncia (artigo 247.º, n.º2 CPP) e fará a abertura de inquérito (artigo 262.º, n.º2
CPP). Enfim, o Ministério deve poder avaliar se a denúncia constitui ou não uma
notícia de crime, devendo decidir em função disso se é de abrir, ou não, inquérito. A
avaliação da denúncia não deve, porém, ser confundida com o juízo de oportunidade.
3. A delegação genérica de competência na Polícia Judiciária, ou noutro Órgão
de Polícia Criminal, para a realização de diligências de investigação
relativamente a certos tipos de crime (artigo 270.º, n.º4 CPP) não pode, de
maneira nenhuma, ser confundida com autorização para a realização de inquéritos
policiais preliminares, à margem da comunicação da notícia do crime ao Ministério
Público;
4. As polícias têm competência própria para tomar medidas cautelares e de
polícia, ditadas pela urgência e pelas necessidades de conservação da prova
(artigo 248.º e seguintes CPP). Mas são atos fora do processo, que depois têm de
ser validados por autoridade judiciária;
5. As polícias têm, essencialmente, a chamada competência de coadjuvação,
que depende da direção funcional da autoridade judiciária competente. Ao
Ministério Público caberá, portanto, um poder de orientar a investigação e às polícias
caberá coadjuvar o Ministério Público nesta missão, mas tal não significa que o
Ministério Público faça a investigação material, já que a experiência e o saber
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criminalísticos, bem como os instrumentos técnico-científicos adequados pertencem
aos Órgãos de Polícia Criminal. A direção funcional do inquérito pelo Ministério
Público implica, isso sim, poderes de diretiva e de controlo relativamente aos Órgãos
de Polícia Criminal. Mais concretamente, o Ministério Público tem poder para pedir
informação sobre as diligências de investigação e exigir outras, definir a estratégia e
dar orientações de investigação e, inclusive, avocar ou redistribuir o processo, mas
nunca podendo decidir qual o Órgão de Polícia Criminal que lhe deve dar assistência,
pois tal é definido por lei.
Tudo visto e somado, o que se quer evitar é que o Ministério Público só tome contato
com o processo no final do inquérito, quando só resta acusar ou arquivar.
§10.º - O Arguido
As garantias do suspeito: o Código de Processo Penal distingue as figuras (artigo 1.º,
alínea e) CPP) de:
1. Suspeito: não é um sujeito processual; faltam-lhe os poderes, típicos dos sujeitos
processuais, de conformação concreta do processo, dado que não pode intervir
ativamente no inquérito, nem pode requerer abertura de instrução; e,
2. Arguido.
Mesmo assim, o suspeito, enquanto tal, goza de um estatuto processual específico que lhe
confere certos direitos, a saber: seja qual for a origem e a consistência da imputação, não
pode, em caso algum, ser obrigado a fornecer provas ou a prestar declarações auto-
incriminatórias. Não há dúvidas de que o princípio da não auto-incriminação e o direito ao
silêncio se estendem ao próprio suspeito. Senão vejamos: é obrigatória a constituição de
arguido logo que, durante qualquer inquirição feita a pessoa que não é arguido, surgir fundada
suspeita de crime por ela cometido (artigo 59.º, nº1 CPP). Este normativo abrange, decerto,
apenas os casos em que a fundada suspeita ocorra durante a inquirição, a qual deve ser
imediatamente interrompida para se proceder à constituição formal de arguido. Tal
normativo não pode, porém, deixar de implicar, por via de interpretação enunciativa
(argumento a minori ad maius), que o ato não deveria sequer ser iniciado se a suspeita fundada
já existisse, pois nesse caso o suspeito tinha de ser previamente constituído como arguido.
Torna-se, portanto, claro que o suspeito está em posição de exercer o direito ao silêncio tanto
como o próprio arguido. Como se isso não bastasse e para evitar a desproteção do suspeito
no caso de não ver respeitadas as suas garantias de defesa, ele mesmo tem o direito a ser
constituído, a seu pedido, como arguido se estiverem a ser efetuadas diligências destinadas a
comprovar a imputação que pessoalmente o afetem (artigo 59.º, n.º2 CPP). O suspeito
beneficia ainda de mais proteções, igualmente decorrentes do nemo tenetur. Designadamente,
o suspeito, seja qual for a fonte e a consistência da imputação e ainda que não se justifique
constituí-lo como arguido, acaba tando uma posição processual própria que resulta de não
poder intervir no processo noutras vestes, designadamente como testemunha. Nas
contundentes palavras de Lobo Moutinho,
«A interpretação oposta, se analisada mais de perto, não apresenta o mais débil fundamento
nem a mais remota base ou apoio constitucional ou legal, constituindo a correspondente prática
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✒ uma inaceitável recaída na tentação inquisitória, que tem de ser suprimida por indigna do
processo penal português do terceiro milénio».
Nisto, a revisão de 2007 foi muito clara, ao consagrar expressamente o direito de a
testemunha ser acompanhada por advogado sempre que deva prestar depoimento (artigo
132.º, n.º4 CPP). A falta de constituição de arguido, nos casos em que devesse já ter
acontecido é uma simples irregularidade (artigo 118.º, n.º2 CPP), que pode ser reparada a
todo o tempo (artigo 123.º, n.º3 CPP). Ou seja: nunca é tarde de mais para constituir o
suspeito como arguido. Só que a falta de constituição atempada de arguido entretanto gerou
a ineficácia contra o declarante das eventuais declarações auto-incriminitórias (artigo 58.º,
n.º5 CPP). Só? Também se aplica o artigo 126.º, n.º1 e 2, alínea a) CPP, por utilização de
meios enganosos, ou alínea d), por ameaça com medida legalmente inadmissível. Nesse caso,
as provas obtidas através dos métodos proibidos são nulas e não podem ser valoradas,
incluindo as provas secundárias, a menos que pudessem ser obtidas diretamente, na falta de
prova nula, através de um comportamento lícito alternativo. Além de que as provas
ilicitamente obtidas não podem ser repetidas por outros meios. Tudo isso para que os
instrutores não caiam na tentação de interrogar alguém que já é suspenso da prática de um
crime como se fosse uma mera testemunha, aparentemente com deveres de colaboração com
a justiça. Acresce que, se o uso dos métodos de obtenção de provas constitui crime, estas
poderão ser utilizadas com o fim exclusivo de proceder contra os agentes do mesmo (artigo
126.º, nº4 CPP).
A constituição de arguido: o arguido é uma pessoa formalmente constituída como
sujeito processual e contra quem corre um processo-crime. Têm capacidade judiciária passiva
as pessoas físicas maiores de 16 anos (artigo 19.º CP) e as pessoas jurídicas, neste caso quanto
aos crimes pelos quais possam ter de responder (artigo 11.º CP). A capacidade para ser
arguido não se define exatamente pela imputabilidade criminal, pois o juízo sobre a
inimputabilidade, inclusive absoluta, poderá ser uma conclusão a adquirir no próprio
processo penal. O arguido assume essa qualidade com a acusação ou o requerimento, por
parte do assistente, para abertura de instrução (artigo 57.º, n.º1 CPP). Nesses casos, a
aquisição da qualidade de arguido deixou de ser automática, ao contrário do que se passava
na versão primitiva do CPP de 1987. Na verdade, o atual artigo 57.º, n.º3 CPP impõe a
comunicação dessa qualidade ao arguido. O CPP prevê ainda a constituição obrigatória de
arguido nos casos dos artigos 58.º e 59.º CPP. Ou seja, antes da acusação ou do requerimento
para abertura de instrução.
1. Direitos e deveres do arguido: o arguido não goza apenas de direitos avulsos (uti
singuli), antes adquire uma posição global, estável e rica (ativa e passiva), no processo,
descrita nos artigos 60.º e 61.º CPP. Por isso se diz que é um sujeito processual.
Acresce que a constituição de arguido não é um ato simples, mas, como nos diz Lobo
Moutinho, antes
«Um ato complexo de formação ou produção sucessiva, um iter particularmente
complexo que se inicia com a verificação da situação fundamento mas passa por outros
momentos como a comunicação prevista no artigo 58.º, n.º2 CPP, e a entrega do
documento previsto no n.º 3 do artigo 58.º CPP, ainda pelo primeiro interrogatório
do arguido e pela sujeição a termo de identidade e residência».
a. São direitos do arguido (artigo 61.º, n.º1 CPP):
i. Direito de presença em todos os atos processuais que diretamente o afetem;
ii. Direito de audiência pelo juiz quando este deva tomar qualquer decisão;
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iii. Direito de informação sobre os fatos que lhe são imputados;
iv. Direito ao silêncio, sem ser prejudicado por isso;
v. Direito a defensor, que pode ser um defensor oficioso;
vi. Direito de intervenção nas fases preliminares do processo;
vii. Direito de informação dos direitos que lhe assistem;
viii. Direito de recurso das decisões que lhe forem desfavoráveis.
b. São deveres do arguido (artigo 61.º, n.º3 CPP):
i. Dever de comparência pessoal sempre que tiver sido regularmente convocado;
ii. Dever de responder com verdade sobre a sua identidade (artigos 141.º, n.º3,
143.º, n.º2, 144.º e 342.º CPP), sob pena de cometer crime de
falsidade por parte de interveniente em ato processual (artigo 359.º,
n.º2 CP);
iii. Dever de se sujeitar a diligências de prova e medidas de coação pessoal e de garantia
patrimonial.
A partir das alterações de 2013 ao Código, o arguido deixou de ter, em absoluto,
qualquer dever de mencionar os seus antecedentes criminais, o que constitui, sem
dúvida, uma mudança legislativa merecedora de aplauso.
2. A obrigação de interroga o arguido antes da acusação: na versão primitiva do
Código, não era, em princípio, obrigatório interrogar o arguido em momento anterior
à acusação ou ao requerimento de instrução. É certo que essa obrigação, em alguns
casos, resultava da lei: relativamente a arguido detido (artigo 141.º e 143.º CPP) ou a
quem tivesse de ser aplicada uma medida de coação ou de garantia patrimonial (artigo
194.º, n.º3 CPP). Por via de regra, o interrogatório do arguido ficava, porém, sujeito
ao critério geral da sua necessidade em função dos fins do inquérito. Ou seja, a
entidade instrutora podia decidir se e quando é que uma pessoa já fortemente
indiciada nos autos devia prestar declarações no inquérito, adquirindo nessa altura
necessariamente a qualidade de arguido. Isso potenciava junto da entidade instrutora
a tentação inquisitória de adir o mais possível a constituição de arguido, senão mesmo
de dispensar a sua constituição antes do fim do inquérito. Na revisão de 1998 do
CPP, o legislador entendeu, e bem, contrariar essa lógica, criando a necessidade do
primeiro interrogatório do arguido, nos termos do artigo 272.º, n.º1 CPP. Em que
momento do inquérito se deve realizar esse interrogatório? Dado que o
interrogatório do arguido não é um simples meio de obtenção de prova, muito menos
se considerarmos que lhe está indissoluvelmente associada a constituição de arguido
com todo o seu cortejo de direitos, mas é sobremaneira um meio de defesa do
arguido, o interrogatório só deve ser realizado quando estiverem reunidos os meios
de prova suficientes para a dedução de acusação, pois é diante disso que o arguido se
pode defender, contrapondo a sua própria versão dos factos. É bem de ver que a
introdução do interrogatório obrigatório do arguido restringiu os casos em que a
qualidade de arguido é adquirida por força da dedução de acusação ou do
requerimento de instrução, pois é forçoso constituir como arguido a pessoa em
relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime. Falta caracterizar o vício
relativo à falta de primeiro interrogatório. Concordo com Lobo Moutinho quando,
criticando o Acórdão STJ n.º1/2006, 23 novembro, que considerou ser uma simples
nulidade dependente de arguição, afirma que tal vício deve ser caracterizado como
nulidade insanável, nos termos do artigo 119.º, alínea c) CPP.
3. Como se efetua o interrogatório e a assistência de defensor: quanto ao primeiro
interrogatório judicial de arguido detido, o Código regula cuidadosamente a maneira
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✒ como deve ser efetuado, impondo que ele seja informado e esclarecido sobre os seus
direitos, bem como informado dos motivos da detenção e dos factos que lhe são
imputados (artigo 141.º, n.º4 CPP) e garantindo-lhe a presença de defensor (artigo
64.º, n.1º, alínea a) CPP). O primeiro interrogatório não judicial de arguido detido, se
o arguido não for imediatamente presente ao juiz de instrução, obedece às
disposições relativas ao primeiro interrogatório judicial de arguido detido (artigos 64.º,
n.º1, alínea a) e 143.º, n.º2 CPP). Em todos os interrogatórios de arguido preso é
obrigatória a assistência de defensor (artigos 64.º, n.º1, alínea a) e 144.º, n.º3 CPP).
Na verdade, o risco de respostas involuntariamente auto-incriminadoras aumenta nas
situações de fragilidade por privação da liberdade, razão por que a presença do
defensor é indispensável nestes casos. A revisão de 2007 do CPP reforçou as
garantias de defesa do arguido. O arguido é informado dos factos que lhe são
imputados antes de prestar declarações perante qualquer entidade (artigo 61.º, n.º1,
alínea c) CPP); em especial, o juiz, no primeiro interrogatório judicial de arguido
detido, tem de informar o arguido não só dos motivos da detenção e dos factos
imputados, como já sucedia, mas também dos meios de prova, salvo se, neste último
caso, a revelação puser gravemente em causa a investigação, a descoberta da verdade
ou direitos fundamentais de terceiros (artigo 141.º, n.º4 CPP); também o Ministério
Público, se o arguido detido lhe for presente sem ter sido interrogado pelo juiz de
instrução em ato seguido à detenção, deve informá-lo da mesma maneira (artigo 143.º,
n.º2 CPP); acresce que todas as declarações de arguidos detidos ou presos só podem
ser obtidas na presença do advogado (artigo 64.º, n.º1, alínea a) e 144.º, n.º3 CPP);
além de que o arguido em liberdade que for chamado a prestar declarações tem o
direito de ser assistido por advogado, sendo disso informado oportunamente pela
entidade que o convocar para interrogatório (artigo 144.º, n.º4 CPP); considerando,
por fim, que uma testemunha pode a qualquer momento, converter-se em arguido,
também ela pode ser acompanhada por advogado sempre que deva prestar
depoimento (artigo 132.º, n.º4 CPP). A alteração de 2013 ao CPP introduziu a
obrigatoriedade de assistência do defensor em todos os interrogatórios de arguido
feitos por autoridade judiciária (artigo 64.º, n.º1, alínea b) CPP). Em si mesma, a
alteração em causa é louvável, mas deve notar-se que foi concebida como
contrapartida da verdadeira restrição de direitos do arguido que resultou da criação
da possibilidade de aproveitamento probatório no julgamento das declarações
anteriormente prestadas por ele perante autoridade judiciária com assistência de
defensor (artigo 141.º, n.º4, alínea b) e 357.º, n.º1, alínea b) CPP). Um dos aspetos
em que a jurisprudência do Tribunal Constitucional mais marcou a revisão de 2007
foi, seguramente, o da regulamentação do interrogatório de arguido. Basta ver a
evolução do artigo 141.º, n.º4 CPP. À primeira vista, dir-se-á que a filosofia é a mesma,
só que a nova redação é mais pormenorizada e, nesse aspeto, parece constituir apenas
uma espécie de desenvolvimento interpretativo do preceito, o que só por isso
transformaria o Código num manual de boas práticas, sinal da desconfiança do
legislador na capacidade de os aplicadores do direito chegarem à interpretação
adequada das fontes normativas. Seja como for, a crítica que genericamente se
evocou supra não é justa, pois esquece que houve realmente situações concretas em
que o artigo 141.º CPP, na redação anterior, foi interpretada no sentido de o
cumprimento deste normativo se bastar com a formulação de perguntas genéricas e
abstratas, não concretizadoras das exatas circunstâncias de tempo, modo e lugar que
determinaram a imputação ao arguido dos ilícitos penais em causa, como se pode ver
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no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, 9 julho 2003, contra o qual foi
interposto recurso de constitucionalidade pelo arguido. Em função disso, o Tribunal
Constitucional julgou
«inconstitucional, por violação do artigo 28.º, n.º1 e 32.º, n.º1 CRP, a norma do n.º4
do artigo 141.º CPP, interpretada no sentido de que, no decurso do interrogatório de
arguido detido, a exposição dos factos que lhe são imputados pode consistir na
formulação de perguntas gerais e abstratas, sem concretização das circunstâncias de
tempo, modo e lugar em que ocorreram os factos que integram a prática desses crimes,
nem comunicação ao arguido dos elementos de prova que sustentam aquelas imputações
e na ausência da apreciação em concreto da existência de inconveniente grave naquela
concretização e na comunicação dos específicos elementos probatórios em causa».
Noutro aresto, o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional a interpretação
extraída da conjugação dos artigos 141.º, n.º4 e 194.º, n.º3 CPP, segundo a qual,
«no decurso de interrogatório de arguido detido, a exposição dos factos que lhe são
imputados e dos motivos da detenção se basta com a indicação genérica ao arguido das
infrações penais de que é acusado, da identidade das vítimas como alunos, à data, da
B., e outras pessoas, mas todas elas menores de 16 anos, estando o tribunal dispensado,
por inutilidade, de proceder a maior pormenorização além da que resulta da indicação
feita em tais termos, quando o arguido, confrontado com ela, tome a posição de negar
globalmente os factos, e na ausência da apreciação em concreto da existência de
inconveniente grave naquela concretização».
Não é, pois, despicienda a nova redação do n.º4 do artigo 141.º CPP.
O defensor: enquanto sujeito processual, o defensor é um elemento essencial à
administração da justiça, na medida em que é do interesse da justiça que a defesa seja eficaz
(artigo 208.º CRP). O defensor intervém no processo às vezes independentemente do
próprio arguido, como acontece, por exemplo, quando o defensor participa na audiência de
julgamento realizada na ausência do arguido (artigo 64.º, n.º1, alínea f) CPP). O defensor
pode mesmo intervir contra a vontade do arguido, como acontece quando é negado ao
arguido que é, ele mesmo, advogado o direito de se defender a si próprio, sendo-lhe ao invés
imposto um defenso oficioso. Tudo isso mostra que o defensor também tem um papel
conformador da tramitação processual como um todo.
§11.º - O Assistente
A função do assistente: o artigo 69.º, n.º1 CPP define o assistente como colaborador do
Ministério Público, a cuja atividade subordina a sua intervenção no processo, salvas as
exceções da lei. Mas são tantos os poderes que a lei confere ao assistente que acaba sendo
inadequado caracterizá-lo como um simples colaborador do Ministério Público. Em última
análise, o assistente é um verdadeiro sujeito processual, pois tem poderes próprios de
conformação do processo penal como um todo.
1. Os poderes do assistente: o assistente pode:
a. Intervir nas fases preliminares do processo penal, oferecendo provas e
requerendo diligências (artigo 69.º, n.º2, alínea a) CPP);
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✒ b. Deduzir acusado, independente da do Ministério Público (artigo 69.º,
n.º2, alínea b), 284.º, n.º1 e 285.º, n.º1 CPP);
c. Requerer a abertura de instrução (artigo 287.º, n.º1, alínea b) CPP);
d. Interpor recurso das decisões que o afetem (artigo 69.º, n.º2, alínea c)
CPP).
2. A constituição como assistente: têm legitimidade para se constituir assistentes os
ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei
especialmente quis proteger com a incriminação, nos termos do artigo 68.º, n.º1,
alínea a) CPP. O preceito reproduz o artigo 4.º Decreto-Lei n.º 35.007, o qual já
reproduzia, por seu turno, o velho artigo 11.º do Código de 1929. Só os titulares
desses especiais interesses eram considerados ofendidos para efeitos de legitimidade
para o exercício da ação penal – e não assim os titulares de quaisquer outros interesses
porventura também atingidos pelo delito. Essa era a interpretação de Beleza dos
Santos, o principal responsável pelo projeto desse Código. Era o chamado conceito
restrito de ofendido. A questão é saber se a tese restritiva se justifica à luz da teoria
do bem jurídico. No mínimo, dir-se-á que a tese restritiva não é admissível se for
usada para interpretar os interesses especialmente protegidos com a incriminação
como se fossem interesses protegidos de modo exclusivo, quer dizer, um único
interesse protegido por cada incriminação, ainda que seja admissível que o advérbio
especialmente usado pela lei queira significar que os interesses são protegidos de modo
particular, quer dizer, diretamente protegidos, mas nunca reflexamente ou
mediatamente protegidos. Ou seja, a circunstância de a incriminação proteger um
interesse de ordem pública não afasta, sem mais, a possibilidade de, ao mesmo tempo,
ser também imediatamente protegido um outro interesse de titularidade individual,
assim se afirmando a legitimidade material do ofendido até ao ponto de admitir a
legitimidade de constituição de assistente sempre que haja interesses de titularidade
individual diretamente afetados. Se for preciso, chamaremos conceito restritivo
alargado de ofendido a esta nova compreensão da tese restritiva. Será que se pode ir
mais além? O conceito amplo de ofendido protesta que a legitimidade de constituição
de assistente deve abranger os processos por crimes contra bens jurídicos coletivos
ou interesses difusos, de titularidade intersubjetiva, tais como a poluição (artigo 279.º.
n.º1 CP). Nesses casos, qualquer pessoa se poderia constituir assistente, assim se
exprimindo uma nova dimensão da cidadania no quadro das sociedades modernas,
vistas como sociedades de massas, como defende Augusto Silva Dias. Nos processos
por crimes contra bens jurídicos coletivos ou interesses difusos podem, na verdade,
constituir-se assistentes não só as associações ou outras pessoas coletivas legalmente
reconhecidas, que defendem os interesses coletivos ou difusos em nome e no lugar
de todos os cidadãos, como também todo e qualquer um do povo. A Lei n.º 83/95,
31 agosto 1995 (Lei Ação Popular), estabeleceu um regime especial de intervenção
no exercício da ação penal dos cidadãos e associações (artigo 25.º LAP), que abrange
o direito que quaisquer deles se constituírem assistentes no respetivo processo, nos
termos previstos nos artigos 68.º, 69.º e 70.º CPP. O regime da legitimidade
processual ativa previsto na Lei Ação Popular confirma, pois, a bondade de Augusto
Silva Dias.
3. Aporias do direito à constituição como assistente e do direito de queixa: o
artigo 68.º, n.º1 CPP regula a legitimidade para a constituição como assistente.
a. Nos crimes públicos: o ofendido é, em princípio, quem tem legitimidade
para se constituir assistente, como vimos;
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b. Nos crimes semipúblicos e particulares: o titular do direito de queixa ou
de acusação particular é, em princípio, quem tem legitimidade para se
constituir assistente (artigo 68.º, n.º1, alínea b) CPP). Ora, o titular do direito
de queixa ou de acusação particular é, também ele, o ofendido, o que agora é
determinado em função do artigo 113.º CP.
Em caso de morte do ofendido, pergunta-se: será que o direito à constituição como
assistente passa a pertencer a outras pessoas? A alínea c) do n.º1 do artigo 68.º CPP
atribui, de facto, esse direito a outras pessoas no caso de o ofendido morrer sem ter
renunciado à queixa. A letra do preceito induz o intérprete a concluir que o mesmo
só se aplicará aos crimes cujo procedimento dependa de queixa ou de acusação
particular. Pergunta-se: onde está a transmissão do direito à constituição como
assistente nos crimes públicos? A resposta é surpreendente: não há norma! É claro
que o legislador não podia querer este resultado, mas, apesar disso, não podemos
integrar a lacuna por analogia legis, com a alínea c) do n.º1 do artigo 68.º CPP, desde
logo, porque se trataria de uma analogia contra reum, a qual é vedada pelo princípio da
legalidade. Tão pouco podemos eliminar a expressão morrer sem ter renunciado à queixa
daquele inciso legal, desde logo porque não é admitida a interpretação corretiva, mas
também porque isso impossibilitaria a transmissão, por morte do ofendido, do direito
á constituição como assistente aos seus familiares nos crimes semipúblicos e
particulares. Em suma, temos aqui um problema, que resulta de uma infelicidade da
expressão legislativa.
O regime específico dos crimes particulares: nos crimes particulares, são quatro as
condições de procedibilidade (artigos 50.º, n.º1, 246.º, n.º4 e 285.º, n.º1 CPP):
1. Queixa (ou participação): declaração de vontade por parte to titular do direito de queixa de
que pretende a ação penal;
2. Declaração do queixoso, simultânea à queixa de que deseja constituir-se
como assistente: esta declaração é quase uma mera formalidade, pois a sua falta é
cominada com a mera irregularidade e não compromete o avanço do inquérito.
3. Constituição efetiva como assistente;
4. Dedução de acusação particular pelo assistente.
O prazo para a constituição de assistente é de dez (10) dias, a contar da declaração do
queixoso de que se quer constituir assistente (artigo 68.º, n.º2 CPP). O prazo para a dedução
de acusação particular é de dez (10) dias, a contar da notificação do assistente, findo o
inquérito (artigo 285.º, n.º1 CPP). Nos crimes particulares, o Direito português reconhece
aos particulares uma amplíssima margem de proteção no exercício da ação penal. Resta saber
se os poderes do assistente no procedimento por crimes particulares não serão excessivos,
considerando que pode impor sozinho a continuação do processo, inclusivamente com a
oposição do Ministério Público (artigo 285.º, n.º4 CPP). Dado que o crime é sempre matéria
de interesse público, não se vê nenhuma razão de fundo para os particulares, no caso de
procedimento por crime particular e só nesse caso, poderem ignorar o juízo do Ministério
Público acerca da falta de indícios suficientes da verificação do crime e de quem foram os
seus agentes. Mas é isso mesmo que a lei permite e não há, por conseguinte, nada a fazer.
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§12.º - As partes civis
O lesado: há que distinguir ainda:
1. O ofendido: que é a vítima do crie, no sentido de que é o titular dos interesses que
a lei penal visa proteger;
2. O lesado: é quem sofre o prejuízo.
Portanto, o lesado e o ofendido nem sempre coincidem. Por isso se diz na lei que o lesado é
a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime, ainda que se não tenha constituído ou
não possa constituir-se assistente (artigo 74.º, n.º1 CPP). Neste último caso, dir-se-á que não
pode constituir-se assistente porque não foi ofendido. O pedido de indemnização civil é
deduzido pelo lesado. O pedido pode ser deduzido pelo lesado contra quaisquer pessoas com
responsabilidade civil relacionada como o facto que é objeto do processo penal ao qual adere
a ação civil. O lesado corresponde ao autor na ação declarativa de condenação em processo
civil e os demandados serão os réus nessa mesma ação civil ou quaisquer terceiros
intervenientes, que também são partes nos termos do artigo 320.º CPC.
As partes civis: o lesado e todas as pessoas com responsabilidade civil são partes civis.
Figueiredo Dias diz que as partes civis são sujeitos processuais do processo penal apenas em
sentido formal, não em sentido material, porque a natureza da ação é civil. O CP, no artigo
129.ºm dá claramente à indemnização uma natureza civil, ao dizer que a indemnização de
perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil. Este preceito não dá margem
para dúvidas acerca da natureza meramente civil da indemnização. Ademais, há agora uma
total autonomia da responsabilidade civil perante a responsabilidade penal, pois pode haver
absolvição relativamente à questão penal e condenação no pedido civil, como resulta dos
artigos 84.º e 377.º CPP. Enfim, é preciso apenas que a causa de pedir no pedido de
indemnização civil se tenha baseado nos mesmos factos que são pressupostos do processo
penal. Não há total coincidência na forma como se refere a indemnização civil na lei penal e
na lei processual penal. O Código Penal fala na indemnização de perdas e danos emergentes
de crime. O Código de Processo Penal, no artigo 71.º, fala de pedido de indemnização civil
fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo. Germano Marques
da Silva diz que a expressão fundada na prática de um crime é infeliz. Atendendo à definição
dogmática de crime como ação típica, ilícita, culposa e, eventualmente, punível, não se
compreende, de facto, como é que poderá haver lugar a condenação em indemnização civil,
já que, se houver sentença absolutória, isso dever-se-á, na maior parte das vezes, ao
reconhecimento de que não houve crime, pelo que não poderia haver indemnização fundada
na prática do crime. Em última análise, a responsabilidade civil e a responsabilidade criminal
só se relacionam porque a causa de pedir no pedido cível tem de se basear nos mesmos factos
que desencadeiam o processo penal respetivo, o que é diferente de dizer que houve crime.
O princípio da adesão: quanto ao apuramento da responsabilidade civil, o CPP
consagrou o sistema de interdependência. De mais a mais, a lei impõe a adesão da ação cível
à ação penal (o chamado princípio da adesão), embora com as exceções constantes do artigo
o72.º, n.º1 CPP, em que o pedido pode ser apresentado em separado (só que as exceções são
tantas que cabe perguntar se o princípio ainda vigora realmente). Quanto à representação
judiciária, houve uma alteração. Agora não cabe ao Ministério Público representar o lesado
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em caso algum, embora lhe compita, nos termos do artigo 76.º, n.º3 CPP, formular o pedido
em representação do Estado ou de outras pessoas e interesses cuja representação lhe esteja
atribuída por lei. Em vez disso, foi criado um sistema em que pode ser arbitrada a
indemnização a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências
de proteção da vítima o imponham, nos termos do artigo 82.º-A CPP.
IV – Os princípios do Processo Penal
§13.º - Noções gerais
Os princípios de processo penal são, antes de mais, princípios jurídicos. Esta afirmação
significa que os princípios de processo penal, como todos os princípios jurídicos, têm uma
estrutura complexa que não é comparável à das normas jurídicas. As normas jurídicas são
prescrições dirigidas ao comportamento das pessoas e aplicam-se segundo a ideia de tudo ou
nada, respeitando o clássico esquema da subsunção jurídica. Quer dizer: ou bem que se
verifica uma factualidade que é subsumível na hipótese normativa e a norma aplica-se, ou
bem que não se verifica e a norma não se aplica. Acresce que não podem coexistir na mesma
ordem jurídica normas de conduta opostas e com igual campo de aplicação, sob pena de os
seus destinatários ficarem sem alternativa de ação lícita. Os princípios jurídicos são normas
de elevado grau de generalidade, que funcionam como comandos de otimização,
naturalmente limitados pelos condicionamentos jurídicos e factuais do caso concreto. Os
condicionamentos jurídicos são determinados pela existência de princípios opostos ou até de
regras jurídicas de menor grau de generalidade opostas. No mesmo ordenamento jurídico
coexistem necessariamente diferentes princípios, podendo surgir uma colisão de princípios.
Nesse caso, devem ser estabelecidas relações de ponderação entre os princípios que se
opõem. Na prática, são relações de precedência condicionada, mas nunca absoluta, de uns
princípios relativamente a outros. A relação de precedência condicionada implica a indicação
das condições sob as quais um princípio prevalece sobre outro. Noutras condições, pode
suceder o inverso.
Princípios do início do procedimento:
1. Princípio da oficialidade versus princípio da acusação privada:
a. Oficialidade: a oficialidade significa que a promoção processual das
infrações é tarefa estatal, a realizar oficiosamente e, portanto, em completa
independência da vontade e da atuação de quaisquer particulares. O
fundamento do princípio é a conceção do processo penal como assunto da
comunidade jurídica, representada pelo Estado. A fonte do princípio é o
artigo 219.º, n.º1 CRP. No CPP, veja-se o artigo 48.º. A violação do princípio,
designadamente a promoção do processo sem a intervenção do Ministério
Público, acarreta como consequência a nulidade insanável, nos termos do
artigo 119.º, alínea b) CPP.
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✒ b. Acusação privada: o princípio da oficialidade sofre exceções, que são as
relativas ao princípio da acusação privada e ao regime dos crimes
semipúblicos e particulares. O princípio da acusação privada traduz-se na
exigência de um impulso processual por parte de um particular, geralmente
o ofendido. Vem consagrado nos artigo 49.º e 50.º CPP, que estabelecem
como condição de procedibilidade a queixa (nalguns casos, a participação de
qualquer autoridade). Admite-se desistência da queixa, salvo oposição do
arguido, nos termos do artigo 116.º, n.º2 CP. Nos crimes particulares, a lei
exige, para além da queixa, outros impulsos processuais, a saber:
i. A efetiva constituição de assistente (artigo 68.º, n.º2 CPP);
ii. A dedução de acusação particular (artigo 285.º CPP).
A violação deste princípio acarreta o vício processual de ilegitimidade do
Ministério Público, que será declarado pelo juiz de instrução ou juiz
presidente do tribunal de julgamento (artigo 287.º, n.º2 e 311.º, n.º1 CPP),
ordenado o arquivamento dos autos por falta de condições de
procedibilidade, não sendo proferida qualquer decisão de mérito (ainda o
crime de denegação de justiça e prevaricação: artigo 369.º CP).
2. Princípio da acusação versus princípio da investigação:
a. Acusação: o princípio da acusação significa que o julgador não pode
acumular funções de acusação e investigação, mas pode apenas julgar dentro
dos limites que lhe são postos por uma acusação fundamentada e deduzida
por um órgão diferente (entre nós, o Ministério Público ou juiz de instrução).
A intencionalidade do princípio é a garantia de imparcialidade do julgador e
a igualdade de armas. Por isso mesmo, o Ministério Público não pode ser
dono do processo nas fases de instrução e julgamento. A sede constitucional
do princípio da acusação encontra-se no artigo 32.º, n.º5 CRP. O princípio
da acusação impõe a vinculação temática e a limitação dos poderes de
cognição do juiz de instrução (artigo 309.º, n.º1 CPP) e do juiz de julgamento
(artigos 284.º, n.º1 e 359.º, n.º1 e, nos crimes particulares, artigos 285.º, n.º1
e 359.º, n.º1, todos CPP). A imposição de limites aos poderes de cognição
implica também a preclusão de futuras acusações quanto aos mesmos factos.
O princípio da acusação aplica-se a todos os crimes, mas, como veremos,
acaba sendo limitado por um princípio de investigação. A violação do
princípio da acusação, enquanto alargamento do objeto do processo, acarreta
nulidade sanável, nos termos dos artigos 309.º e 379.º, n.º1, alínea b) CPP.
b. Investigação: outras designações correntes para o princípio da investigação
são princípio da instrução ou princípio inquisitório, com a desvantagem,
porém, de a primeira parecer que o princípio apenas se aplicaria à fase de
instrução e a segunda parecer que o princípio só poderia subsistir num
processo penal de estrutura inquisitória, o que não é correto, pois o atual
princípio da investigação não prejudica a vinculação temática, na medida em
que só se admite a recolha de prova dos factos já constantes da acusação ou
da pronúncia. Na definição de Figueiredo Dias, é
«o poder-dever que ao tribunal incumbe de esclarecer e instruir
autonomamente, mesmo para além das contribuições da acusação e da defesa,
o facto sujeito a julgamento, criando aquele mesmo as bases necessárias à sua
decisão».
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§
Segundo Figueiredo Dias, é um princípio integrante da estrutura basicamente
acusatória do processo penal, que em nada se opõe ao princípio da acusação,
nem sequer a uma estrutura basicamente acusatória do processo penal. É uma
leitura possível, mas a verdade é que o princípio da investigação não é aceite
em sistemas de modelo acusatório puro ou adversarial, o que não pode deixar
de ser significado no presente contexto. Preferimos, pois, reconhecer, tal
como afirma Castanheira Neves, que o princípio da acusação prescreve
limites ao princípio do inquisitório, sobretudo na medida em que
circunscreve o objeto possível de investigação. Avultam diversas
manifestações do princípio da investigação, a saber:
i. A direção da fase da instrução compete ao juiz de instrução (artigo 288.º, n.º1
CPP), que investiga autonomamente (artigo 288.º, n.º4 CPP),
podendo praticar todos os atos necessários às finalidades da instrução
(artigo 290.º, n.º1 CPP);
ii. Na fase do julgamento, especificamente a propósito da audiência (artigo
321.º e seguintes CPP), o tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a
produção de todos os meios de prova (artigo 340.º, n.º1 CPP).
Há quem considere o princípio da investigação sinónimo do princípio da
verdade material, preferindo assim analisá-lo dentro dos princípios relativos
à prova. Ou, então, segundo preferimos, é possível considera-lo como um
corolário do próprio princípio da verdade material, na medida em que a busca
da verdade material justifica o poder-dever de o tribunal instruir e esclarecer
autonomamente o facto sujeito a julgamento.
3. Princípio da legalidade versus princípio da oportunidade:
a. Legalidade: o princípio da legalidade significa que a atividade investigatória
se desenvolve sob o signo da estrita vinculação à lei e não segundo
considerações de conveniência de qualquer ordem, políticas ou económicas
e financeiras. Em processo penal, o Ministério Público está obrigado a
proceder e dar acusação por todas as infrações de cujos pressupostos factuais
e jurídicos, substantivos e processuais, tenha tido conhecimento. Portanto, a
promoção do processo penal é um dever para o Ministério Público. Não quer
dizer que o Ministério Público seja obrigado a acusar a todo o transe, já que
a decisão de acusação depende da existência de indícios suficientes ou prova
bastante (artigo 282.º, n.º1 e 2 CPP). Também decorre do princípio é a
igualdade na aplicação da lei a todos os cidadãos, que é uma ideia estruturante
do Estado de Direito. A sede legal do princípio é, quanto ao impulso inicial,
o artigo 262.º, n.º2 (a notícia do crime dá sempre lugar à abertura de
inquérito), e, quanto ao impulso sucessivo, o artigo 283.º, n.º1, ambos CPP
(se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes o
Ministério Público deduz acusação). A sindicância do princípio realiza-se
através do registo das denúncias (artigo 247.º, n.º2 CPP), do requerimento
para abertura da instrução por parte do assistente, que vale como impugnação
judicial do despacho de arquivamento (artigo 286.º, n.º1 e 287.º, n.º1, alínea
b) CPP), e da intervenção hierárquica (artigo 278.º CPP). A violação do
princípio por parte do Ministério Público (ou seja, a não promoção do
processo) acarreta responsabilidade disciplinar e, eventualmente, criminal,
neste caso por crime de denegação de justiça e prevaricação (artigo 369.º CP,
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✒ mas quanto à falta de impulso inicial é discutível a subsunção no âmbito de
inquérito processual).
b. Oportunidade: entre nós, ninguém aceita o juízo de oportunidade do
Ministério Público quando à promoção do processo, mas sim como limitação
ao princípio da legalidade, para certos domínios limitados. Mesmo no
domínio dos crimes públicos, deve admitir-se uma certa discricionariedade
do Ministério Público. São casos de oportunidade:
i. Crime praticado pelo Presidente da República (artigo 130.º CRP);
ii. Crime praticado por deputado (artigo 157.º CRP);
iii. Crime praticado por titulares de cargos políticos (Lei n.º34/87, 16 julho),
iv. Mediação penal (Lei n.º21/2007, 12 junho);
v. Arquivamento em caso de dispensa de pena (artigo 280.º CPP);
vi. Suspensão provisória do processo (artigo 281.º CPP); e
vii. Processo sumaríssimo (artigo 392.º, n.º1 CPP).
Princípios da prossecução do procedimento:
1. Princípio da audiência versus segredo de justiça interno: o
a. Audição: princípio da audiência e defesa significa que nenhuma decisão que
atinja a esfera jurídica de uma pessoa poderá ser tomada sem que lhe seja
dada a possibilidade de ser ouvida (nemo potest inauditu damnari). Também
incide sobre os meios de prova, pois implica que lhe seja dada ainda a
possibilidade de oferecer provas e de controlar as provas oferecidas pela
acusação ou produzidas oficiosamente. O fundamento do princípio é a
própria estrutura acusatória do processo penal. A sede constitucional do
princípio é o artigo 32.º, n.º1 e 7 CRP. No CPP, o princípio está presente em
toda a tramitação processual, incluindo a fase de inquérito. Designadamente,
o interrogatório de arguido no inquérito é uma forma de concretizar o seu
direito de audiência e defesa. Na revisão de 1998 do CPP, o legislador impôs
a obrigação genérica de interrogar como arguido,, no inquérito, a pessoa em
relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime, nos termos do artigo
272.º, n.º1 CPP. A falta de realização do interrogatório de arguido acarreta
nulidade sanável, nos termos do artigo 120.º, n.º2, alínea d) CPP. O princípio
da audiência e defesa não deve ser confundido com a contraditoriedade no
processo pena. A contrariedade é, também, uma garantia constitucional do
processo penal, nos termos do artigo 32.º, n.º5 CRP. A contraditoriedade na
produção da prova consiste na possibilidade de os contendores, em situação
de igualdade de armas e perante o juiz, contra-interrogarem as testemunhas
indicadas pela contraparte. A contraditoriedade na produção de prova está
assegurada no debate instrutório (artigo 289.º, n.º1 e 298.º CPP) e na
audiência de julgamento (artigo 348.º, n.º4 CPP). A contraditoriedade não
existe na fase de inquérito, salvo no registo de declarações para memória
futura (artigo 271.º, n.º5 CPP).
b. Segredo de justiça: a nossa ordem jurídica não reconhece um princípio de
processo secreto, mas admite a sujeição do processo penal a segredo de
justiça. A sede constitucional da proteção do segredo de justiça é o artigo 20.º,
n.º3 CRP. Mas a Constituição não impõe que haja sempre segredo de justiça,
apenas o admite, desde que adequado, sendo a adequação determinada
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genericamente pela lei, ao prever os casos em que pode ser estabelecido, e
pela intervenção do juiz de instrução, em cada caso. A revisão de 2007 alterou
o regime do segredo de justiça, passando a dispor que o segredo é um regime
de exceção, aplicável somente em fase de inquérito, ademais dependendo de
decisão do juiz de instrução, a requerimento do arguido, do assistente ou do
ofendido e ouvido o Ministério Público (artigo 86.º, n.º2 CPP), ou de
validação do juiz de instrução, se for determinado pelo Ministério Público
(artigo 86.º, n.º3 CPP). A efetivação do direito de audiência não consente,
porém, que o segredo de justiça impeça, por princípio, o acesso aos autos por
parte dos sujeitos processuais, em especial o arguido. Pelo contrário, o direito
de defesa, como nos diz Marques da Silva,
«exige que em qualquer fase do processo, também, por isso, nas fases
preliminares, o arguido possa contribuir para a definição do direito no caso,
carreando para os autos material probatório, o que pressupõe o conhecimento
dos autos».
Por isso mesmo, a oposição, devidamente fundamentada, do Ministério
Público à consulta de auto e obtenção de certidão e informação por parte de
qualquer sujeito processual só se pode manter se o juiz assim o decidir por
despacho irrecorrível (artigo 89.º, n.º2 CPP).
2. Princípio da celeridade e concentração versus garantias de defesa:
a. Celeridade: a celeridade é um princípio geral do processo penal. O princípio
da celeridade tem consagração constitucional, no artigo 32.º, n.º2 CRP. No
processo comum, a demanda da celeridade expressa-se sobremaneira através
do princípio da concentração, que implica, como nos diz Figueiredo Dias,
uma
«prossecução tanto quanto possível unitária e continuada de todos os termos
e atos processuais, devendo o complexo destes, em todas as fases do processo,
desenvolver-se na medida do possível concentradamente, seja no espaço seja
no tempo».
Na audiência de julgamento, a concentração é imposta através da exigência
de continuidade da audiência (artigo 328.º CPP). A celeridade é ainda a
principal ideia retora dos processos especiais.
b. Garantias de defesa: a celeridade não deve, em caso algum, prejudicar as
garantias do arguido. É por isso que se prevê, por exemplo, que a audiência,
em processo sumário, possa ser adiada até trinta dias para preparação da
defesa do arguido ou para realização de diligências probatória (artigo 387.º,
n.º2, alínea b) CPP).
3. Princípio do julgamento justo e equitativo:
a. Nemo tenetur se ipsum accusare: a principal dimensão da ideia de
processo justo e equitativo é o nemo tenetur se ipsum accusare. O princípio
segundo o qual ninguém deve ser obrigado a contribuir para a sua própria
incriminação, que engloba o direito ao silêncio e o direito de não facultar
meios de prova, não consta expressamente do texto da Constituição, mas,
nas palavras de Figueiredo Dias e Costa Andrade,
«a doutrina e a jurisprudência portuguesas são unânimes não só quanto à
vigência daquele princípio no Direito Processual Penal português, como
quanto à sua natureza constitucional».
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✒ Há quem baseie o princípio muito simplesmente nas garantias processuais
consagradas genericamente nos artigos 20., n.º4, in fine e 32.º, nº1 CRP.
Outros, porém, consideram, não obstante aceitarem tais garantias
processuais como fundamento direto e imediato do nemo tenetur, que este
princípio carece ainda de uma fundamentação última de caráter não
processualista, mas antes de ordem material ou substantiva, ligando-o desta
feita aos direitos fundamentais e à dignidade da pessoa humana, nos termos
do artigo 1.º CRP. Seja como for, o princípio nemo tenetur é aceite por todos.
A lei processual penal inclui expressamente o direito ao silêncio no elenco de
direitos do arguido (artigos 61.º, n.º1, alínea d), 141.º, nº.4, alínea a), 343.º,
n.º1 e 345.º, n.º1 in fine CPP), direito este que é, como se disse, um corolário
do nemo tenetur. De resto, o direito ao silêncio estende-se mesmo ao próprio
suspeito, desde logo porque a pessoa sobre quem recai a suspeita de ter
cometido um crime tem direito a ser constituída, a seu pedido, como arguido
(artigo 59.º, n.º2 CPP). Também a própria testemunha não é obrigatória a
responder a perguntas quando alegar que das respostas resulta a sua
responsabilidade (artigo 132.º, n.º2 CPP). Enfim, o direito ao silêncio não é
um direito absoluto. Na verdade, até está submetido a algumas restrições no
processo penal. Na verdade, até está submetido a algumas restrições no
processo penal. Designadamente, o arguido é obrigado a responder com
verdade às perguntas feitas por entidade competente sobre a sua identidade»
(artigo 61.º, n.º3, alínea b) CPP). Tirando essas restrições, aliás mínimas, o
direito ao silêncio é, sem dúvida, um dos pilares do processo penal português.
O direito de não facultar provas autoincriminatórias não tem consagração
expressa no Código, mas resulta, como se disse, da vontade do indagado em
manter o silêncio. Também este não é um direito absoluto. Por exemplo, a
sujeição a exames (artigo 172.º CPP) é, claramente, uma restrição ao direito
de não facultar provas contra si próprio. Mas as restrições carecem sempre
de previsão legal.
b. A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos: a
jurisprudência do TEDH, baseada no artigo 6.º, n.º1 CEDH, tem densificado
consideravelmente o nemo tenetur:
i. Entrega de documentos: antes de mais, refira-se o Ac. TEDH 24/1/1993
(Funke vs. França): neste caso, o Tribunal foi instado a pronunciar-
se sobre a legitimidade de uma condenação, no sistema judicial
francês, em multa e sanção pecuniária compulsória de um cidadão
alemão, Jean-Gustave Funke, ora queixoso, que se tinha recusado, na
sequência de uma busca ao seu domicílio em que foram descobertos
livros de cheques de contas bancárias localizadas no estrangeiro, a
fornecer à administração fiscal francesa extratos dessas suas contas e
que poderiam, eventualmente, ser usados contra ele como prova. Ora,
o TEDH criticou a decisão em causa, ainda que tenha frisado que a
administração fiscal não exigira confissão, nem tão-pouco entrega de
provas auto-incriminatórias, mas somente apresentação de alguns
elementos de informação sobre as contas bancárias que tinham sido
referenciadas na busca. Só que, na verdade, não havia indícios da
prática de infração criminal, nem a administração fiscal pôde ou quis
utilizar os mecanismos de cooperação internacional para aceder aos
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elementos requeridos, preferindo antes exercer uma coerção ilegítima
sobre Funke para tentar obter dele as provas de uma infração que não
sabia se existira. O TEDH concluiu, portanto, que o direito de não
fornecer provas contra si próprio fora lesado no seu núcleo essencial,
pois não havia processo-crime instaurado e o investigado estava a ser
usado como única fonte para a descoberta de possíveis indícios da
prática de crime, o que constituía violação do direito a um processo
equitativo (e, por consequência, do artigo 6.º, n.º1 CEDH). O TEDH
entendeu que essa conclusão, só por si, torna desnecessário analisar
se teria havido, ou não, também uma violação do princípio da
presunção de inocência (artigo 6.º, n.º2 CEDH). O TEDH não
aceitou o argumento do Governo Francês segundo o qual o cidadão
tinha o dever de facultar, a pedido, a documentação relativa ao seu
património e aos seus rendimentos porque o regime legal de controlo
fiscal aduaneiro impunha um tal dever de colaboração com a
administração fiscal. Na verdade, o Tribunal considerou
simplesmente que o dever de colaboração não pode significar
que os abrangidos possam ser obrigados a auto-incriminar-se.
ii. Valoração do silêncio do arguido: importa considerar o Ac. TEDH
8/2/1996 /John Murray vs. Reino Unido). Aqui, o Tribunal foi
chamado a aferir da legitimidade de uma condenação penal, no
sistema judicial britânico, baseada na valoração do silêncio do
acusado e agora queixoso, John Murray. Sucede que Murray fora
detido pela polícia quando descia as escadas de um prédio onde
foram descobertos um sequestrado e os respetivos sequestradores,
militantes do Irish Republican Army (IRA), mas recusou-se sempre,
quer durante o inquérito policial quer durante a audiência de
julgamento, a prestar quaisquer declarações, o que não impediu,
porém, o juiz de julgamento de estabelecer fortes inferências, que
levaram à condenação do acusado, com base na recusa deste de
explicar a sua presença naquele local. Ora, o TEDH considerou,
apesar de tudo, que nem o julgamento tinha sido injusto, nem o
princípio da presunção de inocência tinha sido violado (não havendo,
por conseguinte, violação do artigo 6.º, n.º1 e 2 CEDH), já que a
presença do acusado no prédio e a sua falta de explicação para o facto
eram bastantes para a sua condenação com base no simples senso
comum. Acresce que o Tribunal considerou que a questão de
saber se o direito ao silêncio é, ou não, absoluto deve ser
respondida negativamente, pois não se pode pretender que a
decisão dum acusado de ficar calado durante todo o processo
crime não traga necessariamente implicações quando o juiz
tiver de avaliar as provas que contra ele existem.
iii. Valoração de declarações anteriormente prestadas sob coerção: é imperioso
destacar o Ac. TEDH 17/12/1996 (Saunders vs. Reino Unido).
Ernest Saunders, administrador executivo da sociedade Guiness PLC,
foi condenado, no sistema judicial britânico, a cinco anos de prisão
por conspiração no crime de falsificação do balanço e noutros cries
patrimoniais comuns, todos relacionados com uma oferta pública de
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✒ aquisição sobre Distillers Company PLC, em competição com a Argyll
Group PLC. O TEDH teve de decidir a queixa de Saunders fundada
no facto de terem sido usadas como prova num processo-crime
subsequente as declarações que ele prestara sob coerção, em
procedimento de investigação administrativo, aos inspetores do
Ministério do Comércio e Indústria britânico, o que violaria o seu
direito à não auto-incriminação, implicitamente consagrado no artigo
6.º, n.º1 e 2 CEDH. O Governo britânico contra-alegou que só os
depoimentos auto-incriminatórios seriam abrangidos pela
prerrogativa de não auto-incriminação, já não as respostas dadas com
intuito auto-justificatório, pelo que o acusado poderia ser
confrontado, como foi, em audiência de julgamento com a
transcrição das suas declarações, todas feitas com esse mesmo intuito
auto-justificatório, não sendo de estranhar que, por causa disso,
ficasse com o ónus de rebater as provas que contrariassem as suas
próprias declarações. Acrescentou o Governo britânico que a
prerrogativa de não auto-incriminação não é absoluta ou imutável,
nem implica que nunca seja permitido usar como prova declarações
auto-incriminatórias, documentos ou outros meios de prova obtidos
através do exercício de poderes compulsórios, dando como exemplo
os mandados de busca ou a sujeição a exames de saliva, sangue e urina.
Ademais, o Governo britânico enfatizou o interesse público na
conduta honesta das sociedades comerciais, assinalando que os
suspeitos, neste tocante, estariam obrigados a responder às questões
postas pelos inspetores e que as autoridades de perseguição penal
deveriam poder usar essas respostas em processos-crime
subsequentes. A diferença entre tais fraudes societárias e os tipos de
crime comuns assentaria no facto de, frequentemente, a prova
documental ser incompreensível se não forem dadas as devidas
explicações por parte dos indivíduos envolvidos. Ainda segundo o
Governo britânico, os envolvidos são geralmente homens de
negócios que contam com o apoio jurídico de advogados
especializados, o que significaria que dificilmente darão respostas
ingénuas. Em contrapartida, a Comissão Europeia de Direitos
Humanos defendeu que a prerrogativa de não auto-incriminação
deveria abranger todos os tipos de acusados, incluindo aqueles que
fossem indiciados pela prática de fraudes societárias. No caso
concreto, a Comissão entendeu que os elementos que o arguido, ora
queixoso, fora obrigado a fornecer antes do processo-crime
constituíram uma parte não descipienda da prova usada contra ele em
julgamento, o que violava o princípio do julgamento equitativo. O
delegado da Comissão destacou, na audiência perante o Tribunal, que
a própria negação firme das imputações baseadas em depoimentos
anteriormente prestados podia ser altamente prejudicial para o
arguido, pois ele podia dar assim impressão de ser uma pessoa
desonesta. Ora, o Tribunal começou por definir, com rigor, o objeto
da queixa, que versava apenas sobre a questão da legitimidade de
utilização em processo-crime das declarações anteriormente
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prestadas pelo arguido, agora queixoso, aos inspetores do Ministério
do Comércio e Indústria britânico, mas já não sobre a questão de
saber se os próprios procedimentos de investigação administrativos
deviam, ou não, ser abrangidos pelo princípio do processo equitativo,
o que, em tese geral, mereceria uma resposta negativa, a menos que
fosse sacrificado o interesse público na regulação efetiva das
atividades comerciais e financeiras complexas. Considerando, por
conseguinte, o objeto da queixa, o Tribunal lembrou que, embora
o artigo 6. CEDH não mencionasse expressamente o direito ao
silêncio e o direito de não contribuir para a sua própria
incriminação, estes pertencem ao cerne da noção de processo
equitativo consagrada no referido normativo. Tal decorre, entre
outras razões, da necessidade de se proteger o acusado perante uma
eventual coerção abusiva por parte das autoridades. Em particular, o
direito de não contribuir para a sua própria incriminação pressupõe
que, em qualquer processo-crime, a acusação tenha de ser construída
sem recurso a provas obtidas através de coação ou pressões de
qualquer espécie, com desrespeito da vontade do acusado. Neste
sentido, este direito está estreitamente ligado ao princípio da
presunção da inocência. O TEDG acrescentou que
«o direito à não auto-incrimincação concerne, em
primeiro lugar, ao respeito pela vontade de um
acusado em manter o silêncio. Tal como é
interpretado na generalidade dos sistemas jurídicos
das Partes contratantes da Convenção, o mesmo não
abrange a utilização, em quaisquer procedimentos
penais, de dados que possam ser obtidos do acusado
recorrendo a poderes coercivos, contanto que tais
dados existam independentemente da vontade do
suspeito, tais como, inter alia, os documentos
adquiridos com base em mandado, as recolhas de
saliva, sangue e urina, bem como de tecidos
corporais com vista a uma análise de ADN».
Quanto ao caso concreto, o Tribunal considerou que o direito de não
contribuir para a sua própria incriminação não pode ficar confinado
às declarações de admissão da prática de ilícitos, nem a considerações
diretamente auto-incriminatórias, mas deve abarcar quaisquer
depoimentos obtidos sob coerção, incluindo os auto-justificativos,
que pudessem depois ser usados, em sede de processo-crime, para
pôr em causa outras declarações do acusado ou para minar a sua
credibilidade, como sucedera, de resto, no caso em apreço. O
Tribunal decidiu, por conseguinte, que tinha havido violação do
princípio do processo equitativo, tal como previsto no artigo 6.º, n.º1
CED. À conta do obiter dictum sobre as provas existentes
independentemente da vontade do acusado, o presente Acórdão
tornar-se-ia, muito mais vezes citado a propósito do dever, em
processo-crime, de entrega de documentos ou de sujeição a exames
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✒ do que a propósito da valoração, em processo-crime, de declarações
anteriormente prestadas sob coerção.
iv. Informação inadequada: o Ac. TEDH 8/4/2004 (Weh vs. Áustria)
teve por objeto uma situação de prestação de informação inadequada.
Ludwig Weh, ora queixoso, fora punido, no sistema judicial austríaco,
com multa por falta de indicação completa da identidade e morada
da pessoas que conduzira o seu veículo automóvel na altura em que
este foi referenciado em excesso de velocidade. De facto, a Lei dos
Veículos Motorizados previa como infração criminal a violação do
dever de fornecer às autoridades competentes, a pedido, a
informação sobre quem conduz um determinado veículo automóvel
identificado pela chapa de matrícula. O queixoso argumentava que
fora punido por não ter fornecido informação que poderia incrimina-
lo no contexto de um processo-crime por condução em excesso de
velocidade. Só que o Tribunal considerou que o queixoso não estava
a ser substancialmente afetado por uma acusação relacionada com a
condução em excesso de velocidade, nem no contexto de
procedimentos penais em curso no momento em que o pedido lhe
foi dirigido, nem no contexto de procedimentos penais subsequentes.
Acresce que o Tribunal considerou que tinha sido solicitado ao
queixoso um esclarecimento meramente factual – a indicação
da identidade e morada do condutor do carro registado em
nome dele –, o que não era diretamente incriminatório, além de
que essa informação não poderia ser obtida de outro modo.
Não houve, conclui o TEDH, violação do direito ao silêncio,
nem da prerrogativa de não auto-incriminação.
v. Valoração de provas extraídas à força do organismo do suspeito: o Ac. TEDH
11/7/2006 (jalloh vs. Alemanha) analisou uma queixa relativa à
obtenção da prova material de um crime de tráfico de droga através
da administração forçada, através de uma sonda nasogástrica, de
substâncias indutoras do vómito (eméticos), graças à qual se operou
a recuperação por regurgitação da bolota de cocaína que o suspeito
engolira quando foi detido em flagrante por agentes da polícia à
paisana. Abu Bakah Jalloh, cidadão serra-leonês, ora queixoso, foi
condenado, no sistema judicial alemão, em seis meses de prisão, com
pena suspensa, pela prática de um crime de tráfico de
estupefacianetes. Nem no julgamento, nem nos sucessivos recursos
foram atendidos os seus protestos de que o meio de obtenção de
prova usado, se bem que ordenado pelo Ministério Público e
conduzido por um médico, constituía uma ofensa à sua integridade
física praticada por funcionários, que fora desproporcionada e, como
tal, era proibida pelo CPP alemão, além de que violava a sua dignidade
humana, garantida pela Lei Fundamental. Diante do TEDH, Jalloh
acabaria por apresentar queixa contra a Alemanha por ter sido sujeito
a tratamento desumano e degradante, proibido pelo artigo 3.º CEDH,
além de ter visto desrespeitado o seu direito a um processo equitativo,
garantido pelo artigo 6.º, n.º1 CEDH. Num Acórdão muito
disputado, o Tribunal deu razão ao queixoso Jalloh, considerando
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§
ter havido violação do artigo 6.º, n.º1 CEDH. O presente aresto
é especialmente relevante pelo facto de o TEDH aí indicar, pela
primeira vez, os critérios gerais que contam para a decisão da
violação do princípio nemo tenetur se ipsum accusare:
«Para determinar se o direito à não
autoincriminação do queixoso foi violado, o
Tribunal, por sua vez, terá de considerar os
seguintes fatores: a natureza e o grau de coerção
empregado para obter as provas, a importância do
interesse público na investigação e punição da
infração em apreço, a existência de garantias
relevantes no processo e a utilização prevista dos
meios de prova obtidos dessa forma».
No caso concreto, o Tribunal considerou que
«a medida impugnada visava um traficante de rua que vendia
drogas à sua pequena escala e que foi,, a final, condenado numa
pena de prisão de seis meses, suspensa e em regime de prova. Nas
circunstâncias do caso, o interesse público em assegurar a condenação
do queixoso não podia justificar o recurso a tão grave interferência
na sua integridade física e mental».
vi. Outros: mais arestos relevantes para a delimitação do nemo tenetur
poderiam ainda ser citados, tais como o Ac. TEDH 21/3/2001
(Heaney e McGuiness vs. Ireland), sobre o direito ao silêncio, embora
reconhecendo o que é legítima alguma valoração do silêncio em
certas circunstâcias; o Ac. TEDH 3/8/2001 (J.B. vs. Suiça), sobre a
entrega de documentos que fazem prova de evasão fiscal; o Ac.
TEDH 21/1/2009 (Bykov vs. Russia), sobre a necessidade de se
preservar o núcleo essencial do direito ao silêncio, e outros que a
economia da exposição já não aconselha continuar a citar.
A análise da jurisprudência do TEDH autoriza, pelo menos, a conclusão de
que o direito de não contribuir para a sua própria incriminação, não é um
direito absoluto, mas admite ponderações e restrições no confronto com
outros interesses juridicamente tutelados, desde que se garanta a preservação
do núcleo essencial daquele direito.
Princípios relativos à prova:
1. Princípio da verdade material versus princípio do dispositivo: o princípio
dispositivo e o seu contrário, o princípio da verdade material, representam dois
modelos de verdade totalmente opostos:
a. Uma verdade conscientemente assumida como produto contingente
do confronto entre as provas concorrentes apresentadas pelas partes e
apreciadas pelo julgador segundo critérios probabilísticos: da qual
resultam as seguintes consequências:
i. Ónus de produção: cabe às partes a apresentação dos meios de prova
que servem de base à decisão;
ii. Ónus de persuasão: compete às partes afirmar o respetivo ponto de vista
e impugnar os argumentos da parte contrária;
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✒ iii. Ónus tácito: cabe ainda às partes antecipar o sentido da decisão do
tribunal e contrariar a eventual vantagem da parte contrária.
b. Uma verdade investigada pelo julgador independentemente das
contribuições das partes, na expectativa de assim conseguir descobrir
a realidade do facto histórico sujeito a julgamento: daqui resultariam, em
princípio, consequências totalmente opostas às anteriores, se porventura
subsistisse ainda o processo penal de estrutura inquisitória. Mas a verdade
material aparece, nos modernos sistemas mistos, como um mero princípio
integrador da estrutura acusatória do processo penal. Neste contexto, as
consequências desta segunda conceção não são radicalmente opostas às da
primeira conceção, mas são moderadamente diferentes, a saber:
i. Ónus de produção: cabe à acusação a apresentação das provas suficientes
de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente;
ii. Ónus de persuasão: cabe à acusação sustentar em juízo, designadamente
em alegações orais, as conclusões de facto que haja extraído da prova
produzida e que permitam motivar a condenação do arguido;
1. Mas o tribunal ordena oficiosamente a produção de outros meios de prova
cujo conhecimento se lhe afigure ainda necessário à descoberta da verdade
e à boa decisão da causa;
2. A defesa fica assim desonerada de produzir quaisquer meios de prova
favoráveis ao arguido;
3. Nem sequer se o arguido confessar os factos integralmente e sem reservas,
isso significa que tenha de ser condenado, pois o tribunal pode suspeitar
do caráter livre da confissão, nomeadamente por dúvidas sobre a
veracidade dos factos confessados (artigo 344.º, n.º3, alínea b) CPP);
4. Finalmente, se o defensor oferecer simplesmente o merecimento dos autos
nas alegações orais, isso não implica que o arguido seja condenado;
iii. Ónus tácito: a defesa técnica deve fazer mais do que simplesmente
pedir a costumeira justiça.
Há muitas incompreensões quanto à existência de ónus da prova em processo penal,
mas devem-se sobremaneira à falta de clarificação das várias aceções do ónus de
prova. Nomeadamente é correto dizermos que a acusação, não o Ministério Público
ou o acusador particular, tem um ónus material (objetivo) de produzir meios de prova
(ónus de produção) e de persuadir o tribunal de que as provas são bastantes para a
condenação do arguido a qualquer preço, pois protagoniza apenas o interesse público
na descoberta da verdade e na realização da justiça. Daí que o Ministério Público
investigue à charge et à décharge, podendo produzir provas favoráveis ao arguido ou
alegar a sua inocência. Mas quando o Ministério Público estiver de posse de indícios
suficientes sobre um crime e sobre quem foi o seu agente, mais do que um ónus
subjetivo, tem até um poder-dever de acusar e de prosseguir com o processo penal
até ao limite das possibilidades de recurso. Não se pode concordar com Figueiredo
Dias quando nega a vigência do ónus da prova objetivo em Direito Penal, objetando
apenas que a absolvição não é uma decisão desfavorável à acusação, por não haver
um interesse do Ministério Público contraposto ao do arguido, o que parece ser um
argumento deslocado. Como afirma Múrias, o ónus da prova é uma figura da teoria
geral do Direito, se não da teoria geral da argumentação ou da decisão, havendo assim,
ónus da prova em Direito Penal, como em administrativo, em fiscal, em processo
ditos de jurisdição voluntária ou em qualquer processo em que o Ministério Público
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tenha de intervir, defendendo ou não o interesse do Estado. O princípio in dubio pro
reo também não deve ser invocado como obstáculo à existência de ónus de prova
objetivo em Direito Penal, pois aquele princípio determina apenas que o ónus recaia
totalmente sobre a acusação. Ou seja, as consequências da falta de prova, ou risco do
non liquet, recai apenas sobre a versão onerada. Por sua vez, o tribunal intervém
ativamente na busca da verdade material, não se limitando simplesmente a sopesar a
versão onerada contra a versão privilegiada. Assim, o tribunal ordena oficiosamente
a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário
à descoberta da verdade e à boa decisão da causa (artigo 340.º, n.º1 e 2 CPP). O
tribunal pode ainda ordenar a junção aos autos de documento que a acusação e a
defesa já perderam o direito de juntar (artigo 164.º, n.º2 e 165.º, n.º1 CPP). Há
exceções ao princípio da verdade material:
a. Proibição da utilização do conhecimento privado do juiz nas suas
decisões (quod non est in actis non est in mundo). A prova tem que ser
feita no processo e até na audiência (artigo 355.º CPP). Mas isto não impede
que o juiz se considere impedido, colocando-se à disposição para ser ouvido
como testemunha (artigo 39.º, n.º1, alínea d), in fine CPP). Por outro lado,
nada impede a utilização de factos notórios, de conhecimento oficial ou
judicial (artigo 514.º CPC, ex vi artigo 4.º CPP);
b. Princípio da legalidade dos meios de prova e dos métodos de obtenção
de prova: na medida em que a própria lei estabelece as condições em que as
provas não podem ser produzidas, nem valoradas;
c. Proibições de provas (artigos 32.º, n.º8 CRP e 126.º CPP);
d. Preclusão da possibilidade de produzir prova suplementar depois de
encerrada a discussão da causa (artigo 361.º, n.º2 CPP), na medida em que
o tribunal, já a deliberar, não poderá voltar à sala de audiência e declarar
reaberta a sessão, salvo se for para obter declarações e depoimentos sobre a
personalidade e condições de vida do arguido, desde que necessários para a
determinação da sanção (artigo 371.º CPP).
e. Extinção do poder jurisdicional do juiz sobre a causa (artigo 666.º, n.º1
CPC ex vi artigo 4.º CPP). Já decidiu, nada pode reformar. Só resta a via de
recurso. Mas as decisões interlocutórias podem ser reparadas (artigo 414.º,
n.º1 CPP).
A violação do princípio da verdade material por omissão de diligências que pudessem
reputar-se essenciais para a descoberta da verdade acarreta nulidade sanável (artigo
120.º, n.º2, alínea d) CPP), que poderá ser conhecida em via de recurso, se for
tempestivamente arguida (artigo 410.º, n.º3 CPP).
2. Princípio da imediação: o princípio da imediação implica o contacto direto do
julgador com as fontes da prova (artigo 355.º CPP).
3. Princípio da livre apreciação da prova versus prova legal:
a. Livre apreciação da prova: o sistema de prova livre, que vai de par com a
íntima convicção, substituiu na Europa Continental o anterior sistema
romano-canónico da prova legal, que dava um valor fixo às provas em função
de certas fórmulas (v.g., testis unus, testis nullus). Este último sistema não era
irracional, mas, hoje em dia, é fácil de perceber que assentava em ficções,
dado que atribuía valor de verdade às conclusões produzidas por certos meios
de prova, ainda que fossem conclusões contrárias às evidências empíricas do
caso. O sistema da prova livre, além de refletir planos tão distintos como
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✒ aqueles que opõem (ou hesitam entre) as linguagens especializadas e a
linguagem comum, ou que opõem (ou relacionam) a assunção de um vínculo
normativo e a prossecução de uma exigência cognitiva, é também um
símbolo da modernidade. Na verdade, a prova livre antecipa duas
características típicas o espírito moderno, a saber:
i. A abertura à experiência;
ii. A autonomia do observador (neste caso, o julgador).
Tais características potenciam a descoberta da verdade material. O problema
é que a íntima convicção e a prova livre correm o risco de promover a
arbitrariedade das decisões, sobretudo se a lei não exigir do julgador que
preste contas dos meios pelos quais formou a sua convicção, como ainda
hoje sucede, por exemplo, no Direito Francês. O sistema da íntima convicção
é a da prova livre parece assim negar-se a si mesmo, a menos que o risco
acima referido possa ser removido. Como? A resposta é revelada pela própria
evolução do sistema probatório, desde os primórdios do século passado até
hoje:
iii. A prova livre transmutou-se em prova cientifica;
iv. A íntima convicção robusteceu-se através de uma nova exigência de motivação das
decisões.
O julgador moderno tem produzir abundante fundamentação dos seus juízos
probatórios. Para o efeito, ele faz apelo não só aos meios de prova científicos,
mas também às chamadas regras de experiência. O CPP português impõe
mesmo que a prova seja apreciada segundo as regras da experiência e a livre
convicção da entidade competente (artigo 127.º CPP).
b. Meios de prova de valor reforçado: alguns meios de prova têm um valor
especial, designadamente:
i. A confissão: cabe nas declarações do arguido, mas tem previsão
especial por causa do seu particular valor probatório (artigo 344.º
CPP). No caso de o arguido querer confessar os factos que lhe são
imputados, o juiz presidente pergunta-lhe, sob pena de nulidade, se o
faz de livre vontade e fora de qualquer coação e se quer realmente
fazer uma confissão integral e sem reservas. A confissão implica, com
efeito, a renúncia à produção da prova relativa aos factos imputados,
dando-se os mesmos como provados e passando-se de imediato às
alegações orais e à determinação da sanção aplicável (artigo 344.º, n.º2,
alínea a) e b) CPP). Esse regime demonstra que o legislador deu
forma legal a uma regra de experiência comum, que pode ser
parafraseada como segue: em geral, quem confessa fala a verdade, o
que torna dispensável mais indagações.
ii. Prova pericial: o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova
pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador, nos
termos do artigo 163.º, n.º1 CPP. Desse modo, o legislador deu
forma legal a outra regra de experiência comum, que é esta: os peritos
sabem melhor do que ninguém emitir juízos de facto no âmbito das
respetivas especialidades. De facto, aquilo que o julgador procura no
perito não é tanto uma cessão de conhecimento técnico, científico ou
artístico, que o primeiro nunca poderá assimilar de modo instantâneo,
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por muito que se esforce, mas antes boas razões para justificar a sua
crença em determinada explicação que lhe foi transmitida pelo perito.
iii. Prova documental por documentos autênticos e autenticados: consideram-se
provados os factos materiais constantes de documentos autênticos e
autenticados, nos termos do artigo 169.º CPP. Aqui o legislador seu
forma legal à regra da experiência comum segundo a qual, em
princípio, merecem crédito os factos que foram testemunhados por
uma entidade credenciada, que lavrou o documento.
Com exceção da confissão, da prova pericial e da prova por documentos
autênticos ou autenticados, não há, no domínio da valoração dos meios de
prova, mais restrições ao princípio da livre apreciação. Há outras limitações
à livre apreciação da prova, mas que o legislador impôs relativamente ao
modo de produção de certos meios de prova e que operam, portanto, em
momento anterior ao da própria valoração da prova. Por exemplo: as regras
destinadas a determinar a fiabilidade do testemunho (artigo 138.º CPP), a
forma rigorosa do reconhecimento de pessoas (artigo 147.º CPP), etc. Estas
regras legais de prova que subsistem no âmago do sistema da prova livre nada
têm de paradoxal se forem vistas como meras regras da experiência em forma
legal, como se referiu. Nesse caso, nem sequer será preciso grande esforço
para justificar a sua vigência, pois o seu valor probatório é muito ténue, nunca
se aproximando da prova pleníssima, nem sequer da prova plena, que eram
os graus de prova mais caracterizados do velho sistema da prova legal.
Quando muito, as atuais legais de prova dizem quando é que a prova é
bastante. Assim, o julgador pode suspeitar do caráter livre da confissão,
nomeadamente por dúvidas sobre a imputabilidade plena do arguido ou
sobre a veracidade dos factos confessados. Quanto à prova pericial, o
julgador pode divergir do juízo contido no parecer dos peritos, nesse caso
devendo fundamentar a sua divergência, segundo manda o artigo 163.º, n.º2
CPP. No entanto, não é preciso uma contraperícia. Um juiz pode recusar as
conclusões do relatório pericial com argumentos próprios, desde que os
discuta no terreno técnico em que se situa o relatório. Mas só por um
extraordinário acaso poderá suceder que um juiz tenha o cabedal de erudição
necessário para discutir os argumentos do perito no plano técnico. Mais
frequentemente sucederá que o juiz se baseie num relatório pericial para
afastar os resultados de outro relatório pericial de sentido divergente. Nesse
caso, como é possível que um não especialista (i.e., o juiz) decida qual dos
especialistas é que tem razão? É por isso que não é muito feliz a afirmação
de que o juiz é o perito dos peritos, a qual costuma ser usada para enfatizar a
liberdade do julgador perante os peritos. Quanto à prova por documento
autêntico ou autenticado, a autenticidade do documento ou a veracidade do
seu conteúdo podem ser postas, em causa. Enfim, não basta pô-las em causa,
é preciso fazê-lo fundamentadamente, diz o artigo 169.º CPP. Mas não é
necessário fazer a prova de falsidade. Portanto, os documentos autênticos e
autenticados não têm o valor de prova plena, que é aquela que só cede diante
da prova do contrário, nem, muito menos, o valor de prova pleníssima.
4. Princípio in dúbio pro reo: o princípio in dúbio pro reo significa que a dúvida sobre
os pressupostos de facto da decisão a proferir deve ser valorada a favor da pessoa de
que a liberdade pessoal é um bem inestimável. Todavia, a consequência da aplicação
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✒ do princípio não é necessariamente a absolvição. O princípio só diz respeito à prova
da questão de facto. Quanto à questão de direito, prevalece a interpretação que for
julgada a mais correta.
Princípios relativos à forma:
1. Princípio da publicidade versus segredo de justiça externo e restrições à
publicidade: o princípio da publicidade consiste na atribuição a qualquer pessoa do
direito de assistência às audiências dos tribunais (artigos 206.º CRP e 321.º, n.º1 CPP),
complementado pelo direito de narração, com restrições, dos atos processuais ou
reprodução dos seus termos através dos meios de comunicação social (artigos 86.º,
n.º2, alínea b) e 88.º, n.º1 CPP), e pelo direito de consulta dos autos e obtenção de
cópias, extratos e certidões de quaisquer partes deles (artigo 86.º, n.º2, alínea c) e 90.º
CPP).
2. Princípio da oralidade: o princípio da oralidade é válido para todos os momentos
processuais (artigo 96.º, n.º1 CPP). Está ligado ao princípio da livre convicção (artigo
127.º CPP). Não pode ler-se uma declaração preparada (artigo 96.º, n.º1 CPP, exceto
no caso previsto no n.º2). As declarações são atos que revestem forma oral, mas
ficam registadas (artigo 99.º, n.º1 CPP).
V – O Objeto do Processo
§14.º - O problema da identidade do objeto do processo
A estrutura acusatória do processo exige a identidade entre o acusado, o conhecido e o
decidido. A identidade do objeto é critério decisivo:
1. Da exceção de litispendência;
2. Do conteúdo e limites da eficácia do caso julgado;
3. Para circunscrever a amplitude da atividade probatória;
4. Para decidir os limites do conhecimento de infração não idêntica, mas
suscetível de transferibilidade potencial na base da manutenção do objeto do
processo;
5. Para demarcar o objeto possível dos recursos;
E é fator importante na determinação da competência, da legitimidade, etc. A identificação
e descrição do objeto do processo responde à tensão entre dois interesses fundamentais:
1. O interesse (reconhecido como garantia) do arguido na manutenção da
eadem res desde a acusação até à sentença, pois só assim conseguirá preparar
uma defesa pertinente e eficaz, segura de não deparar com surpresas incriminatórias
e de ter assim um julgamento leal;
2. O interesse público na aplicação do Direito Penal e na eficaz perseguição e
condenação dos delitos cometidos.
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§
Os princípios da definição e conhecimento do objeto do processo:
1. Princípio da identidade: o objeto do processo deve manter-se idêntico, o mesmo,
desde a acusação (em sentido material, incluindo o requerimento para abertura da
instrução do assistente e o despacho de pronúncia) até à sentença definitiva, mas essa
identidade não pode ser entendida como sendo determinável de forma lógica, pois é
antes um problema jurídico concreto e que se mantém o mesmo do início ao fim do
processo. Como diz Castanheira Neves, há uma correlatividade intencional entre um
problema e a sua solução.
2. Princípio da unidade ou indivisibilidade: o objeto do processo deverá ser
conhecido na sua totalidade, unitária e indivisivelmente. É natural que um problema
unitário seja resolvido num só processo, não só pelo interesse do arguido de que se
resolva de uma vez por todas a totalidade do facto por que é acusado, como também
porque a multiplicação de provas e decisões poderia ser contraditória e até iníqua.
Por outro lado, há a imposição legal da pena unitária. Este princípio é, ademais, uma
decorrência do acusatório, no sentido de que o objeto do processo não é disponível,
e é um corolário da identidade do objeto do processo, no sentido de não haver
disponibilidade no âmbito do mesmo objeto do processo.
3. Princípio da consunção: o conhecimento e decisão do objeto do processo deverá
considerar-se como tendo esgotado a sua apreciação jurídico-criminal. A esgotante
cognição corresponde ao interesse do Estado na realização da pretensão punitiva,
assim como corresponde também ao interesse do arguido na decisão da sua sorte,
resguardando-se definitivamente da possibilidade de novos julgamentos.
O critério da identidade do objeto do processo: este problema tem como núcleo
essencial uma dimensão metodológica, devendo a sua solução ser encontrada
necessariamente, num plano que transcende o da mera exegese do sistema legal. Nas palavras
de Castanheira Neves:
«é a individualidade do caso jurídico, com a sua unidade concreto-problemática, que se impõe a
regulamentação processual».
Em última análise, é o problema metodológico geral de saber qual é o objeto da aplicação do
Direito. Havia duas correntes principais:
3. A posição naturalista (Cavaleiro de Ferreira):
«O objeto sobre que incide o processo tem de ser um facto concreto na sua existência
real e não um conceito de facto (…) O conceito de identidade do facto não irá buscar-
se assim ao Direito material; a identidade do facto tem de apreciar-se
naturalisticamente, como facto concreto, real».
4. A posição neokantiana, de pendor teleológico-culturalista (Eduardo Correia):
«Uma construção naturalística do objeto processual não logra dar soluções precisas e
exatas ao problema dos limites da identidade do facto. E não o consegue porque,
esquecendo a natureza própria do plano teleológico ou referencial a valores em que ele
se coloca, desce do mundo jurídico para o mundo naturalístico, como se se tratasse de
coisas só hierarquicamente diferentes. (…) O problema da identidade não poderá
derivar, pois, de qualquer coincidência naturalística, mas só de uma coincidência dos
concretos juízos de valor em que o objeto processual se analisa».
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✒ Chegava, depois, à conclusão de que a identidade do facto não se define pelo
preenchimento de um determinado tipo de crime, mas pela referência essencial à
mesma unidade jurídica.
Eram posições radicalmente antagónicas, mas tinham, não obstante, em comum o esquema
normativista-subsuntivo da aplicação do Direito, com dissociação analítico-objetiva dos dois
termos:
Os factos; e
A norma.
Ora, a questão não pode pôr-se nesses termos e, por isso mesmo, as teorias referidas devem
ser ambas rejeitadas. Na verdade, o problema do objeto do processo decorre do facto
de um caso penal ser inevitavelmente um caso em construção, já que o seu sentido é
de índole problemático-interrogante e a sua finalidade é uma investigação (que tanto
pode confirmar, como pode não confirmar aquele sentido hipotético). Mas não é
apenas um problema de investigação de uma realidade, suscetível de ser apreendida por uma
mera representação. Além de que todas as realidades são apreensíveis a partir de um certo
ponto de vista, e o ponto de vista agora relevante é o jurídico-criminal. Portanto, é um
problema jurídico concreto. Em conclusão: se o objeto da decisão jurídica é um caso da vida,
um caso concreto-histórico, ele só é, no entanto, objeto de uma decisão de Direito porque é
um caso jurídico, um caso da vida que põe um problema de Direito. Assim sendo, não se
pode fazer mais do que fornecer alguns critérios indicativos, todavia necessitados de
corroboração no caso concreto:
1. A identidade do objeto do processo há de ter uma dimensão subjetiva pois
pressupõe a identidade do ou dos arguidos : eadem personae. E tratando-se de
vários arguidos, ainda que numa situação de comparticipação, existem pelo menos
tantos objetos quantos os arguidos;
2. A identidade objetiva não se decide por um ponto de vista meramente
jurídico-qualificativo. Ou seja, o objeto do processo não deixará de ser o mesmo
só porque tenha variado a sua qualificação jurídica. O nomen iuris é, pois, irrelevante,
com isso se rejeitando a doutrina (francesa e belga) do fait qualifié.
Tudo o mais é muito discutível.
A alteração dos factos: depois de fixado o objeto do processo, ainda assim podem
aparecer factos novos. Os factos novos trazidos ao processo podem ser factos totalmente
independentes, o que em termos substantivos daria lugar a um concurso real de infrações
com o objeto do processo em curso. Nestes casos, o Ministério Público deverá simplesmente
abrir um outro inquérito quanto aos factos totalmente novos, nos termos do artigo 262.º,
n.º2 CPP. O nosso problema é antes a variação na descrição dos mesmos factos, a chamada
alteração substancial de factos ou não. O conceito de alteração substancial de factos é
definido no artigo 1.º, alínea f) CPC. A alteração substancial de factos pode dar lugar a uma
alteração da qualificação jurídica, mas não necessariamente. A inversa não é verdadeira, ou
seja: a alteração da qualificação jurídica não implica uma alteração substancial de factos.
A fixação do objeto do processo: nos crimes públicos e semipúblicos, é a partir da
acusação pelo Ministério Público (artigo 283.º, n.º1 CPP) ou do requerimento para a abertura
da instrução pelo assistente (artigo 287.º, n.º1, alínea b) CPP) e, nos crimes particulares, é a
partir da acusação particular (artigo 285.º, n.º1 CPP) que passa a vigorar o princípio da
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vinculação temática. Ou seja, o objeto do processo fica a partir daí fixado nos seus limites
máximos. Entrados na segunda fase (facultativa) do processo, o juiz instrutor, em razão desse
princípio, vê traçado o círculo dentro do qual livremente se pode movimentar na sua tarefa
de investigação, cujo limite é a fundada suspeita da verificação de uma alteração substancial
dos factos (artigo 303.º, n.º3 CPP). Se o juiz instrutor porventura pisar fora das estremas dos
seus poderes de investigação, então o artigo 309.º, n.º1 CPP, comina a nulidade da decisão
instrutória na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração
substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no
requerimento para abertura da instrução. É uma nulidade dependente de arguição, nos
termos do artigo 309.º, n.º2 CPP. Nos termos do artigo 359.º, n.º1 CPP, uma alteração
substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, não pode ser
tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso. A
nulidade do incumprimento do disposto nesse inciso legal também depende de arguição, a
qual é tempestivamente feita se o for na motivação do recurso, conforme o disposto no
artigo 410.º, n.º3 CPP.
§15.º - O regime da alteração substancial de factos
Os factos novos autonomizáveis: o regime da alteração substancial de factos é variável,
consoante os factos novos sejam:
1. Autonomizáveis: o conceito de factos autonomizáveis define-se pela possibilidade
de os separarmos daqueles que já constituem o objeto do processo, de tal sorte que,
sem se prejudicar o processo em curso, sejam criadas as condições para se iniciar um
outro processo penal, sem violação do princípio ne bis in idem.
2. Não autonomizáveis. nesta hipótese, então, segundo o artigo 303.º, n.º4 CPP,
devem ser destacados do processos em curso e dar lugar à abertura de inquérito
noutro processo penal (ressalvadas as exceções dos crimes semipúblicos e
particulares), devendo o primitivo processo prosseguir os seus trâmites. Na fase de
julgamento, os factos novos autonomizáveis devem igualmente ser comunicados ao
Ministério Público para que proceda por eles (artigo 359.º, n.º2 CPP).
A possibilidade de autonomização verifica-se nas situações de concurso ideal de infrações.
Neste caso, julgar-se-á no processo em curso mas com preterição da circunstância
extemporaneamente descoberta. Essa circunstância não poderia ser tomada em consideração
para o efeito da agravação da pena legal, nem sequer poderia ser considerada para o efeito
da exacerbação da pena concreta dentro dos limites da pena legal. Num novo processo,
caberia, por sua vez, tão somente investigação independente e a decisão dos factos
eventualmente constitutivos do outro crime. Isso não deverá fazer obstáculo à aplicação de
uma pena conjunta, por virtude do concurso de crimes, a cargo do tribunal da última
condenação (artigo 77.º, n.º1 CP).
Os casos duvidosos: serão autonomizáveis os elementos dos crimes complexos? Cabem
na categoria dos crimes complexos aqueles tipos de crime que mantêm uma filiação de
especialidade com respeito a dois ou mais tipos fundamentais: por exemplo, o roubo. A
especialidade é uma relação entre duas ou mais normas em que uma, a lex specialis, contém já
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✒ todos os elementos da outra, a lex generalis, se bem que constem da norma especial novos
elementos, os quais lhe reduzem, por consequência, o âmbito de aplicação por referência à
norma geral. Dessa relação advém, segundo um princípio sem exceção, que a lex specialis
derrogat generali. Geralmente, a relação de especialidade entre normas incriminadoras serve de
modelo organizador para famílias de crimes, compostas de um tipo fundamental e de
subtipos, todos concorrendo para a proteção de unum et idem bem jurídico. Mais raramente,
o legislador chega a operar a reunião de dous ou mais tipos fundamentais, fazendo surgir
assim os chamados crimes complexos. Não fica por isso perturbada a relação de
especialidade do crime complexo com cada um dos tipos fundamentais que estão na sua
origem, nem mesmo se o crime complexo corresponder já a uma imagem social própria, com
o seu peculiar sentido de desvalor (o chamado crime autónomo ou sui generis), e passar a servir,
ele mesmo, de tipo fundamental com respeito a novos subtipos. Em função dessa definição,
percebe-se que haja alguma tendência para admitir a conversão num concurso de infrações
dos elementos integrantes do tipo legal do crime complexo. A transformação do crime
complexo em duas infrações separadas permitiria, pois, a abertura de inquérito relativamente
aos factos descobertos na instrução ou no julgamento, sem prejuízo da continuação do
processo em curso. Bem vistas as coisas, não parece, porém, que esta solução seja conforme
aos princípios do processo penal de estrutura acusatória. É sabido que a razão de ser dessa
singular estrutura não radica na necessidade de fazer vingar um formalismo, tão bom como
outro qualquer, nas funções que as autoridades judiciárias devem executar nas diversas fases
do processo, mas obedece antes ao espírito de respeito pelo valor da pessoa do arguido e do
seu direito de defesa. É bem de ver, então, que não devem ser apoiadas as tentativas de
suplantar, através de meros expedientes formais, os entraves à verdade material impostos
pela estrutura acusatória do processo penal. Precisamente, era isso que sucederia se
porventura se quisesse partir em dois um facto punível que constituísse uma unidade natural
de ação. Não se pode fazê-lo, já que a tanto se opõem os princípios da indivisibilidade e
consunção do objeto do processo. Quer isto dizer que um crime de roubo não deve ser
pulverizado nos seus elementos típicos, nem estes desbaratados por processos penais
independentes.
Os factos novos não autonomizáveis: já na hipótese de os factos novos serem
inseparáveis do objeto do processo em curso, cabe reconhecer que a solução não é pacífica.
A solução há de resultar então da possibilidade de se estabelecer uma concordância prática
entre os interesses em causa ou até da necessidade de se fazer prevalecer um desses interesses
sobre o outro, a saber: o interesse do arguido versus interesse publico.
1. No anteprojeto do Código de 1987: no projeto de Código de Processo Penal,
Figueiredo Dias tinha concebido a solução de conferir ao juiz de instrução poderes
para pronunciar por factos que constituíssem uma alteração substancial dos descritos
na acusação ou no requerimento de abertura de instrução. Era uma solução só
aplicável à fase de instrução, mas não à fase de julgamento, baseando-se no
argumento de que ainda se estaria no âmbito de uma fase de investigação, como se o
inquérito e a instrução fossem duas subfases de uma única instância de investigação.
A proposta do anteprojeto não vingou em sede de Comissão Revisora,
argumentando-se então que a mesma feria o princípio do acusatório por não impor
qualquer vinculação temática ao juiz de instrução.
2. Na redação primitiva do Código de 1987: o CPP de 1987 não dava solução
expressa à questão da alteração substancial dos factos não autonomizáveis em relação
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§
ao objeto do processo. Na falta de menção expressa à alteração substancial dos factos
não autonomizáveis em relação ao objeto do processo, ambos os normativos eram
aplicados restritivamente, de maneira que o Ministério Público podia abrir inquérito
quanto aos novos factos que fossem autonomizáveis em relação ao objeto do
processo. Já quanto ao modo de proceder relativamente aos novos factos que não
fossem autonomizáveis em relação ao objeto do processo, a doutrina mostrava-se
assaz dividida.
a. A alteração substancial de factos não autonomizáveis na instrução: as
respostas possíveis para este problema só podiam passar por uma de três:
i. A tese da repartição do inquérito no mesmo processo penal, em ordem à eventual
integração da alteração substancial de factos no objeto do processo: a solução
passava pelo apelo às normas do processo civil, com base no artigo
4.º CPP, aplicando-se então o regime da suspensão da instância.
Ordenada a suspensão da instância pelo juiz de instrução, haveria
lugar à repartição do inquérito, findo o qual, das duas uma:
1. Ou o Ministério Público concluía pela suficiência de indícios quanto a
todos os factos e deduzia acusação também pelos factos que tivessem
levantado a suspeita da alteração substancial de factos: todos os factos
eram introduzidos na instrução, ficando consequentemente
sujeitos a um despacho de pronúncia ou de não pronúncia –
portanto, a uma decisão judicial de comprovação; ou
2. Não concluía naquele sentido e mantinha a primeira acusação.
Tive ocasião de discordas dessa solução, por várias ordem de razões:
essa solução simulava um suporte dogmático-legal verdadeiramente
inexistente, porque, à parte o surpreendente apelo a uma cláusula
geral extensiva dos casos de suspensão da instância absolutamente
indeterminada, o próprio sentido da suspensão da instância no
processo civil traduz-se numa paragem da causa que era incompatível
com a noção dinâmica de recomeço do processo penal desde o seu
início (i.e., repetição do inquérito), que era o efeito procurado através
da importação do referido instituto para o processo penal neste
contexto; por outro lado, essa solução baseava-se, em última análise,
no pressuposto inadmissível de que caberia nas funções do juiz de
instrução dirigir o Ministério Público, ao indicar-lhe a necessidade de
reformar uma investigação supostamente deficiente.
ii. A tese da organização de um novo processo com todos os factos: a solução de
organização de um novo processo passava novamente pelo recurso
às normas do processo civil, com base no artigo 4.º CPP, aplicando-
se agora o regime da absolvição da instância e arquivando-se o
processo. A solução seria, pois, a da não prossecução dos autos de
instrução emitindo-se uma decisão de forma. Rigorosamente, nem se
poderá falar aqui de não pronúncia, porque a debruçar-se sobre o
fundo da questão, o juiz só o fará na estrita medida do necessário à
apreciação da questão prévia da falta de poderes de cognição do juiz.
Assim, o Juiz de Instrução Criminal proferirá uma decisão instrutória
que não é de mérito, porque antes deparou com o obstáculo da falta
dum verdadeiro pressuposto processual, relativo ao objeto do
processo (artigo 308.º, n.º3 CPP). Esta solução parecia, portanto,
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✒ basear-se na ideia de que a falta de acusação do Ministério Público
relativamente aos factos que viriam a consubstanciar a alteração
substancial ocorrida na instrução tornaria o juiz de instrução
absolutamente incompetente (i.e., uma incompetência material) o que
valeria como falta de um pressuposto processual, dando lugar à
absolvição da instância. Também tive ocasião de rejeitar esta solução,
à parta a consideração pelo seu eventual rigor técnico, pois ela
contrariava, aliás, frontalmente, o princípio da legalidade, aderindo,
ao invés, à inadmissível (no quadro do sistema processual vigente)
matriz da oportunidade. Materialmente, a solução ora rejeitada
implicaria que o juiz de instrução, dispondo de matéria suficiente para
proferir um despacho de pronúncia pelos factos constantes do objeto
do processo, considerava que era inoportuno fazê-lo, em atenção à
proibição de juntar-lhes os factos que constituíam a alteração
substancial.
iii. A tese da continuação do processo em curso, com preterição absoluta de
conhecimento da alteração substancial de factos: tudo visto e somado, a única
resposta compatível com a concreta estrutura acusatória do nosso
processo penal, no qual a função do juiz de instrução é materialmente
judicial (e não materialmente policial ou de averiguações), era a última
das três:
1. Nada fazer quando ocorresse, na fase de instrução (por
maioria de razão, o mesmo valia na fase de julgamento), a
descoberta de factos substancialmente diversos mas
inextrincáveis do objeto do processo em curso, devendo
então o processo prosseguir os seus trâmites com inexorável
sacrifício parcial do conhecimento da verdade material.
Falhava aqui, portanto, a concordância prática do interesse do
arguido na sua defesa pertinente e eficaz com o interesse público no
esclarecimento da verdade material. Prevalecia, ao invés, um único
interesse, o do arguido. Esta conclusão não devia, no entanto, causar
estranheza porque não se tratava aqui de arruinar o interesse público
na punição do criminoso, quando fosse caso disso, mas tratava-se
apenas de escamotear alguns concretos fatores de avaliação da
quantidade de pena e isso era seguramente menos dramático do que
a ruína daquele interesse público. Enfim, eram os casos em que as
circunstâncias modificativas agravantes especiais nominadas ou até
os exemplos-padrão referidos a uma cláusula agravante determinada
(a técnica incriminatória usada no artigo 132.º CP) nunca teriam, por
definição, a relevância suficiente para sustentar sozinhos um objeto
de processo à parte. O problema da alteração substancial dos factos
já não se punha quanto ao conhecimento das circunstâncias
modificativas comuns nominadas (a única: a reincidência, nos termos
dos artigos 75.º e 76.º CP) porque, embora não se tenha optado entre
nós pelo sistema da césure, o CPP confere autonomia às operações de
determinação da sanção no contexto da deliberação e violação da
decisão, sem contudo constituir com elas uma particular fase do
julgamento, sendo só nessa altura que se deverá dar relevo ao
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conhecimento dos antecedentes criminais do arguido (e, portanto, à
efetiva consideração da reincidência), nos termos do artigo 369.º CPP.
b. A alteração substancial de factos não autonomizáveis no julgamento:
na fase de julgamento, as respostas possíveis só podiam agora passar por uma
de duas:
i. A organização de um novo processo penal com todos os factos;
ii. A continuação do processo em curso.
Ambas as respostas repetiam os argumentos já invocados a propósito da
verificação do mesmo problema na fase de instrução. Nesta fase do processo,
Frederico Isasca já não defendia a suspensão da instrução, mas antes a
consideração dos factos não autonomizáveis dentro da medida da pena legal
que coubesse aos factos do objeto processual inicialmente proposto.
Escusado será dizer que a minha preferência ia para a tese da continuação do
processo em curso.
3. Na revisão de 2007 do Código de Processo Penal: a Unidade de Missão para a
Reforma Penal assumiu a necessidade de a lei dar resposta expressa ao problema da
alteração substancial de factos não autonomizáveis, quer na fase de instrução, quer
na fase de julgamento. No Conselho da UMRP vingou a doutrina da continuação do
processo em curso, com preterição absoluta de conhecimento da alteração
substancial de factos. O regime da alteração substancial de factos tem de respeitar a
estrutura acusatória do processo penal. A revisão de 2007 do Código contribuiu para
tornar isso claro, ao afastar explicitamente as soluções doutrinárias e jurisprudenciais
que punham isso em causa. Na verdade, o fragmento textual nem implica a extinção
da instância, que consta quer da parte final do n.º3 do artigo 303.º CPP, quer da parte
final do n.1º do artigo 359.º CPP, tem de ser interpretado no sentido de que a lei
afasta agora qualquer decisão meramente formal de extinção da instância,
designadamente a solução da absolvição da instância. A lei consagra agora a solução
do prosseguimento da instrução ou do julgamento, com sacrifício dos factos novos
não autonomizáveis.
Casos peculiares: peculiares são os casos em que a matéria da alteração substancial de
factos implica a subsunção dos factos num tipo de crime alternativo com respeito àquele que
estava pressuposto no objeto do processo em curso. Será que esses factos descobertos na
instrução ou no julgamento, aliás incompatíveis com o objeto do processo em curso,
deveriam dar lugar à abertura de inquérito? Nesse caso, será que o processo em curso deveria
acabar num despacho de não pronúncia ou numa sentença absolutória, consoante a fase do
processo? Mas esta solução só seria possível se estivesse especialmente prevista na lei. Caso
contrário, o mais certo é serem invocados contra ela o caso julgado material e a proibição de
novo processo penal com um objeto parcialmente coincidente, aliás numa parte muito
significativa (i.e., o mesmo agente e a mesma vítima, o mesmo objeto da ação, o mesmo bem
jurídico, etc.). Será que há melhores soluções?
1. A discussão na Unidade de Missão para a Reforma Penal: concordando
com o sentimento geral dos membros do Conselho da UMRP quanto à solução da
continuação do processo em curso com preterição absoluta de conhecimento da
alteração substancial de factos, oportunamente manifestei, no entanto, o meu receio
de que o articulado que vingou não fosse suficiente para impedir futuras dúvidas
acerca do tratamento a dar aos casos em que a matéria da alteração substancial de
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✒ factos implicasse a subsunção dos factos num tipo de crime alternativo por
comparação com o objeto do processo em curso.
2. A solução para os crimes alternativos: na falta de solução legal expressa para
o problema da alteração substancial de factos que implique a subsunção dos factos
num tipo de crime alternativo por comparação com o objeto do processo em curso,
a verdade é que o problema não deixará de se pôr na prática. Não se pode negar que
faça parte do núcleo essencial do facto punível a descrição da ação típica, como já
dizia Keetsin Liu, discípulo de Beling. Por conseguinte, a identidade do facto muda
se for outra a atividade imputada ao arguido. Neste caso, a continuação do processo
com preterição absoluta de conhecimento da alteração substancial de factos
redundaria numa decisão de mérito de conteúdo absolutório, pois resultava da prova
produzida em audiência que o arguido não realizara a atividade descrita no libelo,
mas outra, igualmente punível, só que não constante da acusação e pela qual não
poderia ser condenado no processo em curso. Também não poderia ser julgado em
processo autónomo, sob pena de violação do caso julgado material e do princípio ne
bis in idem. A solução é difícil de aceitar, pois implica um sacrifício total da pretensão
punitiva, em radical contradição com os factos entretanto revelados, mas não há
como escapar a esta conclusão. Não cremos que ainda possa valer a doutrina
expendida no Ac. TC n.º137/2007, 30 março 2007, onde se decidiu
«não julgar inconstitucional a norma, extraída dos artigos 289.º, a 493.º, n.º2
CPC e 1.º, alínea f), 4.º, 359.º, n.º1 e 379.º, n.º1, alínea c), 1.ª parte, CPP, segundo
a qual, comunicada ao arguido alteração substancial dos factos descritos na acusação,
resultante da prova produzida em audiência – em situação em que os novos factos
apurados formam, juntamente com os constantes da acusação, uma unidade de sentido
que não permite a autonomização – e, opondo-se o arguido à continuação do
julgamento pelos novos factos, o tribunal pode proferir decisão de absolvição da
instância quanto aos factos constantes da acusação, determinando a comunicação ao
Ministério Público para que este proceda pela totalidade dos factos».
Tal solução deixou de se poder aplicar após a revisão de 2007, pois mudou a
lei e o legislador, que já conhecia esta decisão do Tribunal Constitucional,
preferiu solução diversa, mais compatível com a natureza acusatória do
processo penal português. De resto, o Tribunal Constitucional já teve ocasião de
se pronunciar sobre o novo regime legal, no Ac. TC n.º226/2008, 21 abril 2008,
concluindo
«pela não inconstitucionalidade da norma do artigo 359.º CPP, na redação resultante da Lei
n.º48/2007, 29 agosto, interpretada no sentido de, perante uma alteração substancial dos factos
descritos na acusação ou na pronúncia, resultante de factos novos que não sejam autonomizáveis em
relação ao objeto do processo – opondo-se o arguido à continuação do julgamento pelos novos factos
–, o tribunal não pode proferir decisão de extinção da instância em curso e determinar a comunicação
ao Ministério Público para que este proceda pela totalidade dos factos».
Na fundamentação do aresto, ficou, porém, consignado um apontamento que ganha
profunda acuidade no caso dos crimes alternativos, onde o défice de proteção de
bens jurídicos pode, a final, assumir um caráter dramático. Na verdade, diz-se no
aresto que
«o que fica fora do âmbito de consideração na sentença e, por essa via, escapa
definitivamente à sanção penal, são circunstâncias modificativas especiais que nunca
teriam relevância suficiente para sustentar um processo à parte. O que só pode
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significar que o bem jurídico nuclear suscetível de justificar a incriminação encontra
ainda o mínimo de proteção penal, sendo apenas escamoteados alguns concretos fatores
de intensificação dessa proteção».
Não é isto que se passa nos crimes alternativos.
VI – As medidas de Coação e de Garantia Patrimonial
§16.º - As medidas de coação
Os critérios de aplicação das medidas de coação: a aplicação de uma medida de
coação obedece:
1. Princípios: são princípios das medidas de coação (artigos 191.º a 195.º CPP), aliás,
extensivos às medidas de garantia patrimonial (artigos 227.º a 228.º CPP):
a. A legalidade das medidas de coação e de garantia patrimonial (artigo
191.º, n.º1 CPP);
b. A proporcionalidade em sentido amplo (artigo 193.º CPP):
i. Necessidade;
ii. Adequação; e
iii. Proporcionalidade
c. A judicialidade (artigo 194.º, n.º1 e 2 CPP);
d. A subsidiariedade da obrigação de permanência na habitação e da
prisão preventiva (artigo 193.º, n.º2 CPP);
e. O direito de audiência e defesa (artigo 194.º, n.º3 CPP).
2. Condições gerais: são condição gerais das medidas de coação (artigos 191.º a 195.º
CPP), também extensivas às medidas de garantia patrimonial (artigos 227.º a 228.º
CPP):
a. A taxatividade das medidas de coação e de garantia patrimonial (artigo
191.º CPP);
b. A prévia constituição de arguido (artigo 192.º, n.º1 e 58.º, n.º1, alínea b)
CPP)
3. Pressupostos gerais: os pressupostos gerais das medidas de coação são
reconduzíveis às categorias tradicionais do:
a. Fumus comissi delicti: é necessário que seja possível formular um juízo de
indiciação da prática de certo crime doloso pelo agente (i.e., a convicção
relativamente à prática de crime doloso pelo arguido e, pela negativa, a falta
de fundados motivos para crer na existência de qualquer causa de isenção de
responsabilidade ou de extinção do procedimento criminal);
b. Periculum libertatis: é necessário, ainda, que se verifique algum destes
pericula, referido nas alíneas do artigo 204.º CPP:
i. Evitar a figa do arguido;
ii. Anular o perigo dessa fuga;
iii. Prevenir a perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo;
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✒ iv. Esconjurar a perturbação da ordem e da tranquilidade públicas;
v. Riscos de continuação da atividade criminosa por parte do arguido.
4. Requisitos específicos: há, ainda, a considerar os requisitos específicos de cada uma
das medidas de coação, que estudaremos separadamente para cada uma delas.
5. Critérios de escolha: são critérios de escolha das medidas de coação, no caso
concreto (artigo 193.º CPP):
a. A necessidade;
b. A adequação;
c. A proporcionalidade.
Ou seja, as medidas escolhidas devem ser necessárias e adequadas às exigências
cautelares impostas pelo caso concreto e devem ser proporcionais à gravidade do
facto punível em apreço.
As medidas de coação em particular: as medidas de coação admissíveis por lei são as
seguintes:
1. O termo de identidade e residência: o termo de identidade e residência é a única
medida de coação que pode ser aplicada no âmbito de qualquer processo, comum ou
especial, independentemente da espécie ou gravidade da pena aplicável e devendo ser
aplicada sempre que se verifique a constituição de arguido (artigo 196.º, n.º1 CPP).
Além disso, cabe dizer que o termo de identidade e residência (TIR) é sempre
cumulável com qualquer outra medida de coação (artigo 196.º, n.º4 CPP). Alguns
setores da doutrina contestam que seja uma verdadeira medida de coação, desde logo
porque não é abrangido pelos pressupostos gerais de aplicação das medidas de
coação. Será o TIR um mero ato de identificação do arguido, a fim de garantir que
este possa sempre vir a ser encontrado e visado das suas obrigações no processo?
Não parece que seja só isso, muito menos depois da alteração ao Código de 1998,
fazendo com que o TIR passasse a garantir o julgamento na ausência de arguido
(artigos 196, 333.º, 334.º e 380.º-A CPP). De resto, o TIR já antes arrastava consigo
uma série de restrições à liberdade ambulatória dos arguidos, nos termos do artigo
196.º, n.º3, alínea b) CPP. Por tudo isso, deve ser considerado como uma autêntica
medida de coação.
2. A caução carcerária: já a prestação de caução, nos termos do artigo 197.º CPP,
constitui, indiscutivelmente, uma medida de coação. Esta medida nunca pode ser
aplicada pelo Ministério Público, mas só por despacho do juiz, embora na fase de
inquérito a sua aplicação tenha de ser requerida ao juiz de instrução pelo Ministério
Público, nos termos do artigo 194.º, n.º1 CPP, o que se compreende, aliás, por mor
de esta última entidade ser o dominus do processo na fase em causa (inquérito) e, por
isso mesmo, ser quem está em condições de antecipar as necessidades cautelares
correspondentes ao caso concreto.
3. A obrigação de apresentação periódica: a obrigação de apresentação periódica,
nos termos do artigo 198.º CPP, constitui uma mais intensa restrição de direitos
fundamentais, que também só pode ser aplicada por decisão judicial.
4. A suspensão do exercício de profissão, de função, de atividade e de direitos:
nalgumas circunstâncias, a continuação do exercício da profissão, função, atividade
ou direitos pode contender com a investigação do crime em causa, razão pela qual o
legislador criou a medida prevista no artigo 199.º CPP.
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5. A proibição de imposição de condutas: é a partir desta medida que o legislador
exige, como requisito específico, a prática de crime doloso, nos termos do artigo
200.º, n.º1 CPP.
6. A obrigação de permanência na habitação: a obrigação de permanência na
habitação não deve ser vista como prisão domiciliária, pois o arguido fica no seu
ambiente familiar/natural, podendo ser-lhe conferidas autorizações de saída para
cumprimento de obrigações de vária ordem (v.g., laborais, religiosas e outras). A
obrigação de permanência na habitação pode ser aplicada com recurso aos meios
técnicos de controlo à distância (vulgo, a pulseira eletrónica), nos termos do artigo
201.º CPP, sendo que, neste caso, os demais elementos do agregado familiar têm de
dar autorização para a vigilância eletrónica do domicílio. Nem sempre a obrigação de
permanência na habitação pode ser aplicada em vez de prisão preventiva, pois há
situações em que, por exemplo, a sua aplicação não impede a continuação da
atividade criminosa (e.g., o tráfico de estupefacientes a partir do domicílio).
7. A prisão preventiva: a prisão preventiva constitui a medida de coação mais grave
do sistema, só podendo ser aplicada subsidiariamente, nos termos do artigo 202.º,
n.º1 CPP. Na sequência da revisão do Código de 2007, o novo regime da prisão
preventiva foi muito criticado, sendo apontado como fautor de um aumento de
criminalidade violenta, aferido em função dos relatos de assaltos à mão armada
amplamente noticiados pelos meios de comunicação social. Foi dito que a nova
exigência, para aplicação da prisão preventiva, de que o crime fosse punido com pena
de prisão de máximo superior a cinco anos (artigo 202.º, n.º1, alínea a) CPP), em vez
dos anteriores três anos, teria obrigado à libertação de muitos presos preventivos. E
estes teriam aproveitado a liberdade recém-adquirida para se dedicar aos assaltos,
reconfortados pelos sinais de laxismo dados pelo legislador através da reforma do
processo penal. Ainda se teria de acrescentar aos efeitos perniciosos da alteração do
regime da prisão preventiva o facto de os juízes não poderem aplica-la a muitos dos
detidos que lhes eram presentes, desde logo porque se tornara mais difícil o
preenchimento dos requisitos específicos dessa medida de coação. O que,
supostamente, de novo acelerava o carrossel dos assaltos, posto que os delinquentes
eram imediatamente devolvidos à rua, aliás, com renovação dos ímpetos porque
ganhariam, entretanto, a sensação de impunidade. Porém, a verdade é que a alteração
legislativa não impedia, de maneira nenhuma, que aos roubos, ainda para mais à mão
armada, fosse aplicada a prisão preventiva. Só não seria aplicada se fossem
consideradas adequadas e suficientes outras medidas de coação menos gravosas, mas
isso resultava diretamente do princípio da necessidade, adequação e
proporcionalidade (Artigos 193.º, n.º1 e 2 e 202.º, n.º1 CPP), que não fora alterado
e, de mais a mais, é comum a todos os Estados de Direito. Tudo visto e somado, as
alterações ao regime da prisão preventiva não explicam a sua falta de aplicação aos
casos concretos que tanta celeuma provocaram na opinião pública. Curiosamente,
poucos falaram de que a prisão preventiva se podia impor ao arguido mesmo em
caso de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a três anos, se
fosse crime de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada (artigo
202.º, n.º1, alínea b) CPP). Ora, este também fora uma das novidades da revisão do
CPP de 2007. Menos ainda se falou do autêntico agravamento do regime resultante
da possibilidade de a prisão preventiva se elevar para metade da pena de prisão
concretamente aplicada, se o arguido tiver a sentença condenatória confirmada em
sede de recurso ordinário (artigo 215.º, n.º6 CPP). Uma reforma que foi acusada de
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✒ brandura para com os arguidos produziu, afinal, uma norma de extrema severidade.
Em 2010, o regime legal da prisão preventiva foi de novo objeto de alteração,
alargando-se consideravelmente o catálogo de crimes a que é aplicável, nos termos
do artigo 202.º, n.º1, alíneas b) a e) CPP.
A impugnação das medidas de coação: são três os possíveis meios de impugnação das
medidas de coação, a saber:
1. O pedido de revogação ou substituição das medidas (artigo 212.º, n.º4 CPP):
constitui uma espécie de reclamação para a entidade com competência para a
aplicação da medida, nos termos do artigo 212.º, n.º4 CPP. O pedido deve ser
justificado mediante a invocação da alteração das circunstâncias que determinaram a
aplicação da medida no primeiro momento;
2. O recurso ordinário (artigo 219.º CPP): pode ser interposto pelo Ministério Público
ou pelo arguido para impugnar a decisão proferida em 1.ª instância. É o meio normal
de impugnação de decisões judiciais, nos termos do artigo 219.º CPP, podendo
cumular-se até com a providência de habeas corpus. Não há qualquer relação de
litispendência ou de caso julgado entre o recurso e a providência de habeas corpus
(artigo 219.º, n.º2 CPP).
3. A providência de habeas corpus (artigo 222.º CPP): é admissível apenas nos casos
de prisão ilegal, constituindo uma garantia dos cidadãos, enquanto providência e
recurso urgente per saltum para o STJ, ainda que condicionado pelos fundamentos
expressamente previstos no artigo 222.º, n.º2 CPP.
VII – A sucessão de leis processuais penais materiais e o
princípio da aplicação da lei penal mais favorável2
§17.º - Aplicação do princípio da lei penal favorável à sucessão de
normas processuais penais materiais
Especificidades e autonomia do Direito Processual Penal: a doutrina e a
jurisprudência tradicionais restringiram, na generalidade, o problema do conflito temporal de
leis penais ao Direito Penal denominado material, ou seja, às normas relativas à hipótese
criminal (preceito incriminador) e à estatuição penal (preceito sancionatório). Aqui, como
vimos, as razões jurídico-políticas de garantia do cidadão e politíco-criminal da
indispensabilidade da pena determinaram, sucessivamente, a proibição da retroatividade da
lei penal desfavorável (lei incriminadora e lex severior) e a imposição da retroatividade da lei
penal favorável (lei discriminadora e lex mitior). Quanto à sucessão das leis de processo penal,
da organização judicial e da execução das penas, as referidas doutrina e jurisprudência,
partindo de uma errada e precipitadamente redutora conceção destas normas como de
2 CARVALHO, Américo A. Taipa de; Sucessão de Leis Penais; 3.ª edição revista e atualizada; Coimbra Editora; Coimbra, Junho de 2009; pp. 347 – 431.
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natureza exclusivamente processual, organizatória, técnica ou formal, defenderam o princípio
da sua aplicação imediata – tempus regit actum. O pensamento jurídico-penal tradicional
esqueceu-se de que, tal como ao chamado Direito Penal material, também no Direito
Processual Penal, no Direito da organização judiciária e no Direito da execução de penas
(sobretudo da pena de prisão), há normas que podem afetar os direitos individuais
fundamentais. A arbitrariedade legislativa e judicial – motivação e causa originárias da
consagração do princípio da legalidade penal e do seu corolário da proibição da retroatividade
penal desfavorável – tem, também nestes domínios do Direito Penal em sentido amplo mas
rigoroso, um propício campo de afirmação. Esta possibilidade real de arbítrio, através da
aplicação retroativa de alterações legislativas destas categorias de normas, não foi tida em
atenção. Assim, a generalidade dos autores contentou-se com a superficial afirmação da sua
natureza processual-técnica e com o consequente princípio da aplicação imediata das normas
processuais penais, princípio que estendeu às normas sobre a constituição e competência dos
tribunais criminais e sobre a execução das penas. Quanto ao cumprimento da pena de prisão,
agravava-se, ainda, a situação jurídica do recluso com a atribuição à Administração da
competência para superintender e decidir do modus de execução da pena. Paulatinamente, a
consciência jurídico-política e político-criminal vai-se apercebendo de dois aspetos
convergentes no sentido de porem em questão o pacífico status quo jurídico-penal. Por um
lado, vai-se afirmando a ideia de que o processo penal – dada a especificidade e autonomia
dos pressupostos, da natureza e da finalidade da responsabilidade penal face à
responsabilidade civil – é autónomo do processo civil e de que as leis processuais penais não
se reduzem a meras normas formulárias. No Direito Processual Penal, há normas que
condicionam, positiva (pressupostos processuais que são verdadeiros pressupostos
adicionais de punição: v.g., queixa ou acusação particular) ou negativamente (impedimentos
processuais que são verdadeiros impedimentos de punição: v.g., prescrição do procedimento
criminal), a responsabilidade penal; há normas que dizem diretamente respeito aos direitos e
garantias de defesa do arguido; há, ainda, normas que afetam direta, incisiva e gravemente o
direito fundamental da liberdade. Por outro lado, vai-se gerando a consciência de que o
campo de aplicação dos princípios da irretroatividade da lei penal desfavorável e da
retroatividade da lei penal favorável é mais amplo do que o tradicionalmente definido. As
implicações práticas destes princípios aumentam na proporção do aprofundamento e re-
consciencialização das genuínas e perenes razões de garantia política e de máxima restrição
possível da pena, razões que determinam a consagração daqueles princípios. A primeira
manifestação desta dupla e convergente consciencialização jurídico-penal da especificidade e
autonomia do processo penal face às outras espécies de processo, nomeadamente ao
processo civil, e da distinção, no âmbito do Direito Processual Penal, entre normas de
conteúdo material – as que condicionam a responsabilização penal ou que contendem com
os direitos fundamentais do arguido e do recluso – e as normas exclusivamente processuais
ou formais – as que estabelecem as formalidades do procedimento criminal –, dizia, a
primeira manifestação deu-se com o instituto da prescrição do procedimento criminal. Em
1988, afirmava Figueiredo Dias: há
«extensas divergências entre cada um dos principais tipos processuais, respeitantes ou à sua
estrutura ou, sobretudo, aos seus fundamentos e princípios e às suas formas concretas de
realização».
Hoje, é reconhecida a
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✒ «necessária autonomia funcional e teleológica de cada tipo de processo. (…) Ao processo civil
cabe uma natureza privatística e ao processo penal, pelo contrário, uma natureza e uma
estrutura publicista».
Diferentemente do que se passa com outros ramos do Direito, há entre o Direito Penal e o
Processo Penal uma verdadeira relação de mútua complementariedade funcional, podendo
mesmo dizer-se relação de interdependência ou de implicação biunívoca: o processo penal –
tal como qualquer processo – pressupõe o Direito Penal, e o Direito Penal – diferentemente
do que acontece com os ramos do Direito não sancionatório – só se concretiza através do
Processo Penal. O Processo Penal é, em rigor, o modus existendi do Direito Penal. O
pensamento jurídico-constitucional e jurídico-penal atual reconhece que, tal como o Direito
Penal, também o processo penal é o espelho da forma do Estado, pois o que no Processo
Penal jogam-se os direitos e as liberdades fundamentais. Neste sentido, são exatas as palavras
de Sax: tal como a do Direito Penal, também
«a história do Direito Processual Penal é, ao mesmo tempo, uma parte essencial da história
das relações entre o Estado e o Cidadão».
Normas processuais penais materiais e normas processuais penais formais: o
esquecimento prático desta especificidade e autonomia do processo penal, aliado a um
viciado método de dedução conceitualístico-formal, conduziu à aceitação superficial do
princípio da aplicação imediata das leis processuais penais na sua globalidade. Dominados
por uma visão imediatista, segundo a qual toda a norma que diretamente condicionasse (v.g.,
queixa e prescrição), orientasse (v.g. espécies de prova) ou pressupusesse (v.g. prisão
preventiva) o processo era uma norma exclusivamente processual, partiam para a afirmação
indiscutível do princípio da aplicação imediata. Às objeções de que tal aplicação imediata
violava a proibição da retroatividade da lei penal (desfavorável) respondia-se,
secundarizando-se o ponto decisivo do tempus delicti, que não, retorquindo que a lei nova se
aplicava a atos ou situações que – embora inseridos num processo iniciado e determinado
por uma infração praticada na vigência da lei anterior – decorriam já na vigência da nova lei:
tempus regit actum. Numa palavra:
1. Menosprezavam-se as rationes jurídico-política e político-criminal da
aplicação da lei penal mais favorável: esquecia-se que condicionam a efetivação
da responsabilidade penal contendem diretamente com os direitos do arguido ou do
recluso;
2. Descurava-se a distinção entre normas processuais penais materiais e normas
processuais penais formais: estas, regulamentando o desenvolvimento do
processo, não produzem os efeitos jurídico-materiais derivados das primeiras.
Referimos, anteriormente, ao passado. No presente, contudo, o vício metodológico
apontado continua a ser frequente, embora cresça um movimento doutrinário no sentido
desejado e embora cresça um movimento doutrinário no sentido desejado e imposto pelas
razões de ser do princípio da aplicação da lei penal favorável e apoiado numa correta
metodologia teleológico-material. O vício metodológico consiste em partir de argumentos
superficiais, formais e, portanto, inconsistentes para decidir a natureza jurídica (material ou
processual) das normas penais em casua e, no momento seguinte, deduzir formalmente da
qualificação (natureza) jurídica as soluções para os problemas concretos: se a lei (norma)
nova é de natureza material, rege o princípio da aplicação da lei favorável (proibido da
retroatividade, se é desfavorável; retroatividade, se é favorável); se tem natureza processual,
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aplica-se imediatamente. Elucidativo desta imperfeição metodológica – que conduz a
fundamentações inseguras de decisões hesitantes – é o percurso seguido pela jurisprudência
e por grande parte da doutrina portuguesas, em matéria de sucessão de leis que alteram os
pracos de prescrição do procedimento criminal. Raciocinava, nos seguintes termos, o STJ,
ao fundamentar o Assento 19 novembro 1975:
«o alegado princípio de a prescrição ser matéria de Direito substantivo e não adjetivo, e estar,
por isso, sujeita ao artigo 6.º referido, não leva, de modo nenhum, a afastar a aplicação da lei
nova, visto que tal aplicação é possível, sem que haja retroatividade».
Comentário: a doutrina, rectius, a solução fixada pelo Assento (aplicação so prazos em curso
da Lei Nova, que os encurte) foi correta, mas a fundamentação é confusa e insegura. Esta
inconsistência – resultante de uma imperfeita apreensão e interiorização da ratio político-
criminal da prescrição do procedimento criminal – manifestou-se na relutência do STJ em
aderir abertamente ao princípio da aplicação retroativa da lei nova processual mais favorável
(na medida em que reduzia o prazo da prescrição). O STJ teria, certamente, presente que
tanto Carvalho Fernandes de Ferreira como Eduardo Correia defendiam, embora sem razão,
a aplicação imediata destas leis aos prazos em curso. Sem razão, porque, basicamente, se
tratava, segundo estes autores, de afirmar o princípio da aplicação imediata como
consequência lógico-dedutiva de uma acrítica qualificação processual das normas sobre a
prescrição do procedimento criminal; acrítica qualificação, porque desatendia as razões
materiais jurídico-política (proibição da retroatividade da lei penal que alargue os prazos) e
político-criminal (imposição da retroatividade da lei que encurte os prazos) que iluminam o
critério da resolução do conflito temporal de leis que alteram os prazos da prescrição penal.
Tudo isto facilitado pela deslocação artificial do decisivo ponto de referência para o
momento do preenchimento do prazo. Mutatis mutandis, ocorreram, nesta matéria,
desatenções análogas às que permitiram a retroatividade – sob a designação de aplicação
imediata – das medidas de segurança mais gravosas e que levaram parte da jurisprudência a
defender, incompreensivelmente, a aplicação imediata da lei nova que declare incaucionáveis
certos crimes (prisão preventiva ope legis). Se a fundamentação foi insegura e confusa, a
decisão doutrinal concretizada no Assento propriamente dito conduz a interpretações
contraditórias quanto à resolução do problema em que a lei nova estabeleça um prazo mais
longo. Na verdade, estas afirmações tinham por consequência, logicamente necessária, que
tanto se aplicariam imediatamente aos prazos a decorrer a lei nova que os encurtasse como
a que os alongasse. A prova do que acabei de afirmar quanto aos equívocos e contradições
práticos, a que conduz a inadequada metodologia referida, está nas divergentes e
contrapostas posições que resultaram do Assento – e respetiva fundamentação:
1. Eduardo Correia: afirmou, em síntese que a doutrina firmada corresponde à melhor
orientação; é certo que uma coisa é a prescrição em Direito Criminal, outra em
Direito Civil; depois de reconhecer que já tinha defendido, na sequência de Beleza
dos Santos, que a lei sobre a prescrição era de aplicação imediata por ser a prescrição
de natureza eminentemente adjetiva, acaba por modificar a sua posição, embora
invocando para tal o facto de o STJ considerar a prescrição como instituto de
natureza material e, então, haver que tirar as conclusões que se impõem e que,
segundo Eduardo Correia são as seguintes:
«o reconhecimento do ponto de vista de que a prescrição do procedimento criminal é de
natureza substantiva, parece envolver, além do mais, as implicações referidas para a
hipótese, paralela à do Assento, de uma lei nova prolongar os prazos de prescrição.
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✒ Quer dizer, então o princípio da aplicação da lei mais favorável exigirá o respeito do
prazo anterior».
2. Maia Gonçalves: afirmava:
«quando uma nova lei altera os prazos da prescrição da pena ou do procedimento
criminal, deve aplicar-se imediatamente; (…) [é que] mesmo que os prazos sejam
dilatados, não há, aqui, problema de retroatividade, pois se trata de aplicar a nova
lei a causa que está a decorrer. Esta solução foi seguida pelo Assento 10 novembro
1975».
Esta acrítica e, teleológico-materialmente, não fundamentada imputação de uma natureza
jurídica (exclusivamente) processual às normas, tradicional e rotineiramente, integradas no
Direito Processual Penal, levou, como se viu, a soluções incorretas, sob os, nesta matéria,
decisivos pontos de vista jurídico-político e político-criminal. Em muitos casos, não apenas
incorretas e injustas, mas claramente inconstitucionais. Já Henriques da Silva chamava a
atenção para a necessidade de distinguir entre o que eu designei de normas processuais penais
materiais e normas processuais penais formais. Observou este autor:
«As leis formulárias [processuais] podem envolver frequentemente offensa de direitos, e, sempre
que possa haver offensa de direitos fixados à sombra da lei, é substantiva a lei formularia e
não deve aplicar-se retroactivamente, por implicar com os direitos dos cidadãos. É preciso não
confundir as leis formularias propriamente ditas com as relativas aos direitos individuaes. Estas
têm um carácter constitucional, sendo exemplos deste caso as disposições dos §§7.º, 8.º, 11 e
16.º do artigo 145.º da Carta».
Contra a posição tradicional e, ainda, porventura, maioritária no Direito Comparado – que
imputava e imputa, indiscriminadamente, às normas vulgarmente integradas no Direito
Processual Penal, uma exclusiva natureza jurídica processual –, contra a sua viciada metódica
formalístico-conceitualístico-dedutiva – que, acriteriosa e voluntaristicamente, extraía
daquela superficial e arbitrária qualificação processual a exigência da aplicação imediata,
menosprezando a função de garantia política do cidadão contra o exercício arbitrário e,
eventualmente, persecutório do ius puniendi estadual e a razão político-criminal da
indispensabilidade e da máxima restrição possível da pena – está em crescendo uma corrente
que acolhe uma criteriosa perspetiva material – que distingue, dentro do Direito Processual
Penal, as normas processuais penais materiais das normas processuais penais formais – e uma
hermenêutica teleológico-material cujos cânones – conferindo o devido primado às
(investigações das) verdadeiras rationes jurídico-política e político-criminal do princípio da
aplicação da lei penal favorável – determinam que à sucessão de leis processuais penais
materiais sejam aplicados o princípio da irretroatividade da lei desfavorável e o da
retroatividade da lei favorável.
1. Nesta linha, afirma M. Leone: o regime italiano correspondente ao nosso artigo 2.º
CPP aplica-se não apenas à norma substantiva mas também a toda a larga esfera de
normas processuais que toca o interesse do arguido.
2. M. Cappelleti contesta, por sua vez, a classificação tradicional das normas penais
em normas materiais e normas processuais, contrapondo uma classificação
teleológico-material de normas de garantia e normas técnico-processuais, precisando
que a nova categoria das normas de garantia não serve objetivos conceituais, mas
objetivos de soluções para uma série de problemas de grande importância prática,
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como a sucessão de leis no tempo, a taxatividade ou liberdade dos meios de prova
penais, etc.
3. Tiedmann destaca a exigência metodológica e a importância prática da distinção das
normas processuais em normas processuais meramente formais ou técnicas e normas
processuais substancialmente materiais.
4. Denunciada por R. Schmitt é a ilegítima e infundamentada redução, por parte da
doutrina tradicional, do problema da proibição da retroatividade, em Direito
Processual Penal, quase exclusivamente à prescrição do procedimento criminal.
5. G. Levasseur critica a doutrina dominante e analisa, desenvolvidamente, a relevante
questão da distinção entre as por mim designadas normas processuais penais
materiais e normas processuais penais formais. São deste autor as seguintes
afirmações:
a. É abusiva a classificação tradicional em leis de fundo e leis formais,
reservando a primeira designação para o Direito Penal, e incluindo na
segunda todas as restantes leis;
b. Esta classificação esquece que a categoria das leis formais é complexa
e heterogénea, abrangendo normas sobre constituição e competência dos
tribunais criminais, processo penal e normas sobre a execução das penas.
O princípio da proibição da retroatividade da lei penal – que, servindo de garantia política
contra a arbitrariedade legislativa, judicial ou penitenciária na função punitiva, tutela,
portanto, a liberdade e os direitos fundamentais do cidadão – aplica-se a todo o Direito
repressivo. E, segundo Levasseur,
«o Direito repressivo, em cada um dos seus aspetos, limita e ameaça a liberdade dos cidadãos,
pelo que as regras que ele estabelece são impostas sob a mais estrita necessidade. É assim para
as leis do processo e da condução do processo penal, e para as leis e regulamentos sobre as
modalidades de execução das penas e medidas de segurança. (…) A regra da não retroatividade
das leis repressivas, ligada como está ao princípio da legalidade da repressão, deve ter
logicamente o alcance deste princípio, isto é, aplicar-se a todas as leis repressivas, a todas as
regras concernentes à tarefa dos poderes públicos na luta contra a delinquência, desde a
investigação das infrações até ao termo da execução da sanção pronunciada».
Deste Direito repressivo e da consequente proibição da retroatividade das suas normas
desfavoráveis só se excluem as normas processuais penais que se referem aos atos de pura
técnica processual, valendo aqui, e só aqui, o princípio da aplicação imediata – tempus regit
actum – respeitando-se os atos praticados e não podendo ser postos em questão, na sequência
de uma lei nova, quer esta seja ou não mais favorável à pessoa perseguida. Enquanto que ao
Direito Processual técnico pertencem normas sobre, p.e., redação do auto de notícia, forma
de citação, modo de realizar buscas ou apreensões, audição de testemunhas, já ao Direito
repressivo, pertencem as normas sobre as condições de procedibilidade, espécies de prova e
sua eficácia probatória, sobre a organização e competência dos tribunais penais, sobre o juízo
de culpabilidade, determinação concreta da pena e respetiva fundamentação, sobre graus de
recurso, sobre a liberdade condicional, sobre a reformatio in pejus.
A sujeição das normas processuais penais materiais ao princípio
constitucional da aplicação da lei penal favorável: proibição da retroatividade
desfavorável e imposição da retroatividade favorável (artigos 18.º, n.º2 e 3, 29.º,
n.º4, 2.ª parte, e 282.º, n.º3, 2.ª parte CRP e 2.º, n.º4 CP): toda a argumentação
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✒ desenvolvida, ao longo desta investigação, não só aponta como também demonstra que os
princípios constitucionais da proibição da retroatividade da lei penal desfavorável e da
imposição da retroatividade da lei penal favorável se aplicam às normais processuais penais
materiais. A ratio de garantia política do cidadão face a possíveis decisões legislativas ou
judiciais arbitrárias ou mesmo persecutórias, ao mesmo tempo que determinou a consagração
constitucional da proibição da retroatividade da lei penal posterior desfavorável, determina a
sua aplicabilidade às referidas normas processuais penais materiais – ubi eadem ratio, ibi eadem
iuris dispositio. Também nestas, os direitos do arguido e do recluso estão em causa, não
deixando, portanto, de estar sempre presente a possibilidade de o poder punitivo tentar
servir-se de alterações legislativas posteriores ao tempus delicti para agravar retroativamente a
situação jurídica dos referidos arguido ou recluso. Creio que, depois da denúncia feita da
errada e deturpada metodologia formal e conceitualistica – que, no passado, foi adotada pela
maioria da jurisprudência e por parte da doutrina –, não se virá com o superficial argumento
literal de que o artigo 29.º CRP não fala de leis processuais, mas de penas, de medidas de
segurança e de leis penais. A um tão despiciendo argumento literal haveria que responder em
resumo:
1. Não é pelo facto de a 2.ª parte do n.º4 do artigo 29.º CRP se referir somente a
leis penais que alguém poderá vir dizer que a CRP, na mesma disposição,
teleológico-materialmente interpretada, não abrange também a aplicação
retroativa das medidas de segurança mais favoráveis;
2. Se uma tal argumentação formal-literal tivesse alguma valia, então haveria
que contra-argumentar que a mesma disposição fecha com um termo
jurídico-processual arguido;
3. Os deputados constituintes não são, necessariamente, especialistas em
técnica legislativa – o que se compreende, em parte, embora não fosse nada mau
que o fossem. Mais censurável é a redação do artigo 2.º CP;
4. O artigo 29.º CRP assume-se, no campo da responsabilização penal, como
garantia dos direitos e liberdades, direitos e liberdades que tanto podem ser
arbitrariamente afetados pela aplicação retroativa de leis sobre criminalização
ou agravação de pena como pela mesma retroatividade de alterações
legislativas desfavoráveis de normas processuais penais materiais.
A ratio político-criminal constitucionalmente consagrada na Lei Fundamental portuguesa,
conduz, por sua vez, à aplicação retroativa das normas processuais penais materiais
favoráveis. Favoráveis, quer quando da sua aplicação resulta a impossibilidade ou redução
das possibilidades de aplicar a pena (caso do encurtamento dos prazos de prescrição ou da
exigência de queixa), em consequência da nova conceção político-criminal que a lei nova
incarna, quer quando da sua aplicação aumentam os direitos de defesa do arguido. Poder-se-
á até afirmar que, mesmo que não existisse a expressa imposição constitucional da aplicação
retroativa das leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido (artigo 29.º, n.º4, 2.ª parte
CRP), tal imposição não deixava de, jurídico-constitucionalmente, se impor por virtude do
artigo 18.º CRP que não só proíbe a retroatividade das leis restritivas dos direitos, liberdades
e garantias (n.º3, 2.ª parte), como também impõe que as restrições destes direitos, liberdades
e garantias se limitem ao indispensável para realizar os fins prosseguidos pelas leis que
contêm as mencionadas restrições. Quer dizer: o princípio da irretroatividade desfavorável e
da retroatividade favorável da lei penal – em que se incluem as normas processuais penais
materiais –, afirmando no artigo 29.º CRP, não será mais do que a concretização, no campo
jurídico-penal, das razões de garantia política e da máxima restrição possível das intervenções
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estaduais nos direitos, liberdades e garantias, proclamadas pelo artigo 18.º CRP. Deste modo,
tem de concluir-se que a sucessão de leis processuais penais materiais rege-se pelos princípios
constitucionais da proibição da retroatividade da lei penal desfavorável e da imposição da
retroatividade da lei penal desfavorável e da imposição da retroatividade da lei penal favorável.
Estes princípios, que foram pelo artigo 29.º CRP elevados à dignidade constitucional, estão
consagrados no artigo 2.º, n.º4 CP. Apesar de o inovador artigo 5.º CPP 1987 referir, no n.º2,
alínea a), a aplicabilidade da lei processual vigente no início do processo penal, quando da
aplicação imediata da lei nova resultar um agravamento sensível e ainda evitável da situação
processual do arguido, nomeadamente do seu direito de defesa, há que afirmar claramente
que todo este artigo só é aplicável às leis (normas) processuais penais formais. Nestas, sim, o
princípio geral é o da aplicação imediata – tempus regit actum (artigo 5.º, n.º1 CPP) –, sendo a
exceção a aplicação da Lei Nova só aos processos iniciados depois da sua entrada em vigor,
o que significa a ultra atividade da Lei Antiga (artigo 5.º, n.º2, alínea b) CPP). Esclareça-se,
ainda – e para evitar que a jurisprudência se aproveite do disposto nesta alínea a) para se
radicalizar na errada e inconstitucional doutrina da aplicação imediata da lei processual penal,
independentemente de se tratar de normas exclusivamente processuais (normas processuais
penais formais) ou de normas mistas (normais processuais penais materiais) – esclareça-se,
dizia, que o momento decisivo para determinar, no caso de conflito temporal de leis
processuais penais materiais (onde se incluem as normas sobre o direito de defesa do arguido,
referidas, indevidamente, na alínea a)), a lei aplicável não o momento em que se inicia o
processo, mas o tempus delicti. Em minha opinião, o disposto na referida alínea a) não devia
constar do artigo 5.º CPP, pois que versa uma questão que, por exigência constitucional e do
Estado de Direito, está submetida ao princípio da proibição da retroatividade da lei penal
desfavorável, e, portanto, é abrangida pelo artigo 2.º, n.º4 CP. Se a intenção foi boa, a
disposição é inútil e oxalá que não venha a servir de pretexto para decisões injustas e
inconstitucionais. Acabei de dizer que a intenção, que terá motivado a alínea a) do n.º2 do
artigo 5.º CPP 1987, deve ter sido boa, isto é, inspirada na boa doutrina, constitucionalmente
aconrada. Com efeito, Figueiredo Dias, Presidente da Comissão que elaborou o Projeto do
Código de Processo Penal, escreveu:
«Para além do nulo valor da invocação da instrumentalidade do processo – o princípio jurídico
constitucional da legalidade se estende, em certo sentido, a toda a repressão penal e abrange,
nesta medida, o próprio Direito Processual Penal. Aqui deparamos com o essencial: tal como
vimos suceder no problema da analogia, importa que a aplicação da lei processual penal a atos
ou situações que decorrem na sua vigência, mas se ligam a uma infração cometida no domínio
da lei processual antiga, não contrarie nunca o conteúdo da garantia conferida pelo princípio
da legalidade».
O mesmo autor, referindo, como primeiro princípio da política criminal, o princípio da sua
conformidade com a ideia do Estado de Direito ou, nesta aceção, o princípio da legalidade,
chama a atenção:
«Só que o princípio deve agora ultrapassar, numa dupla direção, o seu conteúdo tradicional:
deve, em certa medida, estender-se às matérias do processo penal; e deve… abarcar … a
proibição da retroatividade das medidas de segurança».
Anotando a Constituição, artigo 282.º, n.º3, 2.ª parte («quando a norma respeitar a matéria
penal»), escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira:
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✒ «o enunciado linguístico do preceito é suficientemente extenso para abranger, não apenas o
Direito material sancionatório, mas também as normas processuais de natureza substantiva».
Passemos à lei ordinária, ou seja, ao artigo 2.º CP. Como é sabido, não pode uma lei ordinária
restringir o alcance das normas constitucionais protetoras dos direitos, liberdades e garantias
(artigo 18.º, n.º2 CRP). E, na realidade, neste aspeto, o teor literal do artigo 2.º, n.º4 CP é
suficientemente amplo para compreender a sucessão de leis processuais penais materiais.
Eduardo Correia afirmou que a norma
«é por um lado, uma disposição suficientemente elástica para abarcar todos os problemas que
se entenda dever tratar na sua base; mas esta elasticidade permite, justamente, por outro lado,
que se deixe à doutrina e à jurisprudência campo livre para subsumir ou não nele certas questões,
entre as quais se poderá precisamente contar o caso da prescrição».
Quer dizer, e bem, que o n.º4 do artigo 2.º CP consagra um princípio geral que abrange
todo o caminho da responsabilização penal, sendo ilegítima e desrespeitadora da
Constituição toda a interpretação que ele pretenda excluir as normas processuais
penais materiais.
Tempus delictu (artigo 3.º CP) – irretroatividade da lei processual penal
material desfavorável e retroatividade da favorável: vimos que é proibida a aplicação
retroativa de normas processuais penais materiais desfavoráveis. Demonstrei que a ratio de
tal irretroatibilidade está na necessidade de garantir a pessoa contra o exercício arbitrário ou
mesmo persecutório do ius puniendi pelo legislador, pelo juiz do facto ou pelo juiz da execução
das penas. Tal como dissemos, a propósito do tempus delicti relativamente à irretroatividade
da lei criminalizadora e da lex severior, também, aqui, no caso da sucessão de normas
processuais penais materiais, o cumprimento daquela ratio de garantia jurídico-política do
cidadão e do consequente mandato constitucional de proibição da retroatividade
desfavorável passa pela determinação rigorosa do momento que nos indique qual a lei
temporalmente competente. Só com a fixação deste momento, teremos o critério para a
formulação de um juízo de irretroatividade ou de retroatividade na aplicação da lei nova
processual penal material. É, portanto, em função da razão de ser da proibição da
retroatividade que o momento-critério tem que se fixado. Assim foi historicamente para as
leis criminalizadoras ou agravantes da pena, assim, também por exigência teleológico-
material, o tem de ser para a sucessão de leis processuais penais materiais. Uma vez fixado o
momento determinante, então segue-se a aplicação da lei vigente neste referido momento
(Lei Antiga), quando a lei posterior (Lei Nova) for desfavorável ao infrator, arguido ou
condenado; caso a lei posterior (Lei Nova) seja favorável, então, por força dos princípios
político-criminais (constitucionais e com expressão na lei ordinária) da máxima restrição da
pena e da mínima limitação dos direitos, liberdades e garantias, será a lei nova que se aplicará
retroativamente. Vê-se, em conclusão deste introito, que é fulcral e decisiva esta questão. É
pois, de fundamental importância prática determinar o momento-critério de qual das leis
processuais penais materiais (Lei Antiga ou Lei Nova) é a competente, é a que deve ser
aplicada. Só a partir deste momento-critério é que, por outras palavras, se poderá afirmar que
há, no caso concreto, um verdadeiro ou somente aparente conflito de normas.
Configurando-se um real conflito, então aplicar-se-á a lei mais favorável – o que significará
a aplicação retroativa da Lei Nov, sempre e só quando esta for mais favorável. Haverá um
verdadeiro conflito temporal nas seguintes hipóteses:
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§
1. Quando a Lei Antiga estiver em vigor no momento-critério mas a Lei Nova,
já estiver em vigor no momento em que se aplica a respetiva norma processual
penal material;
2. Quando houver uma lei intermédia, isto é, quando uma lei entrar em vigor
depois do momento-critério e for revogada antes da aplicação efetiva da
norma processual penal material. Como se vê, aqui, o conflito é entre, pelo menos,
três leis:
a. A lei em vigor no momento-critério;
b. Lei ainda não em vigor neste momento e já não em vigor no momento
da decisão-aplicação;
c. Lei em vigor no momento da decisão-aplicação.
Convém fazer duas observações, a propósito do momento da aplicação das normas
processuais penais materiais. Este momento, digamos, como que constitui o termo ad quem
da situação de conflito temporal desta categoria de normas, sendo o termo a quo o momento-
critério, isto é, o tempus delicti, como demonstraremos.
1. A primeira observação é para dizer que o momento da aplicação das normas em
causa é o momento em que estas se realizam, quer dizer, o momento em que
elas produzem o esgotam os seus efeitos jurídicos.
a. Os efeitos da prescrição do procedimento criminal são, como vimos, a
extinção do procedimento e, portanto, a extinção da (eventual)
responsabilidade penal; ora, estes efeitos produzem-se no dia em que se
consumou, se esgotou o respetivo prazo; logo, foi neste dia que a norma se
realizou.
b. No caso da liberdade condicional, é o momento em que o condenado
cumpriu integralmente a pena; com efeito, até este momento, é possível
que uma alteração legislativa, nesta matéria da admissibilidade ou não da
libertação condicional e da parte do tempo de prisão que pode ser substituída
pela liberdade condicional, produza efeitos.
2. A segunda observação é para lembrar que não se pode esquecer que uma eventual
declaração de inconstitucionalidade da norma processual penal material já
aplicada pode produzir efeitos, desde que estes sejam favoráveis, nos termos
do artigo 282.º, n.º3, 2.ª parte CRP.
A fixação do momento-critério da determinação da lei competente tem de respeitar e cumprir
a ratio de garantia política. É a necessidade de prevenir a eventual arbitrariedade no exercício
da justiça penal pelos órgãos legislativos, jurisdicionais ou prisionais, e a possível
instrumentalização política – quando não mesmo político-partidária – do ius puniendi que há-
de decidir qual das leis processuais penais materiais (Lei Antiga ou Lei Nova) é a aplicável.
Quer dizer: a mesma ratio de garantia jurídico-política do cidadão contra a (possível)
arbitrariedade do Estado determina a proibição da retroatividade da lei penal –
exclusivamente material ou processual-material – desfavorável e impõe o momento-
critério da determinação da lei aplicável. Se aquela ratio seria desrespeitada, se se admitisse
a retroatividade das referidas normas desfavoráveis (i.e., prejudiciais ao infrator e ao cidadão
em geral, pois que há sempre a possibilidade de este vir a infringir a norma penal), da mesma
forma o seria, se fixássemos um momento-critério que permitisse a arbitrariedade punitiva.
Em conclusão: a função de garantia jurídico-política, inerente ao princípio da legalidade penal,
impõe que o momento-critério seja visto e assumido como conditio sine qua non da efetiva
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✒ prevenção do arbítrio punitivo. Caso contrário, o sentido e conteúdo materiais da proibição
da retroatividade desfavorável esvair-se-ão, transformando-se o juízo de não retroatividade
de uma determinada norma penal desfavorável num mero e inútil juízo formal, que permitiria
e daria cobertura (aparência de decisão justa e jurídico-constitucional. Exige-se, numa
fórmula mais sintética, que haja uma rigorosa coincidência entre o juízo formal de
irretroatividade e, digamos, o juízo material de irretroatividade. Esta exigência jurídico-penal
e jurídico-constitucional, esta ratio de garantia política determina, como demonstrável, que o
momento-critério, de que vimos falando, seja o tempus delicti. O sentido, o alcance e o
processo de delimitação do tempus delicti são os mesmos, quer se trate de leis
criminalizadoras ou agravantes da pena, quer se trate de leis processuais penais
materiais. Esta razão fundamental conduz à recusa, in limine, da pretensão de situar e fazer
coincidir o momento-critério com o momento em que se inicia o processo penal. É por esta
razão essencial e decisiva – ou será que já nos esquecemos da motivação e função matriciais
do princípio da legalidade penal ou, então, será que pensamos que os homens, que detêm o
poder político-legislativo e judicial em regime democrático, são assim tão puros que é uma
injúria dizer que é preciso prevenir as suas possíveis arbitrariedades? – que se tem de repudiar
a ausência de princípios e de rumo que grande parte da jurisprudência, com a complacência
de grande parte da doutrina, revelou (num não distante) nesta matéria. Vou dedicar, agora, a
minha reflexão aos institutos processuais penais que, entre as suas componentes, contam a
dos prazos. O objetivo é o de alertar e desfazer o equívoco em que a doutrina tem caído.
Encadeada pelo facto de tanto o artigo 3.º CP como o artigo 119.º, n.º1 CP, fazerem
referência ao momento da prática do crime – tempus delicti – e reparando que, no primeiro, o
decisivo é o momento da conduta, ao passo que, no caso da prescrição do procedimento
criminal, é o momento do resultado ou consumação material, extraíram a doutrina e a
jurisprudência precipitadas e erróneas conclusões:
1. O momento que determina a lei penal (sobre crime e/ou pena) aplicável é o
momento da conduta; diferentemente, o momento que determina qual das leis sobre
a prescrição do procedimento criminal é a aplicável é o momento do resultado;
2. Esta confusão, que não teve em atenção que um é o problema tratado no artigo 3.º
CP – momento-critério para a determinação da lei aplicável –, outro, inteiramente
distinto, é o problema resolvido no artigo 119.º CP – o termo a quo da cotagem do
prazo é o momento em que ocorre a consumação material –, levou a doutrina a duas
sub-conclusões enganadoras:
a. O tempus delicti é um conceito genérico a que sempre se tem de recorrer
quando é preciso resolver um problema de conflito de leis penais;
b. O tempus delicti é um conceito diferenciado, isto é, tem um significado e um
alcance variáveis em função da especificidade do instituto a que pertencem
as leis em conflito.
É certo, como diz Cavaleiro Ferreira, que o conceito de tempus delicti tem natureza teleológica:
é o que tenho, superabundantemente, referido: o tempus delicti é determinado em função da
ratio de garantia política, razão que tem de ser respeitada e de iluminar a solução do conflito
temporal de leis penais (exclusivamente materiais ou processuais penais materiais). Mas já
falta demonstrar o que o mesmo Autor afirma, logo a seguir: o tempus delicti é fixado em
função dos fins próprios do instituto em que essa fixação interessa. Esta afirmação resulta
do tal equívoco e leva-nos a fazer as seguintes considerações:
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§
1. Nunca haverá contradição entre a ratio do instituto e a ratio do tempus delicti
(artigo 3.º CP), pois a ratio de garantia deste está ao serviço do cidadão e opõe-se à
retroatividade (definida em função do critério que ele, na consequência coerente da
ratio do princípio da legalidade penal, estabelece) das normas desfavoráveis;
2. Há que dizer que, se, por mera hipótese, houvesse contradição, ela ter-se-ia
de desfazer em favor da ratio fundamental de garantia política;
3. Há que chamar a atenção para a incorreção que seria dizer, p.e., que o tempus
delicti, no caso da prescrição da pena, é o momento em que transita em
julgado a sentença (artigo 122.º, n.º2 CP)!
§18.º - Aplicação do princípio da lei penal favorável à sucessão de leis
sobre a prescrição
Normas processuais penais materiais: o intuito da prescrição é integrado por
1. Normas processuais penais materiais: pertencem as normas sobre os termos, os
prazos, as causas de interrupção e de suspensão, os efeitos e a legitimidade para a
invocar; à segunda pertencem as possíveis normas sobre a forma de a invocar e de a
declarar;
2. Normas exclusivamente processuais.
Interessam-me apenas as normas processuais penais materiais, pois que o eventual conflito
entre as exclusivamente processuais não oferece dificuldades e rege-se pelo artigo 5.º CPP.
Exemplo:
A comete o crime x.
Entre o momento da conduta (ação ou omissão) e o da ocorrência do resultado
passaram 6 meses.
No momento da conduta, estava em vigor uma lei que estabelecia um prazo de
prescrição do procedimento criminal de 6 anos.
Posteriormente à prática da conduta, mas antes da ocorrência do resultado, entrou
em vigor uma lei que alongou o prazo da prescrição do referido crime de 6 para 10
anos.
1. Pergunta: qual é a lei que, vindo mais tarde a levantar-se o problema da prescrição
ou não, é competente para decidir?
2. Resposta: não pode deixar de ser a que é aplicável a Lei Antiga, uma vez que, sendo
desfavorável a Lei Nova, a sua aplicação retroativa é vetada pela ratio de garantia
política. Mas, como se está a ver, o prazo, como é evidente, continuará (e continuaria,
mesmo que a Lei Nova o tivesse encurtado) a contar-se a partir do momento em que
se verificou o resultado.
Variações:
A Lei Nova – que elevou o prazo de 6 para 10 anos – entrou em vigor 2 meses depois
da conduta e, portanto, 4 meses antes do resultado.
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✒ Partamos, por outro lado, da hipótese de que não se verificou qualquer causa de
interrupção ou de suspensão da prescrição e de que o infrator só foi notificado para
as primeiras declarações, quando já tinham decorrido sobre a prática da conduta 6
anos e 7 meses.
1. Pergunta: quando se vier a levantar a questão da prescrição ou não do procedimento criminal,
dever-se-á declarar ou não a extinção do procedimento criminal?
2. Resposta: Sim.
3. Fundamentação: a lei competente é a lei em vigor no momento da conduta (Lei
Antiga); ora, esta lei estabelece como prazo da prescrição 6 anos, prazo este cujo
termo a quo se manteve como sendo o momento da verificação do resultado (artigo
119.º, n.º1 e 4 CP). Ora, como sobre este momento já tinham decorrido 6 anos e 1
mês, a conclusão é a de que já prescreveu.
Em vez de 6 anos e 7 meses, imaginemos que só tinham decorrido sobre o momento
da conduta 6 anos e 5 meses.
1. Pergunta: já prescreveu ou não?
2. Resposta: não prescreveu.
3. Fundamentação: embora o conflito entre Lei Antiga e Lei Nova seja resolvido a
favor da Lei Antiga – uma vez que estava em vigor no decisivo momento da conduta
(tempus delicti) e a Lei Nova não pode retroagir, pois é desfavorável –, esta (a Lei Antiga)
estabelece um prazo de 6 anos que, tal como os 10 anos da Lei Nova, se contam a
partir do resultado. Ora, desde este momento, ainda só passaram 5 anos e 11 meses.
Logo, ainda não estava prescrito.
No momento da conduta, a lei estabelecia que o termo a quo é o momento da
conduta;
Antes da ocorrência do resultado, entrou em vigor uma lei que o transferiu para o
momento do resultado.
1. Pergunta: qual seria a lei aplicável?
2. Resposta: seria a Lei Antiga.
3. Fundamentação: porque que esta Lei Antiga, embora mal, era mais favorável que a
Lei Nova. A aplicabilidade desta afetaria a razão de garantia que, precisamente, impõe
como decisivo o momento da conduta.
Permita-se-me só que recorde que as mesmas razões de garantia do cidadão impõem a mesma
solução para todas as normas processuais penais materiais: constituição e competência dos
tribunais, meios de prova, graus de recurso, liberdade condicional, modalidades de execução
de pena, etc. A lei aplicável, no caso de conflito temporal de leis desta categoria, é a vigente
no tempus delicti, isto é, no momento da prática da conduta, independentemente do momento
em que o resultado se produza (artigo 3.º CP). A Lei Nova, isto é, a lei posterior ao momento
da conduta, só será aplicada retroativamente, quando for mais favorável (artigo 2.º, n.º4 CP).
Causas de interrupção ou de suspensão da prescrição: ao exemplo apresentado, em
primeiro lugar, anteriormente, adicionemos o elemento seguinte:
Enquanto a lei vigente no momento da conduta estabelecia (além do tal prazo de 6
anos) como causas de interrupção da prescrição as circunstâncias, a, b e c, já a lei,
que entrou em vigor entre o momento da conduta e o momento do resultado, (além
de elevar o prazo para 10 anos) eliminou a circunstância.
Face à Lei Antiga, o prazo da prescrição já teria decorrido, se não se tivesse verificado
a circunstância c que essa lei previa como causa de interrupção;
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§
Face à Lei Nova, esta circunstância deixou de ser considerada causa de interrupção,
mas, apesar de não ter havido qualquer interrupção, ainda não decorreram os 10 anos
que ela veio estabelecer.
Só haverá prescrição se se aplicarem, simultaneamente, a norma favorável da Lei
Antiga quanto ao prazo e a norma favorável da Lei Nova quanto à desqualificação
da circunstância c como causa de interrupção.
1. Pergunta: o procedimento criminal prescreveu?
2. Resposta: o procedimento criminal prescreveu.
3. Fundamentação: aplicam-se, mutatis mutandis, os mesmos argumentos que aduzi em
favor da ponderação diferenciada, a propósito das leis penais (crimes, pena e efeitos
penais). Portanto, o regime aplicável é constituído pela norma sobre o prazo da Lei
Antiga e pela norma sobre as causas de interrupção da Lei Nova. E não cabe contra-
argumentar, dizendo: o legislador pretendeu compensar a eliminação da causa de
interrupção c com o alongamento do prazo. Não! Esta objeção não procede, caso
contrário, então também procedia relativamente às circunstâncias a e b, quando é
certo que elas permaneceram, apesar de o prazo ter passado a ser mais longo. Pode
ainda replicar-se, perguntando se teria qualquer sentido falar-se dessa hipotética
compreensão, na muito verosímil hipótese de o legislador ter eliminado a causa de
interrupção c, mas ter acrescentado às causas a e b mais duas causas, tendo também
elevado o prazo para 10 anos. Que razão haveria para não aplicar, retroativamente, a
norma sobre causas de interrupção, simultaneamente, com a norma da Lei Antiga
sobre os prazos? – Em minha opinião, não há nenhuma. De recusar é, portanto, a
jurisprudência do STJ nesta matéria.
§19.º - Aplicação do princípio da lei penal favorável à sucessão de lei
sobre a queixa e a acusação particular
Pressupostos processuais (positivos) de responsabilização penal: creio já ter dito
o suficiente para demonstrar que estes dois institutos, tal como a prescrição do procedimento
criminal, são de natureza penal material, isto é, têm dupla natureza. Na verdade, sendo
condições (positivas) de procedimento criminal (pressupostos processuais), do mesmo modo
condicionam a responsabilidade penal. Não há qualquer fundamento para considerar estas
figuras como exclusivamente processuais. A jurisprudência, na ausência, por parte da
doutrina, de uma abordagem sistemática – jurídico-constitucional e político-criminalmente
fundamentada – desta matéria da sucessão de leis penais, tem andado hesitante. A título de
exemplo:
1. Decisão claramente errada:
a. Ac. STJ 25 janeiro 1984;
b. Ac. STJ 11 outubro 1983
2. Decisão correta:
a. Ac. RP 2 maio 1974;
b. Ac. STJ 24 outubro 1996.
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✒ Crítica da atribuição de natureza exclusivamente processual: não devo repetir-me
e, assim, só um breve comentário sobre a posição de Jeschek. Diz:
«Assim, p.e., um crime perseguível mediante queixa ou acusação particular pode converter-se,
retroativamente, em crime perseguivel ex officio».
1. Comentário: espanta que se fale em retroatividade de lei penal desfavorável. Quero
dizer: ou o autor utiliza incorretamente – estou a tentar introduzir-me no seu discurso
– o termo retroatividade (que, efetivamente, existe no exemplo apresentado), estando
a pensar em aplicação imediata (o que se não deve fazer), ou esqueceu-se de que a
passagem de crime semipúblico a público é sempre desfavorável, pois vai fazer com
que infratores que, a manter-se a Lei Antiga, não seriam punidos – sempre que os
titulares do direito de queixa o não quisessem exercer –, passem pela Lei Nova a sê-
lo, dada a promoção ex officio; ou nem se passou uma coisa nem outra e, então,
teríamos de concluir que o autor se esqueceu do princípio constitucional da proibição
da retroatividade da lei penal desfavorável.
Mas, continuemos com Jescheck, pois a segunda crítica, que farei à sua incidental análise e
contraditória posição, permite-me destacar os únicos aspetos duvidosos que há quanto à
sucessão de leis sobre a queixa ou a acusação particular: o caso de a Lei Nova encurtar o
prazo para apresentar a queixa; o momento a partir do qual se deve contar o prazo para
exercer o direito de queixa, na hipótese de a Lei Nova converter o crime de público em
semipúblico ou particular. Jescheck vai mesmo ao ponto de quase aceitar – parece só não o
aceitar mesmo, porque reconhece que há “algumas” (?) objeções – que a tal Lei Nova se
aplicasse retroativamente, mesmo que, ao momento em que esta entrou em vigor, já tivesse
decorrido, totalmente, o prazo para apresentar queixa.
2. Comentário: para além de inconstitucional e político-criminalmente reprovável, isto
está em contradição com os fundamentos destas duas figuras – e que o autor refere:
a. Diminuta gravidade da infração;
b. Relação do crime com a intimidade pessoal da vítima e
preponderância do interesse da vítima (desde que se verifique um dos
fundamentos anteriores) sobre o interesse público na punição
(necessidade da prevenção).
Sendo estas a maior parte das razões da consagração da exigência da queixa, como é
que se pode admitir que a Lei Nova se vá aplicar retroativamente, quando ela, além
de desfavorável ao infrator (logo, violação da Constituição), também é desfavorável
à vítima, uma vez que esta, contra a sua vontade, vai ter de ver desenvolver-se um
processo judicial em que a sua pessoa, embora na qualidade de vítima, estará em
causa? Há que abordar os dois aspetos referidos.
Passagem de crime público a semipúblico (ou particular) e vice-versa: em
primeiro lugar, diga-se que há que distinguir, nos institutos da queixa e da acusação particular
as:
4. Normas exclusivamente processuais (princípio da aplicação imediata – artigo 5.º
CPP): a estas pertencem, sem preocupação exaustiva de pormenor, as normas dos
artigos 49.º a 52.º CPP;
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§
5. Normas processuais penais materiais (irretroatividade desfavorável,
retroatividade favorável – artigos 2.º, n.º4 e 3.º CP): a estas pertencem,
inequivocamente, as normas constantes dos artigos 113.º a 117.º CPP.
Daqui, e em segundo lugar, resulta que nunca a Lei Nova desfavorável ao infrator ou ao já
arguido pode ser aplicada retroativamente. Exemplos de Leis Novas desfavoráveis:
Conversão de crime semipúblico (exigência de queixa) em público (ex officio); ou
Conversão de crime particular (exigência de acusação particular) em semipúblico
(basta a queixa)
Alongamento do prazo para apresentar queixa;
Eliminar a possibilidade de renunciar à queixa ou de desistir da queixa apresentada,
etc.
Em terceiro lugar, a Lei Nova favorável ao infrator ou ao já arguido, é aplicável
retroativamente. Exemplos:
Lei Antiga: crime público; Lei Nova: crime semipúblico;
Lei Antiga: impossibilidade de desistência da queixa; Lei Nova: possibilidade de
desistência.
Distinção entre direito de apresentação de queixa e direito de desistência da
queixa: condição de procedibilidade; causa de extinção do processo: acabei de
apresentar duas hipóteses que, apesar de, prima facie, poderem parecer sobrepostas, na
realidade não o são. Torna-se, pois, indicado esclarecê-las. Vejamos: há, normalmente, uma
implicação biunívoca entre crime semipúblico (ou particular) com a consequente exigência
de queixa e a possibilidade (direito) de desistência da queixa: se o crime é semipúblico (ou
particular), o início do procedimento criminal depende da queixa; e, uma vez apresentada,
pode o respetivo titular desistir da queixa, extinguindo, deste modo, o processo penal. A
queixa é, portanto, uma condição de procedibilidade, isto é, uma condictio sine qua non do (início
do) processo, esgotando-se os seus efeitos jurídicos na criação do pressuposto da promoção
da ação penal pelo Ministério Público; a desistência da queixa é, diferentemente, uma causa
de extinção do processo penal (desencadeado pela apresentação da queixa). Não sendo,
portanto, a queixa uma condição de prossegaibilidade mas sim e apenas de procedibilidade,
então, uma vez iniciado o processo por iniciativa do Ministério Público, num momento em
que estava em vigor uma lei (Lei Antiga) que considerava o crime respetivo como público,
deixa de haver lugar a necessidade para a apresentação de uma queixa cujos (possíveis) efeitos
jurídicos já se produziram, quando entra em vigor uma lei (Lei Nova) que passa a considerar
o respetivo crime como semipúblico, isto é, a fazer depender o início do procedimento
criminal da queixa. Disto não se pode concluir que, assim sendo, há como que uma quebra
ou exceção do princípio da aplicação retroativa da lei nova favorável. É que, de facto, não há
qualquer desvio deste princípio. Pois, após a entrada em vigor da Lei Nova que passa o crime
de público a semipúblico, crime cujo processo já tenha sido iniciado, ex officio, pelo Ministério
Público, pode o ofendido (aquele que passar a ter o direito de queixa) pôr termo ao processo,
extinguindo-o pelo exercício do direito de desistência. Esta desistência a queixa, que é
verdadeiramente um perdão da parte e que pode, por força da entrada em vigor da Lei Nova,
ser negada ao ofendido, faz com que a Lei Nova seja mais favorável ao infrator e,
consequentemente, torna-o possível de ser beneficiado por ela, no caso de o ofendido decidir
pôr termo ao processo. Conclusão: se, quando entra em vigor uma lei que converte um crime
de público em semipúblico (ou particular), ainda não se iniciou o procedimento criminal, o
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✒ início o procedimento criminal, o início deste passa a ficar dependente da apresentação da
queixa; mas se, quando entra em vigor a referida lei, o procedimento criminal já foi iniciado,
não é necessária a queixa (pois, o que já se iniciou, iniciado está; o que já se produziu,
produzido está), mas pode o ofendido extinguir o processo, desistindo do (impedindo o)
prosseguimento da ação penal. No caso de a lei entrar em vigor depois da publicação da
sentença da 1.ª instância, a desistência é possível até ao trânsito em julgado. Poderá parecer,
à primeira vista, que, após a entrada em vigor, em 15 setembro 2007, do novo artigo 371.º-
A CPP – que passou a estabelecer a aplicação retroativa da lei nova mais favorável, mesmo
que já tenha transitado em julgado a sentença condenatória –, deixou de ter interesse prático
a análise da jurisprudência anterior. Penso, todavia, que há interesse em refletir um pouco
em três aspetos dessa jurisprudência:
1. Um dos pontos a referir e criticar é o da incorreção jurídica da terminologia utilizada.
Na verdade, é incorreto falar-se em apresentação de queixa e desistência de queixa
(sem colocar tais expressões entre aspas), quando a lei em vigor, desde o início até ao
termo do processo (até ao trânsito em julgado da sentença condenatória), qualificava
o facto como crime público. Pois que, juridicamente, o que houve foi uma
participação ou denúncia, e não uma queixa stricto sensu, pois está e uma condição de
procedibilidade, condição que não existia, uma vez que o crime, então, era público.
E, inexistindo, em sentido jurídico, queixa, não é juridicamente possível a desistência
de queixa. O que acabo de dizer não significa, obviamente, que não possam ou não
devam utilizar-se estas expressões; mas, sim, que devem ser colocadas entre aspas.
2. O segundo aspeto a considerar tem que ver com o enquadramento jurídico-penal da
retroatividade da lei que converte em semipúblico um crime público. E a questão é a
seguinte: o fundamento da aplicação retroativa desta lei está no n.º2 ou no n.º4 do
artigo 2.º CP? A leitura dos Acórdãos do Tribunal Constitucional aparece a ideia de
que há uma analogia material entre a lei que converte em semipúblico um crime
público – quando, durante o processo, o ofendido tiver declarado a vontade de que
a ação penal não prossiga contra o arguido, e este a tal não se oponha – e a lei
verdadeiramente descriminalizadora. Afirmam estes Acórdãos:
«Com efeito, se a nova lei passa a fazer depender o procedimento de queixa da ofendida,
e, consequentemente, a considerar equivalente ao que decorre de uma lei que
descriminaliza, em sentido equivalente ao que decorre de uma lei que descriminaliza,
em sentido próprio, a conduta do agente. Num caso como no outro, a aplicação da lei
nova determinaria a não punição».
Apesar de, como se acaba de ver, o Tribunal Constitucional considerar que há uma
analogia material quanto aos resultados entre estas duas diferentes espécies de leis
penais e, portanto, propender a subsumir o caso sub iudice ao n.º2 do artigo 2.º CP,
acabou por – incoerentemente, na minha opinião – declarar a inconstitucionalidade
da norma constante (da antiga ressalva da parte final) do n.º4 do artigo 2.º CP, na
parte em que veda a aplicação da lei penal nova que transforma em crime semipúblico
um crime público, quando tenha havido desistência da queixa apresentada e trânsito
em julgado da sentença condenatória. Esta é a formulação da declaração de
inconstitucionalidade utilizada pelo Ac. TC 677/98.
3. Dissemos, acima, que, relativamente aos processos em curso, quando entra em vigor
uma lei que converte o crime de público em semipúblico, deve ser notificado o
ofendido para vir ao processo declarar se quer que este prossiga ou se quer que seja
extinto. Agora, o que está em causa é a situação (situações) em que, quando entra em
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vigor a lei que passou o crime de público a semipúblico, já transitou em julgado a
respetiva condenação. Os Acórdãos do Tribunal Constitucional que fizemos
referência limitaram-se a considerar as situações em que, durante o processo, os
ofendidos tinham desistido da queixa, isto é, tinham manifestado a vontade de que o
arguido não fosse condenado, o que quer dizer que queriam que o procedimento
criminal fosse extinto. Só que, como o crime era, então, público, tal desistência, tal
vontade era irrelevante, sendo o processo de prosseguir necessariamente. Ora, sendo
irrelevante, temos que partir do pressuposto de que a não manifestação da vontade
de desistência, ao longo do processo, não significa, necessariamente, que o ofendido
não estivesse na disposição de desistir, de perdoar, de extinguir o processo. Pois pode
ter acontecido que o ofendido, sabendo da irrelevância da sua vontade para extinguir
o procedimento criminal, pura e simplesmente não a manifestou. Daqui resulta que,
com fundamento no princípio da igualdade, deve, também em relação aos já
condenados por sentença transitada em julgado, ser aberta a possibilidade de
beneficiarem da nova lei que passou o respetivo crime de público a semipúblico.
Neste sentido – pelo menos em relação aos processos em que não haja elementos
que indiquem claramente que o ofendido não quis desistir da queixa –, deverá ser
relevante a eventual declaração do ofendido de que teria desejado que o
procedimento criminal fosse extinto. E uma tal declaração fará extinguir a pena e os
seus efeitos. A declaração da vontade do ofendido, no sentido de que teria querido
que o processo tivesse sido extinto (se tal tivesse sido legalmente possível) ou no de
que não teria querido, pode resultar da iniciativa do próprio ofendido, da iniciativa
do condenado ou da notificação oficiosa do ofendido, feita pelo Ministério Público.
Termo a quo da contagem do prazo: surge, porém, um problema quanto ao termo a
quo da contagem do prazo para exercer o direito de queixa, quando a Lei Nova, que converte
o crime de público em semipúblico (ou particular), entrar em vigor num momento em que
já tenha decorrido o prazo para apresentar queixa (artigo 115.º, n.º1 CP) e o Ministério
Público ainda não tenha promovido o processo penal. Problema idêntico surge, quando a
Lei Nova que encurta o prazo para exercer o direito de queixa, entre em vigor num momento
em que o novo prazo – que não o atingiu – já correu. Nestes casos – e só nestes – é preciso
ter em conta as especialidades da queixa e da acusação particular, antes de apresentar a
solução. Assim, é necessário ter em conta que, enquanto a ratio da prescrição é exclusiva ou,
pelo menos, predominantemente político-criminal (desnecessidade da pena, sob os aspetos
da prevenção geral e especial), já, como vimos, na queixa e na acusação particular, confluem
razões (públicas) político-criminais e razões pessoais do ofendido. Há, por outro lado, que
ter em conta o princípio da adesão (artigos 71.º e seguintes CPP), o que se pode traduzir num
interesse, numa expectativa legítima do ofendido-lesado. Daqui resulta que, ressalvando o
princípio da aplicação retroativa da Lei Nova favorável ao infrator, seja razoável consagrar
uma solução que também contemple a posição pessoal do ofendido, posição que o legislador
também teve em atenção ao estabelecer a exigência da queixa. Neste sentido, poderá
apresentar-se a seguinte conclusão: quanto ao aspeto do termo a quo da contagem do prazo
– na hipótese de a Lei Nova converter o crime de público em semipúblico –, este, no caso
de o titular do direito já conhecer o facto e os seus autores, contar-se-á a partir do momento
em que entrou em vigor a Lei nova. Repare-se que tal já não acontece se a Lei Nova converter
o crime de semipúblico em particular, pois, nesta hipótese, ele já, face à Lei Antiga, não podia
contar com a promoção oficiosa do Ministério Público, mediante simples denúncia. Na
hipótese de a Lei Nova encurtar o prazo, a solução será a seguinte: aplicar-se-á a Lei Nova,
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✒ se o tempo que ainda falta decorrer para preencher o prazo da Lei Antiga for superior ao
prazo da Lei Nova; caso contrário, continuará a aplicar-se a Lei Antiga. Tem sido esta a
posição (no mínimo, maioritária) seguida pela jurisprudência. Por sua vez, o Ac. TC
n.º523/99, 25 setembro 1999, considera:
«não estando em causa, na transformação da conduta, mas tão-só uma desvalorização do bem
jurídico –, torna-se evidente a necessidade de chegar a uma solução que permita equilibrar o
interesse do arguido em ver-lhe aplicada a lei mais favorável (artigo 29.º, n.º4 CRP), e o
interesse do ofendido em ver-lhe reconhecido o direito de desencadear o procedimento criminal,
que encontra apoio no princípio da confiança inerente ao princípio do Estado de Direito
Democrático (artigo 2.º CRP). A solução parece ser a de, aceitando a aplicação retroativa do
regime do crime que de público passa a semipúblico [no caso, estava em causa o crime de usura
criminosa que, pela Revisão Penal de 1995, passou de público a semipúblico], possibilitar ao
ofendido, que no regime anterior não manifestou a sua vontade de perseguir criminalmente o
agente – porque tal não era exigido –, cumprir esse ónus, no prazo indicado na Lei Antiga,
mas contado a partir do início da vigência da Lei Nova. É esta, aliás, a via proposta pelo
representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional, quando afirma que esta
lhe parece razoável e adequada, em termos de operar um justo equilíbrio entre os princípios
constitucionais da aplicação retroativa da lei mais favorável ao arguido e da confiança que não
pode deixar de ser considerado ao valorar a situação ou posição do ofendido, surpreendido no
decurso do processo criminal pela alteração legislativa que modificou a natureza do crime
cometido. Seria absurdo, além de praticamente impossível, obrigar o ofendido a retroceder no
tempo e a apresentar uma queixa num prazo que a lei estabelecia para crimes de outra natureza,
a fim de impedir a extinção do procedimento criminal. O ofendido não contava, nem tinha
razoavelmente motivos para contar, com a alteração legislativa. Logo, não estava sujeito a
qualquer prazo para desencadear o exercício da ação penal».
Creio esta argumentação inteiramente correta e constitucionalmente harmoniosa. Quero
fazer, todavia, um reparo, que não tem que ver com a concreta questão em análise, mas, sim
e ainda, com a minha tese da chamada ponderação diferenciada e contra a tese da jurisprudência
de que a ponderação entre as leis sucessivas deve ser global. Diferentemente do que se lê, no
acórdão, a passagem de crime público a semipúblico não significa, necessariamente, uma
desvalorização do respetivo bem jurídico, embora, na maioria dos casos, as duas coisas
andem de braço dado. Assim, basta recordar a Revisão Penal de 1995, apesar de ter passado
o crime de maus tratos entre cônjuges de público a semipúblico, elevou a pena de até três
anos para até cinco anos de prisão. Donde se conclui que a conversão deste crime em
semipúblico, elevou a pena de até três anos para até cinco anos de prisão. Donde se conclui
que a conversão deste crime em semipúblico não significou, de modo algum, uma
desvalorização do respetivo bem jurídico.
Oposição à desistência da queixa: o Código Penal de 1982 consagrou a figura da
oposição à desistência, tornando, assim, a eficácia desta dependente da não oposição da
pessoa contra a qual foi exercido o direito de queixa (artigo 116.º, n.º2 CP). Portanto,
havendo oposição, o processo prosseguirá, podendo vir a terminar na condenação penal do
arguido-opositor que impediu, por decisão própria, a extinção do procedimento criminal.
Embora a consagração legal da figura da oposição à desistência se fundamente no eventual
justo interesse de o arguido mostrar a sua inocência, ela, a oposição, acaba por impedir a
extinção do processo e, consequentemente, a possibilidade da extinção pura e simples da
(eventual) responsabilidade penal. Logo, a oposição constitui um impedimento à extinção da
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eventual responsabilização penal, extinção que, via extinção do procedimento, ocorreria por
força da desistência. Mas as formas como o legislador resolve o conflito de interesses (o
interesse do arguido na extinção do processo versus o eventual interesse do mesmo arguido
em mostrar a sua inocência) – ou dá prevalência ao critério do arguido, assegurando-lhe o
direito de oposição à desistência, ou impõe o seu critério de não deixar na dependência da
vontade do arguido a prossecução de um processo criminal com a possibilidade de lhe vir a
ser aplicada uma pena, não lhe atribuindo o direito de oposição – não pode fazer esquecer
que, sob o aspeto que ora nos importa, deve sempre ser considerada como lei penal mais
favorável aquela que exclui o direito de oposição à desistência. Donde a conclusão seguinte,
num caso de sucessão de leis penais: se a Lei Antiga prevê o direito de oposição e a Lei nova
o exclui, aplicar-se-á (retroativamente) a Lei Nova, pois que esta vem criar uma possibilidade
de pura e simples extinção do procedimento criminal, via desistência do ofendido; se a Lei
antiga exclui o direito de oposição e a Lei Nova o prevê, aplicar-se-á a Lei Nova relativamente
aos factos praticados depois da sua entrada em vigor, uma vez que, sob o ponto de vista da
responsabilização penal, esta é menos favorável.
§20.º - Presunção de inocência do arguido (artigo 32.º, n.º2 CRP) e
prisão preventiva (artigos 28.º CRP e 191.º e seguintes CPP)
Motivação e objeto deste capítulo: o presente capítulo não se destina apenas a analisar
a questão do conflito temporal de leis sobre a prisão preventiva. Este problema, e respetiva
resolução, já foi, suficientemente, tratado. Como vimos, é, jurídico-penal e jurídico-
constitucionalmente, ponto assente e que deveria ter-se por indiscutível – apesar de ter sido
e ainda, de certa forma, continua a ser, objeto de decisões inadmissíveis – que a sucessão de
leis sobre a prisão preventiva (pressupostos, prazos, termos da contagem, etc. ) rege-se pelo
princípio da aplicação da lei mais favorável: proibição da aplicação retroativa da lei
desfavorável e imposição da retroatividade da lei favorável ao arguido. Creio ter, também,
demonstrado que o momento de referência para o cumprimento daquela irretroatividade
desfavorável e desta retroatividade favorável é o tempus delicti, isto é, o momento da prática
da conduta, independentemente do momento da ocorrência do resultado. Apesar de, como
acabo de dizer, o aspeto da prisão preventiva, relacionado com a sucessão de leis respetivas,
já ter sido tratado, vou, ainda, desenvolver o problema da aplicação retroativa de lei nova que
encurta o prazo da prisão preventiva. As outras secções deste capítulo vão ser dedicadas à
reflexão doutrinal sobre os graves, importantes e atuais problemas que a prisão preventiva
em si mesma coloca.
Aplicação retroativa da Lei Nova que encurta o prazo da prisão preventiva:
referi e ilustrei, anteriormente, como em matéria tão grave para a liberdade, a jurisprudência
não tem andado bem. Comecemos por transcrever, parcialmente, mais alguns acórdãos do
sinal contrário:
1. Corretamente, e com rigor, lê-se no Ac. RE 19 julho 1983:
«A lei que fixa prazos de prisão preventiva tem natureza substantiva e está, por isso,
sujeita ao sistema da determinação do regime leal mais favorável quando se sucedem,
temporalmente, disposições que modifiquem esses prazos».
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✒ No mesmo sentido, o Ac. RL 11 maio 1983:
«A lei que estabelece a duração máxima dos prazos de prisão preventiva tem natureza
substantiva, mesmo quando inserida em lei processual, por respeitar diretamente ao
direito fundamental da liberdade. Por tal razão, quando se sucedem temporalmente
leis que estabelecem prazos diferentes para a prisão preventiva, tem de ser adotada a
regra da aplicação do regime mais favorável».
2. Erradamente: Ac. RL 18 maio 1983:
«A lei que modifica os prazos da prisão preventiva tem natureza puramente adjetiva,
pelo que é de aplicação imediata às situações anteriores à sua entrada em vigor».
Consideremos, apenas, uma hipotética objeção que poderá vir, sobretudo, daqueles que são
muito recetivos à raison d’État mas bastante alérgicos ao Estado de Razão, isto é, ao Estado
Democrático, convertendo a razão instrumental (do Estado) em razão final. A objeção à
aplicação retroativa da lei nova que encurte os prazos da prisão preventiva (logo, mais
favorável ao arguido-preso) poderá ser a seguinte: a necessidade de evitar que os arguidos
presos, por vezes perigosos e mesmo, porventura, já condenados, embora não
definitivamente, consigam a liberdade, dada a demora processual. A refutação da validade
desta objeção passa por um conjunto de argumentos-razões que passo a indicar:
1. A presunção de inocência do arguido até ao trânsito em julgado da sentença
condenatória é um direito e uma garantia fundamental;
2. O caráter excecional da prisão preventiva impõe que se aplique retroativamente
(imediatamente) a lei nova que reduza os prazos, independentemente de razões
processuais (complexidade do processo – aspeto que mesmo a lei nova poderá
contemplar, apesar de reduzir o prazo –, sobrecarga de processos ou, por ventura,
negligência ou mesmo arbitrariedade na demora do processo), das necessidades de
defesa social ou das ditas razões de Estado;
3. É de recusar – na sequência-imposição constitucional (artigo 32.º, n.º2, 2.ª
parte CRP) – uma conceção gradualista da presunção de inocência, segundo a
qual esta presunção se ia relativizando, esbatendo, à medida que o processo avançasse
(Dedução da acusação, decisão instrutória, etc.), de modo que, como alguns
pensariam, com a condenação em 1.ª instância, se não ocorreria a inversão da
presunção de inocência em presunção de culpa, desapareceria, contudo, a presunção
de inocência. Como é evidente, este estado neutro não existe. A presunção de
inocência vale e impõe-se, sem quaisquer graduações, até ao trânsito em julgado.
Daqui não se compreender como é que possa ter havido, na jurisprudência, quem,
pelo facto de o CPP revogado, artigo 273.º, §1.º, 1.ª parte, não referir o termo ad quem
do prazo máximo de 3 anos de prisão preventiva que ele estabelecia, tenha defendido
que esse termo ad quem era a condenação em 1.ª instância. É caso para perguntar, a
certo setor – oxalá que minoritário – da jurisprudência, onde está a recriação das
normas jurídicas a partir dos princípios fundamentais do Direito, das normas
constitucionais e dos princípios jurídico-penais e político-criminais?
4. Diferentemente do que dissemos a propósito da lei nova que cria a exigência da
queixa para o procedimento criminal ou que encurta o prazo para exercer o direito
de queixa, não se coloca, aqui – na lei que encurta os prazos de prisão
preventiva –, qualquer necessidade de acautelar legítimas expectativas. Pois
cabe, desde já, perguntar: expectativas de quem?
a. Do Legislador? Evidentemente que não: ele, legislador ordinário bem
sabe – por vezes não cabe, mas é presumido saber, não podendo a sua
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eventual ignorância isentar o juiz do cumprimento do princípio
constitucional da aplicação retroativa das normas processuais penais
materiais favoráveis – que a sua lei, porque mais favorável (ao arguido, claro;
não aos tribunais) tem de ser aplicada aos arguidos-presos preventivamente.
b. Expectativas do tribunal? Também é evidente que não: se o legislador
entende que o novo prazo da prisão preventiva é o razoável, em função da
gravidade do tipo legal de crime em questão e da correspondente
complexidade processual, é este que se tem de aplicar retroativamente
(imediatamente) às prisões preventivas em curso. Se, porventura, as
expectativas do tribunal se baseavam na relação que ele, tribunal, estabelecia
entre o tempo durante o qual podia manter preso o arguido e a dinâmica a
imprimir ao processo, então tais expectativas não só não são legítimas, mas
são mesmo ilegítimas. Ilegítimas, pois que: são mesmo inconstitucionais –
artigo 32.º, n.º2 CRP, estabelece a correta e justa relação entre a presunção
da inocência do arguido (1.ª parte) e a exigência de julgamento definitivo no
mais curto prazo compatível com as garantias de defesa (2.ª parte), o que,
valendo para o caso de arguido não preso, por maioria de razão se impõe,
estando preso o arguido – e revelam uma distorção da função processual da
prisão preventiva. Esta distorção teleológica é, mesmo sob o critério
constitucional, ilegítima, uma vez que, como dizemos já de seguida, atenta
contra o referido princípio da presunção de inocência e contra o princípio-
base constitucional da dignidade da pessoa humana, na medida em que as tais
expectativas se traduzem numa instrumentalização da pessoa do arguido-
preso.
Mesmo que não seja o caso reprovável de expectativas ilegítimas, o certo é que nunca
há quaisquer expectativas que possam impedir a aplicação imediata
(retroativa) da Lei Nova que reduza os prazos da prisão.
5. Por último, há que ter presente que uma Lei Nova que encurte o prazo de prescrição
do procedimento criminal se aplica retroativamente aos prazos em curso, o que, em
certos casos, significa a extinção imediata da responsabilidade penal por mais grave
que seja o crime em questão. Que razão há para impedir que uma Lei Nova que
encurta o prazo da prisão preventiva se aplique ao arguido-preso, mesmo que tal
aplicação determine a sua imediata libertação provisória? Nenhuma; pode mesmo
afirmar-se que, aqui, se deve aplicar mesmo por maioria de razões:
a. Diferentemente da prescrição, aqui não se trata de extinguir a
responsabilidade penal pelos eventuais crimes cometidos, mas apenas
de aguardar, em liberdade, a condenação ou a absolvição definitiva;
b. A prisão preventiva constitui – nada disto se passando na prescrição –, nas
adequadas palavras de Muños Conde,
«a mais grave intromissão que pode exercer o poder estatal na esfera
da liberdade do indivíduo, sem que medeie uma sentença judicial firme, com
fundamento em crime que a justifique».
Do desvirtuamento da função processual da prisão preventiva à neutralidade
do princípio constitucional da presunção de inocência do arguido e,
consequentemente, à violação ope legis ou ope iudicis do direito da liberdade
individual:
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✒ 1. O perigo, que em epígrafe se enuncia, não é meramente hipotético ou
académico.
a. em 1980, Palombarino, Juiz de Instrução Criminal do Tribunal de Pádua,
fazia constar de um seu despacho, com data de 3 maio, as seguintes
afirmações:
«Pena e prisão preventiva têm diversa natureza jurídica, diferentes objetivos,
diversa função… Para decidir se uma certa garantia individual deve aplicar-
se a um determinado instituto, é necessário atender, em primeiro lugar, à
incidência do mesmo instituto sobre a esfera do indivíduo. Ora, a prisão
preventiva – embora diversa, como se disse, da pena – traduz-se para o
indivíduo numa restrição total da sua liberdade. Diferentes os institutos,
idênticos os valores em jogo e os perigos da lesão do fundamental direito da
liberdade».
b. Aludindo ao caráter excecionalmente gravoso da prisão preventiva e ao
perigo que há em fazer do aumento dos prazos um expediente para
compensar a ineficácia do sistema punitivo, observa Guido Salvini:
«A tutela de um bem tão delicado como a liberdade pessoal não pode ser
sacrificada por circunstâncias que não se ligam com a disponibilidade do
tempo adequado, mas que só encontram justificação na crise da eficácia da
administração da justiça, crise de eficiência que não pode transformar-se em
prejuízo do arguido».
c. Há, por outro lado, que resistir à tentação de ver a prisão preventiva, na
prática, como um meio de intimação (prevenção geral negativa), como uma
expiação antecipada da pena ou comum um meio de coação em ordem à
obtenção de uma confissão. Em qualquer uma destas situações, há uma
perversão da função processual e do caráter excecional e subsidiário da prisão
preventiva. Esta perversão ou desvirtuamento atenta contra a dignidade da
pessoa humana – na medida em que instrumentaliza o arguido – e contra o
expresso princípio constitucional da presunção de inocência. Nesta linha de
crítica e de alerta contra a utilização abusiva da prisão preventiva para fins
que lhe são absolutamente estranhos, diz Mario Chiavario:
«será um grave equívoco pensar que a Constituição configurou uma espécie
de normalidade da prisão preventiva, desde que decidida pelo juiz… É de
temer, e não sem fundamento, que, na prática, os vários fins, a que se
orientam as medidas restritivas da liberdade, não sejam invocados senão para
encobrir a mais inaceitável das possíveis instrumentalizações da prisão
preventiva: a de a transformar numa antecipação da pena».
E este autor vai mesmo ao ponto de entender útil recordar a hipocrisia do
legislador fascista que, enquanto, por um lado, repudiava com desprezo a por
ele designada absurda presunção de inocência, qual extravagância derivada dos velhos
conceitos, germinados pelos princípios da Revolução Francesa, os quais levaram as
garantias individuais aos mais exagerados e incoerentes excessos, simultaneamente
proclamava como certo e indiscutido o princípio de que o arguido não pode ser
considerado culpado antes da sentença irrevogável de condenação. Depois de analisar a
tensão aguda entre o interesso social e os direitos individuais, Morillas Cueva,
conclui, salientando a necessidade de que seja considerada, na prática, como
medida verdadeiramente excecional e não como meio de coação para obter
a confissão dos factos. Recorda que a tortura de épocas passadas foi considera
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pelos juízes daqueles tempos como meio indispensável para a realização da missão de que
tinham sido incumbidos; a sua abolição não impediu, contudo, a manutenção da ordem
pública. Quem poderá negar que com a prisão preventiva se não virá a passar o mesmo?
2. A prisão preventiva ope legis é, seguramente, inconstitucional. Uma tal lei, que
impusesse a prisão preventiva, constituiria uma distorção da função cautelar
processual, uma violação do seu caráter rigorosamente excecional e subsidiário,
sendo inconstitucional a vários títulos. Dada a sua função cautelar, a prisão
preventiva ope legis é uma medida excessiva e desproporcionada. Uma tal imposição
legal violaria, pois, o artigo 18.º, n.º2, 2.ª parte CRP. Basta pensar que ela iria ter de
ser imposta pelo juiz a muitos arguidos que não preenchiam os pressupostos da
aplicação tanto desta como de qualquer outra medida de coação. Por sua vez, a
imposição legal da aplicação da prisão preventiva violava, frontalmente, o princípio
constitucional da presunção de inocência até ao trânsito em julgado (artigo 32.º, n.º2,
1ª parte CRP). Esta presunção de inocência não é menor pelo facto de estar em causa
um crime mais grave; pode dizer-se que, seja qual for o crime de que se é arguido, a
presunção é sempre absoluta. Uma tal determinação legal da aplicação necessária da
prisão preventiva era, por outro lado, violadora do princípio fundamental da
dignidade da pessoa humana (artigo 1.º CRP). Esta dignidade era duplamente
instrumentalizada: a própria imposição ope legis constituía em si mesma uma
instrumentalização, na medida em que significava a imputação à prisão preventiva de
uma função de intimidação da comunidade (prevenção geral negativa), função que
só à pena cabe; instrumentalização, ainda, daqueles arguidos, relativamente aos quais
não se verificassem os pressupostos cautelares da prisão preventiva. Deste modo,
nem sequer a declaração do estado de sítio ou do estado de emergência pode justificar
a prisão preventiva obrigatória, isto é, ope legis. Uma aplicação automática da prisão
preventiva violaria, mesmo nestas situações, os princípios constitucionais acabados
de referir, o mesmo modo que desrespeitaria o princípio da proporcionalidade e da
necessidade consagrado no próprio artigo 19.º, n.º4 CRP. Consideremos ainda mais
dois aspetos relacionados com o estado de emergência ou o estado de sítio.
a. Nunca as alterações legislativas do regime da prisão preventiva
(pressupostos, prazos, competência, etc.) – mesmo ressalvados os limites
constitucionais da necessidade e da proporcionalidade (artigo 19.º, n.º4 CRP)
– podem aplicar-se retroativamente, na medida em que, sendo (como
se dá por suposto serem) desfavoráveis, só podem aplicar-se aos crimes
cometidos depois da entrada em vigor da alteração legislativa.
b. Por outro lado, uma vez terminado o estado de sítio ou de emergência,
consideram-se ipso iure e imediatamente revogadas (caducadas) as
normas sobre a prisão preventiva desfavoráveis e publicadas em
conexão com esse estado.
3. O prazo limite da prisão preventiva é absoluto: assim, a libertação não pode ficar
dependente da prestação de caução. Mesmo fora da hipótese do preenchimento do
prazo máximo da prisão preventiva, é inconstitucional subordinar a liberdade
provisória à prestação de caução, quando as capacidades económicas do arguido não
permitem prestá-la. Se o juiz de instrução entende que o arguido pode aguardar
julgamento fora da prisão, não pode negar a liberdade com fundamento na não
prestação de caução, quanto tal não-prestação não pode ser imputada ao arguido.
Seria inconstitucional, por violação dos princípios da igualdade e da intervenção
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✒ mínima nos direitos fundamentais, que a incapacidade económica para prestar caução
pudesse determinar a prisão preventiva.
VIII – A prova3
§21.º - O regime jurídico da prova
As definições de prova: escusado será dizer que não podemos evitar a polissemia da
palavra prova. Como sempre, o uso da palavra nos diferentes contextos há de esclarecer
finalmente o sentido em que se toma a palavra. Assim:
1. A prova enquanto atividade probatória: é o esforço metódico através do qual são
demonstrados os factos relevantes para a existência do crime, a punibilidade do
arguido e a demonstração da pena ou medida de segurança aplicáveis (artigo 124.º,
n.º2 CPP);
2. A prova enquanto meios de prova: são os elementos com base nos quais os factos
relevantes podem ser demonstrados;
3. A prova enquanto resultado de uma atividade probatória: e a motivação da
convicção da entidade decisora acerca da ocorrência dos factos relevantes, contanto
que essa motivação se conforme com os elementos adquiridos representativamente
no processo e respeite as regras da experiência, as leis científicas e os princípios da
lógica;
4. A prova enquanto provas materiais: são os objetos relacionados com a preparação
e a prática do facto qualificado como crime. A lei usa a palavra prova quando fala de
(artigo 174.º, n.º1 CPP):
«objetos relacionados com um crime ou que possam servir de prova».
O regime dos meios de prova: são admissíveis as provas que não forem proibidas por
lei, segundo o artigo 125.º CPP. Mas essa proclamação da liberdade de escolha dos meios de
prova a utilizar no processo é, afinal de contas, ilusória. Senão vejamos, a lei estabelece um
catálogo de meios de prova. Esses meios de prova são os seguintes:
1. O depoimento de testemunha (artigos 128.º e seguintes CPP);
2. As declarações do arguido, do assistente e das partes civis (artigos 140.º e
seguintes CPP);
3. O confronto entre as pessoas que prestaram declarações contraditórias (artigo
146.º CPP);
4. O reconhecimento de pessoas e objetos (artigos 147.º e seguintes CPP);
5. A reconstituição do facto (artigo 150.º CPP);
6. O juízo técnico, científico ou artístico inerente ao exercício de funções
periciais (artigos 151.º e seguintes CPP);
3 MENDES, Paulo de Sousa; Lições de Direito Processual Penal; 2.ª Reimpressão da edição de Setembro de 2013; Almedina Editores; Coimbra, 2014.
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§
7. Os documentos (artigos 164.º e seguintes CPP).
Ora, o catálogo dos meios de prova típicos inclui os respetivos regimes e não permite que
sejam desrespeitadas as suas regras, a fim de serem criados meios de prova aparentados, mas
atípicos. Ou melhor, a não taxatividade dos meios de prova que o artigo 125.º CPP estabelece
respeita apenas a meios de prova não previstos e não pode significar liberdade relativamente
aos meios já disciplinados. Por outro lado, é difícil de imaginar que possa haver meios de
prova totalmente diferentes dos típicos, de mais a mais admissíveis. Portanto, a única
liberdade que existe relativamente à escolha dos meios de prova consiste na possibilidade de
selecionar do catálogo dos meios de prova típicos aqueles que forem considerados como
adequados ao processo em curso. Não admira, pois, que a epígrafe do artigo 125.º CPP seja,
muito expressamente, a legalidade da prova. Ainda valem, assim, as palavras de Castanheira
Neves acerca dos limites que a legalidade dos meios de prova impunha ao princípio do
inquisitório (ou princípio da investigação):
«por este princípio, visa-se atribuir aos órgãos jurisdicionais criminais (e particularmente ao
juiz) o poder-dever de esclarecimento e instrução oficiosos do facto sujeito a julgamento. Os
limites que o nosso Direito Processual Criminal – na linha, aliás, dos Direitos estrangeiros –
prescreve ao princípio do inquisitório são vários. (Deve-se, no entanto, ter em conta que esses
limites são postos ou a favor do réu ou para garantia da imparcialidade e objetividade do
julgador e, assim, no que toca a este segundo ponto, são limites que não contrariam, antes
favorecem, a intenção última do princípio inquisitório). Avultam todas as restrições que a
legalidade processual impõe já à utilização de quaisquer meios de prova – assim, só poderão
utilizar-se os meios de prova legalmente admitidos, ficando excluídos certos processos porventura
eficazes, mas atentatórios de valores fundamentais, como as narco-análises – já ao modo da
sua produção –, pense-se, por exemplo, no regime a que está sujeita a prova por exames e
pericial».
Aparentemente discordantes, as palavras de Figueiredo Dias valem na mesma hoje em dia:
«que o princípio segundo o qual só poderão utilizar-se os meios de prova admitidos em direito
constitua um limite ao princípio da investigação, é ideia que não poderemos aceitar. A
legalidade dos meios de prova, bem como as regras gerais de produção da prova e as chamadas
proibições de prova (narco-analises, polígrafos ou lie detectors, etc.) são condições de validade
processual da prova e, por isso mesmo, critérios da própria verdade material».
O regime legal dos meios de prova típicos visa garantir, a máxima credibilidade dos mesmos
para a demonstração dos factos probandos. Nesse campo, são proibidos, por exemplo:
1. O testemunho de ouvir dizer (artigo 129.º, n.º1 CPP);
2. A reprodução de vozes ou rumores públicos (artigo 130.º, n.º1 CPP);
3. O depoimento de uma testemunha não esclarecida sobre a sua faculdade de
recusa de depoimento (artigo 134.º, n.º2 CPP); ou
4. A leitura em audiência de autos e declarações fora dos casos expressamente
permitidos (artigo 356.º CPP).
A própria lei estabelece os casos em que as provas não podem ser produzidas, nem valoradas.
O legislador usa diversas expressões para se referir a essas restrições de prova: a título de
exemplo, veja-se:
Paulo de Sousa Mendes
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✒ 1. O artigo 129.º, n.º1 CPP, que refere que o depoimento não pode servir como meio
de prova;
2. O artigo 130.º, n.º1 CPP, onde se diz que não é admissível como depoimento a
reprodução de vozes ou rumores públicos;
3. O artigo 167.º, n.º1 CPP, segundo o qual as reproduções mecânicas só valem como
prova dos factos ou coisas reproduzidas se não forem ilícitas, nos termos da lei penal.
A violação destas disposições gera nulidade dependente de arguição, embora a lei não comine
aqui expressamente a nulidade (artigo 120.º, n.º2 CPP). Mas deve entender-se que a
cominação de nulidade não depende necessariamente da utilização da palavra nulidade,
podendo a mesma consequência retirar-se de expressões como não pode, não é admissível ou só
valem como prova.
§22.º - As proibições de prova
A doutrina processual penal das proibições de prova abrange:
As proibições de produção de prova: as proibições de produção de prova cabem numa
das seguintes três espécies:
1. Os temas de prova proibidos: há temas de prova proibidos e que, por conseguinte,
não devem ser investigados: por exemplo, os factos abrangidos pelo segredo de
Estado:
a. Artigo 137.º CPP: trata-se da proibição de utilizar a testemunha para obter
depoimento sobre factos que constituam segredo de Estado.
b. Artigo 182.º CPP: trata-se da proibição de obter prova documental relativa
a factos cobertos pelo segredo de Estado.
Em ambos os casos, o interesse público na salvaguarda do segredo de Estado
prevalece sobre o interesse igualmente público de descoberta da verdade material.
2. Os meios de prova proibidos: há também proibições de produção de prova através
de determinados meios de prova: por exemplo, a proibição da produção de prova
através dos suportes técnicos e respetivas transcrições quando tiverem sido gravadas
conversações em que intervenham o Primeiro Ministro (artigo 11.º, n.º2, alínea b)
CPP), ainda que a interceção telefónica tenha sido autorizada por despacho de juiz
de instrução no âmbito de inquérito processual, nos termos do artigo 187.º CPP.
Neste caso, é o próprio meio de prova que está inquinado, mesmo que o conteúdo
das conversações não refira factos que constituam segredo de Estado, não sendo,
portanto, um tema de prova proibido.
3. Os métodos de prova proibidos: os métodos de prova são os procedimentos
usados pelas autoridades judiciárias, pelas polícias criminais, pelos advogados e até
pelos particulares (em especial, os ofendidos) para a aquisição de meios de prova e
sua utilização no processo. Os meios de prova não devem ser obtidos mediante
procedimentos contrários aos direitos de liberdade, salvo nos casos expressamente
previstos na Constituição. A este propósito, rege a distinção entre
a. Métodos de prova absolutamente proibidos; e
b. Métodos de prova relativamente proibidos.
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§
Conforme a produção de prova mediante certa atuação for absolutamente proibida
ou, pelo contrário, possa ser ordenada ou autorizada por uma autoridade judiciária
ou consentida pelo próprio visado. A violação de formalidades relativas à obtenção
das provas não deve ser confundida com os métodos de prova proibidos.
a. Os métodos contrários aos direitos de liberdade: a velha máxima de que
o processo penal é Direito Constitucional aplicado tem toda a razão de ser
no campo da obtenção dos meios de prova. Ou então não é verdade que a
Constituição elevou à categoria dos direitos fundamentais a conciliação das
provas com a dignidade da pessoa humana. Nas múltiplas garantias
constitucionais do processo penal, cabem as proibições de prova
subentendidas na cominação da nulidade de todas as provas obtidas mediante
tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva
intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas
telecomunicações (artigo 32.º, n.º8 CRP). A tortura, a coação ou a ofensa da
integridade física ou moral da pessoa em geral são métodos absolutamente
proibidos de obtenção de provas. Já a intromissão na vida privada, no
domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações são métodos
relativamente proibidos, por isso mesmo que a proibição é agora afastada
quer pelo acordo do titular dos direitos em causa, quer pelas restrições à
inviolabilidade desses direitos constantes do artigo 34.º, n.º2, 3 e 4 CRP. Sob
a epígrafe de métodos proibidos de prova, o artigo 126.º CPP repete a citada
distinção entre as proibições absolutas e as proibições relativas de obtenção
de prova. No caso do artigo 126.º, n.º1 e 2 CPP, vigora uma proibição
absoluta de obtenção de provas através dos meios ali indicados, ainda que
sejam obtidas a coberto do consentimento do titular dos direitos em causa.
No caso do artigo 126.º, n.º3 CPP, a proibição é afastada pelo acordo do
titular dos direitos em causa, ou então é removida mediante as ordens ou
autorizações emanadas de certas autoridades, nos termos da lei. Assim sendo,
a busca domiciliária (artigo 177.º CPP), a apreensão de correspondência
(artigo 179.º CPP), a apreensão de documentos em escritório de advogado
ou consultório médico (artigo 180.º CPP) e as escutas telefónicas (artigo 187.º
CPP) ou equiparadas (artigo 189.º CPP) são permitidas nas condições
expressamente previstas na lei. A proibição de certos métodos de obtenção
de prova dirige-se preferencialmente aos órgãos de perseguição penal, a
começar pelas autoridades judiciárias e a terminar nos OPC. Antes da
abertura oficiosa do inquérito, os métodos de obtenção de provas podem
surgir como medidas cautelares e de polícia da competência do POC: por
exemplo, artigos 174.º, n.º5, 178.º, n.º4, 249.º, especialmente, n.º2, alínea c) e
251.º, n.º1, alínea a) CPC). Mas o inquérito é a fase do processo penal na qual
ocorre normalmente o maior número de diligências para a obtenção de meios
de prova. Nomeadamente, o Ministério Público, dirigindo o inquérito, e os
Órgãos de Polícia Criminal que o assistem (artigo 263.º, n.º1 CPP) sentem
então a premência de trazer para o processo todos os elementos necessários
para deduzir a acusação, sendo caso disso (artigo 283.º CPP). Escusado será
lembrar que muitas das diligências para a obtenção de meios de prova
porventura julgadas necessárias pelo Ministério Público só podem ser levadas
a cabe se forem autorizadas pelo juiz de instrução, na sua veste de juiz das
liberdades: por exemplo, artigos 179.º e 187.º a 189.º CPP. Mormente no
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✒ inquérito, a parcialidade do Ministério Público é um facto, apesar de todos
sabermos que tem de investigar à charge et à décharge. Não espanta, pois, que as
proibições de produção de prova persigam fins de disciplina, por isso mesmo
que visam impedir que o Ministério Público e os Órgãos de Polícia Criminal
façam tábua rasa dos direitos de liberdade que se opõem ao interesse na
perseguição penal ou abusem dos meios de atuação disponibilizados pela
ordem jurídica. Nas fases de inquérito e instrução, o juiz de instrução.
i. Nas fases de inquérito e instrução, o juiz de instrução poderá ele mesmo
sentir a necessidade de ordenar que se realizem ainda mais diligências
de obtenção de provas, podendo recorrer aos Órgãos de Polícia
Criminal para a realização das mesmas (artigos 288.º, n.º1 e 290.º, n.º2
CPP). Escusado será dizer que as proibições de produção de prova
se destinam a disciplinar a atuação do juiz do julgamento no tocante
à ampla margem de atuação que lhe é conferida pelo princípio da
investigação (artigo 340.º e seguintes CPP).
ii. Na fase do julgamento: o juiz está igualmente habilitado a ordenar todas
as diligências que se lhe afigurem necessárias para a descoberta da
verdade material (artigo 340.º, n.º1 CPP), embora esteja subordinado
ao tema definido pela acusação ou pela pronúncia (princípio da
vinculação temática).
Seguramente, as proibições de produção de prova também se dirigem aos
restantes sujeitos processuais, especialmente ao(s) advogado(s) e ao(s)
assistente(s). Com certeza, as proibições de produção de prova não se dirigem
aos particulares, por isso mesmo que eles não estão vinculados às normas do
processo penal, salvo se atuarem às ordens ou sob a direção das instâncias
formais de controlo social. Resta saber se o facto de um meio de prova ter
sido ilicitamente obtido por um particular não impediria a sua utilização em
processo pena, mas a questão já escapa do âmbito das proibições de
produção de prova.
b. Os procedimentos violadores das formalidades: o regime legal dos
métodos de obtenção de provas estabelece várias formalidades cuja
inobservância torna o ato ilegal: por exemplo, a entidade competente para
receber o depoimento deve advertir os parentes e afins do arguido acerca da
faculdade que lhes assiste de recusarem o depoimento (artigo 134.º, n.º2 CPP),
os investigadores policiais devem entregar ao visado a cópia do despacho que
determinou a revista (artigo 175.º, n.º1 CPP) e a revista deve respeitar o pudor
do visado (artigo 175.º, n.º2 CPP). Embora o respeito pelas formalidades dos
métodos de obtenção de provas tenha um significado material, na medida em
que essas formalidades regulamentam e racionalizam a procura da verdade, a
violação das formalidades não cabe no domínio das proibições de prova se
não atentar contra direitos de liberdade.
As proibições de valoração de prova: em princípio, a consequência processual do
reconhecimento do caráter proibido das provas devia ser a proibição de as mesmas serem
utilizadas como fundamento de decisões prejudiciais ao arguido, devendo essas provas ser
desencadeadas dos autos, uma vez que, perdida a sua única utilidade, serviriam agora apenas
para as entidades decisórias, continuarem a avaliar, na prática, algo que verdadeiramente não
deviam conhecer. De resto, a proibição de utilização (=valoração) das provas proibidas
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afigura-se como a melhor maneira de o legislador prevenir a tentação de obtenção das provas
a qualquer preço, por parte das instâncias formais de controlo social. É como se o legislador
anunciasse aos virtuais prevaricadores
Não sucumbais ao canto da sereia da obtenção das provas a qualquer preço,
porquanto isso vos custaria a inutilização absoluta dos meios de prova
ilicitamente obtidos, nem sequer podendo repetir essas provas por outros meios!
Tudo se passa, no entanto, de maneira mais complicada que isso. Ou seja:
1. As proibições de produção de prova cuja violação prejudica o uso das provas:
as proibições de produção de prova cuja violação prejudica o uso das provas são
normais. Portanto, o comentário aqui seria supérfluo.
2. As proibições de produção de prova cuja violação não tem consequências: por
exemplo, os exames ao corpo de uma pessoa devem respeitar o pudor de quem a eles
se submeter (artigo 172.º, n.º1 CPP), assim como a revista deve respeitar o pudor do
visado (artigo 175.º, n.º2 CPP). Um homem, se não for um médico, a examinar o
corpo de uma mulher, ou um homem a revistar o corpo de uma mulher são situações
suscetíveis de atentar contra o pudor da pessoa visada. Nos termos do CPP, essas
violações não implicam, porém, a subtração das provas eventualmente obtidas à
posterior valoração. Embora o ultraje ao pudor possa assumir a dimensão de uma
autêntica lesão ao direito fundamental à dignidade sexual da pessoa, ainda assim será
difícil de subsumir uma tal situação nos casos descritos no artigo 126.º CPP, além de
que os próprios artigos 172.º e 175.º CPP não cominam a nulidade para os casos de
violação. Enfim, a simples ideia da existência de normas processuais cuja violação
não implica quaisquer consequências processuais é alvo de muitas críticas na doutrina,
mas não há maneira de escapar a ela.
3. As proibições de valoração de prova independentes: há proibições de valoração
de prova alheias à existência de qualquer vício na anterior produção de prova. As
escutas na pendência de uma dada investigação criminal, estando devidamente
autorizadas e sendo as gravações das conversas telefónicas levadas ao conhecimento
do juiz que as autorizou, aliás acompanhadas da transcrição das passagens
consideradas relevantes pelos investigadores policiais – i.e., os factos casualmente
descobertos, mas independentes do crime cuja investigação legitimara a escuta
telegónica – só podem ser valorados se porventura couberem na classe dos crimes
do catálogo (artigo 187.º, n.º7 CPP). Caso contrário, trata-se de uma proibição de
valoração que não depende de qualquer vício na anterior produção da prova. Outro
exemplo: a busca domiciliária legitimamente ordenada ou autorizada pelo juiz pode
levar, naturalmente, à apreensão de objetos ou documentos de grande interesse para
a prova de um crime, quem sabe, os diários íntimos. Ora, o regime da prova
documental na lei processual penal nada diz acerca da utilização de diários íntimos
como meio de prova, mas pode ser questionada essa espécie de devassa da esfera
íntima de outrem para se garantir a investigação da verdade a qualquer preço (são
inadmissíveis, por força do artigo 18.º CRP, os meios de prova que lesem o direito
ao livre desenvolvimento da personalidade e à reserva da intimidade da vida privada).
A lei estabelece os casos em que as provas não devem ser valoradas, ao estatuir no
n.º1 do artigo 126.º CPP, que as provas obtidas mediante tortura, coação, etc., não
podem ser utilizadas e, no n.º3, que as provas obtidas mediante intromissão na vida
privada, no domicílio, etc., também não podem ser utilizadas.
Paulo de Sousa Mendes
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✒ A invalidade do ato processual: qualquer proibição de prova pode, por definição, ser
violada pelo aplicador do direito. A violação determina a invalidade do ato e, eventualmente,
dos seus termos subsequentes. Como nos diz Conde Correia:
«A invalidade é um conceito unitário, que exprime todos os desvios entre as disposições
processuais e a atividade empreendida, capazes de legitimar uma pretensão eliminatória dos
efeitos jurídicos produzidos. Existe apenas um grau de invalidade que, enquanto modelo para
a avaliação dos atos processuais, é indivisível. O ato integra a sua fattispecie e é válido ou não
integra e é inválido; de modo que, nessa perspetiva de conformidade ou não conformidade entre
o ato e a norma, é impossível de diferenciar vários níveis de imperfeição. O que não significa
uniformidade nas suas consequências. Antes pelo contrário, os atos processuais penais inválidos
dão origem a uma pluralidade de tratamentos, que variam em função da gravidade e da
natureza da violação. Se o legislador estabelecesse apenas um princípio geral, tratando com
uniformidade todos os vícios dos atos processuais penais, o processo perderia flexibilidade. A
menor irregularidade e a maior anomalia teriam a mesma resposta, sem que isso significasse
um aumento significativo das garantias individuais».
1. O sistema das nulidades e irregularidades: o Título V (Das nulidades) do Livro
II do CPP correlaciona o ato inválido com um sistema de nulidades e irregularidades:
a. As infrações mais graves dão lugar às nulidades insanáveis, que devem ser
oficiosamente declaradas em qualquer estado do procedimento, mas que não
obstam à formação de caso julgado (artigo 119.º CPP);
b. As infrações de gravidade média, digamos assim, originam as nulidades
dependentes de arguição, que devem ser arguidas pelos interessados dentro
de determinados prazos, ficando ainda sanadas pela intercessão de certos
eventos previstos na lei (artigos 120.º e 121.º CPP), e as infrações mais leves,
quase sempre de caráter formal, são relegadas para a figura das irregularidades,
que está sujeita a causas de sanação fulminantes (artigo 123.º CPP).
No artigo 122.º, n.º1 CPP, diz-se que
«as nulidades tornam inválido o ato em que se verificarem, bem como os que dele
dependerem e aquelas puderem afetar».
São termos que não se podem considerar muito felizes, como nos diz Conde Correia:
«o legislador confundiu os conceitos de nulidade, invalidade e ineficácia, prescrevendo
que a nulidade torna o ato defeituoso inválido. Todavia, não é isso que acontece na
realidade. O ato declarado nulo era inválido desde a sua génese, precisamente por não
corresponder ao seu esquema legal. A declaração de nulidade limita-se a verificar essa
desconformidade e a destruir os efeitos já produzidos ou a evitar a sua produção futura,
não produzindo qualquer invalidade. Nesta medida, as nulidades, nas suas diversas
espécies, constituem formas de tornar ineficazes os atos inválidos».
A invalidade é uma qualificação jurídica e a ineficácia é uma realidade prática. Posto
isto, os atos inválidos podem ser eficazes, assim como os atos válidos podem ser
ineficazes. Na realidade, os atos processuais penais inválidos produzirão muitas vezes
efeitos até que sejam declarados nulos, salvo se forem estruturalmente inaptos para
tal.
2. As nulidades extra-sistemáticas e o seu regime sui generis: mas o Título V não
esgota as espécies da nulidade. Senão, vejamos: o artigo 118.º, n.º3 CPP, dizendo que
as disposições do presente título não prejudicam as normas deste Código relativas a
proibições de prova, sugere então – é a nossa interpretação – a possibilidade de haver
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um ou vários regimes sui generis para as nulidades resultantes da violação das normas
que estabelecem proibições de prova. Portanto, das três uma:
a. Ou bem que a lei estabelece tal (ou tais) regime(s) sui generis para
(algumas d)as nulidade resultantes da violação das normas da prova;
b. Ou bem que a lei comina expressamente a nulidade insanável deste ou
daquele ato em que se verificar a violação das normas da prova
(atendendo à hipótese referida no corpo do artigo 119.º, in fine CPP);
c. Ou bem que não estabelece regime algum. Neste caso, vigoraria então aí
o regime supletivo das nulidades dependentes de arguição, nos termos do
artigo 120.º, n.º1 CPP.
Bem vistas as coisas, o legislador criou, pelo menos, um regime sui generis, a saber: as
nulidades do artigo 126.º CPP. Na verdade, a nulidade mencionada no artigo 32.º,
n.º8 CRP e artigo 126.º CPP não é uma nulidade em sentido técnico-processual, mas
uma nulidade dotada de uma autonomia técnica completa em face do regime das
nulidades processuais. Acontece, porém, que o legislador português não quis levar a
autonomia técnica das proibições de prova tão longe a ponto de prescindir do
emprego da palavra nulidade neste contexto. Mas poderia e deveria tê-lo feito,
simplesmente cominando, com muito mais rigor, que: são proibidas, não podendo
ser utilizadas, as provas…
a. O artigo 126.º, n.º1 CPP (o n.º2 é meramente explicativo do n.º1): proíbe
implicitamente a produção das provas mediante a ofensa da integridade física
ou moral das pessoas, por isso mesmo que comina a nulidade das provas
obtidas dessa maneira. Ademais, o preceito proíbe expressamente a valoração
dessas provas, porquanto acrescenta que as mesmas não podem ser utilizadas,
subentenda-se, na fundamentação da acusação, da pronúncia ou da sentença
condenatória.
b. O artigo 126.º, n.º3 CPP não contém um regime diverso do anterior. O
preceito diz que são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas
obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na
correspondência ou nas telecomunicações. Esses métodos configuram
contra direitos de liberdade cuja importância não fica atrás das situações
descritas nos números anteriores do artigo. Donde se percebe que o
legislador tenha cominado igualmente a nulidade – leia-se: a mesma espécie
de nulidade – das provas obtidas dessa maneira, determinando que essas
provas tão-pouco podem ser utilizadas. De mais a mais, a Constituição inclui
os direitos à reserva da intimidade da vida privada e à inviolabilidade do
domicílio e da correspondência ou outros meios de comunicação nas
garantias do processo penal (artigo 32.º, n.º8 CRP). É verdade que tanto o
artigo 32.º, n.º8 CRP, tal como o artigo 126.º, n.º3 CPP, admitem a restrição
desses direitos nos casos e segundo as formas previstos na lei. Mas esses casos
ficam já de fora das proibições de prova, sendo aliás métodos de prova
permitidos e regulamentados. Acresce que os direitos em causa são
disponíveis, obstando assim o acordo do respetivo titular à ofensa dos
mesmos (violenti non fit injuria). Essas hipóteses nada abundam, portanto, para
a caracterização do regime das nulidades do artigo 126.º, n.º3 CPP.
i. Do atrás afirmado se depreenderá que não podemos senão discordar das seguintes
palavras de Maia Gonçalves:
Paulo de Sousa Mendes
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✒ «o artigo 126.º sobre métodos proibidos de prova, contém
afloramento e regulamentação do que se estabelece nos artigos 32.º,
n.º6 e 34.º, n.º4, da Constituição da República Portuguesa, o que
desde logo dá clara indicação de que se trata aqui de princípios
fundamentais em matéria de produção da prova. O n.º2 é
meramente explicativo do n.º1; no n.º3 estabelece-se que, para além
dos casos de nulidade consagrados no n.º1, são igualmente nulas as
provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio,
na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do
respetivo titular. Trata-se, em meu entendimento, de dois graus de
desvalor de provas obtidas contra as cominações legais, sendo maior
o desvalor ético-jurídico das provas obtidas mediante os processos
referidos no n.º1, e tal diferente grau de desvalor tem reflexo nas
nulidades cominadas: enquanto as provas obtidas pelos processos
referidos no n.º1 estão fulminadas com uma nulidade absoluta,
insanável e de conhecimento oficioso, que embora como tal não esteja
consagrada no artigo 119.º o está neste artigo 126.º, através da
expressão imperativa não podendo ser utilizadas, já as provas
obtidas mediante o processo descrito no n.º3 são dependentes de
arguição e, portanto, sanáveis, pois que não são apontadas como
insanáveis no artigo 119.º ou em qualquer outra disposição da lei.
Em relação a estas últimas provas, obtidas mediante os processos
aludidos no n.º3, a lei atendeu de algum modo à vontade do titular
do interesse ofendido e ao princípio violenti non fit injuria. Aqui se
incluem, designadamente, além dos meios expressamente referidos, o
uso de microfones para registo não autorizado de conversas e as
fotografias sem consentimento das pessoas fotografadas em privado».
A tese defendida por Maia Gonçalves não pode ser acolhida, por duas
ordens de razões:
1. Abstrai incompreensivelmente do disposto no n.º3 do artigo 118.º CPP,
que dispõe que o sistema das nulidades processuais não se
aplica às proibições de prova;
2. Esquece que as diferenças de desvalor que tornam os métodos referidos
no n.º1 do artigo 126.º CPP proibidos em quaisquer circunstâncias e os
processos descritos no n.º3 do artigo 126.º CPP permitidos em certas
circunstâncias, legalmente estabelecidas, não justificam que as provas, se
forem nulas, sejam sujeitas a distintos regimes de nulidade.
Ainda menos aceitável se tornou, de resto, a tese de Maia Gonçalves
após a revisão de 2007 do Código, na medida em que a interpolação
do fragmento textual não podendo ser utilizadas no n.º3 do artigo 126.º
CPP só pode significar que o regime da nulidade aqui cominada é
igual ao do n.º1 do artigo 126.º CPP.
ii. A tese de Pinto de Albuquerque também não é ade admitir: onde, depois da
revisão de 2007, retoma a posição de Maia Gonçalves e aperfeiçoa-a:
«o regime da nulidade da prova proibida é o seguinte: a nulidade da
prova proibida que atinge o direito à integridade física e moral
previsto no artigo 126.º, n.º1 e 2 CPP é insanável; a nulidade da
prova proibida que atinge os direitos à privacidade previstos no
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artigo 126.º, n.º3 CPP é sanável pelo consentimento do titular do
direito. A legitimidade para o consentimento depende da
titularidade do direito em relação ao qual se verificou a intromissão
legal. O consentimento pode ser dado ex ante ou ex post facto. Se o
titular do direito pode consentir na intromissão na esfera jurídica do
seu direito, ele também pode renunciar expressamente à arguição da
nulidade ou aceitar expressamente os efeitos do ato, tudo com a
consequência da sanação da nulidade da prova proibida. Em síntese,
o artigo 126.º, n.º1 e 2 prevê nulidades absolutas de prova e o n.º3
prevê nulidades relativas de prova».
Esta tese não é de aceitar, não só pelas razões já invocadas contra a
tese de Maia Gonçalves, mas também porque a aceitação de uma
possibilidade de sanação da nulidade da prova proibida, no caso do
artigo 126.º, n.º3 CPP, enfraqueceria a função de prevenção da
própria proibição de prova contra possíveis abusos por parte das
autoridades judiciárias e OPC, na medida em que as provas obtidas
em tais circunstâncias poderiam, em certas circunstâncias, ainda
assim ser utilizadas. Além de que a exigência de uma renúncia
expressa à arguição da nulidade facilmente se transforma, na praxis,
numa mera falta de arguição da nulidade, que é quanto bastará, se a
tese de Pinto de Albuquerque for acolhida, para se concluir que a
prova contaminada pode, afinal, ser utilizada. Não podemos, pois,
concordar com a tese de Pinto de Albuquerque.
Em suma, o regime sui generis das nulidades cominadas no artigo 126.º CPP consiste
essencialmente no seguinte: são nulidades de conhecimento oficioso a todo o
tempo e podem ser atacadas excecionalmente depois do trânsito em julgado
da decisão final, caso só sejam descobertas depois disso.
À parte o disposto no artigo 126.º CPP, há ainda as nulidades diretamente resultantes
da violação dos preceitos da lei que estabeleça, por via positiva o âmbito das
restrições legítimas aos direitos de liberdade, a saber:
a. Os pressupostos da revista e das buscas, inclusive a domiciliária
(artigos 174.º, n.º3 e 5 e 177.º CPP);
b. Os pressupostos da apreensão de correspondência, inclusive em
escritório de advogado ou em consultório médico (artigos 179.º e 180.º
CPP);
c. Os pressupostos das escutas telefónicas ou equiparadas (artigos 187.º e
189.º CPP).
Dado que os artigos agora mesmo citados são os casos previstos na lei de restrição
aos direitos de liberdade (artigo 126.º, n.º3 CPP), então é forçoso que os atos cuja
invalidade advenha da violação dos pressupostos neles estabelecidos deem lugar à
mesma nulidade e à mesma inutilização da prova cominadas no próprio artigo 126.º,
n.º3 CPP.
3. As violações reconduzíveis ao sistema das nulidades processuais: há, porém,
outras nulidades de prova reconduzíveis ao sistema das nulidades processuais, as
quais seguem o regime das nulidades dependentes de arguição (artigo 120.º, n.º1
CPP). É o caso dos atos cuja invalidade resulta da violação das meras formalidades
da prova, contanto que a nulidade seja cominada nas disposições legais em causa: por
exemplo, a falta de aviso aos parentes e afins acerca da sua faculdade de recusarem o
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✒ depoimento (artigo 134.º, n.º2 CPP) ou a demora na entrega ao juiz das gravações e
transcrições necessárias para se fiscalizar as escutas telefónicas (artigos 188.º, n.º4 e
190.º CPP). Maria de Fátima Mata-Mouros diz, e concordamos:
«Na maior parte dos casos (provavelmente mesmo na totalidade) de nulidades de
escutas telefónicas arguidas nos nossos tribunais, o que tem sido discutido é, tão-só, a
verificação, ou não, da nulidade na sua vertente sanável. A questão essencialmente
apreciada consistem em saber se as interceções telefónicas realizadas nos respetivos
processos contaram, ou não, com efetivos acompanhamento e controlo judiciais. A ideia
de que uma prova adquirida sem o adequado controlo do juiz possa configurar uma
prova absolutamente proibida tem desvirtuado estas regras, levando à repetição, a meu
ver excessiva, de prolação de decisões sucessivas sobre a mesma questão num mesmo
processo, mesmo antes de se atingir a instância de recurso. Será tarefa fácil pesquisar
em processos pendentes ou nos arquivos dos tribunais casos em que esta mesma questão
tenha sido alvo de diversas, e por vezes também contraditórias, decisões proferidas
sempre em primeira instância, ainda que nas diversas fases em que se divide o processo.
As proibições de prova geram prova absolutamente nula e, por isso, podem ser
declaradas a qualquer momento, argumenta-se. Prática, a meu ver, excessiva e a
revelar, de facto, falta de maturidade na apreciação destas questões. Indefinição,
imprecisão, enfim, hesitação característica de quem não encontrou ainda a segurança
que só a experiencia permite atingir».
4. As irregularidades de prova: toda a violação de formalidades de prova que não for
cominada com a nulidade é uma irregularidade (artigos 118.º, n.º2 e 123.º CPP).
O efeito à distância das proibições de prova: a jurisprudência dos frutos da árvore
envenenada ou da mácula e a sua equivalente germânica, também chamada teoria da mácula,
enquanto metáfora da nódoa de ilegalidade, dizem que as provas que atentam contra os
direitos de liberdade arrostam com um efeito à distância que consiste em tornarem
inaproveitáveis as provas secundárias a elas causalmente vinculadas. O efeito à distância é a
única forma de impedir que os investigadores policiais, os procuradores e os juízes menos
escrupulosos se aventurem à violação das proibições de produção de prova na mira de
prosseguirem sequências investigatórias às quais não chegariam através dos meios postos à
sua disposição pelo Estado de Direito. O efeito à distância pode, no entanto, ser atenuado
por uma série de exceções, que se reconduzem à ideia de saber se as provas secundárias
poderiam ter sido obtidas na falta de prova primária maculada. Na jurisprudência portuguesa,
o efeito à distância foi reconhecido pela primeira vez pelo Tribunal Judicial de Oeiras
(Sentença do 3.º Juízo, de 5 março 1993):
«a nulidade do primeiro dos meios de prova é extensiva ao segundo, impossibilitando, da mesma
forma, o julgador de extrair deste último qualquer juízo valorativo».
Depois disso, o efeito à distância foi declarado em vários arestos, assim como a necessidade
de se lhe impor restrições, tendo até ambos os temas já merecido um tratamento conjunto
na jurisprudência constitucional: cabe referir o importante Ac. TC n.º198/2004, 24 março
2004, cuja doutrina foi reafirmada na Decisão Sumária do TC n.º13/2008, 11 janeiro 2008.
No Acórdão tratava-se de apreciar a questão de inconstitucionalidade normativa de saber se
a norma do artigo 122.º, n.º1 CPP, pode ser interpretada como autorizado, face à nulidade
de interceções telefónicas realizadas, a utilização de outras provas, distintas das escutas e a
elas subsequentes, tais como declarações confessórias dos arguidos que não teriam existido
se os arguidos soubessem da invalidade das escutas. O Tribunal afirmou a inteira vigência
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entre nós da doutrina da eficácia longínqua ou do efeito à distância, mas, no caso em
apreciação, invocando a doutrina estabelecida pelo Supremo Tribunal dos EUA, considerou
que a invalidade da prova primária não afetava uma posterior confissão voluntária e
esclarecida quanto às suas consequências, tratando-se de um ato independente praticado de
livre vontade. Em referência ao artigo 122.º CPP, o TC considerou que
«esta norma abre um espaço interpretativo no qual há que procurar relações de dependência ou
de produção de efeitos (artigo 122.º, n.º1 CPP fala em atos dependentes ou afetados pelo ato
inválido) que, com base em critérios racionais, exijam a projeção do mesmo valor que afeta o
ato anterior».
Finalmente, o tribunal decidiu que
«o entendimento do artigo 122.º, n.º1 CPP, subjacente à decisão recorrida, segundo a qual esta
abre a possibilidade de ponderação do sentido das provas subsequentes, não declarando a
invalidade destas, quando estiverem em causa declarações de natureza confessória, mostra-se
constitucionalmente conforme, não comportando qualquer sobreposição interpretativa a essa
norma que comporte ofensa ao disposto nos preceitos constitucionais invocados».
Na doutrina portuguesa:
1. Figueiredo Dias, já antes do CPP atual, defendia como claramente inscrita no artigo
32.º CRP esta doutrina.
2. Costa Andrade, afirma que a doutrina norte-americana da independent source:
«legitima a valoração de provas secundárias sempre que elas foram ou poderiam ter
sido obtidas por via autónoma e legal, à margem da exclusionary rule que impende
sobre a prova primária. Cabendo, contudo, precisar as exigências particularmente
apertadas de que os tribunais americanos fazem depender a valência duma causalidade
hipotética. Tal só ocorrerá nos casos em que a produção da prova secundária, por via
independente e legal, se possa, em concreto, considerar como imimnente, but in fact
unrealized source of evidence (inevitable discovery exception)».
3. Helena Mourão trata do efeito remoto das proibições de prova e do percurso da
sua limitação, mas critica a relevância dos percursos hipotéticos de investigação.
4. Pinto de Albuquerque aceita igualmente limitações ao efeito à distância, mas recusa
a invocação de percursos hipotéticos de investigação e, em especial, a doutrina da
descoberta inevitável.
5. Pela nossa parte, reconhecemos que a invocação de percursos hipotéticos de
investigação não pode ser aceite sem reflexão, sob pena de se tornar ineficaz o
sentido preventivo das proibições de prova, mas, com as limitações que a
jurisprudência americana rem vindo paulatinamente a impor à doutrina da descoberta
inevitável, esta acaba sendo a mais adequada aos juízos de ponderação envolvidos no
caso concreto. Ou seja, no caso Nix vs. Williams, de 1984, o Supremo Tribunal dos
Estados Unidos da América aplicou o conceito de descoberta inevitável para admitir
como prova o cadáver da vítima, que tinha sido descoberto pela polícia na sequência
de uma confissão do suspeito obtida de forma ilegal. O Supremo Tribunal de Justiça
argumentou que, de qualquer forma, o cadáver teria sido descoberto pelas equipas
de busca já constituídas, afirmando que a grande maioria dos tribunais estaduais e
federais, reconhecem uma exceção de descoberta inevitável à norma de exclusão.
Não se exige aqui que a polícia tenha, de facto, obtido as provas também através de
fonte autónoma e legal, mas apenas que tivessem podido, hipoteticamente, fazê-lo.
Paulo de Sousa Mendes
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✒ No próprio caso Nix vs Williams, o Supremo Tribunal estipulou que a exceção só
teria aplicação se a acusação demonstrasse, com um grau de probabilidade superior
a 50% (preponderance of the evidence), que a informação teria sido inevitavelmente
descoberta por meios legais.
Resta resolver o problema técnico-jurídico de saber qual a base legal do efeito à
distância das proibições de prova no ordenamento jurídico português. Tem sido
frequente a referência ao artigo 122.º, n.º1 CPP:
«As nulidades tornam inválido o ato em que se verificarem, bem como os que dele dependerem
e aquelas puderes afetar».
Esta referência é, no entanto, duvidosa, atendendo à autonomia técnica das proibições de
prova e, portanto, à sua independência relativamente ao regime das nulidades processuais,
no âmbito do qual se inscreve o próprio artigo 122.º CPP. De resto, na jurisprudência e na
doutrina:
1. O Ac. TC n.º198/2004, 24 março 2004, já teve ocasião de demonstrar que a
afirmação genérica das garantias de defesa que está contida no artigo 32.º, n.º1 CRP
«bastaria para que entre esses direitos de defesa se considerasse incluído o de ver
excluídas do processo (tornadas ineficazes, inválidas ou nulas) as próprias provas
ilegais reportadas a valores constitucionalmente relevantes. Assim, o n.º8 do mesmo
artigo 32.º CRP, mais não faz do que sublinhar e tornar indiscutível esse direito à
exclusão, enquanto dimensão específica e indissociável do direito a um processo penal
com todas as garantias de defesa. Não teria sentido, estando em causa valores (os
elencados no artigo 32.º, n.º8 CRP) a que a Constituição confere tal importância, que
a prova que os atingisse e fosse obtida com inobservância das regras que permitem a
compressão desses mesmos valores, produzisse consequências processuais que ficassem
aquém da nulidade dessas provas».
2. Helena Mourão considera que o recurso à norma do artigo 122.º, n.º1 CPP, é
desnecessário para a fundamentação de uma sede normativa reguladora de um
princípio de efeito à distância de prova no nosso sistema processual penal, pois basta
o fundamento constitucional contido no artigo 32.º, n.º8 CRP.
3. Por nossa parte, em escritos anteriores, procuramos amparar o efeito à distância das
proibições de prova no artigo 122.º, n.º1 CPP, mas esta posição não era, de facto,
congruente com a nossa defesa de uma independência técnica completa das
proibições de prova em face do regime das nulidades processuais. Por conseguinte,
cremos que a referência ao artigo 122.º, n.º1 CPP só pode servir de argumento a
fortiori, considerando que se a lei reconhece o efeito à distância das nulidades
processuais quando poderá estar em causa, por exemplo, a violação de meras
formalidades de prova, então por maioria de razão ter-se-á de reconhecer o efeito à
distância das proibições de prova quando está em causa a violação de direitos de
liberdade.
As garantias de defesa contra o ato inválido: seguramente, não cabe aqui fazer uma
teoria geral da arguição das nulidades e subsequentes recursos (isto é, o recurso de despachos
que indefiram a arguição de nulidade), nem uma teoria geral do recurso de decisões de mérito
fundadas numa valoração das provas nulas. Assim sendo, recordemos apenas o essencial: é
admissível o recurso de quaisquer decisões cuja irrecorribilidade não esteja prevista na lei
(artigo 399.º CPP). O recurso dos despachos que decidam a admissibilidade das provas ou o
Direito Processual Penal
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§
recurso das decisões de mérito fundadas numa valoração das provas nulas terá como
fundamento o erro de Direito (artigo 410.º, n.º3 CPP). O regime da irrecorribilidade da
decisão instrutória que pronunciar o arguido por factos constantes da acusação do Ministério
Público, mesmo na parte que veda a reapreciação de nulidades e outras questões prévias
(artigo 310.º, n.º1 CPP), não pode ser aplicado às proibições de prova, considerando que
estas têm autonomia relativamente às nulidades processuais. Ou seja, é sempre recorrível o
despacho de pronúncia na parte em que a admissibilidade de provas proibidas. Os atos
processuais nulos só podem ser anulados até ao trânsito em julgado da decisão final. Com a
formação do caso julgado, mesmo as nulidades arguíveis em qualquer fase do procedimento,
incluindo os vícios da própria sentença, tornam-se insindicáveis. Mas as nulidades cominadas
no artigo 126.º CPP, dada a perversão do processo inerente à violação dos direitos de
liberdade, não podem escapar à sindicância a pretexto do trânsito em julgado da decisão final.
A revisão de 2007 do Código introduziu, no artigo 449.º, n.º1, alínea e), uma causa de revisão
pro reo nova, a saber: a descoberta de que serviram de fundamento à condenação provas
proibidas nos termos do n.º1 a 3 do artigo 126.º CPP. Pinto de Albuquerque critica a nova
causa de revisão da sentença, afirmando que põe gravemente em perigo o valor constitucional
do caso julgado. Mas não cremos que o proclamado valor constitucional do caso julgado
deva impedir o recurso de revisão baseado na descoberta do caráter gravemente viciado dos
meios de prova que levaram à condenação do arguido.
As consequências penais da violação das proibições de prova:
1. No Direito Processual Penal aparece a dicotomia: admissível vs inadmissível; ao passo
que,
2. No Direito Penal material aparece aqueloutra dicotomia: licito vs ilícito.
Nada dissemos acerca do caráter ilícito da violação das proibiçõrs de prova, especialmente
se forem usados os métodos proibidos de obtenção de meios de prova. Não caberia aqui o
tratamento ex professo da relevância penal dessas situações: as consequências penais são
independentes das consequências processuais da violação das proibições de prova,
atendendo à especificidade e à autonomia jurídicas do processo penal. Como se explica, então,
que o artigo 126.º, n.º4 CPP estabeleça que as provas obtidas ilicitamente podem ser
utilizadas com o fim exclusivo de se proceder contra as pessoas que usarem tais métodos de
obtenção de provas? O artigo 126.º, n.º4 CPP parece um preceito desligado da
intencionalidade específica do processo penal. Ou talvez não: o preceito cumpre a função de
avisar os órgãos de perseguição criminal de que ninguém está acima da lei, dizendo em alto
e bom som que não há diferenças de estatuto entre os representantes da lei e da ordem e os
cidadãos delinquentes. O artigo 124.º, n.º4 CPP sintetiza, pois, as finalidades preventivas do
instituto das proibições de prova e o ideário de Estado de Direito.