93

Elisabeth Roudinesco - Freud - Mas Porque Tanto Ódio

Embed Size (px)

DESCRIPTION

freud, psicanalise

Citation preview

  • Transmisso da Psicanlise diretor: Marco Antonio Coutinho Jorge

  • Elisabeth Roudinesco

    Freud mas por que tanto dio?

    Traduo:Andr Telles

    Reviso tcnica:Marco Antonio Coutinho JorgePrograma de Ps-graduao em Psicanlise,Instituto de Psicologia/Uerj

  • Ttulo original:Mais pourquoi tant de haine?

    Traduo autorizada da primeira edio francesa, publicada em 200 por ditions du Seuil, de Paris, Frana

    Copyright ditions du Seuil, 200, para os textos de Elisabeth Roudinesco e a organizao do volume. Os textos do Captulo 4 so de propriedade de seus respectivos autores.

    Copyright da edio brasileira 20:Jorge Zahar Editor Ltda.rua Marqus de So Vicente 99 o andar | 2245-04 Rio de Janeiro, rjtel (2) 2529-4750 | fax (2) [email protected] | www.zahar.com.br

    Todos os direitos reservados.A reproduo no autorizada desta publicao, no todoou em parte, constitui violao de direitos autorais. (Lei 9.60/98)

    Cet ouvrage, publi dans le cadre du Programme dAide la Publication 20 Carlos Drummond de Andrade de la Mdiathque de la Maison de France, a bnfici du soutien de lambassade de France au Brsil et de lInstitut Franais.

    Este livro, publicado no mbito do Programa de Apoio Publicao 20 Carlos Drummond de Andrade da Mediateca da Maison de France, contou com o apoio da Embaixada da Frana no Brasil e do Institut Franais.

    Grafia atualizada respeitando o novo Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa

    Reviso: Eduardo Farias, Joana MilliCapa: Srgio Campante | Foto da capa: Bettman/CORBIS

    cip-Brasil. Catalogao na fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, rj

    Roudinesco, Elisabeth, 954-R765f Freud mas por que tanto dio? / Elisabeth Roudinesco; traduo

    Andr Telles; reviso tcnica Marco Antonio Coutinho Jorge. Rio de Janeiro: Zahar, 20.

    (Transmisso da psicanlise)

    Traduo de: Mais pourquoi tant de haine?isbn 978-85-378-078-7

    . Freud, Sigmund, 856-939. 2. Onfray, Michel, 959-. 3. dio. 4. Psicanlise. i. Ttulo. ii. Srie.

    cdd: 50.952-407 cdu: 59.964.2

  • Sumrio

    Apresentao 7

    i. Mas por que tanto dio?

    ii. Uma velha histria 4

    iii. Histria de um boato: o caso de Freud com a cunhada 5

    iv. Outras vozes 65

    . Onfray ou a fraude 67 Guillaume Mazeau

    2. O homem da flor de cimento 76 Christian Godin

    3. As ligaes perigosas de Michel Onfray 79 Franck Lelivre

    4. Um golpe de esperteza 84 Pierre Delion

    5. Filosofia do ressentimento, sociedade do espetculo 89 Roland Gori

  • 7Apresentao

    A histria do dio em relao a Freud to antiga quanto a da psicanlise. Ningum toca impunemente no sexo, no segredo da intimidade, nos assuntos de famlia, na pulso de morte e na barbrie dos regimes que escravizam mulheres, homossexuais, marginais e anormais sem pagar um preo por isso.

    E justamente essa a razo pela qual o sucesso obtido pela psicanlise no mundo traduziu-se por ataques inces-santes: cincia judaica para os nazistas; cincia burguesa para os stalinistas; cincia satnica para os movimentos re-ligiosos radicais; cincia degenerada para a extrema-direita francesa; falsa cincia para os cientistas; cincia fascista forjada por um vienense ganancioso e perverso para os adep-tos da escola revisionista norte-americana. Essas ofensas nada tm a ver com a necessria crtica ao dogmatismo dos profissionais do inconsciente e seus grupelhos, ou mesmo prpria teoria freudiana, que em hiptese alguma deve ser vista como um corpus sagrado.

    Mas o dio em estado puro e sem nenhum outro funda-mento seno a negao da realidade coisa bem diferente. Convm lutar? Calar? A questo divide a comunidade cient-

  • 8 Freud mas por que tanto dio?

    fica, que muitas vezes se deixa seduzir pela fria que suscita em seus detratores. Provavelmente porque seus represen-tantes, imersos em trabalhos, colquios e reunies entre especialistas, tornaram-se, erradamente, indiferentes quilo que veem, com desdm, como literatura de sarjeta.

    De minha parte, sempre achei que jamais devemos si-lenciar quando o excesso de paixo e seu cortejo de danos ameaam dificultar as condies do autntico debate crtico. Ora, este o caso, de uns vinte anos para c, dessa srie de panfletos estranhos escritos por autores cujos textos ressen-tidos no pertencem ao mbito da tradio acadmica e so incensados por uma mdia cada vez mais submissa presso do mercado.

    Um panfleto delirante, o de Michel Onfray, vem mais uma vez incitar o dio dirigido no apenas a Freud, tratado como impostor e dolo a ser abatido, mas a todos os saberes constitudos.

    Diante desse desvirtuamento que o poder das redes de in-ternautas me permitiu combater, e que as mdias mais srias, em seu conjunto, no subscreveram, fiz questo de juntar minha prpria anlise contribuies oriundas justamente daqueles que se sentem interpelados, h anos, por aquele que se apresenta como o detentor dos saberes recalcados ou ocultados pela Repblica. Eles provm de horizontes di-versos, e ser muito difcil enxergar neles representantes do mundo quartier latin, expresso mais do que detestvel que serve de cabide a todas as formas de desvalorizao do pensamento. Todos so professores na universidade ou

  • Apresentao 9

    no secundrio e quatro exercem a profisso fora de Paris: Caen, Lille, Marselha, Clermont-Ferrand. Agradeo-lhes por me haverem confiado suas contribuies.

    De minha parte, e levando em conta a importncia que ganhou na Frana o rumor de um Freud incestuoso, admi-rador de Hitler e Mussolini, fiz questo de insistir na gnese deste episdio escuso: como se forjou a lenda de um Freud violentando a cunhada para estimular em seguida a perse-guio de seu prprio povo justamente no momento em que seus livros eram queimados pelos nazistas?

    Este dossi d sequncia, de certa forma, ao que publiquei em 2005 sob o ttulo Pourquoi tant de haine? Anatomie du Livre noir de la psychanalyse (Navarin),1 com Pierre Delion, Ro-land Gori, Jack Ralite e Jean-Pierre Sueur. Visa, fundamen-talmente, aprofundar a compreenso das razes pelas quais a obra freudiana continua a suscitar tais paixes.

    1 Textos parcialmente reproduzidos em Elisabeth Roudinesco, Em de-fesa da psicanlise, Rio de Janeiro, Zahar, 200. (N.E.)

  • i. Mas por que tanto dio?

  • 13

    Num panfleto apinhado de erros e atravessado por rumores,1 Michel Onfray, que ignora tudo acerca dos trabalhos pro-duzidos nos ltimos quarenta anos pelos historiadores de Freud e da psicanlise, apresenta-se como um psicobigrafo de Freud, o nico capaz de decodificar certas lendas doura-das, no obstante invalidadas h dcadas. Dedicando-se a discernir pretensas verdades que teriam sido dissimuladas pela sociedade ocidental dominada, por sua vez, pela dita-dura freudiana e suas milcias , ele v os judeus como for-jadores de um monotesmo mortfero e precursores dos re-gimes totalitrios, e pinta Freud como um tirano domstico que subjuga todas as mulheres de sua casa a seus caprichos, alm de molestar sexualmente a cunhada. Homofbico, fa-locrata, falsrio, vido por dinheiro, no hesitaria em cobrar o equivalente a 450 euros por uma sesso de anlise.2 Cifra

    1 Michel Onfray, Le crpuscule dune idole. Laffabulation freudienne, Paris, Grasset, 200.2 Psiquiatras norte-americanos e europeus que se dirigiam a Viena aps 920 para uma anlise didtica s vezes pagavam as sesses a Freud em moeda estrangeira. Mais tarde, ele abandonou as moedas estrangeiras e fixou seus honorrios em 00 shillings austracos (fonte: Hilda Doolittle, Pour lamour de Freud, prefcio de Elisabeth Roudinesco, Paris, ditions

  • 14 Freud mas por que tanto dio?

    infundada declarada durante um programa de televiso e repetida por diversos rgos da imprensa.

    Ele descreve o cientista vienense como um admirador de Mussolini, cmplice do regime hitlerista (por sua teoria da pulso de morte), e faz da psicanlise uma cincia baseada na equivalncia do carrasco e da vtima. Embora declarando- se freudo-marxista no entanto, pretende-se antifreudiano e adepto de Proudhon, logo, nem marxista nem freudiano , reabilita o discurso da extrema-direita francesa, com o qual (sem saber) alimenta uma certa comunidade de pensamento. Essas posies extrapolam o campo do necessrio debate intelectual sobre a questo de Freud e do status da psican-lise. Pois, de tanto inventar fatos que no existem e forjar revelaes que no o so, o autor desse ataque instiga a pro-liferao dos rumores mais extravagantes: como exemplo, rgos de imprensa noticiaram, antes mesmo da publicao do livro, que Freud passara um tempo em Berlim durante o entreguerras, que fora mdico de Hitler e de Gring, amigo pessoal de Mussolini e um inveterado mulherengo. Com a ajuda dos boatos, daqui a pouco descobriremos que ele es-pancava a governanta, sodomizava os animais domsticos ou assava criancinhas no forno.3

    des Femmes/Antoinette Fouque, 200, p.258). Antes da Primeira Guerra Mundial, seus honorrios correspondiam a 40 coroas.3 Cf. a esse respeito o comentrio de Philippe Grauer no site do Cen-tro Interdisciplinar de Formao em Psicoterapia Relacional (CIFP). Aproveito a oportunidade para agradecer a Gilles Olivier Silvagni e Anthony Ballenato, que efetuaram pesquisas para mim. Bem como a Henri Roudier, Jacques Martin Berne e Christiane Menasseyre.

  • Mas por que tanto dio? 15

    Quando sabemos que 8 milhes de pessoas na Frana so tratadas por terapias que derivam da psicanlise, vemos cla-ramente que tal procedimento assemelha-se a uma vontade de prejudicar. No fim, ele no far mais do que provocar a indignao de todos aqueles que psiquiatras, psicanalistas, psiclogos, psicoterapeutas levam uma ajuda indispens-vel aos que so afetados tanto pela misria econmica as crianas abandonadas, os loucos, os imigrantes, os pobres quanto por esse sofrimento psquico trazido luz por todos os coletivos de especialistas.

    . Descrio do livro

    O livro de Michel Onfray, composto de cinco partes, desti-tudo de fontes e de notas bibliogrficas. A nota bibliogrfica final no remete a nenhum captulo do livro e o ndice imprestvel: nada de nomes ou conceitos, e sim rubricas que permitem distinguir os autores bons dos maus de acordo com os ttulos de seus trabalhos; as datas de publi-cao so frequentemente inventadas, quando no simples-mente omitidas.

    Quanto ao autor, projeta sobre o objeto odiado suas pr-prias obsesses os judeus, o sexo perverso, os compls , a ponto de fazer de Freud um duplo invertido de si mesmo, e da psicanlise, a expresso de uma autobiografia de seu fundador, transformado em impostor. Diante desse alter ego lanado no inferno, o autor v a si prprio como um liberta-

  • 16 Freud mas por que tanto dio?

    dor vindo livrar o povo francs de sua crena em um dolo cujo crepsculo ele anuncia. Ele sugere que atualmente es-to disponveis apenas as biografias de Ernest Jones e Peter Gay, a primeira publicada entre 953 e 957, e a segunda em 988. No cita nem os trabalhos dos historiadores de Viena (Carl Schorske, William Johnston, Jacques Le Rider etc.), nem os dedicados questo da judeidade de Freud (Yousef Yerushalmi, Yirmiyahu Yovel, Jacques Derrida, Peter Gay etc.), nem qualquer um dos ensaios acerca dos diferentes as-pectos da vida de Freud. Entretanto, somos hoje cabalmente informados, dia a dia, de cada acontecimento de sua vida cotidiana, assim como da de seus companheiros, discpulos e dissidentes. Onfray tampouco conhece alguma coisa da vida de Josef Breuer, Wilhelm Fliess, Sndor Ferenczi, Otto Rank, Ernest Jones, Alfred Adler, Carl Gustav Jung, Melanie Klein, Marie Bonaparte, Lou Andreas-Salom, Anna Freud (a respeito de quem cita uma biografia errada que ningum mais l). Nenhuma palavra sobre a to discutida questo da sexualidade feminina (de Helene Deutsch a Karen Horney, passando por Simone de Beauvoir, Juliet Mitchell, Judith Butler), nem sobre a histria da fundao da International Psychoanalytical Association (IPA), nem sobre a reviso dos grandes casos (a respeito dos quais comete vrios equvo-cos). No afirma ele que Freud teria inventado dezoito casos? Perguntamo-nos quais

    Quanto obra de Freud, traduzida em sessenta lnguas, Onfray afirma ter convivido intensamente com ela durante cinco meses entre junho e dezembro de 2009 na traduo da PUF, a mais criticada atualmente pelos especialistas. No

  • Mas por que tanto dio? 17

    faz nenhuma referncia ao grande debate sobre as tradu-es e no consultou nenhum arquivo: nem na Biblioteca do Congresso de Washington, nem no Freud Museum de Londres. Ignora o mundo anglfono, germanfono e latino- americano, e nulo em histria da psicanlise na Frana.

    Tudo bem, Onfray cita a obra de Henri F. Ellenberger, Histria da descoberta do inconsciente, publicada em 970 (em ingls), traduzida pela primeira vez em francs em 974, de-pois reeditada em 994 sob meus auspcios.4 Diz tratar-se da primeira grande reviso da histria oficial de Freud, o que inexato, uma vez que a obra de Ola Andersson anterior de Ellenberger.5 Alm disso, ao datar a publicao do li-vro de Ellenberger como sendo de 99, faz a historiografia cientfica estrear com vinte anos de atraso, destacando ainda que ela continua a ser ocultada nos dias de hoje, justamente quando se encontra em plena expanso e quando os arqui-vos da Biblioteca do Congresso, aps as grandes batalhas dos anos 990, esto em vias de sair da lista de documentos censurados, segundo as regras em vigor com enorme len-tido, bem entendido. Onfray engana-se igualmente quanto data de publicao do livro de Frank J. Sulloway, Freud, bilogo da mente, publicado em ingls em 979 e editado duas

    4 Henri F. Ellenberger, Histoire de la dcouverte de linconscient, pref-cio de Elisabeth Roudinesco, Paris, Fayard, 994. Onfray no cita meu prefcio, uma vez que me considera uma hagigrafa. Como eu pode-ria, sendo ao mesmo tempo responsvel pelos arquivos de Ellenberger depositados na Sociedade Internacional de Histria da Psiquiatria e da Psicanlise (SIHPP), da qual sou presidente?5 Ola Andersson, Freud avant Freud, prefcio de Elisabeth Roudinesco e Per Magnus Johansson, Paris, Les Empcheurs de Penser en Rond, 997.

  • 18 Freud mas por que tanto dio?

    vezes em francs (98 e 998).6 Ainda assim, ele parece con-vencido de que no existe nenhum trabalho no hagiogr-fico sobre Freud at ento, o que lhe permite apresentar- se como o primeiro autor a resgatar lendas douradas h trinta anos invalidadas pelos historiadores. A propsito, On-fray no faz nenhuma distino entre histria sacra, histria oficial, pensamento irracional, historiografia fundada em lendas obscuras e rumores (corrente chamada revisionista ou, em ingls, destruidora de Freud) e histria cientfica. Seu mtodo reflete um maniquesmo radical: de um lado, os bons (antifreudianos); de outro, os maus (adeptos de uma impostura).

    Ignorando os trabalhos norte-americanos e s conhe-cendo Freud por t-lo lido em francs, Onfray engana-se igualmente a respeito da data de publicao da correspon-dncia no expurgada de Freud com o mdico berlinense Wilhelm Fliess, no entanto essencial para desvendar as modalidades da inveno da psicanlise e as hesitaes e errncias do primeiro Freud. Essa correspondncia acha-se disponvel em ingls, alemo, portugus e espanhol desde 986. Foi traduzida pela primeira vez para o francs em 2006, ou seja, vinte anos depois, o que autoriza Onfray a afirmar que ela ficou oculta at hoje.7

    6 Frank J. Sulloway, Freud biologiste de lesprit, prefcio de Michel Plon, Paris, Fayard, 998.7 Sigmund Freud, Lettres Wilhelm Fliess, 1887-1904, Paris, PUF, 2006 [ed. bras.: Correspondncia completa Sigmund Freud-Wilhelm Fliess 1887-1904, Rio de Janeiro, Imago, 983].

  • Mas por que tanto dio? 19

    No sendo formado em nenhuma tradio de pesquisa his-trica, sem qualquer noo do que seja a internacionalizao da pesquisa em histria, Onfray despreza a realidade do trabalho historiogrfico realizado h dcadas nesse domnio, baseando- se no que julga o nec plus ultra da pesquisa sobre essas ques-tes: O livro negro da psicanlise, que rene cerca de quarenta artigos.8 Se nele Freud tratado como aproveitador e men-tiroso, vido por dinheiro e incestuoso pelos defensores da corrente historiogrfica revisionista norte-americana, os psicanalistas principalmente franceses so acusados de compls e contaminaes diversas, uns porque teriam sido desfavorveis venda de seringas aos doentes de Aids (ru-mor inteiramente forjado), outros porque, adeptos de Fran-oise Dolto, falecida em 988, teriam defendido aps 2000 um abrandamento da autoridade na escola ao idealizarem a criana rei. Quanto a Jacques Lacan, comparado, nesse livro, a um guru de seita, enquanto o conjunto das asso-ciaes psicanalticas insultado por haver produzido um verdadeiro glag freudiano: pelo menos 0 mil mortos na Frana. Nenhuma fonte, naturalmente, vem fundamentar essa afirmao irresponsvel.

    Ao contrrio de seus novos amigos, que conseguiram, como ele prprio admite (Le crpuscule, p.585), convert-lo verdade verdadeira a da conspirao dos freudianos contra

    8 Le livre noir de la psychanalyse, Paris, Les Arnes, 2005, foi publicado sob a direo de Catherine Meyer, com a colaborao de Mikkel Borch- Jacobsen, Jean Cottraux, Didier Pleux e Jacques van Rillaer. Subttulo:

    Vivre, penser e aller mieux sans Freud.

  • 20 Freud mas por que tanto dio?

    a sociedade ocidental , Onfray ataca apenas Freud, suge-rindo que mais tarde, num outro volume, se ocupar dos freudo-marxistas, como se ningum antes houvesse se inte-ressado por eles. Consequentemente anunciou, durante um programa transmitido na France Culture (em 22 de abril de 200), que criaria uma escola de psicoterapia freudo-marxista destinada a cuidar gratuitamente dos pobres.9 Ser ele seu mestre e principal terapeuta? Graas a que formao?

    2. Retrato do autor por ele mesmo como deus solar hedonista

    Antes de analisar o contedo do panfleto, convm fornecer algumas indicaes que permitam compreender como On-fray chegou a se converter ao antifreudismo mais radical.

    Fundador de uma universidade popular em Caen, titular de um doutorado de terceiro ciclo (antigo regime),10 Onfray conhecido por ter cooptado sua volta um vasto pblico que adere s suas afirmaes como se fosse uma iniciativa de renovao do discurso filosfico.

    Convencido de que a universidade francesa e a escola re-publicana so antros de perdio nos quais os professores desferem verdades oficiais para crianas submissas, Onfray

    9 Cf. Philippe Grauer, site do CIFP.10 Les implications thiques et politiques des penses ngatives de Schopenhauer Spengler. Mmoire (texto impresso). Sob a orientao de Simone Goyard, Caen, 986.

  • Mas por que tanto dio? 21

    empreendeu uma reviso da histria dos saberes ditos ofi-ciais. Pretende-se libertrio, de extrema-esquerda, adepto de Proudhon contra Marx, antifreudiano, antimarxista (e no freudo- marxista), proclamando-se o defensor do povo explorado pelo capitalismo. Por exemplo, foi durante um tempo simpatizante do Novo Partido Anticapitalista (NPA),11 antes de pedir votos para a Frente de Esquerda nas ltimas eleies regionais.

    De uns anos para c, planejou popularizar uma contra- histria da filosofia que pretende pr fim aos recalcamentos sobre os saberes, que teriam sido censurados pelos profes-sores, pelo papa, pelos padres. Assim, adotou uma metodo-logia baseada no princpio da prefigurao: tudo j est em tudo antes mesmo da ocorrncia do acontecimento.

    Em virtude dessa metodologia, que angaria um autntico sucesso junto ao pblico fascinado pelo que percebe como uma conclamao insurreio das conscincias, Onfray pde afirmar que Immanuel Kant, filsofo alemo do Ilu-minismo, no passava de um precursor de Adolf Eichmann

    idealizador da Soluo Final que se pretendia kantiano , que os trs monotesmos (judasmo, cristianismo, islamismo) so empreendimentos assassinos, que o apstolo Joo ances-tral de Hitler, que Jesus prefigura Hiroshima e, por fim, que o mundo muulmano fascista.12

    11 NPA: Partido poltico francs de extrema-esquerda, fundado aps as eleies presidenciais de 2007. (N.T.)12 Michel Onfray, Trait dathologie, Paris, Grasset, 2005, p.256; e Le songe dEichmann, Paris, Galile, 2008.

  • 22 Freud mas por que tanto dio?

    Na origem desse caso tenebroso, os judeus, fundadores do primeiro monotesmo isto , de uma religio sanguinria cujo eixo a pulso de morte , seriam ento, segundo On-fray, responsveis por todos os infortnios do Ocidente, os verdadeiros criadores da guerra santa:

    Pois o monotesmo privilegia a pulso de morte, afaga a morte,

    goza com a morte, fascinado pela morte, fascinado por

    ela . Da espada sanguinria dos judeus exterminando os

    cananeus ao uso de avies comerciais como bombas voadoras

    em Nova York, passando pelo lanamento de descargas atmi-

    cas em Hiroshima e Nagasaki, tudo se faz em nome de Deus,

    abenoado por ele, mas sobretudo abenoado por todos os que

    o reivindicam. (Trait dathologie, p.20, 22, 228 etc.)

    A essa humanidade monotesta (judaica, crist, muul-mana) fadada ao dio e destruio, Onfray ope uma huma-nidade ateolgica, preocupada com o advento de um mundo higienista, paradisaco, hedonista; a que seria orquestrada por um deus solar e pago integralmente investido pela pulso de vida e do qual ele, Onfray, seria o representante, tendo como misso inculcar aos seus discpulos a melhor maneira de go-zar com seus corpos e com o corpo de seus vizinhos: pela masturbao. Embora parea ignorar as obras de referncia sobre a questo, e em particular o livro de Thomas Laqueur,13

    13 Thomas Laqueur, Le sexe solitaire. Contribution lhistoire culturelle de la sexualit, Paris, Gallimard, 2005.

  • Mas por que tanto dio? 23

    Onfray mostra-se bem determinado a transformar o pnis em objeto de um culto flico e vulcnico herdado dos antigos deuses da Grcia, os quais, como pr-socrticos, seriam os precursores de Nietzsche. No obstante, o fato de Nietzsche ter efetuado um grande retorno aos pr-socrticos no os torna um precursor daquele.

    Ao longo de um ensino intensamente midiatizado, On-fray conseguiu convencer um vasto pblico de que os repre-sentantes desse deus pago, ao celebrarem as virtudes do raio, dos cometas e das tempestades, nunca entraram em guerra contra quem quer que seja, sendo admirveis pacifis-tas. Nessa Grcia virtuosa dos bosques da Baixa Normandia, forjada por Onfray, Homero no existe, nem a guerra de Troia, nem Ulisses, nem Aquiles, nem Zeus, nem Urano, nem os tits, nem a tragdia

    Onfray conta que, na infncia, foi vtima de malvados padres salesianos, entre os quais alguns seriam pedfilos (Le crpuscule, p.5), que o transformaram naquele que ele se tornou. Rebelde alarmista, obcecado pelo compl edipiano que se teria abatido sobre ele, afirma que seu pai, infeliz empregado de leiteria, teria sido uma vtima permanente em um drama cujo pano de fundo seria o mercado da sub-prefeitura de Argentan (p.5). Sua prpria me teria sido abandonada num engradado quando nasceu e, em virtude disso, desenvolveu um dio pelo filho, explica ele, a ponto de espanc-lo e vaticinar que ele terminaria a vida no cada-falso: Sem jamais ter matado pai (e sobretudo) me, nem sonhado com uma carreira de salteador de estrada, menos

  • 24 Freud mas por que tanto dio?

    ainda considerado a arte de degolador, eu me via mal sob a lmina da guilhotina. Minha me no!14

    Para vingar-se do dio que o habita e do qual no para de falar, ele ento decidiu atacar aquele que considera o responsvel por todos os compls contra o pai: Sigmund Freud, acerca do qual sabemos que foi adorado pela me. Onfray admirara-o antigamente a ponto de ler alguns de seus livros na infncia, e se masturbando, como ele mesmo conta,15 e depois incluir sua gloriosa histria na da ateo-logia (Trait dathologie, p.265). Mas eis que, depois de sua converso quase mstica ao antifreudismo radical, Onfray empenhou-se em denunciar o conspiracionismo freudiano, que consiste, segundo ele, em promover o dio aos pais e a adorao s mes para melhor seduzi-las sexualmente: tal , a seus olhos, a essncia da psicanlise, puro e simples relato autobiogrfico desse fundador depravado cujo assassinato [ele] no premeditara.16

    Tenta, por conseguinte, contra Freud, herdeiro da cul-tura judaico-crist, reabilitar a figura maltratada do pai: um pai solar, flamejante e flico. Mas ele s ama os pais com a condio de que jamais sejam pais. Fervoroso adepto do celibato, Onfray no cessa, assim, de afirmar sua recusa da paternidade:

    14 Michel Onfray, La puissance dexister, Paris, Grasset, 2006. Apresen-tao do autor.15 Philosophie Magazine, n.36, fev 200, p.0.16 Entrevista a Livres-Hebdo, 9 abr 200, p.6.

  • Mas por que tanto dio? 25

    As estreis voluntrias gostam tanto de crianas, at mais,

    quanto de reprodues prolficas . Quem acha o real su-

    ficientemente desejvel para iniciar seu filho ou sua filha na

    inexorabilidade da morte, na falsidade das relaes entre os

    homens, no interesse que guia o mundo, na obrigao do tra-

    balho assalariado? Seria preciso denominar amor essa arte

    de transmitir semelhantes vilanias carne de sua carne?17

    3. Freud, perverso sexual; psicanlise, cincia fascista

    Para melhor inscrever seu panfleto na lgica de sua contra- histria dos saberes oficiais, Onfray apresenta Freud como um perverso que infligiu maus-tratos ao pai, julgado pedfilo, mo-lestou psiquicamente as trs filhas (Mathilde, Sophia e Anna) e cometeu adultrio com a cunhada durante quarenta anos, de 898 at sua morte.18 O apartamento de Viena no teria sido, a l-lo, seno um autntico lupanar, e Freud um abominvel dipo que s tinha na cabea fornicar realmente com a me (mesmo numa idade avanada) e depois matar realmente o pai (mesmo depois da morte deste, ocorrida em 896), a fim de engendrar filhos incestuosos para melhor tiraniz-los.

    Sendo assim, durante dez anos Freud teria torturado a filha Anna ao longo de toda uma anlise em forma de pro-cesso inquisitorial, que se teria desenrolado de 98 a 929 e

    17 Michel Onfray, Thorie du corps amoureux, Paris, LGF, 2007, [2000], p.28-20.18 Voltarei a essa clebre questo no Cap.3.

  • 26 Freud mas por que tanto dio?

    durante a qual, diariamente, no sigilo do consultrio, a teria incitado a se tornar homossexual (Le crpuscule, p.243-6). Ora, embora seja exato que Freud analisou a filha, o tratamento durou apenas quatro anos, e no dez. E quando Anna co-meou a tomar conscincia de sua atrao por mulheres, Freud antes incitou-a a se orientar para o trabalho intelec-tual. Mais tarde, quando ela resolveu morar com Dorothy Burlingham e adotar os filhos desta, ele daria provas de tolerncia. Freud no era nem homofbico nem misgino, ainda que sua concepo da sexualidade feminina seja dis-cutvel e foi discutida mais de uma vez.

    Que se danem os argumentos das feministas e outros pesquisadores: Onfray afirma que o grande molestador vienense no passava de um charlato ontologicamente homofbico. A homofobia ontolgica, segundo Onfray, seria muito diferente da homofobia poltica (Le crpuscule, p.53-5). A primeira consistiria em fazer da homossexualidade uma perverso; a segunda visaria criminalizar a homos-sexualidade. Essa distino ainda mais ridcula na medida em que visa introduzir Freud na categoria dos perversos. Ora, a verdade sobre esse caso completamente diferente. Freud, ao contrrio de um bom nmero de seus discpulos, no considerava a homossexualidade uma perverso, sendo favorvel, politicamente, emancipao dos homossexuais.

    Mais uma vez, portanto, a tese de Onfray no tem ne-nhum fundamento. Ao considerar Freud um ditador falo-crata que almeja possuir todas as mulheres me, irms, cunhada, filhas, esposa , ele tambm fala de si mesmo.

  • Mas por que tanto dio? 27

    Afinal, no enunciou por diversas vezes, alm de sua opo pelo celibato e pela no paternidade, sua inclinao filosfica pela poligamia solar, ertica, hedonista, vulcnica, pag e antijudaico-crist? Nada a criticar quanto a isso seno que, em se tratando de Freud, ele se transforma em inquisidor daquilo que, por outro lado, se diz adepto.

    Cedendo a um velho boato inventado por Carl Gustav Jung (e atualizado pelos revisionistas da escola norte-ame-ricana e pelos puritanos), segundo o qual Freud teria tido em 898 um caso com Minna Bernays, irm de Martha, sua mu-lher, por ocasio de uma viagem a Engadina,19 Onfray chega a imaginar que ele teria mantido relaes sexuais com ela ao longo de toda a vida, no quarto contguo ao seu e sob o olhar cmplice da mulher que teria muitas vezes assistido aos embates dos amantes. Pior ainda, Freud teria engravidado Minna e depois a teria obrigado a abortar. Manifestamente, Onfray, indiferente ao mesmo tempo s leis da cronologia e s da procriao, situa esse episdio em 923. Ora, nessa data Minna tinha 58 anos e Freud 67. Mesmo Peter Swales, disseminador desse boato, no situou o episdio nessa data, mas vinte anos antes.20

    E Onfray ainda acrescenta que Freud teria cedido ten-tao de sofrer uma operao dos canais espermticos a fim de aumentar sua potncia sexual para gozar melhor com o corpo de Minna:

    19 Cf. Sigmund Freud, Notre cur tend vers le sud. Correspondance de voyage 1895-1923, prefcio de Elisabeth Roudinesco, Paris, Fayard, 2005.20 Cf. Cap.3.

  • 28 Freud mas por que tanto dio?

    Nesse ano, aos 67 anos, Freud, o cientista, passa por uma liga-

    dura dos canais espermticos sob o pretexto de que esse gnero

    de interveno rejuvenesce o sujeito e revigora as potncias

    sexuais declinantes os defensores da verso hagiogrfica do

    heri renunciando sexualidade para sublimar sua libido na

    produo de uma obra universal, a psicanlise, devero rever

    sua cpia Em contrapartida, para os defensores de uma vida

    sexual com tia Minna, e a hiptese de uma viagem efetuada

    Itlia para um aborto, as coisas parecem coerentes Os ha-

    gigrafos afirmam simploriamente: essa ligadura prevenia a

    volta do cncer. (Le crpuscule, p.246)

    E na entrevista concedida a Livres-Hebdo,21 ele acrescenta que Freud tambm teria mantido relaes simblicas inces-tuosas com a filha de sua amante. Com Freud, observa ainda, o bordel nunca est muito longe do mosteiro.

    Mas quem ento essa filha? Minna nunca teve filhos. Pergunta-se como o jornalista que conversa com Onfray pode engolir essas lorotas. No programa de Franz-Olivier Giesbert (France 2, em 9 de abril), ele se julgou autorizado at mesmo a dizer, diante da cara feliz da vida de seu inter-locutor orgulhoso, manifestamente, de registrar revela-es em primeira mo , que Freud trabalhara no Instituto Gring de Berlim entre 935 e 938.

    Ora, Freud no saiu de Viena nessa poca. Quanto colabo-rao entre os freudianos e Jones na poltica de nazificao22

    21 Livres-Hebdo, op.cit.22 Designada arianizao pelos nazistas. A psicanlise ento decre-tada cincia judaica e seu vocabulrio erradicado: as palavras da

  • Mas por que tanto dio? 29

    da psicoterapia alem orquestrada por Matthias Heinrich Gring, ela plenamente conhecida dos historiadores. Freud omitiu-se e foi um erro poltico grave23 na esteira de um longo conflito cujos vestgios encontramos em sua corres-pondncia com Max Eitingon,24 que Onfray no leu direito

    ainda que a cite , uma vez que ignora os detalhes do caso e faz de Eitingon o iniciador dessa poltica, que ele entre-tanto repeliu com firmeza antes de emigrar para a Palestina, opondo-se a Jones e Freud.

    Alm disso, Onfray declara que Freud, ganancioso, char-lato, falsrio, dissimulador, cobrava de seus pacientes vie-nenses o correspondente a 450 euros por sesso, sugerindo, alis, que seus herdeiros o teriam imitado. Para quem co-nhece a realidade da prtica psicanaltica e mesmo a de suas piores distores , foroso constatar que a afirmao totalmente gratuita.

    Convencido de que Minna podia estar grvida aos 58 anos e ignorando a histria da medicina, Onfray critica os hagi-grafos por terem ocultado a verdade relativa sexualidade de Freud. A realidade bem diferente: em 923, Freud so-freu uma operao de ligadura conhecida como cirurgia de Steinbach. Esse endocrinologista foi um dos primeiros

    psicanlise so, de certa forma, exterminadas antes mesmo da aplica-o do programa da Soluo Final. Onfray diz o contrrio (Le crpuscule, p.549), escarnecendo da verdade dos fatos, convencido de que apenas os psicanalistas foram perseguidos e a doutrina salva.23 Que Ren Major e eu mesma denunciamos em 986, e mais tarde por ocasio da realizao dos Estados-Gerais da Psicanlise, em 2000.24 Sigmund Freud e Max Eitingon, Correspondance, Paris, Hachette- Littrature, 2009.

  • 30 Freud mas por que tanto dio?

    a compreender a funo das clulas intersticiais (que se-cretam os hormnios masculinos). Ligando os canais, ele cogitava obter uma relativa hipertrofia das clulas e, por conseguinte, um rejuvenescimento do sujeito. Como se pensava na poca que a formao do cncer se devia em parte ao processo de envelhecimento, a operao de reju-venescimento de Steinbach era considerada um meio de prevenir o retorno do cncer.25

    Apstolo do prazer solar, Onfray acusa Freud no apenas de ter engravidado a cunhada como de ter estimulado a represso masturbao (Le crpuscule, p.497-504). O ataque torna-se ainda mais cmico porque Freud foi espinafrado por vrios sexlogos puritanos do incio do sculo XX jus-tamente por ter condenado as torturas infligidas s crianas em nome da represso da masturbao (mos amarradas na cama, aparelhos estarrecedores, exciso das meninas, amea-as diversas, surras etc.).

    Obcecado pela pedofilia, Onfray multiplica as declaraes na imprensa para denunciar todos aqueles que imagina se-rem cmplices desse crime. Repetindo por conta prpria algumas acusaes grotescas contra Daniel Cohn-Bendit e citando uma famosa petio de 977 assinada por vrios in-telectuais franceses na poca favorveis a uma reviso da lei sobre a sexualidade dos adolescentes,26 ele no hesitou em fustigar a intelligentsia francesa, em seu blog, em novem-

    25 Max Schur, La mort dans la vie de Freud, Paris, Gallimard, 972, p.434.26 Cf. Jean-Franois Sirinelli, Intellectuels et passions franaises, Paris, Fayard, 990, p.269-70.

  • Mas por que tanto dio? 31

    bro de 2009: todos asseclas da pedofilia, sugere (Pdophilie mon amour). E, da mesma forma, ataca Roman Polanski e Frdric Mitterrand:

    A pedofilia tem boa imprensa. Quando Bayrou27 lembra, com

    razo, que Cohn-Bendit acariciava o sexo das crianas e se

    deixava acariciar por elas, Bayrou, o infame! Quando a pe-

    tio contra a maioridade sexual rene em 977 a fina flor dos

    intelectuais da poca (Derrida, Deleuze, Guattari, Althusser,

    Sartre, Beauvoir, Sollers etc.), mas tambm os agora sarkozis-

    tas Kouchner, Bruckner, Glucksmann ningum tem nada

    a dizer, nem mesmo Dolto, igualmente signatria.

    Uma vez que Freud um perverso, lgico que sua dou-trina ateste uma perverso fundamental: esta seria, segundo Onfray, produto de alguma coisa estranha ao corpo normal e saudvel do homem, um elemento heterogneo associado a estigmas precisos. Seria, de certa forma, o oposto da dou-trina professada por esse deus solar e vulcnico, fonte de vida e anttese absoluta do judeu-cristianismo criador de guerra, destruio e pulso de morte. Da mesma forma, Onfray faz da psicanlise o produto de uma cultura decadente e fim de sculo na qual ela proliferou como uma planta venenosa (Le crpuscule, p.566-7). Repete assim, por conta prpria, e

    27 Franois Bayrou: poltico francs, presidente da Unio Democrtica Francesa, ex-aliado da UMP (Unio por um Movimento Popular), par-tido do presidente francs Nicolas Sarkozy. (N.T.)

  • 32 Freud mas por que tanto dio?

    sem o saber,28 a grande temtica da extrema- direita fran-cesa, que desde Lon Daudet sempre comparou a psicanlise a uma cincia estrangeira (boche ou judia) que se en-xerta como um parasita sobre o corpo do Estado- nao; uma cincia mortfera concebida por um crebro degenerado e nascido em uma cidade depravada (Viena), no corao de um Imprio em plena deliquescncia.

    Portanto, nessas condies, no admira ver surgir sob sua pena no uma crtica da psicanlise maneira notvel de um Theodor Adorno, um Herbert Marcuse, de certas feministas ou dos culturalistas norte-americanos, ou ainda de Gilles Deleuze ou Michel Foucault,29 mas uma acusao anloga dos adeptos do neopaganismo antijudaico-cristo. Pois de fato nessa veia que se situa o autor de Le crpuscule dune idole, quando, invertendo a acusao de cincia judaica pronun-ciada pelos nazistas contra a psicanlise, faz desta uma cin-cia adequada ao fascismo (p.566s) e de seu fundador uma espcie de ditador adepto da desigualdade das raas (p.533).

    O raciocnio simples: acusando Freud de haver teori-zado a noo de pulso de morte e t-la inscrito no mago da histria humana, Onfray acaba por afirmar que, uma vez

    28 O que talvez seja ainda mais grave e cmico ao mesmo tempo. Cf. texto de Guillaume Mazeau, no Cap.4.29 Inseri suas crticas na histria da psicanlise, e elas nada tm a ver com o antifreudismo radical da escola revisionista norte-americana. Nada a ver, tampouco, com o antifreudismo radical da extrema-direita francesa. Cf. Elisabeth Roudinesco, Filsofos na tormenta, Rio de Janeiro, Zahar, 2007, [2005]. E Jacques Derrida e Elisabeth Roudinesco, De que amanh Dilogo, Rio de Janeiro, Zahar, 2004, [200].

  • Mas por que tanto dio? 33

    que os nazistas levaram a cabo a mais brbara consumao dessa pulso, Freud seria o precursor dessa barbrie, bem como um representante do anti-Iluminismo incitado pelo

    dio de si judeu (p.228 e 476).30Mas teria feito ainda pior: ao publicar, em 939, Moiss e

    o monotesmo religioso, isto , ao fazer de Moiss um egpcio, e do assassinato do pai um dos princpios do advento das sociedades humanas, teria assassinado o pai da Lei judaica, estimulando assim o extermnio de seu prprio povo pelos nazistas (p.226-7). Em suma, seria mais uma vez, por ante-cipao, um perseguidor dos judeus, um homem que, no podendo admitir-se nacional-socialista porque era judeu, teria transformado seu fervor por Hitler em admirao por Mussolini, a ponto de imit-los em Psicologia das massas e anlise do eu ensaio publicado em 92 e que passa ao largo desse assunto: Evidentemente, Freud, como judeu, no pde salvar nada do nacional-socialismo. Em contra-partida, o cesarismo autoritrio de Mussolini e o austro-fas-cismo de Dollfuss ilustram perfeio as teses de Psicologia das massas e anlise do eu (Le crpuscule, p.546). E Onfray ainda pretende provar o que afirma relatando um episdio de pleno conhecimento de todos os historiadores.

    Em 933, Edoardo Weiss, discpulo italiano de Freud, apre-senta-lhe em Viena uma paciente tratada por ele. O pai desta, Giovacchino Forzano, autor de comdias e amigo de Musso-

    30 Freud, entretanto, sempre criticou o dio de si judeu. Cf. Elisabeth Roudinesco, Retorno questo judaica, Rio de Janeiro, Zahar, 200.

  • 34 Freud mas por que tanto dio?

    lini, acompanha a filha. No fim da consulta, ele pede a Freud que dedique um de seus livros ao Duce. Por respeito a Weiss, que em seguida ser compelido emigrao, Freud consente e escolhe Por que a guerra?, escrito em colaborao com Al-bert Einstein entre 932 e 933: A Benito Mussolini, com a saudao respeitosa do homem que reconhece na pessoa do governante um heri da cultura.31 Mais tarde, Weiss pe-dir a Jones para omitir esse episdio, mas este se recusar, chegando a acusar Weiss de cumplicidade com Mussolini.

    Sem conhecer os detalhes desse caso, sobre o qual engana- se, portanto, redondamente, Onfray deduz que Freud apoia o fascismo (Le crpuscule, p.524-32) e que Por que a guerra?, escrito com Einstein, uma apologia do crime.

    Quando se sabe que Freud foi um pensador do Ilumi-nismo sombrio, e jamais adepto do anti-Iluminismo, que afirmou que o assassinato do pai era o ato fundador das sociedades humanas, com a condio todavia de que o as-sassinato fosse sancionado pela Lei (modelo das tragdias gregas), e que era admirador tanto de Cromwell (o regi-cida) quanto da monarquia constitucional inglesa (capaz de

    31 Observemos que Freud levou certo tempo para perceber que o nazis-mo destruiria toda a psicanlise europeia. Da seu erro poltico diante da poltica de salvamento da psicanlise preconizada por Jones na Alemanha (contra Eitingon e Wilhelm Reich). E, se veio a acreditar que Dollfuss ou Mussolini poderiam constituir uma muralha contra Hitler, como aparece em sua correspondncia, nem assim isso o transforma num assecla do fascismo, como afirma Onfray interpretando distorci-damente o significado das cartas, j que as isola de seu contexto. Alis, a partir de 936, Freud no alimenta mais qualquer iluso.

  • Mas por que tanto dio? 35

    sancionar o regicdio), perguntamo-nos como Onfray pde sustentar tamanhas extravagncias.

    Se a psicanlise , como ele afirma, uma religio ditatorial, e Freud um colaborador de Gring, isso significa que ela incompatvel com a democracia. Mas por que ento ela s se desenvolveu nos pases onde preexistia o Estado de di-reito? Por que sempre foi banida, enquanto tal, pelos regimes totalitrios ou teocrticos, mesmo quando seus praticantes colaboravam com esses regimes? Onfray no faz a pergunta, contentando-se em afirmar que se ela fez sucesso foi porque Freud organizou milcias para defend-la, transformando-a assim numa religio fantica que estimulava a guerra e as carnificinas de guerra. Por conseguinte, ela devia sua sobrevivncia exclusivamente ao fato de estabelecer uma equivalncia entre carrasco e vtima.

    Recusando de facto o prprio princpio da histria das cin-cias segundo o qual nenhuma norma deve ser essencializada em relao a uma patologia uma vez que os fenmenos patolgicos so sempre variaes quantitativas dos fenme-nos normais , Onfray reintroduz uma viso maniquesta da relao entre o normal e o patolgico. Ele a pensa sempre segundo o eixo do bem e do mal: de um lado, o paraso da norma (os adeptos do deus solar, pacifistas e hedonistas); de outro, o inferno da patologia (os loucos, pedfilos, per-versos, monstros, cristos, judeus, nazistas, muulmanos).

    E isso to insistentemente e de tal forma que chega a afir-mar que a psicanlise incapaz como tampouco o prprio Freud de distinguir o carrasco da vtima, uma vez que,

  • 36 Freud mas por que tanto dio?

    para ela, tudo se equivale: o doente e o homem normal, o louco e o psiquiatra, o pedfilo e o bom pai etc. E, a res-peito do extermnio das quatro irms de Freud pelos nazis-tas, Onfray declara que a psicanlise no permite explicar o problema da Soluo Final, da qual a famlia Freud vtima. Diz ele:

    Como apreender intelectualmente o que distingue psiquica-

    mente sua irm Adolfine, morta de fome no campo de There-

    sienstadt, ou suas outras trs irms, mortas nos fornos crema-

    trios de Auschwitz em 942, de Rudolf Hss, o comandante

    desse campo de sinistra memria, se nada os distingue psiqui-

    camente, salvo alguns degraus praticamente invisveis e de tal

    forma irrelevantes que Freud nunca chegou a teorizar essa dis-

    tncia mnima no entanto to primordial? (Le crpuscule, p.566)

    Observemos, alis, que Onfray engana-se quanto ao campo: Rosa foi exterminada em Treblinka, e Mitzi e Paula em Maly Trostents. Se por um lado a Soluo Final de fato colheu a famlia Freud, no foi certamente nesse cara a cara sem distino psquica imaginado por Onfray entre o co-mandante do campo de Auschwitz (Hss) e as quatro irms do fundador da psicanlise, acusado de ter apagado, por ante-cipao, toda diferena entre o exterminador e suas vtimas.

    Que o dio seja o outro rosto do amor, escreve Onfray falando de Freud, permitam-me duvidar disso, em primeiro lugar porque no h em mim dio pela psicanlise . E acrescenta:

  • Mas por que tanto dio? 37

    Todo dio de uma vtima judia por seu carrasco nazista parece-

    me longe de significar para ela um outro nome do amor! Pre-

    cisamos parar com esse tipo de pseudoargumento freudiano

    de que o nada uma das modalidades do todo, o branco uma

    das modalidades do preto, a crtica (aberta) a Freud uma das

    modalidades (inconsciente) do amor a Freud.32

    Arrebatado pela negao de seu dio, e convencido de que ainda assim ama a psicanlise uma vez que pretende fundar uma escola de psicoterapia existencial e freudo- marxista para os pobres , Onfray atribui incessantemente suas prprias obsesses ao fundador da psicanlise. Pois, na realidade, Onfray e no Freud que se permite afirmar que o dio de uma vtima judia por seu carrasco nazista o outro nome do amor. E foi de sua imaginao que brotou o roteiro macabro desse cara a cara entre Rudolf Hss e as quatro irms de Freud.

    Uma vez que a psicanlise no passa do outro nome de uma religio ditatorial criada por um judeu ressentido e per-verso, compreensvel que Onfray se entregue, no fim de seu livro, a uma reabilitao sistemtica das teses paganistas oriundas de determinada extrema-direita francesa.

    Assim, enaltece La scolastique freudienne, livro de Pierre Debray-Ritzen,33 pediatra e fundador da Nova Direita, que nunca cessou de fustigar tanto o divrcio e o aborto quanto

    32 Michel Onfray, Lire, mar 200, p.35.33 Pierre Debray-Ritzen, La scolastique freudienne, Paris, Fayard, 972.

  • 38 Freud mas por que tanto dio?

    a religio judaico-crist, hostil, segundo ele, ecloso de uma verdadeira cincia materialista. Da sua reivindicao de um atesmo fantico, baseado no culto ao paganismo. Escreve Onfray:

    No fim de sua vida, esse tio de Rgis Debray que no poderia

    mais apresentar um programa na rdio Courtoisie, uma mdia

    claramente direita da direita . Como pretender a pertinn-

    cia de bons argumentos crticos num mundo onde o essencial

    da classe intelectual comunga menos com a esquerda do que

    em seu catecismo? (Le crpuscule, p.595)

    No satisfeito em atacar a esquerda francesa, da qual en-tretanto afirma fazer parte, Onfray gaba os mritos de ou-tro livro, oriundo da mesma tradio, Mensonges freudiens. Histoire dune dsinformation sculaire, publicado na Blgica por Jacques Bnesteau,34 prefaciado por um simpatizante da Frente Nacional, apoiada pelo Club de lHorloge,35 e no qual possvel ler que no existia antissemitismo em Viena du-rante o entreguerras, uma vez que nessa poca incontveis judeus ocupavam postos importantes em todas as esferas da sociedade civil. Escreve Onfray:

    34 Jacques Bnesteau, Mensonges freudiens. Histoire dune dsinformation sculaire, Paris, Mardaga, 2002, p.90-.35 Para maiores informaes sobre o Club de lHorloge, ver Crnica de um antissemitismo camuflado: o Club de lHorloge e a psicanlise, in Elisabeth Roudinesco, Em defesa da psicanlise, Rio de Janeiro, Zahar, 200. (N.T.)

  • Mas por que tanto dio? 39

    Em seu livro, Bnesteau critica o uso que Freud faz do antis-

    semitismo para explicar a frieza a ele imposta por seus pares,

    sua ausncia de reconhecimento pela universidade, a lentido

    de seu sucesso. guisa de demonstrao, ele explica que em

    Viena, nessa poca, incontveis judeus ocupam cargos impor-

    tantes na Justia, na poltica, no jornalismo, na edio o que

    lhe valer ser classificado por Elisabeth Roudinesco na ver-

    tente do antissemitismo disfarado (Le Club de lHorloge

    et la psychanalyse: chronique dun antismitisme masqu,

    Les Temps Modernes, n.627, abr-mai-jun 2004) disfarado, ou

    seja, invisvel, embora presente e real . Ora a leitura desse

    calhamao no contm nenhuma observao antissemita, no

    encontramos nele nenhuma posio que explicite a posio

    poltica de seu autor. (Le crpuscule, p.596)

    Ao cabo de seu libelo de acusao, Michel Onfray subs-creve a tese segundo a qual Freud homofbico, misgino, defensor do fascismo, responsvel por antecipao pelo ex-termnio das irms, adepto de uma sexualidade doentia e de uma concepo pervertida das relaes entre norma e patologia teria inventado perseguies antissemitas que no existiam em absoluto em Viena: mania de enxergar em toda parte e sob quaisquer circunstncias, na mais pura tra-dio da ideologia conspiracionista francesa, a mo, o olho e o nariz de Freud.

    leitura de um livro desses, cujo mbil ultrapassa am-plamente o clssico debate entre adeptos e opositores da psicanlise, sentimo-nos no direito de nos perguntar se as

  • 40 Freud mas por que tanto dio?

    consideraes comerciais que acompanharam tal publicao no adquiriram tal peso que seriam suscetveis de abolir todo juzo crtico e senso de responsabilidade. No obstante, a pergunta merece ser posta.

  • ii. Uma velha histriaEntrevista a Sylvain Courage1

    1 quoi sert la psychanalyse, Le Nouvel Observateur, n.2.369, -7 abr 200. Agradeo a Denis Olivennes por ter autorizado a publicao desta en-trevista.

  • 43

    Sylvain Courage: Por que as teorias de Freud sempre des-pertaram certa rejeio?

    Elisabeth Roudinesco: O dio a Freud manifestou-se desde os seus primeiros escritos. Ele da mesma natureza que o dio a Darwin. Freud realizou algo que parece intolervel humanidade. a revoluo do ntimo. a explicao do in-consciente e da sexualidade. Eis o primeiro escndalo, e ele continua a chocar. Assim como todas as Igrejas recriminam Darwin por ter feito do homem um descendente do macaco, elas detestam Freud por ter transformado a sexualidade em uma coisa normal e no mais patolgica. Quando Freud de-butou, todos os psiclogos se interessavam pela sexualidade, mas para reprimir as que pareciam perversas: os verdadei-ros perversos sexuais, decerto, mas tambm, e sobretudo, as mulheres histricas, julgadas doentias porque desviavam o corpo da maternidade, os invertidos, porque recusa-vam a procriao, e as crianas degeneradas, porque se masturbavam.

    Eis a grande questo em 890-900. Freud empenha-se em respond-la. Afirma que para compreender a sexualidade

  • 44 Freud mas por que tanto dio?

    humana cumpre emancipar-se das descries puramente sexolgicas. Em outros termos, normal uma criana mas-turbar-se, o caso s patolgico quando ela no faz outra coisa na vida! Segundo Freud, a sexualidade perverso-poli-morfa encontra-se potencialmente no mago de cada um de ns. No h, de um lado, perversos degenerados e, de outro, indivduos normais. H graus de norma e patologia. O ser humano, no que tem de mais monstruoso, faz parte da humanidade. E a criana mora no nosso corao. Faz-se necessrio ento libertar a criana e redefinir os critrios da perverso. Para libertar a mulher histrica de seus conflitos e de seu sofrimento, existe a fala.

    SC: A psicanlise tambm sempre foi criticada por no ser uma cincia. Qual a relao de Freud com as cincias da natureza, reivindicadas por ele no incio da carreira?

    ER: Muito cedo, em 896, Freud, que era mdico, abandonou o modelo neurolgico. Digam o que disserem os que hoje gostariam de ver nele um adepto precoce das neurocincias, ele compreendeu que precisava romper com as mitologias cerebrais. Esperava que um dia a medicina do crebro pro-gredisse. Nada tinha contra a cincia. Mas fundou a psica-nlise a partir de outra racionalidade, que no da mesma ordem que a das cincias da natureza. Compreendeu que o homem no era apenas neuronal, mas feito de mitos, fanta-sias, cultura. E colocou no cerne da subjetividade a tragdia grega a de Sfocles (dipo) , mas tambm a conscincia

  • Uma velha histria 45

    culpada de Hamlet. Em suma, a psicanlise uma cincia humana da mesma forma que a antropologia: no um ramo da neurologia. E se biologizamos as cincias humanas, soobramos no obscurantismo, e mesmo no ocultismo: de-tectamos causalidades ali onde elas no esto. O desencadea-mento psquico das doenas orgnicas o cncer, por exem-plo no est de forma alguma provado cientificamente, e se confundimos tudo aterrorizamos as pessoas, fazendo-as acreditar que se tiverem uma vida psquica higinica no tero doenas, o que contrrio ao que diz a cincia mdica e ordem natural do mundo e da vida.

    SC: Qual , a seu ver, a especificidade da crtica a Freud na Frana?

    ER: Nos Estados Unidos o puritanismo, aliado ao cientifi-cismo, alimentou os ataques contra o freudismo. O debate historiogrfico, por exemplo, incidiu sobre a sexualidade de Freud. Teria ele ido para a cama com a cunhada em 898? Segundo o grande mexerico norte-americano, inteiramente forjado, Freud a teria engravidado e obrigado a abortar.2 Na Frana, esse tipo de polmica no pega. No incio, a elite intelectual apoderou-se das teses de Freud. Os surrealistas e os progressistas viram nelas uma revoluo, na linha di-reta de Rimbaud: eu um outro. No contexto do caso Dreyfus, o freudismo foi associado ideologia de 789. Mas

    2 Cf. Cap.3.

  • 46 Freud mas por que tanto dio?

    nossa histria tem duas faces: a Frana produziu Valmy e Vichy.3 Desde essa poca, assistimos a uma luta feroz entre os defensores de uma psicologia francesa tendo como eixo a fisiologia Thodule Ribot ou Pierre Janet e o freudismo considerado uma cincia boche, antinacional, especulativa. No podemos esquecer que muitos psiclogos franceses tam-bm teorizaram a desigualdade entre os povos e raas a fim de justificar a colonizao. Eis por que h frequentemente na Frana uma mistura inconsciente entre antifreudismo, ra-cismo, chauvinismo e antissemitismo fundada no dio pelas elites e no populismo. Nos anos 970, Pierre Debray-Ritzen ressuscitou o velho arsenal antijudaico-cristo ao designar a psicanlise como cincia judaica. No que o acompanha o panfleto antifreudiano de Jacques Bnesteau.4 Os eternos compls e trapaas atribudos aos psicanalistas por adeptos do conspiracionismo so duvidosos.

    SC: Essas polmicas no resultam principalmente do fato de a psicanlise ter sido superada pelo progresso mdico?

    ER: De forma alguma. Segunda Guerra Mundial sucede-se a revoluo dos psicotrpicos, e principalmente dos neuro-

    3 Batalha de Valmy (20 set 792): combate entre tropas francesas e prus-sianas que no se consumou, pois o exrcito prussiano se retirou de campo. Ainda assim, representou a primeira vitria militar da Revo-luo Francesa. Vichy: cidade a sudoeste de Paris que serviu de capital ao regime poltico que vigorou na Frana durante a ocupao nazista (940-44). (N.T.)4 Jacques Bnesteau, Mensonges freudiens. Histoire dune dsinformation sculaire, Paris, Mardaga, 2002.

  • Uma velha histria 47

    lpticos. Isso permite suprimir o hospcio. Os medicamen-tos da mente puseram fim s camisas de fora. Foi possvel tratar, ou pelo menos estabilizar, as psicoses. Mas no as neuroses, tampouco as depresses. E os tratamentos medi-camentosos no bastam em nenhum dos casos. Na verdade, para tratar as psicoses convm associar, administrao ponderada de psicotrpicos, tratamentos psquicos baseados na fala, bem como uma assistncia que permita reintegrar os doentes na cidadania. Ora, essa tripla abordagem, a nica que permite progredir, muito cara. Eis por que as socieda-des ocidentais preferem abandon-la e conformar-se a uma ideologia cientificista aparentemente mais barata.

    SC: Como se manifesta essa ideologia cientificista?

    ER: Ela prevaleceu por intermdio do Manual estatstico e diagnstico dos transtornos mentais (DSM). De origem norte- americana, essa nova carta das classificaes adotada pela Organizao Mundial de Sade deve supostamente inven-tariar os distrbios psquicos a fim de prescrever os trata-mentos. Ela foi imposta a todos os mdicos. Mas, a meu ver, simples fruto de uma posio ideolgica. Passou-se a acreditar que tudo deriva de um mecanismo cerebral. Ao invs de considerar o sujeito segundo o que ele vive, apenas seus comportamentos so levados em conta. O pro-blema, por conseguinte, que no sabemos mais quem louco e quem no . Voc foi checar trs vezes se a sua porta est bem fechada? Voc um angustiado, logo, doente

  • 48 Freud mas por que tanto dio?

    mental. Ningum se preocupa em saber a que remetem os comportamentos. O sujeito recortado, dividido, normati-zado. Ningum quer mais saber nada sobre o ntimo. A tal ponto que a influncia do DSM fomenta uma revolta dos prprios sujeitos. Notadamente contra o projeto de incluir no DSM, em preparao para 203, as novas dependncias internet e a outras mdias como drogas nocivas. Sabemos claramente, no entanto, que para determinar se algum de fato alienado por sua dependncia convm recorrer fala e ouvir o que ele tem a dizer. Na prxima fornada do DSM, cogita-se incluir tambm os comportamentos sexuais sob o ngulo das dependncias. Nesse domnio, onde est a norma? Quantas vezes por semana? Como? Vemo-nos num impasse.

    SC: Rivalizando com outras abordagens, principalmente as terapias cognitivo-comportamentais (TCC), o tratamento psicanaltico clssico pode evoluir?

    ER: Creio que sim. Assisti petrificao do tratamento cls-sico: atualmente o silncio do analista durante anos no mais aceitvel, se que um dia foi. Da o sucesso das terapias comportamentais e cognitivas, que pretendem eliminar os sintomas das enfermidades psquicas que nos apresentam como as doenas do sculo: fobias, transtornos obsessivos compulsivos (TOC), perda da autoestima etc. Por compara-o, os analistas se veem criticados por sua no interveno sobre os sintomas. Ora, a anlise pode responder a isso bem

  • Uma velha histria 49

    melhor que as TCC. Convm, entretanto, propor tratamen-tos curtos e dinmicos, como os praticados pelo prprio Freud. Tudo est para ser reinventado no domnio clnico de modo a que o tratamento seja adaptado a cada sujeito.

    SC: Dividido em uma legio de grupelhos que se enfrentam, o movimento psicanaltico pode reagir?

    ER: Ao se estruturar, o movimento psicanaltico tornou-se conservador, corporativista. Nos anos 930-60, a guinada kleiniana, que evidenciou o papel central da me, e depois a revoluo lacaniana (950-70), que associou psicanlise e teo-ria da linguagem, trouxeram ideias inovadoras. Mas essas revolues tambm produziram novos conformismos. Isso ficou patente quando a emancipao das mulheres, depois a dos homossexuais, veio abalar a vulgata freudiana. Fez-se claramente necessrio rever o velho modelo patriarcal, re-visar as antigas concepes da sexualidade feminina, per-mitir aos homossexuais serem psicanalistas e pais. Aps ter sido atacado pela direita, o freudismo viu-se fustigado pela esquerda e por filsofos brilhantes dos quais fui bem pr-xima: Deleuze, Derrida, Lyotard etc. E a crtica foi fecunda. Hoje em dia, infelizmente, a maioria dos analistas parece desprezar o engajamento cidado. So despolitizados e frequentemente ignoram sua histria, o que os impede de serem eficazes na luta ideolgica que os antifreudianos radicais travam contra eles. Por outro lado, diversos psis aferram-se a teses de outras eras ao condenar, por exemplo,

  • 50 Freud mas por que tanto dio?

    a famlia monoparental, a homoparentalidade ou a barriga de aluguel, embora essas novas formas de filiao sejam perfeitamente concebveis e lhes digam respeito no mais alto grau.

  • iii. Histria de um boato: o caso de Freud com a cunhada1

    1 O apartamento de Freud, situado na Berggasse, 9, em Viena, atual-mente um museu. Mas em Londres, para onde Freud emigrou em 938, que se encontram sua biblioteca, suas colees, seus mveis e numerosos arquivos. O Freud Museum de Londres est situado em Ma-resfield Gardens, 20, no bairro de Hampstead. Cf. Elisabeth Roudinesco e Michel Plon, Dicionrio de psicanlise, Rio de Janeiro, Zahar, 998.

  • 53

    Na casa de Freud moravam cerca de onze pessoas: Freud, Minna Bernays, sua cunhada, Martha, sua mulher, seis fi-lhos e duas empregadas. Freud reconstitura assim o uni-verso familiar ao qual em sua infncia era apegado. E no momento em que Minna passa a morar em seu apartamento (a partir de 896), como era comum na poca, que as princi-pais teorias freudianas so elaboradas: o complexo de dipo, o abandono da teoria da seduo, tudo coisas referentes s relaes internas na famlia seduo de crianas por paren-tes e pais, abandono dessa tese, fantasias, interdito do incesto etc. Aps o nascimento de Anna, sua ltima filha, Freud, segundo suas prprias palavras, cessa de manter relaes sexuais com Martha, esgotada pelas sucessivas gravidezes.

    a partir dessa data tambm que Freud decide, nos ve-res, ceder paixo pelas viagens, vencendo sua antiga fobia. Martha, por sua vez, tem verdadeiro horror de viajar. Freud ento passa uma parte das frias de vero em famlia, e a outra parte viajando. Minna um de seus companheiros prediletos de viagem. Digo companheiro, pois o termo mais pertinente do que companheira.2

    2 Cf. Sigmund Freud, Notre cur tend vers le sud: correspondence de voyage, 1895-1923, prefcio de Elisabeth Roudinesco, Paris, Fayard, 2005.

  • 54 Freud mas por que tanto dio?

    No vero de 898, os dois vo a Engadina pela primeira vez. Empolgados com a escapada, enviam cartes-postais a Martha, evocam as dificuldades enfrentadas pelos turistas na poca (quartos difceis de reservar ou encontrar, horrios de trem complicados etc.). s vezes, dormem em quarto du-plo cujas duas partes so separadas por uma cortina, como se fazia corriqueiramente, mas em geral pegam dois quartos.3

    Em 0 de agosto de 898, Minna escreve a Martha: Posso finalmente desfilar meu vestido de flanela, e com todas as minhas joias, e naturalmente Sigi [Sigmund] me acha sem-pre muito elegante, mas no sei se partilho essa opinio (Notre cur, p.5). No dia 3, Freud envia a Martha uma carta postada de Maloja: Minna e ele, escreve, esto com a cara tima e paramos num modesto estabelecimento suo em frente a uma fortaleza transformada em hotel (Notre cur, p.7). Permanecero ali at o dia 5.

    Durante uma viagem a Riva, perto do lago de Garde, onde pegam dois quartos, Freud declara sentir-se constran-gido com a presena de hspedes austracos capazes de re-conhec-lo. Ainda mais, acrescenta, que est acompanhado de uma mulher que no a sua (Notre cur, p.34). Sente-se culpado, evidentemente, mas Minna nem um pouco: ne-nhum indcio de constrangimento em sua correspondncia.

    A partir de 922, trs mulheres vivem na casa dos Freud: Minna, Martha e Anna Freud, sua filha, que de certa ma-

    3 Sobre essa questo, ver Michelle Perrot, Histoire de chambres, Paris, Seuil, 2009. Transmiti minhas observaes autora, que as cita no captulo dedicado aos quartos de hotel e viagem.

  • Histria de um boato 55

    neira desempenha junto a ele um papel similar ao de Minna. Analisada por ele, vir a ser chefe de escola, e ele sentir tanto cime disso quanto sentira de Martha quando esta foi cortejada por um certo rapaz.

    Isso bastou para que Freud fosse acusado de bgamo e de manter uma relao sob o prprio teto com a cunhada, e com o consentimento tcito de Martha. medida que a psicanlise obtinha reconhecimento e sucesso e se disse-minava o dio por seu fundador, visto como um obcecado sexual, impunha-se a ideia de que ele no passava de um hipcrita e de um mentiroso: embora sustentasse a tese da necessidade dos interditos fundamentais para a reproduo das sociedades, ele prprio os transgredia. E isso era intole-rvel para os puritanos.

    Esse rumor pairou sobre Viena enquanto Freud viveu, mas ganhou uma importncia considervel no mundo an-glfono aps a Segunda Guerra Mundial, a ponto de tornar-se o centro de um grande debate historiogrfico, quando o movimento psicanaltico construiu sua histria oficial to-mando por base a famosa biografia de Ernest Jones: histria oficial e no hagiogrfica, sutileza relevante para todos os historiadores srios.

    Foram muitos os que espalharam o boato: Bruno Bet-telheim, Carl Gustav Jung, Max Graf. O primeiro nunca fora ntimo de Freud, mas era igualmente um personagem transgressor. O segundo havia sido, at 93, discpulo de Freud. Jung era conhecido por seus casos extraconjugais, inclusive com pacientes. vido por mexericos, tinha o ta-

  • 56 Freud mas por que tanto dio?

    lento de inventar boatos e sabia contar maravilhosamente histrias sem p nem cabea.

    Em 29 de agosto de 953, interrogado por Kurt Eissler (responsvel na poca pelos Arquivos Freud depositados na Biblioteca do Congresso de Washington), ele diz textual-mente: A irm mais jovem fazia uma grande transferncia sobre Freud e ele no era insensvel a isso! E Eissler bota lenha na fogueira: O senhor quer dizer que eles tiveram um caso. Jung: Oh, um caso, no sei a que ponto, mas meu deus, sabemos como foi, no mesmo?

    Em 957, Jung volta carga. Entrega a seu amigo John Billinsky um depoimento que este tornar pblico em 969.4 Jung evoca, nesse dia, sua primeira visita a Viena, em 907.

    Rapidamente, travei conhecimento com a irm mais moa da

    esposa de Freud. Era muito bonita, e no apenas sabia muita

    coisa sobre psicanlise como conhecia quase tudo das ativi-

    dades de Freud. Quando, mais tarde, visitei o laboratrio de

    Freud, sua cunhada me perguntou se podia conversar comigo.

    Estava muito abalada em virtude de suas relaes com Freud

    e sentia-se culpada. Declarou-me que Freud estava apaixo-

    nado por ela e que mantinham relaes muito ntimas. Essa

    revelao me chocou e, ainda hoje, recordo-me muito bem de

    minha angstia na poca. Dois anos mais tarde, Freud e eu

    fomos convidados pela Clark University de Boston. Durante

    sete semanas convivemos diariamente. Desde o incio de nossa

    4 Ou seja, aps a morte de Jung.

  • Histria de um boato 57

    viagem, comeamos a fazer a anlise de nossos sonhos. Freud

    tivera alguns que o perturbavam muito e que traziam cena

    sempre o mesmo tringulo: ele, a mulher e a cunhada. Ele

    no imaginava que eu pudesse saber alguma coisa a respeito

    dessa relao.

    E quando Jung lhe pede para fazer associaes, Freud re-plica: Eu poderia lhe dizer mais, mas no posso arriscar minha reputao.

    Examinemos esse depoimento. Jung contradiz o que ele prprio declarou a Eissler. Alm disso, acrescenta que Minna era bonita, ao contrrio de sua irm, e que ao longo dos anos elas tinham acabado ficando parecidas. Ora, no esse o caso. Alm disso, Freud no tinha laboratrio, mas consultrio. Enfim, no vemos como Minna poderia ter feito tais confidncias a um homem a quem encontrava pela primeira vez. Por outro lado, se verdade que durante a travessia do Atlntico Jung, Freud e Ferenczi contaram-se mutuamente seus sonhos e beberam muito, a ponto de Freud ser acometido por uma sncope, e se verdade que Freud recusou a ajuda de Jung para a interpretao dos seus, nada permite dizer que estes incidissem sobre Minna.

    A partir dos anos 970, com o surgimento da corrente revisionista e a renovao da hostilidade contra a psica-nlise, a concepo de um Freud perverso, pai de uma fi-lha perversa a quem teria tomado em anlise apenas para subjug-la, serviu ento para demonstrar que todas as teorias do movimento psicanaltico no passavam de uma

  • 58 Freud mas por que tanto dio?

    monstruosidade familiar.5 Logo, caso viesse a ser demons-trada a existncia de um relacionamento com Minna, todo o edifcio freudiano ruiria. Mas como provar o que no passvel de ser provado? Como estabelecer rigorosamente os fatos? Nada na vida ou nas correspondncias de Freud permite concluir pela existncia desse relacionamento.

    Em 982, Peter Swales, o mais alucinado dos revisionistas6 do mundo anglfono, apoiado por Adolf Grnbaum que era, de certa forma, seu aval cientfico (fsico e erudito, adepto de um antifreudismo virulento mas muito aceito nos Estados Unidos) fez circular dois artigos datilografados dos quais apenas um foi publicado: Freud, Minna Bernays and the Conquest of the Rome: new light on the origins of psychoanalysis (New American Review) e Freud, Minna Bernays and the Imitation of the Christ.

    Swales baseava-se numa passagem de A psicopatologia da vida cotidiana em que Freud conta a histria de um rapaz, judeu vienense, que ele conhecera por ocasio de uma de suas viagens e que esquecera uma palavra ao citar um verso de Virglio, aquele em que Dido aguarda seu vingador: Exo-riare aliquis nostri ex ossibus ultor, o que significa: E tu qual-quer um [aliquis] nascido de minhas ossadas, meu vingador.

    Bom, o rapaz omitira a palavra aliquis e Freud lhe pedira que fizesse associaes livres a partir dela. O rapaz ento a associara a liquis, depois ao sangue que todo ano se esvai do

    5 Tese reiterada por Michel Onfray.6 Os famosos destruidores de Freud.

  • Histria de um boato 59

    famoso so Genaro, na igreja napolitana que ele to bem co-nhecia por t-la visitado vrias vezes. A partir de extrapola-es em torno de liquis, ele acaba por revelar a Freud seu re-ceio de que a amante lhe confessasse uma notcia aborrecida: um atraso das regras, o que significaria que estava grvida.

    Extraindo desse clebre texto uma interpretao de sua lavra, Swales pretendia demonstrar que o pretenso caso desse rapaz era pura inveno, referindo-se na realidade vida de Freud e no de seu paciente; de certa forma, uma autobiografia dissimulada por trs do enunciado do caso. Nessa perspectiva, Freud no passaria, para Swales, de um autor de obra centrada exclusivamente em si prprio, no universalizvel. Ou seja, no seria mais o rapaz que teria receado que sua amante engravidasse, mas o prprio Freud, o qual, segundo Swales, teria tido um relacionamento com a cunhada, engravidando-a e depois obrigando-a a abortar.

    Eis, portanto, como a historiografia norte-americana dita revisionista terminou por soobrar no delrio interpreta-tivo recorrendo, a propsito, a uma aplicao selvagem da concepo freudiana de interpretao.

    Essa interpretao estarrecedora de Swales fez um tre-mendo sucesso nos Estados Unidos. que ela permitia aos antifreudianos radicais afirmar que a psicanlise era uma devassido sada diretamente da imaginao de um falso cientista divagador: Freud, aquele mentiroso, teria inven-tado relatos de casos ao mesmo tempo em que extorquia somas astronmicas de pobres doentes a quem no tratava nem curava.

  • 60 Freud mas por que tanto dio?

    Promoveu-se assim uma campanha, orquestrada por Pe-ter Swales e Adolf Grnbaum, os quais, com a maior serie-dade do mundo, pretendiam consertar os erros dos histo-riadores ditos pr-freudianos ou hagigrafos, a fim de compeli-los a reescrever seus textos em funo da nova prova arquivstica que no existia.

    Aps ter mantido um longo contato com Swales, que me transmitia documentos da Biblioteca do Congresso, eu mesma fui ameaada e insultada por ele na imprensa norte-americana e brasileira. Ilse Grubrich-Simitis, a grande especialista alem em manuscritos de Freud, recebeu, por sua vez, laxantes inseridos em cartas expedidas por Swales.

    Sob o pseudnimo de Aliquis, os dois comparsas pla-nejaram, assim, ameaar a comunidade internacional dos historiadores do freudismo e da psicanlise intimando-os a fazer uma autocrtica. Em seguida, apareceram em todas as mdias para explicar que Freud era um falso cientista que projetara suas prprias fantasias sobre os pacientes.7 Todas as suas teorias no passavam, repetiam eles, de relatos au-tobiogrficos emanando de um perverso que molestava a cunhada e inventava, a respeito de seus pacientes, tal qual os inquisidores de outrora, abusos que os forava a confessar.

    Naturalmente, essas extravagncias obrigaram os histo-riadores a levar a srio o caso Minna, transformando-o num problema historiogrfico. Foi nessa perspectiva que Peter

    7 a isso que se dedica atualmente Michel Onfray, que os imita per-feio.

  • Histria de um boato 61

    Gay, o ltimo bigrafo de Freud, publicou um artigo em 990 intitulado O co que no latia noite.8

    Explicando que haviam sido as negaes de Ernest Jones, depois as afirmaes de Peter Swales e seus aliados que o tinham levado a se debruar sobre a questo como, alis, o historiador alemo Albrecht Hirschmller,9 que exami-nou a correspondncia integral entre Freud e Minna, ainda indita , Peter Gay percebeu ento que faltavam algumas cartas. Entretanto, nada autoriza afirmar que essas peas de arquivo tivessem sido escamoteadas. O que o leva a com-parar as cartas ausentes ao co de Sherlock Holmes (que no latia noite). Como todo historiador digno desse nome, Peter Gay comprometeu-se a mudar de opinio no caso de uma nova descoberta que comprovasse a existncia desse relacionamento. Mas enfatizou que nada, por ora, sugeria tal reviso.

    Foi esse debate que voltou tona em 2007, merecendo pri-meira pgina em toda a imprensa norte-americana e alem, quando um socilogo alemo, Franz Maciejewski, afirmou ter descoberto um novo arquivo: a assinatura de Freud, con-signada no registro do hotel Schweizerhaus e datada de 3 de agosto de 898. Consta de fato no registro, do punho de Freud: Doctor Freud u Frau.

    No faltava mais nada para reacender o debate. As amea-as recomearam, tendendo a impor a ideia de que, naquela

    8 Peter Gay, En lisant Freud, explorations et divertissements, Paris, PUF, 995.9 Autor de uma bela biografia de Josef Breuer, que restabelece a verdade sobre o caso Bertha Pappenheim: Josef Breuer, Paris, PUF, 99.

  • 62 Freud mas por que tanto dio?

    ocasio e naquele dia, Freud de fato passara a noite no lu-xuoso hotel com Minna e no defronte e que fizera a cunhada dizer-se sua mulher. O mais espantoso que, a ttulo de prova do delito, o New York Times, na data de 24 de dezembro de 2006, publicou uma fotografia do quarto da maneira como est arrumado hoje, com um televisor e duas camas de solteiro

    Essa informao foi repetida em seguida por Ursula Gau-thier, jornalista do Nouvel Observateur (responsvel pelo fa-moso nmero de setembro de 2005 dedicado ao Livro negro da psicanlise).10 Num artigo, ela me intima a revisar meu Dicionrio de psicanlise e adotar a nova verdade, enfim reve-lada, a respeito das patifarias e transgresses de Freud. Res-pondi questionando o sentido da publicao daquela foto-grafia: o quarto de hoje como pretensa prova arquivstica.11

    Resultado: toda a imprensa mundial, por sinal pressio-nada por Peter Swales, inferiu que, agora, o relacionamento estava comprovado e que em virtude disso toda a elaborao conceitual de Freud estaria invalidada.12

    Que possam extrair uma prova desse arquivo, eis o que efetivamente representa um problema. Por um lado, Freud pode ter assinado esse registro e mudado de hotel, uma vez

    10 Catherine Meyer (org.), Le livre noir de la psychanalyse, Paris, Les Arnes, 2005.11 Ursula Gauthier, Sexe, mensonges et libido, Le Nouvel Observateur, jan 2007. E Elisabeth Roudinesco, Freud polygame? La psychanalyse sur le bcher, Le Nouvel Observateur, o fev 2007.12 Frankfurter Rundschau, 28 set 2006; Sunday Times, 7 jan 2007.

  • Histria de um boato 63

    que passou trs noites em Maloja; por outro, pode perfei-tamente ter dormido castamente com Minna nesse quarto (cuja disposio antiga desconhecemos), j que, como vimos, acontecia-lhes de dormir s vezes no mesmo quarto quando no conseguiam reservar dois.

    Seja como for, o pesquisador alemo contentou-se com essa assinatura para dar crdito tese de um Freud amante da cunhada e dissimulador, enquanto o mnimo a ser feito teria sido consultar o registro do hotel defronte se porven-tura este ainda existisse e informar-se sobre a disposio dos quartos na poca.

    Longe de interpretar esse arquivo como uma prova do caso, podemos igualmente afirmar que o u Frau significa que Freud sentia-se culpado por circular na companhia da cunhada e que preferira identific-la como esposa, a fim de ficar em paz consigo mesmo. Podemos ainda interpretar o

    u Frau de outra forma. No mundo germnico da poca, e principalmente na Sua alem, esse sintagma significa que se optava por um quarto duplo, independentemente da pessoa com a qual se viajava. Como ainda hoje na Itlia quando reservamos um quarto matrimoniale: comunica-mos, assim, que haver duas pessoas (um quarto duplo), sem que isso signifique tratar-se de um casal. perfei-tamente plausvel que Freud tenha utilizado a expresso nessa perspectiva.

    Seja como for, se houve affair, ele teve necessariamente de ser breve, limitando-se a essa primeira viagem, na qual de fato percebemos uma excitao fora do comum.

  • 64 Freud mas por que tanto dio?

    Um psicanalista suo, Ferruccio Bianchi, frequentador desse hotel, onde passa anualmente as frias de inverno, e alertado por toda essa celeuma, parece ter solucionado o

    problema do quarto. Escreveu ele em abril de 2007:

    Hospedei-me muitas vezes no quarto 23 e, portanto, conheo-o

    bem. O quarto , onde Freud hospedou-se, hoje o quarto 23.

    E esse quarto 23 um quarto duplo, uma espcie de pequeno

    apartamento com um cmodo grande e um menor, que se

    comunica com o outro. Conheo-o bem, pois estvamos em

    famlia e nossas crianas ficavam no quarto pequeno. O ge-

    rente me confirmou que na poca a disposio era a mesma.13

    Por conseguinte, agora est estabelecido que a tese de Swales to falsa quanto a hiptese de Maciejewski est sujeita a exame: Freud definitivamente no engravidou a cunhada para faz-la abortar, e o quarto onde teria se hos-pedado talvez no seja o que se cr.

    Isso no impede Maciejewski de prosseguir com suas bus-cas. S nos resta aguardar a publicao de um novo panfleto. Quem sabe ento no seja uma boa oportunidade para eu conhecer Engadina Continua.

    13 Le Carnet Psy, abr 2007.

  • iv. Outras vozes

  • 67

    . Onfray ou a fraudeGuillaume Mazeau1

    Antes mesmo de sua publicao, o ltimo livro escrito por Michel Onfray contra Freud foi objeto de um violento de-bate. Muito barulho por nada? A historiadora da psican-lise Elisabeth Roudinesco no estaria exagerando ao pintar Onfray com as mais negras tintas? Muito pelo contrrio. As distores de Onfray no so novas e merecem ser levadas ao conhecimento do pblico.

    Em 2009, Michel Onfray publicou uma apologia de Charlotte Corday, La religion du poignard.2 Apesar de curio-

    1 Guillaume Mazeau matre de confrences em histria moderna no Instituto de Histria da Revoluo Francesa (Universidade Paris-I). Publicou Le bain de lhistoire. Charlotte Corday et lattentat contre Marat (1793-2009), Seyssel, Champ-Vallon, 2009. Outra verso do presente texto foi publicada no site do Monde.fr, 22 abr 200.2 Michel Onfray, La religion du poignard. loge de Charlotte Corday, Paris, Galile, 2009. [Charlotte Corday (768-793) assassinou o deputado Jean- Paul Marat (743-793), editor do jornal LAmi du Peuple e um dos revolu-cionrios mais atuantes durante o chamado perodo do Terror. Ele foi morto em 3 de julho de 793 na banheira da prpria casa, tornando-se

  • 68 Freud mas por que tanto dio?

    samente bem recebida pela imprensa, historicamente medocre e politicamente escandalosa. Desde Adam Lux (765-793), aquele cidado de Mayence guilhotinado por ter publicado uma ode de amor em homenagem bela Cor-day, a lista daqueles que o Anjo do Crime fez perder a cabea no para de aumentar. Embora integre uma revi-talizao mais generalizada de Corday, o recm-lanado livro de Michel Onfray s pode surpreender e preocupar, ainda mais quando conta com a bno da grande imprensa. Pois tal elogio esconde um panfleto mal-inspirado, jamais fundamentado, recheado de erros, pontuado de ataques ve-nenosos, arbitrrios e, para resumir, populistas. Onfray quer mostrar que Charlotte Corday pode estimular todos aqueles que, cansados de uma esquerda de ressentimento impotente e erodida por dios e invejas, permanecem fiis ao, moral e virtude.

    O principal alvo de Onfray Marat. O revolucionrio supostamente personifica o cinismo dos desgarrados do Iluminismo, que aproveitam a Revoluo para aplacar suas frustraes sociais e liberar mais pulses:

    Esse filho de padre, falsificador de diploma, mdico charlato,

    cientista de araque, vivissecador de fundo de quintal e arre-

    matador de cadveres humanos, obtm um posto de mdico

    dos guardas do conde de Artois por influncia de uma paciente

    um mrtir da Revoluo. Charlotte Corday foi guilhotinada quatro dias aps o assassinato. (N.T.)]

  • Outras vozes 69

    cujo furor uterino ele trata expondo-se ao perigo. (La religion

    du poignard, p.24)

    Esse fel basta: o livro jamais consegue alar-se acima dos delrios com que a extrema direita vem nos enchendo os ouvidos h dois sculos. Como tantos outros antes dele, Onfray descreve Marat, pria da histria francesa, como um cientista frustrado, um manaco sanguinrio respon-svel por crimes de massa sonhando com uma ditadura pr-totalitria. Para Marat, a Revoluo Francesa no seria mais do que a oportunidade de exprimir seu ressentimento assim como extramos pus de um cancro! (p.24).

    Esses clichs anacrnicos, destitudos de imaginao, oriundos da propaganda contrarrevolucionria, foram h muito varridos por centenas de trabalhos cientficos. Sem negar a responsabilidade de Marat nas violncias, muitos historiadores contestaram, por exemplo, sua imagem de tribuno onipotente: em 793, o Amigo do Povo era amado pelos sans-culottes, mas achava-se isolado politicamente. No, Marat no era delator, mas partidrio de uma denncia cvica que permitisse defender o povo contra a corrupo poltica. No, Marat no prefigura nem Stlin nem Pol Pot. um republicano influenciado por Maquiavel que justifica a violncia popular em tempos de revoluo como um meio de evitar a anarquia e a propagao dos massacres. A di-tadura por ele mencionada inspira-se eventualmente no modelo romano: provisria e colegiada, deve permitir salvar a Repblica em pocas conturbadas. No, Marat no era um

  • 70 Freud mas por que tanto dio?

    charlato, mas um mdico e cientista renomado. Ora, todos esses trabalhos reposicionando Marat no contexto do Ilumi-nismo so soberbamente ignorados por Onfray. Ao longo de todo o livro, o leitor bombardeado com as citaes mais violentas, totalmente inventadas. Marat evidentemente nunca disse: Eu queria que todo o gnero humano estivesse numa bomba qual eu atearia fogo para faz-la explodir (p.27). E no, o brao do Amigo do Povo nunca caiu no meio da multido durante o cortejo fnebre (p.79). Ao lado de tais inpcias, o escndalo de Botul esse autor imaginrio no obstante citado seriamente por Bernard-Henri Lvy em seu ltimo livro3 acaba no passando de um logro vulgar.

    A propsito, a quem nossas crticas se dirigem? A Onfray, a Nietzsche, ao historiador Charles Vatel, a Jules Michelet ou a Balzac, de cujos textos o autor livremente faz uso? Assinado por um dos intelectuais mais miditicos de nossa poca, esse ensaio levanta a questo crucial do status do historiador.

    Redigido s pressas, o texto no se fundamenta em ne-nhum trabalho de pesquisa. Se, por um lado, o recurso fic-o uma prtica comum, interessante e legtima da escrita da histria, por outro, a mistura de gneros contestvel quando no claramente explicitada. Cultivando a ambigui-dade em torno do status de seu livro, evitando cuidadosa-

    3 Bernard-Henri Lvy, De la guerre en philosophie, Paris, Grasset, 200. [Em seu livro, o filsofo Bernard-Henri Lvy cita Botul como um au-tor importante, ao passo que se trata meramente de uma criao do escritor Frdric Pags. (N.T.)]

  • Outras vozes 71

    mente esclarecer qual a sua relao com os fatos, Onfray rompe o contrato de verdade que instaurara tacitamente com seus leitores. Com efeito, seu ensaio no passa de uma colagem de interpretaes e compilaes do sculo XIX cuja natureza ou fontes em nenhum momento so revela-das pelo autor. Isso autorizaria Onfray a parafrasear, por exemplo, textos pura e simplesmente apcrifos, extrados da tradio mais conservadora! Desse modo, os detalhes edificantes sobre os ltimos momentos de Charlotte Cor-day, chorada por toda a direita clerical do sculo XIX, so repetidos ipsis litteris. Onfray, filsofo ateu e libertrio por excelncia, coloca-se assim, sem o saber, sob os auspcios das Memrias de Sanson4 escritas por um impbere Balzac na aurora dos anos 830, escritor catlico e monarquista por excelncia! Quanto aos mltiplos episdios que deveriam desvendar as causas secretas do assassinato, foram pura e simplesmente forjados meio sculo depois dos fatos pela sra. Maromme, fervorosa legitimista!5

    Nesse ensaio, as elites, todas corruptas, no encontram mais misericrdia por parte do autor do que as classes po-pulares, desumanizadas com um asco que quase faria corar de vergonha Gustave Le Bon e Hyppolite Taine juntos (a malta maratista de ces em fria abate, mata, massacra, ex-termina, p.32). Cegado pelo dio, Onfray recusa-se a ver

    4 Charles Henri Sanson: carrasco da guilhotina na poca da Revoluo Francesa. (N.T.)5 Ver Jean Casimir-Perier, La jeunesse de Charlotte Corday, Revue des Deux Mondes, o abr 862.

  • 72 Freud mas por que tanto dio?

    os sans-culottes de outra forma a no ser como selvagens, brindados com uma conscincia poltica meramente pro-porcional ao volume de seu estmago (o povo no quer nem a Liberdade nem a Repblica, quer matar sua fome, s isso, p.0).

    Porm, bastam algumas horas de pesquisa para recen-searmos a longa lista dos trabalhos que descrevem sem arti-fcios a lenta politizao dos franceses ao sabor dos mltiplos conflitos do sculo XVIII. Qualquer estudante de histria sabe hoje em dia que os sans-culottes passaram a maior parte de seu tempo no massacrando ou devorando seus inimi-gos, mas elaborando prticas democrticas ou participando da manuteno da ordem. Onfray acha sinceramente que o canibalismo foi prtica corriqueira durante a Revoluo Francesa?6 Os clichs desfilam ao longo das pginas: como Onfray pode definir o federalismo como sendo a recusa do centralismo jacobino (p.45)? Como pode reduzir o Terror a um imenso banho de sangue provocado por serial killers como Marat ou Sade (cap.9)? Como pode, desde a primeira pgina, explicar a Revoluo como resultado de um efeito borboleta engendrado por uma tempestade desencadeada em 3 de julho de 788 (p.3)?

    Quanto Charlotte Corday de Onfray, simplesmente nunca existiu A no ser sob a pena melanclica dos his-

    6 A descrio feita por Onfray do massacre de Henri de Belsunce ( ago 789) antolgica: um certo Hbert, homnimo de Cordelier, autor de Padre Duchne e originrio de Alenon, destrincha as partes carnudas do visconde e as pe na grelha (La religion du poignard, p.8).

  • Outras vozes 73

    toriadores dos Anos Negros,7 assombrados pela decadncia e fascinados diante das figuras do nacionalismo. Assim, a herona desse ensaio no passa de um triste avatar da Viking e da Ariana outrora celebrada pelos historiadores da Action Franaise e da direita colaboracionista que cuspiam no ju-deu Marat, como Jean de la Varende, Maurice dHartoy, fundador dos Cruzes-de-Fogo, ou Pierre Drieu La Rochelle. Na esteira daqueles que vomitaram seu asco pelo mundo encontrando refgio no antiliberalismo, no antiparlamen-tarismo e no anti-Iluminismo, Onfray celebra Corday como uma virgem romana (desde quando Onfray v a virgindade como uma virtude?) Com a diferena de que, e isso no a inveno menos intrigante, essa Charlote metamorfoseada numa libertria ateia sob o nico pretexto de que recusou a assistncia de um padre antes do cadafalso (p.5)!

    Onfray inflige-nos aqui seu maior contrassenso. Antiga interna beneditina, Corday defendia efetivamente opinies religiosas muito conservadoras, desprezando as ordens me-nores e recusando qualquer contato com o clero constitucio-nal, da ter repelido um confessor que teria prestado jura-mento Constituio civil do clero. Para Charlotte Corday, o assassinato de Marat em parte um ato de f destinado a transform-la numa herdeira das mrtires crists.

    Esse livro ruim parece tender para um nico objetivo: denunciar a classe poltica atual, apresentada como imoral,

    7 Referncia ao perodo 940-44, quando a Frana se dividiu entre resis-tentes aos nazistas e colaboracionistas. (N.T.)

  • 74 Freud mas por que tanto dio?

    corrupta e sem substncia. Adepto da religio do punhal, Michel Onfray trai, porm, o inventor da expresso: Jules Michelet. Em 847, este ltimo escolhera Charlotte Corday para fazer um elogio da resistncia opresso, reproduzindo uma ideia sugerida por Adolphe Thiers vinte anos antes.8 Mas o contexto era ento bem diferente: na poca esses dois historiadores viam-se confrontados com regimes monrqui-cos muito mais liberticidas que o nosso!

    A vitria pstuma de Charlotte Corday sobre Marat na memria coletiva, inegvel, comparada por Onfray da Resistncia diante de todas as formas de opresso e de todos aqueles que, hoje, opem a virtude corrupo pol-tica (p.8). Comparando o 3 de julho de 793 ao 8 de junho de 940,9 Onfray, que dedica seu livro a um ex-resistente, pretende arrancar os franceses do niilismo contemporneo e provocar a passagem ao ato. Nossa poca de crise aguda traduz-se por um profundo desejo de histria. Aproveitando- se da desorientao, os agitadores menos escrupulosos de nosso tempo podem repentinamente erigir-se em vision-rios e atear fogo no circo graas cumplicidade interessada da mdia. Ao lermos seu ensaio, convencemo-nos de que

    8 Jules Michelet, Histoire de la Rvolution Franaise, cap.4, Une opi