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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Teoria do Direito DISCURSO DO ÓDIO E LIMITAÇÕES NÃO-PATERNALISTAS DA TOLERÂNCIA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: uma crítica à decisão do Supremo Tribunal Federal no caso Ellwanger (HC n. 82424-2 RS) Juarez Monteiro de Oliveira Júnior Belo Horizonte 2008 PDF processed with CutePDF evaluation edition www.CutePDF.com PDF processed with CutePDF evaluation edition www.CutePDF.com PDF processed with CutePDF evaluation edition www.CutePDF.com PDF processed with CutePDF evaluation edition www.CutePDF.com

DISCURSO DO ÓDIO E LIMITAÇÕES NÃO-PATERNALISTAS … · Nesse caminhar acadêmico ele foi meu guia, me ajudando a optar pelo caminho correto. Ao professor Marcelo Cattoni, agradecimentos

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-Graduação em Teoria do Direito

DISCURSO DO ÓDIO E LIMITAÇÕES NÃO-PATERNALISTAS DA

TOLERÂNCIA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: uma

crítica à decisão do Supremo Tribunal Federal no caso Ellwanger

(HC n. 82424-2 RS)

Juarez Monteiro de Oliveira Júnior

Belo Horizonte

2008

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Juarez Monteiro de Oliveira Júnior

DISCURSO DO ÓDIO E LIMITAÇÕES NÃO-PATERNALISTAS DA

TOLERÂNCIA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: uma

crítica à decisão do Supremo Tribunal Federal no caso Ellwanger

(HC n. 82424-2 RS)

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Direito da Pontifícia

Universidade Católica de Minas Gerais,

como requisito parcial para a obtenção do

título de Mestre em Direito, área de

concentração em Teoria do Direito.

Orientador: Marcelo Andrade Cattoni de

Oliveira

Belo Horizonte

2008

Juarez Monteiro de Oliveira Júnior

Dissertação intitulada “Discurso do Ódio e Limitações Não-Paternalistas da

Tolerância no Estado Democrático de Direito: uma crítica à decisão do

Supremo Tribunal Federal no caso Ellwanger (HC n. 82424-2 RS)”, apresentada

ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de

Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Teoria

do Direito, aprovada pela banca examinadora constituída pelos seguintes

professores:

________________________________________________

Prof. Doutor Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira (Orientador)

PUC - Minas

________________________________________________

Prof. Doutor Marcelo Campos Galuppo

PUC - Minas

________________________________________________

Prof. Doutor Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia

Faculdade Batista

________________________________________________

Prof. Doutor Fernando José Armando Ribeiro (suplente)

PUC - Minas

Belo Horizonte, 15 de fevereiro de 2008.

A meus pais,

pelo apoio e carinho.

A meu querido afilhado Gustavinho,

pela felicidade que essa “pessoinha” me proporciona.

AGRADECIMENTOS

Este trabalho só foi possível pela colaboração e o incentivo de muitas

pessoas que, em maior ou menor medida, gentilmente me concederam um pouco de

seu tempo, de sua paciência e de seu conhecimento.

A meus pais, Juarez e Maria Amélia, agradeço a presença nos momentos

mais difíceis e o apoio incondicional às minhas aspirações.

A meu irmão Daniel, pelo incentivo “carinhoso”, fundamental na reta final.

A meu “compadre”, professor mestre Gustavo Paolinelli, não só pela ajuda

nesse trabalho, importantíssima, mas principalmente por sempre servir de exemplo

de dedicação, honestidade e profissionalismo. Acadêmico por essência e

excelência, sua empolgação com a docência é inspiradora!

Ao professor Mestre Rogério Monteiro, meu grande e querido amigo, não há

palavras para agradecê-lo. Nesse caminhar acadêmico ele foi meu guia, me

ajudando a optar pelo caminho correto.

Ao professor Marcelo Cattoni, agradecimentos não bastam. Sua ajuda não se

limitou apenas à orientação do trabalho, mas além, pois seu exemplo de

competência, profissionalismo e dedicação à Academia, se tornou um estímulo para

mim. Pela ajuda e compreensão nos momentos mais difíceis, minha gratidão.

Agradeço, por fim, a todos que, de alguma forma, contribuíram para este

trabalho.

“[...] Vivemos em uma sociedade da insatisfação, pois se é

possível, por um lado, descrever a sociedade moderna, e por

outro, a única certeza que podemos ter em relação ao seu

futuro, cientificamente, é o fato de ela se tornar cada vez mais

complexa e sempre mais rapidamente.

“Trata-se de um tipo de sociedade que requer um grau

recorrentemente mais alto de complexidade para a sua própria

reprodução, uma sociedade, portanto, insatisfeita consigo

mesma. Desde o seu nascimento, uma sociedade que se

diferencia, que se especializa para poder se reproduzir num

grau de complexidade tão grande que exigiu a invenção dos

direitos humanos, dos direitos fundamentais; requereu a

firmação, a um só tempo paradoxal e estruturalmente móvel,

do reconhecimento recíproco da igualdade e da liberdade de

todos os seus membros, ou seja, tornou plausível e exigiu a

idéia de que somos, pela primeira vez na história, uma

sociedade na qual nos reconhecemos como pessoas iguais,

porque ao mesmo tempo livres. Livres para sermos diferentes,

uma vez que todos somos diferentes, plurais, em dotes e

potencialidades desde o nascimento e nos reconhecemos o

direito de sermos diferentes e de exercemos as nossas

diferenças, ou seja, de sermos livres e de exercemos nossas

liberdades. E, ainda assim, ou melhor, precisamente por isso,

nos respeitamos como iguais.”

(Menelick de Carvalho Netto)

RESUMO

Esta pesquisa parte do caso mais emblemático sobre “discurso de ódio” julgado pelo

Supremo Tribunal Federal: o habeas corpus 82.424-2. Embora o argumento da

defesa versasse sobre a abrangência do art. 5º, XLII, da Constituição Federal, o

principal tema tratado nesse julgamento foi o possível conflito entre o “direito” à

liberdade de expressão e o “direito” à dignidade da pessoa. Assim, a partir dos votos

dos ministros do STF desenvolvemos o trabalho, buscando responder a duas

questões: quais foram os conceitos de “liberdade de expressão” e “dignidade da

pessoa” construídos pelo Tribunal nesse julgamento? E, por fim, esses conceitos

são adequados ao Estado democrático de direito? Uma vez que verificamos que o

STF decide de maneira paternalista, impondo a tolerância ao invés de promover o

reconhecimento dos grupos minoritários, mostramos, com Habermas, que os direitos

religiosos servem de exemplo para a consecução dos outros direitos fundamentais,

ajudando na construção de uma sociedade pluralista e tolerante com os dissidentes.

PALAVRAS-CHAVE: Discurso de Ódio – Tolerância – Luta por Reconhecimento –

Estado democrático de Direito

ABSTRACT:

This research starts from the most emblematic trial about "hate speech " decided for

the brazilian Supreme Court: habeas corpus 82.424-2. Although the plea refered

about on the field of article 5, XLII, of the Federal Constitution, the main subject

discussed in this judgment was the possible conflict between the " right " to the liberty

of speech and " right" to the human dignity. Thus, from the votes of the judges of

brazilian Supreme Court we develop the work, trying to answer two questions: the

first one is, which had been the meaning of " freedom of speech" and " dignity

human" developed by the Court in this trial? And, finally, are these concepts

appropriate to the Constitutional Democracy? Concluding that brazilian Supreme

Court decides in a paternalistic way, imposing the tolerance instead of promoting the

recognition of the minority groups, we show, based on Habermas, that the religious

rights can be used as an example for the achievement of the other basic rights,

helping in the development of a pluralistic and tolerant society with the opponents.

KEY-WORDS: hate speech - Tolerance/Toleration - Struggle for recognition -

Constitutional Democracy

LISTA DE SIGLAS

CF – Constituição Federal

HC – habeas corpus

STF – Supremo Tribunal Federal

STJ – Superior Tribunal de Justiça

TJRS – Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO...................................................................................................p. 12 2 – O HABEAS CORPUS 82.424-2 E A CONTRUÇÃO DOS CONCEITOS DE LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DIGNIDADE DA PESSOA .......................p. 16 2.1 Elenco e cronologia do habeas corpus 82.424-2 – Rio Grande do Sul .........p. 16 2.1.1 Elenco ..........................................................................................................p. 16 2.1.1.1 Atores principais ........................................................................................p. 16 2.1.1.2 Ministros do STF que votaram no Habeas Corpus 82.424-2 ....................p. 22 2.1.1.3 Outros atores ............................................................................................p. 31 2.1.2 Cronologia ....................................................................................................p. 32 2.2 O Habeas Corpus 82.424-2 .............................................................................p. 33 2.2.3 O caso concreto ...........................................................................................p. 34 2.2.4 A tese dos autores do pedido de Habeas Corpus ........................................p. 35 2.2.5 O parecer do Subprocurador-Geral da República Cláudio Lemos Fonteles p. 36 2.2.6. O parecer do amicus curiae Celso Lafer .....................................................p. 37 2.3.4 Voto do Ministro relator-originário Moreira Alves .........................................p. 40 2.2.8 Voto do Ministro relator Maurício Corrêa ......................................................p. 41 2.2.9 Voto dos outros Ministros que negaram o habeas corpus ...........................p. 42 2.2.9.1 Argumentação sobre o alcance da imprescritibilidade e do Termo “racismo”.................................................................................................... p. 43 2.2.9.2 Argumentação sobre liberdade de expressão versus dignidade humana p. 45 2.3 “Liberdade de expressão” segundo os ministros que denegaram o habeas corpus........................................................................................................p. 45 2.4 “Liberdade de expressão” segundo o Ministro Carlos de Britto ......................p. 49 2.5 “Liberdade de expressão” segundo o Ministro Marco Aurélio .........................p. 51 3. TOLERÂNCIA RELIGIOSA COMO PRECURSORA DOS DIREITOS CULTURAIS ..........................................................................................................p. 55 3.1 Introdução ........................................................................................................p. 55 3.2 Conceitos de tolerância ...................................................................................p. 56 3.3 Tolerância e preconceito .................................................................................p. 62 3.4 Tolerância religiosa versus contestação científica: e a política, onde fica?.....p. 64 3.5 As religiões são realmente irreconciliáveis? A necessidade dos argumentos de aceitação superarem os de recusa. ......................................................................p. 66 3.6 A tolerância religiosa como precursora do multiculturalismo ..........................p. 69 3.7 Breves considerações .....................................................................................p. 73 4. POR UMA SUPERAÇÃO DO TRATO PATERNALISTA DO STF EM RELAÇÃO AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS.....................................................p. 74 4.1 Introdução .......................................................................................................p. 74 4.2 As concepções de dignidade da pessoa e liberdade de expressão construídas pelo Supremo Tribunal Federal .........................................................p. 75 4.2.1 A primeira concepção de dignidade da pessoa e liberdade de expressão (extraída dos votos da maioria dos Ministros que votaram pela denegação do habeas corpus)...............................................................................p. 75 4.2.2 A segunda concepção de dignidade da pessoa e liberdade de expressão (extraída dos votos dos Ministros Marco Aurélio de Mello e Carlos Britto.............p. 82 4.3 Como proteger os direitos individuais sem paternalismo? ..............................p. 87 4.3.1 A discussão entre política de reconhecimento e luta por reconhecimento p. 87

4.3.2 O projeto de uma identidade constitucional aberta e em constante transformação .......................................................................................................p. 91 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................. p. 94 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...............................................................p. 102

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1. INTRODUÇÃO

O discurso do ódio (Hate Speech), entendido por Rosenfeld (2001) como

discurso para promover o ódio baseado na raça, religião, etnia ou nacionalidade – e

podemos ainda acrescentar gênero ou opção sexual – se apresenta como um

intricado e complexo problema em face do direito constitucional à liberdade de

expressão. O discurso do ódio pode aparecer tanto de forma explícita e óbvia – e,

portanto, teoricamente fácil de ser combatido – como pode vir mascarado por

sutilezas que transmitem sua mensagem de intolerância de forma quase subliminar.

Se o ódio é claro numa passeata neonazista, o que dizer de trabalhos “científicos”

ou literários?

O julgamento do principal caso de discurso do ódio no Brasil ocorreu no ano

de 2003, no qual o Supremo Tribunal Federal julgou o Habeas Corpus nº 82.424-2,

no qual figurava como paciente o editor Siegfried Ellwanger Castan, acusado de

crime de racismo. O crime cometido por Ellwanger está tipificado no caput do artigo

20 da Lei 7.716/89, com redação dada pela Lei 8.081/90, por ter, na qualidade de

escritor e sócio da empresa Revisão Editora Ltda., editado, distribuído e vendido ao

público obras anti-semitas de sua autoria e de autores nacionais e estrangeiros que,

segundo a denúncia, “abordam e sustentam mensagens anti-semitas, racistas e

discriminatórias”, pretendendo com isso “incitar e induzir a discriminação racial,

semeando em seus leitores sentimentos de ódio, desprezo e preconceito contra o

povo de origem judaica”. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 12-13). A

defesa, embora reconhecesse o caráter discriminatório das publicações de

Ellwanger, foi baseada no argumento de que os judeus constituem um povo, e não

uma raça, motivo pelo qual não teria incidido em crime de racismo - inafiançável e

imprescritível, de acordo com o inciso XLII do Art. 5º da Constituição Federal - ao

propagar teses anti-semitas. Na hipótese de o argumento ser acolhido, a pretensão

executória da pena estaria prescrita. A ordem de Habeas Corpus foi denegada pela

maioria dos Ministros que, por meio de uma ponderação de valores, optaram em dar

maior relevância ao direito à dignidade da pessoa, preterindo o direito à liberdade de

expressão. É a partir da análise desse caso concreto que o presente trabalho será

desenvolvido.

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Inicialmente, reconstruiremos esse leading case do Supremo Tribunal Federal no

que tange à liberdade religiosa, racismo e liberdade de expressão. A reconstrução

do HC 82.424-2 é fundamental para este trabalho na medida em que nos possibilita

verificar, no caso concreto, quais são os parâmetros do STF no julgamento de um

caso no qual o preconceito religioso é utilizado como defesa em face de uma

condenação por crime de racismo.

A defesa, procurando fugir da cláusula da imprescritibilidade nos crimes de

racismo imposta pela Constituição Federal em seu artigo 5º, inciso LXII, alegou que,

uma vez que os judeus não são uma raça como, por exemplo a negra, o crime

cometido estaria prescrito. Embora a abrangência da concepção de racismo fosse a

matéria suscitada pela defesa, o julgamento se enveredou por outro caminho. Após

observar que os debates sobre racismo eram extremamente ricos, o Ministro

Sepúlveda Pertence indagou acerca da possibilidade de “colisão” entre os “direitos”

de liberdade de expressão e dignidade da pessoa. A partir daí, praticamente todos

os Ministros trataram diretamente do tema.

Ao fim de pouco mais de um ano, o julgamento do Habeas Corpus 82.424-2

chegou ao fim. O Tribunal, pela maioria, decidiu pelo indeferimento do Habeas

Corpus. Votaram pelo indeferimento os Ministros Maurício Corrêa (relator do

acórdão), Sepúlvida Pertence, Celso de Mello, Carlos Veloso, Nelson Jobim, Ellen

Gracie, Gilmar Mendes e Cezar Peluso. Foram votos vencidos os Ministros Moreira

Alves (relator-originário) e Marco Aurélio, que reconheceram a prescrição do crime

de racismo, e o Ministro Carlos Ayres Britto, que absolveu o paciente por falta de

tipicidade da conduta.

Pelo resultado do Habeas Corpus, pode-se perceber que o Supremo Tribunal

Federal ficou divido em três grupos: o primeiro, composto pelos Ministros que

votaram pelo indeferimento; o segundo, composto pelo voto do Ministro Marco

Aurélio e pelo Ministro Moreira Alves, ambos concedendo o Habeas Corpus; e,

terceiro, o voto sui generis do Ministro Carlos Ayres de Britto, que absolveu Siegfried

Ellwanger Castan por atipicidade de conduta, ou seja, a conduta do paciente não

teria sido criminosa. Nesses votos poderemos responder a primeira pergunta que

levantamos na pesquisa: quais as concepções de liberdade de expressão e

dignidade da pessoa construídas pelo Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus

82.424-2?

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Verificamos, analisando cada grupo, que o Supremo Tribunal Federal constrói

concepções distintas de liberdade de expressão e dignidade da pessoa. No primeiro

grupo percebemos que a liberdade de expressão é um direito fundamental, sendo

que, nos casos em que o teor da manifestação não observar os limites impostos

pela própria Constituição e atingir os valores da sociedade, ela deverá ser limitada.

No caso de um conflito entre direitos – liberdade de expressão e dignidade humana

– prevalecerá a segunda, uma vez que, pelo princípio da proporcionalidade, é mais

condizente com o fim almejado pela Constituição Federal.

No segundo grupo, composto pelos votos do Ministro Marco Aurélio e Moreira

Alves, verificamos que a liberdade de expressão é tida como o valor fundamental da

democracia. Marco Aurélio vale-se da teoria da ponderação de valores para decidir o

“conflito” de “princípios”. A solução, diz o Ministro, encerra-se na medida em que os

“valores” são utilizados para se decidir o caso. Assim, Marco Aurélio pergunta: faz

parte da essência da sociedade brasileira ser anti-semita? Ou ainda, a discriminação

dos judeus está entre os valores da sociedade brasileira?

Uma vez que, para o Ministro, a sociedade brasileira não é anti-semita, o

paciente não teria praticado o crime de racismo. Assim, decidiu o Ministro para

conceder o Habeas Corpus, declarando prescrita a pretensão punitiva. Além disso,

Marco Aurélio faz uma calorosa defesa da liberdade de expressão, contrapondo-a,

de forma abstrata, com a dignidade da pessoa. Nesses casos, desde que a ofensa

não seja contra uma minoria “historicamente” ofendida, não há razão de criminalizar

a conduta.

Quanto ao Ministro Carlos Ayres de Britto, este faz uma análise de trechos

presentes nos livros publicados pelo editor anti-semita. Trechos com desprezível

teor racista, como por exemplo: “como o sírio, o judeu não passa sem prestações. É

uma inclinação racial” e “O nosso Brasil é a carniça monstruosa ao luar. Os

banqueiros judeus, a urubuzada que a devora”. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL,

2004, p. 32-33). Mas, para Britto, tais manifestações são fruto da liberdade de

criação. Assim, o alcance do “uso” da liberdade de expressão é tão amplo que fica

quase impossível imaginarmos o “abuso”.

Tendo respondido a primeira questão, segue-se mais uma indagação: tais

concepções são constitucionalmente adequadas ao Estado democrático de Direito

ou o STF teria construído uma visão paternalista de liberdade de expressão e de

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dignidade da pessoa a partir desse caso? Ou ao contrário, a visão construída pelo

STF seria complacente com a discriminação?

Para respondermos a segunda pergunta utilizaremos como fundamentação

teórica os textos do filósofo Jürgen Habermas, o que será exposto no capítulo 2.

Nesse momento, mostraremos em que medida podemos aprender com as lutas

históricas pela liberdade religiosa e como a solução encontrada para dirimir os

conflitos religiosos – que se fundam em argumentos irreconciliáveis – podem servir

de paradigma para a consecução de outros de minorias.

Veremos ainda que o Estado constitucional deve ser extremamente

cuidadoso no trato das questões que envolvem minorias pois, caso decida de modo

autoritário, mesmo se o escopo for justamente defender a democracia, correrá o

risco de solapar qualquer possibilidade do grupo discriminado ver seus direitos

reconhecidos. No caso de uma decisão equivocada o resultado poderá ser

justamente o que se pretendia evitar: o isolamento do grupo minoritário.

Após o capítulo 3 poderemos verificar se as concepções de liberdade de

expressão e dignidade da pessoa são paternalistas ou complacentes, inadequadas,

portanto, para o reconhecimento do pluralismo. Essa análise será feita no Capítulo

4.

Se concluirmos pela inadequação de tais concepções ao Estado democrático

de Direito mostraremos que, na proteção das garantias fundamentais, o Estado

Constitucional deve se preocupar em possibilitar às minorias o reconhecimento de

seus direitos ético-culturais, e não impor, de forma autoritária, a tolerância – que

veremos, nem tolerância é – às pessoas que compõe a sociedade.

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2 – O HABEAS CORPUS 82.424-2 E A CONTRUÇÃO DOS CONCEITOS DE

LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DIGNIDADE DA PESSOA

Pilatos [...] mandou trazer água, lavou as mãos diante da multidão

e disse: “estou inocente deste homem; a responsabilidade é de vocês.”

Todo o povo respondeu: “que o sangue dele caia sobre nós e sobre nossos filhos.”

(Mateus: 27, 24-25)

_ Esta noite mataremos os cabeleireiros e os judeus! _ Por que os cabeleireiros?

(anedota popular)

Jedem das Seine [a cada um o que merece] (detalhe inscrito no portão do campo de concentração

de Buchenwald)

2.1 Elenco e cronologia do habeas corpus 82.424-2 – Rio Grande do Sul:1

2.1.1 Elenco

2.1.1.1 Atores principais

Paciente: Siegfried Ellwanger Castan, brasileiro, nasceu em Candelária, no Rio

Grande do Sul, no dia 30/7/28. É escritor e editor-sócio da Revisão Editora & Livraria

Ltda, empresa especializada na publicação e divulgação de livros revisionistas, anti-

semitas e anti-sionistas. É ainda fundador e presidente do Centro Nacional de

Pesquisas Históricas. É autor dos livros Holocausto: Judeu ou Alemão? - Nos

Bastidores da Mentira do Século (editado também em inglês, espanhol e alemão),

1 A divisão entre “elenco” (cast) e “cronologia” (chronology) foi inspirada em Jacobson e Rosenfeld (2002).

17

SOS Para a Alemanha, A Implosão da Mentira do Século, O Catolicismo Traído

e Acabou o Gás... O Fim de um Mito, todos editados pela Revisão.2

Coator: Superior tribunal de Justiça.

Relator originário: José Carlos Moreira Alves nasceu em 19 de abril de 1933, na

cidade de Taubaté, Estado de São Paulo, filho de Luiz de Oliveira Alves e de D.

Maria Ismenia Moreira Alves. Bacharelou-se em Direito pela Faculdade Nacional de

Direito da Universidade do Brasil, em 1955; concluiu o curso de Doutorado (Seção

de Direito Privado), na mesma Faculdade, em 1957. Em todos os cursos referidos,

do ginasial ao doutorado, destacou-se como o primeiro aluno das respectivas

turmas. Dedicando-se ao magistério, lecionou, como professor regente, nas cadeiras

de Direito Civil e de Direito Romano, na Faculdade de Direito da Universidade Gama

Filho, no Rio de Janeiro (1957 a 1964) e, como professor contratado, nas cadeiras

de Direito Romano, na Faculdade de Direito Cândido Mendes (1960 a 1968);

Instituições de Direito Público e Privado, na Escola Brasileira de Administração

Pública da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro (1964 a 1968) e Direito

Romano especializado, no curso de doutorado da Faculdade de Direito da Pontifícia

Universidade Católica do Rio de Janeiro (1962). A princípio como professor

contratado e depois como professor associado, lecionou nas cadeiras de Direito Civil

e de Direito Processual Civil, na Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade

Católica do Rio de Janeiro (1962 a 1968). Como livre- docente e, posteriormente,

como catedrático interino, lecionou nas cadeiras de Direito Civil e Direito Romano,

na Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil (1965 a 1968). Foi

catedrático interino da cadeira de Direito Civil especializado no curso de doutorado

da Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil (1968). Lecionou, desde

1968, como professor catedrático, Direito Civil na Faculdade de Direito da

Universidade de São Paulo e, a partir de 1969, como professor contratado, na

mesma cadeira, na Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie. Desde 1974,

cedido pela Universidade de São Paulo, leciona na Universidade de Brasília. De

janeiro de 1969 a julho de 1970, foi membro do Conselho Universitário da

Universidade de São Paulo, como representante da Congregação da Faculdade de

2 Conforme o catálogo da Revisão Editora & Livraria Ltda. disponível no site http://revisao.grupodirlip.org/siegfried.htm, acessado em 27 de agosto de 2007.

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Direito, inicialmente como suplente e, a partir de setembro de 1969, como efetivo.

Possui as seguintes obras e trabalhos publicados: Direito Romano 1º volume

(História do Direito Romano Instituições de Direito Romano: A − Parte Geral; B −

Parte Especial: Direito das Coisas), Ed. Borsoi, RJ, 1965; 13ª ed., Ed. Forense,

2000; Direito Romano 2º volume (Instituições do Direito Romano: B − Parte Especial:

Direito das Obrigações; Direito de Família; Direito das Sucessões) Ed. Borsoi, RJ,

1965; 6ª ed., Ed. Forense, 2000; A Retrovenda, Ed. Borsoi, RJ, 1967; 2ª ed., Ed.

Revista dos Tribunais, 1987; Da Alienação Fiduciária em Garantia, Ed. Saraiva

1973; 3ª ed., Ed. Forense, 1987; Pareceres do Procurador-Geral da República, DIN,

Brasília, 1973; Tertiis Nundinis Partis Secanto, RJ, 1958; Os Efeitos da Boa-Fé no

Casamento Nulo, segundo o Direito Romano, RJ, 1959; A Forma Humana no Direito

Romano, RJ, 1960; Vnus Casus (Inst. IV, 6, 2), RJ, 1964 reed. Revista Verbum,

PUC-RJ, fac. set/dez 1967; Estudos de Direito Civil Brasileiro e Português (II

Jornada Luso-Brasileira de Direito Civil), Rev. dos Tribunais, 1980 (em colab. com

Marcello Caetano, Clóvis do Couto e Silva e Mário Júlio de Almeida Costa); Posse,

vol. I (Evolução Histórica), Ed. Forense, 1985; 3ª tir., Ed. Forense, 1999; A Parte

Geral do Projeto de Código Civil Brasileiro, Ed. Saraiva, SP, 1986; Posse, vol. II, 1º

tomo (Estudo Dogmático), Ed. Forense, 1999; 2ª ed., 3ª tir., 1999. Exerceu a

advocacia, inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do antigo Distrito

Federal, hoje Estado do Rio de Janeiro, de 1956 a 1969, e na Seção do Estado de

São Paulo, a partir de junho de 1969. Foi advogado do Banco do Brasil S/A. Membro

do Instituto dos Advogados Brasileiros, Seção do Estado de São Paulo e ex-membro

do Instituto dos Advogados Brasileiros, Seção do Estado do Rio de Janeiro (antigo

Estado da Guanabara). Coordenador da Comissão de Estudos Legislativos do

Ministério da Justiça (1969 a 1972 e 1974 a 1975); membro da Comissão

encarregada de elaborar o Anteprojeto do Código Civil Brasileiro; Presidente da

Comissão revisora do Anteprojeto do Código de Processo Penal e Presidente da

Comissão revisora do Anteprojeto do Código das Contravenções Penais. Chefe do

Gabinete do Ministro da Justiça, de junho de 1970 a março de 1971, representou o

titular da pasta no III Congresso de Direito Penal e Ciências Afins, realizado em

agosto de 1970, em Recife. Participou, como Assessor, da Delegação do Brasil, na

Reunião dos Ministros da Justiça dos países hispânicos, luso-americanos e filipinos,

efetuada em Madri, em setembro de 1970. Foi Delegado do Brasil nas conferências

diplomáticas para a revisão da Convenção Universal sobre o Direito de Autor e da

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Convenção de Berna, realizadas em Paris, em julho de 1971. Presidiu o IV

Congresso Interamericano do Ministério Público, realizado em Brasília, em maio de

1972. Chefiou a Missão Especial, na qualidade de Embaixador Extraordinário e

Plenipotenciário, para representar o governo brasileiro nas cerimônias oficiais

comemorativas do 50º aniversário da Proclamação da República na Turquia, em

outubro de 1973. Nomeado por decreto de 19 de abril de 1972, exerceu o cargo de

Procurador-Geral da República, de 24 de abril de 1972 a 19 de junho de 1975.

Nomeado Ministro do Supremo Tribunal Federal, por decreto de 18 de junho de

1975, do Presidente Ernesto Geisel, na vaga decorrente da aposentadoria do

Ministro Oswaldo Trigueiro de Albuquerque Mello. Tomou posse no cargo em 20 do

mesmo mês. Indicado pelo Supremo Tribunal Federal para Juiz Substituto do

Tribunal Superior Eleitoral de 14 de agosto de 1975 a 8 de novembro de 1978, foi,

depois, Juiz Efetivo (9 de novembro de 1978 a 25 de agosto de 1980), quando

assumiu a Vice-Presidência (26 de agosto de 1980 a 20 de agosto de 1981),

ascendendo à Presidência (21 de agosto de 1981 a 11 de novembro de 1982).

Exerceu a Vice-Presidência do Supremo Tribunal Federal de 9 de dezembro de

1982 a 24 de fevereiro de 1985. Eleito em sessão de 12 de dezembro de 1984,

desempenhou as funções de Presidente, no período de 25 de fevereiro de 1985 a 10

de março de 1987. Nessa condição ocupou a Presidência da República, de 7 a 11

de julho de 1986, em substituição do Presidente José Sarney. Coube-lhe, como

Presidente do Supremo Tribunal Federal, declarar instalada a Assembléia Nacional

Constituinte, em 1º de fevereiro de 1987. Ao deixar a Presidência da Corte, passou a

presidir a Primeira Turma. Posteriormente retornou ao Tribunal Superior Eleitoral,

indicado como Juiz Substituto, no período de 10 de novembro de 1994 a 20 de

dezembro de 1998. Havendo completado o Jubileu de Prata como Ministro da Corte,

em 20 de junho de 2000, decidiu o Supremo Tribunal Federal homenageá-lo, em

sessão que se realizou a 9 de agosto de 2000, sob a presidência do Ministro Carlos

Velloso. Falou, em nome de seus pares, o Ministro Nelson Jobim; pelo Ministério

Público da União, o Procurador-Geral da República, Dr. Geraldo Brindeiro, e, pelo

Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, o Dr. José Guilherme Villela.

Em 15 de abril de 2003, às vésperas de completar 70 anos, foi homenageado em

sua última sessão de julgamento presidindo a Primeira Turma, quando discursaram

o Ministro Sydney Sanches, pelo Supremo Tribunal Federal, o Procurador da

República, Dr. Edson Oliveira de Almeida, pelo Ministério Público Federal e o

20

secretário da Primeira Turma, Ricardo Dias Duarte. Atingiu a idade limite para

permanência na atividade em 19 de abril de 2003, sendo aposentado por decreto de

22 de abril do mesmo ano, publicado no Diário Oficial da União de 23 seguinte. Aos

16 de outubro de 2003, foi realizada sessão plenária em sua homenagem, na qual

falou, pela Corte, o Ministro Gilmar Mendes, pelo Ministério Público Federal, o

Procurador-Geral da República, Dr. Cláudio Fonteles e pelo Conselho Federal da

OAB, o Presidente da seccional de Goiás, Dr. Felicíssimo Sena.

Relator para o acórdão: Maurício José Corrêa nasceu em São João do Manhuaçu,

Minas Gerais, em 9 de maio de 1934, filho de Arthur Aarão Corrêa e D. Maria Garcia

Corrêa. Tornou-se Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de

Direito de Minas Gerais, na turma de 1960. A partir de 1961, foi advogado militante

em Brasília, com escritório especializado em Direito Comercial e Direito Civil. No

período de 1961 até 1986, exerceu o cargo de Procurador Autárquico (Iapas e

IAPM). Membro do Instituto dos Advogados do Brasil, Instituto dos Advogados do

Estado de Goiás e do Instituto dos Advogados do Distrito Federal. De 1975 a 1986,

foi Conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil — Seção do Distrito Federal,

ocupando a Vice-Presidência da entidade, no período de 1977 a 1979, e exercendo

a Presidência, por quatro mandatos, de 1979 a 1986. Durante a sua gestão, foi

fundador e Presidente da primeira Comissão de Direitos Humanos da OAB, instituiu

a Fundação de Assistência Judiciária, dedicada ao atendimento dos carentes,

implantou a Caixa de Assistência dos Advogados e construiu a sede definitiva da

Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Distrito Federal. Presidiu a Comissão de

Exame da Ordem da OAB-DF, integrou bancas examinadoras de candidatos à

Magistratura no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios e no Tribunal

Regional do Trabalho da 10ª Região. Promoveu a realização de diversos

congressos, na área de Direito, durante o período em que presidiu a OAB-DF. Foi

conferencista em ciclos de estudos da Adesg/DF, sendo escolhido Paraninfo e

Patrono de várias turmas das faculdades de Direito sediadas em Brasília. Em 1986,

foi eleito Senador, pelo Distrito Federal, para um mandato de oito anos, iniciado em

1º de fevereiro de 1987, havendo participado dos trabalhos da Assembléia Nacional

Constituinte. Apresentou 459 emendas, das quais 144 foram aprovadas. Como

Senador Constituinte, participou das Comissões e Subcomissões da Organização

dos Poderes e Sistemas de Governo, do Poder Judiciário e do Ministério Público.

21

Posicionou-se contrariamente à criação da Corte Constitucional, defendendo os

textos que vieram integrar a Constituição de 1988, relativos aos órgãos do Poder

Judiciário, bem assim à composição e competência do Supremo Tribunal Federal.

Foi Vice-Presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a apurar as

denúncias feitas pelo Sr. Pedro Collor contra o Sr. Paulo César Farias. Ainda no

âmbito dessa mesma Comissão, participou da Subcomissão que investigou o

envolvimento do Sr. Paulo César Farias com empresas empreiteiras. Integrou a

Comissão Parlamentar de Inquérito instituída pela Resolução nº 22/88, do Senado

Federal, para apurar, em profundidade, as denúncias de irregularidades, inclusive

corrupção, na Administração Pública. Exerceu a Vice-Presidência da Comissão de

Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal durante o biênio 1991/1992.

Fez parte, como membro titular, no período de fevereiro de 1987 a outubro de 1992,

das Comissões de Assuntos Econômicos; Infra-estrutura; Constituição, Justiça e

Cidadania; Educação; e, como membro suplente, das Comissões de Assuntos

Sociais, Educação e Infra-estrutura. Integrou a Comissão do Distrito Federal, extinta

com a promulgação da Constituição de 1988.Desempenhou o cargo de Ministro de

Estado da Justiça, durante o governo do Presidente Itamar Franco, de 5 de outubro

de 1992 a 30 de março de 1994. No período em que foi titular da pasta da Justiça,

constituiu seis comissões de juristas para revisão do Código Eleitoral, do Código de

Processo Penal, do Código de Processo Civil, do Código Penal (Parte Especial), da

Lei Orgânica dos Partidos Políticos, da Lei de Falências e Concordatas, além da Lei

de Execução Penal. Promoveu e presidiu, nos meses de setembro e novembro de

1993, a Primeira e a Segunda Jornadas de Debates sobre Violência e Criminalidade,

com a participação de diversas representações de segmentos da sociedade,

oportunidades em que foi elaborado o Programa Nacional dos Direitos da Cidadania

(“Pacote contra a Violência”), propondo medidas de aperfeiçoamento legislativo. Em

maio de 1993, representando o Governo Brasileiro, assinou a Convenção

Internacional de Adoção, proclamada em Haia, na Holanda. Em junho do mesmo

ano, chefiou a delegação brasileira que participou, em Viena, na Áustria, da

Conferência Mundial dos Direitos Humanos. Presidiu, em julho de 1993, a Primeira

Reunião do Governo, através do Ministério da Justiça, com Organizações Não-

Governamentais de Direitos Humanos, visando harmonizar uma colaboração

conjunta na vigília dos direitos humanos no Brasil. Nomeado Ministro do Supremo

Tribunal Federal, em 27 de outubro de 1994, na vaga decorrente da aposentadoria

22

do Ministro Paulo Brossard, tomou posse em 15 de dezembro de 1994. Escolhido

pelo Supremo Tribunal Federal, passou a integrar o Tribunal Superior Eleitoral como

Juiz Efetivo (10 de junho de 1997 a 2 de fevereiro de 1999), tendo sido eleito, em 2

de março de 1999, Vice-Presidente daquela Corte. Em 6 de março de 2001, tomou

posse no cargo de Presidente. Foi eleito por seus pares, em Sessão Plenária de 9

de abril de 2003, Presidente do Supremo Tribunal Federal. Tomou posse em Sessão

Solene realizada na data de 5 de junho seguinte. Atingiu a idade limite para

permanência na atividade em 09 de maio de 2004, sendo aposentado por

decreto de 07 de maio do mesmo ano, publicado no Diário Oficial da União de 10 de

maio de 2004.

2.1.1.2 Ministros do STF que votaram no Habeas Corpus 82.424-2

Ministro Celso de Mello: JOSÉ CELSO DE MELLO FILHO, filho do Prof. José

Celso de Mello e da Prof.ª Maria Zenaide de Almeida Mello, nasceu em Tatuí,

Estado de São Paulo, em 1º de novembro de 1945. Fez, em Tatuí/SP, na Escola

Modelo e no Instituto de Educação Barão de Suruí, os cursos primário e secundário.

Completou o curso colegial nos Estados Unidos da América, onde se graduou na

Robert E. Lee Senior High School, em Jacksonville, Flórida (1963/1964). Graduou-se

em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito da Universidade de São

Paulo, a tradicional Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (Turma de

1969), fundada em 11 de agosto de 1827. Ingressou no Ministério Público do Estado

de São Paulo, em 1970, mediante concurso público de provas e títulos no qual foi

classificado em primeiro lugar, permanecendo, nessa Instituição, até 1989, quando

foi nomeado para o Supremo Tribunal Federal. Exerceu os cargos de Promotor de

Justiça e Curador Geral nas Comarcas de Santos, Osasco, São José dos Campos,

Cândido Mota, Palmital, Garça e São Paulo. Foi, ainda, Curador Fiscal de Massas

Falidas, Curador de Resíduos, Curador Judicial de Ausentes e Incapazes, Curador

de Fundações, Curador de Registros Públicos, Curador de Casamentos, Curador de

Menores, Curador de Família e Sucessões, Curador de Acidentes do Trabalho e

Promotor de Justiça Criminal, inclusive junto ao Tribunal do Júri. Titular do cargo de

Procurador de Justiça no Estado de São Paulo (membro do Ministério Público de 2ª

23

instância junto aos Tribunais locais), dele pediu exoneração quando nomeado para o

cargo de Juiz do Supremo Tribunal Federal. Integrou, por três vezes, a lista do

quinto constitucional, por decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e

do Conselho Superior da Magistratura (1988 e 1989), para efeito de preenchimento

de vaga reservada à classe do Ministério Público nos Tribunais Paulistas. Foi

Secretário Geral da Consultoria-Geral da República (1986/1989). Exerceu o cargo

de Consultor-Geral da República, em caráter interino, mediante nomeação

presidencial, em diversos períodos, nos anos de 1986, 1987 e 1988. Foi nomeado

Juiz do Supremo Tribunal Federal, mediante ato do Presidente da República

(Decreto de 30-6-1989), ocupando vaga decorrente da aposentadoria do Ministro

Luiz Rafael Mayer. Tomou posse no cargo em 17 de agosto de 1989. Eleito pelo

Supremo Tribunal Federal, integrou o Tribunal Superior Eleitoral, como Juiz

Substituto, no período de 12 de junho de 1990 a 12 de junho de 1992. Em sessão de

19 de abril de 1995, foi eleito Vice-Presidente do Supremo Tribunal Federal, para o

biênio 1995/1997. Em sessão de 9 de abril de 1997, foi eleito Presidente do

Supremo Tribunal Federal. Em 22 de maio de 1997, tomou posse como Presidente

do Supremo Tribunal Federal, cargo que exerceu até 27 de maio de 1999. Com a

idade de 51 anos, foi o mais novo Presidente da Corte, desde a fundação, no

Império, do Supremo Tribunal de Justiça. É autor do livro Constituição Federal

Anotada, que foi publicado em 1984, pela Editora Saraiva. Essa obra foi reeditada,

em 2ª edição, em 1986, pela mesma editora.

Gilmar Ferreira Mendes: nasceu em Diamantino, Mato Grosso, em 30 de dezembro

de 1955. Graduou-se em Direito pela Universidade de Brasília em 1978. Mestre em

Direito pela Universidade de Brasília. Título: Controle de constitucionalidade:

aspectos jurídicos e políticos, Ano de Obtenção: 1987. Orientador: José Carlos

Moreira Alves. Mestrado em Direito. Universitat Munster (Westfalische-Wilhelms),

W.W.U.M., Alemanha. Título: Die Zulassigkeitsvoraussetzungen der abstrakten

Normenkontrolle vor dem Bundesverfassungsgericht (Pressupostos de

admissibilidade do controle abstrato de normas perante a Corte Constitucional

Alemã), Ano de Obtenção: 1989. Orientador: Professor Hans-Uwe Erichsen.

Doutorado em Direito. Universitat Munster (Westfalische-Wilhelms), W.W.U.M.,

Alemanha. Título: Die abstrakte Normenkontrolle vor dem Bundesverfassungsgericht

24

und vor dem brasilianischen Supremo Tribunal Federal (O controle abstrato de

normas perante a Corte Constitucional Alemã e perante o Supremo Tribunal

Federal), Ano de Obtenção: 1990. Orientador: Professor Hans-Uwe Erichsen.

Professor do Instituto Brasiliense de Direito Público e da Universidade de Brasília.

Foi Procurador da República (1985-1988), Adjunto da Subsecretaria Geral da

Presidência da República (1990-1991), Consultor-Jurídico da Secretaria Geral da

Presidência da República (1991 - 1992), Assessor Técnico na Relatoria da Revisão

Constitucional na Câmara dos Deputados (1993 - 1994), Assessor Técnico do

Ministério da Justiça (1995 - 1996) e Subchefe para Assuntos Jurídicos da Casa

Civil (1996 - 2000). Em janeiro de 2000, foi nomeado Advogado-Geral da União. E

foi nomeado Ministro do Supremo Tribunal Federal por indicação do presidente

Fernando Henrique Cardoso, sendo empossado em 20 de junho de 2002.

Marco Aurélio Mendes de Farias Mello: nasceu na cidade do Rio de Janeiro, RJ,

em 12 de julho de 1946, filho do Dr. Plínio Affonso de Farias Mello e de D. Eunice

Mendes de Farias Mello. Bacharelou-se em Ciências Jurídicas e Sociais pela

Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1973. Fez o

Mestrado em Direito Privado na mesma Faculdade, obtendo o certificado de

capacitação em1982. Participou dos seguintes cursos de Extensão e

Aperfeiçoamento: Curso Intensivo de Aperfeiçoamento Profissional —Câmara de

Comércio dos Países Latino-Americanos, Rio de Janeiro/RJ, 1969; Curso de Direito

do Seguro — Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio

de Janeiro/RJ, 1970; Curso de Disciplina da Navegação Marítima no Brasil —

Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/RJ,

1973; “Prevenção de Acidentes do Trabalho” — Fundacentro, São Paulo/SP, 1974;

Curso de Direito Processual do Trabalho — Instituto dos Advogados do Brasil, Rio

de Janeiro/RJ, 1974; Curso de Direito Imobiliário —Editora Sugestões Literárias S/A,

São Paulo/SP, 1978; III Ciclo de Estudos sobre Segurança Nacional e

Desenvolvimento — Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra, Rio

de Janeiro/RJ, 1978; I Ciclo de Estudos de Normas Internacionais do Trabalho —

OIT e Academia Nacional de Direito do Trabalho,tendo sido escolhido orador,

Brasília/DF, 1980; Seminário de Direito Judiciário Civil — Faculdade de Direito da

Universidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/RJ, 1980; Seminário de Atualização

em Processo de Execução — Escola Superior da Magistratura Nacional e

25

Associação dos Magistrados Brasileiros, em convênio com a Universidade do

Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/RJ,1980; Seminário Internacional sobre

Negociação e Relações de Trabalho —Confederação Nacional da Indústria e pelo

Instituto Euvaldo Lodi, Rio de Janeiro/RJ, 1981; Curso Superior de Guerra — Escola

Superior de Guerra, Rio deJaneiro/RJ, 1983; Curso In Collective Bargaining in the

United States —University of Wiscosin, Madison (EEUU), 1984. Advogou no foro do

Estado do Rio de Janeiro, chefiou o Departamento de Assistência Jurídica e

Judiciária do Conselho Federal dos Representantes Comerciais e o Departamento

de Assistência Jurídica e Judiciária do Conselho Regional dos Representantes

Comerciais no Estado do Rio de Janeiro, sendo também advogado da Federação

dos Agentes Autônomos do Comércio do Antigo Estado da Guanabara. Integrou o

Ministério Público junto à Justiça do Trabalho da Primeira Região, no período de

1975 a1978. Ingressando na Magistratura, foi Juiz Togado do Tribunal Regional do

Trabalho da Primeira Região, no período de 1978 a1981, quando presidiu a

Segunda Turma, no biênio1979/1980. Foi Ministro Togado do Tribunal Superior do

Trabalho, no período de setembro de 1981 a junho de 1990, havendo sido

Corregedor-Geral da Justiça do Trabalho, no período de dezembro de 1988 a junho

de 1990; Presidente da Primeira Turma, no biênio 1985/1986, reeleito para o biênio

1987/1988; Membro do Conselho da Ordem do Mérito Judiciário do Trabalho;

Membro da Comissão encarregada das comemorações do Centenário de

Nascimento do Ministro Lindolfo Collor. Nomeado Ministro do Supremo Tribunal

Federal, por decreto de 28 de maio de 1990, para a vaga decorrente da

aposentadoria do Ministro Carlos Madeira, tomou posse em 13 de junho de1990.

Escolhido pelo Supremo TribunalFederal, participou do Tribunal Superior Eleitoral

como Ministro Substituto nosperíodos de 13 de agosto de 1991 a 31 de maio de

1993 e de 7 de agosto de 2003 a28 de fevereiro de 2005, e Efetivo, de 1º de junho

de 1993 a 5 de dezembro de1994. Como Vice-Presidente eleito, em sessão de 29

de novembro de 1994, atuou entre 6 de dezembro de 1994 a 31 de maio de 1995 e

1º de junho de 1995 a 19 de maio de 1996. Foi Presidente em exercício de 20 de

maio de 1996 a 12 de junho de1996, quando tomou posse como Presidente, cargo

que exerceu de 13 de junho de1996 até 1º de junho de 1997. Novamente tomou

posse como membro efetivo em 1º de março de 2005. Foi eleito Vice-Presidente do

Supremo Tribunal Federal, em sessão de 14 de abril de 1999, para o biênio

1999/2001,tomando posse em 27 de maio de 1999. Escolhido por seus pares para a

26

Presidência do Supremo Tribunal Federal, em 18 de abril de 2001, assumiu o cargo

em sessão solene realizada em 31 de maio seguinte. Ocupou o cargo de Presidente

da República, no período de 15 a 21 de maio de 2002, durante a viagem do

Presidente Fernando Henrique Cardoso ao exterior. Nessa oportunidade sancionou,

em solenidade realizada no Palácio do Planalto, a Lei nº 10.461 que criou a TV

Justiça, destinada a divulgar notícias do Judiciário, Ministério Público, Defensoria

Pública e Advocacia, administrada pelo Supremo, com contornos pedagógicos,

voltada para servir o cidadão comum. Voltou a ocupar interinamente a Presidência

da República nos dias 4, 5 e, posteriormente, 25 a 27 de julho, 20 e21 de agosto e

de 31 de agosto a 4 de setembro, pelo mesmo motivo anterior. Seu mandato como

Presidente doSupremo Tribunal Federal findou-se em 5 de junho de 2003, quando

assumiu ocargo, o Ministro Mauricio Corrêa. Desde setembro de 1982, é

ProfessorUniversitário, integrante do Quadro Docente do Departamento de Direito

daFaculdade de Estudos Sociais Aplicados da Universidade de Brasília e

Professordo Curso de Pós-Graduação latu sensu em Direito Processual Civil do

CentroUniversitário de Brasília – UNICEUB.

Carlos Augusto Ayres de Freitas Britto: nasceu em 18 de novembro de 1942, na

cidade de Propriá, Estado de Sergipe. Ingressou na Faculdade de Direito da

Universidade Federal de Sergipe em1962, obtendo o diploma de Bacharel em1966.

A partir de 1967, passou a militar na advocacia. Em Sergipe exerceu os cargos de

Consultor-Geral do Estado, de 15-3-1975 a 15-3-1979; de Procurador- Geral de

Justiça, de 15-3-1983 a 27-4-1984; de Procurador do Tribunal de Contas, de1978 a

1990; e de Chefe do Departamento Jurídico do Conselho de Desenvolvimento

Econômico do Estado - CONDESE, de1970 a1978. Foi nomeado Ministro do

Supremo Tribunal Federal pelo Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva,

por decreto de 5 de junho de 2003, na vaga decorrente da aposentadoria do Ministro

Ilmar Galvão, havendo tomado posse em 25 do mesmo mês.

Carlos Mário da Silva Velloso: nasceu na cidade de Entre Rios de Minas, Minas

Gerais, em 19 de janeiro de 1936. Diplomado pela Faculdade de Direito da

Universidade Federal de Minas Gerais, em 1963, passou a exercer a advocacia em

Belo Horizonte. Em março de 1967, foi nomeado Juiz Federal em Minas Gerais,

27

cargo em que tomou posse no mês seguinte, nele permanecendo até 1977. Em

dezembro de 1977, foi nomeado para o cargo de Ministro do Tribunal Federal de

Recursos, tomando posse no mesmo em 19 de dezembro e desempenhando as

respectivas funções até 7 de abril de 1989, data em que foi instalado o Superior

Tribunal de Justiça. Foi nomeado, por decreto de 28-5-1990, publicado no Diário

Oficial de 29-5-1990, do Presidente Itamar Franco, após aprovação pelo Senado

Federal, Ministro do Supremo Tribunal Federal, para a vaga decorrente do pedido de

exoneração do Ministro Francisco Rezek. Tomou posse em 13 de junho de 1990.

Atingiu a idade limite para permanência na atividade em 19 de janeiro de 2006,

sendo aposentado por decreto, do mesmo dia, publicado no Diário Oficial da União

do dia 20 seguinte.

Nelson Azevedo Jobim: nasceu em 12 de abril de 1946, na cidade de Santa Maria,

Rio Grande do Sul. Obteve o diploma de Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais

(1964-1968) na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,

em Porto Alegre. Após a formatura, dedicou-se ao exercício da advocacia. Foi

Deputado Federal pelo Rio Grande do Sul, para a 48ª legislatura (1987-1991).

Durante os trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte, foi Relator-Substituto na

elaboração do Regimento Interno da ANC; Suplente da Subcomissão do Poder

Legislativo; Suplente da Comissão de Organização dos Poderes e Sistema de

Governo; membro titular da Comissão de Sistematização; Relator-Adjunto da

Comissão de Sistematização. Exerceu as funções de Vice-Líder e, posteriormente,

Líder do PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro). Presidiu a Comissão

de Constituição e Justiça e de Redação da Câmara dos Deputados, em 1989.

Exerceu o cargo de Ministro de Estado da Justiça, no governo do Presidente

Fernando Henrique Cardoso, durante o período de 1º de janeiro de 1995 a 7 de abril

de 1997. Foi nomeado Ministro do Supremo Tribunal Federal, por indicação do

presidente Fernando Henrique Cardoso (decreto de 7 de abril de 1997), na vaga

decorrente da aposentadoria do Ministro Francisco Rezek, havendo tomado posse

em 15 de abril de 1997. Aposentou-se em 2006. É o atual Ministro de Estado da

Defesa.

Ellen Gracie Northfleet : nasceu na cidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

Iniciou os estudos acadêmicos na Faculdade de Direito da então Universidade do

28

Estado da Guanabara, tendo concluído, em 1970, em Porto Alegre, o Curso de

Bacharelado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito da

Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Exerceu a advocacia liberal,

inicialmente como solicitadora acadêmica e, após a colação de grau, no foro de

Porto Alegre. Integrou o Conselho Seccional da OAB/RS, foi fundadora da Escola

Superior de Advocacia da OAB/RS e eleita Vice-Presidente do Instituto dos

Advogados do RS. Aprovada em Concurso Público de Provas e Títulos para o cargo

Procurador da República de 3a Categoria, foi nomeada em 5 de novembro de 1973,

tomando posse e entrando em exercício a 7 do mesmo mês. Em 22 de março de

1989, foi nomeada para compor o Tribunal Regional Federal da 4a Região, em vaga

destinada a membros do Ministério Público Federal, tomando posse e entrando em

exercício em 31 do mesmo mês, sendo indicada pelo Plenário, nessa data, para

compor a Comissão Elaboradora do Regimento Interno da Corte. Por decreto de 23

de novembro de 2000, publicado no Diário Oficial do dia imediato, foi nomeada, pelo

Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, para exercer o cargo de

Ministra do Supremo Tribunal Federal, na vaga decorrente da aposentadoria do

Ministro Luiz Octavio Pires e Albuquerque Gallotti. Tomou posse em 14 de

dezembro de 2000, tornando-se a primeira mulher a integrar a Suprema Corte do

Brasil desde a sua criação.

Antonio Cezar Peluso: nasceu em 3 de setembro de 1942, em Bragança Paulista,

São Paulo, filho de Daniel Deusdedit Peluso e de D. Maria Apparecida Bueno

Peluso. Foi primeiro classificado no concurso vestibular quando ingressou na

Faculdade Católica de Direito de Santos em 1962 e conquistou o diploma de

Bacharel em Ciências jurídicas no ano de 1966. Fez jus a registros escolares de

Louvor, na cadeira de Direito Constitucional, propostos pelos Professores Olavo de

Paula Borges e Carlos de Alvarenga Bernardes, e de Láurea da Turma em todos os

anos do curso de Bacharelado. Fez os cursos de Especialização em Filosofia do

Direito sob orientação do Professor Miguel Reale, na Faculdade de Direito da

Universidade de São Paulo (1967) e Direito Processual Civil, coordenado pelo

Professor José Manuel de Arruda Alvim Neto, na Faculdade Paulista de Direito da

PUC de São Paulo, nos períodos de agosto a dezembro dos anos de 1974 e 1975.

Realizou os cursos de Pós-Graduação, para o Mestrado em Direito Civil, orientado

pelo Professor Sílvio Rodrigues, na Faculdade de Direito da USP, de agosto de 1974

29

a dezembro de 1975, e sob orientação do Professor Agostinho Neves de Arruda

Alvim, na Faculdade Paulista de Direito da Universidade Católica de São Paulo, de

agosto de 1973 a dezembro de 1975. Participou do Curso de Doutorado em Direito

Processual Civil, sob orientação do Professor Alfredo Buzaid, na Faculdade de

Direito da USP, de agosto de 1973 a dezembro de 1975. Obteve o segundo lugar

no 135º Concurso Público de Provas e Títulos para ingresso na Magistratura do

Estado de São Paulo em 1967. Exerceu os cargos de Juiz Substituto da 14ª

Circunscrição Judiciária, sediada em Itapetininga (9-1 a 26-11-1968), e de Juiz de

Direito nas comarcas de São Sebastião, 1ª entrância, promovido por merecimento

(27-11-1968 a 18-2-1970); Igarapava, 2ª entrância, mediante promoção por

antigüidade (19-2-1970 a 1º-8-1972), sendo promovido por merecimento a 47º Juiz

Substituto da Capital, 3ª entrância (2-8-1972 a 15-12-1975). A 16-12-1975, em

virtude de promoção por merecimento, assumiu o cargo de Juiz de Direito da 7ª

Vara da Família e das Sucessões da Capital, entrância especial, no qual

permaneceu até 10-11-1982. No intervalo de 1º-1-1978 a 31-12-1979, convocado

pelo Conselho Superior de Magistratura, foi Juiz Auxiliar da Corregedoria-Geral da

Justiça. Ainda pelo critério de merecimento, foi promovido a Juiz do 2º Tribunal de

Alçada Civil, 5ª Câmara, exercendo as funções de 11-11-1982 a 13-4-1986 Foi

nomeado Ministro do Supremo Tribunal Federal por decreto de 5 de junho de 2003

do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, para a vaga decorrente da aposentadoria do

Ministro Sydney Sanches, tomou posse em 25 do mesmo mês. Na área do

magistério é Professor Regente contratado de Direito Processual Civil na Faculdade

Paulista de Direito da Pontifícia Universidade de São Paulo desde agosto de 1975

Foi Professor Instrutor de Direito Civil designado pela Vice-Reitoria na Faculdade

Paulista de Direito da PUC-SP de agosto de 1974 a julho de 1975; foi Professor

Assistente no IV e no V Curso de Especialização em Direito Processual Civil, por

designação do Coordenador, na referida Faculdade, de agosto a dezembro de 1974

e de agosto a dezembro de 1975. Foi, também, Professor contratado de Direito Civil

no Curso de Preparação à Magistratura e ao Ministério Público do Instituto dos

Advogados de São Paulo, de janeiro de 1975 a dezembro de 1977, e Professor

Regente contratado de Prática Judiciária Civil, na Faculdade de Direito da

Universidade Mackenzie de São Paulo, de agosto de 1976 a julho de 1977.

Igualmente como Professor contratado de Direito Civil, lecionou no curso de pós-

graduação lato sensu, promovido pela Faculdade de Direito da Universidade

30

Católica de Santos – UNISANTOS, de agosto a dezembro de 1992. Durante o curso

escolar mereceu diplomas de Honra ao Mérito concedidos pelo Colégio Estadual

Arnolfo Azevedo por “Aproveitamento Ímpar na Totalidade das Matérias”,

“Dedicação ao Dever”, “Solidariedade Escolar” e “Comportamento Digno de Menção

dentro e fora do Estabelecimento” (1959-1960) e as medalhas “Governador Carvalho

Pinto” e “Plano de Ação”, da Secretaria de Educação, e medalha “Grêmio Estudantil

Vicente de Carvalho”, no Instituto de Educação Canadá, pela obtenção da maior

média da classe, do curso clássico e do estabelecimento (1961). Publicou os

seguintes livros: Da Preclusão Processual Civil, em colaboração com Antonio Alberto

Alves Barbosa – Notas remissivas à legislação processual vigente (Ed. Revista dos

Tribunais, SP, 2ª ed., 1992); Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, em

colaboração com Antonio Fernando do Amaral e Silva e outros. Comentários aos

artigos 165 a 170 (Malheiros editores, SP, 1992); Repertório de Jurisprudência e

Doutrina sobre Direito de Família -Aspectos Constitucionais, Civis e Processuais, em

colaboração com Yussef Said Cahali e outros. Artigo “O Menor na Separação”

(Malheiros editores, SP, 1993) e “Uma Palavra aos Novos Juízes”, discurso (Edição

Apamagis, RP, 1994). Durante a vida universitária foi Orador Oficial do Centro

Acadêmico “Alexandre de Gusmão”, da Faculdade Católica de Direito de Santos,

escolhido por concurso (1964), e presidiu a mesma entidade, eleito para o período

de agosto de 1964 a agosto de 1965. Recebeu o título de Cidadão Igarapavense,

concedido pela Câmara Municipal de Igarapava, pelo Decreto Legislativo nº 25, de

24-11-1979, entregue em sessão solene de 15-4-1986. Foi escolhido paraninfo pelas

turmas noturnas dos bacharelandos da Faculdade Paulista de Direito da PUCSP nos

anos de 1983, 1987, 1991 e 1995. É Sócio-Fundador e Conselheiro do Instituto

Brasileiro de Estudos Interdisciplinares de Direito de Família, sediado em São Paulo,

e Conselheiro do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito da Família, Seção de São

Paulo. Agraciado com o Colar do Mérito Judiciário, instituído e conferido pelo Poder

Judiciário do Estado de São Paulo, recebeu-o em sessão solene de 15.4.1986.

Também lhe foi outorgada a Medalha “Brigadeiro Tobias”, a mais alta condecoração

da Polícia Militar do Estado de São Paulo, entregue em solenidade realizada no dia

5-12-2000. Escolhido pelo Supremo Tribunal Federal, integrou o Tribunal Superior

Eleitoral em 24.08.2004, como Juiz Substituto, e como Membro Efetivo e Titular

tomou posse em 07.02.2006.

31

José Paulo Sepúlveda Pertence: nasceu em Sabará, Minas Gerais, em 21 de

novembro de 1937. Tornou-se Bacharel pela Faculdade de Direito da Universidade

Federal de Minas Gerais, em 1960. Foi aprovado por concurso público para membro

do Ministério Público do Distrito Federal, em setembro de 1963, exerceu as

respectivas funções até outubro de 1969, quando aposentado pela Junta Militar, com

base no AI-5. Foi nomeado Procurador-Geral da República, em 15 de março de

1985, exercendo cumulativamente as funções de Procurador-Geral Eleitoral e de

membro do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana. Nomeado Ministro

do Supremo Tribunal Federal, por indicação do presidente José Sarney (em decreto

de 4 de maio de1989), na vaga decorrente da aposentadoria do Ministro Oscar

Corrêa, tomou posseno cargo em 17 do mesmo mês.

2.1.1.3 Outros atores

Procurador-Geral: Cláudio Lemos Fonteles nasceu no Rio de Janeiro em 11 de

outubro de 1946. Ingressou no Ministério Público Federal em 1973. Graduou-se em

Direito pela Universidade de Brasília (1969), onde também concluiu o Mestrado em

Direito (1983). Tomou posse no cargo de Procurador-Geral da República, em 30 de

junho de 2003, para um mandato de dois anos. Foi indicado para o cargo pelo

presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, em 5 de junho. Exerceu o cargo

de procurador-geral da República até 29 de Junho de 2005.

Amicus Curiae3: Celso Lafer nasceu em São Paulo, São Paulo, no dia 7 de agosto

de 1941. Graduou-se em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São

Paulo, USP – 1960-1964. É mestre em Ciência Política pela Cornell University

(1967) e doutor em Ciência Política pela mesma Universidade (1970). É, atualmente,

Presidente do Conselho Deliberativo do Museu Lasar Segall, co-editor, com Gilberto

Dupas, da Revista Política Externa e Coordenador, desde junho de 2006, da Área de

3 Amicus curiae ou “amigo da corte” é uma expressão latina utilizada para designar uma instituição ou pessoa que tem por finalidade fornecer subsídios às decisões dos tribunais, oferecendo-lhes melhor base para que estes possam decidir questões relevantes.

32

Concentração em Direitos Humanos da Faculdade de Direito da USP. É, desde

2002, membro da Corte Permanente de Arbitragem Internacional de Haia. É membro

titular da Academia Brasileira de Ciências, eleito em 2004. É o quinto ocupante da

cadeira 14 da Academia Brasileira de Letras, eleito em 21 de julho de 2006, na

sucessão de Miguel Reale.

2.1.2 Cronologia

14 de novembro de 1991 – Siegfried Ellwanger é denunciado pelo crime de

racismo, tipificado pelo artigo 20 da lei 7.716/89 com redação dada pela lei 8.081/90.

14 de julho de 1995 – é absolvido em primeira instância.

31 de outubro de 1996 – o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul dá provimento

à apelação dos assistentes de acusação, condenando-o no crime tipificado pelo

artigo 20 da lei 7.716/89 com redação dada pela lei 8.081/90.

Novembro de 2000 – os advogados de Ellwanger impetram um Habeas Corpus no

Superior Tribunal de Justiça com a tese da prescritibilidade do crime praticado pelo

paciente.

Dezembro de 2001 – por decisão majoritária da 5ª Turma do Superior Tribunal de

Justiça o Habeas Corpus é denegado.

12 de setembro de 2002 – novo Habeas Corpus é impetrado, desta vez no

Supremo Tribunal Federal, sustentando a mesma tese utilizada no Superior Tribunal

de Justiça.

19 de outubro de 2002 – o Procurador Geral da República, Cláudio Lemos

Fonteles, apresenta parecer favorável ao indeferimento do HC 82.424.

12 de dezembro de 2002 – início do julgamento do HC 82.424 pelo Supremo

Tribunal Federal.

24 de março de 2003 – o amicus curiae Celso Lafer apresente seu parecer,

opinando pelo indeferimento do Habeas Corpus.

17 de setembro de 2003 – após cinco longas sessões, termina o julgamento do HC

82.424, decidindo o Supremo Tribunal Federal, por oito votos a três, pelo

indeferimento do Habeas Corpus.

33

2.2 O Habeas Corpus 82.424-2

Nesse capítulo, analisaremos o leading case do Supremo Tribunal Federal

(STF) mais emblemático no que concerne à liberdade religiosa, racismo e liberdade

de expressão. A reconstrução do habeas corpus (HC) 82.424-2 é fundamental para

este trabalho na medida em que nos possibilita verificar, em um caso concreto, quais

são os parâmetros do STF no julgamento de um caso no qual o preconceito religioso

é utilizado como defesa em face de uma condenação por crime de racismo. Ao

encarar a prática de anti-semitismo como “simples” discriminação religiosa, a defesa

ansiava evitar a punição do réu Siegfried Ellwanger, paciente do Habeas Corpus

82.424-2, uma vez que o crime assumido já estaria prescrito.

O HC 82.424-2 foi indeferido pela maioria dos onze Ministros. Votaram pelo

indeferimento os Ministros Maurício Corrêa (relator do acórdão), Sepúlveda

Pertence, Celso de Mello, Carlos Veloso, Nelson Jobim, Ellen Gracie, Gilmar

Mendes e Cezar Peluso. Foram votos vencidos os Ministros Moreira Alves (relator-

originário) e Marco Aurélio, que reconheceram a prescrição do crime de racismo, e o

Ministro Carlos Ayres Britto, que absolveu o paciente por falta de tipicidade da

conduta.

Tendo encontrado os argumentos centrais dos votos dos Ministros no HC

82.424-2, bem como suas fundamentações, poderemos responder uma indagação

essencial ao trabalho: quais foram as concepções de liberdade de expressão e de

dignidade da pessoa construídas pelo Supremo Tribunal Federal a partir desse

caso? A essa questão, segue-se mais uma indagação: tais concepções são

constitucionalmente adequadas ao Estado democrático de Direito ou o STF teria

construído uma visão paternalista de liberdade de expressão e de dignidade da

pessoa a partir desse caso? Ou ao contrário, a visão construída pelo STF seria

complacente com a discriminação?

Neste Habeas Corpus, o STF, além de decidir sobre a abrangência da

imprescritibilidade do crime de racismo definido pela Constituição Federal em seu

artigo 5º, inciso XLII, os Ministros se detiveram num inesperado4 ponto: quando há

4 A questão acerca do embate entre os princípios constitucionais da liberdade de expressão e da dignidade humana são inesperados porque, embora tivessem sido tratados na primeira instância e no

34

uma (suposta) colisão de valores – no caso, entre liberdade de expressão e

dignidade humana – qual prevalecerá? Assim, torna-se imperiosa a reconstrução,

além da discussão acerca da abrangência do termo “racismo”, bem como da

discussão do conflito (suposto) entre os direitos fundamentais da dignidade humana

e da liberdade de expressão.

2.2.3 O caso concreto

Segundo o relator-originário do HC 82.424, Ministro Moreira Alves, o paciente

Siegfried Ellwanger, absolvido no primeiro em primeira instância, veio a ser

condenado como incurso no caput do artigo 20 da Lei 7.716/89, na redação dada

pela Lei 8.081/90, por ter, na qualidade de escritor e sócio da empresa “Revisão

Editora Ltda.”, editado, distribuído e vendido ao público obras anti-semitas de sua

autoria e da autoria de autores nacionais e estrangeiros5 que, segundo a denúncia,

“abordam e sustentam mensagens anti-semitas, racistas e discriminatórias”,

pretendendo com isso “incitar e induzir a discriminação racial, semeando em seus

leitores sentimentos de ódio, desprezo e preconceito contra o povo de origem

judaica”. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 12-13)

Da condenação pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, o Réu

impetrou Habeas Corpus no Superior Tribunal de Justiça, que o indeferiu por maioria

de votos.6 Contra essa decisão os advogados do Réu impetraram outro Habeas

Corpus, substitutivo ao recurso ordinário, no Supremo Tribunal Federal.

Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, a defesa do réu não estende estes argumentos ao STJ nem ao STF. Nesses Tribunais a discussão limita-se tão somente à abrangência do termo “racismo”, ou seja, se o crime no qual foi condenado o Réu é imprescritível nos moldes do art. 5º, XLII, da CF, ou não. 5 Siegfried Ellwanger é autor, sob o pseudônimo de S.E. Castán, dos livros Holocausto Judeu ou Alemão? - Nos bastidores da Mentira do Século, ), SOS Para a Alemanha, A Implosão da Mentira do Século, O Catolicismo Traído e Acabou o Gás... O Fim de um Mito. Editou ainda O Judeu Internacional, de Henry Ford, A História Secreta do Brasil e Brasil Colônia de Banqueiros, de Gustavo Barroso, além do apócrifo Os Protocolos dos Sábios de Sião, Hitler - Culpado ou Inocente?, de Sérgio Oliveira, e Os conquistadores do Mundo - os verdadeiros criminosos de guerra, de Louis Marschalko. 6 Este é o teor da ementa do STJ que indeferiu o HC impetrado por Siegfried Ellwanger: CRIMINAL. HABEAS CORPUS. PRÁTICA DE RACISMO. EDIÇÃO E VENDA DE LIVROS FAZENDO APOLOGIA DE IDÉIAS PRECONCEITUOSAS E DISCRIMINATÓRIAS. PEDIDO DE AFASTAMENTO DA IMPRESCRITIBILIDADE DO DELITO. CONSIDERAÇÕES ACERCA DE SE TRATAR DE PRÁTICA DE RACISMO, OU NÃO. ARGUMENTO DE QUE OS JUDEUS NÃO SERIAM RAÇA. SENTIDO DO TERMO E DAS AFIRMAÇÕES FEITAS NO ACÓRDÃO. IMPROPRIEDADE DO

35

2.2.4 A tese dos autores do pedido de Habeas Corpus

Embora seja obviamente fundamental para o julgamento do Habeas Corpus,

tendo-se em vista a importância da participação das partes para a legitimação das

decisões judiciais, os argumentos apresentados pela defesa do paciente não foram

devidamente considerados.7 Essa falha coloca em risco a legitimidade do processo,

na medida em que o transforma em simples procedimento, uma vez que não é dada

importância ao contraditório8.

A tese principal da defesa diz respeito à imprescritibilidade do crime de

racismo. Vejamos:

A norma constitucional restringiu a imprescritibilidade aos crimes decorrentes da prática de racismo e não aos decorrentes das outras práticas discriminatórias tipificadas no art. 20 da Lei 7716/89, com a redação dada pela Lei 8.081/90. Se o constituinte quisesse alargar a imprescritibilidade a todas as práticas discriminatórias, não teria no texto

WRIT. LEGALIDADE DA CONDENAÇÃO POR CRIME CONTRA A COMUNIDADE JUDAICA. RACISMO QUE NÃO PODE SER ABSTRAÍDO. PRÁTICA, INCITAÇÃO E INDUZIMENTO QUE NÃO DEVEM SER DIFERENCIADOS PARA FINS DE CARACTERIZAÇÃO DO DELITO DE RACISMO. CRIME FORMAL. IMPRESCRITIBILIDADE QUE NÃO PODE SER AFASTADA. ORDEM DENEGADA. I. O Habeas Corpus é meio impróprio para o reexame dos termos da condenação do paciente, através da análise do delito - se o mesmo configuraria prática de racismo ou caracterizaria outro tipo de prática discriminatória, com base em argumentos levantados a respeito do judeus - se os mesmos seriam raça, ou não - tudo visando a alterar a pecha de imprescritibilidade ressaltada pelo acórdão condenatório, pois seria necessária controvertida e imprópria análise dos significados do vocábulo, além de amplas considerações acerca da eventual intenção do legislador e inconcebível avaliação do que o Julgador da instância ordinária efetivamente “quis dizer” nesta ou naquela afirmação feita no decisum. II. Não há ilegalidade na decisão que ressalta a condenação do paciente por delito contra a comunidade judaica, não se podendo abstrair o racismo de tal comportamento, pois não há que se fazer diferenciação entre as figuras da prática, da incitação ou do induzimento, para fins de configuração do racismo, eis que todo aquele que pratica uma destas condutas discriminatórias ou preconceituosas, é autor do delito de racismo, inserindo-se, em princípio, no âmbito da tipicidade direta. III. Tais condutas caracterizam crime formal, de mera conduta, não se exigindo a realização do resultado material para a sua configuração. IV. Inexistindo ilegalidade na individualização da conduta imputada ao paciente, não há porque ser afastada a imprescritibilidade do crime pelo qual foi condenado. V.Ordem denegada. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 10) 7 Temos, como exemplo, os votos dos Ministros Marco Aurélio e Gilmar Mendes que partem de premissas que não foram sequer discutidas no processo. 8 O processo pode ser entendido como “espécie de procedimento em contraditório, entre as partes, em simétrica paridade, na preparação do provimento jurisdicional.” (LEAL, 2000, p. 94) (negritamos) Assim, quando o procedimento não se faz em contraditório, tem-se somente procedimento, não processo. O procedimento, por não possuir a “qualidade constitucional principiológica do contraditório”, transforma-se numa simples “manifestação estrutural resultante do complexo normativa da positividade jurídica.” (LEAL, 2000, p. 94)

36

constitucional se referido apenas ao racismo, mas teria dito que são imprescritíveis os crimes decorrentes de qualquer prática discriminatória. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 11)

A tese exposta diz respeito, portanto, à abrangência do artigo 5º, XLII, da CF, que

torna o crime de racismo imprescritível.9

Com o auxílio de autores judeus os impetrantes fundamentam a tese de que,

não constituindo o judaísmo uma raça, mas sim uma religião, no crime pelo qual o

paciente fora condenado estaria prescrito.

É importante ressaltar, e bem, que a própria peça de defesa afirma que não deseja

discutir sobre a prática de crime, mas tão somente que o crime cometido foi de

discriminação religiosa, e não discriminação racial: “Não se está discutindo, aqui, o

mérito da condenação. Apenas, neste pedido, está se afirmando que o

paciente não foi condenado por crime de racismo.” (SUPREMO TRIBUNAL

FEDERAL, 2004, p. 13) (negritamos)

2.2.5 O parecer do Subprocurador-Geral da República Cláudio Lemos Fonteles

Na primeira parte do seu parecer, o Subprocurador-Geral da República expõe

os argumentos dos impetrantes, que entendem que a decisão do Superior Tribunal

de Justiça produziu um constrangimento ilícito no paciente, Siegfried Ellwanger. A

seguir, passa a enfrentar o mérito do pedido, entendendo que é o caso de

indeferimento.

Segundo o parecerista, definiu o legislador constituinte, no artigo 5º da

Constituição Federal, que a prática do racismo é: “crime; crime inafiançável e; crime

imprescritível.” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 12) Essa, segundo

Fonteles, é a abrangência do texto constitucional.

Para o Subprocurador-Geral, a própria Constituição transmite, e

expressamente10, para a lei infraconstitucional a definição de prática de racismo.

Inicialmente, conforme o artigo 20 da lei 7.716/89, a prática de racismo contemplava

a raça e cor. Com a nova redação do art. 20 dada pela lei 8.081/90, a prática de 9 Expressa o artigo 5º, inciso XLII, da Constituição de 1988: “A prática de racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei.” (BRASIL, 2007, p. 10) 10 Conforme a parte final do art. 5º, XLII, da CF: “...nos termos da lei.” (BRASIL, 2007, p. 10)

37

racismo passou a abarcar também “religião, etnia ou procedência nacional, valendo-

se dos meios de comunicação social, ou por publicação de qualquer natureza.”

(SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 12) De toda sorte, continua o

parecerista, todas as condutas tipificadas pela lei 7.716/89 são imprescritíveis. Não

há, portanto, nenhum extravasamento na interpretação do artigo 5º, inciso XLII, da

Constituição Federal.

2.2.6. O parecer do amicus curiae Celso Lafer

Em seu parecer, Celso Lafer diz respeito à procedência, ou não, da tese

formulada pela defesa, qual seja, a de que os judeus, não constituindo-se uma raça,

o crime praticado por Ellwanger seria o de discriminação religiosa, não o de racismo.

Assim, caso a tese seja acatada pelo Tribunal, seu crime estaria prescrito.

Assim, Lafer responde a seguinte indagação: o crime cometido pelo paciente

é o da prática de racismo, nos termos da Constituição e da legislação

infraconstitucional que o tipifica ou não? A resposta do parecerista à consulta

formulada é a seguinte: “o crime cometido por Siegfried Ellwanger é o da prática do

racismo e, como tal, inprescritível.” (LAFER, 2005, p. 81)

A opinião contida no parecer é fundamentada em oito pontos principais, quais

sejam: primeiro, o artigo 5º, XLII, está tutelado por cláusula pétrea, o que significa

que o legislador procurou “dar estabilidade e permanência a um sistema integrado

de valores de convivência coletiva, que tem como valor-fonte a dignidade da pessoa

humana, ao qual a Constituição atribuiu supremacia axiológica.” (LAFER, 2005, p.

81) O art. 5º, XLII, deve ser interpretado de acordo com o princípio da indivisibilidade

dos direitos humanos.

Segundo, o art. 5º, XLII exprime o princípio da igualdade e o da não-

discriminação e visa, principalmente, proteger a vítima de racismo. Uma vez que a

Constituição dá extrema importância à repressão à prática do racismo, o artigo

citado estabelece o rigor com o qual o direito penal deve tratar o racista.

Terceiro, conforme decidiu o STF no HC 7.384, do qual foi relator Ministro

Celso de Mello, “na interpretação em matéria de direitos humanos, o Direito Interno

e o Direito Internacional não são estanques. Interagem com vistas a reforçar a

38

imperatividade do Direito constitucionalmente garantido.” (LAFER, 2005, p. 82) A

interpretação do art. 5º, XLII deveria considerar esse critério.

Quarto, o conteúdo jurídico do preceito constitucional discutido, bem como

toda a legislação infraconstitucional relativa à discriminação racial, baseia-se nas

ultrapassadas teorias que dividem a humanidade em raças.11 Segundo os

impetrantes, uma vez que os judeus não são uma raça, não poderia ocorrer o crime

de racismo. Este argumento é falacioso porque, se é verdade que os judeus não

constituem uma raça, também não o são os negros, índios, orientais, ciganos, etc.

Assim, caso esse argumento fosse levado a sério, por força do argumento contrario

sensu12, que cabe em matéria penal, o próprio crime de racismo deixaria de existir.

Isso porque, explica Lafer, “por maior que fosse o esmero na descrição da conduta,

[ela converteria a prática de racismo] em crime impossível pela inexistência do

objeto: as raças.” (LAFER, 2005, p. 83)

Quinto, a recusa da tese dos impetrantes confirma-se por dois casos

decididos por Cortes Superiores de dois países: o Shaara Tefila Congregation VS.

Cobb, decidido pela Suprema Corte dos Estados Unidos em 1987 e o Mandla and

another VS. Dowell Lee and another, decidido pela Câmara dos Lordes da Inglaterra

em 198313. Ambas interpretaram o termo “raça” a partir de sua dimensão histórico-

cultural, das quais se originam as práticas discriminatórias. Ambas rechaçaram a

idéia de que as vítimas, por não constituírem-se como raça, não poderiam sofrer de

práticas racistas.

Sexto, as teorias racistas buscaram legitimidade na biologia. Não

encontraram. Não obstante, o racismo persiste. Assim, é o fenômeno do racismo e

não a “raça” que enseja a proteção constitucional. Do mesmo jeito, são as vítimas do 11 Segundo Pena e Birchal, “recentemente, [...], os avanços da genética molecular e o seqüenciamento do genoma humano permitiram um exame detalhado da correlação entre a variação genômica humana, a ancestralidade biogeográfica e a aparência física das pessoas, e mostraram que os rótulos previamente usados para distinguir ‘raças’ não têm significado biológico. Pode parecer fácil distinguir fenotipicamente um europeu de um africano ou asiático, mas tal facilidade desaparece completamente quando procuramos evidências dessas diferenças ‘raciais’ no genoma das pessoas.” (2005-2006, p. 11) 12 Conforme ensina Ferraz Jr. (2001), o argumento contrario sensu consiste em “concluir de uma preposição admissível, pela proposição que lhe é oposta. Por exemplo: se o legislador especificou taxativamente os casos de incidência do tributo, a contrario sensu os demais casos não estão abrangidos.” (p. 333) 13 “O caso decidido pela Suprema Corte dos EUA diz respeito à prática do racismo em relação aos judeus. O caso decidido pela Câmara dos Lordes refere-se à prática do racismo em relação aos sikhs. Em ambos, essas duas Cortes Superiores decidiram, não obstante as alegações dos réus semelhantes às do impetrante que, apesar dos judeus e dos sikhs não serem uma ‘raça’, foram vítimas de práticas racistas, cabendo, assim, respectivamente, a tutela da legislação norte-americana de 1982 e da legislação inglesa de 1976, que tratam da discriminação racial. (LAFER, 2005, p.83)

39

racismo e não a “raça” que a lei 7.716/89 e suas atualizações visam proteger.

Divulgar, portanto, teorias nas quais se afirma a superioridade racial e o ódio é

crime. Foi essa a fundamentação tanto do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

(TJRS) como do STJ.

Sétimo, o anti-semitismo nazista foi o motivo principal da Convenção de 1965,

que condena a prática de racismo. Igualmente, o crescente aumento do anti-

semitismo no mundo ensejou a Resolução 623/98 da Assembléia Geral da ONU,

sobre racismo, bem como o item 61 da Declaração da Conferência de Durban sobre

Racismo de 2001.14 Além disso, o item 58 da mesma Declaração afirma que o

holocausto jamais deverá ser esquecido. Assim, afirma Lafer, “negar o holocausto e

considerá-lo a mentira do século é parte do crime da prática do racismo pelo qual foi

condenado Siegfried Ellwanger.” (2005, p. 86)

Por fim, o oitavo e último fundamento do parecerista: diferentemente do que

afirmam os impetrantes, as práticas de racismo na história do Brasil, tiveram muitos

outros destinatários além do negro. No período colonial, por exemplo, as práticas

racistas se davam pela distinção entre sangue puro – dos portugueses, brancos e

cristãos-velhos – e os de sangue impuro – os negros, mestiços, índios, judeus e os

cristãos-novos. A distinção entre cristãos-velhos e cristãos-novos só foi eliminada

em 1773. As teorias racistas em moda no século XIX e XX foram recepcionadas no

Brasil, bem como o nazismo alemão. Na década de 1930, Gustavo Barroso, um dos

autores publicados pelo paciente, foi um notório anti-semita, divulgador de panfletos

carregados de ofensas aos judeus. Nessa época o anti-semitismo foi

institucionalizado pelo Estado, que passou a justificar as restrições à imigração de

judeus por critérios raciais. Assim, conclui Lafer, desde a lei Afonso Arinos, de 1951,

que inaugura a tutela penal que visa proteger as vítimas do racismo, até as leis

atuais, os destinatários não são os negros, mas sim todas as vítimas de preconceito.

14 Declaração da Conferência de Durban sobre Racismo de 2001, item 61: “Reconhecemos com profunda preocupação o anti-semitismo e islamofobia crescentes em várias partes do mundo, assim como a emergência de movimentos racistas e violentos baseados no racismo e em idéias discriminatórias contra as comunidades judaica, muçulmana e árabes;”

40

2.3.4 Voto do Ministro relator-originário Moreira Alves

O Ministro Moreira Alves, relator-originário do HC 82.424, reconheceu a

prescrição do delito cometido, concedendo o Habeas Corpus. A tese levantada pela

defesa, a de que os judeus não constituem uma raça, foi acatada, portanto, pelo

Ministro.

Além disso, Moreira Alves justifica seu voto alegando que o Constituinte

originário não pretendeu estender a abrangência do art. 5º, XLII, da CF, sendo que a

imprescritibilidade do crime de racismo alcança somente a “raça” negra.

O elemento histórico - que, como no caso, é importante na interpretação da Constituição, quando ainda não há, no tempo, distância bastante para interpretação evolutiva que, por circunstâncias novas, conduza a sentido diverso do que decorre dele - converge para dar a “racismo” o significado de preconceito ou de discriminação racial, mais especificamente contra a raça negra. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 14)

Uma vez que a Constituição somente torna imprescritível o crime de racismo

contra a “raça” negra e, como afirma Moreira Alves, os judeus não são uma “raça”,

não há outra solução para o HC do que seu deferimento. Assim, o Ministro encerra

seu voto:

não sendo, pois, os judeus uma raça, não se pode qualificar o crime por discriminação pelo qual foi condenado o ora paciente como delito de racismo, e, assim, imprescritível a pretensão punitiva do Estado. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p.19)

Na confirmação do voto, Moreira Alves reafirmou os argumentos do seu voto,

asseverando que o legislador, ao tornar o crime de racismo inafiançável, o fez

somente em relação à “raça” negra, e que, além disso, os judeus não constituem

uma raça. Por fim, disse que a imprescritibilidade é uma aberração em matéria

penal. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 46)

41

2.2.8 Voto do Ministro relator Maurício Corrêa

O Ministro Maurício Corrêa, relator do HC 82.424, inicia seu voto afirmando a

necessidade de se interpretar o significado do termo “racismo” na Constituição

Federal de 1988. Sobre esse ponto, entende o relator:

Creio não se lhe poder emprestar isoladamente o significado usual de raça como expressão simplesmente biológica. Deve-se, na verdade, entendê-lo em harmonia com os demais preceitos com ele inter-relacionados, para daí mensurar o alcance de sua correta aplicação constitucional, sobretudo levando-se em conta a pluralidade de conceituações do termo, entendido não só à luz de seu sentido meramente vernacular, mas também do que resulta de sua valoração antropológica e de seus aspectos sociológicos. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, p. 25)

A seguir, Maurício Corrêa demonstra que, do ponto biológico, não

possibilidade de se falar, nos dias de hoje, em raças humanas. Se não há raças

humanas, se biologicamente todos os seres humanos são iguais, como fica a

interpretação da Constituição no que tange ao termo “racismo”? Maurício Corrêa

responde que:

Embora hoje não se reconheça mais, sob o prisma científico, qualquer subdivisão da raça humana, o racismo persiste enquanto fenômeno social, o que quer dizer que a existência das diversas raças decorre de mera concepção histórica, política e social, e é ela que deve ser considerada na aplicação do direito. É essa circunstância de natureza estrita e eminentemente social e não biológica que inspira a imprescritibilidade do delito previsto no inciso XLII do artigo 5º da Carta Política. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 30)

Quanto a alegação de que o Constituinte originário pretendeu tornar

imprescritível somente o crime de racismo cujas vítimas fossem negras, Maurício

Corrêa, com autoridade de membro constituinte, afirma:

A propósito, julgo presente registrar que a distinguida referência aos negros nos debates sobre o tema na Assembléia Constituinte decorreu da natural dívida da sociedade nacional para com a comunidade negra. Essa constatação empolgou à ocasião as discussões, sem contudo perder o sentido de que a abrangência da inovação na Carta não se reservaria tão-só aos negros, mas também, tinha horizontes mais amplos. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 42)

42

Nesses termos o Ministro Maurício Corrêa encerra seu voto, denegando o

Habeas Corpus.

2.2.9 Voto dos outros Ministros que negaram o habeas corpus

Como afirmaram tanto o Ministro Moreira Alves (relator-originário) e o Ministro

Maurício Corrêa (relator), o Habeas Corpus 82.424 tinha por escopo demonstrar que

o crime praticado pelo paciente – e a própria defesa afirma isso – estava prescrito.

Mas, embora o objeto do Habeas Corpus fosse somente a discussão sobre a

abrangência do art. 5º, XLII, da CF, a partir da intervenção do Ministro Sepúlvida

Pertence, o julgamento enveredou por outro caminho. Questionou o Ministro

Pertence:

Creio que a beleza e a seriedade excepcional da discussão sobre o conceito de racismo está deixando um pouco na sobra uma outra discussão relevante: O livro como instrumento de um crime, cujo verbo central é "incitar". Fico muito preocupado com certas denúncias do pós-64 neste País, da condenação de Caio Prado porque escreveu e da condenação de outros porque tinham em suas residências livros de pregação marxista. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 50)

A indagação foi respondida com grande brilhantismo pelo Ministro Moreira

Alves – infelizmente, talvez o único momento de brilho na sua participação no

julgamento – que assim se pronunciou:

Sucede, porém, Sr. Presidente, que, no presente Habeas Corpus, não se está discutindo se a condenação viola a liberdade de pensamento, mas, sim e apenas, a questão da imprescritibilidade sob a alegação de que, no caso, não houve crime de racismo. Por isso, após a observação do Ministro Pertence, salientei que só por concessão de ofício se poderia chegar à inexistência de crime de discriminação por atos de incitamento em face da referida liberdade. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 51)

Mesmo após a lúcida resposta do Ministro Moreira Alves o tema não

abandonou os votos dos outros Ministros. Todos, em menor ou maior intensidade,

argumentaram sobre o conflito (suposto) de princípios, o da liberdade de expressão

e o da dignidade humana. O que torna a discussão esdrúxula é que esse direito à

livre expressão do pensamento e da opinião sequer foi suscitado pelos impetrantes!

43

Como a discussão acerca deste (aparente) conflito de direitos fundamentais

ganhou corpo, passando a ter tanta importância quanto a tese sustentada pela

defesa – sobre a imprescritibilidade do crime de racismo praticado pelo paciente –

apresentaremos os dois argumentos dos Ministros: sobre o alcance da

imprescritibilidade e sobre a liberdade de expressão versus dignidade humana. Por

opção didática, cada argumento será exposto separadamente.

2.2.9.1 Argumentação sobre o alcance da imprescritibilidade e do termo

“racismo”

O argumento esposado pelo Ministro relator Maurício Corrêa, no sentido de

que não é a “raça” que o texto constitucional, bem como a lei 7.716/89 com suas

atualizações legislativas posteriores, visa proteger, mas sim as vítimas do racismo.

Defender a tese de que a espécie humana é subdividida em raças é hoje um

disparate, já que com o avanço da genética e, mais precisamente, com as pesquisas

sobre o genoma humano, chegou-se a inexorável conclusão de que somos todos

iguais. E, mais importante, o fato de não haver distinção de “raças” humanas não

afasta o perigo do racismo, que é fruto de noções culturais-históricas-sociológicas,

além de possuir um indisfarçável papel de instrumento de controle ideológico, de

dominação política e de subjugação social.15 Decidiram nesse sentido os Ministros

Celso de Mello16, Gilmar Mendes17, Carlos Veloso18, Nelson Jobim19, Ellen Gracie20,

Cezar Peluso21 e Sepúlvida Pertence22.

15 Conforme Arendt (2004). 16 “Em uma palavra, Senhor Presidente: nem gentios, nem judeus; nem patrícios, nem plebeus. Sem qualquer hierarquia ou distinção de origem, de raça, de orientação confessional ou de fortuna, somos todos pessoas, essencialmente dotadas de igual dignidade e impregnadas de razão e consciência, identificadas pelo vínculo comum que nos projeta, em unidade solidária, na dimensão incindível do gênero humano. “Eis porque, Senhor Presidente, a noção de racismo - ao contrário do que equivocadamente sustentado na presente impetração - não se resume a um conceito de ordem estritamente antropológica ou biológica, projetando-se, ao contrário, numa dimensão abertamente cultural e sociológica...” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 57) 17 Assim não vejo como se atribuir ao texto constitucional significado diverso, isto é, que o conceito jurídico de racismo não se divorcia do conceito histórico, sociológico e cultural assente em referências supostamente raciais, aqui incluído o anti-semitismo. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 67) 18 “...em termos biológicos e antropológicos, não há falar que os brancos, os negros, os amarelos, os ciganos, os judeus, os árabes, constituem uma raça. Somos todos integrantes da raça humana.

44

Outro ponto importante foi o argumento usado pelo Ministro Maurício Corrêa

em resposta ao voto do Ministro Moreira Alves, sobre a voluntas legislatoris. Corrêa

trouxe à baila sua autoridade de constituinte para contestar o raciocínio de Moreira

Alves, que afirmava que a intenção dos constituintes, materializada no deputado

carioca Carlos Alberto de Oliveira, Caó, era de tornar imprescritível somente os

crimes de cor, em especial a cor negra,

O Ministro Nelson Jobim, também constituinte, valeu-se dessa condição para

desmentir Moreira Alves, senão vejamos:

No debate da Constituinte, registrado nos anais, falava-se no negro, mas estavam lá os judeus, estavam lá os homossexuais e tivemos a oportunidade de discutir isso. O Ministro Maurício Corrêa lembra que circularam dentro da Assembléia Constituinte todas aquelas minorias que poderiam ser objeto do racismo. Nunca se pretendeu, com o debate, restringir ao negro. Não há necessidade de trazer esse debate, porque a Assembléia Constituinte não vai restringir, no texto, ao negro, mas vai deixar em aberto para o exercício futuro de virtuais racismos não conhecidos no momento de 88 e que possam ser conhecidos num momento do ano 2000. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 216)

Se é assim, [...] importa registrar, entretanto, que, culturamente, sociologicamente, esses grupos humanos podem ser diferençados. E é justamente o tratamento discriminatório, hostil, preconceituoso, relativamente a eles, que caracteriza o racismo, o racismo que a Constituição não tolera – C.F., art. 5º, XLII – porque representa forma grave de desrespeito aos direitos humanos. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 80) 19 Concluo, na linha doutrinária e filosófica das transcrições e citações aqui lançados, que a discriminação contra o povo judeu caracteriza o crime inafiançável e imprescritível de racismo, mesmo que as Leis Infraconstitucionais não tenham contemplado o princípio da imprescritibilidade (L. 7.716/89 modificada pela 8.081/90). Nesse aspecto, em plena vigência, a norma constitucional (CF, art. 5º, XLII). (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 122) 20 Portanto, quando se fala em preconceito de raça e quando a tanto se referem a CF e a lei, não se há de pensar em critérios científicos para defini-la - que já sabemos não os há - mas, na percepção do outro como diferente e inferior, revelada na atuação carregada de menosprezo e no desrespeito a seu direito fundamental à igualdade. Trata-se do preconceito feito ação. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 124) 21 “Parece-me, com o devido respeito, não ser lícito, nessa moldura, emprestar sentido restrito ao termo ‘racismo’, até porque, se doutro modo não se tornasse absolutamente inútil, como asseverou o Ministro NELSON JOBIM, seria, quando menos, extremamente pobre, porque se limitaria a proteger conjuntos muito reduzidos de pessoas. Acho que não foi tão mesquinha a intenção objetiva da norma constitucional, que aparece, antes, extremamente generosa na tutela daqueles grupos humanos, porque, no fundo, o de que se trata é de preservar os fundamentos da República (art. 1º, II e III, da CF), preservando a integridade das pessoas, no que têm de substancial e universal, enquanto dotadas da mesma dignidade como iguais membros da raça, dessa orgulhosa raça humana.” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 129) 22 Não obstante, Sr. Presidente, alinho-me à maioria para entender que o preconceito anti-semita constitui racismo, já na dicção do art. 5, XLII, da Constituição Federal, já na Lei 7.716 de 1989 e suas alterações. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 227)

45

2.2.9.2 Argumentação sobre liberdade de expressão versus dignidade humana

A questão sobre a liberdade de expressão discutida por quase todos os

Ministros no Habeas Corpus 82.424-2 é extremamente relevante para o trabalho, na

medida em que ela mostra, como em nenhum outro julgamento do Supremo Tribunal

Federal, qual é o conceito do Tribunal sobre esse direito fundamental. Afinal, como o

STF trata o direito à liberdade de expressão? Nesse caso específico, seria de fato

um direito?

Para expor a construção do conceito de liberdade de expressão de modo

mais claro, é necessário dividir os argumentos sobre o tema em três partes: a

primeira, mostrando com a maioria, entendem o direito à liberdade de expressão; o

segundo, como o Ministro Marco Aurélio argumentou sobre o tema; e, por fim, como

o Ministros Ayres de Britto, que absolveu ex officio o réu por ausência de atitude

caracterizadora de crime, um entendimento único entre os Ministros.

2.3 “Liberdade de expressão” segundo os ministros que denegaram o habeas

corpus

Votaram com a maioria no HC 82.424-2 os Ministros Maurício Corrêa (relator

do acórdão), Celso de Mello, Gilmar Mendes, Carlos Velloso, Nelson Jobim, Ellen

Gracie, Cezar Peluso e Sepúlveda Pertence. Destes, somente a ministra Ellen

Gracie não fundamentou seu voto no aparente conflito entre liberdade de opinião e

dignidade humana.

O primeiro Ministro a tratar do tema foi o Ministro Maurício Corrêa, que

“mesmo não sendo fundamento do writ”, não há qualquer violação ao princípio de

liberdade de expressão. Para o Ministro, “Atos discriminatórios de qualquer natureza

ficaram expressamente vedados, com alentado relevo para a questão racial, o que

impõe certos temperamentos quando possível contrapor-se uma norma fundamental

a outra (CF, artigo 220, caput, in fine)23”. Afirma o Ministro, então, que quando há

23 “Artigo 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta constituição.”

46

uma “aparente colisão de direitos essenciais encontra, nesse caso, solução no

próprio texto constitucional”. Corrêa afirma, ainda, que “um direito individual não

pode servir de salvaguarda de práticas ilícitas, tal como ocorre, por exemplo, com os

delitos contra a honra”. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 39-40)

E o Ministro Corrêa vai ainda mais longe. Ele afirma que é

essencial, na espécie, que se proceda a uma interpretação teleológica e sistêmica da Carta Federal, a fim de conjugá-la com circunstâncias históricas, políticas e sociológicas, para que se localize o sentido da lei para aplicá-la. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 41)

O Ministro Gilmar Mendes aborda o tema de maneira um pouco diferente.

Inicialmente ele trata do problema do “discurso do ódio” ou hate speech, não sem

antes afirmar que o direito a liberdade de expressão é fundamental para a própria

democracia. Gilmar Mendes fundamenta parte do seu voto em Kevin Boyle, que

discute o fato do

“discurso de ódio” ser tão complicado. Para ele “a resposta reside no fato de estarmos diante de um conflito entre dois direitos numa sociedade democrática - a liberdade de expressão e o direito à não-discriminação.” (BOYLE apud SUPTREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 67)

Como não há ressalvas ao pensamento de Boyle, fica claro que há dois “direitos”

que devem ser protegidos: liberdade de expressão e dignidade humana.

Afirma Gilmar Mendes:

“nesse contexto, ganha relevância a discussão da medida de liberdade de expressão permitida sem que isso possa levar à intolerância, ao racismo, em prejuízo da dignidade humana, do regime democrático, dos valores inerentes a uma sociedade pluralista.” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 70)

Decide, ainda que “não se pode atribuir primazia absoluta à liberdade de expressão,

no contexto de uma sociedade pluralista, em face de valores outros como os da

igualdade e da dignidade humana”. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 70)

Utilizando-se da teoria da proporcionalidade de Robert Alexy24, o Ministro decide

24 Afirma Robert Alexy: “O postulado da proporcionalidade em sentido estrito pode ser formulado como uma lei de ponderação, cuja fórmula mais simples voltada para os direitos fundamentais diz: 'quanto mais intensa se revelar a intervenção em um dado direito fundamental, maiores hão de se

47

que, no caso do Habeas Corpus, o direito à dignidade humana deve prevalecer.25 Da

mesma forma que o Ministro Maurício Corrêa, que se vale de uma interpretação

teleológica26 da Constituição, o Ministro Gilmar Mendes entende que a proporção

entre o objetivo pretendido pela Constituição, ou seja “a preservação dos valores

inerentes a uma sociedade pluralista, da dignidade humana” e o ônus imposto à

liberdade de expressão do paciente.” Termina o Ministro:

Não se contesta, por certo, a proteção conferida pelo constituinte à liberdade de expressão. Não se pode negar, outrossim, o seu significado inexcedível para o sistema democrático. Todavia, é inegável que essa liberdade não alcança a intolerância racial e o estímulo à violência, tal como afirmado no acórdão condenatório. Há inúmeros outros bens jurídicos de base constitucional que estariam sacrificados na hipótese de se dar uma amplitude absoluta, intangível, à liberdade de expressão na espécie. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p.77)

A realização do fim almejado pela Constituição também aparece como

fundamento do Ministro Carlos Velloso, para o qual “se se tem conflito aparente de

direitos fundamentais, a questão se resolve pela prevalência do direito que melhor

realiza o sistema de proteção dos direitos e garantias inscrito na Lei Maior.”

(SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 82) O Ministro opta, assim, pela

prevalência de um direito sobre o outro.27

De forma muito parecida já havia decido Celso de Mello28, para o qual

revelar os fundamentos justificadores dessa intervenção'.” (ALEXY apud SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 70) 25 O princípio da proporcionalidade é duramente criticado por vários teóricos do direito que apontam a ausência de uma diferenciação entre os discursos de justificação e aplicação como um de seus principais problemas. As críticas mais significativas são as de Habermas (2006) e Günther (2004). No mesmo sentido vale citarmos também Cattoni (1998), Cruz (2004) e Bahia (2004). 26 “Nesse plano, é necessário aferir a existência de proporção entre o objetivo perseguido, qual seja a preservação dos valores inerentes a uma sociedade pluralista, da dignidade humana, e o ônus imposto à liberdade de expressão do paciente. Não se contesta, por certo, a proteção conferida pelo constituinte à liberdade de expressão. Não se pode negar, outrossim, o seu significado inexcedível para o sistema democrático. Todavia, é inegável que essa liberdade não alcança a intolerância racial e o estímulo à violência, tal como afirmado no acórdão condenatório. Há inúmeros outros bens jurídicos de base constitucional que estariam sacrificados na hipótese de se dar uma amplitude absoluta, intangível, à liberdade de expressão na espécie. “Assim, a análise da bem fundamentada decisão condenatória evidencia que não restou violada a proporcionalidade.” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 76-77) 27 “A liberdade de expressão não pode sobrepor-se à dignidade da pessoa humana, fundamento da República e do Estado Democrático de Direito que adotamos – C.F., art. 1º, III – ainda mais quando essa liberdade de expressão apresenta-se distorcida e desvirtuada.” p.83) 28 “Cabe reconhecer que os postulados da igualdade e da dignidade pessoal dos seres humanos constituem limitações externas à liberdade de expressão, que não pode, e não deve, ser exercida

48

em um contexto de liberdades aparentemente em conflito, que a colisão dele resultante há de ser equacionada, utilizando-se, esta Corte, do método - que é apropriado e racional - da ponderação de bens e valores, de tal forma que a existência de interesse público na revelação e no esclarecimento da verdade, em torno de supostas ilicitudes penais praticadas por qualquer pessoa basta, por si só, para atribuir, ao Estado, o dever de atuar na defesa de postulados essenciais, como o são aqueles que proclamam a dignidade da pessoa humana e a permanente hostilidade contra qualquer comportamento que possa gerar o desrespeito à alteridade, com inaceitável ofensa aos valores da igualdade e da tolerância, especialmente quando as condutas desviantes culminem por fazer instaurar tratamentos discriminatórios fundados em ódios raciais. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 60)

Sobre a liberdade de expressão, o Ministro Nelson Jobim faz três importantes

perguntas:

a liberdade de expressão é abstrata ou deve ser contextualizada? Não estará ela vinculada à produção robusta do debate público? Enfim, por que a liberdade de expressão é fundamental no Estado democrático?” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 215)

Para em seguida responder que as respostas se encontram no próprio processo

democrático. Decide o Ministro, portanto, que, uma vez que o discurso de ódio ou o

discurso racista não visam “contribuir para nenhum debate inerente às deliberações

democráticas” ele não está protegido pelo direito à liberdade de expressão. Assim,

“a liberdade de opinião na democracia é instrumental ao debate e à formação da vontade da maioria com respeito à minoria. A Constituição não legitima a tolerância com aqueles que querem a produção de condutas contrárias ao princípio da igualdade.” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 216)

O Ministro Cezar Peluso, por sua vez, entende que deve haver “liberdade

teórica de qualquer autor ou editor”, desde que o mesmo não “abuse” desse direito.

Cita, aliás, o livro Os Protocolos dos Sábios de Sião, texto anti-semita que, para o

Ministro não deve ser proibido. Mas, no caso do editor Ellwanger, que “dedicou-se a

editar e, como autor, publicar uma série de livros, com a constância e o evidente

propósito de promover e difundir o anti-semitismo”, a liberdade de opinião não o

alcança. Por ultrapassar os limites da liberdade de expressão, Peluso denegou a

ordem.

com o propósito subalterno de veicular práticas criminosas, tendentes a fomentar e a estimular situações de intolerância e de ódio público.” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 60)

49

Sobre o tema em questão o Ministro Sepúlveda Pertence não diz muito e,

após anotar sua preocupação com o perigo de qualquer manifestação ser

considerado crime, entende, no final do voto, que o livro do paciente é, sim, racista,

não protegido, portanto, pela liberdade de expressão.

Fizemos uma importante pergunta no início do capítulo: quais são as

concepções de liberdade de expressão para o STF? Para os Ministros analisados,

liberdade de expressão é um direito fundamental, sendo que, nos casos em que o

teor da manifestação não observar os limites impostos pela própria Constituição e

atingir os “valores inerentes a uma sociedade pluralista”. No caso de um conflito

entre direitos – liberdade de expressão e dignidade humana – prevalecerá a

segunda, uma vez que, pelo princípio da proporcionalidade, pois é mais condizente

com o fim almejado pela Constituição Federal.

2.4 “Liberdade de expressão” segundo o Ministro Carlos de Britto

O voto do Ministro Carlos Britto diferenciou-se de todos os outros votos dos

Ministros do STF, já que, ao invés de discutir a prevalência de um direito sobre o

outro – ou seja, liberdade de expressão versus dignidade humana – ele absolve ex

officio o paciente.

Cabe salientar que, como foi mostrado, o próprio paciente admite a prática do

preconceito contra os judeus. Britto foge da discussão objeto do Habeas Corpus – a

de que o crime cometido não seria imprescritível, uma vez que não seria racial –

para optar por uma absolvição contrária inclusive a pretensão do paciente.

O Ministro Britto examinou o “concreto agir do paciente” (SUPREMO

TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 155), analisando os livros que serviram de

fundamento para a ação penal29, concluindo que, mesmo após a leitura dos

mesmos, não houve crime de racismo.30 Racismo que, afirma Britto, é

“perfeitamente possível ser praticado contra judeus, ciganos armênios e escoceses".

(SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 217) Assim, seu voto alia-se aos da

29 (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 155 e seguintes) 30 “Todavia, lendo o livro do paciente, da primeira à última edição, e lendo outros livros mencionados na denúncia, cheguei à conclusão de que não houve racismo, não houve preconceito. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 217)

50

maioria dos ministros que votaram pelo indeferimento do HC e distancia-se do voto

dos Ministros Marco Aurélio e Moreira Alves31, tornando seu voto sui generis.

Para Britto, o direito à liberdade de expressão é absoluto.32 Mas pode ser

punível, desde que o agente ultrapasse o “uso” da sua liberdade e cometa algum

“abuso”. Este abuso ocorreria após a

constatação processual do transbordamento daquela primitiva autonomia de vontade. Um transbordamento que só é transbordamento por violar uma outra e alheia autonomia de vontade, também juridicamente prezada.” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p.145)

Mas como alcançar a concepção de expressão segundo o Ministro Carlos Britto?

Para tanto, é imprescindível voltarmos aos livros escritos e editados pelo paciente –

que fundamentam a ação penal por crime de racismo – e verificar se há “abuso” da

liberdade de expressão.33

No livro Holocausto Judeu ou Alemão? Nos bastidores da mentira, escrito

pelo paciente sob o pseudônimo de S.E. Castan, é dito que “o judeu, em troca,

indignado por não lhe concederem todas as prerrogativas do indígena, nutre injusto

ódio contra o povo que o hospeda” e “os únicos gananciosos da Grande Guerra

foram de fato os judeus”. p. 32) No livro Brasil - Colônia de Banqueiros, Gustavo

Barroso e editado pelo paciente possui trechos repulsivos, como por exemplo:

31 Os judeus, como os ciganos, como os índios, como os armênios, como os escoceses, têm, sem dúvida, um perfil histórico inconfundível com o de qualquer outro povo. Então, para mim, e à luz da Constituição, os judeus podem, sim, ser vítimas de racismo, aplicando-se, então, ao eventual racista -- criminoso, portanto, pois racismo é crime --, a cláusula da imprescritibilidade com que a Constituição procurou inibir mais rigorosamente a prática desse crime. Parece-me que, no voto do eminente Ministro Marco Aurélio, o substantivo racismo fica limitado a uma adscrição à realidade dos negros. Parece-me que foi isso. Então, amplio o conceito de racismo para alcançar, também, no caso, a realidade dos judeus. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 217) 32 “Mas a premissa da Constituição é uma só: não é pela possibilidade de agravo a terceiros, ou de uso invasor da liberdade alheia, que se vai coibir a primitiva liberdade de expressão (que se define, assim, como liberdade absoluta, nesse plano da incontrolabilidade da sua apriorística manifestação. Sendo que esse fraseado em si - “liberdade de expressão”- alcança as duas tipologias de liberdade: a liberdade de manifestação do pensamento e a liberdade de ação no quadripartite domínio intelectual, científico, artístico e de comunicação. “Pontue-se bem a diferença: do ângulo da autonomia de vontade de quem fala, escreve, gesticula, ou ainda de quem produz uma obra de natureza artística, intelectual, científica, ou de comunicação, o que se tutela de forma até absoluta é o direito mesmo de fazer algo ou passar para outrem u'a mensagem, um recado, uma obra. Transformar em ação ou coisa objetiva algo até então subjetivo. O que se traduz no exercício do direito de não sofrer impedimento ou censura prévia nesse ato mesmo de agir ou de dirigir-se a terceiros.” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 145) 33 Uma vez que o HC 82.424-2 fornece inúmeros trechos dos livros escritos e editados pelo paciente, entendemos não ser necessário recorrer aos mesmos para, da fonte original, extrair os fragmentos dos livros. O fato do acórdão do STF ser uma fonte séria e extremamente confiável, bem como o fato dos livros não serem vendidos em livrarias, mas por pessoas em sua maior parte ligadas a movimentos nazi-fascistas foram importantes para tomarmos essa decisão.

51

“Como o sírio, o judeu não passa sem prestações. É uma inclinação racial” e “O

nosso Brasil é a carniça monstruosa ao luar. Os banqueiros judeus, a urubuzada

que a devora”. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 32-33) Já no livro Judeu

Internacional, Henry Ford, também editado por Ellwanger, é dito:

Na Inglaterra, dizem que o judeu é o verdadeiro amo do mundo, que a raça judaica é uma supranacionalidade, que vive no meio e acima dos povos; Porque o judeu é impelido pela mesma tendência, que se enraíza no sangue: o anseio de dominação; não existe raça alguma que suporte a autocracia mais voluntariamente do que a raça judia, que respeite mais do que esta o poder; Que os outros lavrem a terra: o judeu, quando pode viverá do lavrador. Que os outros suem nas indústrias e ofícios: o judeu preferirá assenhorar-se (sic) dos frutos de sua atividade. Esta inclinação parasitária deve, pois, formar parte de seu caráter. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p.31-32)

E, por fim, no livro Conquistadores do mundo - os verdadeiros criminosos de

guerra, Louis Marschalko:

...toda essa divisão, toda essa desordem todo esse caos é dirigido pela mesma vontade férrea, pela mesma força secreta que age segundo os líderes de uma raça de 15 milhões de pessoas(...)[os judeus] pregam contra a soberania dos Estados e contra a discriminação racial, enquanto durante todo esse tempo eles representam um nacionalismo racial de uma veemência até hoje sem paralelo na história”; O judaísmo mundial precisava de vítimas a fim de estar em condições de fazer chantagem com o mundo com essa história de que houve seis milhões de mártires judeus... Povos antijudaicos do mundo, uni-vos, antes que seja tarde demais; (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 32)

Carlos Britto não vê discriminação nessas passagens. Não vê racismo. Não vê ódio.

Não vê ofensa. Não vê abuso. Tudo é permitido pela liberdade de expressão. Além

disso, o alcance do “uso” da liberdade de expressão é tão amplo que fica quase

impossível imaginarmos o “abuso”.

2.5 Liberdade de expressão segundo o Ministro Marco Aurélio

O Ministro Marco Aurélio foi certamente quem mais se preocupou com a

questão da (aparente) colisão de valores entre liberdade de expressão e dignidade

humana. Ou, segundo o próprio Ministro:

52

Há de definir-se se a melhor ponderação dos valores em jogo conduz à limitação da liberdade de expressão pela alegada prática de um discurso preconceituoso atentatório à dignidade de uma comunidade de pessoas ou se, ao contrário, deve prevalecer tal liberdade. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 170)

E afirma em seguida que “essa é a verdadeira questão constitucional que o caso

revela.” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 170)

Seu raciocínio – utilizando a mesma ponderação de valores do Ministro

Gilmar Mendes – demonstra que a liberdade de expressão é um dos pilares do

sistema constitucional e da democracia.34

O principal problema na argumentação do Ministro Marco Aurélio é que, ao

discutir liberdade de expressão ele desconsidera completamente o caso concreto,

fundamentando seu voto numa discussão abstrata de conflito entre “princípios”

constitucionais. O Ministro, ansioso em demonstrar a importância da liberdade de

expressão, afirma que a perseguição aos judeus na Alemanha se deu em

decorrência justamente de ausência de comunicação.35

34 “É fácil perceber a importância do direito à liberdade de expressão se analisarmos as dimensões e finalidades substantivas que o caracterizam. A principal delas, ressaltada pelos mais modernos constitucionalistas no mundo, é o valor instrumental, já que funciona como uma proteção da autodeterminação democrática da comunidade política e da preservação da soberania popular. Em outras palavras, a liberdade de expressão é um elemento do princípio democrático, intuitivo, e estabelece um ambiente no qual, sem censura ou medo, várias opiniões e ideologias podem ser manifestadas e contrapostas, consubstanciando um processo de formação do pensamento da comunidade política. E é bom sempre lembrarmos Hans Kelsen, quando afirma que a democracia se constrói sobretudo quando se respeitam os direitos da minoria, mesmo porque esta poderá um dia influenciar a opinião da maioria. E venho adotando esse princípio diuturnamente, daí a razão pela qual, muitas vezes, deixo de atender ao pensamento da maioria, à inteligência dos colegas, por compreender, mantida a convicção, a importância do voto minoritário. (...) “A importância do princípio vai além. A liberdade de expressão serve como instrumento decisivo de controle da atividade governamental e do próprio exercício de poder. Esta dimensão foi até mesmo a fonte histórica da conquista e do desenvolvimento de tal liberdade. À proporção que se forma uma comunidade livre de censura, com liberdade para exprimir os pensamentos, viabiliza-se a crítica desimpedida, mesmo que contundente, aos programas de governo, aos rumos políticos do país, às providências da administração pública. Enfim, torna-se possível criticar, alertar, fiscalizar e controlar o próprio exercício dos mandatos eletivos.” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 172-173) 35 Os piores acontecimentos havidos - entre eles, a perseguição aos judeus - sempre ocorreram em momentos de treva no campo das comunicações, de falta de publicidade de modo a permitir o acompanhamento público. Com isso, foram evitadas as reações próprias aos episódios. Encobertos, ganharam proporções alarmantes, predominando a barbárie. A história mostra que a transparência, a revelação dos fatos serve de freio aos homens, evitando a prevalência de paixões condenáveis, de atos que contrariam a natureza em sua expressão maior. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 173) Marco Aurélio desconsidera completamente o fato de que, muito mais do que a “falta de publicidade”, os judeus foram exterminados simplesmente porque eram considerados como uma “raça infecta”, não possuindo, obviamente, qualquer direitos.

53

Uma vez que, para o Ministro, não existem princípios absolutos, ele utiliza da

ponderação de valores para solucionar a “colisão” de princípios. Assim,

Esta matéria [colisão de princípios] é de extrema importância no Direito Constitucional e precisa ser analisada com muito cuidado. Contempla os mais variados aspectos, que devem ser estudados caso a caso mas, como afirma Robert Alexy, têm um ponto em comum: todas as colisões somente podem ser superadas se algum tipo de restrição ou de sacrifício forem impostos a um ou aos dois lados. Enquanto o conflito de regras resolve-se na dimensão da validade, com esteio em critérios como “especialidade” - lei especial derroga geral -, “hierarquia” - lei superior revoga inferior - ou “anterioridade” - lei posterior revoga anterior -, o choque de princípios encontra solução na dimensão do valor, a partir do critério da “ponderação”, que possibilita um meio-termo entre a vinculação e a flexibilidade dos direitos. É que, no dizer do professor Paulo Bonavides, “As regras vigem, os princípios valem; o valor que neles se insere se exprime em graus distintos. Os princípios, enquanto valores fundamentais, governam a Constituição, o regímen, a ordem jurídica. Não são apenas leis, mas o Direito em toda a sua extensão, substancialidade, plenitude e abrangência. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 177)

A solução do “conflito” de “princípios” encerra-se, para o Ministro, na medida

em que os “valores” são utilizados para se decidir o caso. Assim, Marco Aurélio

pergunta: faz parte da essência da sociedade brasileira ser anti-semita? Ou ainda, a

discriminação dos judeus está entre os valores da sociedade brasileira?36

Uma vez que, para o Ministro, a sociedade brasileira não é anti-semita, o

paciente não teria praticado o crime de racismo.37 Assim, decidiu o Ministro para

conceder o Habeas Corpus, declarando prescrita a pretensão punitiva.

36 “Como é possível que um livro, longe de se caracterizar como um manifesto retórico de incitação de violência, mas que expõe a versão de um fato histórico - versão esta, é bom frisar, que pessoalmente considero deturpada, incorreta e ideológica -, transforme-se em um perigo iminente de extermínio do povo judeu, especialmente em um país que nunca cultivou quaisquer sentimentos de repulsa a esse povo?” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 179) (negritamos) “A questão agora, portanto, surge com novo enfoque. A sociedade brasileira é predisposta a praticar discriminação contra o povo judeu? Temos indícios em nossa história de movimentos sociais discriminatórios contra aquele povo? Não me refiro, obviamente, a iniciativas isoladas deste ou daquele governante em determinado momento. Circunstâncias esporádicas não mudam a natureza da sociedade. “Com base nesse entendimento, uma simples análise da história revelará que, em nenhum momento de nosso passado, houve qualquer inclinação da sociedade brasileira a aceitar, de forma ostensiva e relevante, idéias preconceituosas contra o povo judeu. Jamais foi transmitida entre as gerações a miséria deste legado discriminatório. Aliás, pelo contrário, as mais diferentes formas de divulgação da cultura judaica sempre gozaram de amplo apoio e interesse popular. As instituições judaicas funcionam no Brasil como importantes centros de referência e são constantemente reconhecidas, como hospitais, sinagogas, centros de cultura, museus, entre outras.” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 180) 37 O final do voto é contraditório: o Ministro concede “a ordem para assentar a inexistência da prática de racismo”, ou seja, o Ministro não vê crime em sua conduta, para em seguida concluir “pela incidência da prescrição da pretensão punitiva, tal como o fizeram os Ministros Moreira Alves e Carlos Britto.” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 195) Se não houve prática de racismo, não houve

54

Assim, a concepção de liberdade de expressão para o Ministro está unida aos

valores da sociedade brasileira, uma vez que, no caso dos negros, como há uma

história de preconceito, a prática discriminatória é, além de crime, imprescritível. Já a

discriminação anti-semita, que para o Ministro não faz parte do nosso passado38,

pela ponderação de valores, está protegida pela liberdade de expressão. Pilar da

democracia, para Marco Aurélio qualquer forma de proibição pode ser equiparada à

censura, o que não é possível numa democracia.

Por fim, embora os votos dos ministros Marco Aurélio e Carlos de Britto

tenham diferenças importantes, ambos acreditam que o direito à livre manifestação

deve ser exercida de modo amplo e de forma quase ilimitada. Não há, é importante

frisar, diferenciação aos diversos tipos de manifestação. Os discursos dos

fundamentalistas são equiparados e recebem a mesma proteção que aqueles que

não pensam como a maioria, os dissidentes.

crime; se houve prescrição, então houve crime. Além disso, os Ministros Moreira Alves e Carlos Britto votaram de maneira distinta (o primeiro declarando a prescrição da pretensão punitiva, o segundo a inexistência de crime). 38 O Ministro Marco Aurélio se esquece de que, na época de maior perseguição aos judeus, durante a Segunda Guerra Mundial, o Brasil institucionalizou a discriminação por motivos raciais, já que o Estado dificultou a entrada e não concedeu visto de permanência aos judeus que fugiam da Europa. Desconsidera ainda que o próprio idioma brasileiro, ainda hoje, possui o vocábulo “judiar” significando maltratar. Para outros exemplos, ver Lafer (2005).

55

3. TOLERÂNCIA RELIGIOSA COMO PRECURSORA DOS DIREITOS CULTURAIS

...eu me bato muito pela tolerância, que para mim é uma virtude... revolucionária até. É esta possibilidade de conviver com o diferente para poder brigar com o antagonista. O antagonista é diferente também, mas um diferente diferente.

(Paulo Freire)

3.1 Introdução

Neste capítulo pretendemos, tendo Habermas (2006) como marco teórico,

oferecer as bases teóricas que nos possibilitará responder à segunda questão

levantada no início do trabalho: os conceitos de liberdade de expressão e dignidade

da pessoa construídos pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal são

constitucionalmente adequadas ao Estado democrático de direito?

Para tanto, mostraremos em que medida podemos aprender com as lutas

históricas pela liberdade religiosa e como a solução encontrada para dirimir os

conflitos religiosos – que se fundam em argumentos irreconciliáveis – podem servir

de paradigma para a consecução de outros de minorias.

Veremos ainda que o Estado constitucional deve ser extremamente

cuidadoso no trato das questões que envolvem minorias pois, caso decida de modo

autoritário, mesmo se o escopo for justamente defender a democracia, correrá o

risco de solapar qualquer possibilidade do grupo discriminado ver seus direitos

reconhecidos. No caso de uma decisão equivocada o resultado poderá ser

justamente o que se pretendia evitar: o isolamento do grupo minoritário.

Por fim, um Estado Constitucional jamais poderá deixar de considerar o alerta

de Konrad Hesse: “a substância da democracia garantidora da liberdade não pode

ser assegurada por encurtamento da própria liberdade.” (HESSE apud HABERMAS,

2006, p. 284)

56

3.2 Conceitos de tolerância

Na língua alemã, a palavra Toleranz [tolerância] surgiu no século XVI,

tomando emprestado sua forma do latim (tolerantia) e do francês (tolérance), no

momento em que a Europa passava pelo cisma religioso.39 Se na ocasião de seu

surgimento “tolerância” possuía o sentido estrito de aturar outras confissões

religiosas, no decorrer dos séculos XVI e XVII o conceito de “tolerância” é ampliado

para uma acepção jurídica. “Tolerar o outro” deixa de ser uma opção pessoal para

se tornar uma obrigação legal, já que o Estado passa a exigir um comportamento

tolerante com os praticantes de religiões minoritárias, antes oprimidas.40

Segundo Habermas (2006, p. 255), na língua inglesa a distinção entre as

duas concepções do termo “tolerância” é mais clara, já que o idioma se vale de duas

palavras diferentes: tolerance, disposição ou virtude individual de se “suportar” a

crença do outro; e toleration, como ato jurídico. Essa separação é importante já que,

na medida em que um Estado aceita a pluralidade de crenças, é necessário que o

povo também a respeite. Em português, assim como no alemão, “tolerância” possui

esses dois significados41.

39 Segundo Lalande (1999), “a palavra tolerância nasceu no século XVI das guerras religiosas entre católicos e protestantes: os católicos acabaram por tolerar os protestantes, e reciprocamente. (p. 1140) 40 Temos, como exemplos, o Edito de Nantes, publicado pelo rei francês Henrique IV em 1598, que concedia aos huguenotes a garantia de tolerância; o Maryland Toleration Act ou Act Concerning Religion, editado em 1649 pela província de Maryland que protegia os imigrantes católicos e permitia a liberdade religiosa a todos os cristãos em Maryland; o Act of Toleration ou “An Act for Exempting their Majestyes Protestant Subjects dissenting from the Church of England from the Penalties of certaine Lawes”, de 1689, que concedeu liberdade de culto aos dissidentes da Igreja Anglicana, como batistas e quakers, mas não a católicos; o Edito da Tolerância, de 1781, de José II, que garantia aos cristãos liberdade de culto – com exceção dos protestantes – e, ainda, desobrigou os judeus de usarem marcas distintivas nas roupas. Todos esses exemplos foram citados por Habermas (2006, p. 255). 41 Mesmo que dicionários conceituados, mas não técnicos, como o Novo Dicionário Aurélio, não façam essa distinção. Consta nesse diciomário: “1.Qualidade de tolerante. 2.Ato ou efeito de tolerar. 3.Pequenas diferenças para mais ou para menos, permitidas por lei no peso ou no título das moedas. 4.Tendência a admitir modos de pensar, de agir e de sentir que diferem dos de um indivíduo ou de grupos determinados, políticos ou religiosos. 5.Diferença máxima admitida entre um valor especificado e o obtido; margem especificada como admissível para o erro em uma medida ou para discrepância em relação a um padrão. 6.Imun. Incapacidade, por parte de um indivíduo, de desencadear, em face da exposição a antígeno, a resposta imunológica que esse antígeno provoca em outros indivíduos; imunoparalisia. 7.Med. Capacidade de tolerar, sem efeito danoso para o organismo, doses de medicamento mais altas do que as habitualmente suportáveis. 8.Med. Diminuição de efeito de uma droga usada em caráter permanente e em doses inalteradas.” (FERREIRA, 1999, p. 1686)

57

Do conceito de tolerância anterior à revolução francesa – como “ato jurídico”

que unilateralmente obriga os praticantes da religião majoritária a suportar os

crentes de outra fé – até o atual, o de reconhecimento da diversidade do pluralismo

sociais e culturais nos diversos estratos sociais que se diferenciam da uma cultura

majoritária, foi necessário percorrer um longo e complicado caminho. Essa

transformação de simples “ato jurídico” para uma liberdade de crença fundada no

direito negativo de recusar práticas religiosas alheias já estava, de acordo com

Habermas (2006, p. 256), nas fundamentações filosóficas acerca da tolerância de

Locke42 e Spinoza43. A questão que se coloca é: se posso recusar uma crença

diferente e se posso professar uma crença diferente, por que o outro não poderia?

A pergunta acima só tem sentido se nossos argumentos puderem ser

generalizados, ou seja, se puderem ser utilizados na perspectiva do outro. Nesse

caso, somente numa postura paradoxal os adversários da tolerância ousariam

defender uma postura intolerante. Exemplificando, Pierre Bayle44, já no século XVII

afirmava:

Se porventura o mufti enviar alguns missionários a terras cristãs, do mesmo modo que o papa os despacha até a Índia, não poderíamos castigá-los quando os surpreendêssemos entrando em nossas casas para cumprir com a sua missão proselitista? Pois se eles derem a mesma resposta que os missionários cristãos no Japão, que foram movidos por seu afã de ensinar a verdadeira religião a aqueles que ainda não a conheciam e que se preocupam com a salvação do próximo, e, continuando, se enforcássemos esses turcos, não seria ridículo ver algum mal nos japoneses que fizeram a mesma coisa? (BAYLE, apud HABERMAS, 2006, p. 256)

Pensar em tolerância como simples benevolência – já que se suporta uma

prática “ofensiva” que se poderia reprimir – cria automaticamente um paradoxo, já

que a própria tolerância passa a ser ofensiva, uma vez que é desprovida de respeito.

Esse paradoxo, explica Habermas (2006, p.257), está no fato de que toda vez que

se descrevem as características do que deve ser aceito, o âmbito da tolerância

42 Em seu livro Carta sobre a tolerâcia (LOCKE, 2007). 43 Em sua obra Tratado Teológico-Político (ESPINOSA, 2003). 44 O filósofo calvinista Pierre Bayle foi o precursor de Voltaire na defesa da liberdade de crença e pensamento. Argumentou ainda contra o significado literal de compelle intrare [obrigados a entrar], utilizado na Idade Média para justificar a perseguição da Igreja contra os heréticos. (CARDOSO, 2003, p. 31) [A expressão compelle intrare refere-se à parábola do Grande Baquete, na qual um homem obrigou as pessoas do povo a participarem de uma festa que havia sido recusada pelos convidados oficiais: “Então o senhor disse ao “servo: ‘vá pelos caminhos e valados e obrigue-os a entrar, para que minha casa fique cheia.’” (Lucas, 14:23) Alguns teólogos viam nessa passagem a justificativa do direito da Igreja em impor a conversão aos não-católicos.

58

torna-se limitado, excluindo aquele que foge do padrão “tolerado”. Se a tolerância é

arbitrária e unilateral, sempre ficará manchada pela exclusão. A tolerância sem

respeito é uma forma de intolerância.

Esse paradoxo pode ser desfeito se os exemplos de Bayle forem levados a

sério. É somente com o reconhecimento recíproco das diferentes comunidades

religiosas que a tolerância poderá ser exercitada. A liberdade religiosa não sobrevive

sob coação política, estatal ou moral contra os membros de religiões minoritárias.

Esse é um requisito indispensável para que os membros de uma comunidade

religiosa possam, por si mesmos, aceitar ou refutar verdades de fé e práticas

religiosas alheias. O direito fundamental de liberdade religiosa, diz Habermas (2006,

p. 257), possui um nexo conceitual com as bases de um Estado Constitucional, ou

seja, está ligado com a democracia e com os direitos humanos.45

Para que os cidadãos possam, consensual e democraticamente, especificar

quais seriam os limites da tolerância, é necessário que suas decisões sejam

tomadas de forma que todas as partes, atingidas e participantes, assumam

reciprocamente a perspectiva do outro. Somente assim se atenderá,

satisfatoriamente, os diversos interesses envolvidos. Esse cenário de formação de

vontade deliberativa só é possível na democracia de um Estado Constitucional. Só

há, portanto, tolerância religiosa quando todos os cidadãos se concedem,

reciprocamente, liberdade de religião. Podemos vislumbrar, então, a solução do

paradoxo: devo ser livre para exercitar a minha religião e não ser molestado pela

religião dos outros. Se o legislador for, ao mesmo tempo, autor e destinatário do

direito que obriga a tolerância entre os cidadãos de um Estado democrático, então o

ato jurídico que impõe a tolerância (toleration) une-se à auto-obrigação virtuosa de

“suportar” o outro (tolerance).

45 Quando, no final do século XIXe início do século XX, se discutia as bases doutrinárias que originaram a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, surgiu uma polêmica entre o filósofo do direito G. Jellinek e politólogo francês Émile Boutmy. Jellinek afirmava que a Declaração não procedia do Contrato Social, de Rousseau; na verdade, sua origem se encontrava na Bill of Rights, que precediam as Constituições dos Estados Americanos promulgadas entre 1776 e 1789. Nessas declarações, o elemento mais antigo que surge é a liberdade religiosa, que seria a gênese dos direitos humanos. Boutmy contesta os argumentos de Jellinek, inclusive sobre a aparente contradição entre O Contrato Social e as idéias de liberdade presentes na Declaração. Para Boutmy, na verdade, a origem da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão não está em Rousseau ou Locke, nem no Bill of Rights ou na Declaração da Independência, mas sobretudo no “grande movimento espiritual do século XVIII.” Esse patrimônio comum, alimentado por Rousseau, Voltaire, Locke, Montesquieu, se espalhou por todo mundo civilizado, inclusive nas colônias americanas. É desse momento, diz Boutmy, que a Declaração se origina.

59

A generalização recíproca do direito de liberdade de religião é insuficiente

para solucionar inteiramente o paradoxo inerente a toda tolerância delimitada. É no

coração do Estado constitucional democrático que o paradoxo ressurge. Toda ordem

constitucional que almeja garantir a tolerância deve proteger-se dos inimigos da

própria Constituição. No momento em que a Constituição, que garante a liberdade,

depara-se com os inimigos dessa mesma Constituição, a questão dos limites da

liberdade ressurge vigorosamente: até que ponto a democracia deve tratar

tolerantemente os inimigos da democracia? Ou ainda: pode haver tolerância com os

intolerantes?46

De acordo com Habermas (2006), caso o Estado Constitucional queira

preservar-se, deverá adotar uma postura intolerante com os inimigos da democracia.

Para tanto, deverá usar os “instrumentos do direito penal político ou as disposições

relativas a proibição dos partidos políticos (art. 21.2 da Lei Fundamental alemã)47 e a

perda dos direitos fundamentais (art. 18 e 9.2 da Lei Fundamental alemã)48.”

46 Habermas lida com esse problema diferenciando os fundamentalistas (inimigos da constituição) com os dissidentes (desobediência civil). Para ele “... o fundamentalismo que conduz a uma práxis de intolerância é inconciliável com o Estado de direito. Essa práxis apóia-se sobre interpretações religiosas ou histórico-filosóficas do mundo que reivindicam exclusividade para uma forma privilegiada de vida. Falta a tais concepções a consciência e a falibilidade de sua reivindicação de validade e o respeito em face do ‘ônus da razão’”. (HABERMAS, 2004, p. 260-261) Por outro lado, o Estado constitucional deve tolerar a “resistência dos dissidentes que, após o esgotamento de todos os caminhos legais, combatem decisões tomadas de modo legítimo, com a reserva, no entanto, de que os cidadãos ‘desobedientes’ conseguem justificar sua resistência apoiados em princípios da constituição e em meios não-violentos, os quais são, por conseqüência, simbólicos.” (HABERMAS, 2007, 284) 47 [Partidos políticos]“Artigo 21: 1. Os partidos concorrerão para a formação da vontade política do povo. Eles poderão ser criados livremente. Sua organização interna deverá ser condizente com os princípios democráticos. Eles deverão prestar contas publicamente da procedência e do emprego de seus recursos financeiros, bem como de seu patrimônio. 2. Serão inconstitucionais os partidos que, por seus objetivos ou pelas atitudes de seus adeptos, atentarem contra o Estado de direito livre e democrático ou tentarem subvertê-lo, ou puserem em perigo a existência da República Federal da Alemanha. Caberá ao Tribunal Constitucional Federal decidir sobre a questão da inconstitucionalidade. 3. Leis federais regularão a matéria.” (disponível em http://www.brasilia.diplo.de/Vertretung/brasilia/pt/03/Constituicao/art__21.html, acessado em 14/02/2008.) (negritamos) 48 [Privação dos direitos fundamentais] “Artigo 18: Quem abusar da liberdade de expressão, notadamente da liberdade de imprensa (artigo 5, § 1), da liberdade de ensino (artigo 5, § 3), da liberdade de reunião (artigo 8), da liberdade de associação (artigo 9), do sigilo da correspondência, do correio e das telecomunicações (artigo 10), do direito de propriedade (artigo 14) ou do direito de asilo (artigo 16a), para conspirar contra o Estado de direito livre e democrático será privado desses direitos fundamentais. Cabe ao Tribunal Constitucional Federal declarar a perda e a sua extensão.” [Liberdade de associação] “Artigo 9: 1. Todos os Alemães terão o direito de se constituir em associações e sociedades. 2. Serão proibidas as associações cujos fins ou atividades forem contrários às leis penais ou que se orientem contra a ordem constitucional ou contra o princípio do entendimento entre os povos. 3. A todas as pessoas e em todas as profissões ou ocupações será garantido o direito de formar associações para defender e melhorar as condições econômicas e de trabalho. Serão nulos os acordos que restrinjam ou tendam a impedir o exercício desse direito, e ilegais as medidas tomadas nesse sentido. As medidas tomadas no âmbito dos

60

(Habermas, 2006, 258-259) Este “inimigo da democracia” pode vir revestido tanto de

conotação religiosa, se colocando contrário às formas de vida típicas das

sociedades modernas, como também pode surgir de maneira secularizada, na figura

de ideólogos políticos que combatem o Estado liberal e democrático. Mas quem,

senão o próprio Estado Constitucional, poderia definir os “inimigos da democracia”?

Nesse caso, o Estado Constitucional deve levar em consideração o risco de

enfrentar tanto seus opositores quanto e principalmente o perigo de, no afã de evitar

que os intolerantes prejudiquem a democracia, o ele mesmo agir de maneira

autoritária na fixação dos limites da tolerância. É curioso que a tolerância religiosa

utilize os procedimentos democráticos para solucionar o paradoxo da

autodelimitação enquanto a democracia precise reelaborar o paradoxo da tolerância

religiosa no próprio meio jurídico, ou seja, o problema da tolerância sai da esfera

religiosa e entra na esfera política.

O Estado Constitucional deve ser cauteloso para não tratar o problema dos

“inimigos da democracia” de modo paternalista, o que só acentuaria o paradoxo.

Habermas, citando Hesse, afirma que “a substância de uma democracia liberal não

pode ser assegurada mediante o cerceamento das liberdades”. (HESSE apud

HABERMAS, 2006, p. 259) O modo de se lidar com essa questão de forma não

paternalista pode ser alcançada, assegura Habermas (2006, p. 259), se a sociedade

civil desenvolver a auto-referencialidade do procedimento democrático, levando

adiante a disputa, sempre aberta sobre a correta interpretação dos dispositivos

constitucionais.

Nesse sentido, o trato do Estado Constitucional com a desobediência civil

ganha relevância. O modo como o Estado se relaciona com os dissidentes serve de

termômetro para averiguar se ele age de modo autoritário ou não. É a própria

Constituição que determina como os conflitos de interpretação do texto

constitucional devem ser solucionados. De qualquer modo, afirma Habermas, é com

a

artigos 12a; 35, §§ 2 e 3; 87a, § 4; e 91 não poderão contrariar convenções trabalhistas firmadas por associações, no exercício do direito previsto na primeira frase deste parágrafo, para salvaguardar e melhorar as condições econômicas e de trabalho. (disponível em http://www.brasilia.diplo.de/Vertretung/brasilia/pt/03/Constituicao/art__09.html, acessado dia 14/02/2008) (negritamos)

61

justificação jurisprudencial da desobediência civil (uma justificação que, é claro, não exclui o castigo) que o espírito tolerante de uma Constituição liberal se estende mais além da totalidade das instituições e práticas nas quais seu conteúdo normativo se solidifica na forma positivada. (Habermas, 2006, p. 259)

Se entendermos a Constituição como projeto de realização, aberto e plural,

de uma sociedade de cidadãos solidários, livres e iguais, que se realiza ao longo do

tempo histórico, enquanto aprendizado social, sujeito a tropeços, mas capaz de se

corrigir a si mesmo, então essa Constituição deve tolerar os dissidentes que

combatem as decisões legitimamente aprovadas. Se os “desobedientes”

conseguirem justificar seus atos de maneira plausível com base dos princípios

constitucionais e ainda, se agirem de modo pacífico, não há motivos para impedi-los,

mesmo se a via judicial já tiver se esgotado. Essas duas condições servem como

norte para se determinar os limites de uma tolerância política não paternalista que

protege uma democracia liberal erguida com base no Estado de direito, contra

inimigos não democráticos.49

O reconhecimento da desobediência civil, diz Habermas (2006), é crucial para

o Estado democrático de direito solucionar esse novo paradoxo que se ergue no

âmbito do direito constitucional. Na medida em que o Estado Constitucional age de

maneira tolerante com os dissidentes não fundamentalistas, ele evita um

comportamento autodestrutivo que atingiria a própria democracia. Assim, aqueles

“desobedientes” que, de outra maneira seriam tidos como “inimigos da Constituição”,

podem agora ser considerados como “patriotas constitucionais”, defensores e

amigos não de uma Constituição pronta e acabada, mas sim de um projeto

constitucional que se realiza no tempo, estando, hoje e sempre, em transformação.

O princípio da inclusão igualitária dos cidadãos pode ser expresso justamente nesse

49 “Devemos decidir se esse argumento, de que atos considerados como desobediência civil são efetivamente protegidos pela Constituição, ainda é viável quando os tribunais determinaram que esses atos não contam, a seu ver, com tal proteção. Estamos bem familiarizados com o aforismo de que o direito é o que o tribunal diz que ele é. Mas isso pode significar duas coisas bem diferentes. Pode significar que os Tribunais estão sempre certos quanto ao que é o direito, que suas decisões criam direito, de tal modo que, quando interpretam a Constituição de determinada maneira, essa no futuro será necessariamente a maneira certa de interpretá-la. Ou pode significar simplesmente que devemos obedecer às decisões dos tribunais, pelo menos de maneira geral, por razões práticas, embora nos reservemos o direito de sustentar que o direito não é o que eles disseram. O primeiro modo de ver é o do positivismo jurídico. Creio que está errado e, no fim, corrompe profundamente a idéia e o Estado de Direito. O argumento que exorto os alemães a adotar, de que o direito, bem compreendido, pode apoiar o que chamamos de desobediência civil, só pode ser um argumento efetivo quando rejeitamos esse aspecto do positivismo e insistimos em que, embora os tribunais possam ter a última palavra, em qualquer caso específico, sobre o que é o direito, a última palavra não é, por essa razão apenas, a palavra certa.” (DWORKIN, 2005, p. 170-171)

62

limite auto-reflexivo da tolerância da Constituição. Com a institucionalização da

tolerância, o reconhecimento dos cidadãos com visões de mundo minoritárias, que

pensam e crêem de modo divergente da maioria, passa a ser pressuposto.

(Habermas, 2006, 260)

3.3 Tolerância e preconceito

Para Reiner Forst, o conceito moderno de tolerância possui três

componentes: recusa (Ablehnung), aceitação (Akzeptanz) e repulsão

(Zurückweisung). As normas de tolerância, como visto, têm sua origem nos conflitos

de religião. Os argumentos de recusa são utilizados por crentes, crentes dissidentes

(que crêem de forma diferente da maioria) e por não crentes, são subjetivos, e não

há porque vislumbrar um consenso religioso. Assim, é fundamental que a

divergência entre crentes e não crentes seja desacoplada da esfera social, caso se

almeje uma sociedade na qual os seus cidadãos se relacionem pacificamente. Isso

só acontece quando há consenso em relação a argumentos imparciais que fazem

com que formas de vida diferentes sejam aceitas, não neutralizando, mas

sobrepondo os argumentos de recusa. A imparcialidade dos argumentos só pode ser

alcançada caso os participantes na formação da vontade deliberativa se respeitem e

adotem a perspectiva do outro. Somado a isso, há exigência de neutralidade por

parte do Estado, para que este forneça as bases normativas imprescindíveis para a

generalização dos direitos religiosos e culturais.

Antes de adentrarmos no conceito de recusa, componente da tolerância, é

necessário especificar melhor de que tolerância se trata. Assim, podemos começar

afirmando o que tolerância não é: indiferença. Não se trata de uma forma indolente

de se relacionar com o outro, uma simples paciência ou desdém com o estranho. Se

assim fosse, a própria tolerância seria desnecessária. Tolerância é mais do que

desinteresse, é virtude política necessária para que os cidadãos tratem de forma

respeitável outros cidadãos do Estado, mesmo se estes pensam ou crêem de forma

distinta uns dos outros.50

50 Está claro, portanto, que o conceito de tolerância aqui utilizado é o de tolerance, uma vez que esta não é exigível por imposição jurídica.

63

A recusa, por sua vez, não pode ser arbitrária. Os argumentos que a

legitimam não podem ser subjetivos, pelo contrário, devem poder ser defendidos

publicamente. Só há tolerância quando os participantes apóiam sua recusa em

argumentos racionais. O simples preconceito não conta. Isso significa que nem toda

recusa é racional. Na verdade, na maioria das vezes não é. É por isso que os

racistas, os anti-semitas, os chauvinistas jamais serão tolerantes. Para tanto, é

imprescindível que superem seus preconceitos. Assim, quando nos deparamos com

o outro, qualquer tipo de discriminação deve ser evitada; deve haver respeito por

todos, e não somente uma simples indulgência com relação a quem pensa diferente.

A tolerância só é possível em um ambiente sem discriminação.

Em relação à liberdade religiosa, são os preconceitos que fomentam a

opressão à minoria, não a falta de emancipação jurídica dos mesmos. Não basta

que as minorias sejam dotadas de representatividade ou de poder econômico para

não serem discriminadas. A tolerância não alcançaria o anti-semita, por exemplo,

pois esse justifica sua recusa em virtude de um ódio fundado em preconceitos

irracionais. Caso esses preconceitos sejam banidos da discussão, não haveria

nenhuma base racional para legitimar a recusa da crença diferente. Para o religioso

esclarecido, encontrar razões racionais de recusa entre judaísmo, cristianismo e

islamismo51, por exemplo, se torna uma tarefa extremamente árdua. Para ilustrar

seu ponto de vista, Habermas (2006) se vale do livro Nathan,o Sábio, de G. E.

Lessing, que, mediante a parábola dos três anéis, mostra que os antagonismos e

contradições das três grandes religiões monoteístas deveriam ser relativizados.52

51 Abrangemos somente as três maiores religiões monoteístas, mas o exemplo é válido para quase todas as religiões. É importante ressaltar que, mesmo tão próximas, as três crenças vivem hoje em permanente conflito. 52 A parábola dos três anéis contada por Lessing em Nathan, o sábio, de 1779, era conhecida desde a Idade Média, e foi narrada muito antes por Boccaccio, por volta de 1350, em sua obra Decamerão. A parábola aparece na terceira novela da primeira jornada desse livro e narra a história de Saladino e seu ardil para enganar o judeu Melquisedeque. Conta-se que Saladino, desesperado por dinheiro, descobre que o agiota Melquisedeque possui a quantia que tanto necessita. Ocorre que o judeu era muito ganancioso e Saladino, não querendo usar a força para lhe tomar o dinheiro, planeja um meio de impor-lhe uma coação disfarçada. Malquisedeque é trazido à corte e Saladino o indaga: “qual das três religiões é verdadeira: a judaica, a sarracena ou a cristã?” Malquisdeque, percebendo o ardil, responde com uma parábola: “Havia um senhor extremamente rico e poderoso, possuidor de um magnífico tesouro. Entre suas jóias, havia um anel tão belo que o senhor não queria que ninguém se desfizesse dele. Assim, sentenciou que o filho possuidor do anel seria o seu herdeiro. A tradição perdurou até um descendente, pai de três filhos amados igualmente, viu-se com um grande problema: como não sabia a quem dar o anel, já que o havia prometido aos três, mandou que um mestre ourives, em segredo, forjasse outros dois, idênticos ao primeiro. Todos os filhos receberam, então, cada um dos anéis. Quando o velho morreu, os filhos disputaram a herança e, como prova do direito, apresentaram, cada um, o seu anel. Uma vez que os anéis eram idênticos, o problema ficou sem solução – e até hoje está.” Por fim, Malquisedeque diz a Saladino: “Isto é o que lhe afirmo,

64

3.4 Tolerância religiosa versus contestação científica: e a política, onde fica?

As diversas religiões estruturam-se de modo diferente uma das outras,

possuem ritos diversos e verdades de fé que, por mais que sejam discutidas, não há

expectativa de consenso. As diferenças, que devem ser toleradas, influenciam

diretamente as visões de mundo de cada pessoa. Não só isso, elas orientam as

ações dos seus fiéis. Entretanto, não é só a religião que tem esse papel

direcionador: as ideologias políticas também explicam o mundo, a história, a

sociedade. Bem como a religião, uma ideologia política possui um conteúdo

normativo que dita o que é uma vida bem sucedida ou não, interferindo, tal qual a

religião, no agir humano. Somente as concepções dotadas de conteúdo ético

semelhante poderiam pleitear um comportamento tolerante frente a tais condutas. É

imprescindível que quando se fala em tolerância, não é de modo absoluto, ou seja,

não é toda divergência que deva ser tolerada. Algumas divergências, como no caso

das teorias científicas, agir com tolerância é justamente o que menos se espera.

Quando uma teoria científica é apresentada, cabe à comunidade científica adotar

uma postura cética, crítica e investigativa. Já as divergências políticas são saudáveis

e necessárias à democracia, sendo que a disputa limpa entre os partidos políticos é

um dos alicerces de todo Estado democrático.

Não há motivos para se desejar extinguir o dissenso entre teorias científicas,

uma vez que o debate funciona como combustível na evolução e busca pela

verdade – sempre criticável – própria do discurso científico. A divergência e a

discussão são inerentes à ciência, que utiliza discursos com pretensão de verdade

que podem ser confrontados argumentativamente. Nesse sentido, “toda reflexão

filosófica e científica [...] não dispensa jamais uma boa discussão, está sujeita à

críticas, aberta à aprendizagem e, esperamos, a melhores desenvolvimentos.”

(CATTONI, 2002, p. 192)

senhor, a propósito das três leis religiosas, que Deus, nosso pai, deu aos três povos. A escolha de uma dessas leis é o que o senhor me propõe. Cada povo considera que é possuidor de Sua herança, de Sua legítima Lei e dos Seus mandamentos. Entretanto, quem tem razão? Como no caso dos anéis, a questão ainda está em aberto. (BOCCACCIO, 1971, p. 39-41)

65

As discussões acadêmicas, na maioria das vezes, não interferem nas ações

do mundo da vida. A situação se altera na medida em que as pesquisas científicas

se utilizam de práticas que ultrapassam os limites éticos de algumas pessoas – caso

de pesquisas com células tronco, embriões ou clonagem – ou se o resultado da

pesquisa afetar a autocompreensão ética de indivíduos fora da investigação. Para

Habermas,

o naturalismo, que se apóia em uma elaboração sintetizadora de informações científicas – vinculado a cosmovisões e que, em relação à importância do saber para as orientações éticas da ação, se encontra no mesmo plano das orientações religiosas. (HABERMAS, 2006, p.263)

A tolerância só é exigível quando os conflitos se dão em virtude de “razões

subjetivamente compreensíveis”, mesmo que não haja nenhuma expectativa

racional de consenso. Todos os cientistas partem do princípio de que, em seu

trabalho, se ocupam de problemas que têm solução, mesmo que sujeita a críticas

(HABERMAS, 2006). A pesquisa científica sempre busca a verdade, embora esta

seja uma “verdade” que se sabe “falível”. Por sua vez, o discurso religioso parte de

concepções fundadas na fé. Não há uma busca da verdade; esta já esta posta, foi

revelada no passado que “não é passível de revisões, podendo ser defendida sobre

a base de bons argumentos contra verdades de fé de outras crenças concorrentes”

(HABERMAS, 2006, p. 263). Essa é a principal diferença entre o discurso científico e

o religioso: no primeiro, a verdade só é entendida como tal se aceita universalmente

por determinada comunidade científica, em um dado momento histórico, que sempre

se modifica; já o segundo não visa a mudança, não visa a discussão, não visa o

consenso. Ou se acredita, ou não.

Destarte, a política se aproxima muito do discurso científico, afastando-se,

conseqüentemente, do discurso religioso. Os debates políticos, muitas vezes duros

e agressivos – mas salutares e imprescindíveis ao jogo democrático – movem-se

respeitando o processo que almeja, no fim, o consenso. A chance de um dissenso

permanente, explica Habermas (2006), é maior na política do que no discurso

científico, mas somente quando há forte imbricação das convicções políticas com as

visões de mundo que determinam o seria uma “vida boa”.

A diferença entre o discurso político e o discurso religioso deve ser muito

clara e em virtude dessa dissimilitude, “tolerância religiosa” e “tolerância política”

66

tornam-se termos muito distintos. As discussões presentes em toda democracia,

bem como os conflitos de ideologias que afloram sempre que há um tema

controverso a ser debatido, fazem parte da rotina de um Estado Democrático de

Direito. Quando há diversidade política, há, proporcionalmente, debates (embates)

políticos. Discutir temas políticos – presumivelmente passíveis de consenso –

aceitando argumentos contrários não é um exercício de tolerância, mas sim um

comportamento cívico. Assim, exige-se daqueles que pensam diferente uma conduta

de cooperação, na medida em que se busca, sempre, um consenso. Este

comportamento muitas vezes é confundido com a tolerância, pois o respeito à

opinião do outro é imposição de ambas as condutas (cívica e tolerante). Mas,

diferentemente da política, as partes envolvidas numa querela religiosa não buscam

– nem esperam – que seus adversários aceitem seus argumentos e produzam um

acordo racional acerca das questões conflitantes.53

3.5 As religiões são realmente irreconciliáveis? A necessidade dos

argumentos de aceitação superarem os de recusa.

Como foi mostrado, o problema da religião tratar suas concepções como

verdades reveladas é que elas impossibilitam o consenso no plano religioso. O

caminho que leva à tolerância religiosa é sinuoso, e passa necessariamente pela

resposta da seguinte pergunta: será que os argumentos de aceitação superam

moralmente os argumentos de recusa? É importante esclarecer, primeiramente, que

o dilema não se localiza nas contradições entre as perspectivas de visões de mundo

de pessoas diferentes que têm que ser aceitas como tais. Visões de mundo

conflituosas permanecerão conflituosas mesmo após uma discussão racional entre

pessoas que professam crenças diferentes. Nesse caso, a questão decisiva diz

respeito à neutralização das conseqüências práticas desses conflitos insolúveis.

53 Esse dever de cooperação é chamado por Rawls (2000) de “dever de civilidade”, que implica “em se ser capaz de, no tocante a essas questões fundamentais [como quem tem direito ao voto, ou quais religiões devem ser toleradas, ou a quem se deve assegurar igualdade eqüitativa de oportunidades, ou ter propriedades], explicar aos outros de que maneira os princípios e políticas que se defende e nos quais se vota podem ser sustentados pelos valores políticos da razão pública. Esse dever também implica a disposição de ouvir os outros, e uma equanimidade para decidir quando é razoável que se façam ajustes para conciliar os próprios pontos de vista com os dos outros. (p. 266)

67

Assim, para respondermos à pergunta feita acima, devemos avaliar em que consiste

o ônus que a tolerância nos obriga.

Conforme Habermas (2006), o ônus é duplo:“por um lado, quem é tolerante

só pode realizar o próprio ethos no limite daquilo que compete a todos de maneira

igualitária. Por outro lado, ele tem que respeitar o ethos dos outros dentro desses

limites” (p. 264). Isso não significa que as convicções pessoais e visões de mundo

devam ser abandonadas, mas sim que, na prática, devam perder eficácia. As

exigências religiosas de conduta ou a convicção pessoal para a realização ética só

poderão ser colocadas em prática caso as mesmas não atinjam o direito de todos os

outros. Como nas sociedades liberais a moral e o direito têm de sintonizar-se com as

convicções religiosas que estão enraizadas no próprio ethos plural dessas

sociedades, o ônus é do tipo cognitivo. Isso pode ser percebido se tomarmos como

exemplo as modificações acerca da liberdade religiosa ocorridas na Europa após a

Reforma.

Toda religião possui mandamentos que caracterizam sua concepção de vida

boa e reclama uma autoridade capaz de obrigar seus membros a perseguirem seu

ethos. Na medida em que as comunidades religiosas estão inseridas em

comunidades políticas, mais amplas e pluralistas, aquelas devem abrir mão dessa

autoridade sob pena de destruir a diferença. Para que a sociedade suporte as

diferentes visões de mundo das diversas religiões é necessário que as mesmas,

caso haja um nexo genealógico entre as tradições religiosas e as da sociedade

(como é o caso das religiões judaica e cristãs na Europa e América), absorvam os

fundamentos normativos do Estado liberal. Para que a sociedade sobreviva à

diferença religiosa – bem como as religiões minoritárias – é importante que os

conflitos decorrentes da religião sejam dirimidos. Do ponto de vista funcional, esse é

o papel da tolerância religiosa: absorver a destrutividade desse dissenso

permanente e irreconciliável. Para que não haja conflitos de lealdade entre Estado e

religião, é necessário que as regras de convivência e tolerância religiosa sejam

fundamentadas na própria religião. Caso esses mandamentos sejam impostos

unilateralmente pelo Estado os conflitos religiosos dificilmente cessarão.

Não basta, portanto, simplesmente adaptar o modus vivendi que a religião

determina com as leis de tolerância impostas pela sociedade secular. É

imprescindível que fique clara as diferenças cognitivas entre a moral secular

ordenada pela Constituição democrática e o ethos da comunidade religiosa. Quanto

68

mais o ethos religioso for próximo do ethos comunitário maior será a necessidade de

uma revisão das visões de mundo presentes na tradição religiosa, assentada em

determinações extraídas da interpretação de textos sagrados.54 A questão pode ser

simplificada a partir do seguinte exemplo:

A tradição judaico-cristã vê o homossexual como um desviado da conduta normal. Por definição, a homossexualidade aproxima-se da doença, da imoralidade e da repugnância. Logo, julgamentos pautados em valores podem colocá-los como párias da sociedade. Assim, no tocante à adoção de crianças/menores, o interesse/valor coletivo de preservação da família ou da educação da criança, em regra podem servir de óbice ao reconhecimento de tal direito aos homossexuais. (CRUZ, 2006, p. 136-137)

Nos casos polêmicos – aborto, casamento homossexual, pesquisa com

embriões humanos – é fundamental que fique clara a distinção entre ética, que diz

respeito à vida boa, e moral, que diz respeito à justiça, devendo ser, portanto,

universalizável.

Nessas questões difíceis, os católicos devem perceber a necessidade dos

Tribunais julgarem de acordo com juízos morais, universalizáveis, mesmo que esses

juízos contrariem seu ethos religioso. (HABERMAS, 2006)

Após a apresentação dos argumentos de aceitação e recusa, atinge-se por

fim o último elemento: a base normativa apta a oferecer a generalização dos direitos

religiosos. Cabe ao Estado respeitar a obrigação de neutralidade e, por meio da

legislação institucionalizar a tolerância de maneira correta. Da mesma forma, os

tribunais devem perseguir e, quando necessário, coibir as políticas públicas ou atos

de particulares contrários à liberdade religiosa. Serão os tribunais, no dizer de

Habemas (2006), que deverão “decidir quem deve e quando deve escolher um ethos

em detrimento de outro” (p. 268-269).

54 A equiparação dos direitos das mulheres em relação aos homens foi uma das maiores conquistas democráticas do século XX. O sufrágio universal, presente em todas as democracias do mundo, é incrivelmente recente, sendo conquistado nos Estados Unidos em 1920, na Grã-Bretanha em 1928, no Brasil em 1934, na França em 1945, na Suíça em 1971. Certamente, a principal barreira encontrada pelos defensores do sufrágio universal no ocidente foi o ethos cristão muito presente na sociedade, contrário à igualdade de gênero. A bíblia, aliás, sempre tratou a mulher como propriedade do homem. Por exemplo, temos o décimo mandamento (Êxodo 20:17), escrito pelo próprio Deus, que proíbe a cobiça dos bens do próximo, elencando a mulher ao lado da casa, dos escravos e dos animais do homem, o que obviamente coisifica a mulher e certamente dificultou a consecução dos direitos femininos. No Brasil, país extremamente católico, não foi por acaso que houve tanta dificuldade em se aprovar a legislação que permite o divórcio, além de explicar também como a sociedade é tão refratária em aceitar regulamentar o casamento homossexual, o aborto e as pesquisas sobre células tronco, por exemplo.

69

3.6 A tolerância religiosa como precursora do multiculturalismo

“É a liberdade religiosa que põe em prova a neutralidade do Estado”.

(HABERMAS, 2006, p. 269) Essa liberdade é colocada a prova toda vez que a

cultura dominante de uma sociedade abusa de seu poder, conseguido ao longo da

história, para impor sua visão de mundo às minorias culturais. Cabe ao Estado, por

meio de políticas que estejam de acordo com os princípios constitucionais,

assegurar, por procedimentos democráticos legitimados pela imparcialidade estatal,

que os direitos das minorias sejam respeitados. A neutralidade estatal é violada

quando visões de mundo oriundas de uma “eticidade substancial” (HABERMAS,

2006, p. 269) interferem na interpretação de mandamentos formais que exigem essa

mesma neutralidade. Habermas alerta, ainda, que a ofensa à neutralidade do Estado

pode ser perpetrada por ambas as partes, laicos e religiosos (2006, p. 269).55

A discussão e superação dos conflitos religiosos é importantíssima para o

Estado Constitucional democrático, uma vez que a tolerância religiosa serve de

propulsor para que os outros direitos das minorias sejam realizados. O

reconhecimento do pluralismo religioso pode tornar-se paradigma porque apresenta

satisfatoriamente o direito das minorias religiosas a inclusão: incluindo as minorias

religiosas, diz Habermas, aumenta-se a chance de que outras minorias sejam, por

sua vez, incluídas (HABERMAS, 2006, p. 270).

“O reconhecimento[ou inclusão] afeta um dos dois aspectos da igualdade

cívica.” (HABERMAS, 2006, p. 271) Um dos problemas do não-reconhecimento

cultural é que os grupos não-reconhecidos geralmente são marginalizados e 55 Para Habermas, essa neutralidade foi ferida pelos laicos quando o governo francês proibiu que, nas escolas públicas, as alunas mulçumanas usassem o chador. O argumento utilizado foi de que a religião é um assunto privado, que deve ficar separado da esfera pública. Esta interpretação laicista forte demais, que fere o direito da comunidade mulçumana de se auto-representar e ser reconhecida publicamente (HABERMAS, 2006, p.269-270). Além disso, ao invés de promover união entre os que confessam religiões distintas, o governo afasta as jovens mulçumanas das suas escolas, possibilitando aos fundamentalistas a criação de escolas religiosas, tal qual as mandrassas que, como se sabe, são as grandes propagadoras do fanatismo religioso no Paquistão, por exemplo. Com relação à quebra da neutralidade estatal pela parte religiosa está na contestação, por parte do governo do estado da Baviera, na Alemanha, da decisão do Tribunal Constitucional Alemão que julgou procedente reclamação, por parte de pais sem-religião, de que os crucifixos deveriam ser retirados das salas de aula das escolas públicas. O argumento contrário a decisão é de que o crucifixo representa “valores ocidentais” que podem ser compartilhados com todos os cidadãos (HABERMAS, 2006, p. 270). Tem-se aí um exemplo claro de como uma generalização político-cultural pode ser nociva aos interesses das minorias culturais e religiosas.

70

discriminados, de modo que a exclusão social e cultural caminham juntas,

alimentando-se uma da outra. Mas, é importante frisar, a discriminação de minorias

e a discriminação social são bem diferentes uma da outra. O reconhecimento das

minorias culturais não visa a um “igualamento das condições sociais de vida, mas

sim à defesa da integridade de formas de vida e tradições com as quais os membros

de grupos discriminados possam identificar-se” (HABERMAS, 2004, p. 240). Mede-

se a discriminação social pelos princípios da justiça distributiva e a discriminação

das minorias pela inclusão sem restrições (HABERMAS, 2006, p. 271). As lutas

políticas e dos movimentos sociais, prossegue Habermas, se dirigem contra uma

desigualdade social e visam uma redistribuição das oportunidades sociais e se

nutrem de experiências de injustiça no âmbito da justiça distributiva. Por sua vez, as

ações pelo reconhecimento de determinada minoria justifica-se a partir de outro tipo

de injustiça: a decorrente do desprezo, da marginalização e exclusão causadas em

quem pertence a um grupo que, de acordo com os valores da cultura majoritária, é

tida como inferior (HABERMAS, 2006, p. 271). É nesse sentido, portanto, que

podemos afirmar que a tolerância religiosa é precursora dos direitos culturais.

Do mesmo modo que os direitos ao livre exercício religioso, os direitos

culturais servem para garantir que todos os cidadãos tenham acesso igualitário às

tradições e manifestações culturais, mesmo que minoritárias, uma vez que o acesso

a esses bens são imprescindíveis para o exercício e manutenção da identidade

pessoal de cada cidadão. O tipo de direito necessário para preservar os diferentes

grupos étnicos e culturais é sempre subjetivo, ou seja, deve atender a pessoas

individuais e não a coletividade. Além do mais, afirma Habermas, caso se utilizasse

direitos coletivos para o reconhecimento de minorias, eles seriam não só

desnecessários, mas questionáveis sob o ponto de vista normativo. (2004, p. 258)

Não se quer e não se pode preservar uma tradição como se preserva um parque

ecológico, cercando-o e impedindo a entrada de qualquer elemento externo. A

defesa das formas de vida geradoras de identidade deve servir para o

reconhecimento individual, não coletivo. Uma tradição se perpetua na medida em

que convence os indivíduos a se apropriarem dela e de continuarem reproduzindo

cultura, hermeneuticamente, dentro dessa tradição. Qual é o papel do Estado,

então? “O caminho do direito estatal nada pode senão possibilitar essa conquista

hermenêutica da reprodução cultural de universos vitais.” (HABERMAS, 2004, p.

258) Caso o Estado garantisse a sobrevivência de determinada cultura, ele

71

necessariamente retiraria dos indivíduos desse grupo a possibilidade de optar ou

não pela manutenção de sua própria cultura.56

A relação entre “luta pela liberdade religiosa” e “luta pelos direitos culturais” é

íntima, uma vez que a primeira, no momento em que exige total liberdade de

associação, transmissão de doutrina religiosa e exercício de seu culto, dá à segunda

bons argumentos para que seja exigido, igualmente, respeito à sua forma de vida e

direito de reprodução do próprio idioma, por exemplo. Além disso, tanto a religião

como as tradições lingüísticas e culturais têm uma influência decisiva na

autocompreensão ética de cada membro da comunidade. Essa influência marca

profundamente a formação da identidade individual das pessoas detentores de

direitos, que se completa com a socialização. Os indivíduos socializados, portanto,

formam suas identidades dentro de uma rede de relações de reconhecimento

recíproco, modificando assim o conceito dogmático de “pessoa detentora de

direitos”. Esta mudança conceitual de “pessoa detentora de direitos” tem por

conseqüência a ampliação intersubjetiva do próprio conceito, até o momento tecido

de forma excessivamente abstrata (HABERMAS, 2006, p. 273).

É preciso ficar claro que os direitos culturais não significam mais um “plus de

diferença” ou um “plus de autonomia”. (HABERMAS, 2006, p. 273) Os grupos

discriminados devem, eles próprios, lutar pelo reconhecimento, que não vem

“gratuitamente”. Não basta, portanto, que alguns direitos intersubjetivos sejam

concedidos. No caso da luta pela equiparação de gêneros, é apenas com a

participação dos envolvidos, neste caso as mulheres, nas discussões públicas sob

os aspectos relevantes para a consecução desse direito que o Estado assegurará, a

cidadãos iguais, sua autonomia privada.

No caso das culturas minoritárias que possuem uma tradição mais forte e,

conseqüentemente, um ethos que interfere com mais vigor nos ideais de vida boa de

seus membros, a possibilidade de haver concorrência com outras culturas cresce

substancialmente. É exatamente esse fenômeno que ocorre no âmbito das disputas

religiosas. Assim, para a solução desses conflitos (religiosos e culturais) é

fundamental que essas comunidades possuam um nexo em seu ethos que respeite

os direitos humanos e a liberdade política.

56 Seria como se um Estado, por exemplo, proibisse os índios de usarem roupas ou de falarem uma língua não nativa, sob o argumento de que estes perderiam sua tradição.

72

A solução dos conflitos religiosos serve de exemplo de como é possível,

numa sociedade cada vez mais pluralista e com incontáveis visões de mundo,

solucionar os conflitos culturais. Pois a tolerância – que exige respeito recíproco ao

outro – é fundamental para um pluralismo saudável que não seja simplesmente

“imposto” pelo Estado, mas que seja sempre uma via de mão dupla na qual, ao

mesmo tempo que afirma a identidade cultural de uma minoria, não a isola da

comunidade. Para tanto, é imprescindível que todos, grupos minoritários e

majoritários, se vejam como cidadãos de iguais direitos de uma mesma comunidade

política. É a integração dos cidadãos do Estado que assegura a lealdade desses em

relação a uma cultura política comum. Essa cultura política está radicada em uma

interpretação dos princípios constitucionais assumidos e cumpridos por cada nação

estatal – de forma que o contexto histórico de cada cultura tem, ao contrário do que

é afirmado pelos comunitaristas, grande relevância – tornando difícil, portanto, a

neutralidade ética do Estado. Na verdade, os cidadãos possuem um “horizonte de

interpretação” no qual os princípios são interpretados e dentro do qual,

publicamente, são discutidos desejos e preferências, refletindo acerca da

autocompreensão dos cidadãos da república. (HABERMAS, 2004, p. 262) Os

direitos e princípios fundamentais é que, diz Habermas (2004), “constituem o sólido

ponto de referência para cada patriotismo constitucional que situe o sistema de

direitos no contexto histórico de uma comunidade jurídica” (p. 262). O patriotismo

constitucional57 serve como pano de fundo que manterá coesa a associação de

pessoas livres e iguais, que devem preservar, consciente e racionalmente, aqueles

mesmo direitos e princípios fundamentais.

57 Segundo Cattoni, o patriotismo constitucional, para Habermas, “envolve justamente a construção de uma cultura ético-política pluralista com base na Constituição democrática de uma república de cidadãos livres e iguais, é expressão de uma forma de integração social, que se dá, pois, através da construção dessa identidade política pluralista e aberta, que pode ser sustentada por formas de vida e identidades ético-culturais diversas e mesmo divergentes, que convivem entre si, desde que adotem uma postura não fundamentalista de respeito recíproco umas com as outras.” (CATTONI, 2006b, p. 625)

73

3.7 Breves considerações

Foi mostrado neste capítulo como a diferença entre tolerância é importante

caso desejemos uma sociedade na qual os cidadãos se tratem com respeito

recíproco. O fato de simplesmente haver “tolerância” – aqui entendida como aquele

ato indulgente de se suportar algo ou alguém – não é suficiente para alcançarmos

uma plena liberdade entre os indivíduos que permitiria o pluralismo numa sociedade

composta por pessoas tão diferentes.

Foi importante destacar que tolerância e preconceito são incompatíveis. Não há que

se falar em tolerância em discursos que se valem de argumentos preconceituosos

que tacham negativamente indivíduos pertencentes a outros minoritários. Assim,

encontramos subsídios que nos capacitam a censurar decisões que, no afã de

prestar uma “homenagem” à liberdade e à tolerância, acabam por negligenciar

condutas criminosas.

Finalizando o presente capítulo, cabe assinalar que a discussão trazida à

baila tem como propósito possibilitar a retomada, no próximo capítulo, do tema

principal desse trabalho, qual seja, verificar se a decisão do Habeas Corpus 82.424-

2 fornece, de fato, bases que possibilitam o reconhecimento do pluralismo, o que só

acontecerá se os direitos subjetivos forem interpretados de intersubjetivamente.

74

4. POR UMA SUPERAÇÃO DO TRATO PATERNALISTA DO STF EM RELAÇÃO

AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Quem quer que se atreva a liquidar os dissidentes está possuído da ilusão de ser o detentor do monopólio do divino...

(Rubem Alves)

4.1 Introdução

No capítulo 2, ao analisarmos os votos dos Ministros do Supremo Tribunal

Federal no julgamento do Habeas Corpus 82.424-2, levantamos duas questões: a

primeira, sobre qual é o conceito de liberdade de expressão e dignidade da pessoa

construída nesse HC; e a segunda, sobre se esses conceitos não seriam

paternalistas ou complacentes.

A primeira pergunta foi respondida no próprio capítulo, no qual concluímos

que, no julgamento do Habeas Corpus citado, foram construídos não um, mas dois

conceitos distintos de liberdade de expressão. O primeiro conceito foi observado no

voto da maioria dos ministros que discutiram o problema da aparente colisão entre

direitos fundamentais, liberdade de expressão e dignidade da pessoa. São eles:

Ministro Maurício Corrêa (relator), Ministro Celso de Mello, Ministro Gilmar Mendes,

Ministro Carlos Velloso, Ministro Nelson Jobim, Ministro Cezar Peluso e Ministro

Sepúlvida Pertence.58

O segundo, presente no voto do Ministro Marco Aurélio, difere-se do primeiro

na importância que foi dada a cada direito fundamental.59 É interessante notar que o

voto do Ministro Gilmar Mendes – que denegou o Habeas Corpus – foi construído,

metodologicamente, de forma idêntica ao do Ministro Marco Aurélio. O voto do

Ministro Carlos Britto, que, ao invés de conceder o Habeas Corpus no sentido de

decretar a prescrita a pretensão punitiva – conforme requerido pelo impetrante –

58 A ministra Ellen Gracie, embora tendo votado junto com os Ministros que denegaram a concessão do HC, não se enveredou na discussão entre o conflito aparente de liberdade de expressão e dignidade da pessoa. 59 Enquanto no primeiro a dignidade da pessoa foi considera como o direito fundamental mais importante, no segundo esse lugar foi ocupado pela liberdade de expressão.

75

decidiu pela absolvição ex officio do paciente por entender que sua conduta não

constitui crime, mas sim exercício do direito de liberdade de expressão, tem

semelhanças importantes com o voto do ministro Marco Aurélio.

Antes de respondermos a segunda questão, foi necessário apresentar, como

marco teórico do trabalho, as idéias de Habermas (2006) acerca da tolerância

religiosa como modelo para se alcançar o respeito ao direitos fundamentais. Vimos o

risco que corre todo Estado Constitucional, ao tratar do problema da tolerância, de

ele mesmo incorrer numa decisão autoritária ou complacente.

4.2 As concepções de dignidade da pessoa e liberdade de expressão

construídas pelo Supremo Tribunal Federal

4.2.1 A primeira concepção de dignidade da pessoa e liberdade de expressão

(extraída dos votos da maioria dos Ministros que votaram pela denegação do

habeas corpus)

Em um caso de alta complexidade, talvez o mais importante da década60, com

contornos que certamente influenciariam o direito nacional e até mesmo o direito

internacional, uma questão é crucial: qual é o papel do julgador em um caso como o

HC 82.424-2, que aparentemente coloca em colisão dois direitos61? O próprio o

relator do acórdão, Ministro Maurício Corrêa62, responde:

60 Nas palavras do Ministro Marco Aurélio “... a questão, por mim reputada como uma das mais importantes se não a mais importante – apreciada por este colegiado nos últimos treze anos...” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 169) 61 Veremos que a colisão só ocorre se pensarmos a dignidade humana e a liberdade de expressão como valores, e não como normas (princípios). Isso porque o direito, se pensado em um sistema deontológico, adquire um código binário – é direito, não é direito – impossibilitando o paradoxo de um direito ser causa de ofensa de outro direito. 62 No mesmo sentido votou o Ministro Carlos Velloso, para quem “... se se tem conflito aparente de direitos fundamentais, a questão se resolve pela prevalência do direito que melhor realiza o sistema de proteção dos direitos e garantias inscrito na Lei Maior.” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 82)

76

cumpre ao juiz, como elementar, nesses casos, suprir a vaguidade da regra jurídica, buscando o significado das palavras nos valores sociais, éticos, morais e dos costumes da sociedade, observado o contexto e o momento histórico de sua incidência. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 41)

Essa definição é paradigmática. Esse papel, aceito pelos Ministros, mostra a

importância que os mesmos atribuem ao “fim” almejado pela constituição. Esse “fim”,

como a própria sentença destacada indica, é satisfeito quando a decisão entra em

harmonia com os valores sociais, éticos, morais e dos costumes da sociedade.

Ora, uma decisão nesses termos considera que a sociedade, toda ela,

comunga os mesmos pontos de vistas, que compartilha dos mesmos costumes e

que possui as mesmas visões de mundo. Ou seja, a sociedade aqui é vista como

uma unidade, como um grupo que compartilha os mesmos ideais de vida boa.

Assim, ocorre uma eticização na vida privada dos cidadãos, sobrepondo a

autonomia pública sobre a autonomia privada. O problema numa concepção

pensada nesses moldes é que ela certamente não leva em consideração o

pluralismo nem a presença de grupos minoritários que pensam de forma distinta da

maioria.

A longa discussão travada entre os Ministros do STF acerca da

imprescritibilidade do crime de racismo – seria a “vontade do legislador” tornar a

discriminação contra os judeus imprescritível ou ela deveria se limitar a

discriminação contra a raça negra? – mostra o intuito em se buscar uma “vontade”

constitucional.63

O argumento da “vontade” dos constituintes, utilizado por vários Ministros64,

só teria sentido caso os magistrados entendessem que a Constituição revela uma

auto-compreensão ética da comunidade; os valores defendidos pela Constituição

63 E nesse intuito alguns Ministros utilizaram uma risível tese de testemunho. Tanto o Ministro Maurício Corrêa, como o Ministro Nelson Jobim “testemunharam” – uma vez que eram constituintes e estavam presentes nos debates – que era o desejo não só do deputado Caó, autor da emenda que tornou o racismo imprescritível, mas de todos os outros constituintes que a imprescritibilidade alcançasse outros grupos além dos negros. “A propósito, julgo presente registrar que a distinguida referência aos negros nos debates sobre o tema na Assembléia Constituinte decorreu da natural dívida da sociedade nacional para com a comunidade negra. Essa constatação empolgou à ocasião as discussões, sem contudo perder o sentido de que a abrangência da inovação na Carta não se reservaria tão-só aos negros, mas também, tinha horizontes mais amplos. Por isso, a simpatia que contagiou os constituintes por sua aprovação, como para tanto posso dar o meu testemunho e invoco, se me permite, o do Ministro Nelson Jobim, nós ambos constituintes, tendo a Emenda Aditiva 645, que cuidou do tema, em sua votação de 3 de fevereiro de 1988, recebido 521 votos a favor, uma abstenção e apenas 3 contra.” p. 42) 64 Como exemplos temos os Ministros Moreira Alves, Maurício Corrêa, Nelson Jobim, Marco Aurélio de Mello.

77

seriam, portanto, os valores da maioria da população. A tese defende uma idéia de

que é a Constituição que determina os rumos éticos que a sociedade deve seguir e,

em casos como o HC 82.424-2, deveria o juiz apropriar-se do sentido originário do

texto constitucional para decidir.

Essa visão de “resgate” do texto constitucional lembra – embora sem o

mesmo radicalismo – as idéias de Michael J. Perry, para o qual, segundo Habermas

(2005), interpreta os direitos fundamentais de forma a

convertê-los de princípios deontológicos a bens jurídicos teleológicos que constituiriam uma ordem objetiva de valores que ligaria a justiça, bem como o legislador, à eticidade substancial de uma determinada forma de vida. (HABERMAS, 2005, p. 331-332)

A decisão – e aqui não estamos discutindo se o habeas corpos deveria ser

concedido ou não – trabalha com base numa visão cultural majoritária que

desconsidera os costumes e tradições da minoria da população, desconsiderando a

noção de democracia pluralista. Quando a decisão visa resgatar os “valores morais

e éticos” da sociedade ela desconsidera que, no caso da sociedade brasileira, como

em toda democracia, não existe um só “costume”, mas vários. Essas formas de vida

não precisam compartilhar os mesmos valores éticos e culturais para conviverem

pacificamente; além disso, como vimos no Capítulo 2, os direitos religiosos são um

ótimo exemplo de como o respeito mútuo entre os fiéis de várias não pode ser

imposto pelo Estado.

A interpretação da Constituição feita pelo Supremo Tribunal Federal no HC

82.424 é típica da tradição republicana, pois

pressupõe uma concepção política segundo a qual a Constituição, enquanto expressão da autonomia política do povo signatário de um pacto fundamental, reflete uma ordem concreta de valores, que materializa a identidade ético-cultural, de uma sociedade política que se quer homogênea...” (CATTONI, 2006a, p. 97)

O direito à dignidade da pessoa e liberdade de expressão, nesse caso,

ganham dimensões típicas do comunitarismo, já que deveriam ser exercidos – ou

protegidos – de forma que eles possam construir uma comunidade que compartilhe

os mesmos ideais ou as mesmas concepções de vida.

A concepção de cidadania construída nos votos desses Ministros é, também,

típica do republicanismo, já que a igualdade – indispensável para a participação

78

política de todos os integrantes da comunidade – é preferível à liberdade de

expressão. A cidadania não é determinada, portanto, pelos direitos negativos65, ou

seja pela “possibilidade de participação política comum pelo qual os cidadãos, na

construção de uma comunidade ética-política comum, reconhecem-se como co-

associados livres e iguais.” (CATTONI, 2006a, p. 93) A igualdade, portanto, é

imprescindível para o exercício da política e conseqüentemente para a união da

comunidade em busca de um mesmo fim ou na busca pela realização do mesmo

bem, sendo, portanto, superiora à liberdade.66

O problema, como dito, é que a pluralismo – que caracteriza as sociedades

modernas e democráticas – é ameaçado, pois o comunitarismo

tende a conceber a comunidade de modo a dispensar a existência dos indivíduos enquanto indivíduos, sendo uma perspectiva totalizadora e homogeneizadora que diluiria o indivíduo na própria comunidade. (GALUPPO, 2004, p. 346)

A Constituição é compreendida, segundo o voto da maioria, como

a consubstanciação axiológica concreta da identidade ética e da auto-organização total de uma sociedade política, verdadeira ‘medida material da sociedade’ ou ordem fundamental jurídica da sociedade.’”67 (CATTONI, 2006, p. 96)

Ora, a pretensão do STF de impor as suas convicções do que seria uma vida

boa e, ainda, de que a concepção de dignidade da pessoa deve enquadrar-se nos

fins almejados pela comunidade ético-politíca já fornece uma boa base para a

resposta da pergunta que permeia todo o capítulo: seria a construção de liberdade

de expressão e dignidade da pessoa adequadas ao Estado democrático de direito?

A resposta é não. Não é adequada uma vez que a decisão mostra-se paternalista.

Tal visão da Constituição Federal impede a inclusão simétrica de todos os

cidadãos, cujo reconhecimento geral tem de ser pressuposto, pois do contrário a

tolerância não será corretamente institucionalizada nas pessoas que pensam de

modo diferente da maioria.

Ao decidir de forma harmônica com “os supremos valores da comunidade” o

Supremo Tribunal Federal desconsiderou o pluralismo cultural, político e social

65 Liberdade de fazer algo ou liberdade diante de algo. 66 Conforme Galuppo (2004). 67 Cattoni (2006c) está citando o constitucionalista Konrad Hesse. (p. 96)

79

inerentes a todo Estado Democrático de Direito, incidindo no erro alertado por

Habermas (2006), qual seja, o do Estado Constitucional recair culposamente numa

prática que, de forma autoritária e unilateral, determinaria os limites da tolerância.

Como bem diz Habermas,

a almejada equiparação de situações de vida e posições de poder não pode levar a um tipo de intervenções “normalizadoras” que acabem por limitar o espaço de atuação de seus prováveis beneficiários, no que se refere à concepção autônoma dos projetos de vida de cada um deles. (HABERMAS, 2004, p. 302-303)

A idéia de uma Constituição que expressa a vontade da comunidade e que

deve realizar os fins éticos-políticos tidos como os melhores per ela mesma é

acentuada pela opção metodológica para a fundamentação de seus votos: a

ponderação de valores68. Nesse caso, ao optarem proteger um bem em detrimento

do outro69 – dignidade da pessoa prevalecendo sobre liberdade de expressão – os

Ministros demonstram compartilhar da idéia de que a Constituição Federal busca

concretizar os valores que a sociedade julga mais adequados e que para tanto a

ferramenta mais adequada seria a “ponderação de valores”70 junto com um juízo que

respeitasse o “princípio da proporcionalidade”71. Antes de adentrarmos nos

problemas oriundos de uma “jurisprudência dos valores”, é fundamental

distinguirmos os discursos de justificação e de aplicação.

68 Afirma o Ministro Maurício Corrêa: “E nesses casos há necessidade de proceder-se a uma ponderação jurídico-constitucional, a fim de que se tutele o direito prevalente. Cabe ao intérprete harmonizar os bens jurídicos em oposição, como forma de garantir o verdadeiro significado da norma e a conformação simétrica da Constituição, para que se possa operar a chamada ‘concordância prática’, a que se refere a doutrina.” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, 69 Pois, na ponderação de valor, as relações são de ordem de preferência, ou seja “determinados bens são mais atrativos que outros.” (HABERMAS, 2005, p. 328) 70 Para o Ministro Celso de Mello: “Isso significa, em um contexto de liberdades aparentemente em conflito, que a colisão dele resultante há de ser equacionada, utilizando-se, esta Corte, do método - que é apropriado e racional - da ponderação de bens e valores, de tal forma que a existência de interesse público na revelação e no esclarecimento da verdade, em torno de supostas ilicitudes penais praticadas por qualquer pessoa basta, por si só, para atribuir, ao Estado, o dever de atuar na defesa de postulados essenciais, como o são aqueles que proclamam a dignidade da pessoa humana e a permanente hostilidade contra qualquer comportamento que possa gerar o desrespeito à alteridade, com inaceitável ofensa aos valores da igualdade e da tolerância, especialmente quando as condutas desviantes culminem por fazer instaurar tratamentos discriminatórios fundados em ódios raciais.” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 59) 71 Segundo o Ministro Gilmar Mendes: “É verdade, ainda que a resposta possa ser positiva, como no caso parece ser, que a tipificação de manifestações discriminatórias, como racismo, há de se fazer com base em um juízo de proporcionalidade. O próprio caráter aberto - diria inevitavelmente aberto - da definição do tipo, na espécie, e a tensão dialética que se coloca em face da liberdade de expressão impõem a aplicação do princípio da proporcionalidade.” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 69)

80

No HC 82.424-2 percebemos claramente que não há uma diferenciação entre

os discursos de justificação – que se referem à validade das normas – e de

aplicação – atinente à adequabilidade de normas válidas a um caso concreto.

O discurso de justificação jurídico-normativa é construído

com o aporte de razões e formas de argumentação de um amplo espectro (morais, éticas e pragmáticas) através das condições de institucionalização de um processo legislativo estruturado constitucionalmente, à luz do princípio democrático72. (CATTONI, 2002, p. 85).

Os discursos de aplicação, por sua vez, dizem respeito, como o próprio nome

indica, à aplicação de normas legítimas a um caso concreto, sempre único e

irrepetível. Todas as normas válidas são, de início, aplicáveis prima facie.73 Assim,

em um caso concreto, é necessário ingressar em um discurso de aplicação para se

verificar se as normas encontrarão aplicação numa situação que não foi prevista no

discurso de justificação ou se alguma norma, mesmo validade, deverá dar lugar a

outra mais adequada. (CATTONI, 2002, p. 86) Em discurso de aplicação, diz

Habermas (2005) “não se trata da validade, mas sim da relação adequada da norma

a ou com uma situação concreta.” (p. 288)

Uma vez que, como dito, uma norma não consegue abranger todos os

aspectos característicos de um caso concreto, deve-se examinar quais descrições

de estados de coisas são importantes para a interpretação de um caso controverso

para que se possa optar, racionalmente, entre quais normas válidas prima facie74são

adequadas ao caso. Cabe ao juiz, portanto, desenvolver um senso de

adequabilidade; somente assim, entre tantas normas válidas, ele poderá aplicar as

mais adequadas à situação. Esse “argumento de adequabilidade” diferencia-se, e

muito, da “ponderação de comandos otimizáveis”75, típico da Teoria de Valores.

72 “Somente podem pretender validade legítima as normas jurídicas que em um processo discursivo de produção de normas jurídicas, articulado por sua vez juridicamente, podem encontrar o consenso de todos os membros da comunidade jurídica. Em outras palavras, o princípio democrático explica o sentido performativo da prática de autodeterminação dos membros de uma comunidade jurídica que se reconhecem uns aos outros como membros livres e iguais de uma associação na qual participam livremente.” (HABERMAS, 2005, p. 175) 73 “... exceto algumas normas cujas cláusulas especificam em tal nível de detalhe as condições de aplicação que só podem aplicar a poucas situações-padrão altamente tipificadas e bem-circunscritas (as regras, para usar um conceito de Ronald Dworkin)...” (CATTONI, 2002, p. 86) 74 Norma válida prima facie significa que ela foi “justificada com imparcialidade.” (HABERMAS, 2005, p. 288) 75 Conforme Alexy (2002).

81

A diferenciação entre uma “doutrina de ordem de valores” (HABERMAS,

2005, p. 326), que possui um sentido teleológico, e um sistema baseado em

princípios e normas mais elevadas e que justificam outras normas, possuindo,

portanto, um sentido deontológico, é fundamental nesse trabalho. Embora essa

questão de ordem metodológica não seja o ponto principal dessa pesquisa, ela é

importante porque fundamenta duas das três concepções de liberdade de expressão

construídas pelo Supremo Tribunal Federal no HC 82.424-2. Nossa intenção ao

mostrarmos os votos de alguns Ministros76 fundamentados na “doutrina de ordem de

valores” é apontar como que eles transformam a Constituição numa ordem concreta

de valores. Nesse caso, caberia ao Supremo determinar, sem a participação da

sociedade política, quais são os direitos que a Constituição deve proteger, e ainda,

quais direitos são “mais importantes”.

Primeiro, uma diferenciação: normas válidas, diz Habermas (2005), “obrigam

seus destinatários, sem exceção e igualmente, a praticar um comportamento que

cumpre expectativas generalizadas.” (p. 328) Elas se apresentam com uma

pretensão binária de validade: oi são válidas, ou não são válidas. Os valores, por

sua vez, “expressam a preferência de bens que, para determinadas coletividades,

são considerados mais desejáveis e que podem ser adquiridos ou realizados

mediante uma ação endereçada a esse fim.” (HABERMAS, 2005, p. 328) Assim,

certos bens são mais desejáveis do que outros, sendo que a adesão a alguma

proposição valorativa poderá ser maior ou menor dependendo do fim que se

pretende alcançar.

Além disso, a teoria dos valores não é universalizável, pois a “preferência”

varia de qual grupo ela está sendo exercitada: “decisões valorativas decisivas ou

preferências de ordem superior dizem o que, consideradas as coisas em conjunto,

são melhores para nós (ou para mim).” (HABERMAS, 2005, p. 328) A validade

deontológica das normas, por sua vez, são universalizáveis e incondicionalmente

obrigatórias, na medida em que “o que deve ser pretende ser bom para todos por

igual.” (HABERMAS, 2005, p. 328)

Normas e valores distinguem-se, principalmente, em quatro pontos:

Em primeiro lugar, pela suas respectivas referências ao agir deontológico, ou seja, a ação obrigatória, e a ação teleológica – direcionada a um fim; em

76 Principalmente os Ministros Gilmar Mendes e Marco Aurélio de Mello.

82

segundo lugar, pela codificação binária [normas] e gradual [valores] de sua pretensão de validez; em terceiro lugar, pelo caráter vinculante e absoluto no caso das normas e relativo, no caso dos valores; em quarto lugar, pelos critérios que têm que satisfazer os sistemas de normas, por um lado, e os sistemas de valores, por outro. Por se distinguirem nestas propriedades lógicas, as normas e valores não são aplicadas da mesma maneira. (HABERMAS, 2005, 328-329)

Uma decisão judicial pode ser orientada tanto por um sistema de normas

quanto por um de valores. No primeiro caso, dado um caso concreto, procura-se

responder o que deve ser feito. No segundo, responde-se o que é preferível. Assim,

mesmo que ambos os casos se preocupem na busca do que é “correto”, o sentido

de “correto” é bem distinto para os dois casos. Em um sistema de normas, “correto”

é o que é bom para todos. Já no sistema de valores, “correto” é o comportamento

que, ao final, se mostre o melhor para nós – uma certa cultura ou forma de vida.

(HABERMAS, 2005, p. 329)

Tal visão da Constituição Federal impede a inclusão simétrica de todos os

cidadãos, cujo reconhecimento geral tem de ser pressuposto, pois do contrário a

tolerância não será corretamente institucionalizada nas pessoas que pensam de

modo diferente da maioria.

Ao decidir de forma harmônica com “os supremos valores da comunidade” o

Supremo Tribunal Federal desconsiderou o pluralismo cultural, político e social

inerentes a todo Estado Democrático de Direito, incidindo no erro alertado por

Habermas (2006), qual seja, o do Estado Constitucional recair culposamente numa

prática que, de forma autoritária e unilateral, determinaria os limites da tolerância.

4.2.2 A segunda concepção de dignidade da pessoa e liberdade de expressão

(extraída dos votos do Ministro Marco Aurélio de Mello e Carlos Britto)

Uma segunda concepção de liberdade de expressão e dignidade da pessoa

pode ser extraída do voto do Ministro Marco Aurélio que, como já mostrado,

concedeu o Habeas Corpus determinando a prescrição punitiva do delito. Marco

83

Aurélio foi o Ministro que mais se preocupou com a “colisão” de princípios, e prova

disso que é que o tema é abordado em praticamente todo o seu voto.77

O problema de uma fundamentação baseada na teoria da ponderação de

valores, que possibilita a indigitada “colisão de princípios”, já foi explicitada acima,

sendo que o voto do Ministro Marco Aurélio incidiu no mesmo erro metodológico.

É interessante observar – e isso corrobora o problema apontado no uso da

ponderação de valores – que tanto o Ministro Marco Aurélio, que concede o Habeas

Corpus, quanto o Ministro Gilmar Mendes, que o nega, utilizam o mesmo método

para decidir qual direito deve prevalecer: a dignidade da pessoa ou a liberdade de

expressão? Mesmo utilizando o mesmo método, cada um chega a uma conclusão

distinta, o que comprova como a ponderação de valores é ineficaz na construção de

uma decisão racional.

O problema do raciocínio de ponderação, como dito, é que ele permite que se

entenda que uma conduta pode ser considerada meio lícita, meio ilícita, ou seja, é

garantida pelo direito à liberdade de expressão mas proibida em face do princípio da

dignidade humana: qual prevalecerá vai depender somente do cálculo de

proporcionalidade por parte do julgador.

Por isso a assertiva de Habermas (2005):

Ao deixar-se guiar pela idéia da realização de valores materiais, dados preliminarmente no direito constitucional, o tribunal constitucional transforma-se numa instância autoritária. No caso de uma colisão, todas as razões podem assumir o caráter de argumentos de colocação de fins, o que faz ruir a viga mestra introduzida no discurso jurídico pela compreensão deontológica de normas e princípios de direito introduzidos no discurso jurídico. (HABERMAS, 2005, p. 332)

E conclui: Na medida em que um tribunal constitucional adota a

“teoria dos valores” ou “teoria da ordem de valores” e a coloca como base para a tomada de decisão, cresce o perigo dos juízos irracionais, porque, nesse caso, os argumentos funcionalistas prevalecem sobre os normativos.” (HABERMAS, 2005, p. 332)

77 Diversamente dos outros Ministros que se preocuparam – em maior ou menor grau – com a conceituação do termo “racismo” e com a abrangência da cláusula de imprescritibilidade presente no art. 5º, XLII, da CF.

84

O problema na argumentação do Ministro Gilmar Mendes, bem como na

argumentação do Ministro Marco Aurélio é a discussão, de forma abstrata, sobre a

“colisão” de valores. Em um caso concreto, a argumentação deveria se ater ao caso

concreto e não se afastar, como no HC 82.424-2. Para Cattoni (2007):

A questão, no Caso Ellwanger, não deveria ter sido compreendida como uma colisão entre valores, em que se julga se a liberdade de expressão é melhor ou pior do que, ou para, a promoção da dignidade humana; mas sim julgar se houve, afinal, em face do caso concreto, crime de racismo ou não, à luz das pretensões normativas, defendidas na argumentação sustentada pelos envolvidos, e que poderiam ser reputadas abusivas ou não. (p. 119)

Em seu voto, a primeira característica que se destaca é que o caso concreto é

abandonado – o cometimento ou não do crime de racismo pelo paciente – e o

Ministro passa a teorizar, abstrativamente, sobre a importância da liberdade de

expressão para a democracia.

Sua preferência pela liberdade de expressão é clara, podendo ser percebida

logo no início do voto:

A censura, em suas diversas formas - direta ou indireta, prévia ou posterior, administrativa ou judicial -, tem merecido, no correr dos anos, a preocupação e o repúdio dos povos. Em 1695, na Inglaterra, deixou-se de ratificar texto - Licensing Act - que dispunha sobre a censura prévia. Na Declaração de Direitos de Virgínia - em 1776 -, proclamou-se que “a liberdade de imprensa é um dos grandes baluartes da liberdade e não pode ser restringida jamais, a não ser por governos despóticos” - artigo 12. A Constituição Americana de 1787, via Emenda nº 1, previu que “o Congresso não legislará no sentido de estabelecer uma religião, ou proibindo o livre exercício dos cultos; ou cerceando a liberdade de palavra ou de imprensa, ou o direito do povo de se reunir pacificamente, e dirigir ao Governo petições para a reparação de seus agravos”. Na França, em 1789, com a Declaração dos Direitos do Homem, mais uma vez reiterou-se que “a livre manifestação do pensamento e das opiniões é um dos direitos mais preciosos: todo cidadão pode, portanto, falar, escrever e imprimir livremente, à exceção do abuso dessa liberdade, pelo qual deverá responder nos casos determinados em lei” - artigo 11. O pós-guerra - 1948 - fez surgir a Organização das Nações Unidas, vindo-nos a Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”. Em 1950, em Roma, no Convênio Europeu para a proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, ressaltaram-se aspectos a serem considerados, tais como a liberdade de expressão, o recebimento e a comunicação de informações e o afastamento da ingerência de autoridades públicas. Mais recentemente, via o Pacto de São José da Costa Rica, com a Convenção Americana de Direitos Humanos, selou-se: “Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Este direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e idéias de toda índole, sem consideração de fronteiras”. Eis as normas matrizes internacionais do

85

direito fundamental em questão. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 169)

Esse trecho mostra dois pontos importantes: o primeiro, como já foi dito, a

importância da liberdade de expressão e; segundo, a as citações de vários tratados

e declarações, alguns escritos sob clara influência do pensamento liberal e outros,

contemporâneos, mas que, pelos artigos citados, protegem, obviamente, a liberdade

individual.78

A leitura que o Ministro faz da Constituição Federal é típica do liberalismo,

uma vez que privilegia a autonomia privada em detrimento da autonomia pública. A

liberdade de expressão, portanto, é superior à dignidade da pessoa pois, sem ela, o

próprio princípio democrático ruiria.79 Essa concepção vai ao encontro do

liberalismo, para o qual o status de cidadão

é fundamentalmente determinado por direitos negativos perante o Estado e em face dos outros cidadãos. Como titulares desses direitos, eles gozam da proteção estatal à medida que buscam realizar seus interesses privados nos limites estabelecidos pela lei, e isso inclui a proteção contra intervenções estatais. Direitos políticos, como o direito ao voto ou à liberdade de expressão, não têm apenas a mesma estrutura, mas também um significado semelhante enquanto civis que fornecem um espaço no qual questões pragmáticas, através de um agir estratégico funcionalmente regulado, tornam-se livres de coação externa, fundando um processo político moldado no funcionamento do mercado. (CATTONI, 2006a, p. 92)

Mas seria esta concepção da liberdade de expressão adequada ao estado

democrático de direito? Entendemos, mais uma vez, que não.

78 Para Lafer (2005) a escolha dos artigos citados foi “seletiva”, uma vez que o Ministro desconsidera, ou ignora, por exemplo, a Convenção pela Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (1965) e, mesmo citando o parágrafo primeiro do artigo 13 do Pacto de São José: “art. 13. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Parágrafo 1º Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e idéias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha”; mas se esquece de citar o parágrafo segundo: “O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei a ser necessárias para assegurar: a) o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas; ou b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas.” (p. 108-111) 79 “Pode-se concluir que os direitos fundamentais localizam-se na estrutura de sustento e de eficácia do princípio democrático. Nesse contexto, o específico direito fundamental da liberdade de expressão exerce um papel de extrema relevância, insuplantável, em suas mais variadas facetas: direito de discurso, direito de opinião, direito de imprensa, direito à informação e a proibição da censura. É por meio desse direito que ocorre a participação democrática, a possibilidade de as mais diferentes e inusitadas opiniões serem externadas de forma aberta, sem o receio de, com isso, contrariar-se a opinião do próprio Estado ou mesmo a opinião majoritária. E é assim que se constrói uma sociedade livre e plural, com diversas correntes de idéias, ideologias, pensamentos e opiniões políticas.” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 172)

86

Para o Ministro Marco Aurélio,

O Estado mostra-se democrático quando aceita e tolera, no próprio território, as mais diferentes expressões do pensamento, especialmente aquelas opiniões que criticam sua estrutura, seu funcionamento e o pensamento majoritário. A tolerância política é imprescindível para regular as relações entre as maiorias e as minorias e para servir de princípio regente das relações entre as ideologias e grupos políticos divergentes. A partir da proteção ao pensamento minoritário é que a liberdade se apresenta como um típico direito fundamental de defesa, que alberga em sua essência um espaço imune a restrições de qualquer tipo, sejam estas impostas pelo Executivo, Legislativo ou Judiciário. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2004, p. 175)

O Ministro parte de uma concepção equivocada da tolerância: não há

distinção, em seu voto, de pensamento minoritário divergente com pensamento

fundamentalista e preconceituoso. Todas as formas de vida, sejam elas minoritárias

ou majoritárias, fazem parte de uma sociedade democrática. E dentro da

democracia, é possível encontrarmos os inimigos do Estado constitucional, sejam

eles na figura do religioso fundamentalista que combate as formas de vida

modernas, seja na figura secularizada de um político extremista que combate o

próprio Estado.

Quando uma democracia se depara com esses “inimigos” ela tem que ser, de

fato, intolerante com os mesmos, pois caso contrário poderia ocorrer a própria

dissolução do estado democrático. Tolerância, como mostramos, não significa

indulgência. Também não significa inércia. Seu sentido, na verdade, relaciona-se

sempre com o respeito recíproco que todos os cidadãos devem ter uns com os

outros.

Como o Estado constitucional poderá coibir a atuação desses “inimigos”?

Deverá utilizar, para tanto, os “instrumentos do direito penal político ou as

disposições relativas a proibição dos partidos políticos (art. 21.2 da Lei Fundamental

alemã) e a perda dos direitos fundamentais (art. 18 e 9.2 da Lei Fundamental

alemã).” (Habermas, 2006, 258-259) Ou seja, a própria Constituição, com o apoio de

leis infra-constitucionais, coibirá a atuação desses grupos.

O fundamentalismo é incompatível com o Estado de direito, uma vez que este

reivindica para si a posse exclusiva da verdade, não estando aberto para outras

formas de vida nem de outros valores. As visões de mundo fundamentalistas não

possibilitam o diálogo com outras culturas; na verdade, nem mesmo os integrantes

de uma mesma comunidade discursiva podem refletir acerca de sua relação com o

87

outro e, ainda, torna desnecessária as justificações racionais, descambando em um

dogmatismo cego e perigoso.

Essas concepções fundamentalistas são incompatíveis com o paradigma do

Estado democrático de direito, o qual só admite visões de mundo tolerantes que

possam coexistir com as mais diversas convicções, sendo que a coexistência

eqüitativa dessas formas de vida

exige o reconhecimento recíproco das diversas condições culturais de concernência ao grupo: também é preciso reconhecer cada pessoa como membro de uma comunidade integrada em torno de outra concepção diversa do que seja o bem, segundo cada caso em particular. A integração ética de grupos e subculturas com cada uma das identidades coletivas próprias precisa ser desacoplada do plano de uma integração política abstrata, que apreende os cidadãos do Estado de maneira eqüitativa. (HABERMAS, 2004, p. 261)

4.3 Como proteger os direitos individuais sem paternalismo?

Vimos no Capítulo 3 que a solução dos conflitos religiosos serve de modelo

de como é possível, numa sociedade cada vez mais pluralista e com incontáveis

visões de mundo, solucionar os conflitos sociais. É fundamental, ainda, que a

tolerância – que exige respeito recíproco ao outro –, indispensável numa sociedade

pluralista, não seja simplesmente “imposta” pelo Estado, mas que seja sempre uma

via de mão dupla na qual, ao mesmo tempo que afirma a identidade cultural de uma

minoria, não a isola da comunidade. Propomos, então, duas maneiras

complementares de se evitar o paternalismo decisório no trado dos direitos

fundamentais.

4.3.1 A discussão entre política de reconhecimento e luta por reconhecimento

Como decidir de forma não paternalista nem complacente em casos de

discriminação de minorias? A resposta dada por Habermas (2004), a qual julgamos

88

mais adequada, é a de que é necessário promover o reconhecimento dos grupos

discriminados.

Habermas parte da declaração de Amy Gutmann, que afirma:

O reconhecimento público pleno conta com duas formas de respeito: 1) o respeito pela identidade inconfundível de cada indivíduo, independentemente de sexo, raça ou procedência étnica; e 2) o respeito pelas formas de ação, práticas e visões de peculiares de mundo que gozam de prestígio junto aos integrantes de grupos desprivilegiados, ou que estão intimamente ligados a essas pessoas...’ (GUTMANN apud HABERMAS, 2004, p. 240)

Habermas identifica vários desses grupos, como, por exemplo, os

trabalhadores estrangeiros e estrangeiros de forma geral na Alemanha, Croatas na

Sérvia, curdos na Turquia, homossexuais, etc80, chamando atenção para o fato de

esse reconhecimento não visa um “igualamento das condições sociais de vida, mas

sim à defesa da integridade de formas de vida e tradições com as quais os membros

de grupos discriminados possam identificar-se.” (HABERMAS, 2004, p. 240) Um dos

problemas do não-reconhecimento cultural é que os grupos não-reconhecidos

geralmente são marginalizados e discriminados, de modo que a exclusão social e

cultural caminham juntas, alimentando-se uma da outra. A questão polêmica é saber

se a exigência 2 (o respeito às práticas e visões de mundo dos grupos

desprivilegiados) resulta da exigência 1 (o respeito pela identidade individual), ou se

essas exigências devem colidir em algumas ocasiões.

Habermas combate o argumento de que o asseguramento de identidades

coletivas é concorrente com o direito a liberdades subjetivas, individuais, portanto,

de modo que inevitavelmente entrarão em colisão em algum momento e, nesse

caso, será preciso decidir sobre a prevalência um sobre o outro. Taylor esmiúça a

oposição entre identidades coletivas e individuais – oposição construída sem razão

plena, segundo Habermas – segundo os conceitos do bom e do justo, advindos da

teoria moral. Para Habermas

Liberais da grandeza de Rawls ou Dworkin propugnam por uma ordem jurídica eticamente neutra que deve assegurar chances iguais a todos, de modo que cada um possa orientar-se por uma concepção própria do que seja bom. Em face disso, comunitaristas como Taylor e Walzer contestam que haja neutralidade ética no direito e permitem-se, portanto, esperar do

80 Podemos identificar facilmente esses grupos no Brasil como os homossexuais, pessoas portadoras de deficiência, negros, indígenas, mulheres, etc.

89

Estado de direito a fomentação ativa de determinadas concepções do bem viver, caso isso se faça necessário. (HABERMAS, 2004, p. 241)

Habermas cita Taylor pois esse exemplifica sua visão sobre os direitos

culturais com a minoria canadense francófona que, na província de Quebec, são

maioria. Assim, para assegurar a integridade de sua forma de vida – ameaçada pela

cultura anglo-saxã da maioria, esse grupo reclama o direito de constituir no Canadá,

especificamente em Quebec, uma “sociedade de natureza própria”. (HABERMAS,

2004, p. 241) Para tanto, pretendem proibir, através de regulamentos, que a

população francófona e imigrantes matriculem seus filhos em escolas inglesas e que

empresas com mais de 50 empregados utilizem outra língua além do francês como

língua oficial. Pretensões dessa natureza entram em choque com as teorias do

direito que exigem respeito à “identidade inconfundível” de cada indivíduo, o que faz

com que Taylor sugira um

modelo alternativo que sob determinadas condições admit[a] haver garantias de status restritivas aos direitos fundamentais, quando isso se dá em favor da sobrevivência de formas de vida culturais, e que permite haver políticas “ativamente empenhadas em gerar integrantes desses grupos, desde que dedicadas, por exemplo, a que gerações futuras também se identifiquem como sendo francófonas. (HABERMAS, 2004, p. 241-242)

Antes de problematizar as implicações dos argumentos de Taylor, Habermas

se dedica a demonstrar que “uma teoria dos direitos, se entendida de forma correta,

jamais fecha os olhos para as diferenças culturais.” (HABERMAS, 2004, p. 242)

A interpretação dos sistemas de direito feita por Taylor é, segundo Habermas,

paternalista, uma vez que o princípio do direito igual para todos encontra validação

“tão-somente sob a forma de uma autonomia juridicamente apoiada, à disposição do

uso de qualquer um que pretenda realizar seu projeto de vida pessoal.”

(HABERMAS, 2004, p. 242) Além do mais, ela corta pela metade o conceito de

autonomia, uma vez que os destinatários do direito só podem ganhar autonomia se

eles próprios se compreenderem como autores das leis aos quais eles estão sendo

submetidos. O liberalismo 1, de Taylor, ignora a “eqüiprocedência das autonomias

privada e pública” (HABERMAS, 2004, 242)

90

É somente após tomarmos consciência da coesão interna entre o Estado de

direito e a democracia que ficará claro que o sistema de direitos não ignora as

diferenças culturais. Para Habermas:

Sob essa premissa, uma teoria dos direitos entendida de maneira correta vem exigir exatamente a política de reconhecimento que preserva a integridade do indivíduo, até nos contextos vitais que conformam sua identidade. Para isso não é preciso um modelo oposto que corrija o viés individualista do sistema de direitos sob outros pontos de vista normativos; é preciso apenas que ocorra a realização coerente desse viés. E sem os movimentos sociais e sem lutas políticas, vale dizer, tal realização teria pouca chance de ocorrer. (HABERMAS, 2004, 242)

A partir do exemplo das lutas por reconhecimento do movimento feminista,

Habermas (2004) conclui que, melhor do que uma luta sobre a melhor forma de

assegurar a autonomia das pessoas do direito, é que haja uma “concepção

procedimentalista do direito81, segundo a qual o processo democrático pode

assegurar a um só tempo a autonomia privada e pública.” (p. 245) Não basta,

portanto, que alguns direitos intersubjetivos sejam concedidos; é apenas com a

participação dos envolvidos, as mulheres, nas discussões públicas sob os aspectos

relevantes para a equiparação de gêneros que o Estado assegurará, a cidadãos

iguais, sua autonomia privada.

Esse é o principal problema na decisão sobre o Habeas Corpus 82.424-2: ele

desconsidera a participação e, portanto, o reconhecimento da minoria ofendida.

É a integração dos cidadãos do Estado que assegura a lealdade desses em

relação a uma cultura política comum. Essa cultura política está radicada em uma

interpretação dos princípios constitucionais assumidos e cumpridos por cada nação

estatal – de forma que o contexto histórico de cada cultura tem, ao contrário do que

é afirmado pelos comunitaristas, grande relevância – tornando difícil, portanto, a

neutralidade ética do Estado. Na verdade, os cidadãos possuem um “horizonte de

interpretação” no qual os princípios são interpretados e dentro do qual,

publicamente, são discutidos desejos e preferências, refletindo acerca da

autocompreensão dos cidadãos da república. (HABERMAS, 2004, p. 262) Os 81 “Com o paradigma procedimentalista do Estado democrático de direito, (...) a Constituição, para articular-se com uma visão procedimentalista da política deliberativa e da democracia, deve ser compreendida, fundamentalmente, como a interpretação e a prefiguração de uma mistura de direitos de direitos fundamentais, que apresenta as condições procedimentais de institucionalização jurídica das formas de comunicação necessárias para uma legislação política autônoma; ou seja, das condições procedimentais que configuram e garantem, em termos constitucionais, um processo democrático.”(HABERMAS, 1997)

91

direitos e princípios fundamentais é que, diz Habermas (2004), “constituem o sólido

ponto de referência para cada patriotismo constitucional que situe o sistema de

direitos no contexto histórico de uma comunidade jurídica” (p. 262). O patriotismo

constitucional serve como pano de fundo que manterá coesa a associação de

pessoas livres e iguais, que devem preservar, consciente e racionalmente, aqueles

mesmo direitos e princípios fundamentais.

Habermas (2004) destaca que a diferença entre os dois planos – eticidade da

cultura política e a ordem jurídica – é imprescindível para a manutenção da

pluralidade, uma vez que, caso coincidissem, a cultura majoritária, utilizando, nesse

caso, uma ordem jurídica parcial, oprimiria as outras formas de vida culturais,

impossibilitando seu reconhecimento. E como pode ser mantida a neutralidade do

direito? Habermas responde que, nas sociedades modernas, a totalidade dos

cidadãos não pode se manter coesa através de um consenso sobre o que seja a

vida boa, ou sobre determinados valores; o consenso que pode ser alcançado é

sobre qual procedimento relativo às ações jurídicas legítimas e ao exercício do

poder. Para Habermas:

O universalismo dos princípios jurídicos reflete-se, com certeza, em um consenso procedimental que certamente precisa estar circunscrito por um patriotismo constitucional – por assim dizer –, no contexto de uma perspectiva cultural política historicamente determinada. (HABERMAS, 2004, p. 263)

4.3.2 O projeto de uma identidade constitucional aberta e em constante

transformação

Talvez o principal desafio na proteção dos direitos fundamentais está no fato

de que qualquer inclusão gera, por sua vez, uma exclusão. Por isso é fundamental é

que a identidade constitucional seja um processo permanente e aberto no qual a

inclusão e a exclusão estão sempre juntas, sendo essa tensão que possibilita a luta

e conquista de concepções cada vez mais ricas e articuladas da afirmação

constitucional da igualdade e liberdade de todos. (CARVALHO NETTO, 2003, p.

145)

92

Se, como afirmamos, o Estado Democrático de Direito envolve processos

jurídico-políticos de construção histórica de uma identidade constitucional inclusiva e

aberta, presente à tensão entre facticidade e validade (Habermas, 2005), a partir de

interpretações paradigmáticas de um mesmo sistema de direitos e, se esse sistema

de direitos, garantidor das autonomias pública e privada, interpretado no debate

público, aberto a concepções ético-políticas e culturais, diversas e não-

fundamentalistas, podemos afirmar que se trata de um projeto que, por ser moderno,

é sempre carente de legitimidade, de uma legitimidade que é sempre vivida como

falta, como ausência, na impossibilidade de um fundamento último, absoluto. Esse

projeto remete a própria questão da legitimidade à idéia de construção permanente

da legitimidade, por meio da realização no tempo da coesão interna entre as noções

de autogoverno e de iguais direitos individuais de liberdade, concretizadores de uma

noção jurídica, complexa, de autonomia. Assim, as exigências normativas que se

colocam a esse processo constituinte, ao invés de barreiras a ele, são, na verdade,

uma forma de explicitação de seu próprio sentido performativo, da própria noção

complexa de autonomia que lhe é subjacente. Como chama atenção Menelick de

Carvalho Netto:

[...] A identidade constitucional não pode se fechar, a não ser ao preço de trair o próprio constitucionalismo como demonstra Michel Rosenfeld. O constitucionalismo, ao lançar na história a afirmação implausível de que somos e devemos ser uma comunidade de homens, mulheres e crianças livres e iguais, lançou uma tensão constitutiva à sociedade moderna que sempre conduzirá à luta por novas inclusões, pois toda inclusão é também uma nova exclusão. E os direitos fundamentais só poderão continuar como tais se a própria Constituição, como a nossa expressamente afirma no § 2.º do seu art. 5.º, se apresentar como a moldura de um processo de permanente aquisição de novos direitos fundamentais. Aquisições que não representarão apenas alargamento da tábua de direitos, mas, na verdade, redefinições integrais dos nossos conceitos de liberdade e de igualdade, requerendo nova releitura de todo o ordenamento à luz das novas concepções dos direitos fundamentais. (CARVALHO NETTO, 2003, p. 154)

Assim, é imprescindível termos em mente que

um Estado Democrático de Direito envolve processos jurídico-políticos de construção histórica de uma identidade constitucional inclusiva e aberta, presente à tensão entre facticidade e validade (Habermas), a partir de interpretações paradigmáticas de um mesmo sistema de direitos. E esse sistema de direitos, garantidor das autonomias pública e privada, interpretado no debate público, aberto a concepções ético-políticas e culturais, diversas e não-fundamentalistas, envolve, assim, a defesa de um patriotismo constitucional, sobre o pano de fundo de uma cultura política pluralista (CATTONI, 2006c, p.90)

93

A desobediência civil tem grande afinidade com o projeto de uma construção

da identidade do sujeito constitucional aberta e em permanente atualização. Isso

porque a desobediência civil apóia-se justamente numa compreensão dinâmica da

Constituição, que é vista como inacabada. Assim,

Nesta perspectiva de longo prazo o Estado democrático de Direito não se apresenta como um projeto terminado, mas sim como um empreendimento arriscado, delicado, sujeito a riscos, irritável, e sobretudo falível e necessitada de revisão, empreendimento que se destina a realizar sempre e em situações mutáveis o sistema de direitos, ou seja, a interpretar melhor, a institucionalizar em termos mais adequados e em fazer uso de seu conteúdo de forma mais radical. (HABERMAS, 2005, p. 466)

94

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho parte do Habeas Corpus 82.424-2, no qual figura como paciente

o editor e autor de livros Siegfried Ellwanger, conhecido divulgador de teses anti-

semitas. Absolvido em primeira instância, Ellwanger foi condenado pelo Tribunal de

Justiça do Rio Grande do Sul. Contra a decisão foi impetrado um Habeas Corpus

contra a decisão do Tribunal no Superior Tribunal de Justiça, que manteve a

condenação. Inconformados, os advogados de Ellwanger impetraram outro Habeas

Corpus, agora no Supremo Tribunal Federal. O argumento utilizado por seus

advogados seria que, por ter sido condenado por discriminação contra os judeus e

estes não são uma raça, o crime não enquadraria na previsão do art. 5º, XLII, da

Constituição Federal que determina: “A prática de racismo constitui crime

inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei.” O crime

estaria, portanto, prescrito.

Caberia ao Supremo decidir, portanto, se o termo “racismo” conforme o inciso

XLII do artigo 5º da Constituição Federal abarcaria as discriminações contra os

judeus ou se não, se ela contempla somente a “raça” negra. Ocorre que, ao invés de

se aterem aos argumentos construídos no processo, principalmente aos argumentos

das partes envolvidas, os Ministros passaram a analisar a “colisão” entre dois

direitos: liberdade de expressão e dignidade da pessoa.

É a partir da análise dos votos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal

que tecemos as seguintes conclusões:

1. Como afirmaram tanto o Ministro Moreira Alves (relator-originário) quanto o

Ministro Maurício Corrêa (relator), o Habeas Corpus 82.424 tinha por escopo

demonstrar que o crime praticado pelo paciente – e a própria defesa afirma isso –

estava prescrito. Mas, embora o objeto do Habeas Corpus fosse somente a

discussão sobre a abrangência do art. 5º, XLII, da CF, a partir da intervenção do

Ministro Sepúlveda Pertence, o julgamento enveredou por outro caminho, qual seja,

o do conflito entre liberdade de expressão e dignidade humana.

2. Foram analisados os dois principais pontos discutidos pelos Ministros no

acórdão: a abrangência do termo racismo e o aparente conflito entre liberdade de

expressão e dignidade humana.

3. Segundo o Ministro relator Maurício Corrêa, não é a “raça” que o texto

constitucional, bem como a lei 7.716/89 com suas atualizações legislativas

95

posteriores, visa proteger, mas sim as vítimas do racismo. Defender a tese de que a

espécie humana é subdividida em raças é hoje um disparate, já que com o avanço

da genética e, mais precisamente, com as pesquisas sobre o genoma humano,

chegou-se a inexorável conclusão de que somos todos iguais. E, mais importante, o

fato de não haver distinção de “raças” humanas não afasta o perigo do racismo, que

é fruto de noções culturais-históricas-sociológicas, além de possuir um indisfarçável

papel de instrumento de controle ideológico, de dominação política e de subjugação

social.

4. Outro ponto importante foi o argumento usado pelo Ministro Maurício Corrêa

em resposta ao voto do Ministro Moreira Alves, sobre a voluntas legislatoris. Corrêa

trouxe à baila sua autoridade de constituinte para contestar o raciocínio de Moreira

Alves, que afirmava que a intenção dos constituintes, materializada no deputado

carioca Carlos Alberto de Oliveira, Caó, era de tornar imprescritível somente os

crimes de cor, em especial a cor negra. Reforçou o argumento o Ministro Nelson

Jobim, também constituinte.

5. A questão sobre a liberdade de expressão discutida por quase todos os

Ministros no Habeas Corpus 82.424-2 é extremamente relevante para o trabalho, na

medida em que ela mostra, como em nenhum outro julgamento do Supremo Tribunal

Federal, qual é o conceito do Tribunal sobre esse direito fundamental. Afinal, como o

STF trata o direito à liberdade de expressão? Nesse caso específico, seria de fato

um direito? Para expor a construção do conceito de liberdade de expressão de modo

mais claro, é necessário dividir os argumentos sobre o tema em três partes: a

primeira, mostrando com a maioria entendem o direito à liberdade de expressão; o

segundo, como o Ministro Marco Aurélio argumentou sobre o tema; e, por fim, como

o Ministros Ayres de Britto, que absolveu ex officio o réu por ausência de atitude

caracterizadora de crime, um entendimento único entre os Ministros.

6. Segundo a maioria dos Ministros, liberdade de expressão é um direito

fundamental, sendo que, nos casos em que o teor da manifestação não observar os

limites impostos pela própria Constituição e atingir os “valores inerentes a uma

sociedade pluralista”. No caso de um conflito entre direitos – liberdade de expressão

e dignidade humana – prevalecerá a segunda, uma vez que, pelo princípio da

proporcionalidade, pois é mais condizente com o fim almejado pela Constituição

Federal.

96

7. Após citarmos trechos das obras editadas pelo paciente, chegamos à

definição de Carlos Britto: praticamente tudo é permitido pela liberdade de

expressão, já que o alcance do “uso” da liberdade de expressão é tão amplo que fica

quase impossível imaginarmos o “abuso”.

8. Segundo o Ministro Marco Aurélio, uma vez que a liberdade de expressão é

um dos direitos mais caros do Estado democrático, devendo ser, assim, preservado,

pois, caso contrário, a própria democracia poderia perecer. Utilizando a ponderação

de valores, Marco Aurélio conclui que é preferível preservamos a liberdade de

expressão. Além disso, diz o Ministro, como o Brasil não possui uma história de anti-

semitismo, não há sentido em criminalizar a conduta do paciente.

9. No Capítulo 2 oferecemos as bases teóricas que nos possibilitou responder a

segunda questão levantada no início do trabalho: os conceitos de liberdade de

expressão e dignidade da pessoa construídos pelos Ministros do Supremo Tribunal

Federal são constitucionalmente adequadas ao Estado democrático de direito?

10. Mostramos, com Habermas (2006) as diferenças entre toleration e tolerance,

fundamentais para o trabalho. Verificamos que para que os cidadãos possam,

consensual e democraticamente, especificar quais seriam os limites da tolerância, é

necessário que suas decisões sejam tomadas de forma que todas as partes,

atingidas e participantes, assumam reciprocamente a perspectiva do outro. Somente

assim se atenderá, satisfatoriamente, os diversos interesses envolvidos. Esse

cenário de formação de vontade deliberativa só é possível na democracia de um

Estado Constitucional. Só há, portanto, tolerância religiosa quando todos os

cidadãos se concedem, reciprocamente, liberdade de religião. Podemos vislumbrar,

então, a solução do paradoxo: devo ser livre para exercitar a minha religião e não

ser molestado pela religião dos outros. Se o legislador for, ao mesmo tempo, autor e

destinatário do direito que obriga a tolerância entre os cidadãos de um Estado

democrático, então o ato jurídico que impõe a tolerância (toleration) une-se à auto-

obrigação virtuosa de “suportar” o outro (tolerance).

11. Mostramos que, caso haja inimigos da Constituição dentro do Estado

Constitucional, este, caso queira preservar-se, deverá adotar uma postura

intolerante com os inimigos da democracia. Para tanto, deverá usar os “instrumentos

do direito penal político ou as disposições relativas a proibição dos partidos políticos

(art. 21.2 da Lei Fundamental alemã) e a perda dos direitos fundamentais (art. 18 e

9.2 da Lei Fundamental alemã).” (Habermas, 2006, 258-259) Este “inimigo da

97

democracia” pode vir revestido tanto de conotação religiosa, se colocando contrário

às formas de vida típicas das sociedades modernas, como também pode surgir de

maneira secularizada, na figura de ideólogos políticos que combatem o Estado

liberal e democrático. Mas quem, senão o próprio Estado Constitucional, poderia

definir os “inimigos da democracia”? Nesse caso, o Estado Constitucional deve levar

em consideração o risco de enfrentar tanto seus opositores quanto e principalmente

o perigo de, no afã de evitar que os intolerantes prejudiquem a democracia, o ele

mesmo agir de maneira autoritária na fixação dos limites da tolerância. É curioso que

a tolerância religiosa utilize os procedimentos democráticos para solucionar o

paradoxo da autodelimitação enquanto a democracia precise reelaborar o paradoxo

da tolerância religiosa no próprio meio jurídico, ou seja, o problema da tolerância sai

da esfera religiosa e entra na esfera política.

12. Habermas (2006) alerta para o fato de que o Estado deve ser cauteloso no

sentido de não forçar, de modo paternalista, uma “tolerância” entre os cidadãos.

Segundo ele, a desobediência civil serve de termômetro para verificar se o Estado

age de forma autoritária em relação aos dissidentes.

13. O reconhecimento da desobediência civil, diz Habermas (2006), é crucial para

o Estado democrático de direito solucionar esse novo paradoxo que se ergue no

âmbito do direito constitucional. Na medida em que o Estado Constitucional age de

maneira tolerante com os dissidentes não fundamentalistas, ele evita um

comportamento autodestrutivo que atingiria a própria democracia. Assim, aqueles

“desobedientes” que, de outra maneira seriam tidos como “inimigos da Constituição”,

podem agora ser considerados como “patriotas constitucionais”, defensores e

amigos não de uma Constituição pronta e acabada, mas sim de um projeto

constitucional que se realiza no tempo, estando, hoje e sempre, em transformação.

O princípio da inclusão igualitária dos cidadãos pode ser expresso justamente nesse

limite auto-reflexivo da tolerância da Constituição. Com a institucionalização da

tolerância, o reconhecimento dos cidadãos com visões de mundo minoritárias, que

pensam e crêem de modo divergente da maioria, passa a ser pressuposto.

(Habermas, 2006, 260)

14. “É a liberdade religiosa que põe em prova a neutralidade do Estado”.

(HABERMAS, 2006, p. 269) Essa liberdade é colocada a prova toda vez que a

cultura dominante de uma sociedade abusa de seu poder, conseguido ao longo da

história, para impor sua visão de mundo às minorias culturais. Cabe ao Estado, por

98

meio de políticas que estejam de acordo com os princípios constitucionais,

assegurar, por procedimentos democráticos legitimados pela imparcialidade estatal,

que os direitos das minorias sejam respeitados. A neutralidade estatal é violada

quando visões de mundo oriundas de uma “eticidade substancial” (HABERMAS,

2006, p. 269) interferem na interpretação de mandamentos formais que exigem essa

mesma neutralidade. Habermas alerta, ainda, que a ofensa à neutralidade do Estado

pode ser perpetrada por ambas as partes, laicos e religiosos (2006, p. 269).

15. Do mesmo modo que os direitos ao livre exercício religioso, os direitos

culturais servem para garantir que todos os cidadãos tenham acesso igualitário às

tradições e manifestações culturais, mesmo que minoritárias, uma vez que o acesso

a esses bens são imprescindíveis para o exercício e manutenção da identidade

pessoal de cada cidadão. O tipo de direito necessário para preservar os diferentes

grupos étnicos e culturais é sempre subjetivo, ou seja, deve atender a pessoas

individuais e não a coletividade. Além do mais, afirma Habermas, caso se utilizasse

direitos coletivos para o reconhecimento de minorias, eles seriam não só

desnecessários, mas questionáveis sob o ponto de vista normativo. (2004, p. 258)

Não se quer e não se pode preservar uma tradição como se preserva um parque

ecológico, cercando-o e impedindo a entrada de qualquer elemento externo. A

defesa das formas de vida geradoras de identidade deve servir para o

reconhecimento individual, não coletivo.

16. A solução dos conflitos religiosos serve de exemplo de como é possível,

numa sociedade cada vez mais pluralista e com incontáveis visões de mundo,

solucionar os conflitos culturais. Pois a tolerância – que exige respeito recíproco ao

outro – é fundamental para um pluralismo saudável que não seja simplesmente

“imposto” pelo Estado, mas que seja sempre uma via de mão dupla na qual, ao

mesmo tempo que afirma a identidade cultural de uma minoria, não a isola da

comunidade. Para tanto, é imprescindível que todos, grupos minoritários e

majoritários, se vejam como cidadãos de iguais direitos de uma mesma comunidade

política. É a integração dos cidadãos do Estado que assegura a lealdade desses em

relação a uma cultura política comum. Essa cultura política está radicada em uma

interpretação dos princípios constitucionais assumidos e cumpridos por cada nação

estatal – de forma que o contexto histórico de cada cultura tem, ao contrário do que

é afirmado pelos comunitaristas, grande relevância – tornando difícil, portanto, a

neutralidade ética do Estado. Na verdade, os cidadãos possuem um “horizonte de

99

interpretação” no qual os princípios são interpretados e dentro do qual,

publicamente, são discutidos desejos e preferências, refletindo acerca da

autocompreensão dos cidadãos da república. (HABERMAS, 2004, p. 262) Os

direitos e princípios fundamentais é que, diz Habermas (2004), “constituem o sólido

ponto de referência para cada patriotismo constitucional que situe o sistema de

direitos no contexto histórico de uma comunidade jurídica” (p. 262). O patriotismo

constitucional serve como pano de fundo que manterá coesa a associação de

pessoas livres e iguais, que devem preservar, consciente e racionalmente, aqueles

mesmo direitos e princípios fundamentais.

17. A decisão – e aqui não estamos discutindo se o habeas corpos deveria ser

concedido ou não – foi fundamentada numa visão cultural majoritária que

desconsidera os costumes e tradições da minoria da população, não levando em

conta a noção de democracia pluralista. Quando a decisão visa resgatar os “valores

morais e éticos” da sociedade ela desconsidera que, no caso da sociedade

brasileira, como em toda democracia, não existe um só “costume”, mas vários.

Essas formas de vida não precisam compartilhar os mesmos valores éticos e

culturais para conviverem pacificamente; além disso, como vimos no Capítulo 2, os

direitos religiosos são um ótimo exemplo de como o respeito mútuo entre os fiéis de

várias não pode ser imposto pelo Estado.

18. Quanto a concepção de liberdade de expressão e dignidade da pessoa

construída no voto do grupo de juízes que denegaram o HC, percebemos que eles

se vêem na missão de interpretar a Constituição de modo que essa possa realizar

os fins éticos-jurídicos pretendidos pela cultura majoritária. Aproximaram-se, assim,

do republicanismo.

19. Ao decidir de forma harmônica com “os supremos valores da comunidade” o

Supremo Tribunal Federal desconsiderou o pluralismo cultural, político e social

inerentes a todo Estado Democrático de Direito, incidindo no erro alertado por

Habermas (2006), qual seja, o do Estado Constitucional recair culposamente numa

prática que, de forma autoritária e unilateral, determinaria os limites da tolerância.

20. Mostramos o problema em se utilizar a “ponderação de valores”, e a

contradição entre os votos Ministro Marco Aurélio, que concede o Habeas Corpus,

quanto o Ministro Gilmar Mendes, que o nega, corrobora nossa tese. Mesmo

utilizando o mesmo método, cada um chega a uma conclusão distinta, o que

100

comprova como a ponderação de valores é ineficaz na construção de uma decisão

racional.

21. O problema do raciocínio de ponderação, como dito, é que ele permite que se

entenda que uma conduta pode ser considerada meio lícita, meio ilícita, ou seja, é

garantida pelo direito à liberdade de expressão mas proibida em face do princípio da

dignidade humana: qual prevalecerá vai depender somente do cálculo de

proporcionalidade por parte do julgador.

22. No voto do Ministro Marco Aurélio, a primeira característica que se destaca é

que o caso concreto foi abandonado – o cometimento ou não do crime de racismo

pelo paciente – e o Ministro passa a teorizar, abstrativamente, sobre a importância

da liberdade de expressão para a democracia. Sua preferência pela liberdade de

expressão é clara, e aponta uma concepção liberal da liberdade de expressão, que é

o que faz com que a decisão apresentada seja complacente com o racismo. A

tolerância entre os cidadãos é citada como a chave para solucionar o problema.

23. O Ministro Marco Aurélio parte de uma concepção equivocada da tolerância:

não há distinção, em seu voto, de pensamento minoritário dissidente com

pensamento fundamentalista e preconceituoso. O pensamento dissidente deve ser

preservado numa sociedade democrática que se entende como pluralista. O

discurso fundamentalista não. Ao se deparar com os inimigos da Constituição, seja

na figura do religioso fundamentalista que combate as formas de vida modernas,

seja na figura secularizada de um político extremista que combate o próprio Estado,

é imprescindível que o poder público os combata. Para tanto, o Estado constitucional

deve valer-se dos meios que a própria Constituição Federal fornece, como por

exemplo, a sanção penal.

24. O Supremo Tribunal Federal não pode, sobre o argumento de preservar o

pluralismo, permanecer inerte frente aqueles que utilizam a violência como forma de

impor sua ideologia.

25. O “inimigo da Constituição”, entretanto, não pode ser tratado como pária,

desprovido de qualquer direito. Mesmo aqueles que valem-se do discurso

fundamentalista não perdem o status de pessoa detentora de direitos, sendo que

seu julgamento deve respeitar estritamente o devido processo legal. O fato de

voltarem-se contra a sociedade e contra a ordem constitucional vigente não permite

que o Estado constitucional puna, em um regime de exceção, os intolerantes.

101

26. A diferença entre fundamentalistas e dissidentes é enorme, e deve ficar muito

clara. A desobediência civil possibilita os cidadãos alterarem os rumos pelos quais o

Direito é interpretado, o que oxigena a democracia. Por isso ela tem caráter público,

simbólico e é pacífica, pois os argumentos que a justificam são fundados na razão e

na justiça. O “desobediente” não pretende impor à sociedade sua visão de mundo,

mas sim persuadir a opinião pública na esfera civil e pública. Os atores coletivos

envolvidos em manifestações de desobediência evocam os princípios do Estado

democrático de direito, não os negam. (SALCEDO REPOLÊS, 2003, p. 20) Já os

inimigos da constituição “não concedem nenhum espaço à reflexão sobre sua

relação com imagens de mundo com as quais partilham o mesmo universo

discursivo, e contra cujas reivindicações de validação podem impor-se sem

dificuldade, apenas com base em fundamentos racionais. Visões de mundo

fundamentalistas não dão nenhuma chance a ‘reasonable disagreement’.”

(HABERMAS, 2004, p. 261)

27. O maior problema nos votos do HC 82.424-2 é que, se por um lado o grupo

dos ministros que negaram habeas corpus o fizeram de maneira paternalista, não

levando em consideração o pluralismo razoável, os ministros que votaram pela sua

concessão não perceberam que há diferença entre o discurso de ódio – que é

fundamentalista – que deve ser coibido com o direito penal, uma vez que no

ordenamento brasileiro é tipificado como crime.

28. Assim, na ânsia de se proteger a dignidade da pessoa, os ministros que

votaram pela denegação do HC calaram as vozes de possíveis dissidentes,

impossibilitando que a desobediência civil – que vimos, é fundamental numa

democracia – seja exercida. E os ministros que votaram pela concessão do habeas

corpus, correm o risco de confundir a liberdade de expressão com discurso de ódio,

o exercício regular de um direito com a prática crime.

102

29. 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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