Direitos Humanos e Legitimaç

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    Trans/Form/Ao, Marlia, v. 36, p. 121-148, 2013. Edio Especial. 121

    Normas - O Estabelecimento dos Direitos Humanos

    NORMASO ESTABELECIMENTODOSDIREITOSHUMANOS

    Cllia Aparecida Martins1

    RESUMO: Habermas entende os direitos humanos como produtos do mundo da vida; e no interiordo debate pblico, com a participao efetiva dos cidados, que deve ocorrer a produo deles comonormas e princpios. A questo central abordada inicialmente no texto concerne ao status dessasnormas e ao seu modo de instituio, dependente das relaes de reciprocidade entre os sujeitos.Uma vez que, em sociedades complexas, apenas idealmente parece ser possvel sustentar a participaode todos os sujeitos no processo de elaborao de normas, o texto procura analisar a viabilidade da

    concepo de Habermas. Ao considerar os elementos conceituais que orbitam essa questo, processa-seno curso do texto um deslocamento para outra, a saber, a relativa ao quanto o modo de sustentaoda normatividade jurdica de um ordenamento social o determina como democrtico ou no. Este o ponto decisivo ao tratamento das normas relativas aos direitos humanos: a anlise de Habermas ideal, mas o pndulo entre moral e empiria se mantm sempre, de modo que, pelo escopo conceitual,se no h como confirmar a identificao entre legitimidade dos direitos humanos e direitos humanosproduzidos democraticamente, torna-se impossvel querer neg-la.

    PALAVRAS-CHAVE:Jrgen Habermas. Direitos humanos. Normas. Reciprocidade.

    O conceito clssico de integrao, o de integrao normativa, relativo [...] integrao simblica por meio de normas;2continua preciso e, na medidaem que fins e objetivos designados por princpios adquirem realidade objetiva,torna-se paulatinamente relevante, a qualquer comunidade lingustica voltadaa manter sua integrao, questionar-se sobre quais normas a levam a defendere submeter-se a este ou aquele princpio e no a outro. Logo, a definio de

    1Docente do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Cincias da UNESP Marlia;lder do Grupo de Pesquisa: Filosofia contempornea: Habermas. E-mail: [email protected], V.Menschenrechte und Rhetorik,p. 20.

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    integrao, apesar de clssica, variada para cada comunidade e o foco, nodeve estar nas normas, mas no processo de escolha delas. Aqui entra o papeldo acordo em torno de uma justificao racional das normas com validade

    universal. A anlise sobre produo de normas a partir de acordos (consensos)fundados em proferimentos vlidos constitui a primeira parte deste texto.

    Para Habermas, todo acordo deve ser acompanhado do reconhecimentomtuo baseado na reciprocidade. Apesar de, no seu entendimento, asinstituies e os sistemas de ao3 estarem muito mais estruturados que apluralidade de ideias e convices as quais possam estar presentes no mundoda vida, tal como Rawls, ele tambm defende ser preciso resgatar a necessidade

    de um reconhecimento recproco racional por parte dos agentes moraiscomo fundamento essencial para a construo de acordos mantenedores deordenamentos legtimos. Isso exigiu uma anlise da categoria habermasiana dereciprocidade, a qual constitui o segundo momento deste texto. Exposta essacategoria, no entanto, percebe-se que ela no dilui quando muito apenasatenua o problema central e tema deste texto, a saber: como, no marco deuma cultura poltica que admite de fato a coexistncia de uma pluralidadede convices valorativas, direitos humanos concebidos de maneira terico-

    normativa podem ser pr-estabelecidos sem oferecer riscos para a vidademocrtica da cidadania? A ltima parte do texto procura na filosofia deHabermas uma resposta a essa questo.

    I - NORMAS, ACORDOEPRETENSESDEVALIDADE

    As normas enunciam os comandos, os imperativos, sob formagenericamente inteligvel, mas sua inteligibilidade requer, mesmo como

    forma, uma referncia ao conjunto de condies e ingredientes que do ordem jurdica um senso prprio e nesse conjunto esto os valores. Elasapresentam um sentido deontolgico a validade deontolgica delas obrigaindistintamente todos os destinatrios , enquanto os valores apresentamum sentido teleolgico, traduzem preferncias compartilhadas e admitemconcordncia parcial. Essa diferena permite a Habermas considerar os direitoshumanos como normas legais constitudas e, enquanto tal, formadas segundoo modelo de normas de ao obrigatrias. A obedincia a normas s exigvel

    3FG 84, t. 88. Exceto Entgegnung, todos os demais textos de autoria de Habermas so referidoscom as letras iniciais do ttulo em alemo, seguidas do nmero da pgina no original e na traduo emportugus, a qual precedida da letra t.

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    quando elas atingem o nvel da obrigatoriedade jurdica,4no implicandonecessariamente a aplicao delas. Desde o conceito de integridade do direitotomado por Habermas de Dworkin,5 no plano da justificao, normas ou

    princpios no precisam ser concebidos como contraditrios,mas devem ser vistos como concorrentes no plano de sua aplicao, poisambos possuem uma fora de justificao maior que a de valores, porquepodem pretender uma obrigatoriedade geral, embora eles se revelem apenasmediante a interpretao.

    A questo o que deve ser feito em uma situao na qual no est claroquais normas so ou no apropriadas para solucionar um caso de conflito,

    ou para estabelecer uma regra etc., ou como deve ser avaliada uma situaoem que questionada a validade de suas normas validade agora carece defundamentao e de aplicao imparcial, pois se perdeu ou deixou de existira crena na validade e adequao de normas pr-determinadas. Devido perda de fundamentos absolutos da tica, os pontos de vista morais tm [...]de permanecer na prtica sem conseqncias, se no contarem com a [...]fora impulsionadora dos motivos e com a validade, social e reconhecida,das instituies, e o processo de validao de normas deve [...] enfrentar o

    problema de encontrar a forma de evitar [o] passo, inevitvel para o trabalhode fundamentao, em direo dessecularizao das normas.6

    No discurso, quando os participantes de uma situao de fala efetivama tematizao da validade das normas e o exame das hipteses levantadas,concomitantemente ficam enfraquecidas as experincias quotidianas domundo da vida, a partir das quais no se consegue fundamentar normasvlidas universalmente. Nesse estgio, operaes abstrativas das morais

    4FG 317, t. 322-331; 567, t. 217 II. Ver tambm: BAL, Peter. Discourse ethics and human rights...,p. 87. A noo de obrigatoriedade o princpio formal que, no pensamento habermasiano, assumeo carter de um modelo de comunicao gerador de vnculos interativos estveis (cf. ED 134-138, t.133-137). A obrigatoriedade um distintivo entre normas e valores: [...] luz de normas, possveldecidir o que mandado fazer; no horizonte dos valores, qual comportamento recomendvel. (FG312, t. 317 I). Ao contrrio das normas, os valores [...] concorrem para obter primazia; na medidaem que encontram reconhecimento intersubjetivo no mbito de uma cultura ou forma de vida, elesformam configuraes flexveis e repletas de tenses. FG 311, t. 317 I.5A exigncia de integridade do direito se cumpre, antes de qualquer coisa, de forma interpretativa:

    [...] exigido de mim que encontre um lugar em toda interpretao geral de nossa prtica legalpara todos os princpios [...]. Nenhuma interpretao geral que negasse qualquer um deles seriaplausvel; a integridade no poderia ser satisfeita se qualquer um deles fosse completamente rejeitado.DWORKIN, R. Laws Empire, p. 270.6ED 25, t. 27.

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    universalistas dominam - as morais convencionais no conseguem colocar-se frente delas, justamente porque h a moralizao do mundo da vida:so fragilizadas ou desestruturadas as relaes at ento institucionalmente

    ordenadas, com legitimidade ancorada em tradies, valores culturais oupressupostos metafsicos e religiosos.

    Na forma reflexiva da ao comunicativa se alcanar o ponto de vistamoral imparcial, posto haver a articulao das dimenses da razo prtica combase em sua incorporao na razo pblica, sustentando-se a imparcialidade,com o PD, o princpio do discurso .7Esse princpio, pelavia da institucionalizao jurdica, assume a forma de princpio de democracia,

    o qual envolvido diretamente nas questes de justificao das normas, esegundo o qual as normas vlidas so as que, em discursos racionais, podemcontar com o assentimento de todos os possveis atingidos por elas.8

    Uma norma deve pretender validez apenas quando todos os que possamser concernidos por ela cheguem, no exerccio de um discurso, a um acordorelativo a tal validez. Evidentemente, isso pressupe a escolha fundamentadada norma, de modo que a norma vlida tem que merecero reconhecimentodetodosos indivduos, o que de antemo exclui a possibilidade de somente

    alguns deles poderem examin-la. A fundamentao das normas mediante acomunicao o meio pelo qual Habermas encontrou de reformular a teoriakantiana da moral. Na teoria do discurso, o mtodo da argumentao moralsubstitui o imperativo categrico. O princpio do discurso oriundo dessaargumentao; e todo e qualquer argumento deve ser submetido a um teste defundamentao .9

    7

    Sobre a imparcialidade como ncleo da razo prtica, ver: FG 563, t. 214 v. II.8FG 138, t. 142 v. I. Ver tambm: MkH 103, t. 116. O PD [...] se encontra num nvel de abstraoque ainda neutro em relao ao direito e moral, pois ele refere-se a normas de ao em geral. FG138, t. 142 I. Sobre a transformao do PD em princpio de democracia: FG 154, t. 158; 142, t.145-146, v. I.9 Com essa noo de teste de fundamentao, Habermas tambm endossa a crtica de Hegel aoformalismo kantiano. Ver: ED 24, t. 26. Para Habermas, discursos de fundamentao das normasdevem ocorrer mediante a apresentao de justificaes de posies perante um [...] frum judiciriocrtico, no qual se institucionalize uma esfera pblica jurdica capaz de ultrapassar a atual culturade especialistas e suficientemente sensvel para transformar as decises problemticas em foco de

    controvrsias pblicas. (FG 530, t. 183-184 v. II; ver: MkH 75, t. 86). Precisamente isso distanciaHabermas, com seu PU, da proposta universalista de John Rawls sobre justia, j que, para este,a contribuio de um participante da argumentao voltada formao discursiva da vontade

    resultado de uma teoria dajustia para a qual esse participante competente, dada sua condiode especialista. MkH 76-77, t. 87.

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    Mas a justificao de uma norma exige questionar como os cidadospodem estabelec-la dentro do Estado constitucional democrtico. Isso podeacontecer segundo a linguagem moral dos direitos fundamentais, na qual o

    pluralismo cultural seria assegurado sob a condio de respeitar a universalidadedos direitos subjetivos e o imprio impessoal da lei, e, neste caso, torna-senecessria uma adaptao das particularidades contextuais neutralidade ticados princpios e procedimentos que o Estado democrtico deve sustentar.Outra alternativa, de processamento da justificao, deve acontecer desdea considerao da vida digna, na qual a linguagem dos direitos, as prticase instituies devem expressar primeiramente os valores que formam aautocompreenso tico-cultural dos membros da comunidade poltica.

    De acordo com o primeiro modo, se a opo for por ele, possvel violaras caractersticas e as necessidades das identidades de pessoas concretas a favorde um universalismo normativo abstrato. Da opo pela segunda alternativapode decorrer uma excluso arbitrria, com a violao dos direitos e normasuniversais da liberdade, possibilidade inscrita na cidadania democrtica, pelaprxis discursiva legitimada por pretenses de validade dos proferimentos.

    Nessa polaridade, certo apenas que os direitos fundamentais, ao

    mesmo tempo em que emergem como condies extrajurdicas e juridicamenteinstitucionalizadas que permitem a cada cidado (enquanto indivduo livree igual aos demais) a conformao lei, so tambm uma consequncia dadeciso recproca desses cidados, que decidem regular suas vidas em comumpor intermdio do direito positivo racional, o qual transfere para as leis opeso das normas morais que dantes, num estgio convencional, era carregadopelos prprios indivduos. Atravs dos discursos racionais, todos os cidadosparticipam no processo de elaborao das normas como autores do direito

    ao qual, posteriormente, se submetem como destinatrios e deduzem direitoshumanos fundamentais que so de interesse simtrico de todos. Portanto,a produo das normas deve ocorrer no interior do debate pblico, com aparticipao ativa dos cidados, a qual deve fornecer o substrato da adequaonormativa ao Estado de direito. Por certo, trata-se de um processo complexo.Embora os direitos humanos, como princpios, indiquem que os membros dodireito do factualmente s leis uma concordncia discursiva, Maus observa:

    Nos domnios da ao informal, a possibilidade de contextualizao deuma aplicao de normas... pode fortalecer a liberdade e a responsabilidadedos sujeitos que agem comunicativamente; porm, no interior do sistemade direito, ela significa um crescimento de poder para a justia e uma

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    ampliao do espao de deciso judicial, que ameaa desequilibrar aestrutura de normas do Estado clssico de direito. (MAUS, 1989, p. 198).

    A interpretao de Maus parece bastante coerente. Por inexistir umaplena concordncia entre normatividade e racionalidade da ao orientadaao entendimento, as ideias luz das quais o direito moderno no apenas justificado, mas tambm ganha a sua prpria autonomia (a saber, osdireitos humanos e o princpio de soberania popular), podem encontrar nainstrumentalizao do sistema jurdico um bloqueador do desenvolvimentodelas, tendo por consequncia a insegurana destrutiva nas relaes de

    conflitos de interesses.Destarte, como a lei tem sua gnese no poder comunicativo dos

    diferentes sujeitos coletivos que conformam o mundo da vida, Habermasresolve tal dilema, sustentando que o sistema de direitos, de carter evalidade universais, no define s direitos subjetivos, porm, na aplicao einterpretao que cada povo faz deles, da cultura poltica, mediante a qualsua cidadania os incorpora a sua validade cotidiana, a qual expressa na aocomunicativa das comunidades. Habermas considera necessria e plausveluma atitude hipottica de uma forma de vida em face de normas e sistemas denormas e no diante de valores culturais entrelaados com a totalidade dorespectivo contexto de vida social. Qualquer que seja o marco institucional,o que fundamental para ele o fato de estabelecer [...] uma determinadaforma de integrao social que preserva a [...] unidade de um mundo socialde vida atravs de valores e normas.10 Nessa acepo, o prprio tribunalconstitucional no paira sobre as comunidades, pelo contrrio, h umarelao e ela de dependncia: somente segundo critrios estabelecidos pelascomunidades, desde que definidos democraticamente, ele deve criar e aplicaras normas legais, ou seja, elas devem ser realizadas consoantes queles critrios;isso a reflexo de Maus no leva em conta.

    Certamente o que distingue o ponto de vista de Maus do de Habermas o enfoque: enquanto ela prima por um diagnstico um tanto ctico emrelao realidade normativa, a anlise de Habermas a respeito da produodas normas tem seu foco no processo discursivo de formao da opinio e

    10 ZRhM 159, t. 125. Ver tambm: TkH v. II, p. 125 ss. Isso evidencia, por si s, que [u]m paradigmajurdico no consegue explicar o modo como os princpios do direito e os direitos fundamentaispreenchem contextualmente as funes que lhes so atribudas normativamente. FG 238, t. 241 I.Ver tambm: FG 54, t. 57; 163-4, t. 166-7; 244, t. 247; 286-7, t. 291 v. I.

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    da vontade poltica; e como o direito justificao a reivindicao maisgeral e bsica de cada homem, isto , o que os outros, homens ou Estados,no podem retirar,sero elas, vontade poltica e opinio dos cidados, que

    determinaro a justificao das normas morais e dos valores ticos. No sentidode respeito autonomia da pessoa, o direito justificao no tem umafuno de interveno na comunidade: com ele,

    [...] no ficam pr-definidos quais fundamentos substanciais so adequados,quais direitos so exigidos ou quais instituies ou relaes sociais podemser justificadas. Como ncleo universal de cada moral interna, o direito justificao deixa isso aos membros de contextos culturais ou sociaisdeterminados. Se discursivamente ostentamos suas implicaes universalistas,

    esse ncleo possibilita um tipo de moral bsica... (FORST, 1999, p. 79).

    A ideia fundamental da teoria do discurso que to somente quandose obtm o consentimento racional de todos os envolvidos enquantoparticipantes de discursos prticos, nos quais prevalece apenas coero domelhor argumento, que uma norma ou valor justificado. A justificaoque acompanha toda proposta de prescrio com pretenso de validade deve

    ter essa validade expressa no vnculo do proferimento justificador com aexigncia do cumprimento generalizado da norma. Enquanto o PD coloca osparticipantes numa posio de distanciamento em relao esfera da eticidade

    j sedimentada, a validade normativa passa a ser examinada luz de princpiosmorais, luz do princpio de universalizao , oPU, segundo o qual qualquer norma vlida deve satisfazer a condio dosconcernidos, no que diz respeito s consequncias e efeitos colaterais queresultarem do fato de ser ela universalmenteseguida. De acordo com o PU,

    [...] - as nicas normas que tm o direito a reclamar validao so aquelasque podem obter a anuncia de todos os participantes envolvidos numdiscurso prtico.

    O imperativo categrico desce ao mesmo tempo na escala, transformando-se num princpio de universalizao U, que nos discursos prticos assumeo papel de uma regra de argumentao:

    - no caso das normas em vigor, os resultados e as consequncias secundrias,provavelmente decorrentes de um cumprimento geral dessas mesmas

    normas e a favor da satisfao dos interesses de cada um, tero de poder seraceitos voluntariamente por todos. (ED 12, t. 16).

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    Trata-se da obteno de um consenso alcanado por meio proceduralde deliberao acerca dos direitos humanos. No processo de autolegislao,os cidados atingem a validade das normas jurdicas segundo condies

    estabelecidas pelos discursos prticos de busca cooperativa do entendimento.Obviamente, faz-se necessrio encontrar os interesses universalizveis para seestabelecer o consenso - que, por sua vez, designa um parmetro ideal -, oque feito no discurso, no qual todos os interessados, seguindo as pretensesde validade (a inteligibilidade, a veracidade, a verdade, a retitude) que todoproferimento deve conter, podem levantar e criticar argumentos para, por fim,acatarem o que melhor resistir ou responder s crticas dos demais envolvidos.

    Para que um acordo baseado no consenso seja possvel, todos aqueles queentram no discurso, se no quiserem abrir mo de sua prpria racionalidade,devem se predispor a acatar o melhor argumento. Disso advm o princpiode universalizao (PU): em relao s proposies normativas, as afirmaesverdadeiras ou corretas no podem ser vlidas para uma ou outra pessoa, pois

    [a]s afirmaes vlidas tm de poder ser defendidas com razes que possamconvencer todos em qualquer altura e em qualquer lugar. Com as suaspretenses de validade, o falante e o ouvinte transcendem os critrios

    provincianos de determinada comunidade particular de intrpretes, coma sua prpria prtica comunicativa localizada no tempo e no espao. (ED157, t. 154).

    As pretenses de validade, portanto, devem transcender todocontexto particular, porquanto ser necessrio elas alcanarem uma validadeuniversal.11Em outras palavras, a universalidade garante a contextualidade,

    j que o contedo moral das normas se torna contedo jurdico. Por outrolado, as normas constituintes de uma sociedade democrtica requerem sempreinterpretaes; elas no podem ser impostas de fora e so dependentes dacompreenso que cada contexto tem delas, em cada momento histrico. A

    11A validade pretendida para enunciados e normas (tambm para frases que expressam vivncias)transcendem, de acordo com seu sentido, os espaos e tempos, ao passo que a pretenso atual levantadasempre aqui e agora, no interior de determinados contextos, sendo aceita ou rejeitada o que acarretaconseqncias para a ao, gerando fatos. A validade pretendida por nossos proferimentos e pelasprticas de nossa justificativa distingue-se da validadesocialdos standardsexercitados factualmente, das

    expectativas estabilizadas atravs da ameaa de simples aes ou do simples costume. (FG 36-37, t.38-39 v. I. Ver tambm: LS139, t. p. 128-129). Alm disso, [n]enhuma norma contm as regras dasua prpria aplicao. As fundamentaes morais no servem para nada, se a descontextualizao dasnormas gerais, as que se recorreu para a mesma fundamentao, no poder ser compensada no processode aplicao. ED 24, t. 26.

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    validade normativa baseia-se no pressuposto de que, caso seja necessrio, anorma possa ser justificada e defendida contra a crtica. Certamente, issono acontece automaticamente, trata-se da consequncia de [...] uma

    interpretao que admite consenso e que tem uma funo justificativa.12 Avalidade normativa j pressupe que a norma possa ser justificada e defendidaperante a crtica; e isso nada mais que consequncia da interpretao deumacomunidade cuja viso de mundo est voltada ao entendimento.

    Um acordo tem de ser fruto de um processo cujas condiesdevem assegurar que o contedo desse acordo (enquanto resultante de umentendimento dos cidados sobre as regras de sua convivncia) expresse o

    ponto de vista do bem-comum e das expectativas normativas ligadas a essebem-comum.13 O acordo de uma justificao racional das normas comvalidade universal, para Habermas, supe tanto o reconhecimento mtuo,como tambm a reviso das tradies, haja vista que, politicamente, o direitode uma comunidade particular, para ser legtimo, deve estar consoante aum mnimo de princpios, os quais tambm presumem uma validade geral,extrapolando os valores da comunidade concreta ou de vida particular.Importa transparecer a diferena entre a minha suposio de uma vontade

    gerale o acordo intersubjetivo acerca de uma vontade comum, porque[...] enquanto cada vontade autnoma se considerar em unssono com todosos outros habitantes inteligveis do reino das finalidades, sero vlidas asmximas que posso desejar ( luz da minha compreenso acerca do mundo ede mim prprio) como regras de uma prtica geral. (ED 156, t. 153).

    Todavia, como chegar a um acordo sobre os interesses de cada indivduo,acordo esse que deve ser, concomitantemente, adequado e intersubjetivo? Paratanto, o princpio [n]o faas aos outros o que no queres que faam a ti

    insuficiente por permanecer preso (de forma egocntrica) compreenso notematizada acerca do mundo e de ns prprios.14A argumentao levada a

    12LS139, t. 128-129. Ver ainda: FG 162-163, t. 166 e 307-308, t. 313 v. I.13FG 111, t. 115. Nesse aspecto, a formao da vontade imprescindvel para a fundamentao damatria a ser regulamentada por uma comunidade; tal formao ocorre mediante questionamentos:Quando se trata diretamente de um questionamento moralmente relevante [] ento precisolanar mo de discursos que submetem os interesses e orientaes valorativas conflitantes a um testede generalizao no quadro do sistema de direitos interpretado e configurado constitucionalmente. Ao

    contrrio, quando se trata de um questionamento eticamente relevante [] ento o caso de se pensarem discursos de auto-entendimento, que passam pelos interesses e orientaes valorativas conflitantes,e numa forma de vida comum que traz reflexivamente conscincia concordncias mais profundas.FG 204, t. 206-7 v. I.14ED 156, t.153.

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    efeito intersubjetivamente conduz os participantes a uma ampliao idealizantede suas perspectivas interpretativas, de forma a superar o provincianismo einteresses prprios. Mediante os pressupostos gerais da comunicao relativos

    prtica argumentativa, o alargamento das perspectivas hermenuticas possvel e necessrio.

    Nesse ponto, Habermas recorre noo peirceana de comunidadehermenutica . Nas pretenses de validadese pode perceber um sentido de transcendncia: para se obter o sentido deverdade de um proferimento, preciso recorrer referncia contrafactualdo cumprimento de validade sujeita crtica, bem como atender s [...]

    condies comunicativas de uma comunidade hermenutica alargada, emtermos ideais, a um espao social e a um tempo histrico.15Os desacertos dequalquer conjunto de normas legais no se esgotam nas suas impossibilidadesde execuo. Inaplicabilidade de uma norma em geral no de ordemmaterial, mas axiolgica, da a necessidade da comunidade hermenutica,da interpretao dos princpios: o acordo a que se chega no o de que anorma seja ou no possvel de aplicao, mas sobre a prpria aplicao, se ela ou no indispensvel ou inconveniente. Em outras palavras, o quanto um

    ordenamento legal democrtico depende diretamente de uma concretizaoque deve se realizar, por meio de uma prxis hermenutica predominante nocontexto relativo a tal ordenamento:

    O mundo como o conjunto dos fatos possveis constitui-se para umacomunidade hermenutica, cujos membros chegam a acordos sobreas coisas do mundo, no quadro de um contexto prtico partilhadointersubjetivamente. Considera-se real aquilo que pode ser formuladoem afirmaes verdadeiras, significando verdadeiro, por sua vez, aquiloque se pode explicar em referncia pretenso feita pelo indivduo emrelao a outros quando aquele faz afirmaes. O sentido assertricoda afirmao feita pelo falante levanta uma pretenso sujeita crticaquanto validade da assero proferida; e como ningum tem acessodireto a condies de validade no interpretadas, a validade tem de serentendida epistemologicamente como o valor estabelecido para ns.Toda a pretenso justificada de verdade da parte de um proponente tem depoder ser defendida com base em razes, contra as objees de eventuaisoponentes e tem de poder contar, em ltima anlise, com um acordo de

    15ED 159, t. 155. Na moral dessa comunidade hermenutica, e no em si mesma, que se encontrafundamentada a noo de justia: a competncia lingustica dos sujeitos autolegisladores necessriapara eles poderem diferenciar entre vida boa e vida correta, posto as diferenas entre ambas no serem[...] meras preferncias, sobre as quais se encontram coisas legtimas dos concernidos, mas sim as queem sentido estrito so capazes de verdade. FG 190, t. 193.

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    motivao racional por parte da comunidade hermenutica como umtodo. (ED 158, t. 154).

    Os pressupostos comunicativos de todos os componentes de umdiscurso assumido por uma comunidade hermenutica podem ser apenasaproximadamente realizveis [...] sempre que afirmem ou contestem a verdadede uma assero ou que entrem numa argumentao, a fim de justificaremdeterminada pretenso de validade.16A verdade a que tal comunidade chegamediante discurso essencial para a sustentao da universalidade das suasregras normativas, que devem estar fundamentadas no discurso moral. Por

    conseguinte, o que factvel no pode eliminar o contrafactual. O pontoque parece ser central aqui entender corretamente a incondicionalidade daspretenses de validade pertinentes tanto aos discursos de aplicao, quantoaos de fundamentao. A razo prtica ampara a perspectiva argumentativa;em qualquer comunidade jurdica, ela se desloca do mbito da eticidaderumo ao mbito das regras discursivas, e retira da seu teor normativo, o qualsustenta a validade de um acordo mtuo. Pela perspectiva argumentativa, aose chegar ao acordo consensual, princpios bsicos devero embasar opinies

    qualificadas a respeito de medidas garantidoras da implementao dos direitoshumanos. Um pressuposto incondicional imprescindvel nisso, haja vistaque, para as pretenses transcendentes de validade se tornarem realizveis nomundo, h necessidade de condies cujo cumprimento satisfatrio constituital pressuposto, a saber, a possibilidade de uma fundamentao universal,a qual funciona normativamente para avaliao de argumentaes moraisou jurdicas. Este um pressuposto normativo contraftico que pode nocorresponder realidade sem, contudo, deixar de ser vlido.

    Os pressupostos, que devem assegurar s pretenses de validadeo carter de incondicionalidade, so pressupostos contrafticos do agircomunicativo e, quando considerados, no o so sem problemas, dentre osquais est a face de Jano inerente s pretenses de validadede qualquer argumentao.17A teoria do discurso pretende explicar como osdireitos humanos salvaguardam o momento ideal de incondicionalidade, que

    16 ED 158, t. 154; tambm: 42, t. 38.

    17Tais pretenses so, pois, validade ltima de um discurso argumentativo, mas com elas sustenta-setambm [...] a conscincia de que as razes que hoje convencem suficientemente poderiam sucumbir crtica amanh. Habermas, Entgegnung, p. 351. Ver ainda FG 36-37, t. 38-39 v. I. A constituioda realidade social, com isso, determinada por esse nvel de idealizao, de [...] tal modo quetodo acordo obtido comunicativamente e que torna possvel a coordenao de aes, bem como a

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    [...] est enraizado nos processos de entendimento factuais, porque aspretenses de validade pem mostra a dupla face de Jano: enquantopretenses, elas ultrapassam qualquer contexto; no entanto, elas tm que sercolocadas e aceitas aqui e agora, caso contrrio no podero ser portadoras deum acordo capaz de coordenar a ao... (FG 36-37, t. 38-39 v. I).

    Como a aplicao de normas jurdicas institucionalizadas a partirde acordos consensuais procede de forma abstrata e geral, os motivoscontextualmente especficos e/ou individuais no podem ser levados emconta. Com isso, admite Habermas, as instituies adquirem um certo carterambivalente, na medida em que os interesses s podem ser satisfeitos a longoprazo sobre a base de expectativas generalizadas de conduta e quando ligadosa ideias justificadoras de pretenses de validade normativa. Da a justificaoracional das normas de ao e de avaliao morais ser um problema axial.Donde tambm as condies de possibilidade de justificao racional dasnormas (de ao, de avaliao) serem condies que tanto possuem um carternormativo, pragmtico, quanto universal.

    As pretenses prprias das formas de vida particulares no podem

    extrair seu valor para o indivduo de uma universalizao abstrata. Apenasa interpretao da comunidade (a comunidade hermenutica da qual falaHabermas) pode atuar previamente ao desenvolvimento dos discursos efetivose chegar a garantir a elucidao racional de questes morais, para que asnormas em concreto possam vincular moralmente as condutas, sem negar oque bom para a comunidade. A sustentao da norma que traduz o que correto universalmente, consoante ao bem para a comunidade, no prescindeda noo de situao ideal de fala como parmetro regulador, por meio da

    qual so aceitos princpios procedimentais com significao tica (dentreos quais: autenticidade e simetria da participao, excluso de toda coaoexceto a do melhor argumento etc.). Isso porque, para Habermas, necessriorefletir sobre a perspectiva normativa e, com isso, procurar fundamentar asuperioridade do modo reflexivo de justificao, o que feito pela abordagem

    estrutura complexa de interaes e a interligao de seqncias de aes, mede-se pelo reconhecimentointersubjetivo de pretenses criticveis... (FG 36-37, t. 38-39 v. I). Nesse contexto, o uso tico-polticoda razo prticadeve constituir os discursos de fundamentao e de aplicao das normas. (FG 191,

    t. 194 I). A face de Jano tambm considerada, no que concerne aos direitos humanos em algunstextos de Habermas, tal como Direito e democracia(tpico trs do terceiro captulo), A incluso dooutro (captulo sete), e ainda em Sobre a constituio da Europa, (tpico I do primeiro captulo), mascomo no estamos tratando aqui especificamente da teoria habermasiana dos direitos humanos, noadentraremos nessa caracterstica deles.

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    pragmtica de uma teoria da argumentao em geral da qual emerge oprincpio de universalizao como regra argumentativa no discurso prtico.

    Mormente todo proferimento deva ser avaliado e as pretenses devalidade possam ser pensadas como universais, no sentido de vlidas paratoda a humanidade, o que um acontecimento histrico, a questo aqui aser colocada : esse acontecimento histrico manifesta uma tendncia internadedutvel do funcionamento do discurso, mas visvel somente a posteriori, ou um acontecimento histrico contingente especfico de uma sociedade? Somadoa isso, se levarmos em conta a face de Jano das normas, surge tambm aquesto: o programa habermasiano no eminentemente normativo e desse

    programa no pode decorrer uma restrio da moral expressa na normatividadedas leis? Como ser visto adiante, procuraremos respostas a essas questes, masa esta ltima, por duas razes, que so interdependentes, a negao pareceevidente: primeiro, nesse programa, a normatividade recebe um enfoquevinculado razo prtica, mediante a categoria de reciprocidade; segundo,porque nele essa categoria recebeu um fundamento psicossocial.

    II - DARECIPROCIDADENa teoria do discurso h, de forma nem sempre muito explcita, um

    modelo de legitimidade da lei que obedece realizao dos direitos universaisna expresso de autoentendimento particular de cada sujeito e nas formasde vida das comunidades: os participantes de uma situao de fala no tmalternativa se no outorgarem-se reciprocamente os direitos fundamentaisda pessoa humana. Esse modelo refere-se normativamente ao padroorganizacional da reciprocidade, por apontar a uma ordem social de valores,

    na qual as finalidades sociais passam por uma rica e complexa interpretao.

    Sujeitos responsveis, sujeitos detentores de competncia interativa,que orientam suas aes por pretenses de validade tratadas como hiptesesque traduzem uma espcie de ao comunicativa tornada reflexiva, mantm oreconhecimento recproco e, com base nele, os princpios como a igualdade detratamento, a solidariedade. So esses sujeitos que apresentam tanto o interesseem poder participar na produo do consenso sobre a verdade acerca de

    enunciados relativos validade de uma norma jurdica, quanto um interesseformal convergente, que deve preponderar sobre interesses divergentespossveis de existir entre eles. O dever de cada membro de uma comunidadede reconhecer os interesses dos demais concomitante ao seu direito de fazer

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    valer, em situaes especficas, os seus interesses, portanto, este no impede acomunidade de atingir um juzo imparcial a propsito do interesse comum.

    O xito das orientaes universalistas direcionadas ao entendimento, um norteador dos discursos, contudo, no advm da prpriacomunidade hermenutica, mas da racionalidade comunicativa. Isso suscitao questionamento a respeito das normas morais e legais, reguladoras dacoexistncia desses sujeitos: elas no levam a um patamar final, j que socompartilhadas intersubjetivamente? Por que, ao permitirem a organizaode sistemas de ao, elas no estagnam as aes em normas estabelecidasdefinitivamente e, portanto, em direitos humanos tambm no carentes de

    interpretaes e reformulaes, mas contribuem, de fato,para a formao denovos nveis de interao social?

    As consideraes evolucionistas de Habermas podem oferecer respostasa tais questes. Quando numa fase convencional, de identidades de papis,a interao social guiada pelo dever em obedecer a normas, a conscinciamoral apresenta-se no estgio sociocntrico-objetivista. Aqui, a aplicao pr-determinada de normas, sem o processo de discusso seguido de acordo, indicaum sistema convencional, no qual a moral do sistema social constitui o pano

    de fundo de legitimao inclusivo, originalmente fundido com a adequaoe comumente apoiado institucionalmente por autoridades, de sorte que osistema de normas aparece como se a sua validade fosse adequada de modohierrquico pr-determinado e naturalmente. Destarte, a anlise da definioprvia das necessidades e dos direitos individuais no consta na obra deHabermas. Para o caso de direitos pr-estabelecidos, o que conta o processode aquisio da linguagem comum pelo indivduo, o qual , sobretudo, oprocesso de adaptao do indivduo a um consenso pr-estabelecido que,

    por sua vez, consequncia, em cada momento, de um desenvolvimentohistrico da linguagem. Esse consenso , ao mesmo tempo, um consensoacerca da aceitao de normas. No h como exercitar a linguagem semestar, direta ou indiretamente, referindo-se s normas, mesmo sendo pr-estabelecidas, e possivelmente carentes de reviso. Isso nada mais indica queuma institucionalizao legal do PD exige seu reconhecimento como direitonatural livre comunicao, por isso, no modelo habermasiano, tal princpio anterior aos direitos humanos e to-somente com o reconhecimento ab ovodele se pode alcanar uma normatividade legtima.

    Desse estgio decorre, passo a passo, o avano para a intersubjetividade,um nvel tal em que o eu ento no apresenta sua ao conforme a norma legal

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    ou moral, ele se descentra de si, e como sujeito de direito busca, em vez dasnormas grupais, os princpios universalizantes, posto agora ele poder distinguirentre normas e princpios segundo os quais so produzidas as normas.

    Para o indivduo chegar a ter conscincia de si como sujeito de direito,o processo de formao construdo na forma de uma sequncia de passosda realizao da vontade individual: com essa formao, a vontade individualpode se conceber como uma pessoa dotada de direitos, ela est capacitada aparticipar naquela esfera contextual em cujo quadro se realiza a reproduoda vida social. A aprovao de normas, o consentimento, Habermas vincula aum processo de formao da vontade pblica, que deve abarcar as condies

    necessrias da autoexperincia da conscincia individual: um sujeito precisapassar por experincias, repletas de exigncias, antes de estar em condiesde conceber a si mesmo como uma pessoa dotada de direitos, comosujeito de direito. Aquele que no se submete norma deve experienciar oconstrangimento jurdico, do que pode ser entendido que a vontade singularfica ento sem reconhecimento recproco. A medida mnima de concordnciacomunicativa, de vontade geral, que permite uma reproduo comum dasinstituies, dada numa sociedade apenas com a instituio do sujeito de

    direito, o qual ento pode participar na vida regulada da sociedade: umaautoexperincia integral do sujeito, como seria dada com a conscincia dosdireitos, possvel unicamente sob a condio de que o indivduo aprenda aconceber-se tambm como um eu ps-convencional.

    A autocompreenso desses eus, sujeitos de direito, ps-convencionais,pressupe que eles se concebam como seres intersubjetivos - o processo deformao da vontade requer a ampliao da prpria compreenso que tmde si e abarca uma dimenso complementar da relao prtica com o mundo.

    Essa compreenso que cada um tem de si, mesmo como portador de direitossomente quando possui um saber sobre quais obrigaes tem de observarem face do outro,18e isso apenas da perspectiva de um outro generalizado(tomo aqui a expresso de Mead), j ensina a cada qual a reconhecer os outrosmembros de sua comunidade lingustica.

    18Quem, em nome do universalismo, exclui o Outro, que tem o direito a permanecer um estranho emrelao aos outros, atraioa os seus prprios princpios. ED 116, t. 115. Se o discurso prtico-moral dissociado de propsitos de sucesso e individualistas porque nele est pressuposto o Outro comoaquele que se depara com a razo verificadora de normas, enquanto oponente numa argumentaoimaginria, porque alargada de forma contrafactual... . ED 116, t. 115.

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    Essa identidade ps-convencional, por sua vez, est inserida numaidentidade coletiva que evolui no sentido da interao lingustica e, com isso,ou em decorrncia disso, participa da elaborao das normas. Consoante a

    tal modelo, a reciprocidade, concebida na etapa da vontade/assentimentogeral como uma fora motriz do processo de formao da vontade pbica,produz exigncias modais para as quais ns mesmos no sabemos indicarformas adequadas de resoluo jurdica; trata-se de resolues no pr-dadas,o prprio desenvolvimento dessas resolues deve ser atribudo pressonormativa da reciprocidade.

    Esse processo interativo, baseado na conscincia de ter oportunidades

    iguais e racionais na formulao das normas, tem a ver com o prprio processode aprendizagem que possibilita aos concernidos resgatar de modo crtico ereflexivo os valores da tradio. Como participantes iguais em discursosracionais, esses sujeitos tm de examinar se a norma em questo pode obtero assentimento de todos os possveis afetados, capacidade de exame na qual

    j esto pressupostas relaes de reciprocidade em que a igualdade legal estassociada participao no discurso. Contudo, Habermas alerta: somentepodero se encontrar unidos em torno desse ponto de vista capaz de efetivar

    o consenso, se ele resultar das estruturas de interao, independentemente deterem ou no em comum a origem social, a tradio etc. Nas estruturas deinterao pressupe-se a reciprocidade entre os sujeitos agentes.

    Reciprocidade no norma ou ditame; por estar presente nas estruturasde interao, ela faz parte do saber intuitivo de sujeitos capazes de linguagemou de ao:19 os pressupostos comunicativos, sob os quais participantes deum discurso realizam seus acordos [...] esclarecem um ponto de vista moralque no privilgio de uma determinada cultura, uma vez que est ancorado

    mais profundamente e em ltimo sentido, nas simetrias do reconhecimentorecprocoem geral de sujeitos que agem comunicativamente.20

    19ZRhM 82, t. 67. A noo de reciprocidade de Habermas segue o raciocnio de Hegel, segundo o qualos conflitos precisam ser solucionados mediante discusso racional. Os conflitos fluem da linguagemcotidiana por intermdio dos agentes comunicativos: Os contedos avaliados luz de um princpiomoral so, ento, gerados, no pelos filsofos, mas sim pela vida. Os conflitos de conduta, que devemser avaliados moralmente e solucionados por consenso, emergem da prtica comunicativa cotidiana,sendo encontrados e no produzidos pela razo avaliadora de mximas ou pelos participantes da

    argumentao. ED 21, t. 24.20FG 86, t. 90. E [t]odas as morais se movimentam em torno dos princpios relativos igualdadede tratamento, solidariedade e ao bem-estar geral; estas so, todavia, noes fundamentais que se

    reportam s condies de simetria e s expectativas de reciprocidadeda ao comunicativa ED 17,t. 20. Ver tambm: ZRhM, 80, t. 64.

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    O conceito de reciprocidade designa, sobretudo, a relao entreindivduos que se respeitam mutuamente como sujeitos de direito. Sujeitosps-convencionais, conhecem as normas sociais por meio das quais os direitos

    e deveres so legitimamente distribudos nas suas respectivas comunidades e,neles, com isso, o respeito mtuo um corolrio da reciprocidade. Os eus ps-convencionais so autolegisladores, so os eus descentralizados, cuja alteridadeos potencializa ao consenso e reciprocidade, so os eus autores dos direitoshumanos, capazes de autodeterminao e competentes para apropriarem-seou (criarem) normas que possibilitam a regulamentao de outras normas,de um processo de desenvolvimento que envolve etapas, estgios, os quais secaracterizam pela passagem da menor maior apropriao de sua histria.

    Conforme o entendimento de Habermas, nas relaes recprocas existentesentre pessoas capazes de orientar suas aes por pretenses de validade seencontram [...] instaladas as ideias de justia e de solidariedade21; esta,enquanto princpio sustentador da imanao num universo comum, um instrumento de integrao social mediante o qual ocorre a intervenodas foras sociais tendentes a garantir os direitos humanos e no permite ainterveno no mundo da vida de sistemas como mercado e administrao.

    A reciprocidade no prescinde da norma legal, pois o direito modernorepresenta um mediumde reconhecimento que expressa propriedades universaisde sujeitos humanos de maneira diferenciada, mas tambm no prescinde daforma de vida. Bem comum, respeito igual, solidariedade so ideias bsicasde qualquer moral presente nas formas de vida concretas. Elas so levadas emconta pelo discurso prtico, e nele derivaro das condies de simetria e dasexpectativas de reciprocidade caractersticas da ao comunicativa. A forma dereconhecimento de estima social requer um mediumsocial que deve expressar

    as diferenas de propriedades entre sujeitos humanos de forma universal, isto, intersubjetivamente vinculante.

    Habermas, com base em seus estudos de psicologia social e cognitiva,localizou na lgica do desenvolvimento a presena da reciprocidade em trsnveis (pr-convencional, convencional e ps-convencional) e tambm umaindicao precisa da forma de reconhecimento recproco. Todavia, conceber a

    21ED 155, t. 152. Sobre a relao entre reciprocidade e respeito, ver: ED 148, t. 146. E sobre acapacidade de entendimento recproco dos participantes de processos interativos como contrapontoao risco de dissenso oriundo da raconalizao do mundo da vida, ver tambm: PDM 404-405, t.484-485.

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    reciprocidade como pedra central da construo de normas requer consider-la nos estgios 5 e 6 do nvel ps-convencional,22nos quais ela completa.

    Nesses estgios, princpios transformados em temas morais acabam,por exigncias lgicas, postulando uma reciprocidade completa e, desde essa perspectiva, migra para a relao de reconhecimentouma nova forma de reciprocidade, altamente exigente: obedecendo mesma lei,os sujeitos se reconhecem reciprocamente como pessoas capazes de decidir comautonomia individual sobre normas morais que afetam suas vidas concretas.Isso explica, segundo a lgica do desenvolvimento, por que a participaona elaborao das leis pode ocorrer to-somente com relao condio de

    sujeitos de direito , os quais, como portadores de direitos,pertencem voluntariamente a uma associao de companheiros jurdicos, propriedade jurdica garantidora do cerne normativo da suaexistncia e no propriamente das normas: [...] somente podem pretendervalidade legtima as leis jurdicas capazes de encontrar o assentimento de todosos parceiros do direito, num processo jurdico de normatizao discursiva.23

    Certamente tal associao de companheiros jurdicos implica umacomunidade hermenutica cujo xito irrestrito no seu processo de interao

    normativa pode ser obtido unicamente na medida em que lhe correspondem,pelo lado dos seus membros, hbitos culturais que tm a ver com a forma deseu relacionamento recproco. Nesse processo operado, no nvel social, porum quadro de orientaes simbolicamente articulado, mas sempre abertoe poroso, so formulados os valores e objetivos ticos, cujo todo constitui

    22No primeiro estgio do nvel pr-convencional, devido a serem consideradas moralmente relevantesaes concretas e suas consequncias especficas, em termos de sanes ou gratificaes, h umareciprocidade incompleta - [...] uma pessoa pode esperar ou fazer x e a outra pode esperar ou fazer

    y (p. ex.: professor/aluno; pais/filhos) - porque a criana se encontra numa posio de desigualdadeperante os que lhe prometem gratificao ou punio em dependncia da sua ao, que realizadasegundo um modelo de orientao obedincia-punio. No segundo estgio desse nvel, h umareciprocidade completa - posto haver uma relao completamente recproca quando ambas as pessoas[...] podem fazer ou esperar a mesma coisa (X=Y) (p. ex., as normas do direito privado) - a criana,movendo-se pela orientao do hedonismo instrumental, no pode se furtar conscincia de que asdemais crianas tambm ajam, em funo de interesses privados, o que as coloca em p de igualdade.No nvel convencional, no terceiro estgio, temos que a reciprocidade volta a ser incompleta, pois aorientao do bom moo mantm exigncias de reciprocidade para com pessoas de referncia. Noquarto estgio, a reciprocidade incompleta - a mesma exigncia se verifica em relao aos sistemas de

    normas. ZRhM 82-84, t. 67-69.23 FG 141, t. 145 v. I. Ver tambm: PK 176, t. 148-149. Na sua respectiva comunidade jurdica, [...]ningum livre enquanto a sua liberdade implicar a opresso de outro. Pois a distribuio simtricados direitos resulta do reconhecimento de todos como membros livres e iguais. Esse aspecto do respeitoigual alimenta a pretenso dos sujeitos a iguais direitos. FG 504-5, t. 159 II.

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    a autocompreenso cultural dessa comunidade. Critrios pelos quais orientada a reciprocidade entre as pessoas, so predeterminados por essaautocompreenso cultural, j que as capacidades e realizaes dessas pessoas

    so julgadas intersubjetivamente, sempre conforme a cooperao delas naimplementao de valores e normas tambm culturalmente definidos. Nessesentido, essa forma de reconhecimento recproco est ligada pressuposiode um contexto de vida social cujos membros constituem uma comunidade devalores mediante a orientao por concepes de objetivos comuns.

    Desde essa perspectiva, os conceitos fundamentais, com que socircunscritas as pressuposies de existncia de formao de tal comunidade,

    devem ser talhados para as propriedades normativas das relaes comunicativas.Esse modelo normativamente refere-se ao padro organizacional dareciprocidade: o reconhecimento recproco requer um mediumsocial que deveexpressar as diferenas de propriedades entre sujeitos humanos de maneirauniversal, isto , intersubjetivamente. A potencializao das instnciascomunicativas nos diversos planos do mundo da vida permite que asidentidades ps-convencionais consigam contaminar gradual e difusamente ossistemas normativos, de forma a indicar um pressuposto universalista, mesmo

    quando parecer que se discute problema circunstanciado.Desse modo, a identidade ps-convencional coletiva, indo alm da

    identidade coletiva particularista e no resvalando para um universalismoa-tico de mercado, passa a ser fundada [...] na conscincia de teroportunidades iguais e gerais para participar em processos de aprendizagemcriadores de normas e valores.24Para tanto, necessria a mesma conjunode competncias exigidas da identidade individual, a saber, reciprocidade,reconhecimento e conscincia de oportunidades iguais e gerais de participao

    para todos, em um contexto em que, mesmo enfrentando as solicitaesprprias a cada identidade individual, presentemente, todas elas se colocamo objetivo futuro de um consenso que as rena - o agir comunicativamentefundado em vistas de uma sociedade justa.

    A estrutura da qual Habermas pode derivar suas determinaes daidentidade ou eu ps-convencional s assume a forma de reconhecimentorecproco quando ela se torna dependente historicamente das premissas dos

    princpios morais universais. Donde a capacidade genuinamente moral deum sujeito no poder ser considerada caracterstica antropolgica universal

    24 ZRhM 117, t. 100. E isso, mesmo que resgatando criticamente os valores da tradio.

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    e abstrata, mas unicamente histrica e histrica, no num sentido de umapertena a uma cultura particular, mas no sentido forte de um acontecimentoligado a um desenvolvimento lgico, realizao das potencialidades contidas

    no discurso livre. Os principais conceitos sociocognitivos da interao guiadapor normas se formam to somente no quadrode uma compreenso descentrada do mundo que se deve diferenciaodas perspectivas do falante e do mundo, e as quais se ajustam lgica dodesenvolvimento, baseada nos estgios dos juzos morais de Kohlberg, em queo papel da reciprocidade se registra. Para a existncia concreta da possibilidadede uma lgica do desenvolvimento, porm, com base no direito fundamental,se requer [...] sempre outras fundamentaes para as relaes sociais e podem

    ser propostas outras justificaes construtivas de direitos.25

    Uma pluralidade de ideais de vida, que envolvem convices axiolgicascontrapostas em geral, constitui a realidade na qual deve ocorrer a aplicaode uma norma. Isso exige no deixar de levar em conta o agudo problemade como um ordenamento jurdico-legtimo pode surgir no robusto seio dassociedades modernas altamente complexas, cuja trama de relaes dificultaem muito tal posio. Da no ser possvel sustentar um desligamento entre a

    lgica do desenvolvimento moral e o mbito jurdico: a aplicao das normas,ao assumir a forma jurdica, constitui um processo no qual esto em jogoquestionamentos polticos de vrias espcies. Se isso, por um lado, deixa visvela distino entre o contexto de fundamentao e o contexto de aceitao danorma, por outro, denota que o enfoque sociopsicolgico da reciprocidadeno prescinde do papel da juridicizao delas.

    III - CONSIDERAESFINAISA prioridade dos direitos humanos, de um prisma da lgica do

    desenvolvimento, est vinculada questo da obedincia e da reciprocidade:uma disposio para a obedincia a normas jurdicas somente pode ser esperadados parceiros de interao, quando eles puderem assentir a elas, em princpio,como seres livres e iguais num contexto comum. Sobre esse contexto, osparceiros de uma situao de fala, embora culturalmente muito distantes unsdos outros, podem se corrigir reciprocamente e desenvolver uma interpretaocomum dos direitos humanos, constituindo uma identidade coletiva, como

    25FORST, R. Das grundlegende Recht auf Rechtfertigung, p. 78. Ver tambm: MkH 151, t. 172; 143,t. 163.

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    Normas - O Estabelecimento dos Direitos Humanos

    resultante de normatizaes. Porm, tal processo aponta para a emergncia,ainda que embrionria, de contextos ou sociedades de nvel ps-convencional,nos quais predominaro os eus ps-convencionais: os sujeitos que vivem em

    um determinado mundo da vida descobrem que eles j se reconhecerampreviamente em seus direitos fundamentais. Isso, todavia, no permite inferirque, em Habermas, prepondera uma acepo moral de direitos humanos.

    Em contextos em que inexistem formas de vida compartilhadas portodos que possam garantir, a partir de acordos fundados na reciprocidade,a fora motivacional para a obedincia a normas, o direito em geral ocupa oespao de normatizador. Para esses contextos, os direitos humanos sero pr-

    estabelecidos, mesmo que por vezes isso implique certa coero, pois o [...]o cdigo jurdico j deve encontrar-se como tal disposio antes de que ospressupostos comunicativos para uma formao da vontade discursiva possamser institucionalizados na figura dos direitos civis.26 E, mesmo assim, osdireitos humanos no podem ser impingidos de fora, como restrio, porqueeles institucionalizam as condies de comunicao para a posterior formaoda vontade racional. Isso, porm, mediato apenas para os direitos polticoscivis, isto , para os direitos comunicao e participao. Para os direitos que

    garantem a autonomia privada dos cidados, os direitos clssicos liberdade,no evidente essa no imposio de fora, por tais direitos possurem umvalor intrnseco - que se revela tanto quando devemgarantir chances iguais a todos, quanto quando devem assegurar a todos adevida e abrangente proteo jurdica. Aos eus convencionais, eus centradosem si mesmos, as obrigaes normativas adquiridas mediante formas simplesde interao social no apontam para alm dos limites de um universoconcreto, seja ele familiar, social, seja relativo nacionalidade.

    Habermas no alude a como pensar o pr-estabelecimento dos direitoshumanos, mas trata do comportamento sob o imperativo das pretensesde validade dos proferimentos argumentativos como o sinal distintivo daracionalidade, a qual deve ser compreendida como a qualidade tpica daquelesque podem entreter uma forma de vida caracterizada pela situao de fala ideal,antecipada como condio constitutiva do discurso possvel - junto maneiraparticular segundo a qual deve ser efetuada a reciprocidade intersubjetiva daunicidade biogrfica de todos os sujeitos.

    26PK 176, t. 148. Ver tambm: NU 86; EA 300, t. 292.

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    Martins, C. ap.

    No h indicaes precisas sobre os direitos que cabem a cada umindividualmente e nem sobre o modo por fora do qual eles so engendradosno interior das comunidades os discursos de fundamentao das normas

    constituem um postulado ideal. Antes, visa-se to somente condioelementar de que todo sujeito humano possa ser considerado portador dealguns direitos, quando reconhecido socialmente como membro de umacoletividade: do papel socialmente aceito de membro de uma comunidaderesultam determinados direitos para o indivduo, cuja observao ele podereclamar em casos normais, apelando a um poder de sano dotado deautoridade. Esse um conceito de ordem social apropriado para caracterizar aspropriedades gerais que competem ao reconhecimento jurdico em sociedades

    convencionais: enquanto as pretenses legtimas do indivduo no so aindacarregadas com os princpios universalistas de uma moral ps-convencional,elas se constituem em princpio apenas de atribuies que lhe cabem emvirtude de seu statusde membro de uma coletividade concreta.

    Em sociedades nas quais os sujeitos de direito no participam naelaborao dos direitos humanos, eles ao menos devem poder contemplar seuspontos normativos comuns na forma objetivada da lei; esta representa, por sua

    vez, a quintessncia de todas as prescries mediante as quais as relaes jurdicasentre os sujeitos so formalmente reguladas. Torna-se pertinente, entrementes,admitir: no ponto de interseo do sujeito jurdico reconhecido, no qual osprocessos de formao individual de cada membro de uma comunidade acabamcoincidindo, Habermas deixa em aberto at que ponto esses sujeitos devemse reconhecer reciprocamente e como esse processo adquire fora efetiva nanormatizao assegurada historicamente pelo Estado. Se isso fica em aberto,ento necessrio reconhecer que a anlise de Habermas comea interpretando

    a todo custo o ato da participao discursiva como uma exigncia radical dereciprocidade para, em seguida, no poder mais integr-la no prprio quadro darelao jurdica. Como somente no plano institucional da relao jurdica queas normas assumem o carter de prescries legais publicamente controladas,resulta, por conseguinte, que elas no so concretizadas ou diferenciadas maisalm do poder de sano do Estado.

    Esse limite subsiste s argumentaes habermasianas porque, ao queparece, no concernente temtica deste texto, se entrecruzam um modelo idealpostulado pela teoria do discurso (com PU, PD e pretenses de validade) - oqual serviu de escopo anlise aqui desenvolvida - com consideraes acerca dodiagnstico de poca. Conforme o modelo ideal habermasiano, no interior

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    do debate pblico, com a participao efetiva dos cidados, que deve ocorrera interpretao e a produo das normas. Entrementes, numa perspectiva dediagnstico de poca, Habermas expe uma viso, cujo realismo no comporta

    encanto algum: ele no s admite que [...] hoje como ontem persiste umagrande discrepncia entre a letra e o cumprimento das normas,27 comotambm que, devido indeterminao cognitiva de cada cidado comum (jque a capacidade analtica dessas pessoas, enquanto cidados no detentores dalinguagem do direito, fica sobrecarregada com problemas de fundamentaoe de aplicao de questes complexas), concretamente retirada das pessoas

    jurdicas, enquanto destinatrios dos direitos, a possibilidade de definir critrios dejulgamento acerca do justo ou injusto. Retirar tal possibilidade de participar na

    definio desses critrios, porm, desde essa perspectiva, tanto no deixa de serum alvio para os cidados comuns, por no sobrecarreg-los com [...] o pesocognitivo da formao do juzo moral prprio28, como, em concomitncia,no fere a autonomia pblica, porquanto o legislador no pode decidir nadaque desrespeite os direitos humanos. Isso parece indicar que, nessa dualidadede entendimento,29um idealizador e outro voltado s condies objetivas dassociedades capitalistas, a identificao entre legitimidade dos direitos humanose direitos humanos produzidos democraticamente, ao menos em se tratando de

    contextos convencionais, exige necessariamente repensar PD na produo dessesdireitos, para no se cair num formalismo criticado pelo prprio Habermas.30

    Em decorrncia mesmo daquele referido entrecruzamento, ao perscrutarresposta a nossa questo central (sobre o status das normas e sua forma deinstituio), processou-se no curso deste texto um deslocamento para outra,a saber, a questo sobre o quanto o modo de sustentao da normatividade

    jurdica de um ordenamento social o determina como democrtico ou

    no. Este tambm ficou sem resposta, j que o modelo ideal da teoria dodiscurso no chega s possibilidades empricas de implementao das normascomo direitos humanos e recorrer a uma outra anlise de Habermas, sconsideraes sociopolticas, seria infrutfero para o propsito aqui, visto queno se pretende tratar de diagnstico de poca.

    27EA 213, t. 206.28

    FG 147, t. 151 v. I.29 Para no fazer referncia a duas perspectivas metodolgicas distintas (KNEER, 1990), visto essetema fugir ao propsito de anlise deste texto.30 FG 551, t. 202 v. II: Somos levados a falcias concretistas, quando pretendemos amarrar oformalismo do direito em geral a propriedades de determinado modelo histrico...

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    Em Habermas, encontramos aquilo que Hegel j havia compreendido,isto , que o direito representa uma forma de reconhecimento recproco pormeio do qual cada pessoa experiencia, como portador das mesmas pretenses,

    o mesmo respeito. Isso pode ser estendido para os direitos humanos. Comoportadores de direitos, a autocompreenso dos sujeitos de direito d-se nosentido de que podem estar seguros do cumprimento social de algumas desuas pretenses. No entanto, como o conceito de outro generalizado, queserve de base categoria de reciprocidade, refere-se muito pouco a umaordem elementar de direitos e deveres cooperativos, com base no modelohabermasiano, pode-se atribuir ao reconhecimento jurdico somente umreduzido contedo normativo: o que no sujeito individual alcana aqui

    reconhecimento de maneira intersubjetiva sua qualidade legtima de membrode uma comunidade. A identidade coletiva pressupe competncias ou anecessidade de satisfazer determinadas exigncias; ela emerge de disposieshistricas, tradicionais, morais, normativas, estipuladas pelos eus que aconstituem. Uma forma tradicional de reconhecimento jurdico dessa espcie

    j concede a todo eu uma proteo social para sua dignidade humana;mas esta no parece dependente da condio de eus cujas conscincias moraisapresentam-se em estgio ps-convencional. Ao contrrio, ao que tudo

    indica, tal produo est ainda inteiramente fundida com o papel social quecompete a cada eu, no quadro de uma distribuio de direitos e encargosamplamente desigual, porque baseado mais na tradio, no hbito, que emprincpios universalistas. Isso no foi pontuado por Habermas, e se contrapeao seu prprio entendimento segundo o qual deliberaes concernentes pretendida aplicao de qualquer norma no derivaro de consideraes dendole claramente contextual, as quais possam contradizer o enorme esfororealizado para obter uma fundamentao de tipo universal.

    Percebe-se alhures o no entrelaamento entre princpio do discurso eo prprio do aparato jurdico, de maneira que tambm aquela indeterminaocognitiva do cidado comum absorvida [...] pela faticidade da imposiodo direito, tendo, no legislador poltico, aquele que decide sobre as normasque devem valer como direito e, nos tribunais, a instncia que, embora sempossuir a ltima palavra, pode resolver possveis disputas a respeito da aplicaode normas validadas.31E uma vez que, numa sociedade complexa, impossvel

    a participao efetiva de todos os envolvidos no processo de elaborao da lei,esse modelo parece resvalar para a idealidade, visto tal participao dever ser

    31FG 147, t. 151 v. I; 670, t. 315 v. II.

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    ao menos potencialmente possvel, pois que estipula: a incluso ideal de todosos falantes; a verificabilidade das normas como sua condio de legitimidade.No concernente a isso, Habermas claro: esses artifcios se complementam na

    produo legislativada norma jurdica. Se, em 1991, com Comentrios ticado discurso, a estrutura argumentativa sustenta-se na defesa da comunidadehermenutica que, mediante praxis discursiva, implanta normas capazes detranscender seu espao e tempo limitados, nessa mesma dcada, um ano aps, afilosofia do direito cerca esse exerccio, desloca-o do mundo da vida e subordina-oa um subsistema de poder, ainda que este seja um modelo ideal, porque pblica,de esfera jurdica. E isso indica que o esforo do filsofo de idealizao vaigradativamente se aproximando do emprico, muito embora neste sculo atual

    sua produo a esse respeito mantenha a base ideal como pano de fundo dosargumentos e anlises que desenvolve acerca dos direitos humanos.32

    MARTINS, Cllia Aparecida. Norms and the establishment of human rights. Trans/Form/Ao, Marlia, v. 36, p. 121-148, 2013. Edio Especial.

    ABSTRACT: Habermas understands human rights as products of the lifeworld, and it is within thepublic debate, with the effective participation of citizens, that their production must occur as normsand principles. e initial focus of the text concerns the status of these norms and how they areinstituted, which depends on the reciprocal relationships between subjects. Given that in complexsocieties it seems to be only ideally possible to sustain the participation of all those involved inthe elaboration of norms, this article seeks to analyze the feasibility of Habermas conception. In

    considering the conceptual elements related to this issue, there takes place in the course of the text ashift to another issue, namely, that of how the mode of support of the juridical normativity of a legalorder determines it as being democratic or not. is is the turning point in the treatment of normsrelative to human rights: Habermas analysis is ideal, but the oscillation between the moral and theempirical is always remains, such that, within the conceptual scope, if there is no way to confirm thelegitimacy of the identification of human rights with democratically produced human rights, thisoscillation becomes impossible deny.

    KEYWORDS:Jrgen Habermas. Human rights. Norms. Reciprocity.

    32Sobre isso, ver o primeiro captulo de Zur Verfassung Europas(2011), no qual Habermas estabeleceum paralelo entre a histria dos direitos humanos e o papel do conceito de dignidade humana.

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