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DIREITO PROCESSUAL PENAL Paulo de Sousa Mendes 大象城堡 | 葡京的法律的大学

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DIREITO PROCESSUAL

PENAL Paulo de Sousa Mendes

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Índice

I – Noções Gerais ........................................................................................................ 6

§1.º - Modelos de Processo Penal............................................................................................... 6

1. A tradição acusatória ............................................................................................................ 6

2. A tradição inquisitória .......................................................................................................... 6

Modelo misto ............................................................................................................................ 7

II – Tramitação do Processo Penal ............................................................................. 8

§3.º - As formas de processo ....................................................................................................... 8

Nota histórica ............................................................................................................................ 8

As formas de processo atuais .................................................................................................. 8

O caráter subsidiário da forma de processo comum ........................................................... 8

A gravidade dos crimes e as formas de processo ................................................................. 8

A natureza processual dos crimes e as formas de processo ............................................... 9

§3.º - As diligências pré ou extra-processuais ........................................................................... 9

A polémica sobre a possibilidade de realização de pré-inquéritos .................................... 9

A prevenção criminal ............................................................................................................... 9

As averiguações preliminares ................................................................................................ 10

§5.º - A tramitação do processo comum ................................................................................. 11

As fases do processo comum ................................................................................................ 11

Aquisição da notícia de crime ............................................................................................... 11

O auto de notícia .................................................................................................................... 11

As medidas cautelares e de polícia ....................................................................................... 11

O inquérito .............................................................................................................................. 12

A instrução ............................................................................................................................... 21

O julgamento ........................................................................................................................... 26

§6.º - A tramitação dos processos especiais ............................................................................ 28

O processo sumário ............................................................................................................... 29

O processo abreviado ............................................................................................................ 30

O processo sumaríssimo ........................................................................................................ 30

III – Os sujeitos processuais ...................................................................................... 31

§7.º - A Parte Geral do Código de Processo Penal ................................................................ 31

Os sujeitos processuais clássicos .......................................................................................... 31

Os sujeitos processuais no Código de Processo Penal ..................................................... 32

§8.º - O Tribunal ......................................................................................................................... 32

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§

A função jurisdicional ............................................................................................................ 32

Princípios de administração da justiça ................................................................................. 32

Regras de competência .......................................................................................................... 32

Competência por conexão ..................................................................................................... 33

Competência territorial do magistrado do Ministério Público para o inquérito ........... 34

Declaração de incompetência ............................................................................................... 34

Impedimentos e suspeições ................................................................................................... 34

§9.º - O Ministério Público ........................................................................................................ 36

A principal função do Ministério Público ........................................................................... 36

O Ministério Público como parte acusadora? .................................................................... 37

Atribuições do Ministério Público no processo ................................................................. 37

Restrições ao exercício da ação penal pelo Ministério Público ........................................ 37

A intervenção dos órgãos de polícia criminal ..................................................................... 38

§10.º - O Arguido........................................................................................................................ 39

As garantias do suspeito ........................................................................................................ 39

A constituição de arguido ...................................................................................................... 40

O defensor ............................................................................................................................... 43

§11.º - O Assistente .................................................................................................................... 43

A função do assistente ........................................................................................................... 43

O regime específico dos crimes particulares ....................................................................... 45

§12.º - As partes civis ................................................................................................................. 46

O lesado ................................................................................................................................... 46

As partes civis .......................................................................................................................... 46

O princípio da adesão ............................................................................................................ 46

IV – Os princípios do Processo Penal ....................................................................... 47

§13.º - Noções gerais .................................................................................................................. 47

Princípios do início do procedimento ................................................................................. 47

Princípios da prossecução do procedimento ...................................................................... 50

Princípios relativos à prova ................................................................................................... 57

Princípios relativos à forma ................................................................................................... 62

V – O Objeto do Processo ......................................................................................... 62

§14.º - O problema da identidade do objeto do processo .................................................... 62

Os princípios da definição e conhecimento do objeto do processo ............................... 63

O critério da identidade do objeto do processo ................................................................. 63

A alteração dos factos ............................................................................................................ 64

A fixação do objeto do processo .......................................................................................... 64

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§15.º - O regime da alteração substancial de factos ............................................................... 65

Os factos novos autonomizáveis .......................................................................................... 65

Os casos duvidosos ................................................................................................................ 65

Os factos novos não autonomizáveis .................................................................................. 66

Casos peculiares ...................................................................................................................... 69

VI – As medidas de Coação e de Garantia Patrimonial ............................................. 71

§16.º - As medidas de coação .................................................................................................... 71

Os critérios de aplicação das medidas de coação ............................................................... 71

As medidas de coação em particular .................................................................................... 72

A impugnação das medidas de coação ................................................................................ 74

VII – A sucessão de leis processuais penais materiais e o princípio da aplicação da

lei penal mais favorável ............................................................................................. 74

§17.º - Aplicação do princípio da lei penal favorável à sucessão de normas processuais

penais materiais ........................................................................................................................... 74

Especificidades e autonomia do Direito Processual Penal ............................................... 74

Normas processuais penais materiais e normas processuais penais formais ................. 76

A sujeição das normas processuais penais materiais ao princípio constitucional da

aplicação da lei penal favorável: proibição da retroatividade desfavorável e imposição da

retroatividade favorável (artigos 18.º, n.º2 e 3, 29.º, n.º4, 2.ª parte, e 282.º, n.º3, 2.ª parte

CRP e 2.º, n.º4 CP) ................................................................................................................. 79

Tempus delictu (artigo 3.º CP) – irretroatividade da lei processual penal material

desfavorável e retroatividade da favorável .......................................................................... 82

§18.º - Aplicação do princípio da lei penal favorável à sucessão de leis sobre a prescrição

....................................................................................................................................................... 85

Normas processuais penais materiais .................................................................................. 85

Causas de interrupção ou de suspensão da prescrição ...................................................... 86

§19.º - Aplicação do princípio da lei penal favorável à sucessão de lei sobre a queixa e a

acusação particular ...................................................................................................................... 87

Pressupostos processuais (positivos) de responsabilização penal ................................... 87

Crítica da atribuição de natureza exclusivamente processual ........................................... 88

Passagem de crime público a semipúblico (ou particular) e vice-versa .......................... 88

Distinção entre direito de apresentação de queixa e direito de desistência da queixa:

condição de procedibilidade; causa de extinção do processo .......................................... 89

Termo a quo da contagem do prazo ..................................................................................... 91

Oposição à desistência da queixa ......................................................................................... 92

§20.º - Presunção de inocência do arguido (artigo 32.º, n.º2 CRP) e prisão preventiva

(artigos 28.º CRP e 191.º e seguintes CPP) ............................................................................. 93

Motivação e objeto deste capítulo ........................................................................................ 93

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§

Aplicação retroativa da Lei Nova que encurta o prazo da prisão preventiva ................ 93

Do desvirtuamento da função processual da prisão preventiva à neutralidade do

princípio constitucional da presunção de inocência do arguido e, consequentemente, à

violação ope legis ou ope iudicis do direito da liberdade individual ...................................... 95

VIII – A prova ............................................................................................................ 98

§21.º - O regime jurídico da prova ........................................................................................... 98

As definições de prova ........................................................................................................... 98

O regime dos meios de prova ............................................................................................... 98

§22.º - As proibições de prova ................................................................................................ 100

As proibições de produção de prova ................................................................................. 100

As proibições de valoração de prova ................................................................................. 102

A invalidade do ato processual ........................................................................................... 104

O efeito à distância das proibições de prova .................................................................... 108

As garantias de defesa contra o ato inválido ..................................................................... 110

As consequências penais da violação das proibições de prova ...................................... 111

Aproveitamos a oportunidade de, desejando a maior fortuna na empresa de

libertação em que consiste o 4.º ano, reiterar a necessidade de consulta dos

manuais

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I – Noções Gerais1

§1.º - Modelos de Processo Penal

Ao longo da História surgiram diferentes sistemas de processo penal. É usual ordená-los em

função de duas tradições antagónicas:

1. A tradição acusatória: alguns autores apontam como origem as instituições

judiciais gregas e romanas. A Magna Carta (1215) também é referida como um marco

do processo acusatório.

a. Definição do modelo acusatório: a trave mestra do modelo acusatório é a

separação entre a entidade que acusa e a entidade que julga. Tal separação

garante a imparcialidade do julgador.

b. Características: historicamente, o impulso processo pertencia ao ofendido.

O processo acusatório não visava a descoberta da verdade material, mas antes

a descoberta da verdade processual, aquela que resulta do confronto entre a

acusação e a defesa. O debate processual era feito em moldes contraditórios

e a função do juiz era a de um árbitro acima das partes. Tendencialmente,

havia igualdade de armas entre a acusação e a defesa. Em princípio, todos os

meios de prova eram admitidos e esses elementos eram depois valorados

conforme a livre apreciação do julgador. As próprias partes produzem a

prova, havendo distribuição do ónus da prova. Privilegiava-se a oralidade. O

processo era público. A sentença fazia caso julgado.

2. A tradição inquisitória: a tradição inquisitória teve origem no Baixo Império

Romano, continuando no processo inquisitório canónico da Idade Média. Acabou

por se transformar num processo inquisitório laico a ser transplantado

paulatinamente para o Direito comum europeu a partir do século XII, mas sobretudo

durante os séculos XVI a XVIII, designadamente a partir dos Códigos Penais e

Processuais Penais dos primórdios do Estado moderno.

a. Definição do modelo inquisitório: a principal característica deste modelo

consiste na concentração do poder de investigar, acusar e julgar numa única

entidade. Segundo uma fórmula clássica, é o modelo do juiz-acusador. É

óbvio que se a pessoa que investiga, acusa e julga for a mesma, então ao julgar

já não terá a imparcialidade necessária para formar um novo juízo, pois,

entretanto, já formou e consolidou a sua opinião durante a investigação.

b. Características: a inquisição era promovida ex officio, apoiando-se no

conhecimento privado do magistrado ou numa denúncia que podia ser

mantida secreta. Por exemplo, nos Tribunais do Santo Oficio do século XVI

em Portugal (Évora, Lisboa e Coimbra), o réu não sabia quem o tinha

denunciado, nem sequer sabia o que constava da denúncia. Como era

utilizado o sistema das contraditas (ou seja, o réu tinha de enumerar as

pessoas cujo depoimento seria inválido por razões de inimizade ou suspeição

1 MENDES, Paulo de Sousa; Lições de Direito Processual Penal; 2.ª Reimpressão da edição de Setembro de 2013; Almedina Editores; Coimbra, 2014.

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§

pessoal), ao tentar adivinhar quem o denunciara, acabava trazendo sem

querer novos depoentes ao processo e alargava assim as possibilidades de

denúncia e acusação. O modelo inquisitório privilegiava a descoberta da

verdade material, a qualquer preço. Isso levava muitas vezes ao uso da tortura.

Retrospetivamente, é fácil de perceber que a tortura como meio de obtenção

de prova, mesmo abstraindo da questão da dignidade humana, nem sequer

levava o inquisidor à descoberta da verdade. Basta dizer que uma pessoa sob

tortura acaba por “confessar” tudo o que quiserem. Os meios de prova

admitidos eram, entre outros, a confissão, as testemunhas, os documentos, o

duelo, etc. Só que a confissão funcionava como rainha das provas. Eram

utilizadas provas tarifadas (ou seja, meios de prova de valor rígido). Em rigor,

era um sistema de dispensa de prova, pois assentavam em autênticas ficções

de prova. O processo era secreto, escrito e não contraditório. A sentença não

fazia caso julgado, sendo a absolvição uma simples absolvição da instância,

pelo que o processo podia ser reaberto. Em vista disso tudo, o modelo

inquisitório é o oposto da ideia atual de garantismo penal. Mas não se pode,

ainda hoje, desprezar o facto de o processo inquisitório ter surgido

historicamente com o intuito de promover a descoberta da verdade material,

ademais regulamentando os procedimentos de investigação e reconhecendo

ao réu certos direitos de defesa. Só que o processo inquisitório acabaria por

se perverter de tal maneira que se transformou no paradigma de todas as

injustiças, através do abuso do segredo da instrução, do emprego da tortura

e da atribuição de um poder arbitrário ao juiz.

É sabido, porém, que os sistemas históricos nunca obedeceram propriamente a esquemas

pré-concebidos, nem foram completamente impermeáveis às influencias recíprocas. Seja

como for, alguns sistemas históricos deram corpo de forma paradigmática a uma ou outra

dessas duas tradições. Por isso, é possível, sem grande artifício, conceber dois modelos

abstratos de processo penal a partir dos sistemas históricos concretos e apontar as

características mestras desses modelos, prescindindo, do mesmo passo, de fazer descrições

históricas exaustivas.

Modelo misto: em França, o ataque ao processo inquisitório foi complementado com a

defesa do modelo acusatório, segundo o exemplo das instituições judiciais e procedimentos

praticados em Inglaterra, tal como fora proposto por Montesquieu e foi realmente levado à

prática na sequência da Revolução Francesa. Mas não vingou. O modelo misto surgiu com

o processo reformado ou napoleónico, através do Code d’Instruction Criminelle de 1808. A

estrutura do modelo misto era essencialmente acusatória, mas o processo foi divido em duas

fases separadas:

1. A instrução: destinada a investigar o crime e os seus agentes, era dirigida por um

magistrado especializado, o juge d’instruction, ficando a iniciativa e a titularidade da ação

penal nas mãos de um oficial do poder executivo junto do poder judicial, o procureur

imperial (depois procureur de la République). Em obediência à tradição inquisitória, a

instrução era escrita, secreta e não contraditória. Nessa fase definia-se o objeto do

processo e a partir da acusação pública os factos ficavam fixados de tal maneira que

eram esses e não outros que teriam de ser julgados.

2. O julgamento: destinada ao apuramento das responsabilidades do réu, estava

organizada segundo o modelo acusatório. O tribunal orientava-se pela busca da

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verdade, à luz do contraditório. Prevalecia a oralidade e a publicidade da audiência

de julgamento. É claro que a sentença fazia caso julgado.

II – Tramitação do Processo Penal

§3.º - As formas de processo

Nota histórica: no sistema do CPP de 1929, o processo penal podia ser comum ou especial.

Os processo especiais contido no Código eram: o processo de ausentes, os processos por

difamação, calúnia e injúria, os processos por infrações cometidas por juízes de Direito de

primeira instância e magistrados do Ministério Público junto deles, no exercício das suas

funções ou por causa delas, os processos por infrações cometidas pelas mesmas entidades,

mas fora das suas funções, os processos por infrações cometidas por juízes das Relações ou

do Supremo Tribunal de Justiça, pelos magistrados do Ministério Público junto deles, ou por

outros de igual categoria e a reforma dos autos perdidos, extraviados ou destruídos. Quanto

ao processo comum, podia revestir cinco formas: querela, correcional, polícia correcional,

transgressão e sumário.

As formas de processo atuais: no sistema do CPP de 1987, há duas grandes modalidades

de processo:

1. A forma comum;

2. As formas especiais: inicialmente, as formas especiais eram o

a. O processo sumário;

b. O processo sumaríssimo; e,

c. A 25 agosto 1998, foi criada mais outra forma de processo especial o

processo abreviado (artigos 391.º-A e seguintes CPP).

O caráter subsidiário da forma de processo comum: o processo comum tem um

caráter subsidiário: quer dizer, só se aplica quando não tiver qualquer forma especial.

A gravidade dos crimes e as formas de processo: tendencialmente, os crimes mais

graves são julgados na forma de processo comum. É natural: essa é a forma que oferece mais

garantias de defesa, o que não quer dizer que as outras as não deem. Por conseguinte, é a

mais adequada para os crimes mais graves. Por sua vez, os processos especiais serão, por

regra, condicionados pela gravidade da pena:

1. O processo sumário deixou, porém, de estar limitado aos casos em que não pode

ser aplicada pena de prisão superior a cinco anos (artigo 181.º, n.º1 e 2 CPP).

2. O processo abreviado só tem lugar em caso de crime punível com pena de prisão

não superior a cinco anos ou com pena de multa (artigo 391.º-A, n.º1 CPP).

3. Em processo sumaríssimo só cabem os casos de crime punível com pena de prisão

não superior a cinco anos ou só com pena de multa (artigo 192.º, n.º1 CPP). Nem

sempre, porém, os crimes menos graves são processados nas formas especiais.

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§

A natureza processual dos crimes e as formas de processo: os crimes públicos não

têm a respetiva tramitação condicionada de modo algum. Os crimes semipúblicos têm o

início do procedimento dependente de queixa do ofendido (artigo 49.º, n.º1 CPP), mas

depois podem ser julgados em qualquer forma de processo. Os crimes particulares têm o

processamento condicionado por queixa (artigos 50.º, n.º1 e 246.º, n.º4 CPP), constituição

de assistente (artigo 68.º, n.º2 CPP) e acusação particular (artigo 285.º, n.º1 CPP), mas só não

podem ser processados em processo sumário (não pode haver, neste caso, a detenção em

flagrante delito, que é requisito do processo sumário, nos termos do artigo 255.º, nº.4 CPP).

Em 1998 passaram a poder ser processados em processo sumaríssimo (artigo 392.º, nº.4 CPP)

e também na nova forma de processo especial, o processo abreviado (artigo 391.º-B, n.º3

CPP).

§3.º - As diligências pré ou extra-processuais

A polémica sobre a possibilidade de realização de pré-inquéritos: o CPP de 1987

foi pensado de maneira a não permitir a existência de fases de pré ou extra-processuais, aliás,

como nos diz Figueiredo Dias:

«fases que – bem o mostra a experiência recente com o inquérito dito policial ou preliminar –,

sob a alegação de constituírem coisa privada relativamente ao processo, ou representam um gasto

inútil e tempo e de esforços, ou se tornam particularmente vulneráveis a abusos resultantes de

simples mudanças (ou burlas) de etiquetas».

Mas a evolução recente do Direito Penal e do Direito Processual Penal ditou, entretanto, o

aparecimento de diferentes modalidades de pré-inquérito.

A prevenção criminal: a primeira dificuldade, neste contexto, ocorre com a crescente

importância da prevenção criminal, cujas fronteiras relativamente à investigação criminal não

são fáceis de traçar. Na Europa, pode falar-se de uma autêntica viragem preventiva a partir

dos anos 80 do século passado. Em Portugal, a Lei de Organização da Investigação Criminal

atribuiu aos OPC competência para desenvolverem ações de prevenção e investigação. No

âmbito do combate ao tráfico de drogas são admitidas ações de prevenção a realizar pela

Polícia Judiciária (PJ), Guarda Nacional Republicana (GNR), Polícia de Segurança Pública

(PSP) e Direção Geral das Alfandegas (DGA), havendo inclusive brigadas anticrime da GNR

com competência de prevenção e investigação, devendo as notícias de crime eventualmente

obtidas ser comunicadas imediatamente ao Ministério Público. No domínio do combate ao

branqueamento de capitais, as autoridades de supervisão e fiscalização do setor financeiro

têm poderes para efetuar inspeções nas entidades supervisionadas, devendo informar o

Procurador-Geral da República (PGR) e a Unidade de Informação Financeira dos factos que

indiciem a prática de crimes de branqueamento que porventura tenham descoberto nas

inspeções por si efetuadas. Em tema de ações de prevenção criminal, cabe também referir a

possibilidade de utilização de técnicas especiais de atuação, designadamente as ações

encobertas. Nos termos do Regime Jurídico das Ações Encobertas para Fins de Prevenção

e Investigação Criminal, as mesmas são admissíveis no âmbito da prevenção de um vasto

catálogo de crimes graves, tais como o homicídio voluntário, desde que o agente não seja

conhecido, organizações terroristas, associações criminosas, roubo em instituições bancárias,

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✒ tráfico de droga, branqueamento de capitais e muitos outros crimes. As ações encobertas a

realizar no âmbito da prevenção criminal devem, porém, ser sempre autorizadas pelo juiz do

Tribunal Central de Instrução Criminal, mediante proposta do Magistrado do Ministério

Público junto do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP). A

necessidade de incrementar a operatividade da prevenção penal tem servido de justificação

para a autorização legal destes métodos ocultos de atuação por parte das polícias. Mas há

vozes muito críticas na doutrina. Eis, por exemplo, a de Germano Marques da Silva:

«A pretexto do combate ao terrorismo e à criminalidade violenta ou altamente organizada, as

derrogações ao Direito comum, assim como a adoção de métodos particulares de investigação, e

não só de natureza reativa, mas também preventiva, de que são paradigmáticas as ações

encobertas, tantas vezes na fronteira da provocação, como nos dão conta os frequentes incidentes

nos nossos tribunais, tendem a transformar-se na norma».

Na verdade, o Estado português até já foi condenado pelo Tribunal Europeu dos Direitos

do Homem, por ter usado agentes encobertos para a provocação ao crime. Seja como for, a

própria lei proíbe agora expressamente a provocação ao crime por parte dos agentes

encobertos ou infiltrados, mas autoriza a prática de atos preparatórios ou de execução de

uma infração em qualquer forma de comparticipação diversa da instigação e da autoria

mediata. Sem dúvida que a doutrina terá de contribuir para uma demarcação clara entre a

prevenção e a investigação criminal.

As averiguações preliminares: para além da prevenção criminal, há outras espécies de

pré-averiguações em domínios que já seriam, em princípio, de pura investigação criminal. No

domínio dos crimes contra o mercado de valores mobiliários, a Comissão do Mercado de

Valores Mobiliários (CMVM) tem competência para a realização de averiguações

preliminares, cujas conclusões e documentos associados, caso se traduzam na notícia de um

crime, devem ser remetidas à autoridade judiciária competente, nos termos dos artigos 383.º

e 386.º CVM. Será que a existência de averiguações preliminares, conduzidas por entidades

independentes do Ministério Público, contende com princípios jurídicos constitucionais, já

que a ação penal só pode ser exercida pelo Ministério Público, nos termos do artigo 219.º,

n.º1 CRP? Em princípio, a resposta será negativa. As averiguações preliminares são parte

integrante dos poderes de supervisão da CMVM, na medida em que cabem ainda na função

de acompanhamento dos mercados e de fiscalização do cumprimento das normas de atuação

dos intermediários financeiros e demais participantes do mercado. Naturalmente, a atividade

de supervisão permite muitas vezes a deteção de ilícitos, que tanto podem ser

contraordenações como crimes. Em especial, as averiguações preliminares visam apurar a

possível existência de um crime (artigo 383.º, n.º2 CVM), mas não constituem um inquérito

em processo penal. Desde logo, distinguem-se formalmente do inquérito em processo penal

por serem por uma autoridade administrativa independente e não pelo Ministério Público. À

CMVM compete apenas analisar os elementos recolhidos na sua atividade de supervisão e

verificar se contêm indícios da existência de um crime contra o mercado de valores

mobiliários. No final, o Ministério Público receberá então os autos das averiguações

preliminares concluídas com a obtenção da notícia de crimes, evitando-se assim que sejam

remetidos para investigação criminal elementos inconsistentes e obstando-se a que o cidadão

seja desnecessariamente objeto de um processo criminal à partida votado ao insucesso por

razões técnicas. A questão das averiguações preliminares é, no entanto, muito polémica na

doutrina portuguesa, e não só, na medida em que a sujeição do suspeito a uma investigação

administrativa não lhe permite que beneficie os direitos de defesa reconhecidos ao arguido

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em processo penal, antes podendo deixá-lo exposto a uma maior insegurança jurídica e

podendo ser ameaçado pela possibilidade de abuso por parte da Administração.

§5.º - A tramitação do processo comum

As fases do processo comum: o processo comum é o que tem a tramitação mais

complexa. Tradicionalmente, diz-se que o processo comum obedece a três grandes fases:

1. O inquérito (artigos 262.º e seguintes CPP);

2. A instrução (artigos 286.º e seguintes CPP);

3. O julgamento (artigos 311.º CPP).

O inquérito e o julgamento são as fases obrigatórias do processo comum. Enfim, o

julgamento só é obrigatório se houver acusação ou pronúncia. A instrução é uma fase

facultativa. Alguma doutrina prefere falar em cinco fases do processo comum:

1. A aquisição da notícia do crime (artigos 241.º e seguintes CPP);

2. O inquérito;

3. A instrução;

4. O julgamento; e

5. Os recursos.

Aquisição da notícia de crime: o processo começa com a aquisição da notícia do crime

(artigos 241.º e seguintes CPP). O Ministério Público adquire a notícia do crime por uma das

seguintes três formas (artigo 241.º CPP):

1. Conhecimento próprio;

2. Por intermédio dos Órgão de Polícia Criminal (OPC);

3. Mediante denúncia: a propósito desta denúncia, distingue-se os casos de:

a. Denúncia obrigatória: impende sobre as entidades policiais e, mais

genericamente, sobre todos os funcionários (artigo 242.º CPP);

b. Denúncia facultativa (artigo 244.º CPP).

Adianta-se, desde já, que é admissível a denúncia contra desconhecidos, visto caber

nas finalidades do inquérito a determinação dos agentes da infração (artigo 262.º, n.º1

CPP).

O auto de notícia: o artigo 243.º, n.º1 CPP, dispõe que sempre que uma autoridade

judiciária, um OPC ou outra entidade policial presenciarem qualquer crime de denúncia

obrigatória, levantam ou mandam levantar auto de notícia, descrevendo os factos que

constituem o crime, entre outros aspetos. O auto de notícia não prova o crime, mas prova

os factos materiais dele constantes, enquanto prova bastante (artigo 169.º, ex vi artigo 99.º,

n.º4 CPP).

As medidas cautelares e de polícia: os artigos 248.º a 253.º CPP tratam das medidas

cautelares e de polícia, que podem ser necessárias tanto anteriormente ao processo como

durante o trato sucessivo. Os OPC devem praticar todos os atos cautelares necessários e

urgentes para preservar os meios de prova, mesmo antes de receberem ordem da autoridade

judiciária competente (artigo 249.º, n.º1 CPP). Estes atos de polícia só serão integrados no

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✒ processo mediante validação da autoridade judiciária competente. Os OPC podem ter

necessidade de proceder à identificação de pessoas (artigo 250.º CPP). Os OPC podem

proceder por sua iniciativa a revistas e buscas, em caso de urgência (artigo 251.º CPP).

Também podem proceder a buscas domiciliárias por sua iniciativa aquando de detenção em

flagrante por crime a que corresponda pena de prisão (artigo 174.º, n.º5, alínea c) CPP). Os

OPC podem ordenar a suspensão da remessa de qualquer correspondência nas estações de

correios e de telecomunicações (artigo 252.º, n.º3 CPP).

O inquérito: o inquérito é uma fase de investigação obrigatória na forma de processo

comum.

1. A decisão de abertura do inquérito: a lei dispõe que, ressalvadas as exceções

previstas no CPP (i.e., os casos de procedimento dependente de queixa, não se tendo

esta verificado, ou então os casos de verificação dos pressupostos do processo

sumário, em que o inquérito é substituído por um interrogatório sumário a efetuar

pelo Ministério Público), a notícia de um crime dá sempre lugar à abertura de

inquérito (artigo 262.º, n.º2 CPP). Este normativo contém uma consagração do

princípio da legalidade. O conceito de legalidade aqui utilizado consiste na ideia de

que a atividade do Ministério Público se desenvolve sob o signo da estrita vinculação

à lei, não obedecendo a razões políticas. O fundamento do princípio da legalidade é

a igualdade na aplicação do Direito. Portanto, não cabe ao Ministério Público fazer

considerações de oportunidade. O princípio da oportunidade é geralmente definido

à custa do seu contrário, que é o princípio da legalidade. Não tem definição legal, até

porque, num sistema norteado pelo princípio da legalidade, a oportunidade só pode

surgir com caráter excecional, enquanto expressão de limitações àquele princípio.

Quer isto dizer que o Ministério Público tem de abrir inquérito face a qualquer

denúncia, mesmo a mais inconsistente? Seria um erro dizer que sim. Na verdade, o

Ministério Público tem de avaliar se a denúncia constitui ou não uma notícia de crime,

devendo a seguir decidir, em função disso, se é de abrir ou não inquérito (artigos 58.º,

n.º1, alíneas a) e d), e 246.º, n.º5, alínea a) CPP), não obstante todas as denúncias

ficarem registadas, mesmo as manifestamente infundadas (artigo 247.º, n.º5 CPP).

Essa avaliação não deve, porém, ser confundida com o juízo de oportunidade, a

menos que se tenha do Ministério Público a ideia de que é apenas um robô que regista

denúncias e promove automaticamente inquéritos.

2. O ato de abertura do inquérito: o inquérito inicia-se com um despacho do

Ministério Público a determinar a sua abertura. Este é o primeiro ato do

procedimento e sem ele o processo é nulo, nos termos do artigo 119.º, alínea b) CPP,

por falta de promoção do Ministério Público, que é quem tem legitimidade para

promover o processo penal, nos termos do artigo 48.º CPP. Já se tem entendido que

o ato de abertura do inquérito por parte do Ministério Público pode ser um ato tácito.

Feita a comunicação pelos OPC da notícia de um crime (artigo 248.º, n.º1 CPP), se

o magistrado do Ministério Público competente não avocasse o inquérito seria

considerada delegada a competência para a prática dos atos de inquérito. Só que o

Código não prevê atos tácitos e, portanto, esse entendimento não parece ser de

admitir.

3. O âmbito e a finalidade do inquérito: o âmbito e a finalidade do inquérito vêm

expressos na lei (artigo 262.º, n.º1 CPP). Trata-se de investigar a existência de um

crime, descobrir quem foram os seus agentes e recolher as provas, em ordem à

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decisão sobre a acusação. O inquérito é a fase em que o processo comum adquire o

máximo dramatismo porque pode envolver a perseguição dos próprios agentes do

crime, até para efeito de aplicação de medidas de coação, inclusive a mais grave de

todas que é a prisão preventiva. Implica também a descoberta e conservação das

provas. Estas provas podem ser não apenas relativas ao facto, mas também relativas

à personalidade do agente, nos termos da perícia de personalidade que consta do

artigo 160.º CPP.

4. A direção do inquérito: a direção do inquérito cabe exclusivamente ao Ministério

Público. O Ministério Público é, como se diz, dominus do inquérito (artigos 48.º e

263.º, n.º1 CPP). Por razões de eficácia, o Ministério Público tem de contar na sua

ação com a colaboração dos OPC (artigo 263.º, n.º2 CPP). Em princípio, o Ministério

Público pratica todos os atos de inquérito, salvo os que são da competência do juiz

de instrução ou cabem na cooperação internacional, nos casos em que a Polícia

Judiciária é a recetora do pedido. Mas também cabe na regra geral a possibilidade de

o Ministério Público delegar nos OPC o encargo de procederem a quaisquer

diligências e investigações relativas ao inquérito. Os atos que cabem ao Ministério

Público e não podem ser delegados nos OPC resultam da conjugação dos artigos

267.º e 270.º, nº2 CPP, sem prejuízo de outros atos que a lei expressamente

determinar que sejam presididos ou praticados pelo Ministério Público. Por sua vez,

os atos que podem ser delegados nos OPC constam do artigo 270.º, nº.1 e 3 CPP. A

delegação pode ser efetuada por despacho de natureza genérica que indique os tipos

de crime ou os limites das penas aplicáveis, nos termos do artigo 270.º, n.º4 CPP. A

outra faceta do inquérito é a salvaguarda dos direitos dos cidadãos que estão a ser

investigados. Isto implica que ao nível de certos atos do inquérito tenha de haver

intervenção do juiz de instrução. É exemplo disso o caso de aplicação de medidas de

coação, que são requeridas pelo Ministério Público na fase do inquérito, mas que só

podem ser aplicadas pelo juiz de instrução, nos termos do artigo 194.º, n.º1 CPP.

Muitos outros atos, designadamente os que vêm enunciados nos artigos 268.º e 269.º

CPP, têm de ser ordenados ou autorizados pelo juiz de instrução.

5. Publicidade e segredo de justiça: o inquérito é de natureza inquisitória e, em

princípio, deveria estar coberto pelo segredo de justiça. Mas a revisão de 2007 do

Código, acabou por conduzir à substituição do princípio do segredo por um novo

princípio da publicidade do inquérito (artigo 86.º, n.º1 CPP). Seja como for, o juiz de

instrução pode, mediante requerimento do arguido, do assistente ou do ofendido e

ouvido o Ministério Público, determinar, por despacho irrecorrível, a sujeição do

processo, em fase de inquérito, a segredo de justiça (artigo 86.º, n.º2 CPP). Além de

que o Ministério Público pode, se entender que os interesses da investigação ou os

direitos dos sujeitos processuais o justificam, determinar a aplicação ao processo,

durante a fase de inquérito, do segredo de justiça, ficando essa decisão sujeita a

validação pelo juiz de instrução no prazo máximo de setenta e duas horas (artigo 86.º,

n.º3 CPP). Apesar da estranheza do regime regra da publicidade no inquérito, a

verdade é que o novo regime acabou sendo incorporado de forma pacífica na prática

da investigação criminal. Importa distinguir a questão do segredo de justiça da

questão do acesso ao conteúdo de atos ou documentos que é indispensável para o

exercício de direitos, designadamente do arguido, mesmo que o inquérito se encontre

sujeito a segredo de justiça. Nesta matéria, rege o artigo 89.º, n.º1 CPP.

6. Os prazos do inquérito: os prazos do inquérito vêm previstos no artigo 276.º e

seguintes CPP. São, em regra, de 6 meses, se houver arguidos presos ou sob

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✒ obrigação de permanência na habitação, ou de 8 meses, se os não houver, mas em

situações excecionais ambos os prazos podem ser prorrogados, até um máximo de

12 meses (artigo 276.º, n.º2 CPP) ou de 18 meses (artigo 276.º, n.º3 CPP). É certo

que não advém qualquer efeito para a validade do processo da circunstância de o

Ministério Público não dar por encerrado o inquérito nos correspondentes prazos.

Na verdade, costuma dizer-se que tais prazos são meramente ordenadores. Mas, para

evitar a ultrapassagem dos prazos do inquérito, a revisão do Código de 2007 criou

vários mecanismos, a saber:

a. A obrigação de o magistrado titular do processo comunicar ao superior

hierárquico imediato a violação de qualquer prazo, indicando as

razões do atraso e o período necessário para concluir o inquérito (artigo

276.º, n.º6 CPP);

b. A possibilidade de o superior hierárquico avocar o processo (artigo

276.º, n.º7 CPP); e

c. O fim do segredo de justiça, salvo se o juiz de instrução determinar, a

requerimento do Ministério Público, que o acesso aos autos seja

adiado por um período máximo de 3 meses, o qual poderá ser

prorrogado por uma só vez, em certas circunstâncias (artigo 89.º, n.º6

CPP). Essa prorrogação não pode ir para além da concessão de novo prazo

de 3 meses, embora a lei não o diga assim, mas fale apenas em um prazo

objetivamente indispensável à conclusão da investigação.

O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º5/2010 fixou, porém, a seguinte

jurisprudência:

«O prazo do adiamento do acesso aos autos a que se refere a segunda parte do artigo

89.º, n.º 6, do CPP, é fixado pelo juiz de instrução pelo período de tempo que se

mostrar objetivamente indispensável à conclusão da investigação, sem estar limitado

pelo prazo máximo de três meses, referido na mesma norma».

Não podemos deixar de discordar do sentido desta jurisprudência. Na sequência do

trabalho de monitorização da Reforma Penal de 2007 desenvolvido pelo

Observatório Permanente de Justiça (OPJ), esta viria, de facto, a concluir que:

«Ao estabelecer a conexão entre o tempo do segredo e os prazos de duração máxima

do inquérito e não alterando estes últimos, a lei veio criar constrangimentos à

investigação em alguns processos de criminalidade grave e complexa, podendo levar a

que a mesma seja tornada pública num tempo demasiado curto, inviabilizando assim

o seu sucesso».

Em função disso, a OPJ avançou a proposta de alteração dos prazos de inquérito

para os caso de criminalidade mais grave e complexa:

«O equilíbrio entre direitos dos sujeitos processuais a um processo célere e o dever do

Estado em perseguir e punir aquela criminalidade determina que se recomende a

alteração do prazo de inquérito».

Acolhendo as recomendações, a Lei n.º26/2010, 30 agosto, alterou os prazos de

duração máxima do inquérito para

a. Crimes de catálogo (artigo 276.º, n.º3, alínea a) CPP),

b. Casos em que o procedimento se revelar de excecional complexidade

(artigo 276.º, n.º3, alínea b) CPP)

c. Crimes de catálogo quando o procedimento se revelar de excecional

complexidade (artigo 276.º, n.º2, alínea c) CPP),

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passando de uma duração máxima, respetivamente, de 8, 10 e 12 meses (no regime

anterior) para os atuais 14, 16 e 18 meses, se não houver arguidos presos (artigo 276.º,

n.º3 CPP). Finalmente, o Código mantém ainda a previsão do incidente de aceleração

processual para o caso de terem sido excedidos os prazos (artigo 108.º, 109.º e 276.º,

n.º8 CPP).

7. Nulidades do inquérito: a insuficiência do inquérito, por não terem sido praticados

atos legalmente obrigatórios, é cominada com a nulidade pelo artigo 120.º, n.º2, alínea

f) CPP. Trata-se de nulidade dependente de arguição, que deve ser arguida até ao

encerramento do debate instrutório ou, não havendo instrução, até cinco dias após a

notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito, nos termos do artigo 120.º,

n.º3, alínea c) CPP. Para as formas de processo especiais rege a alínea f).

8. A conclusão do inquérito: o inquérito pode terminar de várias maneiras, a saber:

a. Um despacho de arquivamento do inquérito (artigo 277.º CPP);

b. Um despacho de acusação (artigo 283.º ou 285.º CPP);

c. Um arquivamento em caso de dispensa de pena (artigo 280.º CPP);

d. Uma suspensão provisória do processo (artigo 281.º CPP);

e. O envio do processo para a forma sumaríssima (artigo 392.º e seguintes

CPP);

f. O envio do processo para mediação (Lei n.º 21/2007, 12 junho).

9. O arquivamento do inquérito: o Ministério Público deve decidir-se – na falta de

indícios suficientes para a descoberta da verdade – pelo arquivamento do inquérito,

nos termos do artigo 277.º CPP. Deste arquivamento cabe a possibilidade de

intervenção hierárquica, como prevê o artigo 278.º, n.º1 CPP. O Ministério Público

é uma magistratura hierarquizada. Isto significa que pode haver uma intervenção

hierárquica (Costa Pinto):

«No prazo de 20 dias a contar da data em que a abertura de instrução já não puder

ser requerida, o imediato superior hierárquico do magistrado do Ministério Público

pode determinar que seja formulada acusação ou que as investigações prossigam,

indicando, neste caso, as diligências a efetuar e o prazo para o seu cumprimento».

Com a revisão de 2007, o assistente e o denunciante com a faculdade de se constituir

assistente passaram expressamente a poder requerer a intervenção hierárquica.

Passado o prazo de 40 dias em que poderia haver intervenção hierárquica (artigo

278.º, n.º1 CPP), que integra já o prazo de 20 dias contados desde a notificação do

despacho de arquivamento ao assistente ou ao denunciante com faculdade de se

constituir assistente, em que poderia ter havido requerimento para abertura da

instrução por parte do assistente (artigo 287.º, n.º1, alínea b) CPP), a possibilidade de

reabertura do inquérito só existe nos termos do artigo 279.º CPP: ou seja, quando

houver novos elementos de prova, sob pena de violação do princípio ne bis in idem.

Atualmente, o conceito de arquivamento (artigo 277.º CP) inclui também os casos

em que, no Direito anterior, o processo ficava a aguardar a produção de melhor prova.

Aliás, atendendo agora no teor do artigo 279.º, n.º1 CPP, pode mesmo dizer-se que

o requerimento passa agora, todo ele, a ser um arquivamento à espera de melhor

prova, pois que, com base numa mera interpretação declarativa do preceito agora

mesmo citado, o inquérito só pode (leia-se: pode sempre) ser reaberto se surgirem

novos elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo Ministério

Público no despacho de arquivamento. Quer isto dizer que, mesmo naqueles casos

em que o Ministério Público tenha porventura concluído que não houve crime ou

que não foi o arguido a praticá-lo (artigo 277.º, n.º1 CPP), o inquérito poderia, à

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✒ primeira vista, ser reaberto com novos elementos de prova. Em função do cenário

legal vigente, cremos, infelizmente, que se tornou mais difícil de defender a antiga

doutrina que via no arquivamento negador da responsabilidade do arguido (mutatis

mutandis, atual artigo 277.º, n.º1 CPP) um arquivamento definitivo (obviamente, se

não tiver sido revogado pelo superior hierárquico). Há de convir-se, porém, que não

se pode aceitar agora que o arguido seja, sem mais, laçado num limbo de indefinições,

suportando as contínuas ameaças contra a sua liberdade e a sua segurança à conta da

inatacável possibilidade de reabertura do inquérito, oficiosamente ou a requerimento.

Seguramente, não lhe pode ser vedada a possibilidade de requerer diligências idóneas

a pôr cobro à indefinição da sua situação. Cabe perguntar: quais diligências? Não se

vê que tais diligências possam ser coisa diversa de um requerimento para abertura da

instrução, com vista à obtenção de um despacho de não pronúncia, o qual tem o

caráter de ato jurisdicional e, por isso mesmo, deve ter a força de caso julgado (artigo

308.º, n.º1, in fine CPP), pese embora nunca surja no atual Código qualquer alusão

ao caso julgado. Só podemos, pois, ficar surpreendidos quando, afinal, verificamos

que o legislador limita as hipóteses de requerimento do arguido para abertura da

instrução aos casos em que tenha sido contra ele deduzida acusação pelo Ministério

Público (ou pelo assistente, em caso de procedimento dependente de acusação

particular), nos termos do artigo 287.º, n.º1, alínea a) CPC. Tais limites legais ao

requerimento do arguido para abertura da instrução padecem de

inconstitucionalidade material, por violação das garantias de processo criminal (artigo

32.º CRP), seja porque não pode ser vedado ao arguido o direito ao recurso, quando

haja nisso um legítimo interesse (como é sabido, o requerimento para abertura da

instrução é, materialmente, um recurso), seja porque ele tem o direito a ser julgado

(o direito à definição da sua situação) no mais curto prazo compatível com as

garantias de defesa.

10. O despacho de acusação: nos termos do artigo 283.º, n.º1 CPP, quando o

Ministério Público tiver recolhido indícios suficientes de que foi cometido crime e

tiver identificado os seus agentes, deduz acusação. Como se esclarece no artigo 283.º,

n.º2 CPP,

«Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade

razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena

ou uma medida de segurança».

O critério para o Ministério Público deduzir acusação, segundo cremos, deve apontar

para um juízo categórico e não dubitativo. No entender de Castanheira Neves, numa

formulação particularmente feliz, esse juízo revela

«a mesma exigência de prova e de convicção probatória, a mesma exigência de verdade,

requerida pelo julgamento final»,

apenas com a diferença de que o material probatório recolhido pelo Ministério

Público na fase do inquérito não é, por definição, tão completo quanto as provas

disponíveis no momento do julgamento, nem foi sujeito, ainda, a contraditório. Por

conseguinte, o Ministério Público tem de ficar convencido da culpa do arguido com

um grau de convicção próximo da certeza, ainda que qualificada como elevado grau

de probabilidade, que é a certeza possível para as necessidades da vida. O elevado

grau de probabilidade como critério normativo para afirmação da suficiência dos

indícios é uma exigência do próprio princípio da presunção de inocência. Se o

Ministério Público não lograr atingir essa convicção, então deve arquivar o inquérito.

Na verdade, a possibilidade razoável refere-se sobre a possibilidade de futura

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condenação em julgamento. Ou seja, o Ministério Público ainda terá de se convencer

de que, se houver julgamento, o arguido será condenado. Trata-se, pois, de uma

prognose da condenação. Ora, o Ministério Público pode ter mobilizado todos os

meios de obtenção de provas possíveis e não ter logrado juntar elementos que

garantam uma condenação em juízo. O melhor exemplo é o das declarações

confessórias do arguido em fase de inquérito. Só a confissão do arguido em

julgamento pode dispensar a produção de prova relativa aos factos imputados (artigo

344.º, n.º2, alínea a) CPP) e as declarações confessórias do arguido no inquérito

poderão não se repetir na audiência de julgamento, sendo até o mais provável que

uma defesa técnica aconselhe o exercício do direito ao silêncio. Não pode, pois, o

Ministério Público proferir despacho de acusação com base apenas nas declarações

confessórias, não obstante poder estar absolutamente convencido da culpa do

arguido. A exigência de uma possibilidade razoável de vir a ser aplicada, por força das

provas recolhidas, uma pena ou uma medida de segurança ao arguido impõe, pois,

ao Ministério Público que faça um cuidadoso escrutínio da consistência dos meios

de prova que conseguiu juntar, só podendo e devendo acusar de for mais provável a

futura condenação do arguido que a possibilidade da sua absolvição, como sucederia,

de resto, se o despacho de acusação se baseasse apenas nas declarações confessórias.

a. O Ministério Público pode acusar nos crimes públicos e, nos crimes semi-

públicos, a única diferença reside na circunstância de o impulso processual

inicial depender da apresentação da queixa, enquanto condição de

procedibilidade, mas nesta fase isso já não interessa, a menos que o queixoso

desista da queixa (artigo 116.º, n.º2 CP).

b. Os crimes particulares têm um regime especial. Nestes, é também

necessária a queixa e, juntamente com esta, a declaração da vítima de que se

pretende constituir como assistente (artigo 246.º, n.º4 CPP), tendo de se

constituir efetivamente como tal antes do final do inquérito para que não haja

arquivamento, mais exatamente no prazo de 10 dias a contar daquela

declaração (artigo 68.º, n.º2 CPP). Nos termos do artigo 285.º, n.º1 CPP,

«findo o inquérito, […] o Ministério Público notifica o assistente para que

este deduza em 10 dias, querendo, acusação particular».

De notar que, apesar de ser um crime particular, foi o Ministério Público que

dirigiu o inquérito. Se houver acusação particular, nos termos do artigo 285.º,

n.º4 CPP:

«o Ministério Público pode, nos cinco dias posteriores à apresentação da

acusação particular, acusar pelos mesmos factos, por parte deles ou por outros

que não importem uma alteração substancial daqueles».

O Ministério Público pode, o que não significa que deva. O processo

continua e nas fases subsequentes o Ministério Público, que só está

comprometido com a descoberta da verdade, pode indevidamente estar

contra a versão da acusação particular. À primeira vista, o despacho de

acusação do Ministério Público aparece como alternativa ao despacho de

arquivamento, mas é uma ilusão. Na verdade, o Ministério Público, mesmo

que já tenha reunido indícios suficientes de que foi cometido crime e tenha

identificado os seus agentes, ainda não pode acusar. No sistema do CPP, o

despacho de acusação é subsidiário das chamadas medidas de diversão

processual.

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✒ 11. Âmbito do princípio da oportunidade: o conceito de bagatelas penais não é

legalmente reconhecido, ma sé amplamente utilizado na doutrina para referir um

fenómeno que emergiu no domínio das infrações contra o património e a economia

sobretudo a partir do final da Segunda Guerra Mundial. As bagatelas penais exercem

uma tremenda pressão sobre o sistema de administração da justiça, além de que

acarretam o dilema da falta de proporção da pena relativamente à infração quando a

lei é aplicada ou da desvalorização social do Direito Penal quando falha essa aplicação

efetiva. As bagatelas penais causam enormes prejuízos sociais globais e não podem, por

conseguinte, ser desprezadas. Mas a plena aplicação da lei penal implicaria a rutura

do sistema de administração da justiça. Há várias soluções para os problemas postos

pelas ditas bagatelas penais mas só interessam agora as que passam pelo Direito

Processual Penal. As soluções de Direito Processual Penal também são várias,

cabendo distinguir as que respeitam o princípio da legalidade na íntegra e as que, em

vez disso, homenageiam o princípio contrário da oportunidade. No nossos sistema

processual penal temos uma dominância do princípio da legalidade, mas temperada

por algumas expressões de oportunidade. As soluções de processo penal orientadas

pelo princípio da oportunidade passam pelas busca do consenso, informalidade,

eficácia, celeridade, falta de publicidade, diversão e ressocialização. O CPP de 1987

consagrou várias expressões de oportunidade. Tanto o arquivamento em caso de

dispensa de pena (artigo 280.º CPP) e a suspensão provisória do processos (artigo

281.º CPP) como o processo sumaríssimo (artigo 392.º e seguintes CPP) rendem

homenagem à nova atitude inspirada na ideia de diversão do processo, provinda do

legado científico do interacionismo simbólico (labelling approach), de molde a poupar

o arguido à cerimónia degradante da audiência de julgamento, amplificadora das

sequelas da estigmatização. Também rendem homenagem à ideia de consenso. No

processo penal, há um espaço de conflito associado à criminalidade grave: o crime

relativamente à vítima e à sociedade. Importante é que o consenso, mormente

quando for baseado num consentimento do arguido para a obtenção dos mesmos

efeitos de lesão da sua esfera de direitos fundamentais constitucionalmente

garantidos que seriam obtidos através do modelo de conflito, seja atingido através do

respeito pela sua autonomia ética. Quer dizer: o acordo não lhe pode ser extorquido.

No espaço do consenso visa-se acentuar a ideia de ressocialização do delinquente

com a sua participação. Quer dizer: a sua disponibilidade para aceitar uma decisão

sugerida pelas instâncias formais de controlo social.

a. O arquivamento em caso de dispensa de pena: o arquivamento em caso

de dispensa de pena (artigo 280.º CPP) é um mecanismo alternativo à

acusação, que permite a conclusão pura e simples do processo penal nos

casos em que poderia ter lugar a dispensa de pena. São pressupostos do

arquivamento em caso de dispensa de pena, a determinar pelo Ministério

Público no caso concreto:

i. Haver indícios suficientes da prática de um crime público ou semipúblico;

ii. Haver possibilidade legal da dispensa de pena se o procedimento chegar à fase de

julgamento (artigos 35.º, n.º2, 74.º, 143.º, n.º3, 148.º, n.º2, 186.º, 250.º,

n.º3, 286.º, 294.º, n.º3, 364.º, 374.º-B, n.º1 CP).

É requisito do arquivamento em caso de dispensa de pena que o Ministério

Público obtenha a concordância do juiz de instrução. O artigo 280.º, n.º1

CPP, não se aplica aos crimes particulares, uma vez que o titular do direito

de acusação é o assistente e a lei não lhe reconhece a faculdade de determinar

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§

o arquivamento, não podendo, neste caso, o Ministério Público determinar o

arquivamento.

b. A suspensão provisória do processo: a suspensão provisória do processo

é um arquivamento contra injunções e regras de conduta. É pressuposto da

suspensão provisória do processo que o crime seja de pequena ou média

gravidade. Conforme o artigo 281.º, n.º1 CPP, é preciso que o crime seja

punível com pena de prisão máxima não superior a cinco anos, em termos

de medida legal da pena, ou com sanção diferente da prisão. São requisitos

da suspensão provisoria do processo, a determinar pelo Ministério Público

no caso concreto:

i. Que haja concordância do juiz de instrução: a concordância do juiz de

instrução com o Ministério Público não se situa no mesmo plano do

requisito da alínea a) do n.º1 do artigo 281.º CPP, que exige ainda a

concordância do arguido e do assistente. A concordância do juiz de

instrução com o pedido do Ministério Público empresta um caráter

jurisdicional à solução de consenso.

ii. Que haja concordância do arguido e do assistente: a é a manifestação do

próprio consenso entre o arguido e a vítima. Repare-se ainda que na

alínea a) se diz assistente. Donde, é preciso que o ofendido se tenha

constituído como tal. A lei dispensa, pois, a concordância do

ofendido quando não se tiver constituído como assistente. No

entanto, a prática tem demonstrado que o Ministério Público, quando

propõe esta medida, geralmente tem o cuidado de se munir da

concordância do ofendido mesmo nos casos em que este não se

constituiu como assistente.

iii. Que não tenha havido condenação anterior por crime da mesma natureza ou

aplicação anterior de suspensão provisória de processo por crime da mesma

natureza: antes da revisão de 2007 do CPP, exigia-se a ausência de

antecedentes criminais do arguido. Dizia-se que, se o que se visava

era fugir ao processo de estigmatização operado pelas próprias

instâncias formais de controlo social, então pouco sentido teria

aplicar uma medida de diversão a alguém que já tinha entrado no

vórtice desse processo de seleção. Simplesmente, a prática

demonstrou que uma das principais razões para a fraca aplicação

deste instituto se ficara a dever precisamente a esta exigência de falta

de antecedentes criminais. A solução foi substituir a exigência de falta

de antecedentes criminais por ausência de condenação anterior por

crime da mesma natureza (artigo 281.º, n.º1, alínea b) CPP) ou de

aplicação anterior da suspensão provisória de processo por crime da

mesma natureza (artigo 281.º, n.º1, alínea c) CPP).

iv. Que não haja lugar a medida de segurança de internamento: compreende-se

porque esta medida obedece a critérios de mera defesa social e não a

critérios de ressocialização;

v. Que a culpa não tenha um grau elevado: antes de 2007, exigia-se que a culpa

tivesse caráter diminuto, mas agora basta que não tenha um grau

elevado;

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✒ vi. Que não fiquem prejudicados os fins da prevenção geral: explica-se na medida

em que a prevenção geral é uma das finalidades da pena criminal,

senão a principal.

Tais são os requisitos para que a suspensão provisória do processo possa ter

lugar. Uma vez verificados no caso concreto, são oponíveis ao arguido uma

série de injunções ou regras de conduta. Já tem sido contestada a

constitucionalidade material da suspensão provisória do processo. O

principal argumento passa por referir que as injunções ou regras de conduta

previstas no artigo 281.º, n.º2 CPP, são autênticas penas, em sentido material.

Por vezes, algumas destas injunções ou regras ede conduta têm efeitos mais

perniciosos para o arguido do que a própria aplicação de uma pena. Assim, a

inconstitucionalidade material resultaria do facto de ser o Ministério Público

a aplicar penas, sem julgamento. Não cremos, porém, que o argumento seja

válido se as injunções oponíveis ao arguido respeitarem a sua liberdade. Há

quem contraponha, ato contínuo, que o arguido não tem liberdade de escolha,

pois a alternativa é o prosseguimento do processo com todas as desvantagens

que isso lhe acarretaria, inclusivamente a possibilidade da condenação. Só que

este argumento prova muito pouco, uma vez que, se porventura se concluísse

que a medida de diversão era inconstitucional, a alternativa era nenhuma, era

o julgamento e a eventual condenação. Aqueles que, como base num

argumento de respeito pela autonomia ética do arguido, atacam a

constitucionalidade material das medidas de diversão nada mais oferecem

como alternativa do que o recurso ás tradicionais medidas de resolução do

conflito, impedindo o processo penal de integrar quaisquer soluções de

consenso para a pequena e média criminalidade. Será interessante

percebermos a aplicação na prática. De início, notava-se que havia um grave

défice de aplicação e dizia-se que as magistraturas não estavam habituadas às

medidas de diversão processual. Mas a dificuldade de aplicação do instituto

talvez fosse a principal razão para o Ministério Público continuar a preferir

os procedimentos tradicionais. Senão, vejamos: se for decretada uma

suspensão provisória do processo, terá de haver, na maior parte das vezes,

algum tipo de monitorização para saber se o arguido está ou não a cumprir

as injunções ou regras de conduta que lhe foram impostas. Na maior parte

dos casos, o controlo acaba por não ser feito. Não se estranha, pois, que a

injunção mais frequentemente aplicada seja a de entregar ao Estado ou a

instituições privadas de solidariedade social certa quantia, nos termos do

artigo 281.º, n.º2, alínea c) CPC. Como disso se faz prova documentalmente

e o documento comprovativo é entregue ao Ministério Público, é, portanto,

fácil de fazer o controlo. Mas se for uma injunção ou regra de conduta de

realização continuada, então provavelmente não restará outra hipótese, nos

termos do n.º4 do mesmo artigo, a não ser entregar o controlo aos serviços

de reinserção social, a órgãos de polícia criminal e às autoridades

administrativas. A aplicação de injunções ou regras de conduta é, assim,

muito mais complexa do que lavrar um despacho de acusação, precisamente

pela necessidade de controlo. Após a revisão de 2007, o CPP impõe, exceto

nos crimes em que a medida legal da pena não o admita, que o Ministério

Público privilegie uma solução de consenso, em vez de uma solução de

conflito. As alterações clarificam a obrigatoriedade da sua aplicação quando

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verificados os respetivos pressupostos e requisitos. Com efeito, o atual corpo

do n.º1 do artigo 281.º CPC diz expressamente que o Ministério Público

determina a suspensão do processo. A Lei Quadro da Política Criminal (Lei

n.º17/2006, 23 maio) previu, no seu artigo 6.º, que as orientações de política

criminal pudessem compreender a indicação de tipos de crimes ou de

fenómenos criminais em relação aos quais se justifique especialmente a

suspensão provisória do processo, mas também dos outros institutos de

diversão processual.

c. O envio do processo para a forma sumaríssima: o uso da forma de

processo sumaríssimo deverá ter lugar quando não for possível suspender

provisoriamente o processo, sendo que esta suspensão se aplicará só se não

for possível o arquivamento em caso de dispensa de pena. No sistema do

CPP, o processo sumaríssimo é considerado uma forma de processo especial.

Portanto, o ponto será tratado quando estudarmos os processos especiais.

d. O envio do processo para mediação: fenómeno diferente é a diversão por

meio de mediação. Em Portugal, a mediação penal foi criada através da Lei

n.º 21/2007, 12 junho. O mais comum é o sistema integrado, em que a

mediação funciona como uma alternativa ao procedimento criminal, que

cessa em caso de acordo. Nestes termos, a regulação da mediação e dos seus

procedimentos cabe ao Estado e é definida por lei, tendo por objetivo

garantir um sistema uniformizado. Neste modelo, o encaminhamento dos

processos para a mediação é maioritariamente da responsabilidade dos

magistrados do Ministério Público. A mediação penal é uma manifestação da

ideia de justiça restaurativa.

A instrução: do despacho de acusação ou de arquivamento do inquérito não cabe recurso.

Materialmente, o recurso é substituído pela possibilidade de passagem à fase de instrução

(artigo 286.º e seguintes CPP). No fundo, as funções que caberiam a um recurso são, neste

caso, cumpridas com um requerimento para abertura da instrução (RAI) por parte do arguido

ou do assistente, conforme os casos. A fase de instrução é, pois, uma fase facultativa. A

instrução serve para apreciar a bondade da decisão do Ministério Público de acusar ou de

arquivar o processo ou, no caso dos crimes particulares, a bondade da acusação particular. A

instrução pode servir, a título complementar, para reformular o próprio objeto do processo.

O princípio da acusação estipula não só que deve haver separação entre a entidade que acusa

e aquela que julga, mas também que deve haver fixação da matéria que é submetida a

julgamento por uma entidade diferente daquela que julga. Na verdade, se a entidade que julga

pudesse adicionar novos factos ao objeto do processo, ela mesma estaria a assumir, assim,

funções de acusação. No processo penal, tem de haver fixação do objeto do processo, de tal

maneira que, quando se chega à fase do julgamento, o objeto do processo é aquele e não

outro. O que, além do mais, também cumpre uma função de garantia dos direitos de defesa

do arguido, pois só assim ele sabe de que factos é que terá de se defender- Tendencialmente,

o objeto do processo fixa-se no final do inquérito, com a acusação. A matéria que é objeto

de investigação por parte do Ministério Público, quando este abre inquérito, é ainda fluída.

Aquilo que vai constituir o objeto do processo será o resultado da delimitação da matéria em

bruto que exista no início da investigação e que se fixará com a acusação. Mas o objeto do

processo pode ainda vir a ser alargado através do RAI do assistente, como veremos.

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✒ 1. O requerimento para abertura da instrução do arguido: o arguido pode requerer

a abertura da instrução, nos termos do artigo 287,º, n.º1, alínea a) CPP:

«relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de

procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação».

Ou seja, o arguido pode suscitar o controlo jurisdicional da acusação do Ministério

Público (ou do assistente). E não se deve, de maneira alguma, impor limites a esta

faculdade de abertura da instrução, sob pena de se violar o preceito constitucional

que diz que a instrução visa a garantia dos direitos de defesa. No entanto, a alínea a)

parece circunscrever o RAI do arguido à discussão dos factos. A análise do n.º2 não

contraria esta impressão, pois diz que o requerimento deve conter uma súmula das

razões de facto e de Direito. Este e parece significar que o arguido não pode requerer

instrução somente para discutir a matéria de Direito. Mas há argumentos importantes

a justificar que o arguido deva poder requerer a abertura de instrução só para discutir

questões de Direito:

a. Pensando na desejável igualdade de armas entre o arguido e o

assistente, verificamos que o assistente tem sempre oportunidade de

discutir, se quiser, só questões de Direito, na medida em que, aderindo

à acusação do Ministério Público, pode relativamente aos factos

constantes da mesma proceder a qualificações jurídicas diversas, o que

já não teria nada de paralelo na situação do arguido se lhe negássemos o

direito a requerer a abertura de instrução só para discutir questões de Direito;

b. Pensando no despacho de acusação do Ministério Público,

poderíamos fazer um raciocínio nestes termos: a regra é que cabe

recurso de todos os despachos cuja irrecorribilidade não estiver

prevista na lei (artigo 399.º CPP). É verdade que não há recurso do

despacho de acusação, mas isso só acontece porque o recurso é,

materialmente, o acesso à fase de instrução. Mas então estar-se-ia a impedir

o respetivo RAI só para discutir razões de Direito, apesar de uma distinta

qualificação jurídica dos factos poder acarretar consequências importantes

para o arguido em fase de julgamento.

Em tese geral, vemos assim que há todas as vantagens em considerar que o arguido

deveria poder requerer a abertura da instrução só para discutir a matéria de Direito.

Resta saber se a lei o permite ou não. Em última análise, o artigo 287.º CPP não veda

a possibilidade de o arguido discutir apenas razões de Direito. Senão vejamos, a alínea

a) do n.º1 só menciona, é verdade, a possibilidade de abertura da instrução

relativamente a factos, mas não é só a questão probatória que se relaciona com os

factos, é também a questão da qualificação jurídica. De resto, o arguido pode indicar,

no respetivo RAI, quais as diligências de tipo probatório que entende que o juiz de

instrução deverá levar a cabo, mas nada o obriga a solicitar tais diligências. Pode

limitar-se a atacar os factos ou, simplesmente, limitar-se a atacar as qualificações

jurídicas da acusação.

2. O requerimento para abertura da instrução do assistente: o assistente pode

requerer a abertura da instrução, se o procedimento criminal não depender de

acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver

deduzido acusação, nos termos da alínea b) do n.º1 do artigo 287.º CPP. Isto significa

que, se tiver havido arquivamento do inquérito, o assistente pode requerer abertura

da instrução. Mas há ainda outras situações em que o assistente pode fazê-lo. Mesmo

quando há ainda outras situações em que o assistente pode requerer abertura da

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instrução por entender que havia factos pelos quais o Ministério Público não acusou

e devia ter acusado. Podem ser factos diversos daqueles que constam da acusação.

Daí que a instrução possa servir para reformular o objeto do processo. Se o assistente

requerer a abertura da instrução relativamente a factos que não constam da acusação

do Ministério Público, embora tenha havido acusação, o juiz de instrução terá de

debruçar-se sobre os factos que constam da acusação do Ministério Público e sobre

os factos que constam do RAI do assistente, podendo assim, no final da instrução,

proferir um despacho de pronúncia que incida sobre todos estes factos, o que

constituirá um objeto mais vasto do que aquele que constava já da acusação do

Ministério Público. As situações em que o assistente pode requerer abertura da

instrução são, portanto, mais complexas do que aquelas em que a mesma pode ser

requerida pelo arguido. Outro problema refere-se à questão de saber se o assistente

pode requerer a abertura da instrução apenas relativamente a factos ou também

relativamente, e só, a questões de Direito. Por outras palavras, se o assistente poderá

requerer a abertura da instrução só com base numa discordância acerca da

qualificação jurídica dos factos feita pelo Ministério Público na acusação. A

generalidade da doutrina entende que não, aliás com toda a razão. Isto porque, se os

factos forem os mesmos, o assistente terá sempre a faculdade de acusar também, nos

termos do artigo 284.º CPP. A circunstância de existir uma acusação pública não

impede que haja também uma acusação pelo assistente. Estamos a falar, é claro, da

acusação por crimes públicos e semipúblicos, e não por crimes particulares, a

propósito dos quais rege o artigo 285.º CPP. Se os factos forem uns e o assistente

não concordar com a qualificação jurídica feita pelo Ministério Público, então di-lo-

á na sua própria acusação. Não se vê, porém, qual seria o interesse de o assistente

requerer abertura da instrução com base em discordâncias sobre a qualificação

jurídica feita pelo Ministério Público, por isso mesmo que já tem o mecanismo da

acusação subordinada ao seu alcance. De resto, um mecanismo de que o arguido

analogicamente não dispõe. Por isso, se entende que o RAI do assistente só deve

poder existir relativamente a factos. Enfim, relativamente a factos que constituam

uma alteração substancial do objeto do processo, já não quanto a factos novos que

constituam uma alteração não substancial.

3. Da instrução em geral: na fase de instrução só podem intervir os sujeitos

processuais, a saber:

a. O tribunal;

b. O Ministério Público;

c. O arguido e o seu defensor;

d. O assistente.

A intervenção das partes civis, que são os lesados que têm direito a uma

indemnização, está excluída pela própria lei, nos termos do artigo 289.º, n.º1 CPP. A

instrução, ao contrário do inquérito, obedece ao princípio do contraditório. Implica

sempre a realização de um debate oral e contraditório, nos termos do mesmo

normativo. O segredo de justiça abrangia, antes da revisão de 2007, a instrução, nos

termos da antiga redação do artigo 86.º, n.º1 CPP. Agora, o processo penal é, em

princípio, público, nos termos da atual redação do artigo 86.º, n.º1 CPP:

«o processo penal é, sob pena de nulidade, público, ressalvadas as exceções previstas

na lei».

Seja como for, a sujeição do processo a segredo de justiça nunca pode abranger mais

do que a fase de inquérito, nos termos do n.º2. A publicidade da instrução não

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✒ significa, porém, que todos os atos processuais na fase de instrução sejam abertos ao

público em geral. A Lei n.º26/2010, 20 agosto, restringiu o direito de assistência

apenas à realização do debate instrutório, nos termos do artigo 86.º, n.º6, alínea a)

CPP. Os prazos de duração máxima da instrução constam do artigo 306.º, n.º1 CPP:

«O juiz encerra a instrução nos prazos máximos de dois meses, se houver arguidos

presos ou sob obrigação de permanência na habitação, ou de quatro meses, se não os

houver».

O prazo de dois meses pode ser elevado para três nos casos do n.º2.

4. O encerramento da instrução: no fim da instrução, a decisão instrutória pode ser,

em princípio, uma de duas (artigo 307.º, n.º1 CPP):

a. O juiz de instrução termina a instrução com um despacho de

pronúncia: havendo este despacho, nem sempre cabe recurso do mesmo.

Temos de distinguir duas situações:

i. Um despacho de pronúncia ser nulo: nos termos do artigo 309.º, n.º1 CPP

«A decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o

arguido pelos factos que constituam alteração substancial dos

descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou

no requerimento para abertura da instrução».

Quando o juiz de instrução lavra um despacho de pronúncia em que

inclui factos que constituem uma alteração substancial do objeto do

processo, esse despacho é nulo. Esta nulidade é sanável, como consta

do n.º2, porque tem de ser arguida no prazo de oito dias contados da

data da notificação da decisão. O despacho de pronúncia nulo não é

recorrível, é antes reclamável. A reclamação é para a própria entidade

que proferiu a decisão. A entidade que proferiu o despacho pode

deferir ou indeferir a reclamação. Se tivermos um despacho de

indeferimento da reclamação da nulidade, este sim, é um despacho

recorrível, com base no artigo 310.º, n.º3 CPP. Este normativo,

sistematicamente, faria mais sentido como n.º3 do artigo 309.º CPP.

Acresce que talvez nem sequer fosse necessário de todo. Na verdade,

não é mais do que uma instanciação da regra geral do artigo 399.º

CPP, onde se diz, a propósito dos recursos, que

«É permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos,

cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei».

Diz-se, nos termos do artigo 310.º, n.º3 CPP que

«É recorrível o despacho que indeferir a arguição da nulidade

cominada no artigo anterior».

O despacho aqui mencionado não é já o despacho de pronúncia nulo,

mas sim o despacho de indeferimento da reclamação da nulidade do

despacho de pronúncia nulo.

ii. Um despacho de pronúncia ser válido: é válido o despacho que pronunciar

o arguido por factos que constem do objeto do processo. Ou seja,

em que não há pronúncia por factos que constituam uma alteração

substancial. Mais concretamente, é válido o despacho de pronúncia

que incidir:

1. Sobre factos constantes da acusação do Ministério Público;

2. Sobre factos constantes da acusação particular (nos crimes particulares);

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§

3. Sobre factos constantes do RAI do assistente e que não constem da

acusação do Ministério Público;

4. Sobre factos que constituem alteração do objeto do processo, mas que não

constituem uma alteração substancial.

São, por conseguinte, quatro hipóteses em que o despacho de

pronúncia do juiz de instrução é válido. Ora, o artigo 310.º, n.º1 CPP,

contém uma regra excecional relativamente à regra geral do artigo

399.º CPP. A lei determina que o despacho não é recorrível, se a

pronúncia incidir sobre factos constantes da acusação do Ministério

Público (a chamada dupla conforme, por referência às duas decisões

coincidentes de duas autoridades judiciárias diferentes). Mas este é

apenas um dos quatros casos possíveis de despacho de pronúncia

válido. O despacho de pronúncia válido é, portanto, recorrível

quando incidir sobre factos que não constam da acusação do

Ministério Público. O artigo 310.º, n.º1 CPP é uma regra excecional,

que admite interpretação enunciativa a contrario: fora do caso previsto

no artigo 310.º, n.º1 CPP, o despacho de pronúncia válido e recorrível.

De resto, é a regra geral do artigo 399.º CPP. A revisão de 2007 do

CPP tornou irrecorrível a pronúncia conforme com a acusação do

Ministério Público (artigo 310.º, n.º1 CPP)

«mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões

prévias ou incidentes».

O despacho de não pronúncia é recorrível nos termos gerais do artigo 399.º

CPP.

b. O juiz de instrução termina-a com um despacho de não pronúncia.

5. A crise da instrução: tem ganho expressão a ideia de que a instrução deverá ser

eliminada, o que só seria possível, porém, se fosse revisto o texto do artigo 32.º, n.º4

CRP. Figueiredo Dias é o principal mentor desta ideia:

«continuo, todavia, a prever o dia em que a instrução terá eliminada como fase

processual; e tanto mais quando, como agora, já a fase de inquérito se tornou pública

e, consequentemente, contraditória. Uma tal eliminação será consequência, por uma

parte, de o modelo preconizado pelo CPP para esta fase – como simples comprovação

por um juiz de instrução da decisão do Ministério Público de deduzir acusação ou de

arquivar o inquérito – não ter podido ser até hoje cumprido pela praxis; antes ter sido

frequentemente desvirtuado em direção a um simulacro de julgamento, antecipado e

provisório, inadmissível à luz dos princípios gerais e de um mínimo de eficiência,

jurídica e socialmente exigível, do processo penal».

No pensamento de Figueiredo Dias, a instrução deveria ser substituída, à maneira

alemã, por uma simples decisão do tribunal de julgamento de abrir a audiência ou

ordenar o arquivamento ou, à maneira norte-americana, por uma espécie de audiência

preliminar, tendo o autor citado manifestado, desde sempre, a sua preferência por

esta última solução. Não importa discutir se a fase de instrução é uma singularidade

do sistema processual penal português, ademais nascida das nossas vicissitudes

histórico-constitucionais, ou se, pelo contrário, colheu inspiração em qualquer

ordenamento processual penal estrangeiro. Nada disso justificaria que a instrução

fosse eliminada, nem substituída por um mero debate instrutório. Tudo se resume a

saber se a instrução cumpre ou não, insubstituíveis funções de garantia dos direitos

dos diversos sujeitos processuais, mormente do arguido. A instrução é indispensável

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✒ para o arguido poder requerer a realização de diligências de prova. Se a instrução

fosse transformada num mero debate instrutório, então seria um adereço processual

inútil, pois transformar-se-ia num simulacro da audiência de julgamento, quando o

que verdadeiramente interessa ao arguido é a possibilidade de colmatar uma

investigação deficiente através da realização de específicas diligências probatórias que

poderiam e deveriam ter sido realizadas. Cabe aqui lembrar que já existiu uma fase

de mero debate instrutório na forma de processo abreviado, o qual foi eliminado na

revisão de 2007 do CPP precisamente por se considerar que os 30 dias que a lei

concedia para o encerramento do debate instrutório não eram compatíveis com a

realização de quaisquer diligências de prova, o que, por conseguinte, tornava o debate

instrutório inútil. A instrução é também indispensável para o assistente poder

requerer o alagamento do objeto do processo, de modo a integrar factos que

constituam uma alteração substancial relativamente aos que constam da acusação

pública, ou até requerer a própria criação desse objeto, nos casos em que constituam

uma alteração substancial relativamente aos que constam da acusação pública, ou até

requerer a própria criação desse objeto, nos casos em que tenha havido arquivamento

do inquérito. Não vale o argumento de que a instrução poderá ser desviada, por parte

do arguido, para finalidades meramente dilatórias, pois o juiz de instrução tem o

poder-dever de impedir quaisquer expedientes dilatórios. Na verdade, o juiz de

instrução pode recusar a realização de diligências inúteis e a sua recusa é – desde a

revisão de 1998 do CPP – insindicável por via de recurso (artigo 291.º, n.º2 CPP). É

verdade que, na prática, a instrução pode ultrapassar os prazos legais, meramente

ordenadores, mas isso só acontecerá em processos penais de elevada complexidade.

Por via de regra, a fase de instrução não é foco de atrasos processuais, não se

justificando, por isso mesmo, centrar a reflexão sobre uma eventual necessidade de

reforma do processo penal português nesta questão.

O julgamento: a fase de julgamento subdivide-se em três momentos essenciais:

1. Os atos preliminares: o primeiro dos atos preliminares é o saneamento do processo,

previsto no artigo 311.º CPP.

a. Saneamento do processo: a verificação pelo juiz presidente das nulidades e

outras questões prévias ou incidentais tem sempre lugar, quer tenha ou não

havido instrução, não obstante tais questões já deverem ter sido conhecidas

pelo juiz de instrução no despacho de pronúncia (artigo 308.º, n.º3 CPC).

Mas pode suceder que tenham passado despercebidas ou então que tenham

surgido ou sido suscitadas já depois da pronúncia. Caso não tenha havido

instrução, o presidente pode rejeitar a acusação, mas só se a considerar

manifestamente infundada, nos termos da alínea a) do nº2 do artigo 311.º

CPP. O problema é a determinação exata do alcance dos poderes do

presidente no que toca à rejeição de uma acusação, tanto mais que não é fácil

saber quando é que a mesma pode ser considerada manifestamente infundada,

nem isso resulta suficientemente esclarecido através das quatro alíneas do

n.º3 do artigo 311.º CPP. É frequente a afirmação de que a rejeição de uma

acusação não é uma decisão de mérito. Mas não se vê como poderia o

presidente rejeitar uma acusação sem fazer uma apreciação crítica dos

indícios recolhidos nos autos e a qualificação jurídica dos mesmos. Não se

trata, porém, de colmatar a falta de instrução, já que o presidente não pode

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§

aqui ordenar diligência de investigação para esclarecer as dúvidas que

porventura lhe surjam da consulta dos autos, ao contrário do que se passa na

instrução. Daí que o presidente deva receber a acusação por muito fracos que

sejam os indícios, porquanto não tem poderes para melhor esclarecer as suas

dúvidas. Isto se dúvidas houver, pois se tiver antes a certeza da

improcedência da acusação, então, tem meso de recusá-la, aliás, com base no

mesmo dever de objetividade que levaria nesse caso o juiz de instrução a

proferir um despacho de não pronúncia. Em que casos deve então o

presidente rejeitar uma acusação? O presidente terá de fazer a triagem dos

casos em que há insuficiência crassa da própria acusação, ainda que tais

insuficiências só tenham a ver com a matéria de Direito. As alíneas do n.º3

do artigo 311.º CPP admitem mais casos do que o s que nos vêm logo à ideia

através de uma leitura do preceito. Em especial, a alínea d) abrange

praticamente todos os problemas relativos à definição do crime e à aplicação

da pena, exigindo-se apenas que esses problemas se verifiquem com tal

evidência que se possa declarar fora de qualquer dúvida razoável que falta no

caso concreto um pressuposto da pena ou da punibilidade do agente. As

situações abrangidas são, entre outras, as seguintes:

i. A atipicidade da conduta;

ii. A justificação do facto; ou

iii. A exclusão da culpa do agente;

iv. A falta de condições de punibilidade; ou, até,

v. A falta de meras condições de procedibilidade; ou,

vi. Inclusivamente, obstáculos à punição do tipo da amnistia ou do decurso de prazos

de prescrição.

Os efeitos de uma rejeição judicial da acusação variam consoante ponha

termo ao processo, declarando inadmissível o procedimento, ou apenas

considere que a acusação sofre de nulidades que podem ser eliminadas

mediante a repetição de certos atos (artigo 122.º, n.º2 CPP). Neste caso, o

juiz remete o processo para a fase de inquérito para que o Ministério Público

possa proceder ao seu saneamento, prosseguindo posteriormente. Quanto à

rejeição que põe termo ao processo, é uma decisão final que produz efeitos

de caso julgado material, e não apenas de caso julgado formal. Mas avisa-se

que esta é uma afirmação muito polémica na doutrina. O despacho proferido

ao abrigo do artigo 311.º, n.º2, alínea b) CPP, tem por fim o controlo da

legalidade da acusação subsidiária, dado ter havido a instrução. Tanto abrange

a acusação do assistente como, nos crimes particulares, a do Ministério

Público (artigo 385.º, n.º4 CPP). O despacho que rejeita a acusação é

recorrível nos termos gerais (artigo 399.º CPP).

b. Data da audiência: resolvidas essas questões, o presidente marca dia, hora

e local para a audiência, nos termos do artigo 312.º, n.º1 CPP. O despacho

que recebe a acusação, marcando data para julgamento, não é suscetível de

recurso, por força do artigo 313.º, n.º4 CPP. De resto, é uma solução análoga

à do artigo 310.º, n.º1 CPP, mas de âmbito não inteiramente coincidente, pois

o despacho que designa dia para julgamento não é recorrível mesmo que a

acusação recebida seja a do assistente, nos crimes particulares.

c. Contestação e rol de testemunhas: a partir da notificação do despacho que

designa dia para a audiência começa a contar o prazo de 20 dias, nos termos

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✒ do n.º1 do artigo 315.º CPP, para o arguido apresentar contestação, bem

como para juntar o rol de testemunhas. A contestação não é obrigatória, além

de que nada impede que o arguido apresente só a contestação ou só o rol de

testemunhas. A contestação não está sujeita a formalidades especiais (artigo

315.º, n.º2 CPP). Em princípio, o rol não pode ultrapassar o máximo de 20

testemunhas (artigo 283.º, nº.3, alínea d) e n.º7, ex vi artigo 315.º, n.º4 CPP).

2. A audiência de julgamento: a audiência de julgamento está regulada

pormenorizadamente no artigo 321.º e seguintes CPP. A audiência de julgamento

obedece ao princípio da publicidade (artigo 321.º, n.º1 CPP), de mais a mais com

sede constitucional (artigo 206.º CRP). Esta é uma garantia do arguido contra a

arbitrariedade na aplicação do Direito. Existem restrições ao princípio da publicidade

em processo penal, um princípio herdado do modelo acusatório, mas só durante a

fase investigatória (artigo 86.º, n.º1 CPP). A audiência de julgamento obedece

também ao princípio do contraditório, nos termos do artigo 327.º, n.º2 CPP. NA

verdade, o juiz tem amplos poderes de investigação ex officio, independentemente da

prova que é carreada para o processo pelos diversos sujeitos processuais. A matéria

da produção da prova está regulada no artigo 340.º e seguintes CPP. A audiência de

julgamento está submetida aos princípios da concentração, da imediação, da

oralidade e da identidade do juiz.

3. A sentença: a sentença é um texto que obedece aos requisitos que constam do artigo

374.º CPP. Para a produção da sentença é preciso todo um procedimento que

envolve, designadamente, a avaliação da questão da culpabilidade, nos termos do

artigo 368.º CPP. O crime é, na sua definição formal, uma ação típica, ilícita, culposa

e punível. Todas estas questões vêm referidas neste artigo, n.º2:

a. Tipicidade (alínea a);

b. Autoria e comparticipação (alínea b);

c. Imputabilidade (alínea c);

d. Causas de justificação do facto ou de exclusão de culpa (alínea d);

e. Condições de punibilidade (alínea e);

f. Alínea f), saber se se verificaram os pressupostos de que depende o

arbitramento da indemnização civil.

A questão da determinação da sanção vem prevista no artigo 369.º CPP. A

determinação da sanção poderá implicar uma intervenção dos serviços de reinserção

social, através de um relatório social sobre a personalidade e o caráter do arguido

(artigo 370.º CPP). Após a sentença, entramos já na fase dos recursos.

§6.º - A tramitação dos processos especiais

As formas especiais do processo prevalecem sobre a forma comum, constituindo nulidade

sanável a utilização da forma comum quando deva ser utilizada a forma especial (artigo 120.º,

n.º2, alínea a) CPP). A obrigatoriedade das formas especiais do processo surge ainda

reforçada pela preferência que é dada às outras formas especiais quando for verificada a

inadmissibilidade legal do processo sumário no caso concreto (artigo 390.º, n.º1, alínea a)

CPP). Por sua vez, o emprego de uma forma especial do processo fora dos casos previstos

na lei é cominado com nulidade insanável (artigo 119.º, alínea f) CPP).

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§

O processo sumário:

1. Requisitos: os requisitos do processo sumário são os seguintes:

a. Detenção em flagrante delito (artigo 381.º, n.º1 CPP);

b. Realizada por autoridade judiciária ou entidade policial (artigo 381.º,

n.º1, alínea a) CPP), ou então por outra pessoa, desde que, neste caso, o

detido seja entregue, num prazo que não exceda duas horas, a uma das

entidades referidas na alínea anterior, sendo então redigido auto sumário

da entrega (artigo 381.º, n.º1, alínea b) CPP);

c. Audiência num prazo máximo de 48 horas (artigo 387.º, n.º1, ressalvados

os casos previstos no n.º2 CPP);

d. Crime que não integre o catálogo (artigo 381.º, n.2º CPP): este requisito

resultou da revisão do CPP de 2013 cuja principal consequência é a

admissibilidade, em princípio, de aplicação do processo sumário a todo o tipo

de criminalidade, incluindo os homicídios. Tal alargamento implicou

alterações às normas de competência material e funcional, na medida em que

o tribunal singular passou a ter competência para julgar qualquer crime em

que tenha havido detenção em flagrante delito (artigo 16.º, n.º2, alínea c)

CPP).

O processo sumário pode durar mais tempo do que o processo abreviado, que fora

inicialmente pensado como um sucedâneo mais moroso do processo sumário.

2. Libertação do arguido: não há relação entre a tramitação na forma de processo

sumário e a manutenção da detenção em flagrante delito, pois o processo sumário

pode prosseguir com o arguido em liberdade, sendo de até de prever que, na prática,

tal constituirá a regra para a maioria dos casos. A lei distingue consoante (artigo 385.º,

n.º1 CPP):

a. A detenção em flagrante delito se refira a crime punível com pena de

prisão cujo limite máximo não seja superior a cinco anos (mesmo em

concurso de infrações): a regra é a libertação do arguido após a detenção e

o cumprimento das demais formalidades (salvo as exceções previstas nas

alíneas a), b) e c));

b. A detenção em flagrante delito se refira a crime punível com pena de

prisão superior: a regra é a manutenção da detenção até o arguido ser

presente ao Ministério Públio, junto do tribunal competente para julgamento,

nunca podendo ultrapassar as 48 horas após a detenção. No caso excecional

de a autoridade de polícia criminal ter fundadas razões para prever que tal

apresentação não poderá ocorrer no referido prazo de 48 horas, então

prevalecerá a obrigação de libertação imediata do arguido, devendo ser

lavrado relatório fundamentado da ocorrência e transmitido de imediato com

o respetivo auto do Ministério Público (artigo 385.º, n.º3 CPP).

3. Tramitação prévia ao julgamento: a forma sumária do processo penal obedece à

ideia de que, quando a prova é relativamente simples de fazer porque se baseia na

evidência que é própria das situações de flagrante delito, se deve saltar fases para se

chegar o mais rapidamente possível ao julgamento. Por comparação como a forma

do processo comum, uma fase que é totalmente sacrificada é a instrução (artigo 286.º,

n.º3 CPP). Já é discutível se pode, ou não, haver inquérito no processo sumário. É

claro que falamos de inquérito em sentido material, enquanto realização de diligências

investigatórias, pois é indiscutível que, em sentido formal, o inquérito não aparece na

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✒ lei a propósito desta forma de processo. Por via de regra, a apresentação do arguido

ao tribunal competente para julgamento deve ter lugar imediatamente, ou no mais

curto prazo possível. Detenção em flagrante delito (artigos 255.º e 256º. CPP),

constituição do suspeito como arguido, que é obrigatória nos casos de detenção em

flagrante delito (artigo 58.º, n.º1, alínea c) CPP), imediata apresentação do arguido ao

Ministério Público (artigo 382.º, n.º1 CPP), a fim de este realizar um interrogatório

sumário ao arguido, se o julgar conveniente (artigo 382.º, n.º2 CPP), e apresenta-lo,

sendo caso disso, ao tribunal competente para realizar o julgamento (ou, em

alternativa, promover junto do juiz de instrução o arquivamento em caso de dispensa

de pena ou a aplicação da suspensão provisória do processo, nos termos dos artigos

382.º, n.º2 e 384.º, n.º1 e 2 CPP). Tudo isto se passa de uma maneira tão rápida que

acaba não dando ocasião ao Ministério Público para fazer um inquérito, a menos que

este precise de tempo para reunir mais provas (artigo 382.º, n.º4 CPP). Também pode

o arguido solicitar a realização de diligências de prova (artigo 382.º, n.º3 CPP). Nestes

dois casos, as diligências de investigação podem ser realizadas, mantendo-se a forma

do processo sumário, se for respeitado o prazo de quinze dias a contar da detenção

para a realização da audiência (artigo 387.º, n.º2, alínea b) e c) CPP). Por conseguinte,

a lei autoriza a realização de pequenos inquéritos no âmbito do processo sumário. A

celeridade é um princípio geral do julgamento em processo sumário (artigo 386.º,

n.º2 CPP). Só que a celeridade não deve, em caso algum, prejudicar as garantias do

arguido. É por isso que se prevê que a audiência possa ser adiada até quinze dias para

preparação da defesa do arguido ou para realização de diligências probatórias (artigo

387.º, n.º2, alíneas b) e c) CPP). A acusação é dispensável nos crimes puníveis com

pena de prisão até cinco anos, quando tenha sido lavrado auto de notícia, mas é

indispensável no caso de crime punível com pena superior (artigo 389.º, n.º1 CPP).

No primeiro caso, o Ministério Público pode complementar a factualidade constante

do auto de notícia através de despacho proferido antes da apresentação do arguido a

julgamento (artigo 389.º, n.º2 CPP). Trata-se de uma norma de clarificação de um

procedimento por vezes controverso, o que é de aplaudir.

4. Tramitação da audiência de julgamento: a tramitação da audiência obedece às

normas do processo comum, mas adaptadas ao mínimo indispensável ao

conhecimento e boa decisão da causa, em ordem a garantir a celeridade do processo

(artigo 386.º, n.º1 CPP). A audiência de julgamento tem de ser iniciada até ao limite

de 20 dias após a detenção (artigo 387.º, n.º2, alínea c) CPP). Depois de iniciada, a

prova pode ser produzida até ao limite máximo de 60 ou 90 dias, consoante se tratar

de crimes puníveis com pena de prisão até 5 anos ou com pena superior (artig0 387.º,

n.º9 CPP). Tais prazos podem ainda ser prorrogados até ao limite de 90 ou 120 dias,

respetivamente, por razões fundamentadas (artigo 387.º, n.º10 CPP).

O processo abreviado: os requisitos do processo abreviado são:

1. A evidência probatória (artigo 391.º-A, n.º1 e 3 CPP);

2. Crime cujo máximo da pena legal não exceda os cinco anos de prisão (artigo

391.º-A, n.º1 CPP) ou até com pena legal superior a isso, desde que o Ministério

Público, na acusação, entenda que não deve ser aplicada, em concreto, pena

de prisão superior a cinco anos (artigo 391.º-A, n.º2 CPP);

3. A duração máxima de inquérito de 90 dias (artigo 391.º-B, n.º2 CPP).

O processo sumaríssimo: os requisitos do processo sumaríssimo são:

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§

1. A promoção pelo Ministério Público, oficiosa ou a requerimento do arguido

(artigo 392.º, n.º1 CPP);

2. Crime cujo máximo da pena legal não exceda os cinco anos de prisão e não

deva ser aplicada, em concreto, pena ou medida de segurança privativa da

liberdade (artigo 392.º, n.º1 CPP);

3. O acordo do juiz (artigo 395.º, n.º1 CPP);

4. A concordância do arguido (artigo 396.º CPP);

5. A concordância do assistente, só no caso de crimes particulares (artigo 392.º,

n.º2 CPP).

No caso de o arguido deduzir oposição, o juiz ordena o reenvio do processo para outra forma

que lhe caiba (artigo 398.º, n.º1 CPP).

III – Os sujeitos processuais

§7.º - A Parte Geral do Código de Processo Penal

Figueiredo Dias utiliza uma imagem feliz acerca do CPP ao dizer que, se quisermos descobrir

nele alguma parte geral, então é a que trata dos sujeitos processuais. No Código Penal, o

intérprete é em grande medida orientado por essa estruturação em duas partes: geral e

especial. Na parte geral tem uma função organizadora da interpretação, na medida em que as

questões que nela são tratadas não têm de ser repetidas depois na parte especial a propósito

de cada crime. No CPP, ficamos com a impressão de que não há uma estruturação tão

perfeita, mas, se virmos melhor, até há: são os sujeitos processuais. Na verdade, a explicação

dos direitos, deveres e poderes dos sujeitos processuais é feita por uma só vez no CPP,

tornando-se assim desnecessárias repetições quando se passa à caracterização das diversas

formas e fases da tramitação processual.

Os sujeitos processuais clássicos: há uma definição clássica de sujeitos processuais, que

foi dada por Ernst Beling: definia os sujeitos processuais como aqueles participantes

processuais cujo papel é de tal maneira relevante que sem eles um processo no sentido do

Direito vigente seria impensável. Seria uma relação de causalidade necessária entre os sujeitos

processuais e o próprio processo, de tal sorte que se tirássemos um só daqueles intervenientes

deixaria de haver processo. De acordo com esta ideia de causalidade necessária, havia três

sujeitos processuais, a saber:

1. O garante da ordem jurídica;

2. O autor;

3. O réu.

Ou seja: o moderno processo penal era um actus legitimus personarum: judicis, actoris et rei. Todos

os outros intervenientes seriam meros participantes processuais. Seriam, portanto, o tribunal,

o Ministério Público e, finalmente, o réu.

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✒ Os sujeitos processuais no Código de Processo Penal: Figueiredo Dias define os

sujeitos processuais como aqueles participantes a quem pertencem

«direitos (que surgem, muitas vezes, sob a forma de poderes-deveres ou de ofícios de Direito

Público) autónomos de conformação da concreta tramitação do processo como um todo, em vista

da sua decisão final».

No Processo Penal português, Figueiredo dias defende que há, para além do tribunal, do

Ministério Público e do arguido, mais dois sujeitos processuais: o defensor e o assistente.

§8.º - O Tribunal

A função jurisdicional: os tribunais são os órgãos do Estado através dos quais é exercida

a função soberana de administração da justiça, a chamada função jurisdicional (artigos 110.º,

n.º1 e 202.º, n.º1 CRP). Os princípios fundamentais relativos à administração de justiça,

organização dos tribunais e estatuto dos juízes não podiam, pois, deixar de figurar na

Constituição (artigos 202.º e seguintes, 209.º e seguintes e 215.º e seguintes CRP).

Princípios de administração da justiça: todos os princípios constitucionais de

administração da justiça visam garantir a objetividade e a imparcialidade do julgamento. Em

especial, cabe aqui mencionar:

1. O princípio da independência judicial: o princípio da independência judicial

significa que o tribunal só está submetido à lei, que os juízes devem aplicar dentro

dos limites da sua própria consciência (artigo 203.º CRP). A independência judicial é

garantia através da independência pessoal e objetiva do próprio juiz, na medida em

que os magistrados judiciais, embora sujeitos a responsabilidade disciplinar, nunca

são sujeitos a supervisão administrativa (artigo 216.º, n.º2 CRP). Como garantia de

independência pessoal, acresce ainda que os magistrados judiciais, em princípio, são

indestituíveis e inamovíveis contra a sua vontade (artigo 216.º, n.º1 CRP).

2. O princípio do juiz natural ou legal: o princípio do juiz natural ou legal significa

que nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em

lei anterior, o que tem por finalidade evitar a designação arbitrária ou política de um

tribunal ou juiz para resolver um caso determinado (artigos 32.º, n.º9 CRP). A

concretização do juiz natural ou legal passa pela determinação do tribunal

competente para o julgamento.

Regras de competência: apenas os tribunais comuns, ou judiciais, têm jurisdição em

matéria penal (artigos 211.º, n.º1 CRP). A jurisdição penal é depois repartida por diversos

tribunais judiciais, em função de vários critérios de competência. Por isso se diz que a

competência de um tribunal é a medida ou âmbito da sua jurisdição. A distinção de critérios

para a delimitação da competência do tribunal abrange os seguintes aspetos:

1. A competência em razão do processo (competência funcional): o ponto a

destacar é que têm de intervir no processo pelo menos dois juízes, um para a fase de

investigação e outro para a fase de julgamento, só assim se podendo garantir o

princípio da independência judicial. Nessa conformidade, o artigo 40.º CPP

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3

§

determina que nenhum juiz pode intervir em julgamento relativo a processo em que

tiver:

a. Aplicado medida de coação; ou

b. Presidido a debate instrutório.

A fase dos recursos e a fase de execução das penas basta referir a tal propósito os

artigos 11.º, 12.º e 18.º CPP.

2. A competência em razão da espécie ou gravidade do crime, ou então da

qualidade do arguido (competência material): e de referir que a mesma se

desdobra por duas vertentes:

a. A competência em razão da hierarquia do tribunal: satisfaz a necessidade

de entregar aos tribunais superiores, logo em 1.ª instância, a competência para

o julgamento de crimes praticados por titulares de altos cargos políticos ou

magistrados no exercício das suas funções;

b. A competência em razão da estrutura do tribunal: reflete a forma como

os tribunais das diferentes hierarquias se organizam para dar conta dos

respetivos âmbitos de competência material.

3. A competência em razão do lugar (competência territorial): a competência

territorial é determinada com um:

a. Critério geral: aponta para o lugar do delito, que depende de se tratar de um

i. Crime de resultado consumado (artigo 19.º, n.º1 CPP);

ii. Crime de sangue (artigo 19.º, n.º2 CPP);

iii. Crime consumado habitual, duradouro ou permanente (artigo 19.º, n.º3 CPP);

iv. Crime tentado ou ato preparatório punível como tal (artigo 19.º, n.º4 CPP);

v. Crime cometido a bordo de navio ou aeronave (artigo 20.º CPP).

A casuística dessas situações é, sem dúvida, muito rica e variada, só que, et

pour cause, não cabe nesta apresentação resumida.

que é complementado com

b. Critérios supletivos: aplicam-se a

i. Delitos de localização duvidosa ou desconhecida, dando-se prevalência ao

tribunal da área em que primeiro surgiu a notícia do crime (artigo 21.º,

n.º1 CPP); assim, como

ii. Delitos cometidos no estrangeiro, dando-se então prevalência ao lugar da

localização do agente ou do seu domicílio (artigo 22.º, n.º1 CPP).

Competência por conexão: um crime praticado por um único agente dá lugar a um

processo-crime. Pela lógica, vários crimes (concurso de crimes) ou vários agentes

(comparticipação criminosa) dariam lugar a vários processos crime, mas é fácil de ver que,

nesses e noutros casos afins (artigo 24.º CPP), justificar-se-á o processamento conjunto.

Dessa forma consegue-se obter alguma economia na produção de prova, evita-se a

multiplicação de diligências de obtenção de prova, previne-se a contradição de julgados,

facilita-se a atribuição de um pena única ao mesmo agente nas situações de concurso de

crimes, etc. Nesses casos, organizar-se-á, portanto, um só processo para uma pluralidade de

crimes ou de responsabilidades criminais (artigo 29.º, n.º1 CPP). Há casos, porém, que

podem gerar um problema de competência por conexão, quer dizer: uma alteração às regras

gerais da competência. Nesses casos, a competência será então determinada pelas regras

especiais dos artigos 27.º e 28.º CPP. Oficiosamente, ou a requerimento do Ministério

Público, do arguido, do assistente ou do lesado, o juiz poderá fazer cessar a conexão e

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✒ ordenar a separação de algum ou alguns dos processos, se houver nisso interesse atendíveis

(artigo 30.º CPP).

Competência territorial do magistrado do Ministério Público para o inquérito:

o CPP trata desenvolvidamente das regras de competência do tribunal, em função da fase de

julgamento. Mas o problema da competência territorial coloca-se sempre muito antes disso,

em função da análise da fase de inquérito. Na determinação da competência territorial do

magistrado ou agente do Ministério Público para a realização do inquérito aplicar-se-ão,

mutatis mutandis, as disposições do Código sobre competência territorial do tribunal (artigo

264.º CPP). Em caso de urgência ou de perigo na demora, qualquer magistrado ou agente do

Ministério Público é competente para a realização de atos de inquérito (artigo 264.º, n.º4

CPP).

Declaração de incompetência: o vício de incompetência não deve ser confundido com

o vício da falta de jurisdição penal. A falta de jurisdição implica a inexistência da própria

sentença que por isso mesmo não é exequível, o que pode e deve ser reconhecido ou

verificado em qualquer momento por qualquer juiz que intervenha na eventual execução.

1. Incompetência material: o tribunal deve levantar e decidir oficiosamente a questão

da competência material durante todo o processo, além de que a questão pode ser

suscitada pelo Ministério Público, pelo arguido e pelo assistente, até ao trânsito em

julgado da decisão final (artigo 32.º, n.º1 CPP). Declarada a incompetência do

tribunal, o processo é remetido para o tribunal competente, o qual determinará os

atos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que possível, a repetição

dos atos necessários para conhecer da causa (artigo 33.º, n.º1 e 2 CPP). O artigo 33.º,

n.º1 CPP obriga ao envio do processo para o tribunal competente, anulando apenas

os atos que se não teriam praticado se perante ele tivesse corrido o processo. Por

outro lado, o n.º2 do mesmo artigo ressalva os atos processuais urgentes que podem

e devem ainda ser praticados pelo tribunal incompetente. O vício de incompetência

material do tribunal é, assim, uma nulidade (atípica) insanável, cujo regime se explica

por um princípio de máximo aproveitamento dos atos processuais.

2. Incompetência territorial: só pode ser deduzida e declarada até ao início do debate

instrutório, tratando-se de instrução, ou até ao início da audiência de julgamento,

tratando-se de tribunal de julgamento (artigo 32.º, n.º2 CPP).

Impedimentos e suspeições: a imparcialidade do juiz deve ser garantida a todo o custo.

Por isso, o juiz é impedido de julgar se tiver uma relação de parentesco ou outro tipo de

proximidade com algum dos participantes processuais (artigos 39.º e 40.º CPP). As situações

de impedimento do juiz são reguladas taxativamente e não podem, portanto, ser aplicadas

por analogia. Os impedimentos devem ser declarados oficiosamente (artigo 41.º, n.º1 CPP),

embora a declaração também possa ser requerida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo

assistente ou pela parte civil (artigo 41.º, n.º2 CPP). Para além das situações de impedimento,

o juiz pode ser recusado por suspeição. A lei usa simplesmente um conceito indeterminado

de motivo, sério ou grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade (artigo

43.º, n.º1 CPP). A declaração de suspeição poderá ser requerida pelo Ministério Público, pelo

arguido, pelo assistente ou pelas partes civis (artigo 43.º, n.º2 CPP). O juiz não pode declarar-

se voluntariamente suspeito, mas poderá pedir escusa (artigo 43.º, n.º4 CPP).

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§9.º - O Ministério Público

A principal função do Ministério Público: o Ministério Público é o órgão do Estado

encarregado de exercer a ação penal (artigo 219.º, n.º1 CRP). O exercício da ação penal é, de

resto, a principal função do Ministério Público.

1. O estatuto do Ministério Público e dos seus agentes: no desempenho dessa

função, o Ministério Público apresenta as seguintes características:

a. Enquanto órgão do Estado, é um órgão judiciário, na medida em que

colabora com o tribunal na administração da justiça;

b. Constitui uma magistratura autónoma (artigo 219º., n.º2 CRP), no

sentido em que goza de autonomia funcional, guiando-se por critérios de

legalidade e estrita objetividade, a que se junta uma autonomia orgânica, dada

pela exclusiva competência da Procuradoria-Geral da República para

nomeação, colocação, transferência e desenvolvimento na carreira dos

representantes do Ministério Público (artigo 219.º, n.º5 CRP).

c. É integrado por magistrados responsáveis, que são, no entanto,

subordinados hierarquicamente (artigos 219.º, n.º4 CRP), na medida em

que têm de observar diretivas, ordens e instruções, mas devem recusá-las se

forem ilegais e podem recusá-las com fundamento em grave violação da

consciência jurídica. Só que o superior hierárquico pode avocar o processo

ou redistribui-lo a outro subordinado.

As diretivas genéricas doo Procurador-Geral da República não dão margem para

recusa. O Procurador-Geral emite diretivas de organização ou de interpretação, que

devem ser publicadas e vinculam os magistrados Para além disso, o Procurador-Geral

da República tem também a (assim chamada na praxis) bomba atómica, quer dizer, pode

escolher um magistrado para dirigir um processo em concreto.

2. A posição institucional do Ministério Público e dos seus agentes: na estrutura

da divisão dos poderes soberanos do Estado, o Ministério Público ocupa uma

posição institucional ambígua e, além disso, polémica. Pergunta-se: afinal cabe no

poder executivo, como órgão administrativo, ou no poder judicial, como colaborador

do juiz na atividade jurisdicional. A nomeação e a exoneração do Procurador-Geral

da República pelo Presidente da República, sob proposta do Governo (artigos 133.º,

alínea m), e 220.º, n.º3 CRP), coloca o próprio Ministério Público, de certa forma, na

órbita do poder executivo. Acresce que o Procurador-Geral da República deve

obediência às eventuais instruções genéricas do Ministro da Justiça, o que acentua a

referida ligação ao poder executivo. Por outro lado, o Ministério Público participa na

execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, o que, mais uma

vez, o assemelha a um órgão administrativo. Seria preferível, em vez disso, a plena

judicialização do Ministério Público, garantindo deste modo a independência dos

seus agentes e aproximando o seu estatuto ao da magistratura judicial (artigos 215.º

a 218.º CRP). Em Portugal, o Ministério Público goza de autonomia orgânica e

funcional, mas os seus agentes atuam, como vimos, com subordinação hierárquica.

Certamente seria possível aprofundar a independência dos agentes do Ministério

Público, mas a plena judicialização só faria sentido no quadro da tradição clássica do

princípio da legalidade penal, em que o Ministério Público não desenvolveria de

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política criminal, até porque a única política criminal admissível era rigorosamente

intra-sistemática em relação ao Direito Penal e aceitava, portanto, o crime como um

dado, que tinha de ser sujeito ao devido processo legal, sem margem para a definição

de prioridades na repressão da criminalidade. Atualmente, a política criminal pode

não esgotar as suas injunções no contexto de um auto-referente sistema penal,

embora nunca deva extravasar do quadro axiológico da Constituição. Assim, a

política criminal tem de procurar constantemente respostas para os complexos

problemas da nova criminalidade. Tais problemas exigem respostas articuladas, que

não se compaginam com a judicialização dos agentes do Ministério Público, com

cada um dos seus representantes agindo desgarradamente, como se a criminalidade

pudesse ser eficazmente controlada com cada qual gerindo e promovendo à vez os

processos que lhe são distribuídos. Definitivamente, este não é o modelo reclamado

pela realidade atual. Por outra parte, deveria ser aprofundada a participação do

Ministério Público, enquanto órgão, na execução da política criminal definida pelos

órgãos de soberania, promovendo a prestação de contas (accountability) do

Procurador-Geral da República diante do Parlamento, no contexto definido pela Lei-

Quadro da Política Criminal.

O Ministério Público como parte acusadora? O Ministério Público, no quadro da

estrutura acusatória do processo penal, é essencial ao contraditório, mas não é parte no

processo, já que não tem um interesse direito em demandar, mas prossegue apenas o

interesse da justiça. Quando muito, o Ministério Público é parte em sentido formal, enquanto

titular do Direito Processual de ação, mas não parte em sentido material, enquanto titular de

um interesse jurídico próprio. Se quisermos, o Ministério Público é assim uma parte imparcial.

Seguramente, o empenhamento do Ministério Público e dos Órgão de Polícia Criminal é

natural, além de que é indispensável para a descoberta das provas do crime. No nosso sistema

processual penal, o Ministério Público pode, em qualquer processo, sentir que tem de tomar

a posição ou a defesa do arguido. Até na fase dos recursos, o Ministério Público tem de

tomar a posição ou a defesa do arguido. Até na fase dos recursos, o Ministério Público pode

recorrer no exclusivo interesse do arguido. Isto compreende-se porque vai mudando o

conhecimento da matéria de facto ao longo do processo, não sendo o Ministério Público

uma parte interessada na condenação, pois só está comprometido com a descoberta da

verdade. De um ponto de vista mais pragmático e humano, há mudanças que advêm de o

próprio agente do Ministério Público em cada uma das fases do processo não ser o mesmo,

podendo ter visões diferentes do mérito do processo.

Atribuições do Ministério Público no processo: ao Ministério Público compete

exercer a ação penal (artigo 48.º CPP). Mais concretamente, as atribuições do Ministério

Público vêm no artigo 53.º, n.º2 CPP. Trata-se de uma enumeração genérica, mas não taxativa.

Restrições ao exercício da ação penal pelo Ministério Público: a promoção da

ação penal pelo Ministério Público depende da natureza processual dos crimes. Há que

distinguir entre:

1. Crimes públicos: o Ministério Público exerce a ação penal com total autonomia,

ainda que os ofendidos, ou os seus representantes, possam tomar a posição de

assistente para influenciar o curso do processo;

2. Crimes semipúblicos: a promoção do procedimento criminal pelo Ministério

Público depende de queixa ou de participação do ofendido (artigo 49.º, n.º1 CPP),

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✒ seguindo no resto o regime do procedimento nos crimes públicos, a menos que haja

desistência da queixa, seguida de homologação por entidade competente, o que fará

cessar a intervenção do Ministério Público no processo (artigo 51.º CPP);

3. Crimes particulares: o procedimento criminal também depende de queixa ou de

participação do ofendido, além de que depende ainda da constituição de assistente e

da dedução de acusação particular por parte deste (artigo 50.º, n.º1 CPP).

Quanto ao concurso de crimes públicos e semipúblicos ou particulares, rege o artigo 52.º

CPP. Quanto a crimes cometidos por titulares de certos cargos políticos, há também

restrições ao exercício da ação penal pelo Ministério Público (artigo 130.º e 157.º CRP).

A intervenção dos órgãos de polícia criminal: ao Ministério Público, enquanto

detentor da ação penal, cabe a direção do inquérito, assistido pelos Órgãos de Polícia

Criminal, enquanto auxiliares das autoridades judiciárias (artigos 53.º, n.º2, alínea b) e 263.º,

n.º1 CPP). Os Órgãos de Polícia Criminal atual sob a direta orientação do Ministério Público

e na sua dependência funcional (artigos 56.º e 263.º, n.º2 CPP). O problema está na correta

delimitação da relação do Ministério Público com os Órgãos de Polícia Criminal, que passa

pelos seguintes aspetos:

1. As polícias não podem, por iniciativa própria, abrir inquérito relativamente a

nenhuma notícia de crime que tenham adquirido;

2. O Código não tolera sequer a realização de inquéritos policiais preliminares

que envolvam a realização de diligências de investigação. Pelo contrário, a lei

manda que a notícia do crime adquirida pelos Órgão de Polícia Criminal, por

conhecimento próprio ou mediante denúncia, seja transmitida ao Ministério Público

no mais curto prazo, que não pode exceder 10 dias (artigos 241.º, 242.º, n.º1, 243.º,

n.º3, 245.º e 248.º, n.º1 CPP). Note-se que os Órgãos de Polícia Criminal devem

transmitir ao Ministério Público todas as notícias de crime pois não têm competência

para decidir quais devem, ou não, dar lugar à abertura de inquérito (artigos 246.º, n.º3,

6 e 7 e 248.º, n.º2 CPC). Na sequência, o Ministério Público procederá ao registo da

denúncia (artigo 247.º, n.º2 CPP) e fará a abertura de inquérito (artigo 262.º, n.º2

CPP). Enfim, o Ministério deve poder avaliar se a denúncia constitui ou não uma

notícia de crime, devendo decidir em função disso se é de abrir, ou não, inquérito. A

avaliação da denúncia não deve, porém, ser confundida com o juízo de oportunidade.

3. A delegação genérica de competência na Polícia Judiciária, ou noutro Órgão

de Polícia Criminal, para a realização de diligências de investigação

relativamente a certos tipos de crime (artigo 270.º, n.º4 CPP) não pode, de

maneira nenhuma, ser confundida com autorização para a realização de inquéritos

policiais preliminares, à margem da comunicação da notícia do crime ao Ministério

Público;

4. As polícias têm competência própria para tomar medidas cautelares e de

polícia, ditadas pela urgência e pelas necessidades de conservação da prova

(artigo 248.º e seguintes CPP). Mas são atos fora do processo, que depois têm de

ser validados por autoridade judiciária;

5. As polícias têm, essencialmente, a chamada competência de coadjuvação,

que depende da direção funcional da autoridade judiciária competente. Ao

Ministério Público caberá, portanto, um poder de orientar a investigação e às polícias

caberá coadjuvar o Ministério Público nesta missão, mas tal não significa que o

Ministério Público faça a investigação material, já que a experiência e o saber

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§

criminalísticos, bem como os instrumentos técnico-científicos adequados pertencem

aos Órgãos de Polícia Criminal. A direção funcional do inquérito pelo Ministério

Público implica, isso sim, poderes de diretiva e de controlo relativamente aos Órgãos

de Polícia Criminal. Mais concretamente, o Ministério Público tem poder para pedir

informação sobre as diligências de investigação e exigir outras, definir a estratégia e

dar orientações de investigação e, inclusive, avocar ou redistribuir o processo, mas

nunca podendo decidir qual o Órgão de Polícia Criminal que lhe deve dar assistência,

pois tal é definido por lei.

Tudo visto e somado, o que se quer evitar é que o Ministério Público só tome contato

com o processo no final do inquérito, quando só resta acusar ou arquivar.

§10.º - O Arguido

As garantias do suspeito: o Código de Processo Penal distingue as figuras (artigo 1.º,

alínea e) CPP) de:

1. Suspeito: não é um sujeito processual; faltam-lhe os poderes, típicos dos sujeitos

processuais, de conformação concreta do processo, dado que não pode intervir

ativamente no inquérito, nem pode requerer abertura de instrução; e,

2. Arguido.

Mesmo assim, o suspeito, enquanto tal, goza de um estatuto processual específico que lhe

confere certos direitos, a saber: seja qual for a origem e a consistência da imputação, não

pode, em caso algum, ser obrigado a fornecer provas ou a prestar declarações auto-

incriminatórias. Não há dúvidas de que o princípio da não auto-incriminação e o direito ao

silêncio se estendem ao próprio suspeito. Senão vejamos: é obrigatória a constituição de

arguido logo que, durante qualquer inquirição feita a pessoa que não é arguido, surgir fundada

suspeita de crime por ela cometido (artigo 59.º, nº1 CPP). Este normativo abrange, decerto,

apenas os casos em que a fundada suspeita ocorra durante a inquirição, a qual deve ser

imediatamente interrompida para se proceder à constituição formal de arguido. Tal

normativo não pode, porém, deixar de implicar, por via de interpretação enunciativa

(argumento a minori ad maius), que o ato não deveria sequer ser iniciado se a suspeita fundada

já existisse, pois nesse caso o suspeito tinha de ser previamente constituído como arguido.

Torna-se, portanto, claro que o suspeito está em posição de exercer o direito ao silêncio tanto

como o próprio arguido. Como se isso não bastasse e para evitar a desproteção do suspeito

no caso de não ver respeitadas as suas garantias de defesa, ele mesmo tem o direito a ser

constituído, a seu pedido, como arguido se estiverem a ser efetuadas diligências destinadas a

comprovar a imputação que pessoalmente o afetem (artigo 59.º, n.º2 CPP). O suspeito

beneficia ainda de mais proteções, igualmente decorrentes do nemo tenetur. Designadamente,

o suspeito, seja qual for a fonte e a consistência da imputação e ainda que não se justifique

constituí-lo como arguido, acaba tando uma posição processual própria que resulta de não

poder intervir no processo noutras vestes, designadamente como testemunha. Nas

contundentes palavras de Lobo Moutinho,

«A interpretação oposta, se analisada mais de perto, não apresenta o mais débil fundamento

nem a mais remota base ou apoio constitucional ou legal, constituindo a correspondente prática

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✒ uma inaceitável recaída na tentação inquisitória, que tem de ser suprimida por indigna do

processo penal português do terceiro milénio».

Nisto, a revisão de 2007 foi muito clara, ao consagrar expressamente o direito de a

testemunha ser acompanhada por advogado sempre que deva prestar depoimento (artigo

132.º, n.º4 CPP). A falta de constituição de arguido, nos casos em que devesse já ter

acontecido é uma simples irregularidade (artigo 118.º, n.º2 CPP), que pode ser reparada a

todo o tempo (artigo 123.º, n.º3 CPP). Ou seja: nunca é tarde de mais para constituir o

suspeito como arguido. Só que a falta de constituição atempada de arguido entretanto gerou

a ineficácia contra o declarante das eventuais declarações auto-incriminitórias (artigo 58.º,

n.º5 CPP). Só? Também se aplica o artigo 126.º, n.º1 e 2, alínea a) CPP, por utilização de

meios enganosos, ou alínea d), por ameaça com medida legalmente inadmissível. Nesse caso,

as provas obtidas através dos métodos proibidos são nulas e não podem ser valoradas,

incluindo as provas secundárias, a menos que pudessem ser obtidas diretamente, na falta de

prova nula, através de um comportamento lícito alternativo. Além de que as provas

ilicitamente obtidas não podem ser repetidas por outros meios. Tudo isso para que os

instrutores não caiam na tentação de interrogar alguém que já é suspenso da prática de um

crime como se fosse uma mera testemunha, aparentemente com deveres de colaboração com

a justiça. Acresce que, se o uso dos métodos de obtenção de provas constitui crime, estas

poderão ser utilizadas com o fim exclusivo de proceder contra os agentes do mesmo (artigo

126.º, nº4 CPP).

A constituição de arguido: o arguido é uma pessoa formalmente constituída como

sujeito processual e contra quem corre um processo-crime. Têm capacidade judiciária passiva

as pessoas físicas maiores de 16 anos (artigo 19.º CP) e as pessoas jurídicas, neste caso quanto

aos crimes pelos quais possam ter de responder (artigo 11.º CP). A capacidade para ser

arguido não se define exatamente pela imputabilidade criminal, pois o juízo sobre a

inimputabilidade, inclusive absoluta, poderá ser uma conclusão a adquirir no próprio

processo penal. O arguido assume essa qualidade com a acusação ou o requerimento, por

parte do assistente, para abertura de instrução (artigo 57.º, n.º1 CPP). Nesses casos, a

aquisição da qualidade de arguido deixou de ser automática, ao contrário do que se passava

na versão primitiva do CPP de 1987. Na verdade, o atual artigo 57.º, n.º3 CPP impõe a

comunicação dessa qualidade ao arguido. O CPP prevê ainda a constituição obrigatória de

arguido nos casos dos artigos 58.º e 59.º CPP. Ou seja, antes da acusação ou do requerimento

para abertura de instrução.

1. Direitos e deveres do arguido: o arguido não goza apenas de direitos avulsos (uti

singuli), antes adquire uma posição global, estável e rica (ativa e passiva), no processo,

descrita nos artigos 60.º e 61.º CPP. Por isso se diz que é um sujeito processual.

Acresce que a constituição de arguido não é um ato simples, mas, como nos diz Lobo

Moutinho, antes

«Um ato complexo de formação ou produção sucessiva, um iter particularmente

complexo que se inicia com a verificação da situação fundamento mas passa por outros

momentos como a comunicação prevista no artigo 58.º, n.º2 CPP, e a entrega do

documento previsto no n.º 3 do artigo 58.º CPP, ainda pelo primeiro interrogatório

do arguido e pela sujeição a termo de identidade e residência».

a. São direitos do arguido (artigo 61.º, n.º1 CPP):

i. Direito de presença em todos os atos processuais que diretamente o afetem;

ii. Direito de audiência pelo juiz quando este deva tomar qualquer decisão;

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§

iii. Direito de informação sobre os fatos que lhe são imputados;

iv. Direito ao silêncio, sem ser prejudicado por isso;

v. Direito a defensor, que pode ser um defensor oficioso;

vi. Direito de intervenção nas fases preliminares do processo;

vii. Direito de informação dos direitos que lhe assistem;

viii. Direito de recurso das decisões que lhe forem desfavoráveis.

b. São deveres do arguido (artigo 61.º, n.º3 CPP):

i. Dever de comparência pessoal sempre que tiver sido regularmente convocado;

ii. Dever de responder com verdade sobre a sua identidade (artigos 141.º, n.º3,

143.º, n.º2, 144.º e 342.º CPP), sob pena de cometer crime de

falsidade por parte de interveniente em ato processual (artigo 359.º,

n.º2 CP);

iii. Dever de se sujeitar a diligências de prova e medidas de coação pessoal e de garantia

patrimonial.

A partir das alterações de 2013 ao Código, o arguido deixou de ter, em absoluto,

qualquer dever de mencionar os seus antecedentes criminais, o que constitui, sem

dúvida, uma mudança legislativa merecedora de aplauso.

2. A obrigação de interroga o arguido antes da acusação: na versão primitiva do

Código, não era, em princípio, obrigatório interrogar o arguido em momento anterior

à acusação ou ao requerimento de instrução. É certo que essa obrigação, em alguns

casos, resultava da lei: relativamente a arguido detido (artigo 141.º e 143.º CPP) ou a

quem tivesse de ser aplicada uma medida de coação ou de garantia patrimonial (artigo

194.º, n.º3 CPP). Por via de regra, o interrogatório do arguido ficava, porém, sujeito

ao critério geral da sua necessidade em função dos fins do inquérito. Ou seja, a

entidade instrutora podia decidir se e quando é que uma pessoa já fortemente

indiciada nos autos devia prestar declarações no inquérito, adquirindo nessa altura

necessariamente a qualidade de arguido. Isso potenciava junto da entidade instrutora

a tentação inquisitória de adir o mais possível a constituição de arguido, senão mesmo

de dispensar a sua constituição antes do fim do inquérito. Na revisão de 1998 do

CPP, o legislador entendeu, e bem, contrariar essa lógica, criando a necessidade do

primeiro interrogatório do arguido, nos termos do artigo 272.º, n.º1 CPP. Em que

momento do inquérito se deve realizar esse interrogatório? Dado que o

interrogatório do arguido não é um simples meio de obtenção de prova, muito menos

se considerarmos que lhe está indissoluvelmente associada a constituição de arguido

com todo o seu cortejo de direitos, mas é sobremaneira um meio de defesa do

arguido, o interrogatório só deve ser realizado quando estiverem reunidos os meios

de prova suficientes para a dedução de acusação, pois é diante disso que o arguido se

pode defender, contrapondo a sua própria versão dos factos. É bem de ver que a

introdução do interrogatório obrigatório do arguido restringiu os casos em que a

qualidade de arguido é adquirida por força da dedução de acusação ou do

requerimento de instrução, pois é forçoso constituir como arguido a pessoa em

relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime. Falta caracterizar o vício

relativo à falta de primeiro interrogatório. Concordo com Lobo Moutinho quando,

criticando o Acórdão STJ n.º1/2006, 23 novembro, que considerou ser uma simples

nulidade dependente de arguição, afirma que tal vício deve ser caracterizado como

nulidade insanável, nos termos do artigo 119.º, alínea c) CPP.

3. Como se efetua o interrogatório e a assistência de defensor: quanto ao primeiro

interrogatório judicial de arguido detido, o Código regula cuidadosamente a maneira

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✒ como deve ser efetuado, impondo que ele seja informado e esclarecido sobre os seus

direitos, bem como informado dos motivos da detenção e dos factos que lhe são

imputados (artigo 141.º, n.º4 CPP) e garantindo-lhe a presença de defensor (artigo

64.º, n.1º, alínea a) CPP). O primeiro interrogatório não judicial de arguido detido, se

o arguido não for imediatamente presente ao juiz de instrução, obedece às

disposições relativas ao primeiro interrogatório judicial de arguido detido (artigos 64.º,

n.º1, alínea a) e 143.º, n.º2 CPP). Em todos os interrogatórios de arguido preso é

obrigatória a assistência de defensor (artigos 64.º, n.º1, alínea a) e 144.º, n.º3 CPP).

Na verdade, o risco de respostas involuntariamente auto-incriminadoras aumenta nas

situações de fragilidade por privação da liberdade, razão por que a presença do

defensor é indispensável nestes casos. A revisão de 2007 do CPP reforçou as

garantias de defesa do arguido. O arguido é informado dos factos que lhe são

imputados antes de prestar declarações perante qualquer entidade (artigo 61.º, n.º1,

alínea c) CPP); em especial, o juiz, no primeiro interrogatório judicial de arguido

detido, tem de informar o arguido não só dos motivos da detenção e dos factos

imputados, como já sucedia, mas também dos meios de prova, salvo se, neste último

caso, a revelação puser gravemente em causa a investigação, a descoberta da verdade

ou direitos fundamentais de terceiros (artigo 141.º, n.º4 CPP); também o Ministério

Público, se o arguido detido lhe for presente sem ter sido interrogado pelo juiz de

instrução em ato seguido à detenção, deve informá-lo da mesma maneira (artigo 143.º,

n.º2 CPP); acresce que todas as declarações de arguidos detidos ou presos só podem

ser obtidas na presença do advogado (artigo 64.º, n.º1, alínea a) e 144.º, n.º3 CPP);

além de que o arguido em liberdade que for chamado a prestar declarações tem o

direito de ser assistido por advogado, sendo disso informado oportunamente pela

entidade que o convocar para interrogatório (artigo 144.º, n.º4 CPP); considerando,

por fim, que uma testemunha pode a qualquer momento, converter-se em arguido,

também ela pode ser acompanhada por advogado sempre que deva prestar

depoimento (artigo 132.º, n.º4 CPP). A alteração de 2013 ao CPP introduziu a

obrigatoriedade de assistência do defensor em todos os interrogatórios de arguido

feitos por autoridade judiciária (artigo 64.º, n.º1, alínea b) CPP). Em si mesma, a

alteração em causa é louvável, mas deve notar-se que foi concebida como

contrapartida da verdadeira restrição de direitos do arguido que resultou da criação

da possibilidade de aproveitamento probatório no julgamento das declarações

anteriormente prestadas por ele perante autoridade judiciária com assistência de

defensor (artigo 141.º, n.º4, alínea b) e 357.º, n.º1, alínea b) CPP). Um dos aspetos

em que a jurisprudência do Tribunal Constitucional mais marcou a revisão de 2007

foi, seguramente, o da regulamentação do interrogatório de arguido. Basta ver a

evolução do artigo 141.º, n.º4 CPP. À primeira vista, dir-se-á que a filosofia é a mesma,

só que a nova redação é mais pormenorizada e, nesse aspeto, parece constituir apenas

uma espécie de desenvolvimento interpretativo do preceito, o que só por isso

transformaria o Código num manual de boas práticas, sinal da desconfiança do

legislador na capacidade de os aplicadores do direito chegarem à interpretação

adequada das fontes normativas. Seja como for, a crítica que genericamente se

evocou supra não é justa, pois esquece que houve realmente situações concretas em

que o artigo 141.º CPP, na redação anterior, foi interpretada no sentido de o

cumprimento deste normativo se bastar com a formulação de perguntas genéricas e

abstratas, não concretizadoras das exatas circunstâncias de tempo, modo e lugar que

determinaram a imputação ao arguido dos ilícitos penais em causa, como se pode ver

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no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, 9 julho 2003, contra o qual foi

interposto recurso de constitucionalidade pelo arguido. Em função disso, o Tribunal

Constitucional julgou

«inconstitucional, por violação do artigo 28.º, n.º1 e 32.º, n.º1 CRP, a norma do n.º4

do artigo 141.º CPP, interpretada no sentido de que, no decurso do interrogatório de

arguido detido, a exposição dos factos que lhe são imputados pode consistir na

formulação de perguntas gerais e abstratas, sem concretização das circunstâncias de

tempo, modo e lugar em que ocorreram os factos que integram a prática desses crimes,

nem comunicação ao arguido dos elementos de prova que sustentam aquelas imputações

e na ausência da apreciação em concreto da existência de inconveniente grave naquela

concretização e na comunicação dos específicos elementos probatórios em causa».

Noutro aresto, o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional a interpretação

extraída da conjugação dos artigos 141.º, n.º4 e 194.º, n.º3 CPP, segundo a qual,

«no decurso de interrogatório de arguido detido, a exposição dos factos que lhe são

imputados e dos motivos da detenção se basta com a indicação genérica ao arguido das

infrações penais de que é acusado, da identidade das vítimas como alunos, à data, da

B., e outras pessoas, mas todas elas menores de 16 anos, estando o tribunal dispensado,

por inutilidade, de proceder a maior pormenorização além da que resulta da indicação

feita em tais termos, quando o arguido, confrontado com ela, tome a posição de negar

globalmente os factos, e na ausência da apreciação em concreto da existência de

inconveniente grave naquela concretização».

Não é, pois, despicienda a nova redação do n.º4 do artigo 141.º CPP.

O defensor: enquanto sujeito processual, o defensor é um elemento essencial à

administração da justiça, na medida em que é do interesse da justiça que a defesa seja eficaz

(artigo 208.º CRP). O defensor intervém no processo às vezes independentemente do

próprio arguido, como acontece, por exemplo, quando o defensor participa na audiência de

julgamento realizada na ausência do arguido (artigo 64.º, n.º1, alínea f) CPP). O defensor

pode mesmo intervir contra a vontade do arguido, como acontece quando é negado ao

arguido que é, ele mesmo, advogado o direito de se defender a si próprio, sendo-lhe ao invés

imposto um defenso oficioso. Tudo isso mostra que o defensor também tem um papel

conformador da tramitação processual como um todo.

§11.º - O Assistente

A função do assistente: o artigo 69.º, n.º1 CPP define o assistente como colaborador do

Ministério Público, a cuja atividade subordina a sua intervenção no processo, salvas as

exceções da lei. Mas são tantos os poderes que a lei confere ao assistente que acaba sendo

inadequado caracterizá-lo como um simples colaborador do Ministério Público. Em última

análise, o assistente é um verdadeiro sujeito processual, pois tem poderes próprios de

conformação do processo penal como um todo.

1. Os poderes do assistente: o assistente pode:

a. Intervir nas fases preliminares do processo penal, oferecendo provas e

requerendo diligências (artigo 69.º, n.º2, alínea a) CPP);

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✒ b. Deduzir acusado, independente da do Ministério Público (artigo 69.º,

n.º2, alínea b), 284.º, n.º1 e 285.º, n.º1 CPP);

c. Requerer a abertura de instrução (artigo 287.º, n.º1, alínea b) CPP);

d. Interpor recurso das decisões que o afetem (artigo 69.º, n.º2, alínea c)

CPP).

2. A constituição como assistente: têm legitimidade para se constituir assistentes os

ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei

especialmente quis proteger com a incriminação, nos termos do artigo 68.º, n.º1,

alínea a) CPP. O preceito reproduz o artigo 4.º Decreto-Lei n.º 35.007, o qual já

reproduzia, por seu turno, o velho artigo 11.º do Código de 1929. Só os titulares

desses especiais interesses eram considerados ofendidos para efeitos de legitimidade

para o exercício da ação penal – e não assim os titulares de quaisquer outros interesses

porventura também atingidos pelo delito. Essa era a interpretação de Beleza dos

Santos, o principal responsável pelo projeto desse Código. Era o chamado conceito

restrito de ofendido. A questão é saber se a tese restritiva se justifica à luz da teoria

do bem jurídico. No mínimo, dir-se-á que a tese restritiva não é admissível se for

usada para interpretar os interesses especialmente protegidos com a incriminação

como se fossem interesses protegidos de modo exclusivo, quer dizer, um único

interesse protegido por cada incriminação, ainda que seja admissível que o advérbio

especialmente usado pela lei queira significar que os interesses são protegidos de modo

particular, quer dizer, diretamente protegidos, mas nunca reflexamente ou

mediatamente protegidos. Ou seja, a circunstância de a incriminação proteger um

interesse de ordem pública não afasta, sem mais, a possibilidade de, ao mesmo tempo,

ser também imediatamente protegido um outro interesse de titularidade individual,

assim se afirmando a legitimidade material do ofendido até ao ponto de admitir a

legitimidade de constituição de assistente sempre que haja interesses de titularidade

individual diretamente afetados. Se for preciso, chamaremos conceito restritivo

alargado de ofendido a esta nova compreensão da tese restritiva. Será que se pode ir

mais além? O conceito amplo de ofendido protesta que a legitimidade de constituição

de assistente deve abranger os processos por crimes contra bens jurídicos coletivos

ou interesses difusos, de titularidade intersubjetiva, tais como a poluição (artigo 279.º.

n.º1 CP). Nesses casos, qualquer pessoa se poderia constituir assistente, assim se

exprimindo uma nova dimensão da cidadania no quadro das sociedades modernas,

vistas como sociedades de massas, como defende Augusto Silva Dias. Nos processos

por crimes contra bens jurídicos coletivos ou interesses difusos podem, na verdade,

constituir-se assistentes não só as associações ou outras pessoas coletivas legalmente

reconhecidas, que defendem os interesses coletivos ou difusos em nome e no lugar

de todos os cidadãos, como também todo e qualquer um do povo. A Lei n.º 83/95,

31 agosto 1995 (Lei Ação Popular), estabeleceu um regime especial de intervenção

no exercício da ação penal dos cidadãos e associações (artigo 25.º LAP), que abrange

o direito que quaisquer deles se constituírem assistentes no respetivo processo, nos

termos previstos nos artigos 68.º, 69.º e 70.º CPP. O regime da legitimidade

processual ativa previsto na Lei Ação Popular confirma, pois, a bondade de Augusto

Silva Dias.

3. Aporias do direito à constituição como assistente e do direito de queixa: o

artigo 68.º, n.º1 CPP regula a legitimidade para a constituição como assistente.

a. Nos crimes públicos: o ofendido é, em princípio, quem tem legitimidade

para se constituir assistente, como vimos;

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§

b. Nos crimes semipúblicos e particulares: o titular do direito de queixa ou

de acusação particular é, em princípio, quem tem legitimidade para se

constituir assistente (artigo 68.º, n.º1, alínea b) CPP). Ora, o titular do direito

de queixa ou de acusação particular é, também ele, o ofendido, o que agora é

determinado em função do artigo 113.º CP.

Em caso de morte do ofendido, pergunta-se: será que o direito à constituição como

assistente passa a pertencer a outras pessoas? A alínea c) do n.º1 do artigo 68.º CPP

atribui, de facto, esse direito a outras pessoas no caso de o ofendido morrer sem ter

renunciado à queixa. A letra do preceito induz o intérprete a concluir que o mesmo

só se aplicará aos crimes cujo procedimento dependa de queixa ou de acusação

particular. Pergunta-se: onde está a transmissão do direito à constituição como

assistente nos crimes públicos? A resposta é surpreendente: não há norma! É claro

que o legislador não podia querer este resultado, mas, apesar disso, não podemos

integrar a lacuna por analogia legis, com a alínea c) do n.º1 do artigo 68.º CPP, desde

logo, porque se trataria de uma analogia contra reum, a qual é vedada pelo princípio da

legalidade. Tão pouco podemos eliminar a expressão morrer sem ter renunciado à queixa

daquele inciso legal, desde logo porque não é admitida a interpretação corretiva, mas

também porque isso impossibilitaria a transmissão, por morte do ofendido, do direito

á constituição como assistente aos seus familiares nos crimes semipúblicos e

particulares. Em suma, temos aqui um problema, que resulta de uma infelicidade da

expressão legislativa.

O regime específico dos crimes particulares: nos crimes particulares, são quatro as

condições de procedibilidade (artigos 50.º, n.º1, 246.º, n.º4 e 285.º, n.º1 CPP):

1. Queixa (ou participação): declaração de vontade por parte to titular do direito de queixa de

que pretende a ação penal;

2. Declaração do queixoso, simultânea à queixa de que deseja constituir-se

como assistente: esta declaração é quase uma mera formalidade, pois a sua falta é

cominada com a mera irregularidade e não compromete o avanço do inquérito.

3. Constituição efetiva como assistente;

4. Dedução de acusação particular pelo assistente.

O prazo para a constituição de assistente é de dez (10) dias, a contar da declaração do

queixoso de que se quer constituir assistente (artigo 68.º, n.º2 CPP). O prazo para a dedução

de acusação particular é de dez (10) dias, a contar da notificação do assistente, findo o

inquérito (artigo 285.º, n.º1 CPP). Nos crimes particulares, o Direito português reconhece

aos particulares uma amplíssima margem de proteção no exercício da ação penal. Resta saber

se os poderes do assistente no procedimento por crimes particulares não serão excessivos,

considerando que pode impor sozinho a continuação do processo, inclusivamente com a

oposição do Ministério Público (artigo 285.º, n.º4 CPP). Dado que o crime é sempre matéria

de interesse público, não se vê nenhuma razão de fundo para os particulares, no caso de

procedimento por crime particular e só nesse caso, poderem ignorar o juízo do Ministério

Público acerca da falta de indícios suficientes da verificação do crime e de quem foram os

seus agentes. Mas é isso mesmo que a lei permite e não há, por conseguinte, nada a fazer.

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§12.º - As partes civis

O lesado: há que distinguir ainda:

1. O ofendido: que é a vítima do crie, no sentido de que é o titular dos interesses que

a lei penal visa proteger;

2. O lesado: é quem sofre o prejuízo.

Portanto, o lesado e o ofendido nem sempre coincidem. Por isso se diz na lei que o lesado é

a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime, ainda que se não tenha constituído ou

não possa constituir-se assistente (artigo 74.º, n.º1 CPP). Neste último caso, dir-se-á que não

pode constituir-se assistente porque não foi ofendido. O pedido de indemnização civil é

deduzido pelo lesado. O pedido pode ser deduzido pelo lesado contra quaisquer pessoas com

responsabilidade civil relacionada como o facto que é objeto do processo penal ao qual adere

a ação civil. O lesado corresponde ao autor na ação declarativa de condenação em processo

civil e os demandados serão os réus nessa mesma ação civil ou quaisquer terceiros

intervenientes, que também são partes nos termos do artigo 320.º CPC.

As partes civis: o lesado e todas as pessoas com responsabilidade civil são partes civis.

Figueiredo Dias diz que as partes civis são sujeitos processuais do processo penal apenas em

sentido formal, não em sentido material, porque a natureza da ação é civil. O CP, no artigo

129.ºm dá claramente à indemnização uma natureza civil, ao dizer que a indemnização de

perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil. Este preceito não dá margem

para dúvidas acerca da natureza meramente civil da indemnização. Ademais, há agora uma

total autonomia da responsabilidade civil perante a responsabilidade penal, pois pode haver

absolvição relativamente à questão penal e condenação no pedido civil, como resulta dos

artigos 84.º e 377.º CPP. Enfim, é preciso apenas que a causa de pedir no pedido de

indemnização civil se tenha baseado nos mesmos factos que são pressupostos do processo

penal. Não há total coincidência na forma como se refere a indemnização civil na lei penal e

na lei processual penal. O Código Penal fala na indemnização de perdas e danos emergentes

de crime. O Código de Processo Penal, no artigo 71.º, fala de pedido de indemnização civil

fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo. Germano Marques

da Silva diz que a expressão fundada na prática de um crime é infeliz. Atendendo à definição

dogmática de crime como ação típica, ilícita, culposa e, eventualmente, punível, não se

compreende, de facto, como é que poderá haver lugar a condenação em indemnização civil,

já que, se houver sentença absolutória, isso dever-se-á, na maior parte das vezes, ao

reconhecimento de que não houve crime, pelo que não poderia haver indemnização fundada

na prática do crime. Em última análise, a responsabilidade civil e a responsabilidade criminal

só se relacionam porque a causa de pedir no pedido cível tem de se basear nos mesmos factos

que desencadeiam o processo penal respetivo, o que é diferente de dizer que houve crime.

O princípio da adesão: quanto ao apuramento da responsabilidade civil, o CPP

consagrou o sistema de interdependência. De mais a mais, a lei impõe a adesão da ação cível

à ação penal (o chamado princípio da adesão), embora com as exceções constantes do artigo

o72.º, n.º1 CPP, em que o pedido pode ser apresentado em separado (só que as exceções são

tantas que cabe perguntar se o princípio ainda vigora realmente). Quanto à representação

judiciária, houve uma alteração. Agora não cabe ao Ministério Público representar o lesado

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§

em caso algum, embora lhe compita, nos termos do artigo 76.º, n.º3 CPP, formular o pedido

em representação do Estado ou de outras pessoas e interesses cuja representação lhe esteja

atribuída por lei. Em vez disso, foi criado um sistema em que pode ser arbitrada a

indemnização a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências

de proteção da vítima o imponham, nos termos do artigo 82.º-A CPP.

IV – Os princípios do Processo Penal

§13.º - Noções gerais

Os princípios de processo penal são, antes de mais, princípios jurídicos. Esta afirmação

significa que os princípios de processo penal, como todos os princípios jurídicos, têm uma

estrutura complexa que não é comparável à das normas jurídicas. As normas jurídicas são

prescrições dirigidas ao comportamento das pessoas e aplicam-se segundo a ideia de tudo ou

nada, respeitando o clássico esquema da subsunção jurídica. Quer dizer: ou bem que se

verifica uma factualidade que é subsumível na hipótese normativa e a norma aplica-se, ou

bem que não se verifica e a norma não se aplica. Acresce que não podem coexistir na mesma

ordem jurídica normas de conduta opostas e com igual campo de aplicação, sob pena de os

seus destinatários ficarem sem alternativa de ação lícita. Os princípios jurídicos são normas

de elevado grau de generalidade, que funcionam como comandos de otimização,

naturalmente limitados pelos condicionamentos jurídicos e factuais do caso concreto. Os

condicionamentos jurídicos são determinados pela existência de princípios opostos ou até de

regras jurídicas de menor grau de generalidade opostas. No mesmo ordenamento jurídico

coexistem necessariamente diferentes princípios, podendo surgir uma colisão de princípios.

Nesse caso, devem ser estabelecidas relações de ponderação entre os princípios que se

opõem. Na prática, são relações de precedência condicionada, mas nunca absoluta, de uns

princípios relativamente a outros. A relação de precedência condicionada implica a indicação

das condições sob as quais um princípio prevalece sobre outro. Noutras condições, pode

suceder o inverso.

Princípios do início do procedimento:

1. Princípio da oficialidade versus princípio da acusação privada:

a. Oficialidade: a oficialidade significa que a promoção processual das

infrações é tarefa estatal, a realizar oficiosamente e, portanto, em completa

independência da vontade e da atuação de quaisquer particulares. O

fundamento do princípio é a conceção do processo penal como assunto da

comunidade jurídica, representada pelo Estado. A fonte do princípio é o

artigo 219.º, n.º1 CRP. No CPP, veja-se o artigo 48.º. A violação do princípio,

designadamente a promoção do processo sem a intervenção do Ministério

Público, acarreta como consequência a nulidade insanável, nos termos do

artigo 119.º, alínea b) CPP.

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✒ b. Acusação privada: o princípio da oficialidade sofre exceções, que são as

relativas ao princípio da acusação privada e ao regime dos crimes

semipúblicos e particulares. O princípio da acusação privada traduz-se na

exigência de um impulso processual por parte de um particular, geralmente

o ofendido. Vem consagrado nos artigo 49.º e 50.º CPP, que estabelecem

como condição de procedibilidade a queixa (nalguns casos, a participação de

qualquer autoridade). Admite-se desistência da queixa, salvo oposição do

arguido, nos termos do artigo 116.º, n.º2 CP. Nos crimes particulares, a lei

exige, para além da queixa, outros impulsos processuais, a saber:

i. A efetiva constituição de assistente (artigo 68.º, n.º2 CPP);

ii. A dedução de acusação particular (artigo 285.º CPP).

A violação deste princípio acarreta o vício processual de ilegitimidade do

Ministério Público, que será declarado pelo juiz de instrução ou juiz

presidente do tribunal de julgamento (artigo 287.º, n.º2 e 311.º, n.º1 CPP),

ordenado o arquivamento dos autos por falta de condições de

procedibilidade, não sendo proferida qualquer decisão de mérito (ainda o

crime de denegação de justiça e prevaricação: artigo 369.º CP).

2. Princípio da acusação versus princípio da investigação:

a. Acusação: o princípio da acusação significa que o julgador não pode

acumular funções de acusação e investigação, mas pode apenas julgar dentro

dos limites que lhe são postos por uma acusação fundamentada e deduzida

por um órgão diferente (entre nós, o Ministério Público ou juiz de instrução).

A intencionalidade do princípio é a garantia de imparcialidade do julgador e

a igualdade de armas. Por isso mesmo, o Ministério Público não pode ser

dono do processo nas fases de instrução e julgamento. A sede constitucional

do princípio da acusação encontra-se no artigo 32.º, n.º5 CRP. O princípio

da acusação impõe a vinculação temática e a limitação dos poderes de

cognição do juiz de instrução (artigo 309.º, n.º1 CPP) e do juiz de julgamento

(artigos 284.º, n.º1 e 359.º, n.º1 e, nos crimes particulares, artigos 285.º, n.º1

e 359.º, n.º1, todos CPP). A imposição de limites aos poderes de cognição

implica também a preclusão de futuras acusações quanto aos mesmos factos.

O princípio da acusação aplica-se a todos os crimes, mas, como veremos,

acaba sendo limitado por um princípio de investigação. A violação do

princípio da acusação, enquanto alargamento do objeto do processo, acarreta

nulidade sanável, nos termos dos artigos 309.º e 379.º, n.º1, alínea b) CPP.

b. Investigação: outras designações correntes para o princípio da investigação

são princípio da instrução ou princípio inquisitório, com a desvantagem,

porém, de a primeira parecer que o princípio apenas se aplicaria à fase de

instrução e a segunda parecer que o princípio só poderia subsistir num

processo penal de estrutura inquisitória, o que não é correto, pois o atual

princípio da investigação não prejudica a vinculação temática, na medida em

que só se admite a recolha de prova dos factos já constantes da acusação ou

da pronúncia. Na definição de Figueiredo Dias, é

«o poder-dever que ao tribunal incumbe de esclarecer e instruir

autonomamente, mesmo para além das contribuições da acusação e da defesa,

o facto sujeito a julgamento, criando aquele mesmo as bases necessárias à sua

decisão».

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§

Segundo Figueiredo Dias, é um princípio integrante da estrutura basicamente

acusatória do processo penal, que em nada se opõe ao princípio da acusação,

nem sequer a uma estrutura basicamente acusatória do processo penal. É uma

leitura possível, mas a verdade é que o princípio da investigação não é aceite

em sistemas de modelo acusatório puro ou adversarial, o que não pode deixar

de ser significado no presente contexto. Preferimos, pois, reconhecer, tal

como afirma Castanheira Neves, que o princípio da acusação prescreve

limites ao princípio do inquisitório, sobretudo na medida em que

circunscreve o objeto possível de investigação. Avultam diversas

manifestações do princípio da investigação, a saber:

i. A direção da fase da instrução compete ao juiz de instrução (artigo 288.º, n.º1

CPP), que investiga autonomamente (artigo 288.º, n.º4 CPP),

podendo praticar todos os atos necessários às finalidades da instrução

(artigo 290.º, n.º1 CPP);

ii. Na fase do julgamento, especificamente a propósito da audiência (artigo

321.º e seguintes CPP), o tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a

produção de todos os meios de prova (artigo 340.º, n.º1 CPP).

Há quem considere o princípio da investigação sinónimo do princípio da

verdade material, preferindo assim analisá-lo dentro dos princípios relativos

à prova. Ou, então, segundo preferimos, é possível considera-lo como um

corolário do próprio princípio da verdade material, na medida em que a busca

da verdade material justifica o poder-dever de o tribunal instruir e esclarecer

autonomamente o facto sujeito a julgamento.

3. Princípio da legalidade versus princípio da oportunidade:

a. Legalidade: o princípio da legalidade significa que a atividade investigatória

se desenvolve sob o signo da estrita vinculação à lei e não segundo

considerações de conveniência de qualquer ordem, políticas ou económicas

e financeiras. Em processo penal, o Ministério Público está obrigado a

proceder e dar acusação por todas as infrações de cujos pressupostos factuais

e jurídicos, substantivos e processuais, tenha tido conhecimento. Portanto, a

promoção do processo penal é um dever para o Ministério Público. Não quer

dizer que o Ministério Público seja obrigado a acusar a todo o transe, já que

a decisão de acusação depende da existência de indícios suficientes ou prova

bastante (artigo 282.º, n.º1 e 2 CPP). Também decorre do princípio é a

igualdade na aplicação da lei a todos os cidadãos, que é uma ideia estruturante

do Estado de Direito. A sede legal do princípio é, quanto ao impulso inicial,

o artigo 262.º, n.º2 (a notícia do crime dá sempre lugar à abertura de

inquérito), e, quanto ao impulso sucessivo, o artigo 283.º, n.º1, ambos CPP

(se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes o

Ministério Público deduz acusação). A sindicância do princípio realiza-se

através do registo das denúncias (artigo 247.º, n.º2 CPP), do requerimento

para abertura da instrução por parte do assistente, que vale como impugnação

judicial do despacho de arquivamento (artigo 286.º, n.º1 e 287.º, n.º1, alínea

b) CPP), e da intervenção hierárquica (artigo 278.º CPP). A violação do

princípio por parte do Ministério Público (ou seja, a não promoção do

processo) acarreta responsabilidade disciplinar e, eventualmente, criminal,

neste caso por crime de denegação de justiça e prevaricação (artigo 369.º CP,

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✒ mas quanto à falta de impulso inicial é discutível a subsunção no âmbito de

inquérito processual).

b. Oportunidade: entre nós, ninguém aceita o juízo de oportunidade do

Ministério Público quando à promoção do processo, mas sim como limitação

ao princípio da legalidade, para certos domínios limitados. Mesmo no

domínio dos crimes públicos, deve admitir-se uma certa discricionariedade

do Ministério Público. São casos de oportunidade:

i. Crime praticado pelo Presidente da República (artigo 130.º CRP);

ii. Crime praticado por deputado (artigo 157.º CRP);

iii. Crime praticado por titulares de cargos políticos (Lei n.º34/87, 16 julho),

iv. Mediação penal (Lei n.º21/2007, 12 junho);

v. Arquivamento em caso de dispensa de pena (artigo 280.º CPP);

vi. Suspensão provisória do processo (artigo 281.º CPP); e

vii. Processo sumaríssimo (artigo 392.º, n.º1 CPP).

Princípios da prossecução do procedimento:

1. Princípio da audiência versus segredo de justiça interno: o

a. Audição: princípio da audiência e defesa significa que nenhuma decisão que

atinja a esfera jurídica de uma pessoa poderá ser tomada sem que lhe seja

dada a possibilidade de ser ouvida (nemo potest inauditu damnari). Também

incide sobre os meios de prova, pois implica que lhe seja dada ainda a

possibilidade de oferecer provas e de controlar as provas oferecidas pela

acusação ou produzidas oficiosamente. O fundamento do princípio é a

própria estrutura acusatória do processo penal. A sede constitucional do

princípio é o artigo 32.º, n.º1 e 7 CRP. No CPP, o princípio está presente em

toda a tramitação processual, incluindo a fase de inquérito. Designadamente,

o interrogatório de arguido no inquérito é uma forma de concretizar o seu

direito de audiência e defesa. Na revisão de 1998 do CPP, o legislador impôs

a obrigação genérica de interrogar como arguido,, no inquérito, a pessoa em

relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime, nos termos do artigo

272.º, n.º1 CPP. A falta de realização do interrogatório de arguido acarreta

nulidade sanável, nos termos do artigo 120.º, n.º2, alínea d) CPP. O princípio

da audiência e defesa não deve ser confundido com a contraditoriedade no

processo pena. A contrariedade é, também, uma garantia constitucional do

processo penal, nos termos do artigo 32.º, n.º5 CRP. A contraditoriedade na

produção da prova consiste na possibilidade de os contendores, em situação

de igualdade de armas e perante o juiz, contra-interrogarem as testemunhas

indicadas pela contraparte. A contraditoriedade na produção de prova está

assegurada no debate instrutório (artigo 289.º, n.º1 e 298.º CPP) e na

audiência de julgamento (artigo 348.º, n.º4 CPP). A contraditoriedade não

existe na fase de inquérito, salvo no registo de declarações para memória

futura (artigo 271.º, n.º5 CPP).

b. Segredo de justiça: a nossa ordem jurídica não reconhece um princípio de

processo secreto, mas admite a sujeição do processo penal a segredo de

justiça. A sede constitucional da proteção do segredo de justiça é o artigo 20.º,

n.º3 CRP. Mas a Constituição não impõe que haja sempre segredo de justiça,

apenas o admite, desde que adequado, sendo a adequação determinada

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§

genericamente pela lei, ao prever os casos em que pode ser estabelecido, e

pela intervenção do juiz de instrução, em cada caso. A revisão de 2007 alterou

o regime do segredo de justiça, passando a dispor que o segredo é um regime

de exceção, aplicável somente em fase de inquérito, ademais dependendo de

decisão do juiz de instrução, a requerimento do arguido, do assistente ou do

ofendido e ouvido o Ministério Público (artigo 86.º, n.º2 CPP), ou de

validação do juiz de instrução, se for determinado pelo Ministério Público

(artigo 86.º, n.º3 CPP). A efetivação do direito de audiência não consente,

porém, que o segredo de justiça impeça, por princípio, o acesso aos autos por

parte dos sujeitos processuais, em especial o arguido. Pelo contrário, o direito

de defesa, como nos diz Marques da Silva,

«exige que em qualquer fase do processo, também, por isso, nas fases

preliminares, o arguido possa contribuir para a definição do direito no caso,

carreando para os autos material probatório, o que pressupõe o conhecimento

dos autos».

Por isso mesmo, a oposição, devidamente fundamentada, do Ministério

Público à consulta de auto e obtenção de certidão e informação por parte de

qualquer sujeito processual só se pode manter se o juiz assim o decidir por

despacho irrecorrível (artigo 89.º, n.º2 CPP).

2. Princípio da celeridade e concentração versus garantias de defesa:

a. Celeridade: a celeridade é um princípio geral do processo penal. O princípio

da celeridade tem consagração constitucional, no artigo 32.º, n.º2 CRP. No

processo comum, a demanda da celeridade expressa-se sobremaneira através

do princípio da concentração, que implica, como nos diz Figueiredo Dias,

uma

«prossecução tanto quanto possível unitária e continuada de todos os termos

e atos processuais, devendo o complexo destes, em todas as fases do processo,

desenvolver-se na medida do possível concentradamente, seja no espaço seja

no tempo».

Na audiência de julgamento, a concentração é imposta através da exigência

de continuidade da audiência (artigo 328.º CPP). A celeridade é ainda a

principal ideia retora dos processos especiais.

b. Garantias de defesa: a celeridade não deve, em caso algum, prejudicar as

garantias do arguido. É por isso que se prevê, por exemplo, que a audiência,

em processo sumário, possa ser adiada até trinta dias para preparação da

defesa do arguido ou para realização de diligências probatória (artigo 387.º,

n.º2, alínea b) CPP).

3. Princípio do julgamento justo e equitativo:

a. Nemo tenetur se ipsum accusare: a principal dimensão da ideia de

processo justo e equitativo é o nemo tenetur se ipsum accusare. O princípio

segundo o qual ninguém deve ser obrigado a contribuir para a sua própria

incriminação, que engloba o direito ao silêncio e o direito de não facultar

meios de prova, não consta expressamente do texto da Constituição, mas,

nas palavras de Figueiredo Dias e Costa Andrade,

«a doutrina e a jurisprudência portuguesas são unânimes não só quanto à

vigência daquele princípio no Direito Processual Penal português, como

quanto à sua natureza constitucional».

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✒ Há quem baseie o princípio muito simplesmente nas garantias processuais

consagradas genericamente nos artigos 20., n.º4, in fine e 32.º, nº1 CRP.

Outros, porém, consideram, não obstante aceitarem tais garantias

processuais como fundamento direto e imediato do nemo tenetur, que este

princípio carece ainda de uma fundamentação última de caráter não

processualista, mas antes de ordem material ou substantiva, ligando-o desta

feita aos direitos fundamentais e à dignidade da pessoa humana, nos termos

do artigo 1.º CRP. Seja como for, o princípio nemo tenetur é aceite por todos.

A lei processual penal inclui expressamente o direito ao silêncio no elenco de

direitos do arguido (artigos 61.º, n.º1, alínea d), 141.º, nº.4, alínea a), 343.º,

n.º1 e 345.º, n.º1 in fine CPP), direito este que é, como se disse, um corolário

do nemo tenetur. De resto, o direito ao silêncio estende-se mesmo ao próprio

suspeito, desde logo porque a pessoa sobre quem recai a suspeita de ter

cometido um crime tem direito a ser constituída, a seu pedido, como arguido

(artigo 59.º, n.º2 CPP). Também a própria testemunha não é obrigatória a

responder a perguntas quando alegar que das respostas resulta a sua

responsabilidade (artigo 132.º, n.º2 CPP). Enfim, o direito ao silêncio não é

um direito absoluto. Na verdade, até está submetido a algumas restrições no

processo penal. Na verdade, até está submetido a algumas restrições no

processo penal. Designadamente, o arguido é obrigado a responder com

verdade às perguntas feitas por entidade competente sobre a sua identidade»

(artigo 61.º, n.º3, alínea b) CPP). Tirando essas restrições, aliás mínimas, o

direito ao silêncio é, sem dúvida, um dos pilares do processo penal português.

O direito de não facultar provas autoincriminatórias não tem consagração

expressa no Código, mas resulta, como se disse, da vontade do indagado em

manter o silêncio. Também este não é um direito absoluto. Por exemplo, a

sujeição a exames (artigo 172.º CPP) é, claramente, uma restrição ao direito

de não facultar provas contra si próprio. Mas as restrições carecem sempre

de previsão legal.

b. A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos: a

jurisprudência do TEDH, baseada no artigo 6.º, n.º1 CEDH, tem densificado

consideravelmente o nemo tenetur:

i. Entrega de documentos: antes de mais, refira-se o Ac. TEDH 24/1/1993

(Funke vs. França): neste caso, o Tribunal foi instado a pronunciar-

se sobre a legitimidade de uma condenação, no sistema judicial

francês, em multa e sanção pecuniária compulsória de um cidadão

alemão, Jean-Gustave Funke, ora queixoso, que se tinha recusado, na

sequência de uma busca ao seu domicílio em que foram descobertos

livros de cheques de contas bancárias localizadas no estrangeiro, a

fornecer à administração fiscal francesa extratos dessas suas contas e

que poderiam, eventualmente, ser usados contra ele como prova. Ora,

o TEDH criticou a decisão em causa, ainda que tenha frisado que a

administração fiscal não exigira confissão, nem tão-pouco entrega de

provas auto-incriminatórias, mas somente apresentação de alguns

elementos de informação sobre as contas bancárias que tinham sido

referenciadas na busca. Só que, na verdade, não havia indícios da

prática de infração criminal, nem a administração fiscal pôde ou quis

utilizar os mecanismos de cooperação internacional para aceder aos

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elementos requeridos, preferindo antes exercer uma coerção ilegítima

sobre Funke para tentar obter dele as provas de uma infração que não

sabia se existira. O TEDH concluiu, portanto, que o direito de não

fornecer provas contra si próprio fora lesado no seu núcleo essencial,

pois não havia processo-crime instaurado e o investigado estava a ser

usado como única fonte para a descoberta de possíveis indícios da

prática de crime, o que constituía violação do direito a um processo

equitativo (e, por consequência, do artigo 6.º, n.º1 CEDH). O TEDH

entendeu que essa conclusão, só por si, torna desnecessário analisar

se teria havido, ou não, também uma violação do princípio da

presunção de inocência (artigo 6.º, n.º2 CEDH). O TEDH não

aceitou o argumento do Governo Francês segundo o qual o cidadão

tinha o dever de facultar, a pedido, a documentação relativa ao seu

património e aos seus rendimentos porque o regime legal de controlo

fiscal aduaneiro impunha um tal dever de colaboração com a

administração fiscal. Na verdade, o Tribunal considerou

simplesmente que o dever de colaboração não pode significar

que os abrangidos possam ser obrigados a auto-incriminar-se.

ii. Valoração do silêncio do arguido: importa considerar o Ac. TEDH

8/2/1996 /John Murray vs. Reino Unido). Aqui, o Tribunal foi

chamado a aferir da legitimidade de uma condenação penal, no

sistema judicial britânico, baseada na valoração do silêncio do

acusado e agora queixoso, John Murray. Sucede que Murray fora

detido pela polícia quando descia as escadas de um prédio onde

foram descobertos um sequestrado e os respetivos sequestradores,

militantes do Irish Republican Army (IRA), mas recusou-se sempre,

quer durante o inquérito policial quer durante a audiência de

julgamento, a prestar quaisquer declarações, o que não impediu,

porém, o juiz de julgamento de estabelecer fortes inferências, que

levaram à condenação do acusado, com base na recusa deste de

explicar a sua presença naquele local. Ora, o TEDH considerou,

apesar de tudo, que nem o julgamento tinha sido injusto, nem o

princípio da presunção de inocência tinha sido violado (não havendo,

por conseguinte, violação do artigo 6.º, n.º1 e 2 CEDH), já que a

presença do acusado no prédio e a sua falta de explicação para o facto

eram bastantes para a sua condenação com base no simples senso

comum. Acresce que o Tribunal considerou que a questão de

saber se o direito ao silêncio é, ou não, absoluto deve ser

respondida negativamente, pois não se pode pretender que a

decisão dum acusado de ficar calado durante todo o processo

crime não traga necessariamente implicações quando o juiz

tiver de avaliar as provas que contra ele existem.

iii. Valoração de declarações anteriormente prestadas sob coerção: é imperioso

destacar o Ac. TEDH 17/12/1996 (Saunders vs. Reino Unido).

Ernest Saunders, administrador executivo da sociedade Guiness PLC,

foi condenado, no sistema judicial britânico, a cinco anos de prisão

por conspiração no crime de falsificação do balanço e noutros cries

patrimoniais comuns, todos relacionados com uma oferta pública de

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✒ aquisição sobre Distillers Company PLC, em competição com a Argyll

Group PLC. O TEDH teve de decidir a queixa de Saunders fundada

no facto de terem sido usadas como prova num processo-crime

subsequente as declarações que ele prestara sob coerção, em

procedimento de investigação administrativo, aos inspetores do

Ministério do Comércio e Indústria britânico, o que violaria o seu

direito à não auto-incriminação, implicitamente consagrado no artigo

6.º, n.º1 e 2 CEDH. O Governo britânico contra-alegou que só os

depoimentos auto-incriminatórios seriam abrangidos pela

prerrogativa de não auto-incriminação, já não as respostas dadas com

intuito auto-justificatório, pelo que o acusado poderia ser

confrontado, como foi, em audiência de julgamento com a

transcrição das suas declarações, todas feitas com esse mesmo intuito

auto-justificatório, não sendo de estranhar que, por causa disso,

ficasse com o ónus de rebater as provas que contrariassem as suas

próprias declarações. Acrescentou o Governo britânico que a

prerrogativa de não auto-incriminação não é absoluta ou imutável,

nem implica que nunca seja permitido usar como prova declarações

auto-incriminatórias, documentos ou outros meios de prova obtidos

através do exercício de poderes compulsórios, dando como exemplo

os mandados de busca ou a sujeição a exames de saliva, sangue e urina.

Ademais, o Governo britânico enfatizou o interesse público na

conduta honesta das sociedades comerciais, assinalando que os

suspeitos, neste tocante, estariam obrigados a responder às questões

postas pelos inspetores e que as autoridades de perseguição penal

deveriam poder usar essas respostas em processos-crime

subsequentes. A diferença entre tais fraudes societárias e os tipos de

crime comuns assentaria no facto de, frequentemente, a prova

documental ser incompreensível se não forem dadas as devidas

explicações por parte dos indivíduos envolvidos. Ainda segundo o

Governo britânico, os envolvidos são geralmente homens de

negócios que contam com o apoio jurídico de advogados

especializados, o que significaria que dificilmente darão respostas

ingénuas. Em contrapartida, a Comissão Europeia de Direitos

Humanos defendeu que a prerrogativa de não auto-incriminação

deveria abranger todos os tipos de acusados, incluindo aqueles que

fossem indiciados pela prática de fraudes societárias. No caso

concreto, a Comissão entendeu que os elementos que o arguido, ora

queixoso, fora obrigado a fornecer antes do processo-crime

constituíram uma parte não descipienda da prova usada contra ele em

julgamento, o que violava o princípio do julgamento equitativo. O

delegado da Comissão destacou, na audiência perante o Tribunal, que

a própria negação firme das imputações baseadas em depoimentos

anteriormente prestados podia ser altamente prejudicial para o

arguido, pois ele podia dar assim impressão de ser uma pessoa

desonesta. Ora, o Tribunal começou por definir, com rigor, o objeto

da queixa, que versava apenas sobre a questão da legitimidade de

utilização em processo-crime das declarações anteriormente

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prestadas pelo arguido, agora queixoso, aos inspetores do Ministério

do Comércio e Indústria britânico, mas já não sobre a questão de

saber se os próprios procedimentos de investigação administrativos

deviam, ou não, ser abrangidos pelo princípio do processo equitativo,

o que, em tese geral, mereceria uma resposta negativa, a menos que

fosse sacrificado o interesse público na regulação efetiva das

atividades comerciais e financeiras complexas. Considerando, por

conseguinte, o objeto da queixa, o Tribunal lembrou que, embora

o artigo 6. CEDH não mencionasse expressamente o direito ao

silêncio e o direito de não contribuir para a sua própria

incriminação, estes pertencem ao cerne da noção de processo

equitativo consagrada no referido normativo. Tal decorre, entre

outras razões, da necessidade de se proteger o acusado perante uma

eventual coerção abusiva por parte das autoridades. Em particular, o

direito de não contribuir para a sua própria incriminação pressupõe

que, em qualquer processo-crime, a acusação tenha de ser construída

sem recurso a provas obtidas através de coação ou pressões de

qualquer espécie, com desrespeito da vontade do acusado. Neste

sentido, este direito está estreitamente ligado ao princípio da

presunção da inocência. O TEDG acrescentou que

«o direito à não auto-incrimincação concerne, em

primeiro lugar, ao respeito pela vontade de um

acusado em manter o silêncio. Tal como é

interpretado na generalidade dos sistemas jurídicos

das Partes contratantes da Convenção, o mesmo não

abrange a utilização, em quaisquer procedimentos

penais, de dados que possam ser obtidos do acusado

recorrendo a poderes coercivos, contanto que tais

dados existam independentemente da vontade do

suspeito, tais como, inter alia, os documentos

adquiridos com base em mandado, as recolhas de

saliva, sangue e urina, bem como de tecidos

corporais com vista a uma análise de ADN».

Quanto ao caso concreto, o Tribunal considerou que o direito de não

contribuir para a sua própria incriminação não pode ficar confinado

às declarações de admissão da prática de ilícitos, nem a considerações

diretamente auto-incriminatórias, mas deve abarcar quaisquer

depoimentos obtidos sob coerção, incluindo os auto-justificativos,

que pudessem depois ser usados, em sede de processo-crime, para

pôr em causa outras declarações do acusado ou para minar a sua

credibilidade, como sucedera, de resto, no caso em apreço. O

Tribunal decidiu, por conseguinte, que tinha havido violação do

princípio do processo equitativo, tal como previsto no artigo 6.º, n.º1

CED. À conta do obiter dictum sobre as provas existentes

independentemente da vontade do acusado, o presente Acórdão

tornar-se-ia, muito mais vezes citado a propósito do dever, em

processo-crime, de entrega de documentos ou de sujeição a exames

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✒ do que a propósito da valoração, em processo-crime, de declarações

anteriormente prestadas sob coerção.

iv. Informação inadequada: o Ac. TEDH 8/4/2004 (Weh vs. Áustria)

teve por objeto uma situação de prestação de informação inadequada.

Ludwig Weh, ora queixoso, fora punido, no sistema judicial austríaco,

com multa por falta de indicação completa da identidade e morada

da pessoas que conduzira o seu veículo automóvel na altura em que

este foi referenciado em excesso de velocidade. De facto, a Lei dos

Veículos Motorizados previa como infração criminal a violação do

dever de fornecer às autoridades competentes, a pedido, a

informação sobre quem conduz um determinado veículo automóvel

identificado pela chapa de matrícula. O queixoso argumentava que

fora punido por não ter fornecido informação que poderia incrimina-

lo no contexto de um processo-crime por condução em excesso de

velocidade. Só que o Tribunal considerou que o queixoso não estava

a ser substancialmente afetado por uma acusação relacionada com a

condução em excesso de velocidade, nem no contexto de

procedimentos penais em curso no momento em que o pedido lhe

foi dirigido, nem no contexto de procedimentos penais subsequentes.

Acresce que o Tribunal considerou que tinha sido solicitado ao

queixoso um esclarecimento meramente factual – a indicação

da identidade e morada do condutor do carro registado em

nome dele –, o que não era diretamente incriminatório, além de

que essa informação não poderia ser obtida de outro modo.

Não houve, conclui o TEDH, violação do direito ao silêncio,

nem da prerrogativa de não auto-incriminação.

v. Valoração de provas extraídas à força do organismo do suspeito: o Ac. TEDH

11/7/2006 (jalloh vs. Alemanha) analisou uma queixa relativa à

obtenção da prova material de um crime de tráfico de droga através

da administração forçada, através de uma sonda nasogástrica, de

substâncias indutoras do vómito (eméticos), graças à qual se operou

a recuperação por regurgitação da bolota de cocaína que o suspeito

engolira quando foi detido em flagrante por agentes da polícia à

paisana. Abu Bakah Jalloh, cidadão serra-leonês, ora queixoso, foi

condenado, no sistema judicial alemão, em seis meses de prisão, com

pena suspensa, pela prática de um crime de tráfico de

estupefacianetes. Nem no julgamento, nem nos sucessivos recursos

foram atendidos os seus protestos de que o meio de obtenção de

prova usado, se bem que ordenado pelo Ministério Público e

conduzido por um médico, constituía uma ofensa à sua integridade

física praticada por funcionários, que fora desproporcionada e, como

tal, era proibida pelo CPP alemão, além de que violava a sua dignidade

humana, garantida pela Lei Fundamental. Diante do TEDH, Jalloh

acabaria por apresentar queixa contra a Alemanha por ter sido sujeito

a tratamento desumano e degradante, proibido pelo artigo 3.º CEDH,

além de ter visto desrespeitado o seu direito a um processo equitativo,

garantido pelo artigo 6.º, n.º1 CEDH. Num Acórdão muito

disputado, o Tribunal deu razão ao queixoso Jalloh, considerando

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§

ter havido violação do artigo 6.º, n.º1 CEDH. O presente aresto

é especialmente relevante pelo facto de o TEDH aí indicar, pela

primeira vez, os critérios gerais que contam para a decisão da

violação do princípio nemo tenetur se ipsum accusare:

«Para determinar se o direito à não

autoincriminação do queixoso foi violado, o

Tribunal, por sua vez, terá de considerar os

seguintes fatores: a natureza e o grau de coerção

empregado para obter as provas, a importância do

interesse público na investigação e punição da

infração em apreço, a existência de garantias

relevantes no processo e a utilização prevista dos

meios de prova obtidos dessa forma».

No caso concreto, o Tribunal considerou que

«a medida impugnada visava um traficante de rua que vendia

drogas à sua pequena escala e que foi,, a final, condenado numa

pena de prisão de seis meses, suspensa e em regime de prova. Nas

circunstâncias do caso, o interesse público em assegurar a condenação

do queixoso não podia justificar o recurso a tão grave interferência

na sua integridade física e mental».

vi. Outros: mais arestos relevantes para a delimitação do nemo tenetur

poderiam ainda ser citados, tais como o Ac. TEDH 21/3/2001

(Heaney e McGuiness vs. Ireland), sobre o direito ao silêncio, embora

reconhecendo o que é legítima alguma valoração do silêncio em

certas circunstâcias; o Ac. TEDH 3/8/2001 (J.B. vs. Suiça), sobre a

entrega de documentos que fazem prova de evasão fiscal; o Ac.

TEDH 21/1/2009 (Bykov vs. Russia), sobre a necessidade de se

preservar o núcleo essencial do direito ao silêncio, e outros que a

economia da exposição já não aconselha continuar a citar.

A análise da jurisprudência do TEDH autoriza, pelo menos, a conclusão de

que o direito de não contribuir para a sua própria incriminação, não é um

direito absoluto, mas admite ponderações e restrições no confronto com

outros interesses juridicamente tutelados, desde que se garanta a preservação

do núcleo essencial daquele direito.

Princípios relativos à prova:

1. Princípio da verdade material versus princípio do dispositivo: o princípio

dispositivo e o seu contrário, o princípio da verdade material, representam dois

modelos de verdade totalmente opostos:

a. Uma verdade conscientemente assumida como produto contingente

do confronto entre as provas concorrentes apresentadas pelas partes e

apreciadas pelo julgador segundo critérios probabilísticos: da qual

resultam as seguintes consequências:

i. Ónus de produção: cabe às partes a apresentação dos meios de prova

que servem de base à decisão;

ii. Ónus de persuasão: compete às partes afirmar o respetivo ponto de vista

e impugnar os argumentos da parte contrária;

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✒ iii. Ónus tácito: cabe ainda às partes antecipar o sentido da decisão do

tribunal e contrariar a eventual vantagem da parte contrária.

b. Uma verdade investigada pelo julgador independentemente das

contribuições das partes, na expectativa de assim conseguir descobrir

a realidade do facto histórico sujeito a julgamento: daqui resultariam, em

princípio, consequências totalmente opostas às anteriores, se porventura

subsistisse ainda o processo penal de estrutura inquisitória. Mas a verdade

material aparece, nos modernos sistemas mistos, como um mero princípio

integrador da estrutura acusatória do processo penal. Neste contexto, as

consequências desta segunda conceção não são radicalmente opostas às da

primeira conceção, mas são moderadamente diferentes, a saber:

i. Ónus de produção: cabe à acusação a apresentação das provas suficientes

de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente;

ii. Ónus de persuasão: cabe à acusação sustentar em juízo, designadamente

em alegações orais, as conclusões de facto que haja extraído da prova

produzida e que permitam motivar a condenação do arguido;

1. Mas o tribunal ordena oficiosamente a produção de outros meios de prova

cujo conhecimento se lhe afigure ainda necessário à descoberta da verdade

e à boa decisão da causa;

2. A defesa fica assim desonerada de produzir quaisquer meios de prova

favoráveis ao arguido;

3. Nem sequer se o arguido confessar os factos integralmente e sem reservas,

isso significa que tenha de ser condenado, pois o tribunal pode suspeitar

do caráter livre da confissão, nomeadamente por dúvidas sobre a

veracidade dos factos confessados (artigo 344.º, n.º3, alínea b) CPP);

4. Finalmente, se o defensor oferecer simplesmente o merecimento dos autos

nas alegações orais, isso não implica que o arguido seja condenado;

iii. Ónus tácito: a defesa técnica deve fazer mais do que simplesmente

pedir a costumeira justiça.

Há muitas incompreensões quanto à existência de ónus da prova em processo penal,

mas devem-se sobremaneira à falta de clarificação das várias aceções do ónus de

prova. Nomeadamente é correto dizermos que a acusação, não o Ministério Público

ou o acusador particular, tem um ónus material (objetivo) de produzir meios de prova

(ónus de produção) e de persuadir o tribunal de que as provas são bastantes para a

condenação do arguido a qualquer preço, pois protagoniza apenas o interesse público

na descoberta da verdade e na realização da justiça. Daí que o Ministério Público

investigue à charge et à décharge, podendo produzir provas favoráveis ao arguido ou

alegar a sua inocência. Mas quando o Ministério Público estiver de posse de indícios

suficientes sobre um crime e sobre quem foi o seu agente, mais do que um ónus

subjetivo, tem até um poder-dever de acusar e de prosseguir com o processo penal

até ao limite das possibilidades de recurso. Não se pode concordar com Figueiredo

Dias quando nega a vigência do ónus da prova objetivo em Direito Penal, objetando

apenas que a absolvição não é uma decisão desfavorável à acusação, por não haver

um interesse do Ministério Público contraposto ao do arguido, o que parece ser um

argumento deslocado. Como afirma Múrias, o ónus da prova é uma figura da teoria

geral do Direito, se não da teoria geral da argumentação ou da decisão, havendo assim,

ónus da prova em Direito Penal, como em administrativo, em fiscal, em processo

ditos de jurisdição voluntária ou em qualquer processo em que o Ministério Público

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tenha de intervir, defendendo ou não o interesse do Estado. O princípio in dubio pro

reo também não deve ser invocado como obstáculo à existência de ónus de prova

objetivo em Direito Penal, pois aquele princípio determina apenas que o ónus recaia

totalmente sobre a acusação. Ou seja, as consequências da falta de prova, ou risco do

non liquet, recai apenas sobre a versão onerada. Por sua vez, o tribunal intervém

ativamente na busca da verdade material, não se limitando simplesmente a sopesar a

versão onerada contra a versão privilegiada. Assim, o tribunal ordena oficiosamente

a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário

à descoberta da verdade e à boa decisão da causa (artigo 340.º, n.º1 e 2 CPP). O

tribunal pode ainda ordenar a junção aos autos de documento que a acusação e a

defesa já perderam o direito de juntar (artigo 164.º, n.º2 e 165.º, n.º1 CPP). Há

exceções ao princípio da verdade material:

a. Proibição da utilização do conhecimento privado do juiz nas suas

decisões (quod non est in actis non est in mundo). A prova tem que ser

feita no processo e até na audiência (artigo 355.º CPP). Mas isto não impede

que o juiz se considere impedido, colocando-se à disposição para ser ouvido

como testemunha (artigo 39.º, n.º1, alínea d), in fine CPP). Por outro lado,

nada impede a utilização de factos notórios, de conhecimento oficial ou

judicial (artigo 514.º CPC, ex vi artigo 4.º CPP);

b. Princípio da legalidade dos meios de prova e dos métodos de obtenção

de prova: na medida em que a própria lei estabelece as condições em que as

provas não podem ser produzidas, nem valoradas;

c. Proibições de provas (artigos 32.º, n.º8 CRP e 126.º CPP);

d. Preclusão da possibilidade de produzir prova suplementar depois de

encerrada a discussão da causa (artigo 361.º, n.º2 CPP), na medida em que

o tribunal, já a deliberar, não poderá voltar à sala de audiência e declarar

reaberta a sessão, salvo se for para obter declarações e depoimentos sobre a

personalidade e condições de vida do arguido, desde que necessários para a

determinação da sanção (artigo 371.º CPP).

e. Extinção do poder jurisdicional do juiz sobre a causa (artigo 666.º, n.º1

CPC ex vi artigo 4.º CPP). Já decidiu, nada pode reformar. Só resta a via de

recurso. Mas as decisões interlocutórias podem ser reparadas (artigo 414.º,

n.º1 CPP).

A violação do princípio da verdade material por omissão de diligências que pudessem

reputar-se essenciais para a descoberta da verdade acarreta nulidade sanável (artigo

120.º, n.º2, alínea d) CPP), que poderá ser conhecida em via de recurso, se for

tempestivamente arguida (artigo 410.º, n.º3 CPP).

2. Princípio da imediação: o princípio da imediação implica o contacto direto do

julgador com as fontes da prova (artigo 355.º CPP).

3. Princípio da livre apreciação da prova versus prova legal:

a. Livre apreciação da prova: o sistema de prova livre, que vai de par com a

íntima convicção, substituiu na Europa Continental o anterior sistema

romano-canónico da prova legal, que dava um valor fixo às provas em função

de certas fórmulas (v.g., testis unus, testis nullus). Este último sistema não era

irracional, mas, hoje em dia, é fácil de perceber que assentava em ficções,

dado que atribuía valor de verdade às conclusões produzidas por certos meios

de prova, ainda que fossem conclusões contrárias às evidências empíricas do

caso. O sistema da prova livre, além de refletir planos tão distintos como

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✒ aqueles que opõem (ou hesitam entre) as linguagens especializadas e a

linguagem comum, ou que opõem (ou relacionam) a assunção de um vínculo

normativo e a prossecução de uma exigência cognitiva, é também um

símbolo da modernidade. Na verdade, a prova livre antecipa duas

características típicas o espírito moderno, a saber:

i. A abertura à experiência;

ii. A autonomia do observador (neste caso, o julgador).

Tais características potenciam a descoberta da verdade material. O problema

é que a íntima convicção e a prova livre correm o risco de promover a

arbitrariedade das decisões, sobretudo se a lei não exigir do julgador que

preste contas dos meios pelos quais formou a sua convicção, como ainda

hoje sucede, por exemplo, no Direito Francês. O sistema da íntima convicção

é a da prova livre parece assim negar-se a si mesmo, a menos que o risco

acima referido possa ser removido. Como? A resposta é revelada pela própria

evolução do sistema probatório, desde os primórdios do século passado até

hoje:

iii. A prova livre transmutou-se em prova cientifica;

iv. A íntima convicção robusteceu-se através de uma nova exigência de motivação das

decisões.

O julgador moderno tem produzir abundante fundamentação dos seus juízos

probatórios. Para o efeito, ele faz apelo não só aos meios de prova científicos,

mas também às chamadas regras de experiência. O CPP português impõe

mesmo que a prova seja apreciada segundo as regras da experiência e a livre

convicção da entidade competente (artigo 127.º CPP).

b. Meios de prova de valor reforçado: alguns meios de prova têm um valor

especial, designadamente:

i. A confissão: cabe nas declarações do arguido, mas tem previsão

especial por causa do seu particular valor probatório (artigo 344.º

CPP). No caso de o arguido querer confessar os factos que lhe são

imputados, o juiz presidente pergunta-lhe, sob pena de nulidade, se o

faz de livre vontade e fora de qualquer coação e se quer realmente

fazer uma confissão integral e sem reservas. A confissão implica, com

efeito, a renúncia à produção da prova relativa aos factos imputados,

dando-se os mesmos como provados e passando-se de imediato às

alegações orais e à determinação da sanção aplicável (artigo 344.º, n.º2,

alínea a) e b) CPP). Esse regime demonstra que o legislador deu

forma legal a uma regra de experiência comum, que pode ser

parafraseada como segue: em geral, quem confessa fala a verdade, o

que torna dispensável mais indagações.

ii. Prova pericial: o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova

pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador, nos

termos do artigo 163.º, n.º1 CPP. Desse modo, o legislador deu

forma legal a outra regra de experiência comum, que é esta: os peritos

sabem melhor do que ninguém emitir juízos de facto no âmbito das

respetivas especialidades. De facto, aquilo que o julgador procura no

perito não é tanto uma cessão de conhecimento técnico, científico ou

artístico, que o primeiro nunca poderá assimilar de modo instantâneo,

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por muito que se esforce, mas antes boas razões para justificar a sua

crença em determinada explicação que lhe foi transmitida pelo perito.

iii. Prova documental por documentos autênticos e autenticados: consideram-se

provados os factos materiais constantes de documentos autênticos e

autenticados, nos termos do artigo 169.º CPP. Aqui o legislador seu

forma legal à regra da experiência comum segundo a qual, em

princípio, merecem crédito os factos que foram testemunhados por

uma entidade credenciada, que lavrou o documento.

Com exceção da confissão, da prova pericial e da prova por documentos

autênticos ou autenticados, não há, no domínio da valoração dos meios de

prova, mais restrições ao princípio da livre apreciação. Há outras limitações

à livre apreciação da prova, mas que o legislador impôs relativamente ao

modo de produção de certos meios de prova e que operam, portanto, em

momento anterior ao da própria valoração da prova. Por exemplo: as regras

destinadas a determinar a fiabilidade do testemunho (artigo 138.º CPP), a

forma rigorosa do reconhecimento de pessoas (artigo 147.º CPP), etc. Estas

regras legais de prova que subsistem no âmago do sistema da prova livre nada

têm de paradoxal se forem vistas como meras regras da experiência em forma

legal, como se referiu. Nesse caso, nem sequer será preciso grande esforço

para justificar a sua vigência, pois o seu valor probatório é muito ténue, nunca

se aproximando da prova pleníssima, nem sequer da prova plena, que eram

os graus de prova mais caracterizados do velho sistema da prova legal.

Quando muito, as atuais legais de prova dizem quando é que a prova é

bastante. Assim, o julgador pode suspeitar do caráter livre da confissão,

nomeadamente por dúvidas sobre a imputabilidade plena do arguido ou

sobre a veracidade dos factos confessados. Quanto à prova pericial, o

julgador pode divergir do juízo contido no parecer dos peritos, nesse caso

devendo fundamentar a sua divergência, segundo manda o artigo 163.º, n.º2

CPP. No entanto, não é preciso uma contraperícia. Um juiz pode recusar as

conclusões do relatório pericial com argumentos próprios, desde que os

discuta no terreno técnico em que se situa o relatório. Mas só por um

extraordinário acaso poderá suceder que um juiz tenha o cabedal de erudição

necessário para discutir os argumentos do perito no plano técnico. Mais

frequentemente sucederá que o juiz se baseie num relatório pericial para

afastar os resultados de outro relatório pericial de sentido divergente. Nesse

caso, como é possível que um não especialista (i.e., o juiz) decida qual dos

especialistas é que tem razão? É por isso que não é muito feliz a afirmação

de que o juiz é o perito dos peritos, a qual costuma ser usada para enfatizar a

liberdade do julgador perante os peritos. Quanto à prova por documento

autêntico ou autenticado, a autenticidade do documento ou a veracidade do

seu conteúdo podem ser postas, em causa. Enfim, não basta pô-las em causa,

é preciso fazê-lo fundamentadamente, diz o artigo 169.º CPP. Mas não é

necessário fazer a prova de falsidade. Portanto, os documentos autênticos e

autenticados não têm o valor de prova plena, que é aquela que só cede diante

da prova do contrário, nem, muito menos, o valor de prova pleníssima.

4. Princípio in dúbio pro reo: o princípio in dúbio pro reo significa que a dúvida sobre

os pressupostos de facto da decisão a proferir deve ser valorada a favor da pessoa de

que a liberdade pessoal é um bem inestimável. Todavia, a consequência da aplicação

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✒ do princípio não é necessariamente a absolvição. O princípio só diz respeito à prova

da questão de facto. Quanto à questão de direito, prevalece a interpretação que for

julgada a mais correta.

Princípios relativos à forma:

1. Princípio da publicidade versus segredo de justiça externo e restrições à

publicidade: o princípio da publicidade consiste na atribuição a qualquer pessoa do

direito de assistência às audiências dos tribunais (artigos 206.º CRP e 321.º, n.º1 CPP),

complementado pelo direito de narração, com restrições, dos atos processuais ou

reprodução dos seus termos através dos meios de comunicação social (artigos 86.º,

n.º2, alínea b) e 88.º, n.º1 CPP), e pelo direito de consulta dos autos e obtenção de

cópias, extratos e certidões de quaisquer partes deles (artigo 86.º, n.º2, alínea c) e 90.º

CPP).

2. Princípio da oralidade: o princípio da oralidade é válido para todos os momentos

processuais (artigo 96.º, n.º1 CPP). Está ligado ao princípio da livre convicção (artigo

127.º CPP). Não pode ler-se uma declaração preparada (artigo 96.º, n.º1 CPP, exceto

no caso previsto no n.º2). As declarações são atos que revestem forma oral, mas

ficam registadas (artigo 99.º, n.º1 CPP).

V – O Objeto do Processo

§14.º - O problema da identidade do objeto do processo

A estrutura acusatória do processo exige a identidade entre o acusado, o conhecido e o

decidido. A identidade do objeto é critério decisivo:

1. Da exceção de litispendência;

2. Do conteúdo e limites da eficácia do caso julgado;

3. Para circunscrever a amplitude da atividade probatória;

4. Para decidir os limites do conhecimento de infração não idêntica, mas

suscetível de transferibilidade potencial na base da manutenção do objeto do

processo;

5. Para demarcar o objeto possível dos recursos;

E é fator importante na determinação da competência, da legitimidade, etc. A identificação

e descrição do objeto do processo responde à tensão entre dois interesses fundamentais:

1. O interesse (reconhecido como garantia) do arguido na manutenção da

eadem res desde a acusação até à sentença, pois só assim conseguirá preparar

uma defesa pertinente e eficaz, segura de não deparar com surpresas incriminatórias

e de ter assim um julgamento leal;

2. O interesse público na aplicação do Direito Penal e na eficaz perseguição e

condenação dos delitos cometidos.

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3

§

Os princípios da definição e conhecimento do objeto do processo:

1. Princípio da identidade: o objeto do processo deve manter-se idêntico, o mesmo,

desde a acusação (em sentido material, incluindo o requerimento para abertura da

instrução do assistente e o despacho de pronúncia) até à sentença definitiva, mas essa

identidade não pode ser entendida como sendo determinável de forma lógica, pois é

antes um problema jurídico concreto e que se mantém o mesmo do início ao fim do

processo. Como diz Castanheira Neves, há uma correlatividade intencional entre um

problema e a sua solução.

2. Princípio da unidade ou indivisibilidade: o objeto do processo deverá ser

conhecido na sua totalidade, unitária e indivisivelmente. É natural que um problema

unitário seja resolvido num só processo, não só pelo interesse do arguido de que se

resolva de uma vez por todas a totalidade do facto por que é acusado, como também

porque a multiplicação de provas e decisões poderia ser contraditória e até iníqua.

Por outro lado, há a imposição legal da pena unitária. Este princípio é, ademais, uma

decorrência do acusatório, no sentido de que o objeto do processo não é disponível,

e é um corolário da identidade do objeto do processo, no sentido de não haver

disponibilidade no âmbito do mesmo objeto do processo.

3. Princípio da consunção: o conhecimento e decisão do objeto do processo deverá

considerar-se como tendo esgotado a sua apreciação jurídico-criminal. A esgotante

cognição corresponde ao interesse do Estado na realização da pretensão punitiva,

assim como corresponde também ao interesse do arguido na decisão da sua sorte,

resguardando-se definitivamente da possibilidade de novos julgamentos.

O critério da identidade do objeto do processo: este problema tem como núcleo

essencial uma dimensão metodológica, devendo a sua solução ser encontrada

necessariamente, num plano que transcende o da mera exegese do sistema legal. Nas palavras

de Castanheira Neves:

«é a individualidade do caso jurídico, com a sua unidade concreto-problemática, que se impõe a

regulamentação processual».

Em última análise, é o problema metodológico geral de saber qual é o objeto da aplicação do

Direito. Havia duas correntes principais:

3. A posição naturalista (Cavaleiro de Ferreira):

«O objeto sobre que incide o processo tem de ser um facto concreto na sua existência

real e não um conceito de facto (…) O conceito de identidade do facto não irá buscar-

se assim ao Direito material; a identidade do facto tem de apreciar-se

naturalisticamente, como facto concreto, real».

4. A posição neokantiana, de pendor teleológico-culturalista (Eduardo Correia):

«Uma construção naturalística do objeto processual não logra dar soluções precisas e

exatas ao problema dos limites da identidade do facto. E não o consegue porque,

esquecendo a natureza própria do plano teleológico ou referencial a valores em que ele

se coloca, desce do mundo jurídico para o mundo naturalístico, como se se tratasse de

coisas só hierarquicamente diferentes. (…) O problema da identidade não poderá

derivar, pois, de qualquer coincidência naturalística, mas só de uma coincidência dos

concretos juízos de valor em que o objeto processual se analisa».

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✒ Chegava, depois, à conclusão de que a identidade do facto não se define pelo

preenchimento de um determinado tipo de crime, mas pela referência essencial à

mesma unidade jurídica.

Eram posições radicalmente antagónicas, mas tinham, não obstante, em comum o esquema

normativista-subsuntivo da aplicação do Direito, com dissociação analítico-objetiva dos dois

termos:

Os factos; e

A norma.

Ora, a questão não pode pôr-se nesses termos e, por isso mesmo, as teorias referidas devem

ser ambas rejeitadas. Na verdade, o problema do objeto do processo decorre do facto

de um caso penal ser inevitavelmente um caso em construção, já que o seu sentido é

de índole problemático-interrogante e a sua finalidade é uma investigação (que tanto

pode confirmar, como pode não confirmar aquele sentido hipotético). Mas não é

apenas um problema de investigação de uma realidade, suscetível de ser apreendida por uma

mera representação. Além de que todas as realidades são apreensíveis a partir de um certo

ponto de vista, e o ponto de vista agora relevante é o jurídico-criminal. Portanto, é um

problema jurídico concreto. Em conclusão: se o objeto da decisão jurídica é um caso da vida,

um caso concreto-histórico, ele só é, no entanto, objeto de uma decisão de Direito porque é

um caso jurídico, um caso da vida que põe um problema de Direito. Assim sendo, não se

pode fazer mais do que fornecer alguns critérios indicativos, todavia necessitados de

corroboração no caso concreto:

1. A identidade do objeto do processo há de ter uma dimensão subjetiva pois

pressupõe a identidade do ou dos arguidos : eadem personae. E tratando-se de

vários arguidos, ainda que numa situação de comparticipação, existem pelo menos

tantos objetos quantos os arguidos;

2. A identidade objetiva não se decide por um ponto de vista meramente

jurídico-qualificativo. Ou seja, o objeto do processo não deixará de ser o mesmo

só porque tenha variado a sua qualificação jurídica. O nomen iuris é, pois, irrelevante,

com isso se rejeitando a doutrina (francesa e belga) do fait qualifié.

Tudo o mais é muito discutível.

A alteração dos factos: depois de fixado o objeto do processo, ainda assim podem

aparecer factos novos. Os factos novos trazidos ao processo podem ser factos totalmente

independentes, o que em termos substantivos daria lugar a um concurso real de infrações

com o objeto do processo em curso. Nestes casos, o Ministério Público deverá simplesmente

abrir um outro inquérito quanto aos factos totalmente novos, nos termos do artigo 262.º,

n.º2 CPP. O nosso problema é antes a variação na descrição dos mesmos factos, a chamada

alteração substancial de factos ou não. O conceito de alteração substancial de factos é

definido no artigo 1.º, alínea f) CPC. A alteração substancial de factos pode dar lugar a uma

alteração da qualificação jurídica, mas não necessariamente. A inversa não é verdadeira, ou

seja: a alteração da qualificação jurídica não implica uma alteração substancial de factos.

A fixação do objeto do processo: nos crimes públicos e semipúblicos, é a partir da

acusação pelo Ministério Público (artigo 283.º, n.º1 CPP) ou do requerimento para a abertura

da instrução pelo assistente (artigo 287.º, n.º1, alínea b) CPP) e, nos crimes particulares, é a

partir da acusação particular (artigo 285.º, n.º1 CPP) que passa a vigorar o princípio da

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5

§

vinculação temática. Ou seja, o objeto do processo fica a partir daí fixado nos seus limites

máximos. Entrados na segunda fase (facultativa) do processo, o juiz instrutor, em razão desse

princípio, vê traçado o círculo dentro do qual livremente se pode movimentar na sua tarefa

de investigação, cujo limite é a fundada suspeita da verificação de uma alteração substancial

dos factos (artigo 303.º, n.º3 CPP). Se o juiz instrutor porventura pisar fora das estremas dos

seus poderes de investigação, então o artigo 309.º, n.º1 CPP, comina a nulidade da decisão

instrutória na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração

substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no

requerimento para abertura da instrução. É uma nulidade dependente de arguição, nos

termos do artigo 309.º, n.º2 CPP. Nos termos do artigo 359.º, n.º1 CPP, uma alteração

substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, não pode ser

tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso. A

nulidade do incumprimento do disposto nesse inciso legal também depende de arguição, a

qual é tempestivamente feita se o for na motivação do recurso, conforme o disposto no

artigo 410.º, n.º3 CPP.

§15.º - O regime da alteração substancial de factos

Os factos novos autonomizáveis: o regime da alteração substancial de factos é variável,

consoante os factos novos sejam:

1. Autonomizáveis: o conceito de factos autonomizáveis define-se pela possibilidade

de os separarmos daqueles que já constituem o objeto do processo, de tal sorte que,

sem se prejudicar o processo em curso, sejam criadas as condições para se iniciar um

outro processo penal, sem violação do princípio ne bis in idem.

2. Não autonomizáveis. nesta hipótese, então, segundo o artigo 303.º, n.º4 CPP,

devem ser destacados do processos em curso e dar lugar à abertura de inquérito

noutro processo penal (ressalvadas as exceções dos crimes semipúblicos e

particulares), devendo o primitivo processo prosseguir os seus trâmites. Na fase de

julgamento, os factos novos autonomizáveis devem igualmente ser comunicados ao

Ministério Público para que proceda por eles (artigo 359.º, n.º2 CPP).

A possibilidade de autonomização verifica-se nas situações de concurso ideal de infrações.

Neste caso, julgar-se-á no processo em curso mas com preterição da circunstância

extemporaneamente descoberta. Essa circunstância não poderia ser tomada em consideração

para o efeito da agravação da pena legal, nem sequer poderia ser considerada para o efeito

da exacerbação da pena concreta dentro dos limites da pena legal. Num novo processo,

caberia, por sua vez, tão somente investigação independente e a decisão dos factos

eventualmente constitutivos do outro crime. Isso não deverá fazer obstáculo à aplicação de

uma pena conjunta, por virtude do concurso de crimes, a cargo do tribunal da última

condenação (artigo 77.º, n.º1 CP).

Os casos duvidosos: serão autonomizáveis os elementos dos crimes complexos? Cabem

na categoria dos crimes complexos aqueles tipos de crime que mantêm uma filiação de

especialidade com respeito a dois ou mais tipos fundamentais: por exemplo, o roubo. A

especialidade é uma relação entre duas ou mais normas em que uma, a lex specialis, contém já

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✒ todos os elementos da outra, a lex generalis, se bem que constem da norma especial novos

elementos, os quais lhe reduzem, por consequência, o âmbito de aplicação por referência à

norma geral. Dessa relação advém, segundo um princípio sem exceção, que a lex specialis

derrogat generali. Geralmente, a relação de especialidade entre normas incriminadoras serve de

modelo organizador para famílias de crimes, compostas de um tipo fundamental e de

subtipos, todos concorrendo para a proteção de unum et idem bem jurídico. Mais raramente,

o legislador chega a operar a reunião de dous ou mais tipos fundamentais, fazendo surgir

assim os chamados crimes complexos. Não fica por isso perturbada a relação de

especialidade do crime complexo com cada um dos tipos fundamentais que estão na sua

origem, nem mesmo se o crime complexo corresponder já a uma imagem social própria, com

o seu peculiar sentido de desvalor (o chamado crime autónomo ou sui generis), e passar a servir,

ele mesmo, de tipo fundamental com respeito a novos subtipos. Em função dessa definição,

percebe-se que haja alguma tendência para admitir a conversão num concurso de infrações

dos elementos integrantes do tipo legal do crime complexo. A transformação do crime

complexo em duas infrações separadas permitiria, pois, a abertura de inquérito relativamente

aos factos descobertos na instrução ou no julgamento, sem prejuízo da continuação do

processo em curso. Bem vistas as coisas, não parece, porém, que esta solução seja conforme

aos princípios do processo penal de estrutura acusatória. É sabido que a razão de ser dessa

singular estrutura não radica na necessidade de fazer vingar um formalismo, tão bom como

outro qualquer, nas funções que as autoridades judiciárias devem executar nas diversas fases

do processo, mas obedece antes ao espírito de respeito pelo valor da pessoa do arguido e do

seu direito de defesa. É bem de ver, então, que não devem ser apoiadas as tentativas de

suplantar, através de meros expedientes formais, os entraves à verdade material impostos

pela estrutura acusatória do processo penal. Precisamente, era isso que sucederia se

porventura se quisesse partir em dois um facto punível que constituísse uma unidade natural

de ação. Não se pode fazê-lo, já que a tanto se opõem os princípios da indivisibilidade e

consunção do objeto do processo. Quer isto dizer que um crime de roubo não deve ser

pulverizado nos seus elementos típicos, nem estes desbaratados por processos penais

independentes.

Os factos novos não autonomizáveis: já na hipótese de os factos novos serem

inseparáveis do objeto do processo em curso, cabe reconhecer que a solução não é pacífica.

A solução há de resultar então da possibilidade de se estabelecer uma concordância prática

entre os interesses em causa ou até da necessidade de se fazer prevalecer um desses interesses

sobre o outro, a saber: o interesse do arguido versus interesse publico.

1. No anteprojeto do Código de 1987: no projeto de Código de Processo Penal,

Figueiredo Dias tinha concebido a solução de conferir ao juiz de instrução poderes

para pronunciar por factos que constituíssem uma alteração substancial dos descritos

na acusação ou no requerimento de abertura de instrução. Era uma solução só

aplicável à fase de instrução, mas não à fase de julgamento, baseando-se no

argumento de que ainda se estaria no âmbito de uma fase de investigação, como se o

inquérito e a instrução fossem duas subfases de uma única instância de investigação.

A proposta do anteprojeto não vingou em sede de Comissão Revisora,

argumentando-se então que a mesma feria o princípio do acusatório por não impor

qualquer vinculação temática ao juiz de instrução.

2. Na redação primitiva do Código de 1987: o CPP de 1987 não dava solução

expressa à questão da alteração substancial dos factos não autonomizáveis em relação

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§

ao objeto do processo. Na falta de menção expressa à alteração substancial dos factos

não autonomizáveis em relação ao objeto do processo, ambos os normativos eram

aplicados restritivamente, de maneira que o Ministério Público podia abrir inquérito

quanto aos novos factos que fossem autonomizáveis em relação ao objeto do

processo. Já quanto ao modo de proceder relativamente aos novos factos que não

fossem autonomizáveis em relação ao objeto do processo, a doutrina mostrava-se

assaz dividida.

a. A alteração substancial de factos não autonomizáveis na instrução: as

respostas possíveis para este problema só podiam passar por uma de três:

i. A tese da repartição do inquérito no mesmo processo penal, em ordem à eventual

integração da alteração substancial de factos no objeto do processo: a solução

passava pelo apelo às normas do processo civil, com base no artigo

4.º CPP, aplicando-se então o regime da suspensão da instância.

Ordenada a suspensão da instância pelo juiz de instrução, haveria

lugar à repartição do inquérito, findo o qual, das duas uma:

1. Ou o Ministério Público concluía pela suficiência de indícios quanto a

todos os factos e deduzia acusação também pelos factos que tivessem

levantado a suspeita da alteração substancial de factos: todos os factos

eram introduzidos na instrução, ficando consequentemente

sujeitos a um despacho de pronúncia ou de não pronúncia –

portanto, a uma decisão judicial de comprovação; ou

2. Não concluía naquele sentido e mantinha a primeira acusação.

Tive ocasião de discordas dessa solução, por várias ordem de razões:

essa solução simulava um suporte dogmático-legal verdadeiramente

inexistente, porque, à parte o surpreendente apelo a uma cláusula

geral extensiva dos casos de suspensão da instância absolutamente

indeterminada, o próprio sentido da suspensão da instância no

processo civil traduz-se numa paragem da causa que era incompatível

com a noção dinâmica de recomeço do processo penal desde o seu

início (i.e., repetição do inquérito), que era o efeito procurado através

da importação do referido instituto para o processo penal neste

contexto; por outro lado, essa solução baseava-se, em última análise,

no pressuposto inadmissível de que caberia nas funções do juiz de

instrução dirigir o Ministério Público, ao indicar-lhe a necessidade de

reformar uma investigação supostamente deficiente.

ii. A tese da organização de um novo processo com todos os factos: a solução de

organização de um novo processo passava novamente pelo recurso

às normas do processo civil, com base no artigo 4.º CPP, aplicando-

se agora o regime da absolvição da instância e arquivando-se o

processo. A solução seria, pois, a da não prossecução dos autos de

instrução emitindo-se uma decisão de forma. Rigorosamente, nem se

poderá falar aqui de não pronúncia, porque a debruçar-se sobre o

fundo da questão, o juiz só o fará na estrita medida do necessário à

apreciação da questão prévia da falta de poderes de cognição do juiz.

Assim, o Juiz de Instrução Criminal proferirá uma decisão instrutória

que não é de mérito, porque antes deparou com o obstáculo da falta

dum verdadeiro pressuposto processual, relativo ao objeto do

processo (artigo 308.º, n.º3 CPP). Esta solução parecia, portanto,

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✒ basear-se na ideia de que a falta de acusação do Ministério Público

relativamente aos factos que viriam a consubstanciar a alteração

substancial ocorrida na instrução tornaria o juiz de instrução

absolutamente incompetente (i.e., uma incompetência material) o que

valeria como falta de um pressuposto processual, dando lugar à

absolvição da instância. Também tive ocasião de rejeitar esta solução,

à parta a consideração pelo seu eventual rigor técnico, pois ela

contrariava, aliás, frontalmente, o princípio da legalidade, aderindo,

ao invés, à inadmissível (no quadro do sistema processual vigente)

matriz da oportunidade. Materialmente, a solução ora rejeitada

implicaria que o juiz de instrução, dispondo de matéria suficiente para

proferir um despacho de pronúncia pelos factos constantes do objeto

do processo, considerava que era inoportuno fazê-lo, em atenção à

proibição de juntar-lhes os factos que constituíam a alteração

substancial.

iii. A tese da continuação do processo em curso, com preterição absoluta de

conhecimento da alteração substancial de factos: tudo visto e somado, a única

resposta compatível com a concreta estrutura acusatória do nosso

processo penal, no qual a função do juiz de instrução é materialmente

judicial (e não materialmente policial ou de averiguações), era a última

das três:

1. Nada fazer quando ocorresse, na fase de instrução (por

maioria de razão, o mesmo valia na fase de julgamento), a

descoberta de factos substancialmente diversos mas

inextrincáveis do objeto do processo em curso, devendo

então o processo prosseguir os seus trâmites com inexorável

sacrifício parcial do conhecimento da verdade material.

Falhava aqui, portanto, a concordância prática do interesse do

arguido na sua defesa pertinente e eficaz com o interesse público no

esclarecimento da verdade material. Prevalecia, ao invés, um único

interesse, o do arguido. Esta conclusão não devia, no entanto, causar

estranheza porque não se tratava aqui de arruinar o interesse público

na punição do criminoso, quando fosse caso disso, mas tratava-se

apenas de escamotear alguns concretos fatores de avaliação da

quantidade de pena e isso era seguramente menos dramático do que

a ruína daquele interesse público. Enfim, eram os casos em que as

circunstâncias modificativas agravantes especiais nominadas ou até

os exemplos-padrão referidos a uma cláusula agravante determinada

(a técnica incriminatória usada no artigo 132.º CP) nunca teriam, por

definição, a relevância suficiente para sustentar sozinhos um objeto

de processo à parte. O problema da alteração substancial dos factos

já não se punha quanto ao conhecimento das circunstâncias

modificativas comuns nominadas (a única: a reincidência, nos termos

dos artigos 75.º e 76.º CP) porque, embora não se tenha optado entre

nós pelo sistema da césure, o CPP confere autonomia às operações de

determinação da sanção no contexto da deliberação e violação da

decisão, sem contudo constituir com elas uma particular fase do

julgamento, sendo só nessa altura que se deverá dar relevo ao

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§

conhecimento dos antecedentes criminais do arguido (e, portanto, à

efetiva consideração da reincidência), nos termos do artigo 369.º CPP.

b. A alteração substancial de factos não autonomizáveis no julgamento:

na fase de julgamento, as respostas possíveis só podiam agora passar por uma

de duas:

i. A organização de um novo processo penal com todos os factos;

ii. A continuação do processo em curso.

Ambas as respostas repetiam os argumentos já invocados a propósito da

verificação do mesmo problema na fase de instrução. Nesta fase do processo,

Frederico Isasca já não defendia a suspensão da instrução, mas antes a

consideração dos factos não autonomizáveis dentro da medida da pena legal

que coubesse aos factos do objeto processual inicialmente proposto.

Escusado será dizer que a minha preferência ia para a tese da continuação do

processo em curso.

3. Na revisão de 2007 do Código de Processo Penal: a Unidade de Missão para a

Reforma Penal assumiu a necessidade de a lei dar resposta expressa ao problema da

alteração substancial de factos não autonomizáveis, quer na fase de instrução, quer

na fase de julgamento. No Conselho da UMRP vingou a doutrina da continuação do

processo em curso, com preterição absoluta de conhecimento da alteração

substancial de factos. O regime da alteração substancial de factos tem de respeitar a

estrutura acusatória do processo penal. A revisão de 2007 do Código contribuiu para

tornar isso claro, ao afastar explicitamente as soluções doutrinárias e jurisprudenciais

que punham isso em causa. Na verdade, o fragmento textual nem implica a extinção

da instância, que consta quer da parte final do n.º3 do artigo 303.º CPP, quer da parte

final do n.1º do artigo 359.º CPP, tem de ser interpretado no sentido de que a lei

afasta agora qualquer decisão meramente formal de extinção da instância,

designadamente a solução da absolvição da instância. A lei consagra agora a solução

do prosseguimento da instrução ou do julgamento, com sacrifício dos factos novos

não autonomizáveis.

Casos peculiares: peculiares são os casos em que a matéria da alteração substancial de

factos implica a subsunção dos factos num tipo de crime alternativo com respeito àquele que

estava pressuposto no objeto do processo em curso. Será que esses factos descobertos na

instrução ou no julgamento, aliás incompatíveis com o objeto do processo em curso,

deveriam dar lugar à abertura de inquérito? Nesse caso, será que o processo em curso deveria

acabar num despacho de não pronúncia ou numa sentença absolutória, consoante a fase do

processo? Mas esta solução só seria possível se estivesse especialmente prevista na lei. Caso

contrário, o mais certo é serem invocados contra ela o caso julgado material e a proibição de

novo processo penal com um objeto parcialmente coincidente, aliás numa parte muito

significativa (i.e., o mesmo agente e a mesma vítima, o mesmo objeto da ação, o mesmo bem

jurídico, etc.). Será que há melhores soluções?

1. A discussão na Unidade de Missão para a Reforma Penal: concordando

com o sentimento geral dos membros do Conselho da UMRP quanto à solução da

continuação do processo em curso com preterição absoluta de conhecimento da

alteração substancial de factos, oportunamente manifestei, no entanto, o meu receio

de que o articulado que vingou não fosse suficiente para impedir futuras dúvidas

acerca do tratamento a dar aos casos em que a matéria da alteração substancial de

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✒ factos implicasse a subsunção dos factos num tipo de crime alternativo por

comparação com o objeto do processo em curso.

2. A solução para os crimes alternativos: na falta de solução legal expressa para

o problema da alteração substancial de factos que implique a subsunção dos factos

num tipo de crime alternativo por comparação com o objeto do processo em curso,

a verdade é que o problema não deixará de se pôr na prática. Não se pode negar que

faça parte do núcleo essencial do facto punível a descrição da ação típica, como já

dizia Keetsin Liu, discípulo de Beling. Por conseguinte, a identidade do facto muda

se for outra a atividade imputada ao arguido. Neste caso, a continuação do processo

com preterição absoluta de conhecimento da alteração substancial de factos

redundaria numa decisão de mérito de conteúdo absolutório, pois resultava da prova

produzida em audiência que o arguido não realizara a atividade descrita no libelo,

mas outra, igualmente punível, só que não constante da acusação e pela qual não

poderia ser condenado no processo em curso. Também não poderia ser julgado em

processo autónomo, sob pena de violação do caso julgado material e do princípio ne

bis in idem. A solução é difícil de aceitar, pois implica um sacrifício total da pretensão

punitiva, em radical contradição com os factos entretanto revelados, mas não há

como escapar a esta conclusão. Não cremos que ainda possa valer a doutrina

expendida no Ac. TC n.º137/2007, 30 março 2007, onde se decidiu

«não julgar inconstitucional a norma, extraída dos artigos 289.º, a 493.º, n.º2

CPC e 1.º, alínea f), 4.º, 359.º, n.º1 e 379.º, n.º1, alínea c), 1.ª parte, CPP, segundo

a qual, comunicada ao arguido alteração substancial dos factos descritos na acusação,

resultante da prova produzida em audiência – em situação em que os novos factos

apurados formam, juntamente com os constantes da acusação, uma unidade de sentido

que não permite a autonomização – e, opondo-se o arguido à continuação do

julgamento pelos novos factos, o tribunal pode proferir decisão de absolvição da

instância quanto aos factos constantes da acusação, determinando a comunicação ao

Ministério Público para que este proceda pela totalidade dos factos».

Tal solução deixou de se poder aplicar após a revisão de 2007, pois mudou a

lei e o legislador, que já conhecia esta decisão do Tribunal Constitucional,

preferiu solução diversa, mais compatível com a natureza acusatória do

processo penal português. De resto, o Tribunal Constitucional já teve ocasião de

se pronunciar sobre o novo regime legal, no Ac. TC n.º226/2008, 21 abril 2008,

concluindo

«pela não inconstitucionalidade da norma do artigo 359.º CPP, na redação resultante da Lei

n.º48/2007, 29 agosto, interpretada no sentido de, perante uma alteração substancial dos factos

descritos na acusação ou na pronúncia, resultante de factos novos que não sejam autonomizáveis em

relação ao objeto do processo – opondo-se o arguido à continuação do julgamento pelos novos factos

–, o tribunal não pode proferir decisão de extinção da instância em curso e determinar a comunicação

ao Ministério Público para que este proceda pela totalidade dos factos».

Na fundamentação do aresto, ficou, porém, consignado um apontamento que ganha

profunda acuidade no caso dos crimes alternativos, onde o défice de proteção de

bens jurídicos pode, a final, assumir um caráter dramático. Na verdade, diz-se no

aresto que

«o que fica fora do âmbito de consideração na sentença e, por essa via, escapa

definitivamente à sanção penal, são circunstâncias modificativas especiais que nunca

teriam relevância suficiente para sustentar um processo à parte. O que só pode

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§

significar que o bem jurídico nuclear suscetível de justificar a incriminação encontra

ainda o mínimo de proteção penal, sendo apenas escamoteados alguns concretos fatores

de intensificação dessa proteção».

Não é isto que se passa nos crimes alternativos.

VI – As medidas de Coação e de Garantia Patrimonial

§16.º - As medidas de coação

Os critérios de aplicação das medidas de coação: a aplicação de uma medida de

coação obedece:

1. Princípios: são princípios das medidas de coação (artigos 191.º a 195.º CPP), aliás,

extensivos às medidas de garantia patrimonial (artigos 227.º a 228.º CPP):

a. A legalidade das medidas de coação e de garantia patrimonial (artigo

191.º, n.º1 CPP);

b. A proporcionalidade em sentido amplo (artigo 193.º CPP):

i. Necessidade;

ii. Adequação; e

iii. Proporcionalidade

c. A judicialidade (artigo 194.º, n.º1 e 2 CPP);

d. A subsidiariedade da obrigação de permanência na habitação e da

prisão preventiva (artigo 193.º, n.º2 CPP);

e. O direito de audiência e defesa (artigo 194.º, n.º3 CPP).

2. Condições gerais: são condição gerais das medidas de coação (artigos 191.º a 195.º

CPP), também extensivas às medidas de garantia patrimonial (artigos 227.º a 228.º

CPP):

a. A taxatividade das medidas de coação e de garantia patrimonial (artigo

191.º CPP);

b. A prévia constituição de arguido (artigo 192.º, n.º1 e 58.º, n.º1, alínea b)

CPP)

3. Pressupostos gerais: os pressupostos gerais das medidas de coação são

reconduzíveis às categorias tradicionais do:

a. Fumus comissi delicti: é necessário que seja possível formular um juízo de

indiciação da prática de certo crime doloso pelo agente (i.e., a convicção

relativamente à prática de crime doloso pelo arguido e, pela negativa, a falta

de fundados motivos para crer na existência de qualquer causa de isenção de

responsabilidade ou de extinção do procedimento criminal);

b. Periculum libertatis: é necessário, ainda, que se verifique algum destes

pericula, referido nas alíneas do artigo 204.º CPP:

i. Evitar a figa do arguido;

ii. Anular o perigo dessa fuga;

iii. Prevenir a perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo;

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✒ iv. Esconjurar a perturbação da ordem e da tranquilidade públicas;

v. Riscos de continuação da atividade criminosa por parte do arguido.

4. Requisitos específicos: há, ainda, a considerar os requisitos específicos de cada uma

das medidas de coação, que estudaremos separadamente para cada uma delas.

5. Critérios de escolha: são critérios de escolha das medidas de coação, no caso

concreto (artigo 193.º CPP):

a. A necessidade;

b. A adequação;

c. A proporcionalidade.

Ou seja, as medidas escolhidas devem ser necessárias e adequadas às exigências

cautelares impostas pelo caso concreto e devem ser proporcionais à gravidade do

facto punível em apreço.

As medidas de coação em particular: as medidas de coação admissíveis por lei são as

seguintes:

1. O termo de identidade e residência: o termo de identidade e residência é a única

medida de coação que pode ser aplicada no âmbito de qualquer processo, comum ou

especial, independentemente da espécie ou gravidade da pena aplicável e devendo ser

aplicada sempre que se verifique a constituição de arguido (artigo 196.º, n.º1 CPP).

Além disso, cabe dizer que o termo de identidade e residência (TIR) é sempre

cumulável com qualquer outra medida de coação (artigo 196.º, n.º4 CPP). Alguns

setores da doutrina contestam que seja uma verdadeira medida de coação, desde logo

porque não é abrangido pelos pressupostos gerais de aplicação das medidas de

coação. Será o TIR um mero ato de identificação do arguido, a fim de garantir que

este possa sempre vir a ser encontrado e visado das suas obrigações no processo?

Não parece que seja só isso, muito menos depois da alteração ao Código de 1998,

fazendo com que o TIR passasse a garantir o julgamento na ausência de arguido

(artigos 196, 333.º, 334.º e 380.º-A CPP). De resto, o TIR já antes arrastava consigo

uma série de restrições à liberdade ambulatória dos arguidos, nos termos do artigo

196.º, n.º3, alínea b) CPP. Por tudo isso, deve ser considerado como uma autêntica

medida de coação.

2. A caução carcerária: já a prestação de caução, nos termos do artigo 197.º CPP,

constitui, indiscutivelmente, uma medida de coação. Esta medida nunca pode ser

aplicada pelo Ministério Público, mas só por despacho do juiz, embora na fase de

inquérito a sua aplicação tenha de ser requerida ao juiz de instrução pelo Ministério

Público, nos termos do artigo 194.º, n.º1 CPP, o que se compreende, aliás, por mor

de esta última entidade ser o dominus do processo na fase em causa (inquérito) e, por

isso mesmo, ser quem está em condições de antecipar as necessidades cautelares

correspondentes ao caso concreto.

3. A obrigação de apresentação periódica: a obrigação de apresentação periódica,

nos termos do artigo 198.º CPP, constitui uma mais intensa restrição de direitos

fundamentais, que também só pode ser aplicada por decisão judicial.

4. A suspensão do exercício de profissão, de função, de atividade e de direitos:

nalgumas circunstâncias, a continuação do exercício da profissão, função, atividade

ou direitos pode contender com a investigação do crime em causa, razão pela qual o

legislador criou a medida prevista no artigo 199.º CPP.

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§

5. A proibição de imposição de condutas: é a partir desta medida que o legislador

exige, como requisito específico, a prática de crime doloso, nos termos do artigo

200.º, n.º1 CPP.

6. A obrigação de permanência na habitação: a obrigação de permanência na

habitação não deve ser vista como prisão domiciliária, pois o arguido fica no seu

ambiente familiar/natural, podendo ser-lhe conferidas autorizações de saída para

cumprimento de obrigações de vária ordem (v.g., laborais, religiosas e outras). A

obrigação de permanência na habitação pode ser aplicada com recurso aos meios

técnicos de controlo à distância (vulgo, a pulseira eletrónica), nos termos do artigo

201.º CPP, sendo que, neste caso, os demais elementos do agregado familiar têm de

dar autorização para a vigilância eletrónica do domicílio. Nem sempre a obrigação de

permanência na habitação pode ser aplicada em vez de prisão preventiva, pois há

situações em que, por exemplo, a sua aplicação não impede a continuação da

atividade criminosa (e.g., o tráfico de estupefacientes a partir do domicílio).

7. A prisão preventiva: a prisão preventiva constitui a medida de coação mais grave

do sistema, só podendo ser aplicada subsidiariamente, nos termos do artigo 202.º,

n.º1 CPP. Na sequência da revisão do Código de 2007, o novo regime da prisão

preventiva foi muito criticado, sendo apontado como fautor de um aumento de

criminalidade violenta, aferido em função dos relatos de assaltos à mão armada

amplamente noticiados pelos meios de comunicação social. Foi dito que a nova

exigência, para aplicação da prisão preventiva, de que o crime fosse punido com pena

de prisão de máximo superior a cinco anos (artigo 202.º, n.º1, alínea a) CPP), em vez

dos anteriores três anos, teria obrigado à libertação de muitos presos preventivos. E

estes teriam aproveitado a liberdade recém-adquirida para se dedicar aos assaltos,

reconfortados pelos sinais de laxismo dados pelo legislador através da reforma do

processo penal. Ainda se teria de acrescentar aos efeitos perniciosos da alteração do

regime da prisão preventiva o facto de os juízes não poderem aplica-la a muitos dos

detidos que lhes eram presentes, desde logo porque se tornara mais difícil o

preenchimento dos requisitos específicos dessa medida de coação. O que,

supostamente, de novo acelerava o carrossel dos assaltos, posto que os delinquentes

eram imediatamente devolvidos à rua, aliás, com renovação dos ímpetos porque

ganhariam, entretanto, a sensação de impunidade. Porém, a verdade é que a alteração

legislativa não impedia, de maneira nenhuma, que aos roubos, ainda para mais à mão

armada, fosse aplicada a prisão preventiva. Só não seria aplicada se fossem

consideradas adequadas e suficientes outras medidas de coação menos gravosas, mas

isso resultava diretamente do princípio da necessidade, adequação e

proporcionalidade (Artigos 193.º, n.º1 e 2 e 202.º, n.º1 CPP), que não fora alterado

e, de mais a mais, é comum a todos os Estados de Direito. Tudo visto e somado, as

alterações ao regime da prisão preventiva não explicam a sua falta de aplicação aos

casos concretos que tanta celeuma provocaram na opinião pública. Curiosamente,

poucos falaram de que a prisão preventiva se podia impor ao arguido mesmo em

caso de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a três anos, se

fosse crime de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada (artigo

202.º, n.º1, alínea b) CPP). Ora, este também fora uma das novidades da revisão do

CPP de 2007. Menos ainda se falou do autêntico agravamento do regime resultante

da possibilidade de a prisão preventiva se elevar para metade da pena de prisão

concretamente aplicada, se o arguido tiver a sentença condenatória confirmada em

sede de recurso ordinário (artigo 215.º, n.º6 CPP). Uma reforma que foi acusada de

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✒ brandura para com os arguidos produziu, afinal, uma norma de extrema severidade.

Em 2010, o regime legal da prisão preventiva foi de novo objeto de alteração,

alargando-se consideravelmente o catálogo de crimes a que é aplicável, nos termos

do artigo 202.º, n.º1, alíneas b) a e) CPP.

A impugnação das medidas de coação: são três os possíveis meios de impugnação das

medidas de coação, a saber:

1. O pedido de revogação ou substituição das medidas (artigo 212.º, n.º4 CPP):

constitui uma espécie de reclamação para a entidade com competência para a

aplicação da medida, nos termos do artigo 212.º, n.º4 CPP. O pedido deve ser

justificado mediante a invocação da alteração das circunstâncias que determinaram a

aplicação da medida no primeiro momento;

2. O recurso ordinário (artigo 219.º CPP): pode ser interposto pelo Ministério Público

ou pelo arguido para impugnar a decisão proferida em 1.ª instância. É o meio normal

de impugnação de decisões judiciais, nos termos do artigo 219.º CPP, podendo

cumular-se até com a providência de habeas corpus. Não há qualquer relação de

litispendência ou de caso julgado entre o recurso e a providência de habeas corpus

(artigo 219.º, n.º2 CPP).

3. A providência de habeas corpus (artigo 222.º CPP): é admissível apenas nos casos

de prisão ilegal, constituindo uma garantia dos cidadãos, enquanto providência e

recurso urgente per saltum para o STJ, ainda que condicionado pelos fundamentos

expressamente previstos no artigo 222.º, n.º2 CPP.

VII – A sucessão de leis processuais penais materiais e o

princípio da aplicação da lei penal mais favorável2

§17.º - Aplicação do princípio da lei penal favorável à sucessão de

normas processuais penais materiais

Especificidades e autonomia do Direito Processual Penal: a doutrina e a

jurisprudência tradicionais restringiram, na generalidade, o problema do conflito temporal de

leis penais ao Direito Penal denominado material, ou seja, às normas relativas à hipótese

criminal (preceito incriminador) e à estatuição penal (preceito sancionatório). Aqui, como

vimos, as razões jurídico-políticas de garantia do cidadão e politíco-criminal da

indispensabilidade da pena determinaram, sucessivamente, a proibição da retroatividade da

lei penal desfavorável (lei incriminadora e lex severior) e a imposição da retroatividade da lei

penal favorável (lei discriminadora e lex mitior). Quanto à sucessão das leis de processo penal,

da organização judicial e da execução das penas, as referidas doutrina e jurisprudência,

partindo de uma errada e precipitadamente redutora conceção destas normas como de

2 CARVALHO, Américo A. Taipa de; Sucessão de Leis Penais; 3.ª edição revista e atualizada; Coimbra Editora; Coimbra, Junho de 2009; pp. 347 – 431.

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§

natureza exclusivamente processual, organizatória, técnica ou formal, defenderam o princípio

da sua aplicação imediata – tempus regit actum. O pensamento jurídico-penal tradicional

esqueceu-se de que, tal como ao chamado Direito Penal material, também no Direito

Processual Penal, no Direito da organização judiciária e no Direito da execução de penas

(sobretudo da pena de prisão), há normas que podem afetar os direitos individuais

fundamentais. A arbitrariedade legislativa e judicial – motivação e causa originárias da

consagração do princípio da legalidade penal e do seu corolário da proibição da retroatividade

penal desfavorável – tem, também nestes domínios do Direito Penal em sentido amplo mas

rigoroso, um propício campo de afirmação. Esta possibilidade real de arbítrio, através da

aplicação retroativa de alterações legislativas destas categorias de normas, não foi tida em

atenção. Assim, a generalidade dos autores contentou-se com a superficial afirmação da sua

natureza processual-técnica e com o consequente princípio da aplicação imediata das normas

processuais penais, princípio que estendeu às normas sobre a constituição e competência dos

tribunais criminais e sobre a execução das penas. Quanto ao cumprimento da pena de prisão,

agravava-se, ainda, a situação jurídica do recluso com a atribuição à Administração da

competência para superintender e decidir do modus de execução da pena. Paulatinamente, a

consciência jurídico-política e político-criminal vai-se apercebendo de dois aspetos

convergentes no sentido de porem em questão o pacífico status quo jurídico-penal. Por um

lado, vai-se afirmando a ideia de que o processo penal – dada a especificidade e autonomia

dos pressupostos, da natureza e da finalidade da responsabilidade penal face à

responsabilidade civil – é autónomo do processo civil e de que as leis processuais penais não

se reduzem a meras normas formulárias. No Direito Processual Penal, há normas que

condicionam, positiva (pressupostos processuais que são verdadeiros pressupostos

adicionais de punição: v.g., queixa ou acusação particular) ou negativamente (impedimentos

processuais que são verdadeiros impedimentos de punição: v.g., prescrição do procedimento

criminal), a responsabilidade penal; há normas que dizem diretamente respeito aos direitos e

garantias de defesa do arguido; há, ainda, normas que afetam direta, incisiva e gravemente o

direito fundamental da liberdade. Por outro lado, vai-se gerando a consciência de que o

campo de aplicação dos princípios da irretroatividade da lei penal desfavorável e da

retroatividade da lei penal favorável é mais amplo do que o tradicionalmente definido. As

implicações práticas destes princípios aumentam na proporção do aprofundamento e re-

consciencialização das genuínas e perenes razões de garantia política e de máxima restrição

possível da pena, razões que determinam a consagração daqueles princípios. A primeira

manifestação desta dupla e convergente consciencialização jurídico-penal da especificidade e

autonomia do processo penal face às outras espécies de processo, nomeadamente ao

processo civil, e da distinção, no âmbito do Direito Processual Penal, entre normas de

conteúdo material – as que condicionam a responsabilização penal ou que contendem com

os direitos fundamentais do arguido e do recluso – e as normas exclusivamente processuais

ou formais – as que estabelecem as formalidades do procedimento criminal –, dizia, a

primeira manifestação deu-se com o instituto da prescrição do procedimento criminal. Em

1988, afirmava Figueiredo Dias: há

«extensas divergências entre cada um dos principais tipos processuais, respeitantes ou à sua

estrutura ou, sobretudo, aos seus fundamentos e princípios e às suas formas concretas de

realização».

Hoje, é reconhecida a

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✒ «necessária autonomia funcional e teleológica de cada tipo de processo. (…) Ao processo civil

cabe uma natureza privatística e ao processo penal, pelo contrário, uma natureza e uma

estrutura publicista».

Diferentemente do que se passa com outros ramos do Direito, há entre o Direito Penal e o

Processo Penal uma verdadeira relação de mútua complementariedade funcional, podendo

mesmo dizer-se relação de interdependência ou de implicação biunívoca: o processo penal –

tal como qualquer processo – pressupõe o Direito Penal, e o Direito Penal – diferentemente

do que acontece com os ramos do Direito não sancionatório – só se concretiza através do

Processo Penal. O Processo Penal é, em rigor, o modus existendi do Direito Penal. O

pensamento jurídico-constitucional e jurídico-penal atual reconhece que, tal como o Direito

Penal, também o processo penal é o espelho da forma do Estado, pois o que no Processo

Penal jogam-se os direitos e as liberdades fundamentais. Neste sentido, são exatas as palavras

de Sax: tal como a do Direito Penal, também

«a história do Direito Processual Penal é, ao mesmo tempo, uma parte essencial da história

das relações entre o Estado e o Cidadão».

Normas processuais penais materiais e normas processuais penais formais: o

esquecimento prático desta especificidade e autonomia do processo penal, aliado a um

viciado método de dedução conceitualístico-formal, conduziu à aceitação superficial do

princípio da aplicação imediata das leis processuais penais na sua globalidade. Dominados

por uma visão imediatista, segundo a qual toda a norma que diretamente condicionasse (v.g.,

queixa e prescrição), orientasse (v.g. espécies de prova) ou pressupusesse (v.g. prisão

preventiva) o processo era uma norma exclusivamente processual, partiam para a afirmação

indiscutível do princípio da aplicação imediata. Às objeções de que tal aplicação imediata

violava a proibição da retroatividade da lei penal (desfavorável) respondia-se,

secundarizando-se o ponto decisivo do tempus delicti, que não, retorquindo que a lei nova se

aplicava a atos ou situações que – embora inseridos num processo iniciado e determinado

por uma infração praticada na vigência da lei anterior – decorriam já na vigência da nova lei:

tempus regit actum. Numa palavra:

1. Menosprezavam-se as rationes jurídico-política e político-criminal da

aplicação da lei penal mais favorável: esquecia-se que condicionam a efetivação

da responsabilidade penal contendem diretamente com os direitos do arguido ou do

recluso;

2. Descurava-se a distinção entre normas processuais penais materiais e normas

processuais penais formais: estas, regulamentando o desenvolvimento do

processo, não produzem os efeitos jurídico-materiais derivados das primeiras.

Referimos, anteriormente, ao passado. No presente, contudo, o vício metodológico

apontado continua a ser frequente, embora cresça um movimento doutrinário no sentido

desejado e embora cresça um movimento doutrinário no sentido desejado e imposto pelas

razões de ser do princípio da aplicação da lei penal favorável e apoiado numa correta

metodologia teleológico-material. O vício metodológico consiste em partir de argumentos

superficiais, formais e, portanto, inconsistentes para decidir a natureza jurídica (material ou

processual) das normas penais em casua e, no momento seguinte, deduzir formalmente da

qualificação (natureza) jurídica as soluções para os problemas concretos: se a lei (norma)

nova é de natureza material, rege o princípio da aplicação da lei favorável (proibido da

retroatividade, se é desfavorável; retroatividade, se é favorável); se tem natureza processual,

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aplica-se imediatamente. Elucidativo desta imperfeição metodológica – que conduz a

fundamentações inseguras de decisões hesitantes – é o percurso seguido pela jurisprudência

e por grande parte da doutrina portuguesas, em matéria de sucessão de leis que alteram os

pracos de prescrição do procedimento criminal. Raciocinava, nos seguintes termos, o STJ,

ao fundamentar o Assento 19 novembro 1975:

«o alegado princípio de a prescrição ser matéria de Direito substantivo e não adjetivo, e estar,

por isso, sujeita ao artigo 6.º referido, não leva, de modo nenhum, a afastar a aplicação da lei

nova, visto que tal aplicação é possível, sem que haja retroatividade».

Comentário: a doutrina, rectius, a solução fixada pelo Assento (aplicação so prazos em curso

da Lei Nova, que os encurte) foi correta, mas a fundamentação é confusa e insegura. Esta

inconsistência – resultante de uma imperfeita apreensão e interiorização da ratio político-

criminal da prescrição do procedimento criminal – manifestou-se na relutência do STJ em

aderir abertamente ao princípio da aplicação retroativa da lei nova processual mais favorável

(na medida em que reduzia o prazo da prescrição). O STJ teria, certamente, presente que

tanto Carvalho Fernandes de Ferreira como Eduardo Correia defendiam, embora sem razão,

a aplicação imediata destas leis aos prazos em curso. Sem razão, porque, basicamente, se

tratava, segundo estes autores, de afirmar o princípio da aplicação imediata como

consequência lógico-dedutiva de uma acrítica qualificação processual das normas sobre a

prescrição do procedimento criminal; acrítica qualificação, porque desatendia as razões

materiais jurídico-política (proibição da retroatividade da lei penal que alargue os prazos) e

político-criminal (imposição da retroatividade da lei que encurte os prazos) que iluminam o

critério da resolução do conflito temporal de leis que alteram os prazos da prescrição penal.

Tudo isto facilitado pela deslocação artificial do decisivo ponto de referência para o

momento do preenchimento do prazo. Mutatis mutandis, ocorreram, nesta matéria,

desatenções análogas às que permitiram a retroatividade – sob a designação de aplicação

imediata – das medidas de segurança mais gravosas e que levaram parte da jurisprudência a

defender, incompreensivelmente, a aplicação imediata da lei nova que declare incaucionáveis

certos crimes (prisão preventiva ope legis). Se a fundamentação foi insegura e confusa, a

decisão doutrinal concretizada no Assento propriamente dito conduz a interpretações

contraditórias quanto à resolução do problema em que a lei nova estabeleça um prazo mais

longo. Na verdade, estas afirmações tinham por consequência, logicamente necessária, que

tanto se aplicariam imediatamente aos prazos a decorrer a lei nova que os encurtasse como

a que os alongasse. A prova do que acabei de afirmar quanto aos equívocos e contradições

práticos, a que conduz a inadequada metodologia referida, está nas divergentes e

contrapostas posições que resultaram do Assento – e respetiva fundamentação:

1. Eduardo Correia: afirmou, em síntese que a doutrina firmada corresponde à melhor

orientação; é certo que uma coisa é a prescrição em Direito Criminal, outra em

Direito Civil; depois de reconhecer que já tinha defendido, na sequência de Beleza

dos Santos, que a lei sobre a prescrição era de aplicação imediata por ser a prescrição

de natureza eminentemente adjetiva, acaba por modificar a sua posição, embora

invocando para tal o facto de o STJ considerar a prescrição como instituto de

natureza material e, então, haver que tirar as conclusões que se impõem e que,

segundo Eduardo Correia são as seguintes:

«o reconhecimento do ponto de vista de que a prescrição do procedimento criminal é de

natureza substantiva, parece envolver, além do mais, as implicações referidas para a

hipótese, paralela à do Assento, de uma lei nova prolongar os prazos de prescrição.

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✒ Quer dizer, então o princípio da aplicação da lei mais favorável exigirá o respeito do

prazo anterior».

2. Maia Gonçalves: afirmava:

«quando uma nova lei altera os prazos da prescrição da pena ou do procedimento

criminal, deve aplicar-se imediatamente; (…) [é que] mesmo que os prazos sejam

dilatados, não há, aqui, problema de retroatividade, pois se trata de aplicar a nova

lei a causa que está a decorrer. Esta solução foi seguida pelo Assento 10 novembro

1975».

Esta acrítica e, teleológico-materialmente, não fundamentada imputação de uma natureza

jurídica (exclusivamente) processual às normas, tradicional e rotineiramente, integradas no

Direito Processual Penal, levou, como se viu, a soluções incorretas, sob os, nesta matéria,

decisivos pontos de vista jurídico-político e político-criminal. Em muitos casos, não apenas

incorretas e injustas, mas claramente inconstitucionais. Já Henriques da Silva chamava a

atenção para a necessidade de distinguir entre o que eu designei de normas processuais penais

materiais e normas processuais penais formais. Observou este autor:

«As leis formulárias [processuais] podem envolver frequentemente offensa de direitos, e, sempre

que possa haver offensa de direitos fixados à sombra da lei, é substantiva a lei formularia e

não deve aplicar-se retroactivamente, por implicar com os direitos dos cidadãos. É preciso não

confundir as leis formularias propriamente ditas com as relativas aos direitos individuaes. Estas

têm um carácter constitucional, sendo exemplos deste caso as disposições dos §§7.º, 8.º, 11 e

16.º do artigo 145.º da Carta».

Contra a posição tradicional e, ainda, porventura, maioritária no Direito Comparado – que

imputava e imputa, indiscriminadamente, às normas vulgarmente integradas no Direito

Processual Penal, uma exclusiva natureza jurídica processual –, contra a sua viciada metódica

formalístico-conceitualístico-dedutiva – que, acriteriosa e voluntaristicamente, extraía

daquela superficial e arbitrária qualificação processual a exigência da aplicação imediata,

menosprezando a função de garantia política do cidadão contra o exercício arbitrário e,

eventualmente, persecutório do ius puniendi estadual e a razão político-criminal da

indispensabilidade e da máxima restrição possível da pena – está em crescendo uma corrente

que acolhe uma criteriosa perspetiva material – que distingue, dentro do Direito Processual

Penal, as normas processuais penais materiais das normas processuais penais formais – e uma

hermenêutica teleológico-material cujos cânones – conferindo o devido primado às

(investigações das) verdadeiras rationes jurídico-política e político-criminal do princípio da

aplicação da lei penal favorável – determinam que à sucessão de leis processuais penais

materiais sejam aplicados o princípio da irretroatividade da lei desfavorável e o da

retroatividade da lei favorável.

1. Nesta linha, afirma M. Leone: o regime italiano correspondente ao nosso artigo 2.º

CPP aplica-se não apenas à norma substantiva mas também a toda a larga esfera de

normas processuais que toca o interesse do arguido.

2. M. Cappelleti contesta, por sua vez, a classificação tradicional das normas penais

em normas materiais e normas processuais, contrapondo uma classificação

teleológico-material de normas de garantia e normas técnico-processuais, precisando

que a nova categoria das normas de garantia não serve objetivos conceituais, mas

objetivos de soluções para uma série de problemas de grande importância prática,

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como a sucessão de leis no tempo, a taxatividade ou liberdade dos meios de prova

penais, etc.

3. Tiedmann destaca a exigência metodológica e a importância prática da distinção das

normas processuais em normas processuais meramente formais ou técnicas e normas

processuais substancialmente materiais.

4. Denunciada por R. Schmitt é a ilegítima e infundamentada redução, por parte da

doutrina tradicional, do problema da proibição da retroatividade, em Direito

Processual Penal, quase exclusivamente à prescrição do procedimento criminal.

5. G. Levasseur critica a doutrina dominante e analisa, desenvolvidamente, a relevante

questão da distinção entre as por mim designadas normas processuais penais

materiais e normas processuais penais formais. São deste autor as seguintes

afirmações:

a. É abusiva a classificação tradicional em leis de fundo e leis formais,

reservando a primeira designação para o Direito Penal, e incluindo na

segunda todas as restantes leis;

b. Esta classificação esquece que a categoria das leis formais é complexa

e heterogénea, abrangendo normas sobre constituição e competência dos

tribunais criminais, processo penal e normas sobre a execução das penas.

O princípio da proibição da retroatividade da lei penal – que, servindo de garantia política

contra a arbitrariedade legislativa, judicial ou penitenciária na função punitiva, tutela,

portanto, a liberdade e os direitos fundamentais do cidadão – aplica-se a todo o Direito

repressivo. E, segundo Levasseur,

«o Direito repressivo, em cada um dos seus aspetos, limita e ameaça a liberdade dos cidadãos,

pelo que as regras que ele estabelece são impostas sob a mais estrita necessidade. É assim para

as leis do processo e da condução do processo penal, e para as leis e regulamentos sobre as

modalidades de execução das penas e medidas de segurança. (…) A regra da não retroatividade

das leis repressivas, ligada como está ao princípio da legalidade da repressão, deve ter

logicamente o alcance deste princípio, isto é, aplicar-se a todas as leis repressivas, a todas as

regras concernentes à tarefa dos poderes públicos na luta contra a delinquência, desde a

investigação das infrações até ao termo da execução da sanção pronunciada».

Deste Direito repressivo e da consequente proibição da retroatividade das suas normas

desfavoráveis só se excluem as normas processuais penais que se referem aos atos de pura

técnica processual, valendo aqui, e só aqui, o princípio da aplicação imediata – tempus regit

actum – respeitando-se os atos praticados e não podendo ser postos em questão, na sequência

de uma lei nova, quer esta seja ou não mais favorável à pessoa perseguida. Enquanto que ao

Direito Processual técnico pertencem normas sobre, p.e., redação do auto de notícia, forma

de citação, modo de realizar buscas ou apreensões, audição de testemunhas, já ao Direito

repressivo, pertencem as normas sobre as condições de procedibilidade, espécies de prova e

sua eficácia probatória, sobre a organização e competência dos tribunais penais, sobre o juízo

de culpabilidade, determinação concreta da pena e respetiva fundamentação, sobre graus de

recurso, sobre a liberdade condicional, sobre a reformatio in pejus.

A sujeição das normas processuais penais materiais ao princípio

constitucional da aplicação da lei penal favorável: proibição da retroatividade

desfavorável e imposição da retroatividade favorável (artigos 18.º, n.º2 e 3, 29.º,

n.º4, 2.ª parte, e 282.º, n.º3, 2.ª parte CRP e 2.º, n.º4 CP): toda a argumentação

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✒ desenvolvida, ao longo desta investigação, não só aponta como também demonstra que os

princípios constitucionais da proibição da retroatividade da lei penal desfavorável e da

imposição da retroatividade da lei penal favorável se aplicam às normais processuais penais

materiais. A ratio de garantia política do cidadão face a possíveis decisões legislativas ou

judiciais arbitrárias ou mesmo persecutórias, ao mesmo tempo que determinou a consagração

constitucional da proibição da retroatividade da lei penal posterior desfavorável, determina a

sua aplicabilidade às referidas normas processuais penais materiais – ubi eadem ratio, ibi eadem

iuris dispositio. Também nestas, os direitos do arguido e do recluso estão em causa, não

deixando, portanto, de estar sempre presente a possibilidade de o poder punitivo tentar

servir-se de alterações legislativas posteriores ao tempus delicti para agravar retroativamente a

situação jurídica dos referidos arguido ou recluso. Creio que, depois da denúncia feita da

errada e deturpada metodologia formal e conceitualistica – que, no passado, foi adotada pela

maioria da jurisprudência e por parte da doutrina –, não se virá com o superficial argumento

literal de que o artigo 29.º CRP não fala de leis processuais, mas de penas, de medidas de

segurança e de leis penais. A um tão despiciendo argumento literal haveria que responder em

resumo:

1. Não é pelo facto de a 2.ª parte do n.º4 do artigo 29.º CRP se referir somente a

leis penais que alguém poderá vir dizer que a CRP, na mesma disposição,

teleológico-materialmente interpretada, não abrange também a aplicação

retroativa das medidas de segurança mais favoráveis;

2. Se uma tal argumentação formal-literal tivesse alguma valia, então haveria

que contra-argumentar que a mesma disposição fecha com um termo

jurídico-processual arguido;

3. Os deputados constituintes não são, necessariamente, especialistas em

técnica legislativa – o que se compreende, em parte, embora não fosse nada mau

que o fossem. Mais censurável é a redação do artigo 2.º CP;

4. O artigo 29.º CRP assume-se, no campo da responsabilização penal, como

garantia dos direitos e liberdades, direitos e liberdades que tanto podem ser

arbitrariamente afetados pela aplicação retroativa de leis sobre criminalização

ou agravação de pena como pela mesma retroatividade de alterações

legislativas desfavoráveis de normas processuais penais materiais.

A ratio político-criminal constitucionalmente consagrada na Lei Fundamental portuguesa,

conduz, por sua vez, à aplicação retroativa das normas processuais penais materiais

favoráveis. Favoráveis, quer quando da sua aplicação resulta a impossibilidade ou redução

das possibilidades de aplicar a pena (caso do encurtamento dos prazos de prescrição ou da

exigência de queixa), em consequência da nova conceção político-criminal que a lei nova

incarna, quer quando da sua aplicação aumentam os direitos de defesa do arguido. Poder-se-

á até afirmar que, mesmo que não existisse a expressa imposição constitucional da aplicação

retroativa das leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido (artigo 29.º, n.º4, 2.ª parte

CRP), tal imposição não deixava de, jurídico-constitucionalmente, se impor por virtude do

artigo 18.º CRP que não só proíbe a retroatividade das leis restritivas dos direitos, liberdades

e garantias (n.º3, 2.ª parte), como também impõe que as restrições destes direitos, liberdades

e garantias se limitem ao indispensável para realizar os fins prosseguidos pelas leis que

contêm as mencionadas restrições. Quer dizer: o princípio da irretroatividade desfavorável e

da retroatividade favorável da lei penal – em que se incluem as normas processuais penais

materiais –, afirmando no artigo 29.º CRP, não será mais do que a concretização, no campo

jurídico-penal, das razões de garantia política e da máxima restrição possível das intervenções

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estaduais nos direitos, liberdades e garantias, proclamadas pelo artigo 18.º CRP. Deste modo,

tem de concluir-se que a sucessão de leis processuais penais materiais rege-se pelos princípios

constitucionais da proibição da retroatividade da lei penal desfavorável e da imposição da

retroatividade da lei penal desfavorável e da imposição da retroatividade da lei penal favorável.

Estes princípios, que foram pelo artigo 29.º CRP elevados à dignidade constitucional, estão

consagrados no artigo 2.º, n.º4 CP. Apesar de o inovador artigo 5.º CPP 1987 referir, no n.º2,

alínea a), a aplicabilidade da lei processual vigente no início do processo penal, quando da

aplicação imediata da lei nova resultar um agravamento sensível e ainda evitável da situação

processual do arguido, nomeadamente do seu direito de defesa, há que afirmar claramente

que todo este artigo só é aplicável às leis (normas) processuais penais formais. Nestas, sim, o

princípio geral é o da aplicação imediata – tempus regit actum (artigo 5.º, n.º1 CPP) –, sendo a

exceção a aplicação da Lei Nova só aos processos iniciados depois da sua entrada em vigor,

o que significa a ultra atividade da Lei Antiga (artigo 5.º, n.º2, alínea b) CPP). Esclareça-se,

ainda – e para evitar que a jurisprudência se aproveite do disposto nesta alínea a) para se

radicalizar na errada e inconstitucional doutrina da aplicação imediata da lei processual penal,

independentemente de se tratar de normas exclusivamente processuais (normas processuais

penais formais) ou de normas mistas (normais processuais penais materiais) – esclareça-se,

dizia, que o momento decisivo para determinar, no caso de conflito temporal de leis

processuais penais materiais (onde se incluem as normas sobre o direito de defesa do arguido,

referidas, indevidamente, na alínea a)), a lei aplicável não o momento em que se inicia o

processo, mas o tempus delicti. Em minha opinião, o disposto na referida alínea a) não devia

constar do artigo 5.º CPP, pois que versa uma questão que, por exigência constitucional e do

Estado de Direito, está submetida ao princípio da proibição da retroatividade da lei penal

desfavorável, e, portanto, é abrangida pelo artigo 2.º, n.º4 CP. Se a intenção foi boa, a

disposição é inútil e oxalá que não venha a servir de pretexto para decisões injustas e

inconstitucionais. Acabei de dizer que a intenção, que terá motivado a alínea a) do n.º2 do

artigo 5.º CPP 1987, deve ter sido boa, isto é, inspirada na boa doutrina, constitucionalmente

aconrada. Com efeito, Figueiredo Dias, Presidente da Comissão que elaborou o Projeto do

Código de Processo Penal, escreveu:

«Para além do nulo valor da invocação da instrumentalidade do processo – o princípio jurídico

constitucional da legalidade se estende, em certo sentido, a toda a repressão penal e abrange,

nesta medida, o próprio Direito Processual Penal. Aqui deparamos com o essencial: tal como

vimos suceder no problema da analogia, importa que a aplicação da lei processual penal a atos

ou situações que decorrem na sua vigência, mas se ligam a uma infração cometida no domínio

da lei processual antiga, não contrarie nunca o conteúdo da garantia conferida pelo princípio

da legalidade».

O mesmo autor, referindo, como primeiro princípio da política criminal, o princípio da sua

conformidade com a ideia do Estado de Direito ou, nesta aceção, o princípio da legalidade,

chama a atenção:

«Só que o princípio deve agora ultrapassar, numa dupla direção, o seu conteúdo tradicional:

deve, em certa medida, estender-se às matérias do processo penal; e deve… abarcar … a

proibição da retroatividade das medidas de segurança».

Anotando a Constituição, artigo 282.º, n.º3, 2.ª parte («quando a norma respeitar a matéria

penal»), escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira:

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✒ «o enunciado linguístico do preceito é suficientemente extenso para abranger, não apenas o

Direito material sancionatório, mas também as normas processuais de natureza substantiva».

Passemos à lei ordinária, ou seja, ao artigo 2.º CP. Como é sabido, não pode uma lei ordinária

restringir o alcance das normas constitucionais protetoras dos direitos, liberdades e garantias

(artigo 18.º, n.º2 CRP). E, na realidade, neste aspeto, o teor literal do artigo 2.º, n.º4 CP é

suficientemente amplo para compreender a sucessão de leis processuais penais materiais.

Eduardo Correia afirmou que a norma

«é por um lado, uma disposição suficientemente elástica para abarcar todos os problemas que

se entenda dever tratar na sua base; mas esta elasticidade permite, justamente, por outro lado,

que se deixe à doutrina e à jurisprudência campo livre para subsumir ou não nele certas questões,

entre as quais se poderá precisamente contar o caso da prescrição».

Quer dizer, e bem, que o n.º4 do artigo 2.º CP consagra um princípio geral que abrange

todo o caminho da responsabilização penal, sendo ilegítima e desrespeitadora da

Constituição toda a interpretação que ele pretenda excluir as normas processuais

penais materiais.

Tempus delictu (artigo 3.º CP) – irretroatividade da lei processual penal

material desfavorável e retroatividade da favorável: vimos que é proibida a aplicação

retroativa de normas processuais penais materiais desfavoráveis. Demonstrei que a ratio de

tal irretroatibilidade está na necessidade de garantir a pessoa contra o exercício arbitrário ou

mesmo persecutório do ius puniendi pelo legislador, pelo juiz do facto ou pelo juiz da execução

das penas. Tal como dissemos, a propósito do tempus delicti relativamente à irretroatividade

da lei criminalizadora e da lex severior, também, aqui, no caso da sucessão de normas

processuais penais materiais, o cumprimento daquela ratio de garantia jurídico-política do

cidadão e do consequente mandato constitucional de proibição da retroatividade

desfavorável passa pela determinação rigorosa do momento que nos indique qual a lei

temporalmente competente. Só com a fixação deste momento, teremos o critério para a

formulação de um juízo de irretroatividade ou de retroatividade na aplicação da lei nova

processual penal material. É, portanto, em função da razão de ser da proibição da

retroatividade que o momento-critério tem que se fixado. Assim foi historicamente para as

leis criminalizadoras ou agravantes da pena, assim, também por exigência teleológico-

material, o tem de ser para a sucessão de leis processuais penais materiais. Uma vez fixado o

momento determinante, então segue-se a aplicação da lei vigente neste referido momento

(Lei Antiga), quando a lei posterior (Lei Nova) for desfavorável ao infrator, arguido ou

condenado; caso a lei posterior (Lei Nova) seja favorável, então, por força dos princípios

político-criminais (constitucionais e com expressão na lei ordinária) da máxima restrição da

pena e da mínima limitação dos direitos, liberdades e garantias, será a lei nova que se aplicará

retroativamente. Vê-se, em conclusão deste introito, que é fulcral e decisiva esta questão. É

pois, de fundamental importância prática determinar o momento-critério de qual das leis

processuais penais materiais (Lei Antiga ou Lei Nova) é a competente, é a que deve ser

aplicada. Só a partir deste momento-critério é que, por outras palavras, se poderá afirmar que

há, no caso concreto, um verdadeiro ou somente aparente conflito de normas.

Configurando-se um real conflito, então aplicar-se-á a lei mais favorável – o que significará

a aplicação retroativa da Lei Nov, sempre e só quando esta for mais favorável. Haverá um

verdadeiro conflito temporal nas seguintes hipóteses:

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§

1. Quando a Lei Antiga estiver em vigor no momento-critério mas a Lei Nova,

já estiver em vigor no momento em que se aplica a respetiva norma processual

penal material;

2. Quando houver uma lei intermédia, isto é, quando uma lei entrar em vigor

depois do momento-critério e for revogada antes da aplicação efetiva da

norma processual penal material. Como se vê, aqui, o conflito é entre, pelo menos,

três leis:

a. A lei em vigor no momento-critério;

b. Lei ainda não em vigor neste momento e já não em vigor no momento

da decisão-aplicação;

c. Lei em vigor no momento da decisão-aplicação.

Convém fazer duas observações, a propósito do momento da aplicação das normas

processuais penais materiais. Este momento, digamos, como que constitui o termo ad quem

da situação de conflito temporal desta categoria de normas, sendo o termo a quo o momento-

critério, isto é, o tempus delicti, como demonstraremos.

1. A primeira observação é para dizer que o momento da aplicação das normas em

causa é o momento em que estas se realizam, quer dizer, o momento em que

elas produzem o esgotam os seus efeitos jurídicos.

a. Os efeitos da prescrição do procedimento criminal são, como vimos, a

extinção do procedimento e, portanto, a extinção da (eventual)

responsabilidade penal; ora, estes efeitos produzem-se no dia em que se

consumou, se esgotou o respetivo prazo; logo, foi neste dia que a norma se

realizou.

b. No caso da liberdade condicional, é o momento em que o condenado

cumpriu integralmente a pena; com efeito, até este momento, é possível

que uma alteração legislativa, nesta matéria da admissibilidade ou não da

libertação condicional e da parte do tempo de prisão que pode ser substituída

pela liberdade condicional, produza efeitos.

2. A segunda observação é para lembrar que não se pode esquecer que uma eventual

declaração de inconstitucionalidade da norma processual penal material já

aplicada pode produzir efeitos, desde que estes sejam favoráveis, nos termos

do artigo 282.º, n.º3, 2.ª parte CRP.

A fixação do momento-critério da determinação da lei competente tem de respeitar e cumprir

a ratio de garantia política. É a necessidade de prevenir a eventual arbitrariedade no exercício

da justiça penal pelos órgãos legislativos, jurisdicionais ou prisionais, e a possível

instrumentalização política – quando não mesmo político-partidária – do ius puniendi que há-

de decidir qual das leis processuais penais materiais (Lei Antiga ou Lei Nova) é a aplicável.

Quer dizer: a mesma ratio de garantia jurídico-política do cidadão contra a (possível)

arbitrariedade do Estado determina a proibição da retroatividade da lei penal –

exclusivamente material ou processual-material – desfavorável e impõe o momento-

critério da determinação da lei aplicável. Se aquela ratio seria desrespeitada, se se admitisse

a retroatividade das referidas normas desfavoráveis (i.e., prejudiciais ao infrator e ao cidadão

em geral, pois que há sempre a possibilidade de este vir a infringir a norma penal), da mesma

forma o seria, se fixássemos um momento-critério que permitisse a arbitrariedade punitiva.

Em conclusão: a função de garantia jurídico-política, inerente ao princípio da legalidade penal,

impõe que o momento-critério seja visto e assumido como conditio sine qua non da efetiva

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✒ prevenção do arbítrio punitivo. Caso contrário, o sentido e conteúdo materiais da proibição

da retroatividade desfavorável esvair-se-ão, transformando-se o juízo de não retroatividade

de uma determinada norma penal desfavorável num mero e inútil juízo formal, que permitiria

e daria cobertura (aparência de decisão justa e jurídico-constitucional. Exige-se, numa

fórmula mais sintética, que haja uma rigorosa coincidência entre o juízo formal de

irretroatividade e, digamos, o juízo material de irretroatividade. Esta exigência jurídico-penal

e jurídico-constitucional, esta ratio de garantia política determina, como demonstrável, que o

momento-critério, de que vimos falando, seja o tempus delicti. O sentido, o alcance e o

processo de delimitação do tempus delicti são os mesmos, quer se trate de leis

criminalizadoras ou agravantes da pena, quer se trate de leis processuais penais

materiais. Esta razão fundamental conduz à recusa, in limine, da pretensão de situar e fazer

coincidir o momento-critério com o momento em que se inicia o processo penal. É por esta

razão essencial e decisiva – ou será que já nos esquecemos da motivação e função matriciais

do princípio da legalidade penal ou, então, será que pensamos que os homens, que detêm o

poder político-legislativo e judicial em regime democrático, são assim tão puros que é uma

injúria dizer que é preciso prevenir as suas possíveis arbitrariedades? – que se tem de repudiar

a ausência de princípios e de rumo que grande parte da jurisprudência, com a complacência

de grande parte da doutrina, revelou (num não distante) nesta matéria. Vou dedicar, agora, a

minha reflexão aos institutos processuais penais que, entre as suas componentes, contam a

dos prazos. O objetivo é o de alertar e desfazer o equívoco em que a doutrina tem caído.

Encadeada pelo facto de tanto o artigo 3.º CP como o artigo 119.º, n.º1 CP, fazerem

referência ao momento da prática do crime – tempus delicti – e reparando que, no primeiro, o

decisivo é o momento da conduta, ao passo que, no caso da prescrição do procedimento

criminal, é o momento do resultado ou consumação material, extraíram a doutrina e a

jurisprudência precipitadas e erróneas conclusões:

1. O momento que determina a lei penal (sobre crime e/ou pena) aplicável é o

momento da conduta; diferentemente, o momento que determina qual das leis sobre

a prescrição do procedimento criminal é a aplicável é o momento do resultado;

2. Esta confusão, que não teve em atenção que um é o problema tratado no artigo 3.º

CP – momento-critério para a determinação da lei aplicável –, outro, inteiramente

distinto, é o problema resolvido no artigo 119.º CP – o termo a quo da cotagem do

prazo é o momento em que ocorre a consumação material –, levou a doutrina a duas

sub-conclusões enganadoras:

a. O tempus delicti é um conceito genérico a que sempre se tem de recorrer

quando é preciso resolver um problema de conflito de leis penais;

b. O tempus delicti é um conceito diferenciado, isto é, tem um significado e um

alcance variáveis em função da especificidade do instituto a que pertencem

as leis em conflito.

É certo, como diz Cavaleiro Ferreira, que o conceito de tempus delicti tem natureza teleológica:

é o que tenho, superabundantemente, referido: o tempus delicti é determinado em função da

ratio de garantia política, razão que tem de ser respeitada e de iluminar a solução do conflito

temporal de leis penais (exclusivamente materiais ou processuais penais materiais). Mas já

falta demonstrar o que o mesmo Autor afirma, logo a seguir: o tempus delicti é fixado em

função dos fins próprios do instituto em que essa fixação interessa. Esta afirmação resulta

do tal equívoco e leva-nos a fazer as seguintes considerações:

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1. Nunca haverá contradição entre a ratio do instituto e a ratio do tempus delicti

(artigo 3.º CP), pois a ratio de garantia deste está ao serviço do cidadão e opõe-se à

retroatividade (definida em função do critério que ele, na consequência coerente da

ratio do princípio da legalidade penal, estabelece) das normas desfavoráveis;

2. Há que dizer que, se, por mera hipótese, houvesse contradição, ela ter-se-ia

de desfazer em favor da ratio fundamental de garantia política;

3. Há que chamar a atenção para a incorreção que seria dizer, p.e., que o tempus

delicti, no caso da prescrição da pena, é o momento em que transita em

julgado a sentença (artigo 122.º, n.º2 CP)!

§18.º - Aplicação do princípio da lei penal favorável à sucessão de leis

sobre a prescrição

Normas processuais penais materiais: o intuito da prescrição é integrado por

1. Normas processuais penais materiais: pertencem as normas sobre os termos, os

prazos, as causas de interrupção e de suspensão, os efeitos e a legitimidade para a

invocar; à segunda pertencem as possíveis normas sobre a forma de a invocar e de a

declarar;

2. Normas exclusivamente processuais.

Interessam-me apenas as normas processuais penais materiais, pois que o eventual conflito

entre as exclusivamente processuais não oferece dificuldades e rege-se pelo artigo 5.º CPP.

Exemplo:

A comete o crime x.

Entre o momento da conduta (ação ou omissão) e o da ocorrência do resultado

passaram 6 meses.

No momento da conduta, estava em vigor uma lei que estabelecia um prazo de

prescrição do procedimento criminal de 6 anos.

Posteriormente à prática da conduta, mas antes da ocorrência do resultado, entrou

em vigor uma lei que alongou o prazo da prescrição do referido crime de 6 para 10

anos.

1. Pergunta: qual é a lei que, vindo mais tarde a levantar-se o problema da prescrição

ou não, é competente para decidir?

2. Resposta: não pode deixar de ser a que é aplicável a Lei Antiga, uma vez que, sendo

desfavorável a Lei Nova, a sua aplicação retroativa é vetada pela ratio de garantia

política. Mas, como se está a ver, o prazo, como é evidente, continuará (e continuaria,

mesmo que a Lei Nova o tivesse encurtado) a contar-se a partir do momento em que

se verificou o resultado.

Variações:

A Lei Nova – que elevou o prazo de 6 para 10 anos – entrou em vigor 2 meses depois

da conduta e, portanto, 4 meses antes do resultado.

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✒ Partamos, por outro lado, da hipótese de que não se verificou qualquer causa de

interrupção ou de suspensão da prescrição e de que o infrator só foi notificado para

as primeiras declarações, quando já tinham decorrido sobre a prática da conduta 6

anos e 7 meses.

1. Pergunta: quando se vier a levantar a questão da prescrição ou não do procedimento criminal,

dever-se-á declarar ou não a extinção do procedimento criminal?

2. Resposta: Sim.

3. Fundamentação: a lei competente é a lei em vigor no momento da conduta (Lei

Antiga); ora, esta lei estabelece como prazo da prescrição 6 anos, prazo este cujo

termo a quo se manteve como sendo o momento da verificação do resultado (artigo

119.º, n.º1 e 4 CP). Ora, como sobre este momento já tinham decorrido 6 anos e 1

mês, a conclusão é a de que já prescreveu.

Em vez de 6 anos e 7 meses, imaginemos que só tinham decorrido sobre o momento

da conduta 6 anos e 5 meses.

1. Pergunta: já prescreveu ou não?

2. Resposta: não prescreveu.

3. Fundamentação: embora o conflito entre Lei Antiga e Lei Nova seja resolvido a

favor da Lei Antiga – uma vez que estava em vigor no decisivo momento da conduta

(tempus delicti) e a Lei Nova não pode retroagir, pois é desfavorável –, esta (a Lei Antiga)

estabelece um prazo de 6 anos que, tal como os 10 anos da Lei Nova, se contam a

partir do resultado. Ora, desde este momento, ainda só passaram 5 anos e 11 meses.

Logo, ainda não estava prescrito.

No momento da conduta, a lei estabelecia que o termo a quo é o momento da

conduta;

Antes da ocorrência do resultado, entrou em vigor uma lei que o transferiu para o

momento do resultado.

1. Pergunta: qual seria a lei aplicável?

2. Resposta: seria a Lei Antiga.

3. Fundamentação: porque que esta Lei Antiga, embora mal, era mais favorável que a

Lei Nova. A aplicabilidade desta afetaria a razão de garantia que, precisamente, impõe

como decisivo o momento da conduta.

Permita-se-me só que recorde que as mesmas razões de garantia do cidadão impõem a mesma

solução para todas as normas processuais penais materiais: constituição e competência dos

tribunais, meios de prova, graus de recurso, liberdade condicional, modalidades de execução

de pena, etc. A lei aplicável, no caso de conflito temporal de leis desta categoria, é a vigente

no tempus delicti, isto é, no momento da prática da conduta, independentemente do momento

em que o resultado se produza (artigo 3.º CP). A Lei Nova, isto é, a lei posterior ao momento

da conduta, só será aplicada retroativamente, quando for mais favorável (artigo 2.º, n.º4 CP).

Causas de interrupção ou de suspensão da prescrição: ao exemplo apresentado, em

primeiro lugar, anteriormente, adicionemos o elemento seguinte:

Enquanto a lei vigente no momento da conduta estabelecia (além do tal prazo de 6

anos) como causas de interrupção da prescrição as circunstâncias, a, b e c, já a lei,

que entrou em vigor entre o momento da conduta e o momento do resultado, (além

de elevar o prazo para 10 anos) eliminou a circunstância.

Face à Lei Antiga, o prazo da prescrição já teria decorrido, se não se tivesse verificado

a circunstância c que essa lei previa como causa de interrupção;

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§

Face à Lei Nova, esta circunstância deixou de ser considerada causa de interrupção,

mas, apesar de não ter havido qualquer interrupção, ainda não decorreram os 10 anos

que ela veio estabelecer.

Só haverá prescrição se se aplicarem, simultaneamente, a norma favorável da Lei

Antiga quanto ao prazo e a norma favorável da Lei Nova quanto à desqualificação

da circunstância c como causa de interrupção.

1. Pergunta: o procedimento criminal prescreveu?

2. Resposta: o procedimento criminal prescreveu.

3. Fundamentação: aplicam-se, mutatis mutandis, os mesmos argumentos que aduzi em

favor da ponderação diferenciada, a propósito das leis penais (crimes, pena e efeitos

penais). Portanto, o regime aplicável é constituído pela norma sobre o prazo da Lei

Antiga e pela norma sobre as causas de interrupção da Lei Nova. E não cabe contra-

argumentar, dizendo: o legislador pretendeu compensar a eliminação da causa de

interrupção c com o alongamento do prazo. Não! Esta objeção não procede, caso

contrário, então também procedia relativamente às circunstâncias a e b, quando é

certo que elas permaneceram, apesar de o prazo ter passado a ser mais longo. Pode

ainda replicar-se, perguntando se teria qualquer sentido falar-se dessa hipotética

compreensão, na muito verosímil hipótese de o legislador ter eliminado a causa de

interrupção c, mas ter acrescentado às causas a e b mais duas causas, tendo também

elevado o prazo para 10 anos. Que razão haveria para não aplicar, retroativamente, a

norma sobre causas de interrupção, simultaneamente, com a norma da Lei Antiga

sobre os prazos? – Em minha opinião, não há nenhuma. De recusar é, portanto, a

jurisprudência do STJ nesta matéria.

§19.º - Aplicação do princípio da lei penal favorável à sucessão de lei

sobre a queixa e a acusação particular

Pressupostos processuais (positivos) de responsabilização penal: creio já ter dito

o suficiente para demonstrar que estes dois institutos, tal como a prescrição do procedimento

criminal, são de natureza penal material, isto é, têm dupla natureza. Na verdade, sendo

condições (positivas) de procedimento criminal (pressupostos processuais), do mesmo modo

condicionam a responsabilidade penal. Não há qualquer fundamento para considerar estas

figuras como exclusivamente processuais. A jurisprudência, na ausência, por parte da

doutrina, de uma abordagem sistemática – jurídico-constitucional e político-criminalmente

fundamentada – desta matéria da sucessão de leis penais, tem andado hesitante. A título de

exemplo:

1. Decisão claramente errada:

a. Ac. STJ 25 janeiro 1984;

b. Ac. STJ 11 outubro 1983

2. Decisão correta:

a. Ac. RP 2 maio 1974;

b. Ac. STJ 24 outubro 1996.

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✒ Crítica da atribuição de natureza exclusivamente processual: não devo repetir-me

e, assim, só um breve comentário sobre a posição de Jeschek. Diz:

«Assim, p.e., um crime perseguível mediante queixa ou acusação particular pode converter-se,

retroativamente, em crime perseguivel ex officio».

1. Comentário: espanta que se fale em retroatividade de lei penal desfavorável. Quero

dizer: ou o autor utiliza incorretamente – estou a tentar introduzir-me no seu discurso

– o termo retroatividade (que, efetivamente, existe no exemplo apresentado), estando

a pensar em aplicação imediata (o que se não deve fazer), ou esqueceu-se de que a

passagem de crime semipúblico a público é sempre desfavorável, pois vai fazer com

que infratores que, a manter-se a Lei Antiga, não seriam punidos – sempre que os

titulares do direito de queixa o não quisessem exercer –, passem pela Lei Nova a sê-

lo, dada a promoção ex officio; ou nem se passou uma coisa nem outra e, então,

teríamos de concluir que o autor se esqueceu do princípio constitucional da proibição

da retroatividade da lei penal desfavorável.

Mas, continuemos com Jescheck, pois a segunda crítica, que farei à sua incidental análise e

contraditória posição, permite-me destacar os únicos aspetos duvidosos que há quanto à

sucessão de leis sobre a queixa ou a acusação particular: o caso de a Lei Nova encurtar o

prazo para apresentar a queixa; o momento a partir do qual se deve contar o prazo para

exercer o direito de queixa, na hipótese de a Lei Nova converter o crime de público em

semipúblico ou particular. Jescheck vai mesmo ao ponto de quase aceitar – parece só não o

aceitar mesmo, porque reconhece que há “algumas” (?) objeções – que a tal Lei Nova se

aplicasse retroativamente, mesmo que, ao momento em que esta entrou em vigor, já tivesse

decorrido, totalmente, o prazo para apresentar queixa.

2. Comentário: para além de inconstitucional e político-criminalmente reprovável, isto

está em contradição com os fundamentos destas duas figuras – e que o autor refere:

a. Diminuta gravidade da infração;

b. Relação do crime com a intimidade pessoal da vítima e

preponderância do interesse da vítima (desde que se verifique um dos

fundamentos anteriores) sobre o interesse público na punição

(necessidade da prevenção).

Sendo estas a maior parte das razões da consagração da exigência da queixa, como é

que se pode admitir que a Lei Nova se vá aplicar retroativamente, quando ela, além

de desfavorável ao infrator (logo, violação da Constituição), também é desfavorável

à vítima, uma vez que esta, contra a sua vontade, vai ter de ver desenvolver-se um

processo judicial em que a sua pessoa, embora na qualidade de vítima, estará em

causa? Há que abordar os dois aspetos referidos.

Passagem de crime público a semipúblico (ou particular) e vice-versa: em

primeiro lugar, diga-se que há que distinguir, nos institutos da queixa e da acusação particular

as:

4. Normas exclusivamente processuais (princípio da aplicação imediata – artigo 5.º

CPP): a estas pertencem, sem preocupação exaustiva de pormenor, as normas dos

artigos 49.º a 52.º CPP;

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§

5. Normas processuais penais materiais (irretroatividade desfavorável,

retroatividade favorável – artigos 2.º, n.º4 e 3.º CP): a estas pertencem,

inequivocamente, as normas constantes dos artigos 113.º a 117.º CPP.

Daqui, e em segundo lugar, resulta que nunca a Lei Nova desfavorável ao infrator ou ao já

arguido pode ser aplicada retroativamente. Exemplos de Leis Novas desfavoráveis:

Conversão de crime semipúblico (exigência de queixa) em público (ex officio); ou

Conversão de crime particular (exigência de acusação particular) em semipúblico

(basta a queixa)

Alongamento do prazo para apresentar queixa;

Eliminar a possibilidade de renunciar à queixa ou de desistir da queixa apresentada,

etc.

Em terceiro lugar, a Lei Nova favorável ao infrator ou ao já arguido, é aplicável

retroativamente. Exemplos:

Lei Antiga: crime público; Lei Nova: crime semipúblico;

Lei Antiga: impossibilidade de desistência da queixa; Lei Nova: possibilidade de

desistência.

Distinção entre direito de apresentação de queixa e direito de desistência da

queixa: condição de procedibilidade; causa de extinção do processo: acabei de

apresentar duas hipóteses que, apesar de, prima facie, poderem parecer sobrepostas, na

realidade não o são. Torna-se, pois, indicado esclarecê-las. Vejamos: há, normalmente, uma

implicação biunívoca entre crime semipúblico (ou particular) com a consequente exigência

de queixa e a possibilidade (direito) de desistência da queixa: se o crime é semipúblico (ou

particular), o início do procedimento criminal depende da queixa; e, uma vez apresentada,

pode o respetivo titular desistir da queixa, extinguindo, deste modo, o processo penal. A

queixa é, portanto, uma condição de procedibilidade, isto é, uma condictio sine qua non do (início

do) processo, esgotando-se os seus efeitos jurídicos na criação do pressuposto da promoção

da ação penal pelo Ministério Público; a desistência da queixa é, diferentemente, uma causa

de extinção do processo penal (desencadeado pela apresentação da queixa). Não sendo,

portanto, a queixa uma condição de prossegaibilidade mas sim e apenas de procedibilidade,

então, uma vez iniciado o processo por iniciativa do Ministério Público, num momento em

que estava em vigor uma lei (Lei Antiga) que considerava o crime respetivo como público,

deixa de haver lugar a necessidade para a apresentação de uma queixa cujos (possíveis) efeitos

jurídicos já se produziram, quando entra em vigor uma lei (Lei Nova) que passa a considerar

o respetivo crime como semipúblico, isto é, a fazer depender o início do procedimento

criminal da queixa. Disto não se pode concluir que, assim sendo, há como que uma quebra

ou exceção do princípio da aplicação retroativa da lei nova favorável. É que, de facto, não há

qualquer desvio deste princípio. Pois, após a entrada em vigor da Lei Nova que passa o crime

de público a semipúblico, crime cujo processo já tenha sido iniciado, ex officio, pelo Ministério

Público, pode o ofendido (aquele que passar a ter o direito de queixa) pôr termo ao processo,

extinguindo-o pelo exercício do direito de desistência. Esta desistência a queixa, que é

verdadeiramente um perdão da parte e que pode, por força da entrada em vigor da Lei Nova,

ser negada ao ofendido, faz com que a Lei Nova seja mais favorável ao infrator e,

consequentemente, torna-o possível de ser beneficiado por ela, no caso de o ofendido decidir

pôr termo ao processo. Conclusão: se, quando entra em vigor uma lei que converte um crime

de público em semipúblico (ou particular), ainda não se iniciou o procedimento criminal, o

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✒ início o procedimento criminal, o início deste passa a ficar dependente da apresentação da

queixa; mas se, quando entra em vigor a referida lei, o procedimento criminal já foi iniciado,

não é necessária a queixa (pois, o que já se iniciou, iniciado está; o que já se produziu,

produzido está), mas pode o ofendido extinguir o processo, desistindo do (impedindo o)

prosseguimento da ação penal. No caso de a lei entrar em vigor depois da publicação da

sentença da 1.ª instância, a desistência é possível até ao trânsito em julgado. Poderá parecer,

à primeira vista, que, após a entrada em vigor, em 15 setembro 2007, do novo artigo 371.º-

A CPP – que passou a estabelecer a aplicação retroativa da lei nova mais favorável, mesmo

que já tenha transitado em julgado a sentença condenatória –, deixou de ter interesse prático

a análise da jurisprudência anterior. Penso, todavia, que há interesse em refletir um pouco

em três aspetos dessa jurisprudência:

1. Um dos pontos a referir e criticar é o da incorreção jurídica da terminologia utilizada.

Na verdade, é incorreto falar-se em apresentação de queixa e desistência de queixa

(sem colocar tais expressões entre aspas), quando a lei em vigor, desde o início até ao

termo do processo (até ao trânsito em julgado da sentença condenatória), qualificava

o facto como crime público. Pois que, juridicamente, o que houve foi uma

participação ou denúncia, e não uma queixa stricto sensu, pois está e uma condição de

procedibilidade, condição que não existia, uma vez que o crime, então, era público.

E, inexistindo, em sentido jurídico, queixa, não é juridicamente possível a desistência

de queixa. O que acabo de dizer não significa, obviamente, que não possam ou não

devam utilizar-se estas expressões; mas, sim, que devem ser colocadas entre aspas.

2. O segundo aspeto a considerar tem que ver com o enquadramento jurídico-penal da

retroatividade da lei que converte em semipúblico um crime público. E a questão é a

seguinte: o fundamento da aplicação retroativa desta lei está no n.º2 ou no n.º4 do

artigo 2.º CP? A leitura dos Acórdãos do Tribunal Constitucional aparece a ideia de

que há uma analogia material entre a lei que converte em semipúblico um crime

público – quando, durante o processo, o ofendido tiver declarado a vontade de que

a ação penal não prossiga contra o arguido, e este a tal não se oponha – e a lei

verdadeiramente descriminalizadora. Afirmam estes Acórdãos:

«Com efeito, se a nova lei passa a fazer depender o procedimento de queixa da ofendida,

e, consequentemente, a considerar equivalente ao que decorre de uma lei que

descriminaliza, em sentido equivalente ao que decorre de uma lei que descriminaliza,

em sentido próprio, a conduta do agente. Num caso como no outro, a aplicação da lei

nova determinaria a não punição».

Apesar de, como se acaba de ver, o Tribunal Constitucional considerar que há uma

analogia material quanto aos resultados entre estas duas diferentes espécies de leis

penais e, portanto, propender a subsumir o caso sub iudice ao n.º2 do artigo 2.º CP,

acabou por – incoerentemente, na minha opinião – declarar a inconstitucionalidade

da norma constante (da antiga ressalva da parte final) do n.º4 do artigo 2.º CP, na

parte em que veda a aplicação da lei penal nova que transforma em crime semipúblico

um crime público, quando tenha havido desistência da queixa apresentada e trânsito

em julgado da sentença condenatória. Esta é a formulação da declaração de

inconstitucionalidade utilizada pelo Ac. TC 677/98.

3. Dissemos, acima, que, relativamente aos processos em curso, quando entra em vigor

uma lei que converte o crime de público em semipúblico, deve ser notificado o

ofendido para vir ao processo declarar se quer que este prossiga ou se quer que seja

extinto. Agora, o que está em causa é a situação (situações) em que, quando entra em

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§

vigor a lei que passou o crime de público a semipúblico, já transitou em julgado a

respetiva condenação. Os Acórdãos do Tribunal Constitucional que fizemos

referência limitaram-se a considerar as situações em que, durante o processo, os

ofendidos tinham desistido da queixa, isto é, tinham manifestado a vontade de que o

arguido não fosse condenado, o que quer dizer que queriam que o procedimento

criminal fosse extinto. Só que, como o crime era, então, público, tal desistência, tal

vontade era irrelevante, sendo o processo de prosseguir necessariamente. Ora, sendo

irrelevante, temos que partir do pressuposto de que a não manifestação da vontade

de desistência, ao longo do processo, não significa, necessariamente, que o ofendido

não estivesse na disposição de desistir, de perdoar, de extinguir o processo. Pois pode

ter acontecido que o ofendido, sabendo da irrelevância da sua vontade para extinguir

o procedimento criminal, pura e simplesmente não a manifestou. Daqui resulta que,

com fundamento no princípio da igualdade, deve, também em relação aos já

condenados por sentença transitada em julgado, ser aberta a possibilidade de

beneficiarem da nova lei que passou o respetivo crime de público a semipúblico.

Neste sentido – pelo menos em relação aos processos em que não haja elementos

que indiquem claramente que o ofendido não quis desistir da queixa –, deverá ser

relevante a eventual declaração do ofendido de que teria desejado que o

procedimento criminal fosse extinto. E uma tal declaração fará extinguir a pena e os

seus efeitos. A declaração da vontade do ofendido, no sentido de que teria querido

que o processo tivesse sido extinto (se tal tivesse sido legalmente possível) ou no de

que não teria querido, pode resultar da iniciativa do próprio ofendido, da iniciativa

do condenado ou da notificação oficiosa do ofendido, feita pelo Ministério Público.

Termo a quo da contagem do prazo: surge, porém, um problema quanto ao termo a

quo da contagem do prazo para exercer o direito de queixa, quando a Lei Nova, que converte

o crime de público em semipúblico (ou particular), entrar em vigor num momento em que

já tenha decorrido o prazo para apresentar queixa (artigo 115.º, n.º1 CP) e o Ministério

Público ainda não tenha promovido o processo penal. Problema idêntico surge, quando a

Lei Nova que encurta o prazo para exercer o direito de queixa, entre em vigor num momento

em que o novo prazo – que não o atingiu – já correu. Nestes casos – e só nestes – é preciso

ter em conta as especialidades da queixa e da acusação particular, antes de apresentar a

solução. Assim, é necessário ter em conta que, enquanto a ratio da prescrição é exclusiva ou,

pelo menos, predominantemente político-criminal (desnecessidade da pena, sob os aspetos

da prevenção geral e especial), já, como vimos, na queixa e na acusação particular, confluem

razões (públicas) político-criminais e razões pessoais do ofendido. Há, por outro lado, que

ter em conta o princípio da adesão (artigos 71.º e seguintes CPP), o que se pode traduzir num

interesse, numa expectativa legítima do ofendido-lesado. Daqui resulta que, ressalvando o

princípio da aplicação retroativa da Lei Nova favorável ao infrator, seja razoável consagrar

uma solução que também contemple a posição pessoal do ofendido, posição que o legislador

também teve em atenção ao estabelecer a exigência da queixa. Neste sentido, poderá

apresentar-se a seguinte conclusão: quanto ao aspeto do termo a quo da contagem do prazo

– na hipótese de a Lei Nova converter o crime de público em semipúblico –, este, no caso

de o titular do direito já conhecer o facto e os seus autores, contar-se-á a partir do momento

em que entrou em vigor a Lei nova. Repare-se que tal já não acontece se a Lei Nova converter

o crime de semipúblico em particular, pois, nesta hipótese, ele já, face à Lei Antiga, não podia

contar com a promoção oficiosa do Ministério Público, mediante simples denúncia. Na

hipótese de a Lei Nova encurtar o prazo, a solução será a seguinte: aplicar-se-á a Lei Nova,

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✒ se o tempo que ainda falta decorrer para preencher o prazo da Lei Antiga for superior ao

prazo da Lei Nova; caso contrário, continuará a aplicar-se a Lei Antiga. Tem sido esta a

posição (no mínimo, maioritária) seguida pela jurisprudência. Por sua vez, o Ac. TC

n.º523/99, 25 setembro 1999, considera:

«não estando em causa, na transformação da conduta, mas tão-só uma desvalorização do bem

jurídico –, torna-se evidente a necessidade de chegar a uma solução que permita equilibrar o

interesse do arguido em ver-lhe aplicada a lei mais favorável (artigo 29.º, n.º4 CRP), e o

interesse do ofendido em ver-lhe reconhecido o direito de desencadear o procedimento criminal,

que encontra apoio no princípio da confiança inerente ao princípio do Estado de Direito

Democrático (artigo 2.º CRP). A solução parece ser a de, aceitando a aplicação retroativa do

regime do crime que de público passa a semipúblico [no caso, estava em causa o crime de usura

criminosa que, pela Revisão Penal de 1995, passou de público a semipúblico], possibilitar ao

ofendido, que no regime anterior não manifestou a sua vontade de perseguir criminalmente o

agente – porque tal não era exigido –, cumprir esse ónus, no prazo indicado na Lei Antiga,

mas contado a partir do início da vigência da Lei Nova. É esta, aliás, a via proposta pelo

representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional, quando afirma que esta

lhe parece razoável e adequada, em termos de operar um justo equilíbrio entre os princípios

constitucionais da aplicação retroativa da lei mais favorável ao arguido e da confiança que não

pode deixar de ser considerado ao valorar a situação ou posição do ofendido, surpreendido no

decurso do processo criminal pela alteração legislativa que modificou a natureza do crime

cometido. Seria absurdo, além de praticamente impossível, obrigar o ofendido a retroceder no

tempo e a apresentar uma queixa num prazo que a lei estabelecia para crimes de outra natureza,

a fim de impedir a extinção do procedimento criminal. O ofendido não contava, nem tinha

razoavelmente motivos para contar, com a alteração legislativa. Logo, não estava sujeito a

qualquer prazo para desencadear o exercício da ação penal».

Creio esta argumentação inteiramente correta e constitucionalmente harmoniosa. Quero

fazer, todavia, um reparo, que não tem que ver com a concreta questão em análise, mas, sim

e ainda, com a minha tese da chamada ponderação diferenciada e contra a tese da jurisprudência

de que a ponderação entre as leis sucessivas deve ser global. Diferentemente do que se lê, no

acórdão, a passagem de crime público a semipúblico não significa, necessariamente, uma

desvalorização do respetivo bem jurídico, embora, na maioria dos casos, as duas coisas

andem de braço dado. Assim, basta recordar a Revisão Penal de 1995, apesar de ter passado

o crime de maus tratos entre cônjuges de público a semipúblico, elevou a pena de até três

anos para até cinco anos de prisão. Donde se conclui que a conversão deste crime em

semipúblico, elevou a pena de até três anos para até cinco anos de prisão. Donde se conclui

que a conversão deste crime em semipúblico não significou, de modo algum, uma

desvalorização do respetivo bem jurídico.

Oposição à desistência da queixa: o Código Penal de 1982 consagrou a figura da

oposição à desistência, tornando, assim, a eficácia desta dependente da não oposição da

pessoa contra a qual foi exercido o direito de queixa (artigo 116.º, n.º2 CP). Portanto,

havendo oposição, o processo prosseguirá, podendo vir a terminar na condenação penal do

arguido-opositor que impediu, por decisão própria, a extinção do procedimento criminal.

Embora a consagração legal da figura da oposição à desistência se fundamente no eventual

justo interesse de o arguido mostrar a sua inocência, ela, a oposição, acaba por impedir a

extinção do processo e, consequentemente, a possibilidade da extinção pura e simples da

(eventual) responsabilidade penal. Logo, a oposição constitui um impedimento à extinção da

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eventual responsabilização penal, extinção que, via extinção do procedimento, ocorreria por

força da desistência. Mas as formas como o legislador resolve o conflito de interesses (o

interesse do arguido na extinção do processo versus o eventual interesse do mesmo arguido

em mostrar a sua inocência) – ou dá prevalência ao critério do arguido, assegurando-lhe o

direito de oposição à desistência, ou impõe o seu critério de não deixar na dependência da

vontade do arguido a prossecução de um processo criminal com a possibilidade de lhe vir a

ser aplicada uma pena, não lhe atribuindo o direito de oposição – não pode fazer esquecer

que, sob o aspeto que ora nos importa, deve sempre ser considerada como lei penal mais

favorável aquela que exclui o direito de oposição à desistência. Donde a conclusão seguinte,

num caso de sucessão de leis penais: se a Lei Antiga prevê o direito de oposição e a Lei nova

o exclui, aplicar-se-á (retroativamente) a Lei Nova, pois que esta vem criar uma possibilidade

de pura e simples extinção do procedimento criminal, via desistência do ofendido; se a Lei

antiga exclui o direito de oposição e a Lei Nova o prevê, aplicar-se-á a Lei Nova relativamente

aos factos praticados depois da sua entrada em vigor, uma vez que, sob o ponto de vista da

responsabilização penal, esta é menos favorável.

§20.º - Presunção de inocência do arguido (artigo 32.º, n.º2 CRP) e

prisão preventiva (artigos 28.º CRP e 191.º e seguintes CPP)

Motivação e objeto deste capítulo: o presente capítulo não se destina apenas a analisar

a questão do conflito temporal de leis sobre a prisão preventiva. Este problema, e respetiva

resolução, já foi, suficientemente, tratado. Como vimos, é, jurídico-penal e jurídico-

constitucionalmente, ponto assente e que deveria ter-se por indiscutível – apesar de ter sido

e ainda, de certa forma, continua a ser, objeto de decisões inadmissíveis – que a sucessão de

leis sobre a prisão preventiva (pressupostos, prazos, termos da contagem, etc. ) rege-se pelo

princípio da aplicação da lei mais favorável: proibição da aplicação retroativa da lei

desfavorável e imposição da retroatividade da lei favorável ao arguido. Creio ter, também,

demonstrado que o momento de referência para o cumprimento daquela irretroatividade

desfavorável e desta retroatividade favorável é o tempus delicti, isto é, o momento da prática

da conduta, independentemente do momento da ocorrência do resultado. Apesar de, como

acabo de dizer, o aspeto da prisão preventiva, relacionado com a sucessão de leis respetivas,

já ter sido tratado, vou, ainda, desenvolver o problema da aplicação retroativa de lei nova que

encurta o prazo da prisão preventiva. As outras secções deste capítulo vão ser dedicadas à

reflexão doutrinal sobre os graves, importantes e atuais problemas que a prisão preventiva

em si mesma coloca.

Aplicação retroativa da Lei Nova que encurta o prazo da prisão preventiva:

referi e ilustrei, anteriormente, como em matéria tão grave para a liberdade, a jurisprudência

não tem andado bem. Comecemos por transcrever, parcialmente, mais alguns acórdãos do

sinal contrário:

1. Corretamente, e com rigor, lê-se no Ac. RE 19 julho 1983:

«A lei que fixa prazos de prisão preventiva tem natureza substantiva e está, por isso,

sujeita ao sistema da determinação do regime leal mais favorável quando se sucedem,

temporalmente, disposições que modifiquem esses prazos».

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✒ No mesmo sentido, o Ac. RL 11 maio 1983:

«A lei que estabelece a duração máxima dos prazos de prisão preventiva tem natureza

substantiva, mesmo quando inserida em lei processual, por respeitar diretamente ao

direito fundamental da liberdade. Por tal razão, quando se sucedem temporalmente

leis que estabelecem prazos diferentes para a prisão preventiva, tem de ser adotada a

regra da aplicação do regime mais favorável».

2. Erradamente: Ac. RL 18 maio 1983:

«A lei que modifica os prazos da prisão preventiva tem natureza puramente adjetiva,

pelo que é de aplicação imediata às situações anteriores à sua entrada em vigor».

Consideremos, apenas, uma hipotética objeção que poderá vir, sobretudo, daqueles que são

muito recetivos à raison d’État mas bastante alérgicos ao Estado de Razão, isto é, ao Estado

Democrático, convertendo a razão instrumental (do Estado) em razão final. A objeção à

aplicação retroativa da lei nova que encurte os prazos da prisão preventiva (logo, mais

favorável ao arguido-preso) poderá ser a seguinte: a necessidade de evitar que os arguidos

presos, por vezes perigosos e mesmo, porventura, já condenados, embora não

definitivamente, consigam a liberdade, dada a demora processual. A refutação da validade

desta objeção passa por um conjunto de argumentos-razões que passo a indicar:

1. A presunção de inocência do arguido até ao trânsito em julgado da sentença

condenatória é um direito e uma garantia fundamental;

2. O caráter excecional da prisão preventiva impõe que se aplique retroativamente

(imediatamente) a lei nova que reduza os prazos, independentemente de razões

processuais (complexidade do processo – aspeto que mesmo a lei nova poderá

contemplar, apesar de reduzir o prazo –, sobrecarga de processos ou, por ventura,

negligência ou mesmo arbitrariedade na demora do processo), das necessidades de

defesa social ou das ditas razões de Estado;

3. É de recusar – na sequência-imposição constitucional (artigo 32.º, n.º2, 2.ª

parte CRP) – uma conceção gradualista da presunção de inocência, segundo a

qual esta presunção se ia relativizando, esbatendo, à medida que o processo avançasse

(Dedução da acusação, decisão instrutória, etc.), de modo que, como alguns

pensariam, com a condenação em 1.ª instância, se não ocorreria a inversão da

presunção de inocência em presunção de culpa, desapareceria, contudo, a presunção

de inocência. Como é evidente, este estado neutro não existe. A presunção de

inocência vale e impõe-se, sem quaisquer graduações, até ao trânsito em julgado.

Daqui não se compreender como é que possa ter havido, na jurisprudência, quem,

pelo facto de o CPP revogado, artigo 273.º, §1.º, 1.ª parte, não referir o termo ad quem

do prazo máximo de 3 anos de prisão preventiva que ele estabelecia, tenha defendido

que esse termo ad quem era a condenação em 1.ª instância. É caso para perguntar, a

certo setor – oxalá que minoritário – da jurisprudência, onde está a recriação das

normas jurídicas a partir dos princípios fundamentais do Direito, das normas

constitucionais e dos princípios jurídico-penais e político-criminais?

4. Diferentemente do que dissemos a propósito da lei nova que cria a exigência da

queixa para o procedimento criminal ou que encurta o prazo para exercer o direito

de queixa, não se coloca, aqui – na lei que encurta os prazos de prisão

preventiva –, qualquer necessidade de acautelar legítimas expectativas. Pois

cabe, desde já, perguntar: expectativas de quem?

a. Do Legislador? Evidentemente que não: ele, legislador ordinário bem

sabe – por vezes não cabe, mas é presumido saber, não podendo a sua

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eventual ignorância isentar o juiz do cumprimento do princípio

constitucional da aplicação retroativa das normas processuais penais

materiais favoráveis – que a sua lei, porque mais favorável (ao arguido, claro;

não aos tribunais) tem de ser aplicada aos arguidos-presos preventivamente.

b. Expectativas do tribunal? Também é evidente que não: se o legislador

entende que o novo prazo da prisão preventiva é o razoável, em função da

gravidade do tipo legal de crime em questão e da correspondente

complexidade processual, é este que se tem de aplicar retroativamente

(imediatamente) às prisões preventivas em curso. Se, porventura, as

expectativas do tribunal se baseavam na relação que ele, tribunal, estabelecia

entre o tempo durante o qual podia manter preso o arguido e a dinâmica a

imprimir ao processo, então tais expectativas não só não são legítimas, mas

são mesmo ilegítimas. Ilegítimas, pois que: são mesmo inconstitucionais –

artigo 32.º, n.º2 CRP, estabelece a correta e justa relação entre a presunção

da inocência do arguido (1.ª parte) e a exigência de julgamento definitivo no

mais curto prazo compatível com as garantias de defesa (2.ª parte), o que,

valendo para o caso de arguido não preso, por maioria de razão se impõe,

estando preso o arguido – e revelam uma distorção da função processual da

prisão preventiva. Esta distorção teleológica é, mesmo sob o critério

constitucional, ilegítima, uma vez que, como dizemos já de seguida, atenta

contra o referido princípio da presunção de inocência e contra o princípio-

base constitucional da dignidade da pessoa humana, na medida em que as tais

expectativas se traduzem numa instrumentalização da pessoa do arguido-

preso.

Mesmo que não seja o caso reprovável de expectativas ilegítimas, o certo é que nunca

há quaisquer expectativas que possam impedir a aplicação imediata

(retroativa) da Lei Nova que reduza os prazos da prisão.

5. Por último, há que ter presente que uma Lei Nova que encurte o prazo de prescrição

do procedimento criminal se aplica retroativamente aos prazos em curso, o que, em

certos casos, significa a extinção imediata da responsabilidade penal por mais grave

que seja o crime em questão. Que razão há para impedir que uma Lei Nova que

encurta o prazo da prisão preventiva se aplique ao arguido-preso, mesmo que tal

aplicação determine a sua imediata libertação provisória? Nenhuma; pode mesmo

afirmar-se que, aqui, se deve aplicar mesmo por maioria de razões:

a. Diferentemente da prescrição, aqui não se trata de extinguir a

responsabilidade penal pelos eventuais crimes cometidos, mas apenas

de aguardar, em liberdade, a condenação ou a absolvição definitiva;

b. A prisão preventiva constitui – nada disto se passando na prescrição –, nas

adequadas palavras de Muños Conde,

«a mais grave intromissão que pode exercer o poder estatal na esfera

da liberdade do indivíduo, sem que medeie uma sentença judicial firme, com

fundamento em crime que a justifique».

Do desvirtuamento da função processual da prisão preventiva à neutralidade

do princípio constitucional da presunção de inocência do arguido e,

consequentemente, à violação ope legis ou ope iudicis do direito da liberdade

individual:

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✒ 1. O perigo, que em epígrafe se enuncia, não é meramente hipotético ou

académico.

a. em 1980, Palombarino, Juiz de Instrução Criminal do Tribunal de Pádua,

fazia constar de um seu despacho, com data de 3 maio, as seguintes

afirmações:

«Pena e prisão preventiva têm diversa natureza jurídica, diferentes objetivos,

diversa função… Para decidir se uma certa garantia individual deve aplicar-

se a um determinado instituto, é necessário atender, em primeiro lugar, à

incidência do mesmo instituto sobre a esfera do indivíduo. Ora, a prisão

preventiva – embora diversa, como se disse, da pena – traduz-se para o

indivíduo numa restrição total da sua liberdade. Diferentes os institutos,

idênticos os valores em jogo e os perigos da lesão do fundamental direito da

liberdade».

b. Aludindo ao caráter excecionalmente gravoso da prisão preventiva e ao

perigo que há em fazer do aumento dos prazos um expediente para

compensar a ineficácia do sistema punitivo, observa Guido Salvini:

«A tutela de um bem tão delicado como a liberdade pessoal não pode ser

sacrificada por circunstâncias que não se ligam com a disponibilidade do

tempo adequado, mas que só encontram justificação na crise da eficácia da

administração da justiça, crise de eficiência que não pode transformar-se em

prejuízo do arguido».

c. Há, por outro lado, que resistir à tentação de ver a prisão preventiva, na

prática, como um meio de intimação (prevenção geral negativa), como uma

expiação antecipada da pena ou comum um meio de coação em ordem à

obtenção de uma confissão. Em qualquer uma destas situações, há uma

perversão da função processual e do caráter excecional e subsidiário da prisão

preventiva. Esta perversão ou desvirtuamento atenta contra a dignidade da

pessoa humana – na medida em que instrumentaliza o arguido – e contra o

expresso princípio constitucional da presunção de inocência. Nesta linha de

crítica e de alerta contra a utilização abusiva da prisão preventiva para fins

que lhe são absolutamente estranhos, diz Mario Chiavario:

«será um grave equívoco pensar que a Constituição configurou uma espécie

de normalidade da prisão preventiva, desde que decidida pelo juiz… É de

temer, e não sem fundamento, que, na prática, os vários fins, a que se

orientam as medidas restritivas da liberdade, não sejam invocados senão para

encobrir a mais inaceitável das possíveis instrumentalizações da prisão

preventiva: a de a transformar numa antecipação da pena».

E este autor vai mesmo ao ponto de entender útil recordar a hipocrisia do

legislador fascista que, enquanto, por um lado, repudiava com desprezo a por

ele designada absurda presunção de inocência, qual extravagância derivada dos velhos

conceitos, germinados pelos princípios da Revolução Francesa, os quais levaram as

garantias individuais aos mais exagerados e incoerentes excessos, simultaneamente

proclamava como certo e indiscutido o princípio de que o arguido não pode ser

considerado culpado antes da sentença irrevogável de condenação. Depois de analisar a

tensão aguda entre o interesso social e os direitos individuais, Morillas Cueva,

conclui, salientando a necessidade de que seja considerada, na prática, como

medida verdadeiramente excecional e não como meio de coação para obter

a confissão dos factos. Recorda que a tortura de épocas passadas foi considera

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§

pelos juízes daqueles tempos como meio indispensável para a realização da missão de que

tinham sido incumbidos; a sua abolição não impediu, contudo, a manutenção da ordem

pública. Quem poderá negar que com a prisão preventiva se não virá a passar o mesmo?

2. A prisão preventiva ope legis é, seguramente, inconstitucional. Uma tal lei, que

impusesse a prisão preventiva, constituiria uma distorção da função cautelar

processual, uma violação do seu caráter rigorosamente excecional e subsidiário,

sendo inconstitucional a vários títulos. Dada a sua função cautelar, a prisão

preventiva ope legis é uma medida excessiva e desproporcionada. Uma tal imposição

legal violaria, pois, o artigo 18.º, n.º2, 2.ª parte CRP. Basta pensar que ela iria ter de

ser imposta pelo juiz a muitos arguidos que não preenchiam os pressupostos da

aplicação tanto desta como de qualquer outra medida de coação. Por sua vez, a

imposição legal da aplicação da prisão preventiva violava, frontalmente, o princípio

constitucional da presunção de inocência até ao trânsito em julgado (artigo 32.º, n.º2,

1ª parte CRP). Esta presunção de inocência não é menor pelo facto de estar em causa

um crime mais grave; pode dizer-se que, seja qual for o crime de que se é arguido, a

presunção é sempre absoluta. Uma tal determinação legal da aplicação necessária da

prisão preventiva era, por outro lado, violadora do princípio fundamental da

dignidade da pessoa humana (artigo 1.º CRP). Esta dignidade era duplamente

instrumentalizada: a própria imposição ope legis constituía em si mesma uma

instrumentalização, na medida em que significava a imputação à prisão preventiva de

uma função de intimidação da comunidade (prevenção geral negativa), função que

só à pena cabe; instrumentalização, ainda, daqueles arguidos, relativamente aos quais

não se verificassem os pressupostos cautelares da prisão preventiva. Deste modo,

nem sequer a declaração do estado de sítio ou do estado de emergência pode justificar

a prisão preventiva obrigatória, isto é, ope legis. Uma aplicação automática da prisão

preventiva violaria, mesmo nestas situações, os princípios constitucionais acabados

de referir, o mesmo modo que desrespeitaria o princípio da proporcionalidade e da

necessidade consagrado no próprio artigo 19.º, n.º4 CRP. Consideremos ainda mais

dois aspetos relacionados com o estado de emergência ou o estado de sítio.

a. Nunca as alterações legislativas do regime da prisão preventiva

(pressupostos, prazos, competência, etc.) – mesmo ressalvados os limites

constitucionais da necessidade e da proporcionalidade (artigo 19.º, n.º4 CRP)

– podem aplicar-se retroativamente, na medida em que, sendo (como

se dá por suposto serem) desfavoráveis, só podem aplicar-se aos crimes

cometidos depois da entrada em vigor da alteração legislativa.

b. Por outro lado, uma vez terminado o estado de sítio ou de emergência,

consideram-se ipso iure e imediatamente revogadas (caducadas) as

normas sobre a prisão preventiva desfavoráveis e publicadas em

conexão com esse estado.

3. O prazo limite da prisão preventiva é absoluto: assim, a libertação não pode ficar

dependente da prestação de caução. Mesmo fora da hipótese do preenchimento do

prazo máximo da prisão preventiva, é inconstitucional subordinar a liberdade

provisória à prestação de caução, quando as capacidades económicas do arguido não

permitem prestá-la. Se o juiz de instrução entende que o arguido pode aguardar

julgamento fora da prisão, não pode negar a liberdade com fundamento na não

prestação de caução, quanto tal não-prestação não pode ser imputada ao arguido.

Seria inconstitucional, por violação dos princípios da igualdade e da intervenção

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✒ mínima nos direitos fundamentais, que a incapacidade económica para prestar caução

pudesse determinar a prisão preventiva.

VIII – A prova3

§21.º - O regime jurídico da prova

As definições de prova: escusado será dizer que não podemos evitar a polissemia da

palavra prova. Como sempre, o uso da palavra nos diferentes contextos há de esclarecer

finalmente o sentido em que se toma a palavra. Assim:

1. A prova enquanto atividade probatória: é o esforço metódico através do qual são

demonstrados os factos relevantes para a existência do crime, a punibilidade do

arguido e a demonstração da pena ou medida de segurança aplicáveis (artigo 124.º,

n.º2 CPP);

2. A prova enquanto meios de prova: são os elementos com base nos quais os factos

relevantes podem ser demonstrados;

3. A prova enquanto resultado de uma atividade probatória: e a motivação da

convicção da entidade decisora acerca da ocorrência dos factos relevantes, contanto

que essa motivação se conforme com os elementos adquiridos representativamente

no processo e respeite as regras da experiência, as leis científicas e os princípios da

lógica;

4. A prova enquanto provas materiais: são os objetos relacionados com a preparação

e a prática do facto qualificado como crime. A lei usa a palavra prova quando fala de

(artigo 174.º, n.º1 CPP):

«objetos relacionados com um crime ou que possam servir de prova».

O regime dos meios de prova: são admissíveis as provas que não forem proibidas por

lei, segundo o artigo 125.º CPP. Mas essa proclamação da liberdade de escolha dos meios de

prova a utilizar no processo é, afinal de contas, ilusória. Senão vejamos, a lei estabelece um

catálogo de meios de prova. Esses meios de prova são os seguintes:

1. O depoimento de testemunha (artigos 128.º e seguintes CPP);

2. As declarações do arguido, do assistente e das partes civis (artigos 140.º e

seguintes CPP);

3. O confronto entre as pessoas que prestaram declarações contraditórias (artigo

146.º CPP);

4. O reconhecimento de pessoas e objetos (artigos 147.º e seguintes CPP);

5. A reconstituição do facto (artigo 150.º CPP);

6. O juízo técnico, científico ou artístico inerente ao exercício de funções

periciais (artigos 151.º e seguintes CPP);

3 MENDES, Paulo de Sousa; Lições de Direito Processual Penal; 2.ª Reimpressão da edição de Setembro de 2013; Almedina Editores; Coimbra, 2014.

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§

7. Os documentos (artigos 164.º e seguintes CPP).

Ora, o catálogo dos meios de prova típicos inclui os respetivos regimes e não permite que

sejam desrespeitadas as suas regras, a fim de serem criados meios de prova aparentados, mas

atípicos. Ou melhor, a não taxatividade dos meios de prova que o artigo 125.º CPP estabelece

respeita apenas a meios de prova não previstos e não pode significar liberdade relativamente

aos meios já disciplinados. Por outro lado, é difícil de imaginar que possa haver meios de

prova totalmente diferentes dos típicos, de mais a mais admissíveis. Portanto, a única

liberdade que existe relativamente à escolha dos meios de prova consiste na possibilidade de

selecionar do catálogo dos meios de prova típicos aqueles que forem considerados como

adequados ao processo em curso. Não admira, pois, que a epígrafe do artigo 125.º CPP seja,

muito expressamente, a legalidade da prova. Ainda valem, assim, as palavras de Castanheira

Neves acerca dos limites que a legalidade dos meios de prova impunha ao princípio do

inquisitório (ou princípio da investigação):

«por este princípio, visa-se atribuir aos órgãos jurisdicionais criminais (e particularmente ao

juiz) o poder-dever de esclarecimento e instrução oficiosos do facto sujeito a julgamento. Os

limites que o nosso Direito Processual Criminal – na linha, aliás, dos Direitos estrangeiros –

prescreve ao princípio do inquisitório são vários. (Deve-se, no entanto, ter em conta que esses

limites são postos ou a favor do réu ou para garantia da imparcialidade e objetividade do

julgador e, assim, no que toca a este segundo ponto, são limites que não contrariam, antes

favorecem, a intenção última do princípio inquisitório). Avultam todas as restrições que a

legalidade processual impõe já à utilização de quaisquer meios de prova – assim, só poderão

utilizar-se os meios de prova legalmente admitidos, ficando excluídos certos processos porventura

eficazes, mas atentatórios de valores fundamentais, como as narco-análises – já ao modo da

sua produção –, pense-se, por exemplo, no regime a que está sujeita a prova por exames e

pericial».

Aparentemente discordantes, as palavras de Figueiredo Dias valem na mesma hoje em dia:

«que o princípio segundo o qual só poderão utilizar-se os meios de prova admitidos em direito

constitua um limite ao princípio da investigação, é ideia que não poderemos aceitar. A

legalidade dos meios de prova, bem como as regras gerais de produção da prova e as chamadas

proibições de prova (narco-analises, polígrafos ou lie detectors, etc.) são condições de validade

processual da prova e, por isso mesmo, critérios da própria verdade material».

O regime legal dos meios de prova típicos visa garantir, a máxima credibilidade dos mesmos

para a demonstração dos factos probandos. Nesse campo, são proibidos, por exemplo:

1. O testemunho de ouvir dizer (artigo 129.º, n.º1 CPP);

2. A reprodução de vozes ou rumores públicos (artigo 130.º, n.º1 CPP);

3. O depoimento de uma testemunha não esclarecida sobre a sua faculdade de

recusa de depoimento (artigo 134.º, n.º2 CPP); ou

4. A leitura em audiência de autos e declarações fora dos casos expressamente

permitidos (artigo 356.º CPP).

A própria lei estabelece os casos em que as provas não podem ser produzidas, nem valoradas.

O legislador usa diversas expressões para se referir a essas restrições de prova: a título de

exemplo, veja-se:

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✒ 1. O artigo 129.º, n.º1 CPP, que refere que o depoimento não pode servir como meio

de prova;

2. O artigo 130.º, n.º1 CPP, onde se diz que não é admissível como depoimento a

reprodução de vozes ou rumores públicos;

3. O artigo 167.º, n.º1 CPP, segundo o qual as reproduções mecânicas só valem como

prova dos factos ou coisas reproduzidas se não forem ilícitas, nos termos da lei penal.

A violação destas disposições gera nulidade dependente de arguição, embora a lei não comine

aqui expressamente a nulidade (artigo 120.º, n.º2 CPP). Mas deve entender-se que a

cominação de nulidade não depende necessariamente da utilização da palavra nulidade,

podendo a mesma consequência retirar-se de expressões como não pode, não é admissível ou só

valem como prova.

§22.º - As proibições de prova

A doutrina processual penal das proibições de prova abrange:

As proibições de produção de prova: as proibições de produção de prova cabem numa

das seguintes três espécies:

1. Os temas de prova proibidos: há temas de prova proibidos e que, por conseguinte,

não devem ser investigados: por exemplo, os factos abrangidos pelo segredo de

Estado:

a. Artigo 137.º CPP: trata-se da proibição de utilizar a testemunha para obter

depoimento sobre factos que constituam segredo de Estado.

b. Artigo 182.º CPP: trata-se da proibição de obter prova documental relativa

a factos cobertos pelo segredo de Estado.

Em ambos os casos, o interesse público na salvaguarda do segredo de Estado

prevalece sobre o interesse igualmente público de descoberta da verdade material.

2. Os meios de prova proibidos: há também proibições de produção de prova através

de determinados meios de prova: por exemplo, a proibição da produção de prova

através dos suportes técnicos e respetivas transcrições quando tiverem sido gravadas

conversações em que intervenham o Primeiro Ministro (artigo 11.º, n.º2, alínea b)

CPP), ainda que a interceção telefónica tenha sido autorizada por despacho de juiz

de instrução no âmbito de inquérito processual, nos termos do artigo 187.º CPP.

Neste caso, é o próprio meio de prova que está inquinado, mesmo que o conteúdo

das conversações não refira factos que constituam segredo de Estado, não sendo,

portanto, um tema de prova proibido.

3. Os métodos de prova proibidos: os métodos de prova são os procedimentos

usados pelas autoridades judiciárias, pelas polícias criminais, pelos advogados e até

pelos particulares (em especial, os ofendidos) para a aquisição de meios de prova e

sua utilização no processo. Os meios de prova não devem ser obtidos mediante

procedimentos contrários aos direitos de liberdade, salvo nos casos expressamente

previstos na Constituição. A este propósito, rege a distinção entre

a. Métodos de prova absolutamente proibidos; e

b. Métodos de prova relativamente proibidos.

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§

Conforme a produção de prova mediante certa atuação for absolutamente proibida

ou, pelo contrário, possa ser ordenada ou autorizada por uma autoridade judiciária

ou consentida pelo próprio visado. A violação de formalidades relativas à obtenção

das provas não deve ser confundida com os métodos de prova proibidos.

a. Os métodos contrários aos direitos de liberdade: a velha máxima de que

o processo penal é Direito Constitucional aplicado tem toda a razão de ser

no campo da obtenção dos meios de prova. Ou então não é verdade que a

Constituição elevou à categoria dos direitos fundamentais a conciliação das

provas com a dignidade da pessoa humana. Nas múltiplas garantias

constitucionais do processo penal, cabem as proibições de prova

subentendidas na cominação da nulidade de todas as provas obtidas mediante

tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva

intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas

telecomunicações (artigo 32.º, n.º8 CRP). A tortura, a coação ou a ofensa da

integridade física ou moral da pessoa em geral são métodos absolutamente

proibidos de obtenção de provas. Já a intromissão na vida privada, no

domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações são métodos

relativamente proibidos, por isso mesmo que a proibição é agora afastada

quer pelo acordo do titular dos direitos em causa, quer pelas restrições à

inviolabilidade desses direitos constantes do artigo 34.º, n.º2, 3 e 4 CRP. Sob

a epígrafe de métodos proibidos de prova, o artigo 126.º CPP repete a citada

distinção entre as proibições absolutas e as proibições relativas de obtenção

de prova. No caso do artigo 126.º, n.º1 e 2 CPP, vigora uma proibição

absoluta de obtenção de provas através dos meios ali indicados, ainda que

sejam obtidas a coberto do consentimento do titular dos direitos em causa.

No caso do artigo 126.º, n.º3 CPP, a proibição é afastada pelo acordo do

titular dos direitos em causa, ou então é removida mediante as ordens ou

autorizações emanadas de certas autoridades, nos termos da lei. Assim sendo,

a busca domiciliária (artigo 177.º CPP), a apreensão de correspondência

(artigo 179.º CPP), a apreensão de documentos em escritório de advogado

ou consultório médico (artigo 180.º CPP) e as escutas telefónicas (artigo 187.º

CPP) ou equiparadas (artigo 189.º CPP) são permitidas nas condições

expressamente previstas na lei. A proibição de certos métodos de obtenção

de prova dirige-se preferencialmente aos órgãos de perseguição penal, a

começar pelas autoridades judiciárias e a terminar nos OPC. Antes da

abertura oficiosa do inquérito, os métodos de obtenção de provas podem

surgir como medidas cautelares e de polícia da competência do POC: por

exemplo, artigos 174.º, n.º5, 178.º, n.º4, 249.º, especialmente, n.º2, alínea c) e

251.º, n.º1, alínea a) CPC). Mas o inquérito é a fase do processo penal na qual

ocorre normalmente o maior número de diligências para a obtenção de meios

de prova. Nomeadamente, o Ministério Público, dirigindo o inquérito, e os

Órgãos de Polícia Criminal que o assistem (artigo 263.º, n.º1 CPP) sentem

então a premência de trazer para o processo todos os elementos necessários

para deduzir a acusação, sendo caso disso (artigo 283.º CPP). Escusado será

lembrar que muitas das diligências para a obtenção de meios de prova

porventura julgadas necessárias pelo Ministério Público só podem ser levadas

a cabe se forem autorizadas pelo juiz de instrução, na sua veste de juiz das

liberdades: por exemplo, artigos 179.º e 187.º a 189.º CPP. Mormente no

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✒ inquérito, a parcialidade do Ministério Público é um facto, apesar de todos

sabermos que tem de investigar à charge et à décharge. Não espanta, pois, que as

proibições de produção de prova persigam fins de disciplina, por isso mesmo

que visam impedir que o Ministério Público e os Órgãos de Polícia Criminal

façam tábua rasa dos direitos de liberdade que se opõem ao interesse na

perseguição penal ou abusem dos meios de atuação disponibilizados pela

ordem jurídica. Nas fases de inquérito e instrução, o juiz de instrução.

i. Nas fases de inquérito e instrução, o juiz de instrução poderá ele mesmo

sentir a necessidade de ordenar que se realizem ainda mais diligências

de obtenção de provas, podendo recorrer aos Órgãos de Polícia

Criminal para a realização das mesmas (artigos 288.º, n.º1 e 290.º, n.º2

CPP). Escusado será dizer que as proibições de produção de prova

se destinam a disciplinar a atuação do juiz do julgamento no tocante

à ampla margem de atuação que lhe é conferida pelo princípio da

investigação (artigo 340.º e seguintes CPP).

ii. Na fase do julgamento: o juiz está igualmente habilitado a ordenar todas

as diligências que se lhe afigurem necessárias para a descoberta da

verdade material (artigo 340.º, n.º1 CPP), embora esteja subordinado

ao tema definido pela acusação ou pela pronúncia (princípio da

vinculação temática).

Seguramente, as proibições de produção de prova também se dirigem aos

restantes sujeitos processuais, especialmente ao(s) advogado(s) e ao(s)

assistente(s). Com certeza, as proibições de produção de prova não se dirigem

aos particulares, por isso mesmo que eles não estão vinculados às normas do

processo penal, salvo se atuarem às ordens ou sob a direção das instâncias

formais de controlo social. Resta saber se o facto de um meio de prova ter

sido ilicitamente obtido por um particular não impediria a sua utilização em

processo pena, mas a questão já escapa do âmbito das proibições de

produção de prova.

b. Os procedimentos violadores das formalidades: o regime legal dos

métodos de obtenção de provas estabelece várias formalidades cuja

inobservância torna o ato ilegal: por exemplo, a entidade competente para

receber o depoimento deve advertir os parentes e afins do arguido acerca da

faculdade que lhes assiste de recusarem o depoimento (artigo 134.º, n.º2 CPP),

os investigadores policiais devem entregar ao visado a cópia do despacho que

determinou a revista (artigo 175.º, n.º1 CPP) e a revista deve respeitar o pudor

do visado (artigo 175.º, n.º2 CPP). Embora o respeito pelas formalidades dos

métodos de obtenção de provas tenha um significado material, na medida em

que essas formalidades regulamentam e racionalizam a procura da verdade, a

violação das formalidades não cabe no domínio das proibições de prova se

não atentar contra direitos de liberdade.

As proibições de valoração de prova: em princípio, a consequência processual do

reconhecimento do caráter proibido das provas devia ser a proibição de as mesmas serem

utilizadas como fundamento de decisões prejudiciais ao arguido, devendo essas provas ser

desencadeadas dos autos, uma vez que, perdida a sua única utilidade, serviriam agora apenas

para as entidades decisórias, continuarem a avaliar, na prática, algo que verdadeiramente não

deviam conhecer. De resto, a proibição de utilização (=valoração) das provas proibidas

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§

afigura-se como a melhor maneira de o legislador prevenir a tentação de obtenção das provas

a qualquer preço, por parte das instâncias formais de controlo social. É como se o legislador

anunciasse aos virtuais prevaricadores

Não sucumbais ao canto da sereia da obtenção das provas a qualquer preço,

porquanto isso vos custaria a inutilização absoluta dos meios de prova

ilicitamente obtidos, nem sequer podendo repetir essas provas por outros meios!

Tudo se passa, no entanto, de maneira mais complicada que isso. Ou seja:

1. As proibições de produção de prova cuja violação prejudica o uso das provas:

as proibições de produção de prova cuja violação prejudica o uso das provas são

normais. Portanto, o comentário aqui seria supérfluo.

2. As proibições de produção de prova cuja violação não tem consequências: por

exemplo, os exames ao corpo de uma pessoa devem respeitar o pudor de quem a eles

se submeter (artigo 172.º, n.º1 CPP), assim como a revista deve respeitar o pudor do

visado (artigo 175.º, n.º2 CPP). Um homem, se não for um médico, a examinar o

corpo de uma mulher, ou um homem a revistar o corpo de uma mulher são situações

suscetíveis de atentar contra o pudor da pessoa visada. Nos termos do CPP, essas

violações não implicam, porém, a subtração das provas eventualmente obtidas à

posterior valoração. Embora o ultraje ao pudor possa assumir a dimensão de uma

autêntica lesão ao direito fundamental à dignidade sexual da pessoa, ainda assim será

difícil de subsumir uma tal situação nos casos descritos no artigo 126.º CPP, além de

que os próprios artigos 172.º e 175.º CPP não cominam a nulidade para os casos de

violação. Enfim, a simples ideia da existência de normas processuais cuja violação

não implica quaisquer consequências processuais é alvo de muitas críticas na doutrina,

mas não há maneira de escapar a ela.

3. As proibições de valoração de prova independentes: há proibições de valoração

de prova alheias à existência de qualquer vício na anterior produção de prova. As

escutas na pendência de uma dada investigação criminal, estando devidamente

autorizadas e sendo as gravações das conversas telefónicas levadas ao conhecimento

do juiz que as autorizou, aliás acompanhadas da transcrição das passagens

consideradas relevantes pelos investigadores policiais – i.e., os factos casualmente

descobertos, mas independentes do crime cuja investigação legitimara a escuta

telegónica – só podem ser valorados se porventura couberem na classe dos crimes

do catálogo (artigo 187.º, n.º7 CPP). Caso contrário, trata-se de uma proibição de

valoração que não depende de qualquer vício na anterior produção da prova. Outro

exemplo: a busca domiciliária legitimamente ordenada ou autorizada pelo juiz pode

levar, naturalmente, à apreensão de objetos ou documentos de grande interesse para

a prova de um crime, quem sabe, os diários íntimos. Ora, o regime da prova

documental na lei processual penal nada diz acerca da utilização de diários íntimos

como meio de prova, mas pode ser questionada essa espécie de devassa da esfera

íntima de outrem para se garantir a investigação da verdade a qualquer preço (são

inadmissíveis, por força do artigo 18.º CRP, os meios de prova que lesem o direito

ao livre desenvolvimento da personalidade e à reserva da intimidade da vida privada).

A lei estabelece os casos em que as provas não devem ser valoradas, ao estatuir no

n.º1 do artigo 126.º CPP, que as provas obtidas mediante tortura, coação, etc., não

podem ser utilizadas e, no n.º3, que as provas obtidas mediante intromissão na vida

privada, no domicílio, etc., também não podem ser utilizadas.

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✒ A invalidade do ato processual: qualquer proibição de prova pode, por definição, ser

violada pelo aplicador do direito. A violação determina a invalidade do ato e, eventualmente,

dos seus termos subsequentes. Como nos diz Conde Correia:

«A invalidade é um conceito unitário, que exprime todos os desvios entre as disposições

processuais e a atividade empreendida, capazes de legitimar uma pretensão eliminatória dos

efeitos jurídicos produzidos. Existe apenas um grau de invalidade que, enquanto modelo para

a avaliação dos atos processuais, é indivisível. O ato integra a sua fattispecie e é válido ou não

integra e é inválido; de modo que, nessa perspetiva de conformidade ou não conformidade entre

o ato e a norma, é impossível de diferenciar vários níveis de imperfeição. O que não significa

uniformidade nas suas consequências. Antes pelo contrário, os atos processuais penais inválidos

dão origem a uma pluralidade de tratamentos, que variam em função da gravidade e da

natureza da violação. Se o legislador estabelecesse apenas um princípio geral, tratando com

uniformidade todos os vícios dos atos processuais penais, o processo perderia flexibilidade. A

menor irregularidade e a maior anomalia teriam a mesma resposta, sem que isso significasse

um aumento significativo das garantias individuais».

1. O sistema das nulidades e irregularidades: o Título V (Das nulidades) do Livro

II do CPP correlaciona o ato inválido com um sistema de nulidades e irregularidades:

a. As infrações mais graves dão lugar às nulidades insanáveis, que devem ser

oficiosamente declaradas em qualquer estado do procedimento, mas que não

obstam à formação de caso julgado (artigo 119.º CPP);

b. As infrações de gravidade média, digamos assim, originam as nulidades

dependentes de arguição, que devem ser arguidas pelos interessados dentro

de determinados prazos, ficando ainda sanadas pela intercessão de certos

eventos previstos na lei (artigos 120.º e 121.º CPP), e as infrações mais leves,

quase sempre de caráter formal, são relegadas para a figura das irregularidades,

que está sujeita a causas de sanação fulminantes (artigo 123.º CPP).

No artigo 122.º, n.º1 CPP, diz-se que

«as nulidades tornam inválido o ato em que se verificarem, bem como os que dele

dependerem e aquelas puderem afetar».

São termos que não se podem considerar muito felizes, como nos diz Conde Correia:

«o legislador confundiu os conceitos de nulidade, invalidade e ineficácia, prescrevendo

que a nulidade torna o ato defeituoso inválido. Todavia, não é isso que acontece na

realidade. O ato declarado nulo era inválido desde a sua génese, precisamente por não

corresponder ao seu esquema legal. A declaração de nulidade limita-se a verificar essa

desconformidade e a destruir os efeitos já produzidos ou a evitar a sua produção futura,

não produzindo qualquer invalidade. Nesta medida, as nulidades, nas suas diversas

espécies, constituem formas de tornar ineficazes os atos inválidos».

A invalidade é uma qualificação jurídica e a ineficácia é uma realidade prática. Posto

isto, os atos inválidos podem ser eficazes, assim como os atos válidos podem ser

ineficazes. Na realidade, os atos processuais penais inválidos produzirão muitas vezes

efeitos até que sejam declarados nulos, salvo se forem estruturalmente inaptos para

tal.

2. As nulidades extra-sistemáticas e o seu regime sui generis: mas o Título V não

esgota as espécies da nulidade. Senão, vejamos: o artigo 118.º, n.º3 CPP, dizendo que

as disposições do presente título não prejudicam as normas deste Código relativas a

proibições de prova, sugere então – é a nossa interpretação – a possibilidade de haver

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§

um ou vários regimes sui generis para as nulidades resultantes da violação das normas

que estabelecem proibições de prova. Portanto, das três uma:

a. Ou bem que a lei estabelece tal (ou tais) regime(s) sui generis para

(algumas d)as nulidade resultantes da violação das normas da prova;

b. Ou bem que a lei comina expressamente a nulidade insanável deste ou

daquele ato em que se verificar a violação das normas da prova

(atendendo à hipótese referida no corpo do artigo 119.º, in fine CPP);

c. Ou bem que não estabelece regime algum. Neste caso, vigoraria então aí

o regime supletivo das nulidades dependentes de arguição, nos termos do

artigo 120.º, n.º1 CPP.

Bem vistas as coisas, o legislador criou, pelo menos, um regime sui generis, a saber: as

nulidades do artigo 126.º CPP. Na verdade, a nulidade mencionada no artigo 32.º,

n.º8 CRP e artigo 126.º CPP não é uma nulidade em sentido técnico-processual, mas

uma nulidade dotada de uma autonomia técnica completa em face do regime das

nulidades processuais. Acontece, porém, que o legislador português não quis levar a

autonomia técnica das proibições de prova tão longe a ponto de prescindir do

emprego da palavra nulidade neste contexto. Mas poderia e deveria tê-lo feito,

simplesmente cominando, com muito mais rigor, que: são proibidas, não podendo

ser utilizadas, as provas…

a. O artigo 126.º, n.º1 CPP (o n.º2 é meramente explicativo do n.º1): proíbe

implicitamente a produção das provas mediante a ofensa da integridade física

ou moral das pessoas, por isso mesmo que comina a nulidade das provas

obtidas dessa maneira. Ademais, o preceito proíbe expressamente a valoração

dessas provas, porquanto acrescenta que as mesmas não podem ser utilizadas,

subentenda-se, na fundamentação da acusação, da pronúncia ou da sentença

condenatória.

b. O artigo 126.º, n.º3 CPP não contém um regime diverso do anterior. O

preceito diz que são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas

obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na

correspondência ou nas telecomunicações. Esses métodos configuram

contra direitos de liberdade cuja importância não fica atrás das situações

descritas nos números anteriores do artigo. Donde se percebe que o

legislador tenha cominado igualmente a nulidade – leia-se: a mesma espécie

de nulidade – das provas obtidas dessa maneira, determinando que essas

provas tão-pouco podem ser utilizadas. De mais a mais, a Constituição inclui

os direitos à reserva da intimidade da vida privada e à inviolabilidade do

domicílio e da correspondência ou outros meios de comunicação nas

garantias do processo penal (artigo 32.º, n.º8 CRP). É verdade que tanto o

artigo 32.º, n.º8 CRP, tal como o artigo 126.º, n.º3 CPP, admitem a restrição

desses direitos nos casos e segundo as formas previstos na lei. Mas esses casos

ficam já de fora das proibições de prova, sendo aliás métodos de prova

permitidos e regulamentados. Acresce que os direitos em causa são

disponíveis, obstando assim o acordo do respetivo titular à ofensa dos

mesmos (violenti non fit injuria). Essas hipóteses nada abundam, portanto, para

a caracterização do regime das nulidades do artigo 126.º, n.º3 CPP.

i. Do atrás afirmado se depreenderá que não podemos senão discordar das seguintes

palavras de Maia Gonçalves:

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✒ «o artigo 126.º sobre métodos proibidos de prova, contém

afloramento e regulamentação do que se estabelece nos artigos 32.º,

n.º6 e 34.º, n.º4, da Constituição da República Portuguesa, o que

desde logo dá clara indicação de que se trata aqui de princípios

fundamentais em matéria de produção da prova. O n.º2 é

meramente explicativo do n.º1; no n.º3 estabelece-se que, para além

dos casos de nulidade consagrados no n.º1, são igualmente nulas as

provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio,

na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do

respetivo titular. Trata-se, em meu entendimento, de dois graus de

desvalor de provas obtidas contra as cominações legais, sendo maior

o desvalor ético-jurídico das provas obtidas mediante os processos

referidos no n.º1, e tal diferente grau de desvalor tem reflexo nas

nulidades cominadas: enquanto as provas obtidas pelos processos

referidos no n.º1 estão fulminadas com uma nulidade absoluta,

insanável e de conhecimento oficioso, que embora como tal não esteja

consagrada no artigo 119.º o está neste artigo 126.º, através da

expressão imperativa não podendo ser utilizadas, já as provas

obtidas mediante o processo descrito no n.º3 são dependentes de

arguição e, portanto, sanáveis, pois que não são apontadas como

insanáveis no artigo 119.º ou em qualquer outra disposição da lei.

Em relação a estas últimas provas, obtidas mediante os processos

aludidos no n.º3, a lei atendeu de algum modo à vontade do titular

do interesse ofendido e ao princípio violenti non fit injuria. Aqui se

incluem, designadamente, além dos meios expressamente referidos, o

uso de microfones para registo não autorizado de conversas e as

fotografias sem consentimento das pessoas fotografadas em privado».

A tese defendida por Maia Gonçalves não pode ser acolhida, por duas

ordens de razões:

1. Abstrai incompreensivelmente do disposto no n.º3 do artigo 118.º CPP,

que dispõe que o sistema das nulidades processuais não se

aplica às proibições de prova;

2. Esquece que as diferenças de desvalor que tornam os métodos referidos

no n.º1 do artigo 126.º CPP proibidos em quaisquer circunstâncias e os

processos descritos no n.º3 do artigo 126.º CPP permitidos em certas

circunstâncias, legalmente estabelecidas, não justificam que as provas, se

forem nulas, sejam sujeitas a distintos regimes de nulidade.

Ainda menos aceitável se tornou, de resto, a tese de Maia Gonçalves

após a revisão de 2007 do Código, na medida em que a interpolação

do fragmento textual não podendo ser utilizadas no n.º3 do artigo 126.º

CPP só pode significar que o regime da nulidade aqui cominada é

igual ao do n.º1 do artigo 126.º CPP.

ii. A tese de Pinto de Albuquerque também não é ade admitir: onde, depois da

revisão de 2007, retoma a posição de Maia Gonçalves e aperfeiçoa-a:

«o regime da nulidade da prova proibida é o seguinte: a nulidade da

prova proibida que atinge o direito à integridade física e moral

previsto no artigo 126.º, n.º1 e 2 CPP é insanável; a nulidade da

prova proibida que atinge os direitos à privacidade previstos no

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§

artigo 126.º, n.º3 CPP é sanável pelo consentimento do titular do

direito. A legitimidade para o consentimento depende da

titularidade do direito em relação ao qual se verificou a intromissão

legal. O consentimento pode ser dado ex ante ou ex post facto. Se o

titular do direito pode consentir na intromissão na esfera jurídica do

seu direito, ele também pode renunciar expressamente à arguição da

nulidade ou aceitar expressamente os efeitos do ato, tudo com a

consequência da sanação da nulidade da prova proibida. Em síntese,

o artigo 126.º, n.º1 e 2 prevê nulidades absolutas de prova e o n.º3

prevê nulidades relativas de prova».

Esta tese não é de aceitar, não só pelas razões já invocadas contra a

tese de Maia Gonçalves, mas também porque a aceitação de uma

possibilidade de sanação da nulidade da prova proibida, no caso do

artigo 126.º, n.º3 CPP, enfraqueceria a função de prevenção da

própria proibição de prova contra possíveis abusos por parte das

autoridades judiciárias e OPC, na medida em que as provas obtidas

em tais circunstâncias poderiam, em certas circunstâncias, ainda

assim ser utilizadas. Além de que a exigência de uma renúncia

expressa à arguição da nulidade facilmente se transforma, na praxis,

numa mera falta de arguição da nulidade, que é quanto bastará, se a

tese de Pinto de Albuquerque for acolhida, para se concluir que a

prova contaminada pode, afinal, ser utilizada. Não podemos, pois,

concordar com a tese de Pinto de Albuquerque.

Em suma, o regime sui generis das nulidades cominadas no artigo 126.º CPP consiste

essencialmente no seguinte: são nulidades de conhecimento oficioso a todo o

tempo e podem ser atacadas excecionalmente depois do trânsito em julgado

da decisão final, caso só sejam descobertas depois disso.

À parte o disposto no artigo 126.º CPP, há ainda as nulidades diretamente resultantes

da violação dos preceitos da lei que estabeleça, por via positiva o âmbito das

restrições legítimas aos direitos de liberdade, a saber:

a. Os pressupostos da revista e das buscas, inclusive a domiciliária

(artigos 174.º, n.º3 e 5 e 177.º CPP);

b. Os pressupostos da apreensão de correspondência, inclusive em

escritório de advogado ou em consultório médico (artigos 179.º e 180.º

CPP);

c. Os pressupostos das escutas telefónicas ou equiparadas (artigos 187.º e

189.º CPP).

Dado que os artigos agora mesmo citados são os casos previstos na lei de restrição

aos direitos de liberdade (artigo 126.º, n.º3 CPP), então é forçoso que os atos cuja

invalidade advenha da violação dos pressupostos neles estabelecidos deem lugar à

mesma nulidade e à mesma inutilização da prova cominadas no próprio artigo 126.º,

n.º3 CPP.

3. As violações reconduzíveis ao sistema das nulidades processuais: há, porém,

outras nulidades de prova reconduzíveis ao sistema das nulidades processuais, as

quais seguem o regime das nulidades dependentes de arguição (artigo 120.º, n.º1

CPP). É o caso dos atos cuja invalidade resulta da violação das meras formalidades

da prova, contanto que a nulidade seja cominada nas disposições legais em causa: por

exemplo, a falta de aviso aos parentes e afins acerca da sua faculdade de recusarem o

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✒ depoimento (artigo 134.º, n.º2 CPP) ou a demora na entrega ao juiz das gravações e

transcrições necessárias para se fiscalizar as escutas telefónicas (artigos 188.º, n.º4 e

190.º CPP). Maria de Fátima Mata-Mouros diz, e concordamos:

«Na maior parte dos casos (provavelmente mesmo na totalidade) de nulidades de

escutas telefónicas arguidas nos nossos tribunais, o que tem sido discutido é, tão-só, a

verificação, ou não, da nulidade na sua vertente sanável. A questão essencialmente

apreciada consistem em saber se as interceções telefónicas realizadas nos respetivos

processos contaram, ou não, com efetivos acompanhamento e controlo judiciais. A ideia

de que uma prova adquirida sem o adequado controlo do juiz possa configurar uma

prova absolutamente proibida tem desvirtuado estas regras, levando à repetição, a meu

ver excessiva, de prolação de decisões sucessivas sobre a mesma questão num mesmo

processo, mesmo antes de se atingir a instância de recurso. Será tarefa fácil pesquisar

em processos pendentes ou nos arquivos dos tribunais casos em que esta mesma questão

tenha sido alvo de diversas, e por vezes também contraditórias, decisões proferidas

sempre em primeira instância, ainda que nas diversas fases em que se divide o processo.

As proibições de prova geram prova absolutamente nula e, por isso, podem ser

declaradas a qualquer momento, argumenta-se. Prática, a meu ver, excessiva e a

revelar, de facto, falta de maturidade na apreciação destas questões. Indefinição,

imprecisão, enfim, hesitação característica de quem não encontrou ainda a segurança

que só a experiencia permite atingir».

4. As irregularidades de prova: toda a violação de formalidades de prova que não for

cominada com a nulidade é uma irregularidade (artigos 118.º, n.º2 e 123.º CPP).

O efeito à distância das proibições de prova: a jurisprudência dos frutos da árvore

envenenada ou da mácula e a sua equivalente germânica, também chamada teoria da mácula,

enquanto metáfora da nódoa de ilegalidade, dizem que as provas que atentam contra os

direitos de liberdade arrostam com um efeito à distância que consiste em tornarem

inaproveitáveis as provas secundárias a elas causalmente vinculadas. O efeito à distância é a

única forma de impedir que os investigadores policiais, os procuradores e os juízes menos

escrupulosos se aventurem à violação das proibições de produção de prova na mira de

prosseguirem sequências investigatórias às quais não chegariam através dos meios postos à

sua disposição pelo Estado de Direito. O efeito à distância pode, no entanto, ser atenuado

por uma série de exceções, que se reconduzem à ideia de saber se as provas secundárias

poderiam ter sido obtidas na falta de prova primária maculada. Na jurisprudência portuguesa,

o efeito à distância foi reconhecido pela primeira vez pelo Tribunal Judicial de Oeiras

(Sentença do 3.º Juízo, de 5 março 1993):

«a nulidade do primeiro dos meios de prova é extensiva ao segundo, impossibilitando, da mesma

forma, o julgador de extrair deste último qualquer juízo valorativo».

Depois disso, o efeito à distância foi declarado em vários arestos, assim como a necessidade

de se lhe impor restrições, tendo até ambos os temas já merecido um tratamento conjunto

na jurisprudência constitucional: cabe referir o importante Ac. TC n.º198/2004, 24 março

2004, cuja doutrina foi reafirmada na Decisão Sumária do TC n.º13/2008, 11 janeiro 2008.

No Acórdão tratava-se de apreciar a questão de inconstitucionalidade normativa de saber se

a norma do artigo 122.º, n.º1 CPP, pode ser interpretada como autorizado, face à nulidade

de interceções telefónicas realizadas, a utilização de outras provas, distintas das escutas e a

elas subsequentes, tais como declarações confessórias dos arguidos que não teriam existido

se os arguidos soubessem da invalidade das escutas. O Tribunal afirmou a inteira vigência

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entre nós da doutrina da eficácia longínqua ou do efeito à distância, mas, no caso em

apreciação, invocando a doutrina estabelecida pelo Supremo Tribunal dos EUA, considerou

que a invalidade da prova primária não afetava uma posterior confissão voluntária e

esclarecida quanto às suas consequências, tratando-se de um ato independente praticado de

livre vontade. Em referência ao artigo 122.º CPP, o TC considerou que

«esta norma abre um espaço interpretativo no qual há que procurar relações de dependência ou

de produção de efeitos (artigo 122.º, n.º1 CPP fala em atos dependentes ou afetados pelo ato

inválido) que, com base em critérios racionais, exijam a projeção do mesmo valor que afeta o

ato anterior».

Finalmente, o tribunal decidiu que

«o entendimento do artigo 122.º, n.º1 CPP, subjacente à decisão recorrida, segundo a qual esta

abre a possibilidade de ponderação do sentido das provas subsequentes, não declarando a

invalidade destas, quando estiverem em causa declarações de natureza confessória, mostra-se

constitucionalmente conforme, não comportando qualquer sobreposição interpretativa a essa

norma que comporte ofensa ao disposto nos preceitos constitucionais invocados».

Na doutrina portuguesa:

1. Figueiredo Dias, já antes do CPP atual, defendia como claramente inscrita no artigo

32.º CRP esta doutrina.

2. Costa Andrade, afirma que a doutrina norte-americana da independent source:

«legitima a valoração de provas secundárias sempre que elas foram ou poderiam ter

sido obtidas por via autónoma e legal, à margem da exclusionary rule que impende

sobre a prova primária. Cabendo, contudo, precisar as exigências particularmente

apertadas de que os tribunais americanos fazem depender a valência duma causalidade

hipotética. Tal só ocorrerá nos casos em que a produção da prova secundária, por via

independente e legal, se possa, em concreto, considerar como imimnente, but in fact

unrealized source of evidence (inevitable discovery exception)».

3. Helena Mourão trata do efeito remoto das proibições de prova e do percurso da

sua limitação, mas critica a relevância dos percursos hipotéticos de investigação.

4. Pinto de Albuquerque aceita igualmente limitações ao efeito à distância, mas recusa

a invocação de percursos hipotéticos de investigação e, em especial, a doutrina da

descoberta inevitável.

5. Pela nossa parte, reconhecemos que a invocação de percursos hipotéticos de

investigação não pode ser aceite sem reflexão, sob pena de se tornar ineficaz o

sentido preventivo das proibições de prova, mas, com as limitações que a

jurisprudência americana rem vindo paulatinamente a impor à doutrina da descoberta

inevitável, esta acaba sendo a mais adequada aos juízos de ponderação envolvidos no

caso concreto. Ou seja, no caso Nix vs. Williams, de 1984, o Supremo Tribunal dos

Estados Unidos da América aplicou o conceito de descoberta inevitável para admitir

como prova o cadáver da vítima, que tinha sido descoberto pela polícia na sequência

de uma confissão do suspeito obtida de forma ilegal. O Supremo Tribunal de Justiça

argumentou que, de qualquer forma, o cadáver teria sido descoberto pelas equipas

de busca já constituídas, afirmando que a grande maioria dos tribunais estaduais e

federais, reconhecem uma exceção de descoberta inevitável à norma de exclusão.

Não se exige aqui que a polícia tenha, de facto, obtido as provas também através de

fonte autónoma e legal, mas apenas que tivessem podido, hipoteticamente, fazê-lo.

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✒ No próprio caso Nix vs Williams, o Supremo Tribunal estipulou que a exceção só

teria aplicação se a acusação demonstrasse, com um grau de probabilidade superior

a 50% (preponderance of the evidence), que a informação teria sido inevitavelmente

descoberta por meios legais.

Resta resolver o problema técnico-jurídico de saber qual a base legal do efeito à

distância das proibições de prova no ordenamento jurídico português. Tem sido

frequente a referência ao artigo 122.º, n.º1 CPP:

«As nulidades tornam inválido o ato em que se verificarem, bem como os que dele dependerem

e aquelas puderes afetar».

Esta referência é, no entanto, duvidosa, atendendo à autonomia técnica das proibições de

prova e, portanto, à sua independência relativamente ao regime das nulidades processuais,

no âmbito do qual se inscreve o próprio artigo 122.º CPP. De resto, na jurisprudência e na

doutrina:

1. O Ac. TC n.º198/2004, 24 março 2004, já teve ocasião de demonstrar que a

afirmação genérica das garantias de defesa que está contida no artigo 32.º, n.º1 CRP

«bastaria para que entre esses direitos de defesa se considerasse incluído o de ver

excluídas do processo (tornadas ineficazes, inválidas ou nulas) as próprias provas

ilegais reportadas a valores constitucionalmente relevantes. Assim, o n.º8 do mesmo

artigo 32.º CRP, mais não faz do que sublinhar e tornar indiscutível esse direito à

exclusão, enquanto dimensão específica e indissociável do direito a um processo penal

com todas as garantias de defesa. Não teria sentido, estando em causa valores (os

elencados no artigo 32.º, n.º8 CRP) a que a Constituição confere tal importância, que

a prova que os atingisse e fosse obtida com inobservância das regras que permitem a

compressão desses mesmos valores, produzisse consequências processuais que ficassem

aquém da nulidade dessas provas».

2. Helena Mourão considera que o recurso à norma do artigo 122.º, n.º1 CPP, é

desnecessário para a fundamentação de uma sede normativa reguladora de um

princípio de efeito à distância de prova no nosso sistema processual penal, pois basta

o fundamento constitucional contido no artigo 32.º, n.º8 CRP.

3. Por nossa parte, em escritos anteriores, procuramos amparar o efeito à distância das

proibições de prova no artigo 122.º, n.º1 CPP, mas esta posição não era, de facto,

congruente com a nossa defesa de uma independência técnica completa das

proibições de prova em face do regime das nulidades processuais. Por conseguinte,

cremos que a referência ao artigo 122.º, n.º1 CPP só pode servir de argumento a

fortiori, considerando que se a lei reconhece o efeito à distância das nulidades

processuais quando poderá estar em causa, por exemplo, a violação de meras

formalidades de prova, então por maioria de razão ter-se-á de reconhecer o efeito à

distância das proibições de prova quando está em causa a violação de direitos de

liberdade.

As garantias de defesa contra o ato inválido: seguramente, não cabe aqui fazer uma

teoria geral da arguição das nulidades e subsequentes recursos (isto é, o recurso de despachos

que indefiram a arguição de nulidade), nem uma teoria geral do recurso de decisões de mérito

fundadas numa valoração das provas nulas. Assim sendo, recordemos apenas o essencial: é

admissível o recurso de quaisquer decisões cuja irrecorribilidade não esteja prevista na lei

(artigo 399.º CPP). O recurso dos despachos que decidam a admissibilidade das provas ou o

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§

recurso das decisões de mérito fundadas numa valoração das provas nulas terá como

fundamento o erro de Direito (artigo 410.º, n.º3 CPP). O regime da irrecorribilidade da

decisão instrutória que pronunciar o arguido por factos constantes da acusação do Ministério

Público, mesmo na parte que veda a reapreciação de nulidades e outras questões prévias

(artigo 310.º, n.º1 CPP), não pode ser aplicado às proibições de prova, considerando que

estas têm autonomia relativamente às nulidades processuais. Ou seja, é sempre recorrível o

despacho de pronúncia na parte em que a admissibilidade de provas proibidas. Os atos

processuais nulos só podem ser anulados até ao trânsito em julgado da decisão final. Com a

formação do caso julgado, mesmo as nulidades arguíveis em qualquer fase do procedimento,

incluindo os vícios da própria sentença, tornam-se insindicáveis. Mas as nulidades cominadas

no artigo 126.º CPP, dada a perversão do processo inerente à violação dos direitos de

liberdade, não podem escapar à sindicância a pretexto do trânsito em julgado da decisão final.

A revisão de 2007 do Código introduziu, no artigo 449.º, n.º1, alínea e), uma causa de revisão

pro reo nova, a saber: a descoberta de que serviram de fundamento à condenação provas

proibidas nos termos do n.º1 a 3 do artigo 126.º CPP. Pinto de Albuquerque critica a nova

causa de revisão da sentença, afirmando que põe gravemente em perigo o valor constitucional

do caso julgado. Mas não cremos que o proclamado valor constitucional do caso julgado

deva impedir o recurso de revisão baseado na descoberta do caráter gravemente viciado dos

meios de prova que levaram à condenação do arguido.

As consequências penais da violação das proibições de prova:

1. No Direito Processual Penal aparece a dicotomia: admissível vs inadmissível; ao passo

que,

2. No Direito Penal material aparece aqueloutra dicotomia: licito vs ilícito.

Nada dissemos acerca do caráter ilícito da violação das proibiçõrs de prova, especialmente

se forem usados os métodos proibidos de obtenção de meios de prova. Não caberia aqui o

tratamento ex professo da relevância penal dessas situações: as consequências penais são

independentes das consequências processuais da violação das proibições de prova,

atendendo à especificidade e à autonomia jurídicas do processo penal. Como se explica, então,

que o artigo 126.º, n.º4 CPP estabeleça que as provas obtidas ilicitamente podem ser

utilizadas com o fim exclusivo de se proceder contra as pessoas que usarem tais métodos de

obtenção de provas? O artigo 126.º, n.º4 CPP parece um preceito desligado da

intencionalidade específica do processo penal. Ou talvez não: o preceito cumpre a função de

avisar os órgãos de perseguição criminal de que ninguém está acima da lei, dizendo em alto

e bom som que não há diferenças de estatuto entre os representantes da lei e da ordem e os

cidadãos delinquentes. O artigo 124.º, n.º4 CPP sintetiza, pois, as finalidades preventivas do

instituto das proibições de prova e o ideário de Estado de Direito.