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Disciplina: Ética na Saúde Aula 5: Ética e reprodução humana Apresentação Veremos nesta aula de que modo as novas tecnologias na área de saúde trazem, junto com seus inegáveis benefícios, uma série de novos problemas e questões éticas que necessitam ainda ser melhores exploradas. Faremos um apanhado dos principais pontos de vista acerca do conceito de “início da vida humana” e analisaremos suas implicações em todos os temas relacionados à reprodução humana. Conheceremos ainda alguns princípios da Bioética associados à reprodução humana assistida e as principais legislações a respeito deste tema. Faremos algumas considerações a respeito das possíveis equivalências entre os aspectos éticos envolvidos na adoção e da reprodução assistida e encerraremos a aula com uma análise ética do aborto, atualmente um dos temas mais sensíveis e polêmicos da Bioética. Bons estudos! Objetivos Relacionar a influência do avanço das tecnologias com os problemas éticos sobre reprodução humana;

Disciplina: Ética na Saúdeestacio.webaula.com.br/cursos/DIS107/galeria/aula5/anexo/aula5.pdf · tecnológico na área da saúde que foi instituído na Inglaterr a, em 1981, um comitê

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Disciplina: Ética na Saúde

Aula 5: Ética e reprodução humana

Apresentação

Veremos nesta aula de que modo as novas tecnologias na área de saúde trazem,junto com seus inegáveis benefícios, uma série de novos problemas e questões éticasque necessitam ainda ser melhores exploradas.

Faremos um apanhado dos principais pontos de vista acerca do conceito de “início davida humana” e analisaremos suas implicações em todos os temas relacionados àreprodução humana.

Conheceremos ainda alguns princípios da Bioética associados à reprodução humanaassistida e as principais legislações a respeito deste tema.

Faremos algumas considerações a respeito das possíveis equivalências entre osaspectos éticos envolvidos na adoção e da reprodução assistida e encerraremos aaula com uma análise ética do aborto, atualmente um dos temas mais sensíveis epolêmicos da Bioética.

Bons estudos!

Objetivos

Relacionar a influência do avanço das tecnologias com os problemas éticos sobrereprodução humana;

Reconhecer os principais conceitos sobre objetivos da reprodução e geração davida;Identificar alguns dos procedimentos sobre reprodução assistida;Verificar a legislação sobre reprodução assistida e seus aspectos éticos e morais.

Novas tecnologiasSempre que a tecnologia avança, seja em que campo for, ela traz consigo outrosfatores paralelos à evolução do conhecimento. O mais pragmático destes fatores estáno próprio uso destas novas tecnologias. Assim como o laser pode ser usado paracurar, pode também ser utilizado para fins bélicos. Não podemos confundir atecnologia em si, com o uso que se fará dela.

O fato é que novas tecnologias implicam em novas ferramentas que podemalterar hábitos, eliminar ou transformar comportamentos, inaugurar novaspossibilidades e uma série infindável de ações que se transformam emfunção delas.

Laboratório (Fonte: Alex_Traksel / Shutterstock)

Os frequentes avanços tecnológicos na área da saúde se, por um lado, têm propiciadoimensos benefícios para a sociedade, por outro lado, têm também feito surgir novosproblemas e questões éticas a serem discutidas e consideradas. Novas questões quesurgem a partir de novas possibilidades de intervenção do homem sobre os fatos.

Assim tem sido em relação às alternativas de manipulação genética, nodesenvolvimento de técnicas de transplantes e também nos aspectos relacionados àfertilização e reprodução humana.

DNA humano (Fonte: Robert Eastman /Shutterstock)

Estes procedimentos levantam não apenas questões éticas individuais, relativas aosdireitos da pessoa e ao modo como pretendem se beneficiar destas tecnologias, mastambém nos incitam às questões relativas à saúde coletiva, na medida em que, emgeral, estas tecnologias vêm associadas a novos instrumentos de diagnóstico etratamento e, por isso, implicam em princípios de justiça e alocação de recursos naárea de saúde que, normalmente são escassos e caros.

Vida humanaAs questões éticas envolvidas nos procedimentos ligados à reprodução humanaabarcam uma série de aspectos, mas seu conceito básico é:

O objetivo da reprodução é a geração da vida.

Nesse sentido, podemos refletir:

O que pode ser considerado “vida humana”?

Corpo frontal de um homem (Fonte: Graphiteska /Shutterstock)

Em que momento a vida biológica deve serreconhecida como pessoa?

Existem na literatura atual cerca de vinte diferentes critérios para o estabelecimentodo início da vida humana.

Para a Igreja católica

1

1987

A Igreja Católica possui um extenso documento intitulado “Instrução sobre orespeito à vida humana em suas origens e a dignidade da procriação em

resposta a determinadas questões da atualidade<http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc

_con_cfaith_doc_19870222_respect-for-human-life_po.html> ” . Nestedocumento (Donum Vitae) datado de 1987, fica formalmente estabelecido que, pelaperspectiva da Igreja, o início da vida humana se dá no momento em que ocorre a

fecundação

2

2008

Mais recentemente, em 2008, publica outro documento sobre aspectos de Bioética<http://www.cliturgica.org/portal/artigo.php?

id=994&PHPSESSID=5e23b56eebf7a8a17eb6228896f7a101> ligados àdignidade humana onde reforça este entendimento e considera como lícitas astecnologias de fertilização que auxiliam os casais a procriarem desde que estas

respeitem a preservação do ato procriativo em si e considera moralmente ilícitas astecnologias que dissociam a procriação do ato sexual como a criogenia ou a

fecundação “in vitro”.

Além da perspectiva eclesiástica há ainda outros critérios de abordagens maisdirecionadas aos aspectos do desenvolvimento embrionário. Alguns destes critériosvinculam o início da vida humana:

3 a 4 semanas

Ao início dos batimentos cardíacos.

8 semanas

Ao surgimento da atividade do tronco cerebral.

12 semanas

Ao início da atividade neocortical.

20 semanas

Ao surgimento dos movimentos respiratórios.

28 semanas

Ao aparecimento do ritmo sono-vigília.

18 a 24 meses pós-parto

Há ainda quem defenda que o ser humano se caracteriza apenas a partir dosurgimento da consciência e do “comportamento moral” .1

Reprodução assistidaIndependente da questão da gênese do ser humano, talvez o mais importante temaético da atualidade no que se refere à reprodução, seja mesmo o debate sobre osprocedimentos de reprodução assistida.

Século XVIII

Desde esse século J. Goldim relata que já existem relatos médicos sobre a tentativade realização deste tipo de intervenção.

1978

Apenas nesse ano, com o nascimento de Louise Brown (que ficou notoriamenteconhecida como o primeiro “bebê de proveta”) na Inglaterra, as técnicas defertilização “in vitro ” chegaram ao conhecimento do grande público e tambémganharam mais interesse nas pesquisas médicas especializadas.

1981

O nascimento desta criança foi de tal importância para o desenvolvimento cientifico etecnológico na área da saúde que foi instituído na Inglaterra, em 1981, um comitê deinvestigação sobre fertilização humana e embriologia (Committee of Inquiry intoHuman Fertilization and Embriology), vinculado ao Ministério da Saúde britânico como objetivo de desenvolver um relatório sobre as implicações éticas, sociais e legaisprovenientes da utilização desta nova biotecnologia.

O resultado deste comitê foi a publicação, três anos após sua instalação, do chamadoRelatório Warnock (em referência a Mary Warnock, presidente do comitê). Grandeparte dos aspectos da Bioética e do Biodireito atuais é pautada no texto desterelatório.

Década de 90

A partir da década de 90 as sociedades médicas mundiais passaram a inserirdiretrizes éticas relativas às tecnologias de reprodução em suas normatizações.

No Brasil, em 1992, o Conselho Federal de Medicina, seguindo as mais avançadaslegislações mundiais e igualmente fundamentado no Relatório Warnock, instituiu coma Resolução CFM 1358/92<http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/1992/1358_1992.htm>, as Normas Éticas para Utilização das Técnicas de Reprodução Assistida.

1

Mapa do Brasil (Fonte: JBOY / Shutterstock)

Atualmente, está em vigor a Resolução CFM 1957/2010<http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2010/1957_2010.htm>que revoga a anterior (após 18 anos) alterando alguns poucos aspectos, dentre osprincipais a substituição do termo “pré-embriões” por “embriões” e a introdução deum item que afirma que:

Não constitui ilícito ético a reprodução assistida post mortem

desde que haja autorização prévia específica do (a) falecido

(a) para o uso do material biológico criopreservado, de

acordo com a legislação vigente.

Uma série de ramificações temáticas de cunho ético está associada, de modo mais oumenos direto à questão da reprodução assistida. Existem aspectos éticos vinculadosao:

01

Consentimento informado.

02

Seleção de sexo da criança.

03

A doação de espermatozoides, óvulos, embriões.

04

A seleção dos embriões com bases na evidência da possibilidade de doençascongênitas. A maternidade substitutiva.

05

A clonagem.

06

A criopreservação de embriões. E muitos outros.

Fertilização in vitro (Fonte: Bezikus / Shutterstock)

Exemplo

A questão da doação de gametas , por exemplo. A Resolução CFM 1957/10institui que a doação deve preservar o anonimato entre receptores e doadores.O argumento principal é de que isso evitaria problemas futuros relativos àssituações emocionais e legais com repercussões no desenvolvimento psicológicoda criança. Esta perspectiva, no entanto, também não é consensual. Enquantoalguns especialistas acreditam que ela permite aos pais criar seus filhosexclusivamente em função de suas influências socioculturais, outros discordam eafirmam que o desconhecimento da origem genética interfere na completapercepção de sua identidade pessoal.

Em alguns países o anonimato não é obrigatório e ,ainda assim, não há umaposição técnica definida em relação aos benefícios ou não deste sigilo para odesenvolvimento psicossocial da criança e/ou para o acompanhamento clínico defuturos problemas congênitos que venha a apresentar.

3

Outra questão associada à reprodução assistida envolve a possibilidade de gestaçãoem casais homossexuais femininos. A legislação autoriza que mulheres utilizemsêmen doado para gestação independente da existência de vínculo familiar formal.

Há, no entanto, intenso debate ético neste aspecto, que envolve o conceito defamília, a admissão do casamento entre homossexuais e a equivalência deprocedimentos para adoção e fertilização.

No Brasil, assim como em muitos outros países, a adoção de crianças porhomossexuais tem sido admitida legalmente, o que indica também a tendência àaceitação da fertilização assistida para casais homossexuais femininos. Desta forma,por uma perspectiva ética, seria lícito estabelecer uma equivalência entre o quepoderia ser chamado, segundo Goldim, de “fertilização legalmente assistida” (adoção)e a fertilização assistida pela concepção médica de intervenção clínica no processo.

: Duas mulheres de mãos dadas (Fonte: VladimirGjorgiev / Shutterstock)

As questões éticas envolvidas seriam então, fundamentalmente as mesmas:

Até onde deve ir a intervenção do Estado emadoções ou doações de gametas (espermatozoidese óvulos) feitas de modo informal (algumas comforte apelo comercial)?

É moralmente ética a seleção de característicasfísicas das crianças por parte dos futuros paisadotivos ou fertilizados?

Estes são apenas poucos exemplos das reflexões éticas envolvidas na questão daequivalência de procedimentos entre a adoção e a fertilização.

AbortoNo sentido inverso da reprodução como criação da vida, o aborto se associa a elapelo enfoque conceitual ou ideológico do princípio da vida humana e de quando ainterrupção gestacional é simplesmente um procedimento clínico e quando passa aser um crime contra a vida.

Ferramentas de curetagem estéril (Fonte: StockKK / Shutterstock)

Existem condições previstas na legislação brasileira para a autorização de abortoslegais (estupro e risco de vida materno) e propostas que flexibilizam estas condiçõesestendendo-as à existência de anomalias fetais que implicam na possibilidade dedoenças congênitas graves e irreversíveis (anencefalia, por exemplo).

Naturalmente que todas estas motivações ou condições, independente de aspectoslegais, são profundamente conflitantes em termos éticos, pois implicam no direito aimpedir o desenvolvimento da vida em função de critérios nem sempre absolutos.

Balança, símbolo do Direito (Fonte: Pensiri /Shutterstock)

O código penal brasileiro, que em seu artigo 128 desqualifica o

aborto como crime em caso de gestação proveniente de estupro

não especifica até que momento da gestação esta pode ser

interrompida. Também não estabelece os procedimentos legais

necessários para a qualificação comprovada do estupro. Assim,

a existência de um boletim de ocorrência policial contra um

suposto sujeito desconhecido pode facilmente promover uma

autorização legal para o aborto. Isso, sem ainda considerarmos

as mais de 3.000 liminares concedidas para o abortamento legal

em função de anomalias fetais. Os debates éticos a respeito do

aborto estão longe de ser encerrados e tanto na esfera jurídica

quanto filosófica dificilmente encontraremos consenso em um

aspecto que depende tão diretamente de valores morais,

religiosos e culturais.

O fato é que, existe uma premência neste tema que não pode aguardar as conclusõesideológicas dos debates. Esta premência é o imenso número de mulheres que todosos dias recorre a abortos em locais impróprios e profundamente arriscados do pontode vista da preservação de sua própria integridade em função dos impedimentoslegais de recorrerem ao sistema oficial de saúde.

Independente de qualquer valor, esta é uma realidade que não pode ser ignorada eque transforma a questão do aborto não apenas em um dos temas mais delicados epolêmicos da Bioética como também, cada vez mais, em uma questão de saúdepública.

Atividade“As estatísticas são pouco confiáveis, mas os especialistas admitem que sejamrealizados anualmente cerca de um milhão de abortos clandestinos no Brasil. Ascomplicações decorrentes de abortos malfeitos, sem condições de higiene ousegurança, representam a quarta causa de morte materna. Cerca de 200.000mulheres morrem em consequência de hemorragias e infecções. O cenário foibem pior em um passado não muito distante. Na década de 80, os abortosclandestinos podem ter chegado a 4 milhões por ano. Uma série de fatores secombinou para reduzir esse número. Os mais efetivos foram o aperfeiçoamentodos métodos anticoncepcionais e a disseminação no país de políticas deplanejamento familiar”.

Fonte: REVISTA Veja. Aborto é uma realidade nos consultórios médicos.Publicação: 23 jan. 2009. Disponível em: https://goo.gl/rtY5px<https://veja.abril.com.br/brasil/aborto-e-uma-realidade-nos-consultorios-medicos/> . Acesso em: 4 maio 2018.

Baseado no parágrafo acima, observe as afirmativas abaixo e marque verdadeiro(V) ou falso (F) para as que se relacionam corretamente à questão de SaúdePública e à legislação sobre o aborto no Brasil.

a) A legislação criminaliza o aborto fora dos casos previstos de risco de vidamaterno ou de gravidez consequente de estupro, mas na prática estapenalização ocorre em raríssimos casos, ficando a cargo das mulheres (ou docasal) a decisão particular de efetuar ou não a interrupção da gravidez.b) O aborto é executado de modo ilegal nas mais diferentes condições de higienee segurança. Desde clínicas caras e muito bem aparelhadas para as classes maisfavorecidas até os lugares mais sórdidos e insalubres possíveis.c) A ocorrência de aborto em números exorbitantes demonstra a urgência em seestabelecer, além de uma melhor política de controle e planejamento familiar,também uma legislação que regule esta prática de modo menos ideológico emais voltado para a segurança da população.

Notas

Surgimento da consciência e do “comportamento moral” 1

Este, naturalmente, incorre no equívoco primário de confundir o sentido dehumanidade com a assimilação da cultura e de valores sociais.

2 in vitro

Neste tipo de fertilização, a fecundação do óvulo pelo espermatozoide ocorre fora docorpo da mulher e, em seguida, reimplantados para que a gestação prossiga.

Doação de gametas

Indicada para casos de casais inférteis ou no caso de que um dos membros possuadoença genética transmissível para os descendentes.

Próximos Passos

Conceito e definição de eutanásia e distanásia;Os motivos, intenções e efeitos da eutanásia;A posição do CFM e da Associação Mundial de Medicina sobre a eutanásia.

Explore mais

Leia o texto:

Bioética e Reprodução Humana<https://www.ufrgs.br/bioetica/biorepr.htm> .

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