Discurso em Benveniste

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Dissertação em Linguística

Citation preview

  • UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS - UNISINOS UNIDADE ACADMICA DE PESQUISA E PS-GRADUAO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LINGUSTICA APLICADA NVEL MESTRADO

    NATLIA CRISTINA DE ALMEIDA SOUZA

    DISCURSO: EM BUSCA DA ESSNCIA DO PENSAMENTO DE MILE BENVENISTE

    SO LEOPOLDO 2014

  • UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS - UNISINOS UNIDADE ACADMICA DE PESQUISA E PS-GRADUAO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LINGUSTICA APLICADA NVEL MESTRADO

    NATLIA CRISTINA DE ALMEIDA SOUZA

    DISCURSO: EM BUSCA DA ESSNCIA DO PENSAMENTO DE MILE BENVENISTE

    Dissertao apresentada como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre, pelo Programa de Ps-Graduao em Lingustica Aplicada da Universidade do Vale do Rio dos Sinos UNISINOS.

    rea de concentrao: Lingustica da Enunciao

    Orientadora: Professora Doutora Marlene Teixeira

    SO LEOPOLDO 2014

  • Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Bibliotecrio: Flvio Nunes CRB 10/1298)

    S729d Souza, Natlia Cristina de Almeida. Discurso : em busca da essncia do pensamento de

    mile Benveniste / Natlia Cristina de Almeida Souza. 2014.

    112 f. ; 30 cm.

    Dissertao (mestrado) Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Programa de Ps-Graduao em Lingustica Aplicada, 2014.

    Orientadora: Professora Doutora Marlene Teixeira.

    1. Anlise do discurso. 2. Benveniste, mile, 1902-1976. 3. Lnguas modernas Pronncia. I. Ttulo.

    CDU 81

  • Aos que so tu pra mim

    Aos que so eu pra mim

    Aos que so um ns comigo junto

  • AGRADECIMENTOS

    CAPES, pela concesso da bolsa que possibilitou o incio e o trmino do meu curso de mestrado.

    Ao Programa de Ps-Graduao em Lingustica Aplicada PPGLA/UNISINOS, por oferecer a possibilidade de se fazer lingustica aplicada com a Teoria da Enunciao de mile Benveniste.

    minha orientadora, professora Marlene, que me acompanha desde a graduao e sempre apoiou minhas ideias, mesmo que desajuizadas.

    Aos professores do PPGLA aos quais tive o prazer de ouvir durantes as disciplinas que cursei fora da enunciao, e que me mostraram que o elefante comporta muitos e muitos pontos de vista.

    banca de qualificao, professoras Carmem Luci e Vera Mello, pelo rumo sugerido ao trabalho, que foi decisivo pra que fosse concludo.

    Ao meu Calil, que, desde sempre, foi um excelente interlocutor sobre os assuntos enunciativos, mesmo no sendo um benvenistiano oficial, apenas porque ele sabe tudo sobre todas as coisas do mundo.

    Aos meus pais, Orlando e Marta, e irmos, Bianca, Lucas e Elias, que, depois de ouvirem muitos no depois de um vai vir almoar aqui hoje?, comearam a me perguntar e o mestrado?.

    Aos meus queridos Luciana, Sandra, Anna e Diego, por sempre sempre sempre terem uma palavra pro debate (ou um aff cada vez novo).

    Luciana de novo, pelo companheirismo, pelas alegrias e pelos sofrimentos compartilhados, pelo quarto fresquinho que me cedeu para que eu pudesse escrever nos dias mais trridos deste vero enunciativo, e claro, pelo feijo e pelo sorvete!

  • Aos meus amigos no-enunciativos, Ana Alice, Karina, Mari, Ed e Carlo, pela leitura voluntria deste trabalho, que se dispuseram a fazer quase sem presso da minha parte!

    Aos demais amigos, que sabem quem so e que so os melhores, confesso que agradeo por nunca terem me deixado falando sozinha.

    s colegas do Grupo de Estudos Enunciao em Perspectiva GEEP, pelos debates acalorados sobre assuntos que jamais se encerraram, tal a condio para que se estude Benveniste.

    Aos colegas das outras linhas de pesquisa do PPGLA, pelas trocas intertericas, pelos j qualificou?, o meu no vai ter anlise e pelos quem vai ser tua banca?.

    Por fim, a todos que foram alocutados no meu tu, em algum momento, em algum lugar, de alguma forma.

    Obrigada.

  • Eu te digo: estou tentando captar a quarta dimenso do instante-j que de to fugidio no mais porque agora tornou-se um novo instante-j que tambm no mais. Cada coisa

    tem um instante em que ela . Quero apossar-me do da coisa. Esses instantes que decorrem no ar que respiro: em fogos de artifcio eles espocam mudos no espao. Quero possuir os

    tomos do tempo. E quero capturar o presente que pela sua prpria natureza me interdito: o presente me foge, a atualidade me escapa, a atualidade sou eu sempre no j.

    Clarice Lispector gua Viva

  • RESUMO

    Esta dissertao investiga a noo de discurso na obra de mile Benveniste. Partindo da declarao de Grard Dessons (2006), que diz que Benveniste o inventor do discurso, este estudo tem como objetivo elucidar o lugar ocupado por esse conceito na obra benvenistiana. Para isso, empreende-se uma busca por referncias a Benveniste no Dicionrio de Anlise do Discurso (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2008), assim como uma discusso acerca de pontos da sua Teoria da Enunciao que podem induzir o leitor a uma leitura indicialista. Discorre-se sobre a trajetria de Benveniste desde sua filiao a Saussure, passando pela sua ultrapassagem em relao ao mestre, at sua chegada ao conceito de lngua-discurso. Esse conceito se define, nesse estudo, como o semitico particular de cada locutor. A anlise efetiva do termo discurso realizada com base em um corpus terico delimitado a partir de um percurso metodolgico de leitura. Esse corpus composto por nove textos de Problemas de Lingstica Geral I e II: Observaes sobre a funo da linguagem na descoberta freudiana (1956), A natureza dos pronomes (1956), Da subjetividade na linguagem (1958), Vista dolhos sobre o desenvolvimento da lingstica (1963), Os nveis da anlise lingstica (1964), A linguagem e a experincia humana (1965), A forma e o sentido na linguagem (1966), Semiologia da lngua (1969) e O aparelho formal da enunciao (1970). A partir da anlise desses textos, estabelece-se uma relao indissocivel entre enunciao e discurso: so interdependentes, embora distintos. A anlise permite concluir que o locutor, ao apropriar-se da lngua-discurso, tira-a do estado de possibilidade, atualizando-a, convertendo-a em discurso pelo ato de enunciao, ou seja, implicando-se (inter)subjetivamente. O discurso define-se, assim, como a manifestao da enunciao, responsvel por promover a experincia humana, que s encontra plenitude na e pela linguagem.

    Palavras-chave: Discurso. Lngua-discurso. Teoria da Enunciao de mile Benveniste.

  • ABSTRACT

    This dissertation investigates the notion of discourse in mile Benvenistes work. Starting from Grard Dessonss statement (2006), which says that Benveniste is the "inventor of discourse", this study aims to elucidate the place occupied by this concept in the benvenistian work. To do so, we undertake a search for references to Benveniste in the Dictionary of Discourse Analysis (CHARADEAU; MAINGUENEAU, 2008), as well as a discussion of points of his Theory of Enunciation that can lead the reader to an indicialist reading. We expatiate on Benvenistes path from his affiliation with Saussure, through his overcoming of

    his master, until his arrival at the concept of language-discourse. This concept is defined in this study as the particular semiotic of each speaker. The effective analysis of the term discourse is performed based on a theoretical corpus delimited from a methodological path of reading. This corpus is composed of nine texts from Problems in General Linguistics I and II: Observations on the functioning of language in the freudian discovery (1956), The nature of pronouns (1956), Subjectivity in language (1958), A look at the development of linguistics (1963), The levels of linguistic analysis (1964), Language and human experience (1965), Form and meaning in language (1966), The semiology of language (1969), and The formal apparatus of enunciation (1970). From the analysis of these texts, we establish an inseparable relationship between enunciation and discourse: they are interdependent, but distinct. The analysis reveals that when the speakers appropriate language-discourse, they remove it from the state of possibility, actualizing it, converting it into discourse by the act of enunciation, ie, (inter)subjectively implying themselves. Therefore, discourse is defined as the manifestation of enunciation, responsible for promoting human experience, which only finds fulfillment in and through language.

    Keywords: Discourse. Language-discourse. mile Benvenistes Theory of Enunciation. .

  • LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    CLG Curso de Lingstica Geral (SAUSSURE, 2006); DAD Dicionrio de Anlise do Discurso (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2008); DLE Dicionrio de Lingustica da Enunciao (FLORES et al., 2009); PLGI Problemas de Lingstica Geral I (BENVENISTE, 1966/2005); PLGII Problemas de Lingstica Geral II (BENVENISTE, 1974/2006).

  • SUMRIO

    1 INTRODUO ..................................................................................................................... 11 2 ENUNCIAO: DA LEITURA INDICIALISTA AO VIS DISCURSIVO ..................... 15 2.1 O lugar de Benveniste no Dicionrio de Anlise do Discurso ........................................... 16 2.2 A provvel origem da interpretao indicialista da teoria benvenistiana ........................... 27 2.2.1 As categorias de pessoa, espao e tempo como marcas de subjetividade ....................... 28 2.1.2 O escopo dos indicadores de subjetividade ..................................................................... 29 2.1.3 As noes de subjetividade e intersubjetividade ............................................................. 31 2.3 Algumas consideraes ...................................................................................................... 32 3 SAUSSURE/BENVENISTE: DA LNGUA LNGUA-DISCURSO ............................... 35 3.1 Benveniste e o estruturalismo ............................................................................................. 35 3.2 Saussure e Benveniste: a ultrapassagem ............................................................................. 46 3.3 Em busca da lngua-discurso .............................................................................................. 53 4 DISCURSO: DO CONCEITO VIDA DO HOMEM ........................................................ 59 4.1 Do percurso de leitura......................................................................................................... 59 4.2 Da busca pela definio ...................................................................................................... 64 4.2.1 Observaes sobre a funo da linguagem na descoberta freudiana ............................... 64 4.2.2 A natureza dos pronomes ................................................................................................ 67 4.2.3 Da subjetividade na linguagem........................................................................................ 70 4.2.4 Vista dolhos sobre o desenvolvimento da lingstica .................................................... 73 4.2.5 Os nveis da anlise lingstica ........................................................................................ 77 4.2.6 A linguagem e a experincia humana .............................................................................. 82 4.2.7 A forma e o sentido na linguagem ................................................................................... 88 4.2.8 Semiologia da lngua ....................................................................................................... 92 4.2.9 O aparelho formal da enunciao .................................................................................... 95 CONSIDERAES FINAIS ................................................................................................. 105 REFERNCIAS ..................................................................................................................... 108 APNDICE A: OCORRNCIAS DA PALAVRA DISCURSO EM PLGI E II ................... 111

  • 11

    1 INTRODUO

    Esta dissertao tem por objetivo pensar a noo de discurso na obra de mile Benveniste. preciso prestar mais ateno nesse conceito que no costuma ser apontado como fundamental para a compreenso da teoria benvenistiana1. O alerta para essa necessidade vem de Grard Dessons (2006)2. No entender de Dessons, na lingustica de Benveniste, discurso remete especificamente teoria da enunciao, da qual constitui o termo principal, prolongando a o movimento de conceitualizao iniciado por Saussure3 (DESSONS, 2006, p. 58, grifo do autor, traduo nossa). Para o autor, o conceito de discurso o mais importante da teoria de Benveniste, que deveria, antes de tudo, ser vista como uma teoria do discurso. Porm, se, como diz Dessons, Benveniste o inventor do discurso, por que seu nome aparece to timidamente entre os estudiosos dessa rea?4 Qual a especificidade dessa noo em sua teoria da enunciao? A partir desses questionamentos, tomamos como desafio elucidar o conceito de discurso na obra benvenistiana.

    Sabe-se, no entanto, que aquele que se aventura a escrever sobre Benveniste precisa assumir um lugar de autoria, interferindo nos pontos em que a sua teoria se mostrar mais aberta. E isso necessrio no porque Benveniste tenha formulado um pensamento incompleto, mas porque seu modo de escrever desafia os leitores a refletirem, comeando pelo ttulo dado ao conjunto de seus textos, em que a palavra problemas tem lugar de destaque.

    A partir da anlise da noo de discurso, tentamos propor uma distino entre ela e a noo de enunciao, conceito que est eternamente ligado ao nome de Benveniste, sendo este reconhecido por sua chamada Teoria da Enunciao. Para este fim, e tendo por base seus Problemas de Lingstica Geral I e II5, catalogamos, em ambas as obras, os pontos de

    1 Salientamos que o termo teoria foi cunhado pelos leitores de Benveniste, embora ele prprio jamais tenha se referido dessa forma ao pensamento que desenvolveu.

    2 DESSONS, Grard. mile Benveniste, linvention du discours. Paris: In Press, 2006.

    3 Na citao original: Dans la linguistique de Benveniste, discours renvoie spcifiquement la thorie de lenonciation, dont elle constitue Le terme majeur, prolongeant en cela le mouvement de conceptualisation initi par Saussure.

    4 Na tese intitulada A sintagmatizao-semantizao: uma proposta de anlise de texto, Mello (2012) faz um levantamento dos trabalhos (artigos e livros) na rea dos estudos lingusticos publicados no Brasil entre os anos de 1998 e 2011. A autora consultou 1790 artigos de peridicos e constatou que apenas 119 deles citavam mile Benveniste em suas referncias bibliogrficas. Destes, apenas 24 artigos eram estudos na rea do texto e do discurso, e somente nove tinham mile Benveniste como base terica principal. Com isso, a autora conclui que h, no Brasil, uma carncia de trabalhos de anlise lingustica que se ancorem na Teoria da Enunciao benvenistiana. E, no que tange a estudos do texto e do discurso, no deparamos com nenhum trabalho alicerado unicamente nessa teoria (MELLO, 2012, p. 29-30). Dessa forma, acreditamos que nosso trabalho contribuir para suprir parte dessa carncia, servindo de apoio terico para estudos futuros na rea do discurso.

    5 Doravante, Problemas de Lingstica Geral I: PLGI e Problemas de Lingstica Geral II: PLGII.

  • 12

    ocorrncia da palavra discurso, e, seguindo o percurso de leitura que estabelecemos, buscamos uma definio de discurso que comportasse o pensamento do autor. A partir dessas consideraes e do pressuposto de que o discurso um objeto de estudo de Benveniste, propomos uma distino entre discurso e enunciao.

    A motivao para propor esta pesquisa tem origem na beleza com a qual a Teoria da Enunciao de Benveniste se apresentou a mim. Digo assim porque no a procurei, ela veio at mim em 2010, quando precisei escrever meu trabalho de concluso de curso, e s neste momento. Durante toda a minha trajetria acadmica na UNISINOS, no tive contato com essa perspectiva de estudo da linguagem por dois motivos: a lingustica da enunciao no era abordada no currculo do curso de Letras e eu jamais participara de projetos de iniciao cientfica que pudessem me proporcionar conhecer teorias lingusticas alm daquelas contempladas pelo curso. No ltimo momento dessa trajetria, precisei me apropriar da Teoria da Enunciao de mile Benveniste, teoria com a qual a minha ento orientadora, a professora Silvana Silva, trabalhava. Mais tarde, passei a ser orientada pela professora Marlene Teixeira, continuando os estudos no mbito da teoria enunciativa.

    Sob a orientao de ambas, em meu TCC6, analisei a perfrase ir + estar + gerndio (gerundismo) pelo vis enunciativo, fato que me exigiu ateno e dedicao em maior grau, devido falta de trabalhos sobre esse tema no campo da enunciao. Agora, no mestrado, busco colocar um olhar mais acurado sobre a teoria, empreendendo no um exerccio de anlise lingustica, mas uma pesquisa metaterica.

    Por que propor um trabalho que busque uma definio do discurso em Benveniste, se esse termo parece to bem definido quando o autor diz que discurso a lngua assumida pelo homem que fala, e sob a condio de intersubjetividade (PLGI, p. 2937)? Partimos do princpio que tem se tornado consenso entre os estudiosos de Benveniste: preciso escrutinar cada pargrafo, cada frase, a fim de desvendar o que se esconde por trs de afirmaes que parecem claras em uma primeira leitura. Quanto mais lemos Benveniste, mais compreendemos o que Roland Barthes8 tentou expressar quando disse que tudo claro no livro de Benveniste, tudo nele pode imediatamente ser reconhecido como verdade; e, no entanto, tudo tambm nele no faz mais do que comear. (BARTHES, 1988, p. 181).

    6ALMEIDA SOUZA, Natlia Cristina de. Gerundismo: qual o problema? A perfrase ir + estar + gerndio sob a perspectiva enunciativa. 2011. 59 f. Trabalho de Concluso de Curso (Licenciatura em Letras) Curso de Letras, Universidade do Vale do Rio dos Sinos UNISINOS, So Leopoldo, RS, 2011.

    7 Nas referncias, entenda-se PLGI: BENVENISTE, 1966/2005 e PLGII: BENVENISTE, 1974/2006.

    8 BARTHES, Roland. Por que gosto de Benveniste. In: O rumor da lngua. Trad. Mario Laranjeira. So Paulo: Editora Brasiliense, 1988, p. 179 183.

  • 13

    J sabemos que discurso assuno da lngua pelo homem que fala a um outro esta a parte clara, que, segundo Barthes (1988), a obra de Benveniste comporta. Porm, as afirmaes de Benveniste devem ser tomadas com a desconfiana no de que sejam falsas ou incorretas, mas de que estejam recobrindo um sentido que pode ser (e geralmente ) muito mais complexo, o que justifica que Roland Barthes tenha dito que, em Benveniste, tudo est comeando. De fato, a simples afirmao de que o discurso a lngua assumida pelo homem que fala, e sob a condio de intersubjetividade pode deixar escapar, at mesmo a um leitor atento, que no discurso que o homem passa pela experincia de ser homem9. O sujeito no anterior linguagem, a experincia humana se d na e pela linguagem, atravs do discurso. Isso nos leva a concordar com Dessons (2006): a teoria de Benveniste uma teoria do discurso.

    Partindo dessa interpretao, o que nos propomos a fazer sair da aparente obviedade da definio de discurso como a lngua assumida pelo homem que fala, e sob a condio de intersubjetividade e revisitar outros trechos de PLG I e II que nos permitam compreender melhor o alcance dessa noo. Para tanto, assumimos a teoria de Benveniste no como uma teoria somente lingustica, mas como uma teoria da linguagem, que comporta a experincia humana. Segundo Benveniste, [] preciso [...] comear a ver alm da forma material e no fazer apoiar-se toda a lingstica na descrio das formas lingsticas (PLGI, p. 125)10. Dessa forma, no nos propomos a fazer anlise lingustica, buscando, para isso, apoio no prprio autor, que diz que deveramos

    abandonar esse princpio [...] de que no h lingstica a no ser do dado, que a linguagem est contida integralmente em suas manifestaes efetuadas. Se assim fosse, o caminho estaria definitivamente fechado a toda investigao profunda sobre a natureza e as manifestaes da linguagem. O dado lingstico um resultado e preciso procurar-lhe a origem. (PLGI, p. 124).

    Definido nosso propsito, apresentamos, agora, o percurso trilhado para alcan-lo. Iniciamos por apresentar, no segundo captulo11, observaes sobre o lugar destinado a Benveniste no conjunto de estudos reconhecidamente pertencentes ao campo do discurso.

    9 Benveniste utiliza a palavra homem com a acepo genrica de ser humano.

    10 Nas citaes diretas, seguiremos o Manual para Elaborao de Trabalhos Acadmicos da UNISINOS, no qual consta que a citao direta a transcrio fiel de trechos da obra do autor consultado; a redao, a ortografia e a pontuao so rigorosamente respeitadas.

    11 O primeiro captulo dedicado introduo do trabalho.

  • 14

    Para isso, tomamos como base o Dicionrio de Anlise do Discurso12, de Patrick Charaudeau e Dominique Maingueneau (2008), restringindo nosso olhar a verbetes que possibilitariam alguma referncia a Benveniste, de forma a verificar se e como as suas ideias se encontram nessa obra. Em seguida, no mesmo captulo, abordamos aspectos fundamentais do pensamento benvenistiano, focalizando alguns de seus conceitos-chave pessoa, espao e tempo, subjetividade/intersubjetividade e indicadores de subjetividade , com o objetivo de verificar como uma viso indicialista da teoria benvenistiana se forma justamente a partir dos textos mais conhecidos de PLG e como essa viso pode obscurecer o vis discursivo da teoria.

    O terceiro captulo est especificamente direcionado relao Saussure/Benveniste. Nesse captulo, buscamos reconstituir a trajetria de Benveniste, desde sua filiao a Saussure, passando pelo momento em que ele prope a ultrapassagem em relao ao mestre para dar continuidade a seus estudos, at chegarmos a uma possvel definio do conceito benvenistiano de lngua-discurso, fundamental em nosso trabalho.

    No quarto captulo, trazemos nossas descobertas a partir do corpus selecionado no conjunto de textos reunidos em PLGI e PLGII. Para isso, definimos um percurso de leitura baseado em nosso objetivo, que manter o foco no discurso. O que apresentamos, ento, no o registro e a organizao do vocbulo discurso na obra benvenistiana, mas sim a anlise dos usos dessa palavra em cada texto do corpus, de maneira a elucidar o uso terico do termo e explorar algumas de suas caractersticas.

    Sabemos que nosso trabalho no exaustivo, e no poderia ser diferente. No h estudo sobre a Teoria da Enunciao de Benveniste que finde sem que restem dvidas, sejam as dvidas primeiras que permaneam, sejam as dvidas que surjam ao final do trabalho. Se tivesse conhecido Mario Quintana, Benveniste certamente concordaria com a declarao do poeta: [a] verdade que a minha atroz funo no resolver e sim propor enigmas, fazer o leitor pensar e no pensar por ele13. Benveniste desafia seus leitores. Ns aceitamos o desafio.

    12 CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionrio de Anlise do Discurso. 2 ed. 2 reimpresso. So Paulo: Contexto, 2008.

    13 QUINTANA, Mrio. Pausa. In: A vaca e o hipogrifo. Porto Alegre: Garatuja, 1977, p. 59-60.

  • 15

    2 ENUNCIAO: DA LEITURA INDICIALISTA AO VIS DISCURSIVO

    A Teoria da Enunciao de mile Benveniste uma das teorias que compem a lingustica da enunciao. De acordo com Flores e Teixeira (2008, p. 8, grifos dos autores) 14,

    falamos em teorias da enunciao (no plural) e em lingstica da enunciao (no singular) para salientar o fato de que se, por um lado, existe uma diversidade que permite considerarmos mais de uma teoria da enunciao15, por outro, verificamos que h traos comuns a todas as perspectivas. Em outras palavras, acreditamos na unicidade referencial da expresso lingstica da enunciao.

    Segundo Flores et al. (2008, p. 10)16, no final da dcada de 1970, o nome de Benveniste comea a surgir em vrias publicaes da lingustica brasileira, pois [o]s autores vem em Benveniste a possibilidade de abordar aspectos referentes subjetividade na linguagem.

    Observando-se essas publicaes, percebemos que grande parte delas associa a perspectiva benvenistiana to somente possibilidade que oferece de reconhecimento das marcas de subjetividade na lngua e/ou na linguagem, atravs de ndices especficos17. Tais interpretaes decorrem, talvez, de se tomar os textos clssicos de O homem na lngua, particularmente os que constam em PLGI, desconectados do conjunto do pensamento do autor, o que obscurece o fato de que, acima de tudo, estamos, com Benveniste, diante de uma teoria da significao18.

    Atualmente, como dissemos em nota na introduo, Benveniste comparece timidamente entre os referenciais tericos dos estudos lingusticos sobre texto e discurso no Brasil. Com o intuito de verificar a (no) presena de mile Benveniste no campo dos estudos

    14 FLORES, Valdir do Nascimento; TEIXEIRA, Marlene. Introduo Lingstica da Enunciao. 1 ed. 1 reimpresso. So Paulo: Contexto, 2008.

    15 Os autores trazem, nesse livro, as teorias de Charles Bally, Roman Jakobson, mile Benveniste, Mikhail Bakhtin, Oswald Ducrot e Jaqueline Authier-Revuz como algumas das teorias da enunciao que constituem a lingustica da enunciao. (FLORES; TEIXEIRA, 2008).

    16 FLORES, Valdir do Nascimento et al. Enunciao e Gramtica. So Paulo: Contexto, 2008.

    17 Um exemplo de publicao nesse aspecto est em CINTRA, Ismael Angelo. Marcas lingsticas do narrador. In: Alfa Revista de Lingustica. So Paulo, v. 25, 1981, p. 49-56. Disponvel em . Acesso em 27 jul. 2013.

    18 Patrick Dahlet (1997), por exemplo, coloca Benveniste, ao lado de Charles Bally, na perspectiva indicialista de estudo do sujeito, uma vez que ele se atm ao ato de insero do sujeito falante na lngua, [...] atravs do levantamento e da anlise de marcas lingsticas dessa atividade. Jacques Fontanille (2008) critica Benveniste por ter esquecido que a enunciao o lugar de organizao de todo o discurso. Esse semioticista diz que a enunciao em Benveniste um centro egico, em que a noo de pessoa e a de topicalizao esto amalgamadas.

  • 16

    sobre o discurso, elegemos o Dicionrio de Anlise do Discurso19, de Patrick Charaudeau e Dominique Maingueneau (2008). Esse dicionrio foi escolhido por ser uma obra que rene autores de diversas reas da lingustica e que falam a partir de diferentes teorias, alm de ser um dicionrio especializado, fonte de consulta para aqueles que tm dvidas sobre a definio de algum termo da rea do discurso. A nosso ver, sendo Benveniste um terico do discurso, como prope Dessons, deveria estar presente no dicionrio, figurando como umas das fontes tericas acerca desse assunto.

    Dessa forma, neste captulo, apresentamos o resultado do levantamento realizado entre os verbetes do DAD, assim como a discusso acerca de cada verbete. Aps esse levantamento, discutimos alguns pontos do pensamento benvenistiano que podem induzir o leitor a uma interpretao indicialista de sua teoria. Passemos, ento, anlise dos verbetes do DAD.

    2.1 O lugar de Benveniste no Dicionrio de Anlise do Discurso

    Neste item, apresentamos nossa leitura de verbetes que, sob nosso ponto de vista, comportariam referncia a Benveniste ou sua teoria enunciativa, alguns por se tratarem de conceitos importantes para a compreenso de sua obra, outros por estarem presentes em discusses relevantes propostas por Benveniste acerca de aspectos da linguagem. Os verbetes que foram selecionados na Relao dos verbetes, presente nas primeiras pginas do dicionrio, so os seguintes: acontecimento discursivo; alteridade (princpio de-); anlise do discurso; ato de fala; ato de linguagem; ditico; dixis; discurso; enunciao; locutor; subjetividade. A seguir, propomos uma breve discusso acerca de cada um dos verbetes citados acima20.

    a) Acontecimento discursivo O primeiro verbete da lista, acontecimento discursivo21, traz uma breve referncia a

    Benveniste. De acordo com o dicionrio,

    19 Doravante, DAD.

    20 A referncia de cada citao constituda pelo nome do autor do verbete, seguido do ano de publicao da obra e da pgina citada.

    21 GUILHAUMOU, Jacques. Acontecimento discursivo. In: CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionrio de Anlise do Discurso. So Paulo: Contexto, 2008, p. 29-31. Verbete traduzido por Sandoval Nonato Gomes-Santos.

  • 17

    Benveniste j havia assinalado o valor de ato do enunciado performativo, o fato de que ele acontecimento porque cria o acontecimento (1966: 273)22, abrindo, assim, a via do estudo do acontecimento enunciativo (Fenoglio, 1997). Entretanto, a perspectiva de Foucault mais ampla: o filsofo considera que um enunciado sempre um acontecimento, na medida em que sua anlise no pode ser reduzida a consideraes sobre a lngua, o sentido e o referente. (GUILHAUMOU, 2008, p. 29, grifos do autor).

    No pretendemos entrar na discusso sobre o estatuto do termo acontecimento discursivo na proposta de Foucault. Apenas queremos destacar que, se a perspectiva desse autor no se reduz a consideraes sobre a lngua, o sentido e o referente, tampouco a teoria benvenistiana pode ser reduzida a uma anlise lingustica stricto sensu, como a citao acima permite subentender. necessrio ir alm no entendimento do pensamento benvenistiano para reconhecer que ele desenvolve uma teoria complexa da linguagem, que transcende o mbito estritamente lingustico. A meno a Benveniste, nesse verbete, permite concluir que Guilhaumou toma sua teoria como indicialista, apenas focada nos aspectos lingusticos do enunciado.

    b) Alteridade (princpio de-) No verbete alteridade (princpio de-)23, vemos que o termo serve para definir o ser

    em uma relao que fundada sobre a diferena: o eu no pode tomar conscincia do seu ser-eu a no ser porque existe um no-eu que outro, que diferente (CHARAUDEAU, 2008, p. 34, grifos do autor). Embora o dicionrio informe que a noo de alteridade deriva da filosofia, caberia, nesse caso, uma referncia enunciao de Benveniste, na qual o eu no se institui se no houver institudo um tu. Aqui, seu conceito de intersubjetividade poderia ser trazido para ilustrar a alteridade dentro da lingustica.

    c) Anlise do discurso O verbete anlise do discurso24 bastante abrangente ao descrever aspectos referentes

    ao assunto. Maingueneau explica que se podem atribuir definies variadas anlise do discurso, sendo muito amplas, quando ela considerada um equivalente de estudo do discurso, ou restritivas, quando, distinguindo diversas disciplinas que tomam o discurso

    22 Esta citao est em PLGI, p. 302 (edio brasileira).

    23 CHARAUDEAU, Patrick. Princpio de alteridade. In: CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionrio de Anlise do Discurso. So Paulo: Contexto, 2008, p. 34-35. Verbete traduzido por Maria do Rosrio Gregolin.

    24 MAINGUENEAU, Dominique. Anlise do discurso. In: CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionrio de Anlise do Discurso. So Paulo: Contexto, 2008, p. 43-46. Verbete traduzido por Maria do Rosrio Gregolin.

  • 18

    como objeto, reserva-se essa etiqueta para uma delas (MAINGUENEAU, 2008, p. 43, grifos do autor), ou seja, no caso das definies restritivas, a Anlise do Discurso25 uma das teorias que estudam o discurso em meio a tantas outras que no carregam a palavra discurso no nome. Como exemplo dessas outras disciplinas que compem o campo da anlise do discurso, o autor cita a etnografia da comunicao, a anlise conversacional de inspirao etnometodolgica, a Escola Francesa, as correntes pragmticas, as teorias da enunciao26 e a lingustica textual (MAINGUENEAU, 2008). Embora Maingueneau tenha citado as teorias da enunciao como, tambm, responsveis pelo estudo do discurso, no cita nenhum autor desse campo como exemplo, portanto, no sabemos, pelo que est nesse verbete, se reservado a Benveniste lugar na anlise do discurso.

    Em seguida, o autor distingue alguns grandes plos no campo da anlise do discurso:

    (1) os trabalhos que inscrevem o discurso no quadro da interao social; (2) os trabalhos que privilegiam o estudo das situaes de comunicao linguageira e, portanto, o estudo dos gneros de discurso; (3) os trabalhos que articulam os funcionamentos discursivos com as condies de produo de conhecimento ou com os posicionamentos ideolgicos; (4) os trabalhos que colocam em primeiro plano a organizao textual ou a seleo de marcas da enunciao. (MAINGUENEAU, 2008, p. 45, grifos do autor).

    Como percebemos, dos quatro plos, o nico que contemplaria a enunciao de Benveniste seria o ltimo. Ainda assim, no sabemos se, ao falar em marcas da enunciao, o autor se refere s marcas de subjetividade no discurso (em outras palavras, marcas do homem na lngua) ou apenas aos ndices de pessoa, espao e tempo no enunciado, que o que, comumente, pensa-se ser o foco da teoria da enunciao.

    Alm disso, esse verbete permite concluir que o termo anlise do discurso presente no ttulo da obra no se refere a uma teoria especificamente, mas sim acepo mais ampla, ou seja, ao conjunto de teorias que se dedicam a estudar o discurso, dentre as quais deveria figurar o nome de mile Benveniste.

    25 O dicionrio tambm se refere a essa disciplina como Escola Francesa de Anlise do Discurso. (CHARAUDEAU, MAINGUENEAU, 2008).

    26 Veremos, adiante, o que o dicionrio traz no verbete enunciao.

  • 19

    d) Ato de fala O verbete ato de fala remete para ato de linguagem27. Nesse ltimo, no encontramos

    referncia ao nome de Benveniste, embora no texto A filosofia analtica e a linguagem (1963)28, Benveniste (PLGI) traga uma coerente discusso acerca da atribuio ou no do ttulo de performativo a determinado enunciado, problematizando o abandono por Austin da distino performativo-constativo.

    Austin argumentava que a linguagem toda pode ser performativa e, por esse motivo, abandona a distino performativo-constativo. Porm, Benveniste diz que no h razo para que se abandone essa distino, pois, para ele, ambas as situaes so possveis: a de um enunciado marcado linguisticamente por um verbo performativo no apresentar perfomatividade por faltarem outros elementos (como a autoridade de quem enuncia), e a de um enunciado no marcado por verbo performativo promover um ato (tambm considerando a autoridade de quem enuncia).

    Antes dessa problematizao, porm, j encontramos uma discusso sobre atos de fala no texto Da subjetividade na linguagem (1958)29, em que Benveniste traz como exemplo a diferena entre as expresses eu juro e ele jura. Segundo Benveniste,

    a enunciao je jure [eu juro] o prprio ato que me compromete, no a descrio do ato que eu cumpro. [...] Pode-se ver a diferena substituindo-se je jure por il jure [ele jura]. Enquanto je jure um compromisso, il jure apenas uma descrio, no mesmo plano que il court, il fume [= ele corre, ele fuma]. (PLGI, p. 292, grifos do autor).

    A partir disso, entendemos que seria justa uma referncia a Benveniste quando se trata de atos de fala (ou atos de linguagem), ainda que ele no tenha empregado essa expresso nos exemplos trazidos acima.

    e) Ditico/dixis Neste item, discutiremos, em conjunto, a definio que o DAD apresenta para os

    termos ditico e dixis. A definio de ditico30 diz que

    27 KERBRAT-ORECCHIONI, Catherine. Ato de linguagem. In: CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionrio de Anlise do Discurso. So Paulo: Contexto, 2008, p. 72-74. Verbete traduzido por Maria do Rosrio Gregolin.

    28 O ano que consta entre parnteses se refere data de publicao original do artigo. Para situar o leitor, sempre que mencionarmos um texto de Benveniste, indicaremos entre parnteses o ano em que o artigo foi originalmente publicado. Contudo, a referncia que utilizamos a seguinte: BENVENISTE, mile. A filosofia analtica e a linguagem. In: Problemas de Lingstica Geral I. Campinas: Pontes, 2005, p. 294-305.

    29 BENVENISTE, mile. Da subjetividade na linguagem. In: Problemas de Lingstica Geral I. Campinas: Pontes, 2005, p. 284-293.

  • 20

    a etiqueta de ditico no recobre sempre as mesmas unidades lingsticas. Para alguns pesquisadores, ela se aplica a todos os elementos que, por natureza, suscitam uma referncia de tipo ditico (pessoas, indicadores espaciotemporais); j outros reservam esse conceito somente para os indicadores espaciotemporais (isto, ontem...), e mesmo somente aos indicadores espaciais, seguindo o fio da etimologia31 (mostrar por um gesto). (MAINGUENEAU, 2008, p. 147, grifos do autor).

    Vejamos, agora, a definio de dixis32 presente no dicionrio. Nesse verbete, o autor explica que h trs concepes de dixis entre os linguistas, sendo

    (1) a dixis relacionando os objetos e os eventos do mundo ao lugar que ocupa o locutor no espao e no tempo, dando localizao a uma referncia j constituda; (2) a dixis como tipo de construo referencial que no separa modalidade e ato de referncia; (3) a dixis como fator de coeso textual (tematizao, focalizao) permitindo introduzir novos objetos no discurso. (MAINGUENEAU, 2008, p. 148, grifos do autor).

    Percebemos que h mais de uma concepo para os termos ditico e dixis, porm, tanto num verbete, quanto no outro, nenhuma das concepes recobre o conceito de dixis em Benveniste. Para ele, [n]o adianta nada definir esses termos [os indicadores] e os demonstrativos em geral pela dexis, como se costuma fazer, se no se acrescenta que a dexis contempornea da instncia de discurso que contm o indicador de pessoa (PLGI, p. 279-280, grifos do autor). Com isso, Benveniste instaura o conceito de dixis na enunciao, que distinto de todas as definies apresentadas no dicionrio.

    De acordo com Flores et al. (2008. p. 164), o conceito de dixis, em uma teoria enunciativa, diferente do conceito em outros quadros tericos. Para distinguir a dixis enunciativa da dixis no enunciativa, os autores dizem que, na enunciao, a dixis

    um fenmeno geral que no pode ser adequadamente descrito sem que os signos sejam referidos ao emprego que o sujeito faz deles. De outra forma, para Benveniste os diticos no apenas descrevem uma relao entre enunciado e enunciao, mas so elementos que permitem ao sujeito que enuncia, num dado momento, instaurar a relao do enunciado a si prprio. (FLORES et al., 2008, p. 165).

    Ainda, segundo os autores, as teorias que colocam em relao a lngua e o referente,

    30 MAINGUENEAU, Dominique. Ditico. In: CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionrio de Anlise do Discurso. So Paulo: Contexto, 2008, p. 147-148. Verbete traduzido por Roberto Leiser Baronas.

    31 A palavra dixis tem origem grega e significa a ao de mostrar, indicar, assinalar. Disponvel em . Acesso em 27 fev. 2013.

    32 MAINGUENEAU, Dominique. Dixis. In: CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionrio de Anlise do Discurso. So Paulo: Contexto, 2008, p. 148. Verbete traduzido por Roberto Leiser Baronas.

  • 21

    quando tratam da dixis, circunscrevem-na dimenso referencial da linguagem, ao contrrio de Benveniste, que interpreta a dixis numa dimenso enunciativa da linguagem. O problema central aqui que h diferena entre nvel referencial e nvel enunciativo. O primeiro diz respeito relao entre a lngua e a realidade; o segundo diz respeito relao entre a lngua e o sujeito que enuncia. (FLORES et al., 2008, p. 165).

    Dessa forma, a lngua33 no est submentida apenas s categorias de pessoa, espao e tempo, mas, sim, ao locutor, o que faz com que todos os elementos selecionados por ele sejam diticos, e no somente os marcadores especficos dessas trs categorias. A dixis enunciativa instaura a relao entre a lngua e o locutor. Nesse sentido, ser ditico significa ser subjetivo. Entendemos que a dixis um importante aspecto do pensamento de Benveniste, com discusses ainda mais recorrentes que as que incluem os atos de fala/linguagem, que foram trazidos anteriormente. Porm, alm de recorrente, a dixis em Benveniste peculiar e essa peculiaridade que justificaria sua presena em um dicionrio de anlise do discurso.

    f) Discurso O termo discurso34 exige que nos demoremos um pouco mais em sua discusso. A

    definio de discurso traz uma nica referncia ao nome de mile Benveniste, utilizada para especificar a acepo que ope o discurso lngua. De acordo com o dicionrio, em Benveniste, discurso est prximo de enunciao: a lngua como assumida pelo homem que fala, e na condio de intersubjetividade que s a comunicao lingstica torna possvel (1966:266)35. (MAINGUENEAU, 2008, p. 169, grifos do autor).

    Antes de passarmos discusso efetiva sobre a noo de discurso, preciso indicar um equvoco na utilizao das palavras de Benveniste. Enquanto, no dicionrio, est escrito que s a comunicao lingustica torna possvel a intersubjetividade, na obra em portugus, temos o discurso como a lngua enquanto assumida pelo homem que fala, e sob a condio de intersubjetividade, nica que torna possvel a comunicao lingstica (PLGI, p. 293, grifo nosso)36, ou seja, o dicionrio traz uma ideia contrria de PLGI. Entendemos que a intersubjetividade a condio da subjetividade, sendo assim, para haver comunicao,

    33 Ao falarmos lngua, consideramos, aqui, o conceito de lngua-discurso, que ser discutido no item 3.3.

    34 MAINGUENEAU, Dominique. Discurso. In: CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionrio de Anlise do Discurso. So Paulo: Contexto, 2008, p. 168-172. Verbete traduzido por Srio Possenti.

    35 Referncia da obra original.

    36 A referncia citada no verbete traduzido a da obra original, em francs, na qual lemos la langue en tant quassume par lhomme qui parle, et dans la condition dintersubjectivit, qui seule rend possible la communication linguistique. Dessa forma, conclumos que h erro de traduo no DAD, enquanto que no PLGI a traduo est correta.

  • 22

    preciso que, antes, o eu institua um tu, para emergir como sujeito. Consideramos que a formulao feita no DAD altera o princpio do pensamento benvenistiano.

    Ainda sobre o trecho do dicionrio citado acima, parece-nos que discurso e enunciao so mostrados como sinnimos. Dada a importncia desses conceitos para este trabalho, no os definiremos neste momento, em que tecemos comentrios sobre alguns verbetes selecionados do DAD por terem relao com termos utilizados por Benveniste. Definir enunciao uma tarefa difcil, como bem o demonstra Aya Ono (2007)37, abrindo a via para que estudiosos de Benveniste passem a desconfiar da aparente univocidade dessa noo38; definir discurso um dos objetivos do presente trabalho, que se dedica detalhadamente a isso no quarto captulo. Por ora, suficiente comparar a definio de discurso como a lngua enquanto assumida pelo homem que fala (PLGI, p. 293) com a definio de enunciao como o colocar em funcionamento a lngua por um ato individual de utilizao (PLGII, p. 82), para concluirmos que os dois termos no designam o mesmo conceito.

    Nesse verbete, alm dessa referncia a Benveniste, identificamos outro ponto que oferece espao s suas formulaes. Trata-se da oposio discurso vs frase, a partir da qual o dicionrio explica que o discurso uma unidade lingstica constituda de uma sucesso de frases (MAINGUENEAU, 2008, p. 168, grifos do autor) e traz uma nica referncia no assunto (Harris). Ora, a relao entre discurso e frase bem conhecida dos estudiosos de Benveniste. Em Os nveis da anlise lingstica39, Benveniste diz que a frase a unidade do discurso e que no discurso atualizado em frases que a lngua se forma e se configura. (PLGI, p. 139-140). Dessa forma, parece-nos que o DAD ganharia em amplitude se considerasse (ou reconhecesse) o vis discursivo da teoria de Benveniste e o inclusse no referencial terico desse campo.

    Alm disso, identificamos, nesse verbete, outros trechos em que o linguista poderia ter sido citado. exemplo disso a seguinte passagem:

    Toda enunciao, mesmo produzida sem a presena de um destinatrio, de fato assumida em uma interatividade constitutiva; ela uma troca, explcita ou implcita, com outros locutores, virtuais ou reais, ela supe sempre a

    37 A autora dedicou sua tese de doutorado elucidao desse conceito. Ver: ONO, Aya. La notion

    dnonciation chez mile Benveniste. Traduo de Daniel Costa da Silva. Limoges: Lambert-Lucas, 2007, p. 15-57. 38

    Por exemplo, Fbio Aresi, que, em sua dissertao (ARESI, 2012), realizou uma exegese do texto O Aparelho Formal da Enunciao (a seguir, mencionaremos esse trabalho novamente).

    39 BENVENISTE, mile. Os nveis da anlise lingustica. In: Problemas de Lingstica Geral I. Campinas: Pontes, 2005, p. 127 140.

  • 23

    presena de uma outra instncia de enunciao qual o locutor se dirige e em relao a qual ele constri seu prprio discurso. (MAINGUENEAU, 2008, p. 171, grifo do autor).

    Acima, percebemos uma grande semelhana entre as ideias trazidas no dicionrio e as de Benveniste, quando se trata da necessidade que eu e tu tm um do outro para se constiturem. Seria um momento para trazer alguma referncia ao autor, mas isso no acontece. Assim, conclumos que a teoria de Benveniste no recebe o devido lugar na elaborao do verbete em questo.

    g) Enunciao Na definio do termo enunciao40, trs aspectos merecem ser destacados.

    Primeiramente, o autor diz que, quando se trata de enunciao,

    faz-se geralmente referncia definio de Benveniste (1974:80), que toma a enunciao como a colocao em funcionamento da lngua por um ato individual de utilizao, que o autor ope a enunciado, o ato distinguindo-se de seu produto. Essa definio, entretanto, submete-se a variaes significativas, segundo as teorias lingsticas que a mobilizam. (MAINGUENEAU, 2008, p. 193, grifo do autor).

    Concordamos que a definio utilizada pelo autor no DAD seja realmente a mais conhecida definio de enunciao escrita por Benveniste. Contudo, sabemos da flutuao terminolgica presente em sua obra, o que d lugar, como j dissemos, a uma srie de trabalhos que se dedicam exclusivamente a estudar sua terminologia. A noo de enunciao no foge a esta condio, e pode ser encontrada em PLG I e II, tanto remetendo a conceitos diferentes, como sendo referida por outros termos41. Alm disso, sabemos que essa definio sofre variaes quando utilizada por outras teorias enunciativas (FLORES et al., 2009)42.

    O segundo aspecto a ser observado quando, mais adiante, Maingueneau (2008, p. 194) cita Antoine Culioli, ao dizer que a definio benvenistiana da enunciao privilegia o plo do enunciador, mas isso no deve fazer esquecer que a enunciao uma co-enunciao, que ela fundamentalmente acomodao inter-subjetiva (Culioli, 1973:87). De fato, Benveniste parece dar destaque primeira pessoa: eu sempre transcendente em relao a

    40 MAINGUENEAU, Dominique. Enunciao. In: CHARAUDEAU, Patrick. ; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionrio de Anlise do Discurso. So Paulo: Contexto, 2008, p. 193-195. Verbete traduzido por Sandoval Nonato Gomes-Santos.

    41 Sobre esse aspecto, j mencionamos o trabalho de ONO (2007).

    42 No Dicionrio de Lingstica da Enunciao, Flores et al. (2009) apresentam nove definies para enunciao,

    segundo sua utilizao por autores como: Authier-Revuz, Bakhtin, Bally, Benveniste, Culioli, Ducrot, Greimas, Jakobson, Rcanati, sem, contudo esgotar as possibilidades de utilizao desse termo.

  • 24

    tu. (PLGI, p. 255). Porm, isso no significa (e entender esse aspecto condio necessria para a compreenso do pensamento de Benveniste) que ele desconsidere o interlocutor que referimos como tu. Ao contrrio, para Benveniste, a subjetividade s possvel a partir da intersubjetividade. J discutimos esse ponto, porm, pensamos ser vlido traz-lo tona novamente, desta vez, pelas palavras de Benveniste, que explica que

    [a] conscincia de si mesmo s possvel se experimentada por contraste. Eu no emprego eu a no ser dirigindo-me a algum, que ser na minha alocuo um tu. Essa condio de dilogo que constitutiva da pessoa, pois implica em reciprocidade que eu me torne tu na alocuo daquele que por sua vez se designa por eu. [...] A polaridade das pessoas na linguagem a condio fundamental, cujo processo de comunicao, de que partimos, apenas uma consequncia totalmente pragmtica. [...] Essa polaridade no significa igualdade nem simetria: ego tem sempre uma posio de transcendncia quanto a tu; apesar disso, nenhum dos dois termos se concebe sem o outro; so complementares, mas segundo uma oposio interior/exterior, e ao mesmo tempo so reversveis. (PLGI, p. 286-287, os grifos em itlico so do autor, o grifo em negrito nosso).

    Acreditamos no ser necessrio nos prolongarmos nesse ponto, pois fica claro que, a partir da condio de reversibilidade entre eu e tu, o privilgio sempre do eu, porm, esse eu sempre provisrio.

    Finalmente, o terceiro ponto que gostaramos de salientar a forma equivocada como se interpreta a clssica definio benvenistiana de enunciao: este colocar em funcionamento a lngua por um ato individual de utilizao (PLGII, p. 82). Lemos, no DAD, que em se tratando da anlise do discurso, no possvel, efetivamente, contentar-se com uma definio estritamente lingstica da enunciao como colocao em funcionamento individual da lngua (MAINGUENEAU, 2008, p. 195). Nessa passagem, existe uma clara referncia a Benveniste e sua clebre definio de enunciao, que acabamos de citar. No entanto, trata-se de uma referncia que, de certa forma, deprecia a definio benvenistiana, principalmente porque Maingueneau afirma que no possvel contentar-se com ela. No

    nosso propsito convencer o leitor de que Benveniste fonte nica e suficiente no que diz respeito enunciao, apenas salientamos que h a um entendimento limitado do pensamento benvenistiano, pois, h algum tempo, j consenso que Benveniste no se restringe ao carter lingustico da enunciao. Basta passar os olhos em alguns de seus textos43 para percebermos que, para ele, o homem e a linguagem so inseparveis, o que significa dizer que, quando Benveniste fala sobre fatos da lngua, jamais exclui o locutor e o sujeito que advm do ato de

    43 A quinta parte de Problemas de Lingstica Geral I e II O homem na lngua rene textos que se dedicam principalmente ao fato de que, para Benveniste, homem e linguagem so indissociveis.

  • 25

    apropriao da lngua. Portanto, seu conceito de enunciao no pode ser estritamente lingustico, pois implica a experincia humana, aspecto que desconsiderado pelo dicionrio analisado.

    h) Locutor Na definio do termo locutor44, no que diz respeito a Benveniste, o dicionrio se

    limita a dizer que

    o autor considera que pela linguagem que o homem se constitui como sujeito, porque somente a linguagem funda, de fato, em sua realidade que aquela do ser, o conceito de ego (1966: 259). o que ele chama de subjetividade na linguagem, que a capacidade do locutor de se colocar como sujeito (ibid.). Mas aqui tampouco est definido se o locutor um ser psicolgico e social ou um puro ser de linguagem. (CHARAUDEAU, 2008, p. 310, grifos do autor).

    Como exposto anteriormente, a teoria benvenistiana se compe de uma terminologia difcil de ser precisada. Portanto, para definir um termo ou um conceito, necessrio percorrer mais de um texto do autor, correndo-se o risco, ainda assim, de no se encontrar uma definio absoluta. Buscamos esclarecer o conceito de locutor em Benveniste, apoiando-nos no que diz o Dicionrio de Lingustica da Enunciao45 sobre esse termo.

    Nesse dicionrio, Flores et al. (2009, p. 157)46 definem o termo como indivduo lingustico cuja existncia se marca na lngua toda vez que toma a palavra. Em nota, os autores explicam a diferena entre locutor e sujeito, dizendo que

    locutor aquele que fala em uma dada instncia de discurso e que, ao falar, se autoindica atravs de marcas especficas na lngua. [...] [A] noo de locutor necessria para que Benveniste possa formular a noo de sujeito, uma vez que sua teoria dedica-se bastante a estudar a subjetividade entendida como capacidade do locutor para se propor como sujeito (BEN95: 286)47. (FLORES et al., 2009, p. 157-158).

    Alm disso, segundo os autores (FLORES et al., 2009), o movimento de passagem da noo de locutor noo de sujeito fica claro quando Benveniste diz que [] identificando-se como pessoa nica pronunciando eu que cada um dos locutores se prope alternadamente como sujeito (PLGI, p. 280-281, grifos do autor), ou quando ele diz que [a] linguagem s

    44 CHARAUDEAU, Patrick. Locutor. In: CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionrio de Anlise do Discurso. So Paulo: Contexto, 2008, p. 310-311. Verbete traduzido por Maristela Cury Sarian.

    45 Doravante, DLE.

    46 FLORES, Valdir do Nascimento et al. Dicionrio de Lingustica da Enunciao. So Paulo: Contexto, 2009.

    47 Esta referncia estabelecida pelo dicionrio. Entenda-se: PLGI, p. 286.

  • 26

    possvel porque cada locutor se apresenta como sujeito, remetendo a ele mesmo como eu no seu discurso. (PLGI, p. 286, grifos do autor).

    Dessa forma, vemos que locutor no se confunde com sujeito, ou seja, ambos no podem ser considerados como sinnimos. Sendo o locutor o indivduo lingustico que assume a lngua, o sujeito aquele que emerge como resultado dessa assuno.

    i) Subjetividade Na definio do termo subjetividade48, Kerbrat-Orecchioni explica que, embora Bral

    e Bally j houvessem se interessado pelo assunto, em Benveniste que se deve atribuir um estatuto verdadeiramente lingstico noo de subjetividade e afirma que, para Benveniste, a subjetividade nada mais que a capacidade do locutor de se posicionar como sujeito, e na linguagem que devemos procurar os fundamentos dessa aptido, na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito. (KERBRAT-ORECCHIONI, 2008, p. 456, grifos da autora).

    Sobre esse aspecto, nossa ressalva continua a mesma: a teoria benvenistiana no possui apenas estatuto lingustico, sobretudo quando se trata da subjetividade. Embora a autora tenha citado Benveniste, que diz que na linguagem que o homem se constitui como sujeito, percebemos que ela no explora a amplitude desta proposio. Um elemento que nos leva a concluir isso a forma como a autora reproduz o conceito de subjetividade, dizendo que nada mais que a capacidade de o locutor se tornar sujeito por meio da linguagem. Ora, a grandeza desse fenmeno no pode ser reduzida a um nada mais que, sobretudo se lembrarmos que a linguagem, em Benveniste, o que torna possvel a prpria vida do homem.

    Em seguida, apresenta-se uma discusso com a qual concordamos em parte: o homem se constitui como sujeito na e pela linguagem, atravs de determinadas formas que ela oferece, sendo, em primeiro lugar, o pronome eu e, depois, outros pronomes pessoais, formas temporais e demais diticos mencionados por Benveniste. Entram na lista de marcadores de subjetividade alguns verbos, como crer, supor e presumir (KERBRAT-ORECCHIONI, 2008). A autora traz, em seguida, a informao de que o trabalho de Benveniste foi continuado por ela prpria, que

    48 KERBRAT-ORECCHIONI, Catherine. Subjetividade. In: CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionrio de Anlise do Discurso. So Paulo: Contexto, 2008, p. 456-457. Verbete traduzido por Pedro Luis Navarro Barbosa.

  • 27

    amplia o inventrio de marcadores de subjetividade [...] distinguindo, alm dos diticos, os termos afetivos, os avaliativos (ou apreciativos) axiolgicos e no-axiolgicos, os modalizadores, e outros lugares ainda de inscrio no enunciado do sujeito da enunciao (escolha denominativa, seleo e hierarquizao das informaes etc). [...] [A] obra [Lnonciation. De la subjectivit dans le langage] chega concluso de que a subjetividade est em todo lugar, sendo que todos os discursos so marcados subjetivamente, mas segundo formas e graus extremamente variveis. (KERBRAT-ORECCHIONI, 2008, p. 456-457, grifos da autora).

    No discutiremos a obra de Kerbrat-Orecchioni, que, segundo ela, continua o trabalho de Benveniste. Se concordamos apenas em parte com a discusso apresentada pela autora no DAD, porque, atualmente, entre os estudiosos de Benveniste, j se abandonou a ideia de que somente as marcas de pessoa, espao e tempo instauram a subjetividade na linguagem. Essas formas so, de fato, mecanismos de instanciao do locutor no discurso, porm, uma vez instanciado, ele tem sua disposio toda a lngua49 para se enunciar, ampliando o escopo da dixis para a lngua em sua totalidade (dando lugar dixis enunciativa, j abordada anteriormente).

    A partir da anlise desses verbetes, conclumos que o DAD no contempla a teoria de Benveniste de maneira aprofundada, com a complexidade que seu pensamento exige. Atribumos esse fato leitura indicialista que, muitas vezes, feita dos textos benvenistianos, at mesmo por grandes estudiosos da linguagem.

    No item seguinte, apresentamos alguns aspectos fundamentais da Teoria da Enunciao de mile Benveniste cujo entendimento redutor pode conduzir o leitor interpretao indicialista como nica possibilidade.

    2.2 A provvel origem da interpretao indicialista da teoria benvenistiana

    Neste momento, apresentamos brevemente alguns conceitos fundamentais do pensamento benvenistiano pessoa, espao e tempo, indicadores de subjetividade e subjetividade e intersubjetividade. Os conceitos citados esto na base da teoria de Benveniste, porm, ainda que sejam conceitos bsicos, sua essncia50, muitas vezes, no alcanada por um leitor pouco atento ou cujo foco de interesse esteja em outras teorias. Este pode ser o motivo de esses conceitos estarem associados interpretao indicialista da Teoria da Enunciao: fazem parte de alguns dos textos mais conhecidos de PLG, que so, muitas

    49 Sobre esse aspecto, ver o captulo 3 Saussure/Benveniste: da lngua lngua-discurso , especificamente o item 3. 3, assim como o captulo 4 Discurso: do conceito vida do homem.

    50 Nenhuma das ocorrncias da palavra essncia, incluindo a que aparece no ttulo do trabalho, refere-se ao seu sentido terico (seja filosfico ou metafsico). Utilizamos a palavra essncia no sentido de fundamento.

  • 28

    vezes, os nicos textos lidos por aqueles que tm curiosidade sobre mile Benveniste ou que precisam conhec-lo minimamente, e que acabam associando esses conceitos unicamente s marcas de subjetividade na linguagem e atribuindo a Benveniste apenas o mrito por mostrar em que consistem essas marcas.

    Dessa forma, buscamos mostrar como se d a passagem das categorias de pessoa, espao e tempo aos ndices de subjetividade, para, por fim, discutirmos no que consiste a relao subjetividade/intersubjetividade. Para essa discusso, selecionamos dois captulos clssicos de PLGI: A natureza dos pronomes51 e Da subjetividade na linguagem. A partir desses textos, possvel traar um panorama dos conceitos mais recorrentes na teoria benvenistiana, que podem ter dado margem reduo de seu ensinamento leitura indicialista.

    2.2.1 As categorias de pessoa, espao e tempo como marcas de subjetividade

    Em A natureza dos pronomes (1956), captulo que focaliza os pronomes pessoais, Benveniste apresenta a definio de pessoa. Sobre os pronomes, o autor adverte que a definio comum dos pronomes pessoais como contendo os trs termos eu, tu, ele, abole justamente a noo de pessoa. Esta prpria somente de eu/tu, e falta em ele (PLGI, p. 277-278, grifos do autor). Vejamos.

    Sobre a primeira pessoa eu, Benveniste afirma que [c]ada eu tem a sua referncia prpria e corresponde cada vez a um ser nico, proposto como tal (PLGI, p. 278, grifo do autor). Tendo referncia prpria, o autor salienta que eu se refere unicamente a uma realidade do discurso, que uma coisa muito singular. Eu s pode definir-se em termos de locuo, no em termos de objetos, como um signo nominal (PLGI, p. 278, grifos do autor). Ainda, para definir a noo de eu e, assim, a noo de tu (segunda pessoa), Benveniste explica que

    eu o indivduo que enuncia a presente instncia de discurso que contm a instncia lingstica eu. Consequentemente, introduzindo-se a situao de alocuo, obtm-se uma definio simtrica para tu como o indivduo alocutado na presente instncia de discurso contendo a instncia lingstica tu. (PLGI, p. 279, grifos do autor).

    51 BENVENISTE, mile. A natureza dos pronomes. In: Problemas de Lingstica Geral I. Campinas: Pontes, 2005, p. 277-283.

  • 29

    Alm disso, Benveniste afirma que eu/tu fazem parte de uma srie de indicadores, cujo trao em comum a referncia instncia de discurso. Para definir as noes de espao e tempo, o autor insere os advrbios aqui e agora nessa srie de indicadores, juntamente com eu/tu, alm de alguns pronomes, advrbios e locues adverbiais, e os relaciona com eu, dizendo que aqui e agora delimitam a instncia espacial e temporal coextensiva e contempornea da presente instncia de discurso que contm eu. (PLGI, p. 279, grifos do autor).

    Enquanto as pessoas eu e tu fazem parte do discurso e remetem sempre situao de enunciao, a terceira pessoa ele o que Benveniste considera a no-pessoa a face objetiva da lngua (FLORES et al., 2009, p. 174). Ao se referir terceira pessoa, o autor claro ao dizer que esta

    representa de fato o membro no marcado da correlao de pessoa. por isso que no h trusmo em afirmar que a no-pessoa o nico modo de enunciao possvel para as instncias de discurso que no devam remeter a elas mesmas, mas que predicam o processo de no importa quem ou no importa o que, exceto a prpria instncia, podendo sempre esse no importa quem ou no importa o que ser munido de uma referncia objetiva. (PLGI. 282, grifos do autor).

    Benveniste afirma ainda que as noes de eu/tu e de ele diferem quanto noo de pessoa, devido a sua funo e a sua natureza: enquanto as primeiras so indicadoras de pessoa, a segunda serve para representar sintaticamente elementos do enunciado.

    Diante disso, desenha-se a seguinte sntese: a terceira pessoa ele no faz parte da locuo, pertencendo apenas sintaxe da lngua. A primeira pessoa eu a pessoa que enuncia algo e a segunda pessoa tu, a pessoa qual eu se dirige. Assim, as pessoas da enunciao sero sempre eu e tu, seu tempo ser sempre agora e seu espao ser sempre aqui. Isso faz com que a enunciao seja sui-referencial, formando o quadro eu-tu-aqui-agora. Esse quadro parece ser o que se difundiu como responsvel pelas marcas do homem na lngua, que, na perspectiva indicialista, fica restrita aos diticos pessoais, temporais e espaciais, responsveis por serem os indicadores de subjetividade.

    2.1.2 O escopo dos indicadores de subjetividade

    Em Da subjetividade na linguagem (1958), Benveniste discorre sobre os indicadores de subjetividade, dizendo que [o]s pronomes pessoais so o primeiro ponto de apoio para essa revelao da subjetividade na linguagem (PLGI, p. 288) e que deles dependem outras

  • 30

    classes, os indicadores da dexis, que tm em comum o trao de se definirem somente com relao instncia de discurso na qual so produzidos, isto , sob a dependncia do eu que a se enuncia (PLGI, p. 288). O autor explica ainda que, por serem diticos, esses indicadores (demonstrativos, advrbios, adjetivos) encontram referncia no tempo em que se fala, sendo esse um momento eternamente presente, embora no se refira jamais aos mesmos acontecimentos de uma cronologia objetiva porque determinado cada vez pelo locutor para cada uma das instncias de discurso referidas (PLGI, p. 289, grifos do autor). So esses indicadores de subjetividade que permitem que, como locutores, nos apropriemos da lngua e nos instanciemos no discurso para nos instituirmos como sujeitos.

    Benveniste d destaque aos diticos como indicadores de subjetividade, porm, embora, nesse texto, ele tenha chamado a ateno para as marcas de pessoa, espao e tempo como indicadores, explica que

    [a] linguagem , pois, a possibilidade da subjetividade, pelo fato de conter sempre as formas lingsticas apropriadas sua expresso. [...] A linguagem de algum modo prope formas vazias das quais cada locutor em exerccio de discurso se apropria e as quais refere sua pessoa, definindo-se ao mesmo tempo a si mesmo como eu e a um parceiro como tu. A instncia de discurso assim constitutiva de todas as coordenadas que definem o sujeito e das quais apenas designamos sumariamente as mais aparentes. (PLGI, p. 289, os grifos em itlico so do autor, o grifo em negrito nosso).

    Como dissemos, preciso desconfiar das palavras de Benveniste, sobretudo quando parecem bvias. Ora, quando o autor diz que foram designadas sumariamente apenas as marcas mais aparentes do sujeito na linguagem, devemos concluir que essas marcas no se restringem aos diticos de pessoa, espao e tempo, mas que se encontram tambm em outros lugares. Como j dissemos, entre os estudiosos de Benveniste, j se abandonou a ideia de que a subjetividade esteja apenas nessas marcas explcitas do quadro eu-tu-aqui-agora. Sendo consenso que a lngua toda subjetiva, ganha espao a noo de dixis enunciativa, que alarga o escopo da dixis para alm das marcas pessoais, espaciais e temporais, expandindo-a para a lngua em sua totalidade.

    No item seguinte, discutiremos as noes de subjetividade e intersubjetividade, que, muito mais que explicitarem a presena do homem na lngua, so constitutivas da prpria condio de ser humano.

  • 31

    2.1.3 As noes de subjetividade e intersubjetividade

    Benveniste, antes de tratar da subjetividade, esclarece que no se deve dizer que a linguagem instrumento de comunicao, pois [f]alar de instrumento, pr em oposio o homem e a natureza. [...] A linguagem est na natureza do homem, que no a fabricou (PLGI, p. 285). A partir da assuno da linguagem como condio da existncia do homem e no apenas como instrumento para que se comunique, compreende-se mais claramente a noo de subjetividade.

    Segundo Benveniste, no h outra forma de o homem se propor como sujeito a no ser pela linguagem: [] na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito; porque s a linguagem fundamenta na realidade, na sua realidade que a do ser, o conceito de ego (PLGI, p. 286, grifos do autor). Seguindo, o autor define subjetividade como a capacidade do locutor para se propor como sujeito (PLGI, p. 286, grifo do autor), sendo, dessa forma, a expresso do locutor por meio da linguagem inteiramente subjetiva.

    Benveniste explica que, desde que ele [o locutor] se declara locutor e assume a lngua, ele implanta o outro diante de si, qualquer que seja o grau de presena que ele atribua a este outro. Toda enunciao , explcita ou implicitamente, uma alocuo, ela postula um alocutrio (PLGII, p. 84, grifos do autor). Porm, o autor salienta que a conscincia de si mesmo s possvel se experimentada por contraste (PLGI, p. 286), assim, ainda que o alocutrio seja instaurado pelo locutor, essa presena que possibilita que o locutor se constitua como sujeito.

    A partir do conceito de subjetividade, possvel compreender, tambm, o de intersubjetividade. Ora, sendo a linguagem aquilo que transforma o locutor em sujeito e sendo essa subjetividade explicitada apenas por contraste, como vimos anteriormente, fica claro que eu no se institui como eu se no instituir, antes, um tu. De acordo com Flores e Teixeira (2008, p. 34),

    [...] a intersubjetividade a condio da subjetividade [...]. H aqui uma espcie de anterioridade lgica, ou seja, porque existe intersubjetividade que se pode pensar em subjetividade. O sujeito, para se propor como tal na linguagem, tem de estar, ele mesmo, constitudo pelo outro.

    Dessa forma, conclui-se que a expresso da subjetividade s possvel atravs da relao intersubjetiva que se instaura entre eu e tu. Eu no existe como sujeito se no houver um tu, que no existir se no for institudo por um eu, sendo eu e tu reversveis na enunciao.

  • 32

    A partir dessa discusso, vemos que a subjetividade vai muito alm de marcas no enunciado, ou de caractersticas que o particularizem. A subjetividade est intimamente ligada linguagem, na e pela qual o homem se constitui como sujeito (PLGI, p. 286, grifo do autor), numa realidade dialtica que engloba eu e tu, definidos por sua relao mtua (PLGI, 287). Alm disso, o ltimo pargrafo estende ainda mais o escopo da subjetividade:

    Muitas noes na lingstica, e talvez mesmo na psicologia, aparecero sob uma luz diferente se as restabelecermos no quadro do discurso, que a lngua enquanto assumida pelo homem que fala, e sob a condio de intersubjetividade, nica que torna possvel a comunicao lingstica (PLGI, p. 293, grifo do autor).

    A prpria noo de intersubjetividade tambm deve ser vista com olhos mais atentos, pois no se trata apenas da relao entre eu e tu, mas da necessidade dessa relao para que o eu ganhe vida.

    Leituras recentes da abra de Benveniste tm contribudo para iluminar aspectos que mostram a amplitude de seu pensamento sobre a linguagem52. Este o axioma benvenistiano: o homem est na lngua. Os pronomes pessoais so a porta de entrada do homem na lngua, seguidos dos demais indicadores explcitos de subjetividade e da lngua toda, quando mobilizada pelo homem que fala a um outro. A est o argumento contra a insistncia em reduzir o ensino de Benveniste perspectiva indicialista.

    2.3 Algumas consideraes

    Aps fazermos o levantamento que no se pretendeu exaustivo nas pginas do DAD, percebemos que, dentre os verbetes que comportariam referncia a Benveniste, muitas vezes, o tratamento da sua teoria prejudicado, ou por se atribuir a ele uma perspectiva indicialista de descrio da subjetividade na linguagem, ou pela interpretao, por vezes limitada, de sua terminologia.

    Um exemplo de verbete que reduz a Teoria da Enunciao de mile Benveniste a uma perspectiva indicial, acontecimento discursivo. Benveniste citado como referncia quando o assunto so os ndices de subjetividade aqueles relacionados ao quadro eu-tu-aqui-

    52 Teixeira (2012) lembra que havia certa resistncia s formulaes benvenistianas por parte dos linguistas, embora o autor encontrasse espao no mbito das cincias humanas. No entanto, com a publicao de O aparelho formal da enunciao, em 1970, essa situao foi revertida. De acordo com Teixeira (2012, p. 73), atualmente Benveniste j transita bem entre linguistas e continua a interessar estudiosos em outros campos, como o demonstra a utilizao de suas formulaes por filsofos como Dufour (2000) e Agamben (2008) e antroplogos como Castro (1996).

  • 33

    agora, porm, quando, em determinados verbetes, surge espao para a complexidade do pensamento benvenistiano como o caso de princpio de alteridade, anlise do discurso, ato de linguagem, ditico, dixis, discurso, enunciao , os autores no o mencionam ou o mencionam de forma tmida, sem dar a ele lugar de destaque.

    Contudo, sabemos que seria uma tarefa um tanto rdua abarcar todas as teorias do discurso com a finalidade de definir seus termos em um nico dicionrio e com a propriedade que lhes caberia. Os prprios autores admitem a necessidade de fazer escolhas, devido complexidade do campo da anlise do discurso, explicando que, se pretendessem introduzir no dicionrio a totalidade dos termos que um leitor pode encontrar em um artigo ou em um livro que trate do discurso, seria necessrio mobilizar a quase totalidade do campo das cincias humanas e sociais. (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2008, p. 15).

    Compreendemos as ponderaes dos autores e concordamos que no , realmente, possvel abarcar a totalidade de termos presentes nas discusses em anlise do discurso. Alm disso, por se tratar de um dicionrio que, embora seja especializado em anlise do discurso, abrange diversas teorias, a possibilidade de contemplar a terminologia de cada uma dessas teorias remota.

    Apesar disso, a anlise de verbetes do DAD demonstrou, acima de tudo, que Benveniste no reconhecido como um dos representantes dos estudos do discurso53, ainda que, na elaborao de seus escritos, tenha se voltado sempre ao homem que fala a outro homem. Isso evidencia um possvel desconhecimento, ou um conhecimento superficial, da teoria da enunciao benvenistiana.

    Como dissemos, esse desconhecimento no sem razo. Sem a ateno necessria para enxergar alm, abordagem indicialista que se chega a partir da leitura de alguns dos principais textos de PLGI. Dessa forma, aps a discusso dos verbetes, o que procuramos mostrar com a discusso dos captulos A natureza dos pronomes e Da subjetividade na linguagem, ambos de PLGI, foi que, mesmo nesses textos, possvel enxergar que a teoria benvenistiana no uma teoria indicialista. Vimos, a partir de alguns de seus principais conceitos (pessoa, espao e tempo, ndices de subjetividade, subjetividade e intersubjetividade), que sua teoria est centrada na instaurao do homem na lngua, por isso, Benveniste discute largamente os mecanismos por meio dos quais acontece essa insero. Porm, apesar de discutir sobre os ndices, que so, de fato, a mais clara mostra de que o

    53 Termos essenciais do pensamento de mile Benveniste, como semitico, semntico, sujeito, intersubjetividade e instncia de discurso no aparecem no dicionrio (o termo instncia de enunciao aparece no dicionrio remetendo para enunciao, porm no destacada a particularidade de cada termo).

  • 34

    homem est na lngua, acreditamos que toda a profundidade e complexidade de seu pensamento se resume nesta afirmao: a linguagem serve para viver (PLGII, p. 222, grifo do autor). Essa pequena declarao no deve ser menosprezada, pois, somente a partir do momento em que ela recebe sua justa compreenso e importncia que se torna possvel abandonar a interpretao indicialista que se faz de Benveniste e passar a compreender que tudo o que ele escreveu foi para provar que, sem linguagem, no h vida humana.

    No captulo seguinte, retomamos o percurso de Benveniste desde sua relao com Saussure e com o estruturalismo, verificando como se deu a sua ultrapassagem em relao ao mestre, e buscando identificar a diferena entre o conceito saussuriano de lngua e o conceito benvenistiano de lngua-discurso.

  • 35

    3 SAUSSURE/BENVENISTE: DA LNGUA LNGUA-DISCURSO

    Iniciamos, aqui, a discusso efetiva da teoria de mile Benveniste. Neste captulo (e no prximo), nos debruamos sobre seus textos, a fim de (re)descobrirmos o que se esconde por trs do que ele deixou escrito. Comeamos por verificar a relao de Benveniste com o estruturalismo e, em seguida, com Saussure. Por ltimo, problematizamos o conceito de lngua-discurso, que, em nossa opinio, o que particulariza as formulaes de Benveniste em relao ao pensamento saussuriano.

    H diversos estudos (alguns so tratados neste captulo) aproximando, comparando, relacionando Ferdinand de Saussure e mile Benveniste. Sempre que se fala em Benveniste, tem-se a necessidade de ir origem de seu pensamento e, l, est Saussure. Os numerosos estudos envolvendo ambos se justificam pela clara filiao de Benveniste a Saussure, pela devoo que Benveniste demonstrava pelo mestre e pela forma respeitosa com que avanou em seu pensamento, sempre a partir das ideias de Saussure. A seguir, abordamos essa delicada relao, sobretudo, no que diz respeito passagem da lngua, conceito saussuriano, lngua-discurso, conceito benvenistiano, que tentamos definir.

    3.1 Benveniste e o estruturalismo

    Para iniciar a discusso, seguimos a sugesto de Grard Dessons (2006) e focamos, neste item, nos seis textos que, de acordo com o autor, abordam a relao de Benveniste com o estruturalismo: Tendncias recentes em lingstica geral (1954), Vista dolhos sobre o desenvolvimento da lingstica (1963), Saussure aps meio sculo (1963), Estrutura em lingstica (1962), Estruturalismo e lingstica (1968) e Esta linguagem que faz a histria (1968)54. Dessons (2006) ressalta que, nesses textos, Benveniste no apenas explica de que maneira compreende a noo de estrutura, como lana um olhar crtico sobre as teorias lingusticas de seu tempo55. O autor lembra, ainda, que, nos trs primeiros textos citados, mile Benveniste discorre sobre a histria da lingustica moderna, sendo que o quarto um estudo sobre a palavra estrutura e, os dois ltimos, entrevistas. Passemos, ento, discusso dos textos.

    54 Os quatro primeiros artigos fazem parte do volume I de Problemas de Lingstica Geral, os dois ltimos, do volume II.

    55 Dans ces texte, Benveniste ne se contente pas dexpliquer comment il faut comprendre la pense de la structure [...], il pose en mme temps un regard critique sur les thories linguistiques de son temps. (DESSONS, 2006, p. 37).

  • 36

    a) Tendncias recentes em lingstica geral Em Tendncias recentes em lingstica geral (1954)56, mile Benveniste faz um

    apanhado geral sobre a situao dos estudos lingusticos poca. O autor salienta que a lingstica sofreu um desenvolvimento to rpido e estendeu tanto o seu domnio que um balano mesmo sumrio dos problemas que aborda assumiria as propores de uma obra ou se esgotaria numa enumerao de trabalhos (PLGI, p. 3). Porm, apesar de numerosos, Benveniste chama a ateno para o fato de esses trabalhos se desenvolverem de forma muito desigual: aqui se continuam estudos que teriam sido os mesmos em 1910; ali, rejeita-se at o nome de lingstica como desvalorizado; acol, dedicam-se volumes inteiros simples noo de fonema (PLGI, p. 4, grifo do autor). O autor atribui essa situao s profundas transformaes que vinham sofrendo o mtodo e o esprito da lingustica e aos conflitos que a dividiam, dizendo que,

    [q]uando abrimos os olhos para a importncia do risco e para as consequncias que os atuais debates podem ter tambm para outras disciplinas, somos tentados a pensar que as discusses sobre as questes de mtodo em lingstica poderiam ser apenas o preldio de uma reviso que englobaria, finalmente, todas as cincias do homem. (PLGI, p. 4)57.

    Discorrendo sobre um tempo em que a lingustica era alicerada no ponto de vista histrico e evolutivo, Benveniste faz a primeira meno a Saussure, trazendo o destaque de suas formulaes frente ao carter histrico da lingustica, salientando que a novidade saussuriana consistiu em abandonar a dimenso histrica da lngua e considerar que ela sincronia e estrutura [...]. O tempo no fator da evoluo, mas to-somente o seu quadro (PLGI, p. 5). Alm disso, Benveniste esclarece que Saussure est, juntamente com Bloomfield, na origem da tendncia de tornar cientfica a lingustica. Segundo Benveniste, as vertentes saussuriana e bloomfieldiana (na Europa e na Amrica, respectivamente), apesar de muito diferentes, despertam em seus seguidores as mesmas preocupaes:

    1 Qual a tarefa do lingista, a que ponto ele quer chegar e o que descrever sob o nome de lngua? o prprio objeto da lingstica o que posto em pauta. 2 Como se descrever esse objeto? [...] Isso mostra a importncia que assume a tcnica lingstica. 3 [...] [A] linguagem tem como funo dizer alguma coisa. O que exatamente essa coisa em

    56 BENVENISTE, mile. Tendncias recentes em lingstica geral. In: Problemas de Lingstica Geral I. Campinas: Pontes, 2005, p. 3-18.

    57 Nesse momento, importante salientar que Benveniste anuncia seu ponto de vista, permitindo-nos concluir que, para ele, a lingustica uma disciplina de cunho antropolgico, o que corrobora nossa hiptese de que a perspectiva indicialista de sua teoria no se sustenta quando os textos de PLGI e II so considerados como um todo.

  • 37

    vista da qual se articula a lngua e como possvel delimit-la em relao prpria linguagem? Est proposto o problema da significao. [...] [O] lingista quer desprender-se dos apoios ou das amarras que encontrava em quadros pr-fabricados ou em disciplinas vizinhas. Afasta toda viso a priori da lngua para construir suas noes diretamente sobre o objeto. (PLGI, p. 8, grifos do autor).

    A partir deste novo paradigma dos estudos lingusticos, o termo estrutura se torna essencial. Porm, devido a duas correntes distintas de pensamento terem dado origem ao termo, Benveniste apresenta uma clara distino entres duas acepes do termo estrutura. Segundo o autor,

    entende-se por estrutura, particularmente na Europa, o arranjo de um todo em partes e a solidariedade demonstrada entre as partes do todo, que se condicionam mutuamente; para a maioria dos linguistas americanos, ser a distribuio dos elementos, tal como se verifica, e a sua capacidade de associao ou de substituio. (PLGI, p. 9).

    A partir dessa distino entre estruturalismo europeu e norte americano, o autor menciona uma srie de estudos lingusticos recentes poca, citando Kurylowicz, Vendryes, Harris, Guillaume, Hjelmslev etc., e conclui o texto dizendo que, por trs das diversas discusses no campo da lingustica, h sempre uma opo preliminar que determina a posio do objeto e a natureza do mtodo (PLGI, p. 18) e que, provavelmente, as diversas teorias coexistiro, at o momento em que a lingustica imponha seu status de cincia, no cincia dos fatos empricos mas cincia das relaes e das dedues, reencontrando a unidade do plano dentro da infinita diversidade dos fenmenos lingusticos. (PLGI, p. 18).

    b) Vista dolhos sobre o desenvolvimento da lingstica No segundo texto da lista sugerida por Dessons (2006), Vista dolhos sobre o

    desenvolvimento da lingstica (1963)58, Benveniste lembra que

    at os primeiros decnios do nosso sculo59, a lingstica consistia essencialmente numa gentica das lnguas. Fixava-se, para tentar estudar a evoluo das formas lingsticas. [...] Pouco a pouco, atravs de muitos debates tericos e sob a inspirao do Cours de linguistique gnrale de Ferdinand de Saussure (1916), determina-se uma nova noo de lngua. Os lingistas tomam conscincia da tarefa que lhes cabe: estudar e descrever por meio de uma tcnica adequada a realidade lingstica atual, no misturar nenhum pressuposto terico ou histrico na descrio, que dever ser

    58 BENVENISTE, mile. Vista dolhos sobre o desenvolvimento da lingustica. In: Problemas de Lingstica Geral I. Campinas: Pontes, 2005, p. 19 33

    59 Sculo XX.

  • 38

    sincrnica, e analisar a lngua nos seus elementos formais prprios. (PLGI, p. 21, grifos do autor).

    Entrando em sua terceira fase60, a lingustica tem, agora, por objeto, a realidade intrnseca da lngua, e visa se constituir como cincia, reconhecendo um princpio que se tornaria o princpio fundamental da lingstica moderna: a lngua forma um sistema (PLGI, p. 22, grifo do autor). Nesse artigo, Benveniste traz, novamente, o termo estrutura como o termo da lingstica (PLGI, p. 22) e explica que a estrutura do sistema lingustico se revela da seguinte forma: uma lngua jamais comporta seno um nmero reduzido de elementos base, mas esses elementos, em si mesmos pouco numerosos, prestam-se a grande nmero de combinaes. No se consegue atingi-los seno no seio dessas combinaes (PLGI, p. 22). O autor explica que essas combinaes so as relaes e as oposies que cada unidade do sistema mantm com as outras unidades. o signo como entidade relativa e opositiva, como dizia Saussure. No julgamos exagerado trazer as palavras de Benveniste para esclarecer, novamente, que [i]sso o que faz com que a lngua seja um sistema em que nada signifique em si e por vocao natural, mas em tudo signifique em funo do conjunto; a estrutura confere s partes a sua significao ou a sua funo. (PLGI, p. 24, grifo do autor).

    Daquilo que foi exposto at aqui, pode-se concluir que so infundadas as acusaes que costumam cair sobre Saussure de que ele teria analisado a lngua como uma estrutura fixa. Na verdade, confunde-se o que Saussure fez com o que formula o estruturalismo americano. Assim, Saussure classificado como estruturalista, sem que ele jamais tenha utilizado o termo estrutura. Se passou-se a utilizar essa palavra para designar o sistema saussuriano, isso em nada justifica que Saussure seja chamado de estruturalista (e at acusado por isso). E se, ainda assim, quiser-se rotul-lo dessa forma, h que se entender que ele instaura um estruturalismo em tudo diferente do que veio a ser o estruturalismo americano. Enquanto este ltimo tenta definir cada elemento da lngua por seus traos, por aquilo que ele , pela sua significao intrnseca, o pensamento de Saussure exatamente contrrio, cada elemento vale pela sua diferena com o outro, ou seja, ele no tem nada de seu, mas, sim, depende de cada outro elemento diferente de si para ser parte do sistema61.

    60De acordo com Benveniste (PLGI), a primeira fase fora a filosofia da linguagem e a segunda, a evoluo das formas.

    61 Traremos esse debate novamente mais adiante, na discusso sobre o texto Estrutura em lingstica.

  • 39

    c) Saussure aps meio sculo O terceiro texto que trazemos, Saussure aps meio sculo (1963)62, traduz muito da

    admirao de Benveniste por Saussure. Desde o incio, o autor demonstra seu respeito pelo mestre, ao dizer que

    [n]o h um s lingista hoje que no lhe deva algo. No h uma s teoria geral que no mencione seu nome. Algum mistrio envolve a sua vida humana, que cedo se retirou para o silncio. da obra que trataremos. A uma tal obra apenas convm o elogio que a explica na sua gnese e faz compreender o seu brilho. (PLGI, p. 34).

    Referindo-se a Saussure como o homem dos fundamentos, Benveniste diz que ele vai por instinto aos caracteres primordiais, que governam a diversidade dos dados empricos. Naquilo que pertence lngua, pressente certas propriedades que no se encontram em nenhum outro lugar a no ser a. (PLGI, p. 35).

    No seguimento do texto, Benveniste relembra, resumidamente, a trajetria de Saussure, desde o Mmoire sur le systme primitif des voyelles dans les langues indo-europennes (1879), publicado pelo estreante genial quando tinha apenas vinte e um anos, passando pela sua chegada na cole de Hautes tudes e na Socit de Linguistique, que marcaram o incio de uma promissora carreira acadmica, at chegar na diminuio da sua produo escrita e na sua volta a Genebra, onde cala seus escritos quase completamente, embora nunca tenha parado de trabalhar. Nas palavras de Benveniste,

    [e]sse silncio esconde um drama que deve ter sido doloroso, que se agravou com os anos, que inclusive jamais encontrou soluo. [...] Era sobretudo um drama do pensamento. Saussure afastava-se da sua poca na medida em que tornava-se pouco a pouco senhor da sua prpria verdade, pois essa verdade o fazia rejeitar tudo o que ento se ensinava a respeito da linguagem. [...] Quanto mais sonda a natureza da linguagem, menos pode satisfazer-se com as noes recebidas. (PLGI, p. 39-41).

    Sentindo-se fora de seu tempo, Saussure estava preso a si mesmo. Por outro lado, seu silncio era devido ao risco de suas reflexes: o drama de Saussure transformaria a lingstica. As dificuldades contra as quais se choca a sua reflexo for-lo-o a forjar as novas dimenses que ordenaro os fatos de linguagem (PLGI, p. 41). De acordo com Benveniste, em carta enviada a Meillet em 1894, Saussure expressa sua inteno de escrever um livro que reuniria suas inquietaes. Esse livro, porm, nunca foi escrito por suas mos,

    62 BENVENISTE, mile. Saussure aps meio sculo. In: Problemas de Lingstica Geral I. Campinas: Pontes, 2005, p. 34-49.

  • 40

    embora tenha sido deixado como herana em notas, observaes, rascunhos e nos tpicos abordados no curso de lingustica geral que ministrara em Genebra. O livro que Saussure tanto hesitou em escrever, mas que deixou que se libertasse atravs de suas divagaes e de seu posicionamento em suas aulas, veio dizer ao linguista, finalmente, o que ele faz. Segundo Benveniste, Saussure

    [q]ueria fazer compreender o erro em que se envolveu a lingstica desde que estuda a linguagem como uma coisa, como um organismo vivo ou como uma matria que se analisa por uma tcnica instrumental, ou ainda como uma criao livre e incessante da imaginao humana. (PLGI, p. 43).

    assim que, deixando de lado tudo o que j ouvira sobre a lingustica, Saussure instaura um novo paradigma nos estudos da linguagem, com um novo princpio. De acordo com Benveniste, [e]sse princpio que a linguagem, como quer que se estude, sempre um objeto duplo formado de duas partes cada uma das quais no tem valor a no ser pela outra (PLGI, p. 43, grifos do autor). a que surgem as famosas dualidades de Saussure, que, por vezes, so vistas como apenas uma meia dzia de dicotomias por quem no considera a profundidade de seus conceitos. Benveniste cita algumas dualidades da linguagem, cuja relao sempre opositiva, como a dualidade da lngua e da fala, a do indivduo e da sociedade, a do sincrnico e do diacrnico etc., e alerta que

    no h um nico aspecto sobre a linguagem que seja um dado fora dos outros e que se possa pr acima dos outros como anterior e primordial. [...] Quanto mais nos adiantarmos, mais sentiremos esse contraste entre a unicidade como categoria da nossa percepo dos objetos e a dualidade cujo modelo a linguagem impe nossa reflexo. Quanto mais penetrarmos no mecanismo da significao, melhor veremos que as coisas no significam em razo do seu serem-isso substancial, mas em virtude de traos formais que as distinguem das outras coisas