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0 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO - MESTRADO Paulo Fernando Duarte Ramos A LEGALIZAÇÃO DA PROPRIEDADE PRECÁRIA NA CIDADE DE CAXIAS DO SUL: A SIMPLIFICAÇÃO DOS PROCEDIMENTOS COM FUNDAMENTO NA SOLIDARIEDADE, SUBSIDIARIEDADE E BEM COMUM Santa Cruz do Sul do Sul, março de 2009

Dissertação março 2009 - dominiopublico.gov.br · Ao Prof. Dr. Ricardo, pelo exemplo de ... iluminando o trabalho e as discussões em sala de aula e nos grupos de estudo. Ao meu

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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO - MESTRADO

Paulo Fernando Duarte Ramos

A LEGALIZAÇÃO DA PROPRIEDADE PRECÁRIA NA CIDADE DE CAXIAS DO SUL: A SIMPLIFICAÇÃO DOS PROCEDIMENTOS COM FUNDAMEN TO NA

SOLIDARIEDADE, SUBSIDIARIEDADE E BEM COMUM

Santa Cruz do Sul do Sul, março de 2009

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Paulo Fernando Duarte Ramos

A LEGALIZAÇÃO DA PROPRIEDADE PRECÁRIA NA CIDADE DE CAXIAS DO SUL: A SIMPLIFICAÇÃO DOS PROCEDIMENTOS COM FUNDAMEN TO NA

SOLIDARIEDADE, SUBSIDIARIEDADE E BEM COMUM Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito - Mestrado -Universidade de Santa Cruz do Sul, para obtenção do título de Mestre em Direito. Orientador: Prof. Dr. João Pedro Schmidt

Santa Cruz do Sul, março de 2009

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Paulo Fernando Duarte Ramos

A LEGALIZAÇÃO DA PROPRIEDADE PRECÁRIA NA CIDADE DE CAXIAS DO SUL: A SIMPLIFICAÇÃO DOS PROCEDIMENTOS COM FUNDAMEN TO NA

SOLIDARIEDADE, SUBSIDIARIEDADE E BEM COMUM

Esta dissertação foi submetida ao Programa de Pós-Graduação em Direito - Mestrado, Área de Concentração em Direitos Sociais e Políticas Públicas, Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito.

Prof. Dr. João Pedro Schmidt

Prof. Dr. João Telmo Vieira

Prof. Dr. Adir Ubaldo Rech

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Fabíola, minha amada companheira

Sem ela, nada teria realizado.

Meu pai, in memoriam

Motivo de inspiração e orgulho.

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AGRADECIMENTOS

Esta pessoa falou-me “Te inscreve!”, depois vibrou com a minha seleção e

continuou me incentivando, lendo e relendo meus trabalhos, corrigindo, sugerindo,

aturando a minha ausência e as viagens a Santa Cruz do Sul. Fabíola é a causa de

tudo, por isso agradeço-a de todo meu ser, porque foi o impulso para meu ingresso

no universo da pesquisa em direito e meu crescimento como pessoa e saber,

fazendo despertar em mim o gosto pela escrita das ideias e descobertas, a

oportunidade de realizar um sonho, fantasia e desejo.

Agradeço aos dedicados professores que nos mostraram os pensamentos de

grandes autores e nos fizeram pensar melhor, que nos exigiram aplicação, disciplina

e a mesma dedicação ao estudo que demonstraram em relação à cátedra, tornando-

nos melhores pessoas do que éramos ao ingressar no mestrado.

À Profª. Dra. Sandra, cuja sensibilidade e amor transbordam e nos enchem de

energia e crença no possível e no impossível, cuja preocupação com seus alunos os

torna mais que filhos e os faz retribuir e retirar de si mesmos coisas que sequer

imaginam ter, cujo conhecimento profundo compartilha com tal simplicidade que nos

permite alcançar o entendimento da complexa teoria da natureza humana.

Ao Prof. Dr. Luiz Ernani, pela seriedade e simultânea irreverência que carrega

em si próprio, que demonstra o equilíbrio que devem ter aqueles que amam a

liberdade.

À Profª. Dra. Fabiana, pela amizade e oportunidade de crescimento

profissional ao me aceitar como docente voluntário e permitir meus primeiros passos

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no mister que pretendo seguir, oportunidade ímpar de experimentar o que sente um

professor em relação ao aluno e me fazer confirmar minha vontade e vocação para

tal tarefa abençoada.

Ao Prof. Dr. Ricardo, pelo exemplo de dedicação, estudo e perseverança que

transmitiu e demonstrou, como elementos fundamentais para alcançarmos nossos

propósitos, especialmente por trazer à luz as ideias de direito social, de

solidariedade e de subsidiariedade, que se tornaram fundamentação deste trabalho.

Agradeço também à Profª. Drª. Marli, por apoiar e acreditar naquilo que eram

idéias de projeto e, como professora, me fazer encontrar autores maravilhosos,

iluminando o trabalho e as discussões em sala de aula e nos grupos de estudo.

Ao meu orientador, Prof. Dr. João Pedro, que acolheu e aceitou orientar essa

pesquisa e, principalmente, pelos questionamentos, esclarecimentos, palavras de

estímulo e orientação, cujo apoio prestado com dedicação e atenção, transmitiu a

tranqüilidade que lhe é própria e me permitiu alcançar meus propósitos.

Agradeço também a todas as pessoas do corpo docente, diretivo, funcionários

e principalmente colegas, que na vida acadêmica e de alguma maneira dedicaram-

me suas bondades e atenção.

Por fim, agradeço aos entrevistados que me concederam seus preciosos

minutos e conhecimentos sobre a matéria, sem os quais essa dissertação restaria

vazia da experiência, da realidade dos fatos e dos procedimentos que demonstram

todo o conteúdo e objetivo desta pesquisa.

A TODOS, MUITO OBRIGADO!

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“Não é que uma pessoa se põe aí a percorrer o mundo à procura de causas para defender. É quando as situações se apresentam que a solidariedade desperta. Enfim, faz o que se pode com a consciência de que não se pode muito e que, mesmo assim, há que se continuar a fazer”.

SARAMAGO, José

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RESUMO

O estudo aborda a implementação e ações de regularização de loteamentos irregulares na cidade de Caxias do Sul, realizadas pelo executivo municipal em consonância com o poder judiciário e extrajudicial local, entre junho de 1988 e agosto de 1994. São analisados, mais especificamente, os procedimentos e instrumentos utilizados para a legalização da propriedade precária consolidada, em nome dos moradores do loteamento “Jardim das Hortências”. Procura-se responder como superar os obstáculos jurídicos e registrais, que são elementos de dificuldade nas regularizações fundiárias e preocupação constante dos administradores públicos municipais, na busca por melhores resultados. Os objetivos propostos são: identificar quais são estes entraves, examinar os procedimentos adotados no caso específico, encontrar fundamentos jurídicos para as regularizações no âmbito dos princípios do direito e apontar inovações que indiquem o caminho da simplificação e facilitação das regularizações. Tendo como orientação teórica a concepção dialética, o trabalho tem por base a análise da doutrina que envolve o direito registral imobiliário e dos princípios de direito fundamental. Além disso, analisa-se a legislação municipal, decretos, atas, portarias, provimentos judiciais e registros imobiliários, complementado com a percepção dos atores sociais envolvidos, representantes dos segmentos público municipal (executivo, legislativo e extrajudicial) e particular (iniciativa privada e comunidade organizada), que foram entrevistados. O estudo constata que os instrumentos e procedimentos são parcialmente inadequados ou ineficientes para a solução do problema, que se perpetua. Dessa maneira, aponta para a necessidade de inovações jurídicas que facilitem a transposição do fato moral em fato legal, como também outras providências para sustar o surgimento das irregularidades. Além disso, a análise empreendida, para contrapor ao caminho da concentração, da competição e da exclusão trilhado pela sociedade, aponta para a via da desconcentração e da cooperação, ou seja, indica que a simplificação e facilitação da legalização da propriedade precária são possíveis, na ação local em que os destinatários sejam agentes da própria transformação, sob os princípios sociais da solidariedade, subsidiariedade e bem comum. Palavras-chave : regularização fundiária, obstáculos registrais, propriedade precária consolidada, solidariedade, subsidiariedade, bem comum.

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RESUMEN

El estudio aborda la implementación y acciones de regularización de urbanizaciones irregulares en la ciudad de Caxias do Sul, efectuadas por el ejecutivo municipal en consonancia con el poder judicial y extrajudicial local, entre junio de 1988 y agosto de 1994. Son analizadas más específicamente las acciones desarrolladas para la legalización de la propriedad precaria consolidada, en nombre de los moradores de la urbanización “Jardim das Hortências”. Busca-se responder como superar los obstáculos legales en el ámbito del registro de inmuebles, que son elementos de dificultad en las regularizaciones fundiarias y preocupación constante de los administradores públicos municipales, en busca de mejores resultados. Los objetivos son: identificar cuales son esas barreras, examinar procedimientos adoptados en lo caso específico, encontrar fundamentos jurídicos para las regularizaciones en el espacio de los principios del derecho y apuntar innovaciones que señalen el camino de la simplificación y facilitación de las regularizaciones. Teniendo como orientación teórica la concepción dialéctica, la obra tiene base en la doctrina del derecho del registro de inmuebles y de los principios del derecho fundamental. Además, analiza-se la legislación municipal, decretos, actas, portarías, normas judiciales y registros de inmuebles, añadido por la percepción de los actores sociales envueltos, representantes de los segmentos público municipal (ejecutivo, legislativo y extrajudicial), y particular (iniciativa privada, comunidad organizada), captadas en entrevistas. El estudio constata que los instrumentos y procedimientos son parcialmente inadecuados o ineficientes para solución del problema, que se perpetúa. Así, apunta-se el necesidad de innovaciones jurídicas que faciliten el transposición del hecho moral en echo legal, como también otras providencias para sostener el surgimiento de irregularidades. Además, el análisis formulado, para revolver al camino de la concentración, de la competición y de la exclusión trillado por la sociedad, apunta para la vía de la desconcentración y de la cooperación, o sea, señala que la simplificación y facilitación de legalización de la propiedad precaria son posibles, en acción local en la cual los destinatarios sean agentes de su propia transformación, bajo los principios sociales de solidariedad, subsidiariedad y bien colectivo. Palabras-clave : regularización urbana, obstáculos al registro, propiedad precaria consolidada, solidariedad, subsidiariedad, bien colectivo.

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO ....................................................................................................

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1 POLÍTICAS PÚBLICAS DE REGULARIZAÇÃO E DE REGULAÇÃO FUNDIÁRIA: ASPECTOS JURÍDICOS ............................................................... 1.1 Observações conceituais sobre políticas públicas ........................................ 1.2 A relação entre as políticas fundiárias e os assentamentos informais .......... 1.2.1 A ineficácia da criminalização para conter a implantação de loteamentos ilegais .................................................................................................................. 1.3 Políticas de regulação e políticas de regularização: uma perspectiva local.. 1.3.1 Solidariedade, subsidiariedade e bem comum: fundamentos jurídicos da solução local ........................................................................................................ 1.4 A regularização fundiária e os obstáculos registrais ..................................... 1.4.1 O serviço registral e o interesse do setor econômico financeiro ................ 1.4.2 Os princípios registrais e a reserva de legalidade ..................................... 1.4.3 Os princípios registrais à luz dos direitos fundamentais ............................ 1.5 O direito como obstáculo para o acesso à moradia: entraves jurídicos e burocráticos para as regularizações fundiárias e a ação pró-ativa na esfera judicial ................................................................................................................. 1.6 A atividade jurisdicional e a transmutação do fato social em fato jurídico..... 1.6.1 O Projeto More Legal como fator de desburocratização e de garantia da realização constitucional da propriedade consolidada ........................................ 1.6.2 Outras inovações facilitadoras da regularização fundiária no âmbito jurisdicional-administrativo ..................................................................................

20 20 23 24 26 29 31 38 40 42 48 41 51 58 63

2 ASPECTOS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE REGULARIZAÇÃO DA PROPRIEDADE PRECÁRIA EM CAXIAS DO SUL ............................................ 2.1 As leis sempre atrás dos acontecimentos sociais ......................................... 2.2 A composição do problema em Caxias do Sul e a legislação pertinente ...... 2.2.1 A política desenvolvimentista como incremento da especulação urbana e das irregularidades .............................................................................................. 2.2.2 Os primeiros passos no rumo da regularização administrativa e no caminho da simplificação dos procedimentos ..................................................... 2.3 Os instrumentos jurídicos e os procedimentos de regularização do loteamento “Jardim das Hortências” .................................................................. 2.4 A regularização jurídica do “Jardim das Hortências”: a transmutação do fato moral em fato legal ....................................................................................... 2.5 Aspectos fundamentais e ações no âmbito da sociedade local ...................

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3 A PERCEPÇÃO DOS ATORES SOCIAIS ACERCA DO PROCESSO DE REGULARIZAÇÃO .............................................................................................. 3.1 Aspectos gerais sobre o desenvolvimento da pesquisa empírica ................. 3.2 A regularização na ótica de quem atua no poder público e público não-estatal................................................................................................................... 3.2.1 A regularização na ótica de quem atua no poder executivo municipal ...... 3.2.2 A regularização na percepção de quem atua no registro imobiliário ......... 3.2.3 A regularização na percepção de quem atua no poder legislativo municipal ............................................................................................................. 3.3 A regularização na visão da comunidade local e da iniciativa privada ......... 3.3.1 O fortalecimento solidário na comunidade local como fonte da realização da moradia .......................................................................................................... 3.3.2 A percepção do agente da iniciativa privada .............................................

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CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ REFERÊNCIAS ...................................................................................................

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ANEXOS ............................................................................................................. ANEXO A – Perfil dos entrevistados ................................................................... ANEXO B – Cronologia das ações no loteamento Jardim das Hortências ......... ANEXO C – Matrículas de registro do loteamento e o “Ex-Officio” ..................... ANEXO D – Mapas do Plano Diretor Municipal de Caxias do Sul, da área urbana e do loteamento “Jardim das Hortências” ...............................................

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INTRODUÇÃO

Esta dissertação tem origem na experiência vivida pelo autor no exercício de

atividade ligada ao serviço notarial em Caxias do Sul, nos anos de 1994 até 2006. O

contato direto com o tema em pauta permitiu perceber sua relevância, assim como a

necessidade de aprofundar a análise da regularização da propriedade precária,

presente nos assentamentos urbanos informais, fenômeno social que tem sido

destaque há décadas no meio urbano. Especificamente, estudar os fatos e ações

que resultaram na regularização do loteamento “Jardim das Hortências”1 fez com

que fosse elaborado o projeto e, posteriormente, essa pesquisa, para responder

algumas indagações que colocam em confronto determinados paradigmas do direito

ligados às políticas públicas de regularização fundiária, considerada uma ação direta

na promoção do direito fundamental à moradia e de propriedade, substratos

constitucionais e elementos de redução das desigualdades e de inclusão social.

O estudo aborda as relações entre registro imobiliário, prefeitura municipal e a

comunidade diretamente envolvida na questão, permeado pela análise da legislação

aplicada e as ações empreendidas para o êxito da regularização pretendida. Parte

da premissa que a moradia legal é direito fundamental de todos e, simultaneamente,

é dever do Estado garantir o acesso a ela e a sua manutenção. Essa obrigação,

entretanto, não cabe tão-somente ao poder público, pois se sabe que a vida em

sociedade exige a participação de todos na busca do bem comum. Além disso,

sabe-se que as ações do Município prescindem de uma maior atuação da sociedade

para atingir a solução de seus próprios problemas, alcançando o ideal democrático

em que “os melhores intérpretes do interesse coletivo são os próprios

interessados”2, ou seja, o local onde os destinatários sejam os agentes da própria

transformação.

Desse modo, esse tema tem sido a preocupação de estudiosos do direito e da

filosofia, bem como objeto de seminários e conferências, como em destaque, a

Agenda Habitat II, documento aprovado durante a Segunda Conferência das Nações

1 “Jardim das Hortências” (sic). Apesar do erro gramatical esse é o nome que foi dado ao loteamento, conforme Decreto Municipal nº 7.481 de 25.08.1992 que aprovou o loteamento e que consta do registro imobiliário na matrícula correspondente. 2 BOBBIO, Norberto. Teorias das formas de governo. Brasília: Edunb, 1976, p. 79.

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Unidas para os Assentamentos Humanos - Habitat II, Istambul, Turquia, 1996, de

que nosso país é signatário3. Esse documento foi avaliado e ratificado durante uma

Sessão Especial da Assembléia Geral da ONU - Istambul + 5, Nova York, 2001,

ocasião em que foi aprovada a Declaração do Milênio para os Assentamentos

Humanos4.

Neste diploma, voltado para a constituição de assentamentos humanos

eqüitativos, pode-se destacar as seguintes metas e princípios: diretrizes que

envolvem a garantia legal da posse da terra e propriedades (art. 27); a qualidade de

vida e eliminação das barreiras de acesso à moradia (art. 30); gerar ambiente de

cidadania e identidade, cooperação e diálogo para o bem comum, e um espírito de

voluntarismo e engajamento cívico, em que todas as pessoas são estimuladas e têm

oportunidades iguais de participar dos processos decisivos e de desenvolvimento

(art. 32); estimular a solidariedade, a cooperação e a assistência aos grupos

desfavorecidos em resposta aos desafios do desenvolvimento dos assentamentos

humanos, convocando os Governos a promover políticas e instrumentos sólidos e

eficazes para tal (art. 34); proteger os interesses das gerações atuais e futuras nos

assentamentos humanos, para tanto devem ser envidados esforços e recursos para

que se alcancem as metas de moradias adequadas para todos e o desenvolvimento

de assentamentos humanos sustentáveis em um mundo em urbanização (art. 35).

Assim sendo, as disposições da Agenda Habitat II justificam plenamente a

pesquisa aqui desenvolvida, pois a regularização da propriedade precária tem

ligação direta com essas diretrizes, uma vez que se está falando da moradia própria

constituída informalmente em assentamentos urbanos, também informais.

3 Disponível em: <http://www.ibam.org.br>. Acessado em: 28.10.2008. 4 “A Declaração do Milênio reconhece a importante contribuição de autoridades locais em todo o mundo na implementação da Agenda Habitat por meio de cooperação e parcerias entre Governos - em todos os níveis - e sociedade civil, visando assegurar uma melhor condição de vida nos assentamentos humanos e uma boa governança urbana”. Disponível em: <http://www.ibam.org.br>. Acessado em: 28.10.2008.

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A moradia desempenha diversas funções: social, ambiental e econômica. É um direito básico de cidadania, reconhecido pela Constituição Federal. Em sua função social abriga a família, sendo uma das variáveis do seu processo de desenvolvimento. Portanto, pressupõe-se que a moradia deva atender aos princípios básicos de habitabilidade, segurança e salubridade. Sua inserção no meio ambiente urbano adequado é fundamental para que estejam asseguradas as condições básicas de vida, como infra-estrutura, saúde, educação, transportes, trabalho, lazer etc. A função econômica da moradia é inquestionável: sua produção oferece novas oportunidades de geração de emprego e renda, mobiliza vários setores da economia local e influencia os mercados imobiliários e de bens e serviços. As condições de vida, moradia e trabalho da população estão estreitamente vinculadas ao processo de desenvolvimento sustentável.5

No contexto das políticas públicas de inclusão social, assume relevância a

realização da moradia própria, como direito social condensado6 e fundamental

previsto na Constituição Federal. Este assunto remete à urbe como local onde se

concretiza este o sonho ou fantasia7 da propriedade, a qual é definida pelo filósofo

político David Hume como “a relação entre uma pessoa e um objeto de modo a

permitir a esta pessoa e a proibir a qualquer outra o livre uso e a posse do objeto,

sem violação das leis da justiça e da equidade moral.”8 Prossegue o filósofo

referindo que, ao se fazer menção da propriedade, o nosso pensamento transporta-

se naturalmente para o proprietário, prova de perfeita relação de ideias, e sempre

que um prazer ou uma dor nasce de um objeto ligado à pessoa pela propriedade,

podemos estar certos de que o orgulho ou a humildade deve originar-se desta

conjunção de relações.

5 Agenda Habitat para os Municípios. Publicação eletrônica do Instituto Brasileiro de Administração Municipal - IBAM. Disponível em: <http://www.ibam.org.br>. Acessado em: 28.10.2008. 6 Para Gurvitch o direito social condensado trata “[...] da incorporação pela ordem jurídica estatal das regras produzidas pelos grupos sociais, ou seja, direito social que seria puro e independente se se mantivesse alheio ao ordenamento do Estado é transmutado em ordem jurídica deste, mantendo, contudo, sua origem”. In: BOLZAN DE MORAIS, José Luis. A ideia de direito social: o pluralismo jurídico de Georges Gurvitch. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p.64. 7 Escreve João Paulo Monteiro, no prefácio da obra: “[...] é a partir dela (fantasia) que a associação (de idéias) por semelhança gera a simpatia (empatia), sem a qual seria impossível a obediência espontânea às regras morais. Sem as regras morais, por sua vez, as sociedades em que se organiza a vida dos homens seriam dilaceradas pelo conflito, não numa “guerra de todos contra todos” hobbesiana, mas em lutas intestinais que de qualquer modo a destruiriam. Ora, uma das mais centrais teses de Hume, diz-nos que sem a sociedade a espécie humana seria incapaz de sobreviver, por várias razões, como a sua relativa fraqueza física ou a longa e indefesa infância por onde começa a vida de cada ser humano. O círculo argumentativo fecha-se: a fantasia acaba por tornar-se também um princípio da natureza humana indispensável à sobrevivência individual, através da mediação da simpatia (empatia), da moral e da preservação da sociedade”. In: HUME, David. Tratado da natureza humana. Lisboa: Fundação Calouste Gulbelkian, 2001, p. 11. (grifei). 8 HUME, op. cit., p. 365.

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Pode-se equiparar os conceitos da felicidade e bem estar em Aristóteles9 ao

conceito de prazer em Hume, para quem, pela mesma razão que a riqueza causa o

prazer e orgulho e a pobreza desperta mal estar e humildade, o poder produz as

primeiras emoções e a escravidão as segundas, e completa dizendo que “o poder

torna-nos capazes de contentar todos nossos desejos e a escravidão expõe-nos a

carências e mortificações”10. Assim sendo, pode-se afirmar que a incapacidade ou a

não realização dos nossos desejos de felicidade e bem estar, ou seja, a dor, nos

aproxima da escravidão e nos afasta da liberdade. Daí dizer-se que a realização da

propriedade, no sentido da moradia própria, traz significado de realização da pessoa

humana e, por conseguinte, de liberdade, da sua dignidade e da plenitude da

cidadania com inclusão social. Ao revés, a não realização afasta a pessoa e a relega

ao plano da exclusão, humilha e aprisiona, impede a felicidade e o bem estar, ideais

aristotélicos e finalidade do homem.

As políticas públicas de regularização fundiária, no âmbito administrativo da

municipalidade, estão voltadas primordialmente para a adequação do assentamento

às normas urbanísticas e de parcelamento e uso do solo. Nesse contexto, são

observadas as condições de estrutura e constituição do parcelamento,

especialmente nos quesitos das vias urbanas, dimensionamento dos lotes e da

existência de serviços básicos como água e luz. A importância dessa regularização

dá-se em razão de ser pré-requisito para o ingresso no álbum imobiliário, onde se

constituirá a propriedade.

De fato, para o sistema jurídico brasileiro a realização da propriedade dá-se

com o registro imobiliário. Daí por que não se dissociam esses fatores, na medida

em que o título de propriedade, conferido pelo registro do imóvel, é que transforma a

simples posse na propriedade. Nesse viés, o título de propriedade obtido com a

regularização é importante instrumento de inclusão social e faz aumentar e fortalecer

o capital social dos excluídos, haja vista que cria valores afetivos a respeito do lugar

de moradia, como refere João Pedro Schmidt.11 Por esse motivo, as ações no

9 ARISTÓTELES. Ética a Nicomacos. Livro I. São Paulo: Abril, 2000, Coleção Os Pensadores, p. 13. 10 HUME, op. cit., p. 371. 11 SCHMIDT, João Pedro. Exclusão, inclusão e capital social: o capital social nas ações de inclusão. In: REIS, J.R. dos; LEAL, R. (Org.). Direitos sociais & políticas públicas: desafios contemporâneos 6. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2006, p. 1776.

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âmbito do registro imobiliário, ou a chamada regularização jurídica do assentamento

informal e da propriedade precária, revestem-se da maior importância para o êxito

da inclusão social pretendida e merecem atenção e análise, pois “o parcelamento do

solo urbano só será considerado regular se aprovado pelo Poder Público e ele for

efetivamente registrado no Cartório de Registro de Imóveis; se tal não ocorrer, ele é

irregular.”12 Assim sendo, as políticas públicas que se proponham ao objetivo da

regularização fundiária deverão contar com mecanismos e ações específicas para

superar as barreiras existentes no espaço do registro de imóveis.

Os estudos apontam para as dificuldades na implementação e eficácia das

regularizações fundiárias. “A organização interna de nossas cidades, grandes,

pequenas e médias, revela um problema estrutural, cuja análise sistêmica permite

verificar como todos os fatores mutuamente se causam, perpetuando a

problemática.”13. Em determinadas metrópoles a falta de regularização atinge índice

de 62% dos imóveis, a nível nacional para um montante de 12 milhões de imóveis

urbanos existem 5 milhões na irregularidade. Isso revela uma cidade informal média

de aproximadamente 40%, proporção equivalente à da chamada economia informal

do país14. Assim, nota-se a inter-relação direta da informalidade social com a

econômica, pode-se afirmar que uma parcela significativa das pessoas que

sobrevivem à custa da economia informal reside em propriedade igualmente

informal.

Nesse sentido, obstáculos técnicos, jurídicos e registrários têm sido

preocupação permanente dos administradores públicos municipais e produzem

resultados medíocres nas ações de regularização15. Na cidade de Porto Alegre, no

espaço de seis anos, o programa que previa regularizar 20.500 lotes alcançou

apenas 605, em Caxias do Sul os resultados foram pouco diferentes, pois, dos 4.981

lotes irregulares identificados em 1987 cerca de 2.700 foram regularizados até o ano

12 LEAL, Rogério Gesta. O parcelamento clandestino do solo e a responsabilidade municipal no Brasil: estudo de modelo. Revista do Direito nº 2 (Dez. 1994). Santa Cruz do Sul: UNISC, 1994. 13 SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. São Paulo: EUSP, 2005, p. 107. 14 Patrícia Ferraz, diretora de assuntos legislativos, regularização fundiária e urbanismo do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil – IRIB, no 29º Encontro de registradores de imóveis, Belém/PA, 2007. Disponível em: <http://www.irib.com.br>. Acesso em: 22.10.2007. 15 ALFONSIN, Betânia de Moraes. A regularização fundiária como parte da política urbana. In: Anais do seminário de regularização fundiária. São Paulo, junho/2003. Disponível em: <http://www.irib.org.br>. Acesso em: 14.07.2007.

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de 1994. Entre os anos 1996 e 2007, em média, regularizaram-se 247 lotes por ano,

no total de 2.971, ao passo que, no mesmo período, o incremento das

irregularidades é superior e as estimativas apontam para a existência de 15.000

lotes ilegais16.

O problema que se apresenta é como transpor esses obstáculos jurídicos e

registrários que se opõem às regularizações. Para encontrar a solução é necessário

identificar os entraves referidos e encontrar fundamentos legais que possam servir

para superá-los e obter as regularizações pretendidas. Assim sendo, o objetivo

central é examinar como produzir melhores resultados na regularização fundiária,

tendo como perspectiva a simplificação dos procedimentos. Paralelamente,

perscrutar as relações entre o poder executivo municipal e os demais setores da

sociedade envolvidos na problemática, a partir da apreciação de caso concreto e de

êxito na regularização, no âmbito do município caxiense.

Nesse sentido, é importante buscar respostas que indiquem elementos que

possam favorecer a realização das ações regularizadoras. Assim sendo, por meio da

apreciação do sucesso na superação desses entraves e da percepção dos atores

sociais envolvidos nos procedimentos, pretende-se verificar como os obstáculos

podem ser superados e facilitados.

Para tanto, são analisados dogmas e paradigmas do direito imobiliário, na

forma como são colocados pela legislação e pela doutrina, e suas relações com as

políticas públicas de regularização implementadas, especificamente no âmbito do

município caxiense. Nesse último aspecto, dois pontos se sobressaem: o primeiro

diz respeito ao modo e instrumentos jurídicos utilizados pelo executivo público na

implementação das regularizações, em que se inclui a análise da política pública

adotada17; o segundo, refere-se à participação dos demais segmentos da sociedade,

na esfera judicial e não estatal, em que se inserem atores sociais diretamente 16 Conforme relatório interno do Setor de Loteamentos Irregulares, da Secretaria do Desenvolvimento Urbano, da Prefeitura Municipal de Caxias do Sul, e depoimento do responsável pelo setor, Bel. João Canton. 17 João Pedro Schmidt assinala que a literatura trabalha, em geral, com cinco fases das políticas públicas: a percepção e definição do problema, inserção na agenda política, formulação da política, implementação da política e avaliação da política. SCHMIDT, João Pedro. Para entender as políticas públicas: aspectos conceituais e metodológicos. In: Direitos sociais e políticas públicas: desafios contemporâneos. Tomo 8. Santa Cruz do Sul: Edunis, 2008, p. 2315/18.

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17

envoltos no problema, tais como o juiz corregedor, o registrador e os moradores,

proprietários precários.

Na elaboração da pesquisa partiu-se das seguintes premissas:

1. As irregularidades presentes são frutos do exercício do direito social puro

à moradia, portanto, mesmo contrárias à lei, são legítimas, pois é direito

condensado na Constituição Federal;

2. Os obstáculos jurídicos e registrários à regularização podem ser

superados com fundamento nos princípios sociais da solidariedade, da

subsidiariedade e do bem comum e, em razão desses, é possível a

simplificação dos procedimentos regularizadores;

3. A ação pró-ativa da comunidade, especialmente dos segmentos judicial e

não estatal integrados ao executivo municipal, é imprescindível para o

alcance dos objetivos das políticas públicas de regularização fundiária;

4. As políticas públicas regularizadoras devem observar e conter todas as

fases que caracterizam os principais momentos dos processos político-

administrativos, principalmente o estabelecimento de metas e a avaliação

da sua efetividade, eficácia, eficiência e legitimidade, para melhorar a

performance e dar conta das necessidades.

Tendo por parâmetro a doutrina e a legislação, bem como a relação entre as

ações implementadas e os atores sociais envolvidos, o tema foi enfrentado a partir

das seguintes hipóteses:

1. Os procedimentos adotados e instrumentos disponíveis para superar os

obstáculos não são adequados, daí ineficazes;

2. Os procedimentos e instrumentos são adequados, mas a sua utilização é

ineficiente;

3. É necessário apontar outros instrumentos e outras possibilidades de

utilização dos procedimentos que envolvam a ideia de simplificação e

facilitação, de maneira que os destinatários sejam agentes da própria

transformação.

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18

Os objetivos específicos que nortearam a pesquisa são os seguintes: a)

descrever e identificar os obstáculos jurídicos e registrais ao processo da

regularização fundiária, por meio da apreciação da legislação que regula a matéria e

da doutrina aplicada; b) examinar os procedimentos adotados no município caxiense

para as regularizações fundiárias e, especialmente, para a superação dos

obstáculos no âmbito da regularização efetivada no caso do loteamento “Jardim das

Hortências”; c) encontrar fundamentos jurídicos, tanto para a legítima constituição da

propriedade precária consolidada quanto para a sua regularização, no âmbito dos

princípios do direito; d) apontar outros procedimentos e tendências na legislação que

indiquem o caminho da simplificação e facilitação da regularização da propriedade

precária consolidada.

A pesquisa apresentada é descritiva e o estudo de caso do loteamento

“Jardim das Hortências” serve para examinar os aspectos peculiares que

envolveram a sua regularização, que demonstram as possibilidades de simplificação

nos procedimentos e a superação das barreiras jurídicas e registrais, que impedem

as regularizações em outras comunidades, em que se sobressai o aspecto de

propriedade precária, terminologia que identifica a situação fática consolidada e

juridicamente definida, mas que dependente de registro formal, ou seja, da

juridicidade. Muito embora seja um problema comum decorrente do processo da

urbanização corporativa presente em quase todos os municípios brasileiros, a

proliferação dos parcelamentos irregulares e suas regularizações encontram meio e

soluções próprias em cada localidade onde ocorrem. O tema tem sido tratado até

hoje, na maioria das situações, como uma questão que depende tão somente, ou

pelo menos preponderantemente, da atuação do poder público municipal para sua

solução, tese à qual não se deve aderir por estar claro que, na democracia pós-

moderna, vinculam-se todos os atores locais que compõem a comunidade, públicos

e privados, preferencialmente integrados e atuando sob os princípios da

solidariedade, da subsidiariedade e do bem comum.

Esta dissertação compõe-se de três capítulos. No primeiro são abordados,

inicialmente, os aspectos conceituais sobre políticas públicas, posteriormente, as

questões jurídicas e teóricas relacionadas à regularização fundiária e às normas de

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uso e parcelamento do solo urbano, bem como os princípios do direito no âmbito do

registro imobiliário e a legislação aplicada, que constituem os obstáculos a serem

superados para alcançar as regularizações jurídicas pretendidas. No segundo, é

apresentado o problema das regularizações em Caxias do Sul, os aspectos

históricos ligados à origem dos loteamentos irregulares na cidade, bem como o caso

da regularização do loteamento “Jardim das Hortências”, cujo tratamento apresenta

aspectos sui generis em que os procedimentos adotados indicam a possibilidade, na

construção local, de uma solução fundamentada em princípios sociais para a

transmutação do fato moral em fato legal. Ou seja, a superação prática de

obstáculos jurídicos e registrais. No último capítulo abordam-se as entrevistas

realizadas com atores envolvidos no processo de regularização, cujos depoimentos

permitem testar as hipóteses e responder as questões que nortearam o estudo.

Por derradeiro, nas considerações finais apresenta-se a síntese das

observações do fato real em relação aos objetivos e hipóteses levantadas. Além

disso, a título de perspectiva de futuro, em relação às políticas públicas de

regularização fundiária, são analisadas algumas inovações propostas no Projeto de

Lei de Responsabilidade Territorial Urbana que tramita no Congresso Nacional.

Desse modo pretende-se contribuir para o debate e o levantamento de questões

pertinentes a esse complexo tema que envolve a realização do direito à moradia

legal, o qual, em suma é direito social puro e fundamental, condensado na

Constituição Federal, bem como forte fator de redução das desigualdades e de

inclusão social em todos os níveis. Esse ideal, fantasia ou sonho da liberdade e do

bem estar de todos como síntese da dignidade humana e cidadania, encontra-se

com todas as letras no Contrato Social brasileiro, tanto no artigo 3º, inciso IV quanto

no artigo 5ª, surge como direito dever de todos nós, a ser alcançado e exercitado

plenamente, desejado no presente em face de serem princípios fundamentais da

República.

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1 POLÍTICAS PÚBLICAS DE REGULARIZAÇÃO E DE REGULAÇÃ O FUNDIÁRIA:

ASPECTOS JURÍDICOS

1.1 Observações conceituais sobre políticas pública s

A apreciação das políticas públicas deve partir de sua conceituação. O

conceito apresentado por João Pedro Schmidt18, configura decisões de caráter geral

que apontam rumos e linhas estratégicas de atuação governamental. Servem para

reduzir os efeitos da descontinuidade administrativa e potencializar os recursos

disponíveis ao tornarem públicas, expressas e acessíveis à população e aos

formadores de opinião, as intenções do governo no planejamento de programas e

atividades. Destaca o cientista político, ainda, a necessária distinção entre governo e

Estado, pois enquanto o governo é contingente, o Estado é permanente.

Essa distinção é difícil em face da estreita relação entre as três dimensões da

política, nos âmbitos institucional (polity), dos processos (politics) e material (policy).

A equação do problema dos loteamentos precários abrange especialmente a politics

e a policy, na medida em que se nota a importância dos processos entre forças

políticas e sociais na dimensão das relações de poder, na tomada de decisão, na

atuação dos partidos políticos e do resultado do jogo político (politics); materializado

nas ações, programas e atividades que visam a resolução dos problemas sociais e a

efetivação dos direitos (policy).

A policy, explica Schmidt, compreende os conteúdos concretos da política, é

o Estado em ação, visível nas ações de governo contidas nos programas, projetos e

atividades executadas no atendimento das demandas da comunidade.19 Pode-se

afirmar que a materialidade da regularização fundiária está presente no âmbito da

policy.

No aspecto jurídico, as políticas públicas sejam quais forem devem ser

voltadas para a realização dos preceitos e fundamentos da Constituição. Por isso,

18 SCHMIDT, João Pedro. Para entender políticas públicas: aspectos conceituais e metodológicos. In: REIS e LEAL (Org.). Direitos sociais e políticas públicas: desafios contemporâneos. Tomo 8. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2008, p. 2311. 19 SCHMIDT, op. cit., p. 2311.

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pode-se afirmar que têm direta ligação com as diretrizes vindas da forma do Estado

(a polity).

Por isso, é importante que o processo político tenha como resultado o

estabelecimento da política pública (policy), ou ação do estado na solução da

demanda social. O interessante, nesse caso, é o estabelecimento de uma policy

com maior durabilidade temporal e independência. A ação pública (policy) que se

identificar prioritariamente com a política partidária (politics), corre o risco de assumir

características clientelista e eleitoreira na medida em que se mostra imediatista e de

curta duração, por estar vinculada a um programa político de governo ao invés de

uma política de Estado. Ermínia Maricatto sugere ser, essa identidade, um elemento

responsável pelo surgimento e manutenção dos loteamentos precários, ao referir:

Os políticos mantêm com esse universo uma relação muito funcional, pois a questão da regularização fundiária dos imóveis urbanos é objeto de relação clientelista. A ilegalidade é, portanto, funcional, para as relações políticas arcaicas, para um mercado imobiliário restrito e especulativo, para a aplicação arbitrária da lei, de acordo com a relação de favor.20

Na mesma direção, Raquel Rölnik refere:

[...] dessa forma o poder público estabelece uma base política popular, de natureza quase sempre clientelista, uma vez que os investimentos são levados à comunidade como “favores” do poder público. [...] Essa tem sido uma das grandes moedas de troca nas contabilidades eleitorais, fonte da sustentação popular de inúmeros governos.21

Nesse âmbito, se evidencia aquilo que se pode denominar “a não ação do

Estado” sendo essa, também, uma forma de política pública. Esse fator nos remete

à constituição de assentamentos informais como frutos da permissividade, ou ação

por omissão pública. Na realidade, essa ação por omissão revela-se verdadeira

política pública, lato sensu, pois, ao se tornar prática dos sucessivos governos torna-

se permanente no tempo e independente da política do governo que eventualmente

ocupa o executivo. Nesse caso, a característica recomendada de continuidade da

policy assume aspecto negativo. Além disso, a conduta omissiva e permissiva 20 MARICATO, Ermínia. As idéias fora do lugar e o lugar fora das idéias: planejamento urbano no Brasil. In: ARANTES, O. et al. A cidade do pensamento único: desmanchando conceitos. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 123. 21 RÖLNIK, Raquel. In: FASE e COHRE. Manual: regularização da terra e moradia - o que é e como implementar. São Paulo: Instituto Polis, 2002, p. 19.

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mostra-se como exteriorização do interesse político na formação da clientela

eleitoreira que, no futuro, será objeto do atendimento de suas necessidades em

troca do voto22.

Na análise das políticas públicas cabe contemplar tanto os aspectos

descritivos quanto prescritivos, onde no primeiro momento, visa-se ao melhor

entendimento do processo das políticas e no segundo, se projeta as soluções

possíveis em face de resultados e alternativas utilizadas em outros ambientes.23

Segundo Schmidt, “a análise das políticas públicas não pode ser feita de forma

fragmentada ou isolada da análise mais geral sobre os rumos do Estado e da

sociedade”24. Nesse contexto, é relevante considerar a legislação como fonte de

definição de políticas, como também o período histórico e o local da implementação

das políticas públicas, em virtude da influência que exercem sobre os resultados

alcançados e que determinam seu sucesso ou fracasso.

Segundo Schmidt, é importante considerar as diversas fases das políticas

públicas, desde a percepção e definição do problema até a avaliação. O êxito ou

fracasso da política está vinculado ao conjunto dessas fases, sendo os problemas

ou acertos em uma delas incidentes sobre as fases seguintes25. Dessa maneira, o

equilíbrio entre as fases é primordial para que se tenha efetiva, eficaz, eficiente e

legítima política pública. É imperioso concordar com a afirmação do autor em que “o

planejamento e a avaliação constantes são indispensáveis, não apenas para o êxito

das políticas públicas, mas do próprio exercício de poder.”26

22 Confirmando esta premissa, notícia veiculada em pleno período de eleições municipais, em 14.08.2008, informa que: “Projeto que permite construções em loteamentos irregulares é aprovado em São José dos Campos/SP; medida beneficia 15 mil moradores. A proposta foi apresentada na semana passada pelo vereador Walter Hayashi (PSB), que integra a bancada governista. Anteontem, ele protocolou um projeto substitutivo, que foi o texto aprovado ontem em plenário pelos parlamentares. Dos 94 bairros clandestinos, 62 possuem a classificação de Zeis, mas os 13 em fase final de regularização são Jardim Coqueiro, o Michigan 1, o Michigan 2, o Michigan 3, o Chácaras Araújo, o Santa Lúcia, o Santa Rita, o Portal do Céu e o Primavera 1, localizados na zona leste, onde Hayashi possui seu principal reduto eleitoral”. In: Jornal Valeparaibano. Disponível em: <http://jornal.valeparaibano.com.br/sjc/zona1.htm>. Acesso em: 16.08.2008. 23 SCHMIDT, João Pedro. Para entender políticas públicas: aspectos conceituais e metodológicos. In: REIS e LEAL (Org.). Direitos sociais e políticas públicas: desafios contemporâneos. Tomo 8. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2008, p. 2315. 24 SCHMIDT, loc. cit. 25 SCHMIDT, loc. cit. 26 SCHMIDT, op. cit., p. 2320.

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Visto isso, pode-se partir para uma análise das políticas públicas de

regularização e de regulação fundiária, para definir como se apresentam frente aos

problemas que pretendem resolver, ou pretenderam resolver, mas que, ao contrário,

agrava-se continuamente.

1.2 A relação entre as políticas fundiárias e os as sentamentos informais

Na abordagem do tema da propriedade precária deve-se voltar atenção para

aspectos ligados à regulação do uso do solo, pois como um sistema complexo, as

diferentes espécies de assentamentos urbanos informais ou precários27, que na

década de 80 e 90 são denominados loteamentos ilegais, clandestinos ou

irregulares, objetos das políticas regularizadoras, são consequências diretas das

políticas públicas que estabelecem as regras do uso do solo urbano, em que ainda

predomina a diretriz protecionista da propriedade privada, acumulativa e sem

limitações.

Por essas razões, a negação ao direito da moradia digna para milhões de

cidadãos, apesar de garantido na Constituição Cidadã, segue sendo um dos

principais problemas contemporâneos especialmente em face do estabelecimento

de uma sociedade cada vez mais urbana, cuja relação orgânica desequilibrada

acaba por trazer reflexos negativos a toda sociedade, a qual deve, urgentemente,

voltar sua atenção para a solução desse problema. Para agravar o quadro, no

contexto de um modelo de desenvolvimento forte na concentração de renda e

incremento da exclusão social, a concentração de pessoas no espaço urbano

produz o inchaço local e, daí, toda sorte de mazelas e degradações das pessoas e

do ambiente.

Estudos indicam que a irregularidade fundiária alcança cifras expressivas em

algumas grandes capitais. De acordo com o Ministério das Cidades, mais de 50%

dos imóveis urbanos do Brasil estão fora do sistema registral. A estimativa é de que

27 Conforme denominação do Ministério das Cidades ao Programa Urbanização, Regularização e Integração de Assentamentos Precários. Disponível em: <http://www.cidades.gov.br/ministerio-das-cidades/destaques>. Acesso em: 14.02.2008.

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esse número chegue a 12 milhões de imóveis28. Há cidades inteiras fora do sistema

formal, o que demonstra o descompasso existente entre objetivos e resultados, bem

como o desequilíbrio do sistema social.

Num contexto histórico, as políticas públicas de habitação e moradia urbana

(de regulação), como de resto as demais políticas econômicas e sociais,

demonstram um viés de práticas conservadoras e privativistas que implicam um

violento processo de migração campo-cidade, especialmente na direção sul do país,

dos centros urbanos constituídos e da faixa litorânea29. Esse fenômeno produz

resultados visíveis nas cidades.

A concepção de propriedade privada permanece dissociada da sua função

social. Ainda que, nas Constituições de 1934 (art. 113), de 1946 (arts. 14 e 122) e de

1967 (art. 147) se vislumbre essa perspectiva, o que de fato ocorre é a expansão

desordenada da cidade na forma de cortiços, favelas e loteamentos precários,

decorrente da falta de oportunidade e de acesso à propriedade regular a uma

parcela da população, ao mesmo tempo em que a propriedade segue forte na

individualidade e acumulação de outra parcela.

O modelo de desenvolvimento (polity) e ações (policy) do Estado brasileiro,

como se sabe, gerou e ainda gera a distribuição desigual da renda e dos direitos,

entre esses o direito à moradia. Esta desigualdade cria classes de cidadãos com

diferentes níveis econômicos e de direitos. Pode-se afirmar que em toda a América

Latina, especialmente a partir da década de 70, por força da proposta de

desenvolvimento apresentada por organismos financeiros internacionais, agravaram-

se os problemas sociais, acirraram-se as diferenças de classes e privilegiaram-se

minorias que passaram a deter os recursos econômicos e o estoque imobiliário

urbano, com fins especulativos, cujo maior efeito foi o de marginalização das

categorias sociais em face de seus escassos rendimentos para aquisição de um lote

legal.

28 FERRAZ, Patricia A. C. Regularização fundiária e registro de imóveis: bases para o desenvolvimento econômico sustentável. São Paulo: RDI/IRIB, 2007. 29 LEAL, Rogério Gesta. A função social da propriedade e da cidade no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado; Santa Cruz do Sul: Edunisc, 1998, p. 75.

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Esse quadro passa a se modificar somente após a Constituição de 1988 que

trouxe novos fundamentos e princípios para a propriedade, com ênfase na função

social, submetendo o seu aproveitamento ao atendimento das necessidades da

comunidade e do meio ambiente, abrindo-se um novo horizonte para o

estabelecimento de políticas públicas inclusivas, com destaque para as políticas

redistributivas fundiárias (de regularização).

Com efeito, no âmbito jurídico é preciso destacar que as relações de

propriedade e seu significado passam a ser reguladas no Brasil pelo direito civil de

Clóvis Beviláqüa,30 com a edição do Código Civil de 1916 que perdurou até 2003

quando passou a viger o “Novo” Código. Pelo diploma antigo, a propriedade do solo

é concebida com eminente característica individual, exclusiva, perpétua, absoluta e

ilimitada, adquirida pelo registro do título de transferência no registro de imóveis31,

que contempla-se no “utendi fruendi et abutendi, na plena in re potestas”32, de

Justiniano, e tal como em Roma, a propriedade “quiritária”33 serve, desde então,

como elemento de distinção de classe (ou, o que é pior, de cidadania), peculiar ao

“cives romani”, dispõe o proprietário de poder integral, individual e intransferível

sobre a coisa, podendo se apropriar de tantas quantas lhe for possível obter.

A distinção de classes sociais dá-se na medida em que a propriedade regular

(registrada) é direito exclusivo, acessível somente àqueles que possuem renda

suficiente para sua aquisição, restando aos demais somente a aquisição e posse

precária, fruto de invasão ou de parcelamento irregular das terras urbanas,

passando esta classe a se distinguir como a dos não proprietários. Sob este prisma,

o sistema que reconhece e protege a propriedade privada, inclusive contra o Estado

(público), vê a introdução no Direito Constitucional do conceito de função social.

Explica Eros Roberto Grau: “passa a propriedade, assim, a ser vista desde uma

30 BEVILÁQÜA, Clóvis. Código civil dos Estados Unidos do Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: F. Alves, 1934. 31 Conforme artigo 530, da Lei nº. 3.071, de 01.01.1916, do Código civil brasileiro. Atual artigo 1.245, do Código civil brasileiro de 2002. 32 Conforme art. 524, do Código civil brasileiro de 1916. “A lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua”. 33 CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de direito romano. São Paulo: Forense, 1973, p. 159, ensina que: “Chama-se quiritária porque é própria dos romanos, os quirites (de Quirino, nome de Rômulo depois de sua morte. Cures é a cidade dos sabinos. Quirites são os sabinos, elemento étnico que se fundiu com a população romana dos primeiros tempos).”

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prospectiva comunitária, não mais sob uma visão individualista.”34 Porém, ontem

como hoje, quem dita estas escolhas e regras certamente não é a massa dos não

proprietários que buscam sua moradia, no exercício pleno (independente) de direito

social puro a que se refere José Luiz Bolzan de Morais35.

1.2.1 A ineficácia da criminalização para evitar a implantação de loteamentos

ilegais

De fato, a política pública fundiária com a concepção privatista de 1916 e seu

efeito de crescimento desordenado da cidade e de insegurança jurídica têm como

resultado a edição da primeira lei de parcelamento do solo por meio do Decreto Lei

nº 58, de 10.12.1937, promulgado por Getúlio Vargas, que introduz os dois princípios

básicos na constituição de loteamentos, que serão mantidos nas leis posteriores, a

saber: (a) a precedência e indispensabilidade do registro imobiliário dos

parcelamentos, com depósito de memorial, planta, certidões fiscais, etc.; e (b) a

necessidade da aprovação do plano e plantas do loteamento pela Prefeitura

Municipal, “ouvida a autoridade sanitária e militar”36.

A criminalização e imposição de pena para o descumprimento da lei, como

terceiro princípio básico e cogente das políticas de regulação fundiárias, vem a

acontecer anos mais tarde quando é editada a Lei nº 4.591, de 16.12.1964,

denominada Lei dos Condomínios e Incorporações. Essa lei surge em virtude do

crescimento vertical nos centros urbanos, resultado da ampliação e predominância

34 GRAU, Eros Roberto. Direito urbano: regiões metropolitanas, solo criado, zoneamento e controle ambiental, PL de Desenvolvimento Urbano. São Paulo: RT, 1983, p. 66. 35 “[...] uma ordem jurídica que esteja subsumida em duas perspectivas fundamentais para que possa configurar, realmente, uma ordem de integração, quais sejam: a. Pureza . O direito social retira sua eficácia de sua própria legitimidade como ordem normativa auto-instituída. b. Independência , sua plena autonomia, ou mesmo, sua soberania como ordem normativa desvinculada daquela própria ao Estado”. [grifo nosso]. MORAIS, José Luis Bolzan de. A ideia de direito social: o pluralismo jurídico de Georges Gurvitch. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 53. 36 DL nº 58/37, art. 1º, § 1º Tratando-se de propriedade urbana, o plano e planta do loteamento devem ser previamente aprovados pela Prefeitura Municipal, ouvidas, quanto ao que lhes disser respeito, as autoridades sanitárias e militares. Disponível em: <http://www.senado.org.br/legislação>. Acesso em: 12.12.2007.

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dos condomínios edilícios, como consequência das políticas públicas de moradia

(leia-se SFH37).

Porém, a elaboração legal não inibiu a produção dos loteamentos irregulares,

pois segundo Luciano Caseiro,

não precisaria ser um jurisperito para chegar-se à conclusão que a redação legal da definição desse crime apresentava defeitos insuperáveis. Sobretudo não se atinou bem porque esse crime é, então, rotulado de “crime contra a economia popular”, quando a conduta reprovável se endereçava ao desrespeito direto às determinações da administração

pública municipal.38

Assim, essa medida tornou-se ineficaz haja vista a proliferação dos

loteamentos desde aquela data até hoje.

Com o Decreto Lei nº 271, de 28.02.1967, surge equiparação do loteador ao

incorporador pra todos os efeitos, inclusive os penais. Passa então a vigorar uma

política pública municipal de ação penal, coercitiva e cogente contra as ações dos

pretensos loteadores. Mas o resultado inibidor mais uma vez não se fez presente e a

situação faz com que as pessoas de baixa renda, “[...] sem condições de acesso a

terra urbanizada, ocupem áreas fora do mercado, de baixo valor imobiliário e pouco

fiscalizadas pelo poderes públicos”, na análise da Faculdade de Arquitetura e

Urbanismo da Universidade de São Paulo39.

Por sua vez, no entendimento de Caseiro:

Colocar loteadores clandestinos na cadeia, não será, por si só, medida que repare o dano causado ao poder público, e via de reflexo a todos os integrantes da comunidade. Não pode haver dúvida que da ação delituosa decorrem atos de extrema complexidade, na esfera civil. O compromisso ou a venda de lotes a terceiros geram direitos em relação a este e mais do que

isto, cria situações de fato, de ordem social.40

37 Sistema Financeiro da Habitação – SFH, instituído pela Lei 4.380/64, constituiu o Banco Nacional de Habitação- BNH e definiu parâmetros para a viabilização do sistema financeiro voltado à área habitacional. Promoveu o desenvolvimento nos setores da construção civil e financeiro. 38 CASEIRO, Luciano. Loteamentos clandestinos: conseqüências penais. São Paulo: EUD, 1979. p. 32. 39 Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. In: Manifesto em defesa do projeto de lei 3057. Disponível em: <http://www.irib.org.br. 40 CASEIRO, op. cit., p. 46.

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Mesmo assim, as políticas de regulação fundiária optaram por manter o viés

criminal como instrumento para sustar a prática do loteamento irregular. A edição da

Lei nº 6.766 de 19 de dezembro de 1979, Lei do Parcelamento do Solo, vigente até

hoje e que tipifica como crime contra a administração pública efetuar loteamento ou

desmembramento do solo urbano sem autorização do órgão público competente

(art. 50), indica a prevalência da criminalização como instrumento para conter as

irregularidades.

Porém, a impunidade do loteador permaneceu latente, agora não mais quanto

ao tipo penal, mas sim quanto à prescrição penal, já que, pela natureza de “crime

instantâneo de efeitos permanentes”, o delito ocorre quando o loteamento é iniciado

e prescreve no decurso da pena (de 1 a 4 anos). Se a denúncia não for célere, o

risco da impunidade em virtude da prescrição do crime é grande, como bem

demonstrado nos Acórdãos nº 2006/129900541 e nº 2006/12346742, ambos do

TJ/RS.

Como se vê, historicamente as políticas públicas voltadas à habitação e

moradia mostra-se mais para a limitação do que para a distribuição do direito, com

agravante de que, a par de não atingirem seus propósitos, servem para o

surgimento das espécies de irregularidades e ilegalidades fundiárias, bem como se

mostram obstáculos ao alcance das regularizações.

41 Apelação Criminal Acórdão nº 2006/1299005: O delito de realizar loteamento irregular é instantâneo de efeitos permanentes, ocorrendo o termo “ad quo” do lapso prescricional, no momento em que o loteamento é iniciado. Nesse sentido a doutrina e farta jurisprudência. [...]. Desta forma, estou votando no sentido de negar provimento ao recurso do Ministério Público e de prover o recurso da defesa, para declarar extinta a punibilidade pela prescrição da pena imposta. 42 Apelação Criminal Acórdão nº 2006/123467: Os fatos ocorreram em 1994. A denúncia foi recebida em 25 de junho de 2003. A pena imposta foi de um ano de reclusão. Logo, tudo está fulminado pela prescrição, eis que decorridos mais de quatro anos entre a data do fato e a do recebimento da denúncia. [nosso grifo].

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1.3 Políticas de regulação e políticas de regulariz ação: uma perspectiva local

A municipalização das prerrogativas e competências legais talvez seja o mais

importante aspecto da Lei nº 6.766/7943. O diploma traz normas reguladoras

urbanísticas para fins de implantação de loteamentos e abrange também normas de

regularizações. Assim sendo, cabe ao poder municipal definir os parâmetros para

alcançar a solução do problema da regularização.

Resta claro que a legislação reguladora nascida em 1937 tem como

motivação a proteção do adquirente do lote em face da insegurança jurídica

decorrente da possibilidade do arrependimento do loteador; da não realização do

empreendimento; da alienação de um mesmo lote a mais de um adquirente; e, da

incerteza da propriedade originária da gleba ou da solvência do empreendedor.

Luis Eduardo Schoueri,44 entende que toda a relação obrigacional encontra-se

baseada numa causa, explica que: “ao se buscar a causa, indaga-se acerca da

justificação da lei.” Apresenta a ideia que a justificação e as causas da lei direcionam

seu objetivo e resultados esperados, de modo que, no caminho inverso, resultados

inesperados indicam defeito na elaboração legal. Portanto, não se pode afastar a

motivação no exame da lei, já que sua aplicação atenderá aos fins sociais a que ela

se dirige45.

Desse modo, a lei que regula o parcelamento do solo e que estabelece a

política pública para a matéria tem como justificativa a proteção legal e individual da

propriedade e dos adquirentes, bem como a imposição de exigências tais que

afastem aqueles loteadores ou empresas que, potencialmente, venham a frustrar as

expectativas dos compradores. Porém, os efeitos são: (a) a reserva de mercado

para empreendedores com maiores condições econômicas de garantir a execução

das obras, que visam aos lucros compatíveis com sua dimensão; (b) o consequente

aumento do preço de custo e de venda dos lotes regulares; e, (c) a emergência dos

loteamentos irregulares para atender a demanda por lotes menos valorizados.

43 Conforme art. 6º, da Lei nº 6.766/79. 44 SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas tributárias indutoras e intervenção econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 136. 45 Conforme artigo 5º, da Lei de Introdução, Decreto-Lei nº 4657, de 4 de setembro de 1942.

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Não se pode negar que as normas impostas são de fundamental importância

para o desenvolvimento sustentável das cidades, por iguais razões uma

infraestrutura necessária à adequação urbanística agrega valor ao terreno em

virtude dos investimentos realizados.

Por sua vez, as políticas públicas e diretrizes de regularização fundiária,

presentes na Lei 6.799/79, demonstram o legislador preocupado com a preservação

do interesse particular. Explica-se. O enfoque adotado na lei é o de proteção ao

adquirente dos lotes não regulares, a quem cabe o direito/dever46 de promover

medidas extremas, como por exemplo: a sustação dos pagamentos de prestação

vincenda e efetivar seu depósito judicial, bem como, ajuizar a notificação do loteador

para regularizar o empreendimento. A política de proteção atribui ao Estado, leia-se

poder municipal, a competência para promover a regularização do loteamento não

autorizado ou executado em desacordo ao planejamento licenciado, “para evitar

lesão aos seus padrões de desenvolvimento urbano e na defesa dos adquirentes de

lotes”47.

Observa-se nessas normas a clara intenção do legislador em conferir

possibilidade e responsabilidade jurídica ao executivo municipal para assumir a

conclusão do loteamento irregular, ou a correção dos equívocos do plano em

relação às normas reguladoras, às suas expensas, para dar segurança aos

adquirentes. Como se nota, os procedimentos regularizadores não estão sendo

exercidos pelo executivo municipal em suas prerrogativas de Estado48.

46 Conforme Lei nº 6.766/79, artigo 38 - Verificado que o loteamento ou desmembramento não se acha registrado ou regularmente executado ou notificado pela Prefeitura Municipal, ou pelo Distrito Federal quando for o caso, deverá o adquirente do lote suspender o pagamento das prestações restantes e notificar o loteador para suprir a falta. [nosso grifo]. 47 Conforme Lei nº 6.766/79, artigo 40 - A Prefeitura Municipal, ou o Distrito Federal quando for o caso, se desatendida pelo loteador a notificação, poderá regularizar loteamento ou desmembramento não autorizado ou executado sem observância das determinações do ato administrativo de licença, para evitar lesão aos seus padrões de desenvolvimento urbano e na defesa dos direitos dos adquirentes de lotes. [nosso grifo]. 48 “Com efeito, o Estado não tem exercido, como manda a lei, o poder de polícia. A realidade urbana é prova insofismável disso. Não há como se admitir o contrário, pois se essa gigantesca ocupação de terras não fosse tolerada e a população pobre não tivesse alternativa alguma, estaríamos diante de uma situação de guerra civil.” MARICATO, Ermínia. As idéias fora do lugar e o lugar fora das idéias. In: ARANTES, Otília, et al. A cidade do pensamento único: desmanchando conceitos. Petrópolis-RJ: Vozes, 2000, p. 161.

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Porém, não se pode deixar de considerar que a regularização do loteamento

não depende tão somente da iniciativa do executivo municipal ou do enquadramento

do projeto técnico e sua execução de acordo com as normas urbanas do

município49. Como visto, o acesso do título do imóvel e do loteamento ao registro

imobiliário é o que consagra a regularidade do empreendimento e é justamente a

superação destes obstáculos o tema dessa pesquisa.

Em síntese, as possibilidades jurídicas para a regularização de qualquer

imóvel dependem da vontade política e do estabelecimento de políticas públicas

voltadas para esta finalidade no âmbito municipal e de procedimentos que superem

as barreiras registrais. Para tanto é imprescindível ampla movimentação e

manifestação da sociedade, tendo em vista que, historicamente, os avanços na

conquista de direitos e prerrogativas de cidadania são, paradoxalmente, promovidos

pelos não cidadãos, ou seja, pelos conflitos de excluídos por inclusão50.

1.3.1 Solidariedade, subsidiariedade e bem comum: f undamentos jurídicos da

solução local

Para visualizar como se construiu o entendimento e quais foram os elementos

jurídicos para o alcance da solução do problema de regularização do loteamento

“Jardim das Hortências”, é preciso compreender as ideias de solidariedade e

subsidiariedade, que são compatíveis com os princípios aparentes naquele processo

regularizador. Esse entendimento é importante tendo em vista que os princípios da

solidariedade e da subsidiariedade podem ser os elementos de legitimação de ações

que pretendam as regularizações fundiárias, tendo em vista a facilitação e

simplificação dos procedimentos de regularização fundiária como possibilidade

49 “A regularização fundiária, como se vê, não se encerra em ato isolado do Executivo, aprovando o parcelamento e verificando sua observância às regras vigentes. É preciso que o ato se materialize juridicamente com a criação jurídica das frações destacadas e, para tanto, passa necessariamente pelo Registro de Imóveis.” CHICUTA, Kioitsi. A função registral e a atuação do Judiciário: breves considerações sobre a desapropriação judicial e a concessão real de uso. In: Anais do seminário sobre regularização fundiária. São Paulo: 2007. Disponível em: <http://www.irib.org.br/index.asp>. Acesso em: 09.06.2007. 50 MAQUIAVEL. Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio (1517). Apud BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. Brasília: EUB, 1992, p. 92.

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inovadora para superar obstáculos registrais e ampliar os resultados positivos na

solução do problema.

Sabe-se que o surgimento de loteamentos ilegais, como o “Jardim das

Hortências”, é resultado do complexo sistema econômico e social vigente, com as

conhecidas distorções e corrosão social produzidas pelo individualismo utilitarista51.

Para contrapor ao caminho da concentração, da competição e da exclusão trilhado

pela sociedade, Osvaldo Della Giustina aponta para a via da desconcentração e da

cooperação, ou seja, da participação e da solidariedade, “mesmo porque a

sociedade com o instinto da história, da evolução ou da sobrevivência, percebe este

caminho”52.

A par disso, pode-se notar que a participação propiciada pela

desconcentração, de que fala Della Giustina, nada mais é do que a subsidiariedade,

princípio que, na dicção de Reinholdo Aloysio Ullmann, “tem como fundamento

metafísico a autonomia da pessoa humana, a sua finalidade e a responsabilidade de

auto-realização”53. Para Ullmann, a subsidiariedade, junto com a solidariedade e o

bem comum54, completa os três princípios formadores da sociedade, seu sentido e

razão de existência.

Esses princípios refletem a ideia aristotélica de que o homem é ser social e só

consegue sobreviver em sociedade, pois frente a suas carências individuais

necessita de outras pessoas para satisfazer suas necessidades55. Nesse viés, o

filósofo David Hume56, cuja obra influenciou Kant, diz-nos que “sem a sociedade a

51 “The conventional view of Durkheim of social order [...] criticized utilitariam individualism as a major corrosive of social order, [...]”. In: TURNER, Bryan S.; ROJEK, Chris. Society and culture - principles of scarcity and solidarity. London: SAGE Publications, 2001, p. 85. 52 DELLA GIUSTINA, Osvaldo. Participação e solidariedade: a revolução do terceiro milênio II. Tubarão: Unisul, 2004, p. 158. 53 ULLMANN, Reinholdo Aloysio. O solidarismo. São Leopoldo: UNISINOS, 1993, p. 99. 54 “É o conjunto das condições da vida social que permitem aos grupos e cada um dos seus membros atingir, de maneira mais completa e desembaraçadamente, a própria perfeição”. ULLMANN, op. cit., p. 92. 55 Em1 Ethic, lect.1, ARISTÓTELES escreve: “O homem é naturalmente um animal social, porquanto necessita, para sua vida, de muitas coisas que ele próprio não consegue prover; segue daí ser o homem parte de uma multidão pela qual lhe deve ser prestado ajuda para bem sobreviver”. In: ULLMANN, op. cit., p. 81. 56 “A sua obra levou Bertrand Russel a declará-lo o maior filósofo da língua inglesa, e é bem conhecida a influência que exerceu sobre Adam Smith, e depois sobre Kant – levando o filósofo alemão a abandonar a metafísica racionalista e tornando possível a redação da Crítica da Razão

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espécie humana seria incapaz de sobreviver, por várias razões, como a sua relativa

fraqueza física ou a longa e indefesa infância por onde começa a vida de cada ser

humano”57. O filósofo escocês chama de “simpatia” àquela identificação de um com

o outro, característica da vida em sociedade, que torna possível e, além disso,

indispensável a existência de um sistema de regras morais.

A divisão de trabalhos e tarefas na sociedade reflete essa interdependência e

é fonte do surgimento dos primeiros aglomerados urbanos e cidades. Empiricamente

falando pode-se dizer que esse mesmo princípio rege o surgimento dos atuais

assentamentos precários. A interdependência e a reciprocidade são as sementes do

solidarismo, ou princípio da solidariedade, “cuja origem teria duas vertentes

intelectuais: o estoicismo e o cristianismo primitivo”58.

Explica Farias que o tema da solidariedade, presente nos escritos de Pierre

Leroux, Auguste Comte e Proudhon, é sistematizado por Émile Durkheim, em cuja

obra aparece numa lógica que não se confunde com “caridade”, “filantropia” ou

“assistencialismo”, mas como política concreta, não somente um sistema de

proteção social, mas como “um fio condutor indispensável à construção e à

conceituação das políticas sociais”.59

Nessa construção, “não é entre os homens e o Estado ou a sociedade que se

põe o problema do direito e do dever; é entre os homens mesmos, mas entre

homens concebidos como associados a uma obra comum e obrigados uns com os

outros pelos elementos de um objetivo comum”60. Para Bryan Turner e Chris Rojek:

“The core of Durkheim view of social order was the notion that in the division of

labour the dependencies and reciprocities betwen individuals create a social bond

(an organic solidarity).”61 Ou seja, a divisão das funções cria entre as pessoas uma

Pura - bem como sobre centenas de outros filósofos até aos nossos dias” (sic.). Escreveu João Paulo Monteiro no prefácio da tradução para o português da obra de Hume. In: HUME, David. Tratado da natureza humana. Lisboa: Fund. C. Gulbenkian, 2001, p. 7. 57 HUME, op. cit., p. 11. 58 FARIAS, José Fernando de Castro. A origem do direito de solidariedade. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 188. 59 FARIAS, op. cit., p. 189. 60 BOURGEOIS. Léon. La solidarité. Paris: Libreirie Armand Colin, 1902, p. 89-90. Apud: FARIAS, op. cit., p. 190. 61 TURNER, Bryan S.; ROJEK, op. cit., p. 86.

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ligação62 social fundamentada na solidariedade orgânica, “aquela baseada nas

diferenças, resposta para as aspirações criativas de cada um e para as verdadeiras

necessidades de todos, objeto justamente de nossa procura”63, a qual se difere da

solidariedade mecânica, “baseada nas semelhanças, que é a adesão gregária do

indivíduo ao grupo”64.

Esse pensamento está presente em L. Duguit, que considera a solidariedade

como verdadeira norma de “direito subjetivo”, e em Gurvitch, que desenvolve a ideia

do “direito social”. No Brasil do fim do século XIX e início do século XX, o discurso

solidarista alcança, Tobias Barreto, Joaquim Nabuco e Ruy Barbosa. Como relembra

Farias, o Águia de Haia defende um vasto programa envolvendo questões sociais,

como por exemplo, casa de operários, instrução popular, higiene pública, salário

mínimo, etc., e escreve Barbosa:

Já se não vê na sociedade um mero agregado, uma justaposição de unidades individuais, acasteladas cada qual com seu direito intratável, mas uma entidade naturalmente orgânica, em que a esfera do indivíduo tem por limites inevitáveis, de todos os lados, a coletividade. O direito vai cedendo à moral, o indivíduo à associação, o egoísmo à solidariedade humana.65

O importante para a solidariedade é que o indivíduo realmente sinta-se parte

do todo e que realmente precise da sociedade, de forma orgânica, interior e não

meramente mecânica. A recomendação solidária preconiza a preponderância do

coletivo sobre o individual, fundamentado na força do indivíduo e na sua realização

pessoal, desde que consiga integrar-se a essa estrutura social.

Isso nos leva a considerar, com Durkheim, a necessidade de reaproximar a

norma jurídica e a norma moral66, ou melhor dizendo, levar à importância jurídica a

62 Significados da palavra inglesa, bond (n.): acessório, aglutinante, contrato, fidelidade, grilhões (Portugal), laço (Portugal), ligadura, vínculo; bond (n.) (trade): obrigação; bond (v.): aderir, amarrar, atar, colar, penhorar; bond (econom.): obrigação financeira. 63 TÉVOÉDJRÈ, Albert. A pobreza, riqueza dos povos: a transformação pela solidariedade. 2ª ed. São Paulo: Cidade Nova, 1982, p. 144. 64 TÉVOÉDJRÈ, loc. cit. 65 BARBOSA, Ruy. Teoria política. Rio de Janeiro: W. M. Jackson, 1950, p. 297. Apud: FARIAS, op. cit., p. 192. 66 O que Gurvitch denomina “direito social condensado”. “[...] estabelece um vinculo direto entre democracia e direito social, para dizer que, mesmo uma ordem normativa sancionada pode ser tida como uma ordem de integração social na medida em que esta normatividade seja penetrada pelo

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moral, pois é preciso redefinir regras de cooperação e troca de serviços entre os que

participam da vida da sociedade, ou seja, a preponderância progressiva da

solidariedade orgânica.

Da conhecida sistematização de T.H. Marshall, dos direitos civis (surgidos no

século XVIII), políticos (no século XIX), e sociais (no século XX)67, ou a de Paulo

Bonavides que fundamenta: os de primeira geração, na liberdade (civis e políticos),

os de segunda geração, na igualdade (econômica, cultural e social), os de terceira

geração, na fraternidade (solidariedade, desenvolvimento, paz) e, os de quarta

geração (democracia, informação e pluralismo)68, ligados à socialidade. Nota-se no

século XXI, na sociedade brasileira, a preponderância da socialidade, visível nas

eleições, liberdade de manifestação e organização, e da solidariedade ambas

presentes no ordenamento constitucional e cível69, no sentido do discurso solidarista

da inclusão social e pelo desenvolvimento humano, com políticas públicas concretas

em relação às mulheres, aos idosos e crianças, aos deficientes de todo gênero, aos

excluídos e discriminados70, à regularização fundiária e à preservação ambiental.

Pode-se então apontar que a ideia de solidariedade contamina e se torna a

solução do problema da regularização fundiária do loteamento “Jardim das

Hortências”. Nessa questão, os indivíduos diretamente envolvidos no problema,

movidos por exclusivo interesse moral de solucionar o impasse, promoveram o

diálogo e a cooperação como forma de transmutar a situação irregular em legal, de

direito social da comunidade subjacente, através da incorporação pela ordem jurídica estatal das regras produzidas pelos grupos sociais, ou seja, direito social que seria puro e independente se se mantivesse alheio ao ordenamento do Estado é transmutado em ordem jurídica deste, mantendo, contudo, sua origem. In: BOLZAN DE MORAIS, José Luis. A idéia de direito social: o pluralismo jurídico de Georges Gurvitch. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 64. 67 MARSHALL, Thomas Humprey. Citizenship and social class and other essays. Cambridge: CUP, 1950. 68 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 516-527. 69 Nesse viés, o jurista Miguel Reale denomina de “princípio da socialidade”, com presença marcante no vigente Código Civil Brasileiro de inspiração urbana, aquele em que prevalecem os valores coletivos sobre os individuais. Diz ele: “O Direito é social em sua origem e destino, impondo a correlação concreta e dinâmica dos valores coletivos com os individuais, para que a pessoa humana seja preservada sem privilégios e exclusivismos, numa ordem global de comum participação”. In: REALE, Miguel. O projeto do novo código civil. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 46. 70 Vide Lei Maria da Penha; os Estatutos dos Idosos e das Crianças; as leis de inclusão e reserva de quotas para deficientes físicos nos empregos públicos e no acesso aos meios de transporte, prédios públicos, etc.; as leis contra discriminação racial e religiosa e de cotas raciais nas universidades; facilitação das regularizações e linhas de crédito especiais; e assim por diante.

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maneira a dar força jurídica àquela situação moral ou fato social da propriedade

precária.

Além disso, cabe ressaltar o princípio da subsidiariedade presente nas

decisões e solução encontrada no âmbito local, na atuação do registrador público e

do juiz (Diretor do Foro), decorrente da autonomia e distribuição de competências

que reveste as atividades desses agentes públicos.

A esse respeito, socorremo-nos de José Alfredo de Oliveira Baracho71, que

conceitua subsidiariedade como sendo o princípio de que as decisões devem ser

tomadas no nível político mais baixo possível, isto é, por aquelas pessoas que estão

o mais próximo possível das ações que são definidas, efetuadas e executadas.

Explica o jurista mineiro que a subsidiariedade está relacionada com a

situação constitucional na definição das competências dos entes que compõem o

tipo de estado consagrado (unitário, autonômico, regional ou federal) e o processo

de descentralização política e administrativa, cuja definição clássica está na

Encíclica Papal de Pio XI, Quadragesimo anno, retomada, ipsis verbis, por João

XXIII, na Mater et magistra, nos seguintes termos:

[...] é injusto e, ao mesmo tempo, gravemente danoso e perturbador da reta ordem delegar a uma sociedade maior e mais alta (ad maiorem et altiorem societatem avocare) o que pode ser conseguido e realizado por comunidades menores e inferiores, já que toda e qualquer atividade social, por sua natureza e definição, deve proporcionar auxílio (subsidium) aos membros do corpo social, nunca, porém, destruí-los e absorvê-los.72

A explicação desse pensamento, vem na observação de Baracho sobre a

legitimidade da ação da sociedade no espaço local, ao dizer que, “o melhor clima

das relações entre cidadãos e autoridades deve iniciar-se nos municípios, tendo em

vista o conhecimento recíproco, facilitando o diagnóstico dos problemas sociais e a

participação motivada e responsável dos grupos sociais na solução dos problemas,

gerando confiança e credibilidade”73. O jurista propõe a repartição de competências

71 BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O princípio de subsidiariedade: conceito e evolução. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 92. 72 ULLMANN, Reinholdo Aloysio. O solidarismo. São Leopoldo: UNISINOS, 1993, p. 98. 73 BARACHO. José Alfredo de Oliveira. O princípio de subsidiariedade: conceito e evolução. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 19.

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ao referir que “vincula-se à compreensão do princípio de subsidiariedade, que o

Estado deve transferir ou delegar às coletividades os poderes que têm capacidade

de exercer”74, para desenvolvê-las e propiciar que possam agir em clima de

liberdade criativa.

De outra banda, Schmidt75 alerta para o risco do clientelismo, da

vulnerabilidade dos governos locais às pressões de grupos, do despreparo dos

agentes e burocracia geral, como problemas presentes na descentralização

decorrente do viés municipalista da Constituição de 1988. Essa manifestação ainda

que pareça argumento antagônico à subsidiariedade, ao contrário, atua como

reforço, pois prenuncia e enfatiza a necessidade cada vez maior da subsidiariedade

por meio da participação autônoma do indivíduo e da sociedade, para modificar a

situação.

Ora, é sabido que, entre outras incapacidades, o Estado não tem condições

de promover o controle sobre si mesmo e cabe à sociedade exercer essa função,

subsidiariamente. “O princípio de subsidiariedade assemelha-se a uma repartição de

competência entre sociedade e Estado”, diz Baracho, “ao mesmo tempo, impede o

avanço intervencionista do Estado, exigindo deste, ajuda e promoção das atividades

próprias do pluralismo social.”76 Pari passsu às ideias de German J. Bidart Campos77

para quem o Estado não deve assumir por si as atividades que os indivíduos e

grupos de cidadão podem desenvolver por eles próprios, devendo auxiliá-los,

estimulá-los e promovê-los.

Nessa tese, se é correto afirmar que a ideia e concretude da moradia, como

direito social puro e no princípio de subsidiariedade, é legitima na ação do indivíduo

ou grupo de indivíduos que arvoram a si a tarefa não cumprida pelo Estado, da

mesma forma, as ações e atos jurídicos procedidos pelo oficial registrador e pelo juiz

encontram amparo na subsidiariedade e, assim, justificam-se nos princípios gerais

74 BARACHO, op. cit., p. 32. 75 SCHMIDT, João Pedro. Gestão de políticas públicas: aspectos conceituais e aportes para um modelo pós-burocrático e pós-gerencialista. In: REIS e LEAL (Org.). Direitos sociais & políticas públicas: desafios contemporâneos. Tomo VII. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2007, p. 2000. 76 BARACHO, op. cit., p. 43. 77 CAMPOS, German J Bidart. Teoria del estado, los temas de la ciência política. Buenos Aires: Ediar, 1991, p. 40. Apud, BARACHO, op. cit., p. 47.

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do direito. As propriedades precárias existentes em todas as cidades espelham essa

realidade e comprovam a tese, à que refere Ricardo Hermany:

Pelo princípio de subsidiariedade, a sociedade civil deve assumir um papel significativo nas atividades de controle e nas propostas de regulação do convívio, sem olvidar, contudo, a importância do Estado, seja em relação aos princípios constitucionais [...] seja para viabilizar o maior número de instrumentos que permitam o desenvolvimento de uma sociedade pluralista capaz de concretizar o princípio da cidadania e dignidade da pessoa humana.78

Como se sabe, a subsidiariedade atribuída ao juiz está expressa nos arts. 4º

e 5º da Lei de Introdução ao Código Civil (LICC), in verbis:

art. 4º - Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito. art. 5º - Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.

Assim sendo, torna-se claro que os princípios da ação do conjunto social e da

autonomia dos indivíduos para a realização do interesse de todos, que consiste na

regularização jurídica e obtenção do título de propriedade em nome do morador

precário, encontra sua explicação e razões de justificação e fundamentação nos

princípios sociais da solidariedade, da subsidiariedade e da busca do bem comum.

1.4 A regularização fundiária e os obstáculos regis trais

Preliminarmente cabe lembrar que o Registro de Imóveis tem sua gênese no

Decreto nº 482 de 14 de novembro de 1846 de regulamento geral para o registro de

hipotecas objetivando tornar a terra base para o crédito79. Destarte, a atividade

nasce em função da especialidade econômica e como exigência do sistema

78 HERMANY, Ricardo. (Re)Discutindo o espaço local: uma abordagem a partir do direito social de Gurvitch. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2007, p. 284. 79SANTOS, Flauzilino Araújo dos. Importância dos registros imobiliários para o desenvolvimento jurídico e socioeconômico do Brasil. A efetividade da segurança jurídica. In: Anais do III seminário internacional de direito registral imobiliário. Rio de Janeiro, abril de 2008, publicado no Boletim Eletrônico nº 3229. Disponível em: <http://www.irib.org.br>. Acesso em: 23.05.2008.

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financeiro para obter garantia real dos empréstimos contratados. É a concepção de

Marcelo Salaroli ao dizer que:

[...] o registro imobiliário, ao exercer sua função de qualificação de títulos e publicidade de direitos, torna os bens imóveis em ativos econômicos, que podem ser negociados de maneira segura com baixos custos de transação. Isto enriquece o mercado imobiliário e lhe dá proteção, sendo sólida base para o desenvolvimento econômico.80

Destacam os autores que o registro imobiliário exerce a função primordial de

conferir segurança e eficácia jurídica aos atos que lhe são atribuídos pela legislação,

a par da publicidade e autenticidade em sede da qualificação dos títulos e negócios

imobiliários que acessam ao registro. Como se vê, a importância do registro está

muito mais ligada a fatores econômicos do que a interesses políticos ou sociais,

porém o autor defende que o registro produz estabilidade social ao proteger as

relações econômicas e o mercado. Afirma Vicente Dominguez Calatayud, que: “o

reconhecimento e a garantia do direito da propriedade e dos demais direitos reais

são condições de possibilidade da liberdade e do desenvolvimento econômico”81, e

completa dizendo que: “o registro da propriedade tem-se revelado como um dos

instrumentos mais eficazes para conseguir esses objetivos”.

A importância do registro é primordial para o estabelecimento do mercado

imobiliário, como informa Calatayud, ao dizer,

resulta evidente que sem direitos reais devidamente concedidos não há mercado, posto que os agentes não poderiam intercambiar os bens se não existe uma vinculação entre os titulares e esses bens; sem direitos de propriedade definidos não há mercados eficientes, e sem estes últimos não

há crescimento econômico.82

Na mesma linha, afirma Fernando P. Méndez Gonzáles que o registro

imobiliário, “como instituição de law enforcement, contribui para que a lei se

80 SALAROLI, Marcelo. O registro imobiliário brasileiro no combate à informalidade. In: Anais do VII seminário ibero-americano de direito registral, Santa Cruz de La Sierra, Bolívia, outubro de 2007. Publicado no Boletim Eletrônico nº 3177. Disponível em: <http://www.irib.org.br>. Acesso em: 29.10.2007. 81 CALATAYUD, Vicente Dominguez. Eficácia dos sistemas registrais como base da proteção jurídica dos direitos da propriedade do cidadão. São Paulo: RT, Revista de Direito Imobiliário nº 61, jul./dez., 2006. Disponível em: <http://www.irib.org.br>. Acesso em: 22.09.2007. 82 CALATAYUD, op. cit, p.2.

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cumpra”83. Manifestações que são corroboradas por José Simeón Rodríguez

Sanchéz84 e Álvaro Delgado Scheelje, que explicam:

Dentre outras, cabe aos sistemas registrais uma importante função econômica na sociedade, função essa que inclui, entre outros aspectos, favorecer o crescimento econômico, o bem-estar público e a paz social, mediante a proteção jurídica dos direitos patrimoniais e, especialmente, das transações feitas com base neles.85

A regularização fundiária dos assentamentos precários, por meio da obtenção

do registro imobiliário, é apontada como instrumento de luta contra a pobreza, no

sentido de promover a inclusão no mercado daquelas pessoas excluídas em função

da ausência do título de propriedade regular. Afirma Nicolás Nogueroles, que: “o

registro, como mecanismo seguro de produzir títulos de propriedade, adquire um

papel decisivo”, completando que: “não basta simplesmente ter um documento, é

preciso que ele seja um direito garantido e que seja assim reconhecido pela

comunidade”. Para ele, o aspecto econômico é o fundamental na medida em que:

“assim, a propriedade, além de ser um ativo físico, se converte em um ativo

econômico, com o qual é possível obter crédito e financiamentos”86.

1.4.1 O serviço registral e o interesse do setor ec onômico financeiro

Não resta dúvida a respeito da interação entre a propriedade regular e o

mercado imobiliário, especialmente em função do interesse do setor financeiro para

o qual a propriedade é um produto ou mercadoria, ou seja, meio circulante de

riqueza e fonte de garantias. Em nome da segurança dos investimentos e dos

investidores é implementado pelo Estado o sistema registral que se encarrega de

conferir essa segurança, socorrendo-se para tanto de princípios jurídicos e requisitos

legais que determinam o acesso ou não, ao chamado fólio real, dos títulos e 83 GONZÁLEZ, Fernando P. Ménez. A função econômica da publicidade registral. In: Revista de Direito Imobiliário, nº 56, jul./dez. São Paulo: RT, 2003. 84 SANCHÉZ, José Simeón Rodríguez. Princípios de regulação e organização do sistema registral: poder público, organização, autofinanciamento, responsabilidade. In: Revista de Direito Imobiliário, nº 57, jul./dez. São Paulo: RT, 2004. 85 SCHEELJE, Álvaro Delgado. Eficácia dos sistemas registrais na proteção jurídica do direito de propriedade e demais direitos patrimoniais do cidadão. In: Revista de Direito Imobiliário, nº 57, jul./dez. São Paulo: RT, 2004. 86 NOGUEROLES, Nicolás. Registro, guardião do direito de propriedade. Boletim Eletrônico do IRIB nº 2871, 13.03.2007. Disponível em: <http://www.irib.org.br>. Acesso em: 13.03.2007.

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documentos de propriedade, ou de parcelamento do solo. Para Gonzáles, “ao

autorizar uma inscrição, o registrador cuida que se respeite a legalidade vigente.

Contribui assim à realização do direito, atuando como “porteiro” ou gatekeeper das

transações cuja legalidade controla.”87

A legislação específica surge por meio da Lei dos Registros Públicos, Lei nº

6.015/73, que passou a viger em janeiro de 1976 e que introduz o conceito da

matrícula do imóvel, caracterizando a utilização do fólio real como sistema de

registro dos imóveis no país, em substituição ao fólio pessoal até então vigente. O

ordenamento jurídico pátrio passa então a adotar modelo similar ao da Alemanha e

Espanha, em que o registro é feito por imóvel, e não mais pela pessoa ou

proprietário, ou seja, trata-se da exclusividade específica e da inerência: para cada

imóvel uma matrícula, para cada direito sobre aquele imóvel um assento próprio.

Ensina Maria Helena Diniz que: “considera-se que a propriedade imobiliária

constitui um título outorgado pelo Estado, que lhe confere publicidade com o

assento.” E completa: “Consequentemente, o Registro do Imóvel é a declaração

pública do domínio e fonte da economia.”88 Reforça a civilista que antes do assento

do imóvel o adquirente não terá nenhum dos direitos de dono. Pelo princípio da

publicidade, embutido nessa premissa, apenas terá propriedade aquele em cujo

nome o imóvel estiver registrado.

A matrícula representa o suporte físico e jurídico do imóvel, explica Luiz Egon

Richter dizendo que: “é físico porque confeccionada em ficha de papel com os

requisitos legais, é jurídico porque tem como fundamento o domínio, ou seja, o

direito real de propriedade sobre o imóvel”.89 Destaca que: “é admissível abertura de

matrícula para o caso de imissão de posse provisória pelo Poder Público na

implantação de loteamentos populares”.90

87 GONZÁLEZ, Fernando P. Ménez. A função econômica da publicidade registral. In: Revista de Direito Imobiliário, nº 56, jul./dez. São Paulo: RT, 2003. 88 DINIZ, Maria Helena. Sistemas de registros de imóveis. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 5. 89 RICHTER, Luiz Egon. Fragmentos teóricos da base matricial do imóvel no registro de imóveis. In: Revista de Direito Imobiliário, nº 55, jul./dez. São Paulo: RT, 2003. 90 Por força do disposto no art. 18, §§ 4.º e 5.º, da Lei nº 6.766/79, com alteração da Lei nº 9.785/99.

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Cabe aqui explicitar que o sistema jurídico brasileiro entende o registro

imobiliário com eficácia constitutiva, ou seja, “sem ele o direito real sobre coisa

alheia e o direito de propriedade imobiliária, oriundos de atos inter vivos, não

nasceriam.”91 Vale lembrar que, em nosso direito, os negócios jurídicos92 não são

hábeis para transferir o domínio de bem imóvel. Refere Diniz que: “para que se

possa adquiri-lo, além do acordo de vontades, entre adquirente e transmitente, será

imprescindível o registro do bem de raiz na circunscrição imobiliária competente.”93

Sem esse registro público não haverá transferência de propriedade ou do domínio.

Assim sendo, salvo na aquisição originária94, por usucapião95 ou por acessão, o

direito de propriedade constitui-se, de modo derivado, tão somente com o registro do

título aquisitivo, por força do disposto no Código Civil Brasileiro96.

1.4.2 Os princípios registrais e a reserva de legal idade

A relação entre a matrícula e a regularização fundiária é direta na medida em

que aquela é o objetivo final da regularização, ou seja, o imóvel somente será

considerado regular quando matriculado. Da mesma forma, o loteamento ou

desmembramento do solo urbano depende do seu registro imobiliário e da abertura 91 DINIZ, op. cit., p. 26. 92 São referidos no Título I do Código Civil Brasileiro (CCB), aqui se tratam de todos os atos jurídicos de transmissão da propriedade imobiliária, formalizados por contratos os quais são explicitados no Título V, tais como: a compra e venda, a doação, a dação em pagamento e a permuta. 93 DINIZ, op. cit., p. 7. 94 Embora alguns autores definam o direito hereditário como forma originária de aquisição da propriedade, somente com o registro da partilha o herdeiro poderá dispor do imóvel em face do princípio da continuidade. 95 “A sentença declaratória do domínio, em quaisquer das espécies de usucapião, servirá de título no Ofício Imobiliário competente para o registro, que terá o efeito apenas de publicidade, prevenindo a boa-fé dos terceiros e assegurando a continuidade do registro, quanto ao encadeamento das transmissões; não visa a transferir o domínio, já transferido e adquirido pela posse sem interrupção nem oposição. O registro não opera com efeito constitutivo. Ele funciona, nesse caso, como órgão refletor do estado da propriedade imóvel, dando publicidade à sua individuação e fornecendo a prova do direito de cada pessoa a determinado bem ou a uma parte ideal em determinado bem”. SANTOS, Luis A. Busanello. Formas de aquisição da propriedade imóvel pelo sistema do Código Civil e o seu registro. In: Revista de Direito Imobiliário, nº 57, jul./dez. São Paulo: RT, 2004. 96 Conforme o Código Civil Brasileiro, a propriedade imóvel se adquire pelo registro do título translativo no Registro de Imóveis (art. 1.245, caput). Determina o art. 1.227, caput, in verbis: “Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos (arts. 1.245 a 1.247), salvo os casos expressos neste Código”. Por sua vez, a Lei dos Registros Públicos, em seu art. 172, prevê que: “No Registro de Imóveis serão feitos, nos termos desta Lei, o registro e a averbação dos títulos constitutivos, declarativos, translativos e extintivos de direitos reais sobre imóveis reconhecidos em lei, inter vivos ou causa mortis, quer para sua constituição, transferência e extinção, quer para sua validade em relação a terceiros, quer para a sua disponibilidade”.

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de matrículas próprias de cada lote. Portanto, a existência da matrícula expressa a

compatibilidade entre a realidade fática (existência do lote) e a realidade jurídica (o

registro do lote).

Para obtenção da matrícula do imóvel é necessário sobrepor as chamadas

“barreiras de entrada”97 das quais resultam a maior ou menor segurança jurídica que

o sistema registral, no desempenho de suas prerrogativas e no exercício da sua

função social, pode conferir à sociedade e ao sistema econômico-financeiro. Explica

Diniz que “essa segurança decorrerá da caracterização minuciosa do bem de raiz,

dificultando sua confusão com outro, e da identificação do titular de seu domínio ou

dos ônus reais que sobre ele, porventura, recaírem.”98 Pode-se dizer que a

segurança jurídica é a maior das eficácias do registro do imóvel, tanto para o

proprietário poder exercer seus direitos e vê-los corretamente declarados, quanto

para terceiros e para o mercado.

Ao abordar esse tema, Celso Antônio Bandeira de Mello ensina que: “o

princípio da segurança jurídica, se acaso não é o maior de todos os princípios gerais

de direito, como acreditamos que efetivamente o seja, por certo é um dos maiores

dentre eles”.99 Refere o jurista que esse elemento, presente e comum a todo e

qualquer sistema jurídico, cuida de evitar alterações surpreendentes que tornem

instáveis a situação e relações jurídicas da sociedade. Essa afirmação demonstra a

existência de uma escala valorativa dos princípios do direito.

No mesmo diapasão, no entender de Scheelje:

A eficácia de um sistema registral será garantida do ponto de vista jurídico com a correta aplicação dos princípios registrais em cada uma das etapas do trabalho efetuado pelo órgão responsável pelos registros públicos, o que inclui necessariamente a qualificação registral assim como a publicidade do que foi inscrito nos registros.100

97 GONZÁLEZ, Fernando P. Ménez. A função econômica da publicidade registral. In: Revista de Direito Imobiliário, nº 56, jul./dez. São Paulo: RT, 2003. 98 DINIZ, Maria Helena. Sistemas de registros de imóveis. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 24. 99 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de direito administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 83. 100 SCHEELJE, Álvaro Delgado. Eficácia dos sistemas registrais na proteção jurídica do direito de propriedade e demais direitos patrimoniais do cidadão. In: Revista de Direito Imobiliário, nº 57, jul./dez. São Paulo: RT, 2004.

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Como bem esclarece esse autor, a qualificação e a publicidade registral são

etapas sucessivas do processo do registro propriamente dito e são fundamentadas

nos princípios gerais registrais. Na primeira etapa, trata o registrador “do exame para

determinar se o título apresentado ao registro é inscritível, com base nos diversos

princípios que, como requisitos e pressupostos técnicos para a inscrição, o sistema

considera”. Na segunda, em consequência surgem os efeitos de exteriorizar e dar

publicidade às determinadas situações jurídicas registradas.

Disso resulta que dentre os princípios informadores do registro, destacam-se

os denominados: princípio da continuidade e princípio da unicidade ou

especialidade. Esclarece Luiz Egon Richter, que o primeiro, “é de natureza

instrumental, na medida em que se destina a garantir o encadeamento dominial”101,

ou seja, os elementos constitutivos do registro expressam a história do imóvel,

desde sua origem até o momento atual, onde os atos jurídicos inscritos refletem o

nexo de causalidade existente entre estes. Prossegue dizendo que o segundo,

também instrumental, “preconiza a ideia de que a cada imóvel, considerado como

um corpo certo e contínuo, deve ser atribuído uma matrícula, e a cada matrícula

deve corresponder apenas um imóvel.”102 Esses princípios estão dispostos na Lei

dos Registros Públicos, nos artigos 176, § 1º, I; e, 235, § único.

Além desses, o registro imobiliário é informado por outros princípios cuja

observância tem relação direta com a regulação do uso e destino do solo urbano,

definido nas leis que regulamentam a matéria e, por conseguinte, com a

regularização fundiária que precisa observar e superar os obstáculos dessas

“barreiras de entrada”.

Nesse sentido, importa destacar o princípio da legalidade como sendo situado

em primeiro plano. Ocorre que a situação de irregularidade do imóvel vai de

encontro a esse princípio, o qual é, justamente, o que rege a função pública do

registro imobiliário e que, nas palavras de Bandeira de Mello: “explicita a

subordinação da atividade administrativa à lei e surge como decorrência natural da

101 RICHTER, Luiz Egon. Fragmentos teóricos da base matricial do imóvel no registro de imóveis. In: Revista de Direito Imobiliário, nº 55, jul./dez. São Paulo: RT, 2003. 102 RICHTER, loc. cit.

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indisponibilidade do interesse público.”103 Daí a submissão do registro imobiliário ao

princípio da legalidade como agente público latu sensu.

Por outro lado, o princípio da legalidade não fica adstrito ao aspecto subjetivo

como também abrange os requisitos objetivos e formais materiais. Ou seja, não se

limita aos atos do registro imobiliário e do seu titular como também se aplica aos

títulos e documentos que pretendam ingressar no álbum imobiliário, especialmente

nas questões da regularização fundiária e transmissão da propriedade. É

precisamente o que refere Richter, ao dizer que: “a ideia nuclear é a de que a

validade do registro mantém uma relação lógica com a validade do título, o que não

quer dizer, por outro lado, que a validade do título necessariamente impõe validade

ao registro.”104

Nesse contexto, encontra-se a principal barreira a ser transposta na

regularização fundiária, eis que existem exigências legais em relação ao título ou

documento e sua admissão no álbum imobiliário. Por exemplo, as normas105 que

determinam as espécies de títulos registráveis não incluem os simples recibos ou

contratos particulares, às vezes defeituosos, que representam a maior ocorrência

nas aquisições dos lotes irregulares.

Além da legalidade, o princípio da especialidade106, conexo ao da unicidade, é

outro fundamento ligado diretamente à regularização fundiária e decorrente das

normas reguladoras, na medida em que determina a perfeita individuação do imóvel,

assim como dos direitos registrados. Em outras palavras, o direito (domínio) precisa

ser inequívoco, bem como o imóvel sobre o qual esse direito recai. Na dicção de

Richter, ambos devem ser perfeitamente individualizados de forma que não existam

dúvidas a respeito da situação, do perímetro, da localização e das demais

características físicas do imóvel ou da identificação do titular do direito, ou do próprio

103 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de direito administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 73. 104 RICHTER, Luiz Egon. Fragmentos teóricos da base matricial do imóvel no registro de imóveis. In: Revista de Direito Imobiliário, nº 55, jul./dez. São Paulo: RT, 2003. 105 Lei nº 6.766/73. 106 Está previsto nos arts. 176, § 1º, II, itens 3 e 4; e, nos arts. 222 e 225, da Lei nº 6.015/73. Como informa ERPEN, Décio Antônio; PAIVA, João Pedro Lamana. Princípios do registro imobiliário formal (comentários). In: Anais do congresso brasileiro das entidades de notas e registro. Salvador-BA, 2003. Disponível em: <http://www.lamanapaiva.com.br>. Acesso em: 14.06.2008.

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direito107. Esse princípio é o que assegura a certeza sobre o objeto e as partes

envolvidas. Contrário senso, a falta de especialização do imóvel coloca esse na

situação de imóvel virtual, o que leva à perda da propriedade por falta de poder

identificar fisicamente o objeto e o direito. Ainda que exista de fato, o imóvel e a

propriedade não existirão de direito.

O princípio da especialidade determina o direito de domínio sobre a terra de

uma parte especial do território que é o imóvel com sua descrição legal e oficial na

matrícula imobiliária108. Decorrente disso, a propriedade apenas existe se o objeto,

de alguém próprio, existe e, ambos, são perfeitamente identificáveis por meio de

registro oficial, único. Explica Lilia L. Pelegrini Venosa que:

É o princípio da especialidade em essência, sem possibilidade de sobreposição de uma unidade imobiliária sobre a outra e a garantia de que a função social do Registro de Imóveis se perpetuará pela segurança jurídica e publicidade de seus atos, que favorece o tráfego seguro e coerente de informações de forma que, ao se analisar uma matrícula imobiliária, se tenha certeza da localização de um imóvel não somente na circunscrição a que pertence, mas no globo terrestre.109

Assim sendo, a especialidade “consiste no fato de assentar uma perfeita e

minuciosa identificação do imóvel registrado, com o escopo de impedir que sua

transmissão seja feita irregularmente.”110 O registro imobiliário especializado protege

e evita a possibilidade de erros que venham confundir propriedades e prejudicar

registros subsequentes.

Por outro lado, o elemento que identifica a irregularidade fundiária é

justamente a carência da individualização e caracterização da propriedade, ou seja,

a falta do princípio da especialidade aplicada ao caso concreto. Sanar esse defeito é

o objetivo final da regularização por meio da abertura da matrícula do imóvel,

devidamente identificado em nome do seu possuidor e legítimo proprietário.

107 RICHTER, Luiz Egon. Fragmentos teóricos da base matricial do imóvel no registro de imóveis. In: Revista de Direito Imobiliário, nº 55, jul./dez. São Paulo: RT, 2003. 108 “Especialidade – é a exigência da identificação geométrica de um imóvel com uma perfeição definida nos documentos registrais. Esta identificação é realizada desde a época da antiga Mesopotâmia, através de um levantamento técnico de agrimensura”. Definição disponível em: <http://www.geodesia.ufsc.br/wikirib/index.php/Princípio_da_Especialidade>. Acesso em: 16.06.2008. 109 VENOSA, Lilia Lúcia Pellegrini. Georreferenciamento e o procedimento de retificação judicial. In: Boletim Eletrônico do IRIB nº 2.307, de 15.02.2006. Disponível em: <http//www.irib.gov.br>. 110 DINIZ, Maria Helena. Sistemas de registros de imóveis. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 31.

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Dentre os princípios referidos, para Walter Cruz Swensson, “um dos mais

importantes - senão o mais importante - princípios do direito imobiliário é o da

continuidade do registro”111. Esse princípio, que permanece atual112, foi introduzido

no direito pátrio com o Decreto nº 18.542 de 24.12.1928, nas palavras de Álvaro

Melo Filho: “de forma insofismável, determinando que, em qualquer caso, não se

poderá fazer o registro sem que o seja o título anterior de modo a assegurar a

continuidade do registro de cada imóvel (art. 206)”113.

Explica Richter a importância da continuidade ao dizer que: “é sustentáculo da

segurança jurídica, na medida em que, em relação a cada imóvel individuado, deve

existir um encadeamento de titularidades dos direitos reais. [...] Esse encadeamento

contribui para a segurança jurídica, pois assegura, apenas ao titular do direito, a

possibilidade de outorgá-lo.”114

Nessa construção, o titular do direito assim o é por tê-lo recebido de seu

antecessor legal. Por sua vez, explana Diniz que: “sendo o registro imobiliário um

dos modos derivados de aquisição do domínio da coisa imóvel, prende-se ele ao

anterior; se o imóvel não estiver registrado no nome do alienante, não se poderá

fazer seu assento em nome do adquirente.”115 Em síntese, nenhum assento registral

poderá ser efetuado sem a menção ao título anterior, formando uma cadeia

ininterrupta de titularidades jurídicas do imóvel, e eventualmente da sua própria

existência quando da abertura de matrícula nova, concatenando sucessivamente as

suas transmissões e existência. Esclarece que é em nome da continuidade

registraria que se faz necessário o registro da desapropriação116, ainda que o ato

expropriatório tenha o condão de, per si, transferir a propriedade. Da mesma forma,

na aquisição por usucapião, “enquanto a sentença declaratória do domínio não for

111 SWENSSON, Walter Cruz. Manual de registro de imóveis. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 42. 112 Está atualmente consagrado nos artigos 195, 196, 197, 222, 223, 225, 228, 229 e 237, da Lei nº 6.015/73. Como informa ERPEN, Décio Antônio; PAIVA, João Pedro Lamana. Princípios do registro imobiliário formal (comentários). In: Anais do congresso brasileiro das entidades de notas e registro. Salvador-BA, 2003. Disponível em: <http://www.lamanapaiva.com.br>. Acesso em: 14.06.2008. 113 MELO FILHO, Álvaro de. Direito registral imobiliário: enfoque didático e prático. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 10. 114 RICHTER, Luiz Egon. Fragmentos teóricos da base matricial do imóvel no registro de imóveis. In: Revista de Direito Imobiliário, nº 55, jul./dez. São Paulo: RT, 2003. 115 DINIZ, Maria Helena. Sistemas de registros de imóveis. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 29. 116 DINIZ, op. cit., p. 5.

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registrada, o autor não poderá lançar mão da ação reivindicatória”.117 Tais elementos

são importantes destacar haja vista que, na regularização fundiária, a

desapropriação e a usucapião são os instrumentos jurídicos mais recomendados e

adequados à obtenção da regularidade formal da propriedade.

Em síntese, são os princípios registrais da legalidade, da unicidade, da

especialidade e da continuidade, os que fundamentam as barreiras de entrada da

regularização por ocasião da qualificação e publicidade dos atos registrais, e que

necessitam ser superados para o êxito da regularização fundiária.

1.4.3 Os princípios registrais à luz dos direitos f undamentais

As palavras de Calatayud, são no sentido de que: “o reconhecimento e a

garantia do direito de propriedade, como dos demais direitos reais, são ingredientes

indispensáveis da liberdade e do desenvolvimento econômico.” Assevera e justifica

que a força do registro, como elemento de comprovação da propriedade, depende

da importância que o sistema jurídico lhe confere, e que:

A característica primordial de todo Sistema de Registro há de ser que os direitos por ele publicados gozem de maior proteção que os não publicados. Quando se trata dos supostos que estão previstos legalmente, aquele que publica seu direito está protegido frente a outros terceiros que não o publicam e que derivam tal direito do mesmo autor. É o clássico princípio de inoponibilidade do não-inscrito ao inscrito.118

Nessa premissa nota-se incompatibilidade entre a discriminação presente na

fria interpretação dos princípios registrais e os direitos fundamentais, especialmente

o da igualdade, disposto no art. 5º da Constituição Cidadã. De fato, não há

embasamento jurídico que justifique esta discriminação, pois, além de favorecer aos

já tradicionalmente favorecidos, eis que se trata de pessoas com recursos

econômicos suficientes para aquisição de um imóvel regularizado, demonstra a

marginalização jurídica imposta àquelas que não têm essa oportunidade e que as

117 DINIZ, loc. cit. 118 CALATAYUD, Vicente Dominguez. Eficácia dos sistemas registrais como base da proteção jurídica dos direitos da propriedade do cidadão. São Paulo: RT, Revista de Direito Imobiliário, nº 61, jul./dez., 2006. Disponível em: <http://www.irib.org.br>. Acesso em: 22.09.2007.

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coloca distante ou fora da proteção judicial. Assim sendo, não há justificativa para o

poder judiciário e o sistema jurídico ser dirigido e a posto a serviço tão somente do

proprietário regular.

A força do sistema do registro imobiliário deve fundamentar-se mais na

representação da realidade fática e menos na realidade formal. Quanto mais

aproximada e informadora da propriedade real mais força e credibilidade terá a

publicidade registral, pois haverá a certeza de que os elementos informadores são

os verdadeiramente existentes. Ou seja, o registro deve exprimir juridicamente a

realidade fática, a autenticidade e fé pública dos fatos.

Por sua vez, os princípios da unicidade, da especialidade e da continuidade

componentes da publicidade registral não podem ir contra os direitos fundamentais,

pois incorreria em inconstitucionalidade. Por isso, a interpretação dos princípios e a

sua aplicação devem ser revistas e adequadas aos princípios constitucionais que

garantem direitos fundamentais.

Nesse sentido, talvez seja recomendável a simplificação e flexibilização das

“barreiras de entrada” aos títulos de propriedade e de transferência de titularidade no

registro imobiliário, como forma de estender a proteção e a segurança jurídica a um

número expressivo de pessoas marginalizadas. Assim procedendo, o registro

poderá melhor executar sua função social e produzir estabilidade e igualdade social

ao proteger as relações econômicas e o mercado, ampliando o acesso ao sistema

financeiro de considerável parcela da população urbana. Em síntese, agir como

promotor da tão almejada inclusão social.

A lição de Calatayud explica as razões e fundamentação do registro de

imóveis, em que a realidade formal deve se aproximar da realidade material, ao

dizer que: “a publicidade (formal) supõe o oferecimento aos interessados da verdade

oficial.” Explica ainda que:

Um registro é público quando o acesso a ele está aberto a todos os membros da comunidade jurídica, podendo-se entender esta acessibilidade no duplo sentido de poder acorrer ao registro para conhecer seu conteúdo e obter informação dele, ou no sentido de poder integrar seu conteúdo, solicitando que se façam constar nele determinados dados. Todavia, esse

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acesso deve ser oferecido de acordo com a natureza mesma da instituição registral, isto é, mantendo a idoneidade do arquivo e só facilitando aqueles dados com verdadeira relevância real. [nosso grifo]119

Disso pode-se referir que o principal dado de relevância real é justamente a

propriedade e seu titular, ou seja, a especialização do bem de raiz e identificação do

proprietário. Na expressão de que registro de imóveis deve ser aberto a todos, infere

o sentido de igualdade de acesso a todos os cidadãos, tanto para obter as

informações ali contidas, quanto para fazer parte das mesmas e a ter reconhecido

seu direito de propriedade.

Sobre a igualdade cidadã, Liszt Vieira ensina que: “[...] se traduz na forma,

garantindo a possibilidade de acesso aos tribunais, legislaturas e burocracias”120.

Fala no sentido de igualdade de oportunidades e equilíbrio entre direitos e deveres

com limitações, sem supremacias de uns sobre outros. De modo que, nesse ponto,

pode-se incluir como elemento de igualdade o acesso aos atos registrais com

escopo administrativo e burocrático, bem como acesso aos efeitos do registro em

relação ao mercado. Sendo ao mesmo tempo, direito de uns e dever de outros.

Ressalva Vieira não se tratar de igualdade completa, “mas em geral garante-

se aumento nos direitos dos subordinados em relação às elites dominantes”121, o

que significa um sentido de equidade e de atribuir prerrogativas especiais aos

menos cidadãos (os não proprietários), possibilitando aproximá-los dos privilegiados

detentores do poder especulativo e acumulador de propriedade regular; como por

exemplo, ao flexibilizar e facilitar o acesso ao registro imobiliário de todo e qualquer

título de propriedade emanado por agente público legalmente habilitado para tal.

Agir assim é realizar alguns dos objetivos fundamentais da República, qual seja

reduzir as desigualdades sociais e erradicar a pobreza (art. 3, III, CF/88).

Do contrário, deixa o registro de propriedade de se revestir do seu caráter

público, pois atende somente uma parte do público. Isso se torna mais importante se

for levada em conta a afirmação de Calatayud que: “compete ao registro mediante o

mecanismo de publicidade registral atuar uma faculdade cuja titularidade 119 CALATAYUD, op. cit, p.2. 120 VIEIRA, Liszt. Os argonautas da cidadania. São Paulo: Record, 2001, p. 34. 121 VIEIRA, op. cit., p. 35.

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corresponde ao Poder Público: a de definir e atribuir frente a todos os direitos que

recaem sobre os bens”. Completa dizendo que: “O registro da propriedade atua

assim sobre um dos elementos centrais do sistema econômico, como é a atribuição

e proteção dos direitos”. Por essa razão, não pode ser discriminatório e desigual, em

face da inconstitucionalidade desse procedimento. A atuação do registro imobiliário

deve encontrar mecanismos que permitam a igualdade jurídica e acesso a todos,

sem as barreiras e os obstáculos existentes.

1.5 O direito como obstáculo para o acesso à moradi a: entraves jurídicos e

burocráticos para as regularizações fundiárias e a ação pró-ativa na esfera

judicial

O maior defeito apresentado pelo direito positivado está na sua origem e no

processo legislativo de que resulta. Como se sabe, o direito brasileiro sofre a

influência jurídica européia, especialmente francesa, dominado pela ideia liberal-

individualista, conservadora, com defeitos na técnica legislativa que, no dizer de

Eduardo Novoa Montreal122, encontra-se na forma não transparente, urgente e

precipitada com que são encaminhadas e editadas as leis, impedindo o legislador de

dar conta das demandas sociais de grande mobilidade e complexidade. Um

legislativo que confunde o urgente com o importante e faz diminuir o prestígio das

leis. Lembra ainda Montreal que, para agravar a situação de legitimidade e

credibilidade, a Lei:

A la que se tiene por una concreción de la voluntad general de un pueblo que, haciendo uso de su poder soberano, impone a través de sus representantes las reglas de vida social que deben imperar en una sociedad, generalmente se limita a expresar los intereses y aspiraciones del grupo social que de hecho ejerce su dominio sobre ésta.123

Na questão da legislação fundiária e dos loteamentos, por óbvio, não é

diferente. No setor imobiliário a terra passa a ser mercadoria como outra qualquer124.

122 MONTREAL, Eduardo Novoa. El derecho como obstáculo al cambio social. México: Siglo Veintiuno, 1981, p. 58. 123 MONTREAL, op. cit., p. 60. 124 SILVEIRA, Rogério L. L. Cidade, corporação e periferia urbana: acumulação de capital e segregação espacial na (re)produção do espaço urbano. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2003, p. 33.

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Destaca Ricardo Pereira Lira que esse processo resulta no “banco de terras”125,

constituído em benefício do proprietário fundiário, que aguarda o momento de, pela

alienação do “estoque”, locupletar-se com a mais valia resultante do investimento de

toda a comunidade, ou seja, retém o aumento do valor produzido pelo

desenvolvimento da cidade, conhecido como “renda imobiliária urbana”126.

Ainda apontando incongruências, Montreal informa que o maior desajuste do

direito é que as leis têm uma intenção de perenidade, mas estão sempre atrás dos

acontecimentos sociais. Explica que, erroneamente: “o positivismo elevou a lei à

expressão da razão e considera que a imutabilidade é o caráter de uma boa lei”.

Esse é o entendimento dos defensores de leis duradouras e precisas: elas

representam segurança jurídica aos cidadãos, pois lhes permite conhecer de modo

estável o que a lei manda e o que fica reservado à sua esfera de liberdade. Na

esteira da crítica a este pensamento diz Montreal: “[...] si la vida social fuera

inmutavel, nada habria que objetar”127.

Note-se que especialmente a sociedade urbanizada tem enorme mobilidade e

necessita de igual dinâmica nas leis e nas ações públicas.

Completa Montreal dizendo haver uma brecha crescente entre a realidade

social e o direito, causada pela rigidez e atraso na elaboração deste contra a

mobilidade e demandas cada vez maiores daquela. Afirma ele: “la sociedad se

asemeja a un organismo vivo”128 e que a mobilidade social faz inevitável que os

esquemas, baseados em normas rígidas e ultrapassadas no tempo, vão se

desconectando cada vez mais das realidades sociais às quais deveriam ser

aplicadas. Isso faz com que a lei ande sempre atrasada em relação aos fenômenos

sociais. Detecta-se assim a ocorrência de um direito positivado que obstaculiza o

alcance das demandas sociais, as quais terminam por encontrar seus próprios

125 LIRA, Ricardo Pereira. Elementos de direito urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 157. 126 ARAÚJO, L. E. B. de; VIEIRA, J. T. Normas reguladoras da expansão urbana na ótica da complexidade ambiental: em busca da concretização de um ambiente ecologicamente equilibrado. In: REIS, J. R. dos; LEAL, R. G. (Org.). Direitos sociais e políticas públicas: desafios contemporâneos. Tomo 7. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2007, p. 2152. 127 MONTREAL. MONTREAL, Eduardo Novoa. El derecho como obstáculo al cambio social. México: Siglo Veintiuno, 1981, p. 35. 128 MONTREAL, loc. cit.

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caminhos, às vezes, pela via da transgressão de leis paradas no tempo, não

legitimadas e com vício de origem.

O diagnóstico de Montreal mostra-se adequado à nossa realidade, eis que,

em pleno século XXI, adotamos ainda as diretrizes de normas editadas em 1937

(Decreto-lei nº58/37) atualizadas sob influência de governo militar ditatorial em 1976

e 1979 (Lei do Parcelamento do Solo e Lei dos Registros Públicos), especialmente

quanto aos princípios registrais cujas barreiras são obstáculos às regularizações.

Nota-se que essas regras ainda não sofreram a influência dos novos (nem tão

novos) ares da Constituição Cidadã (1988), portanto há 20 anos, e do Estatuto da

Cidade (2001).

Assim sendo, não há dúvida que esse distanciamento entre o estático direito

e a dinâmica realidade social traz consequências negativas, mormente mostrando-

se um obstáculo ao acesso à moradia legal.

1.6 A atividade jurisdicional e a transmutação do f ato social em fato jurídico

Os caminhos que as políticas públicas de regularização fundiária têm à

disposição, numa concepção de direito mais atual e adequado ao movimento social

que predomina na Constituição, sem depender da incerta ação do legislador,

comprometido com a situação e com o sistema, passam por uma construção jurídica

elaborada pelo Estado-juiz129. É no âmbito do judiciário que surge mais facilmente a

adequação do fato social ao fato jurídico.

Não se trata somente de uma ação judicial sobre a administração ou sobre as

políticas públicas, mas, sim, também envolve a utilização de mecanismos,

instrumentos e institutos jurídicos, criados a partir das ações pró-ativas do Estado-

juiz, no sentido de flexibilização na admissibilidade dos imóveis irregulares ao

registro e à regularidade, na busca da realização constitucional. Cabe ao Estado-

129 Esse termo é utilizado por Rogério Gesta Leal em sua obra: LEAL, Rogério Gesta. O Estado-juiz na democracia contemporânea: uma perspectiva procedimentalista. Porto Alegre: Liv. Advogado, 2007.

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juiz, demandado ou mesmo ex-officio, a incumbência de promover e fazer valer as

prerrogativas dos princípios, direitos e garantias fundamentais, na medida em que

lhe cabe apreciar a lesão ou ameaça de direito por força do artigo 5º, inciso XXXV,

da CFB. Por conseguinte, as necessidades e interesses do cidadão lesado em seus

direitos somente são alcançados mediante a proteção judicial, quando as ações e

políticas públicas são insuficientes no atendimento da demanda. É Américo Bedê

Freire Junior que diz: “[...] devemos lembrar que a Constituição confere ao Supremo

sua guarda e que, no Brasil, qualquer juiz, pelo controle difuso de

constitucionalidade, deve, independentemente de alegação da parte, fazer

prevalecer a Constituição.”130

Esta atuação do judiciário deve ocorrer, não só no sentido de intervir, mas

sim, de fazer parte das políticas públicas. Ensina Freire Júnior131 que a concepção

positivista de mero aplicador da lei diminui a importância deste agente público que

tem poderes para completar o ordenamento jurídico ou interpretar a norma de modo

a viabilizar a justiça, mesmo que precise ir adiante do legislador. Inovar no sentido

de aplicar e adaptar a lei ao caso concreto, devendo tornar a Constituição efetiva e

conferir o direito da moradia e a função social da propriedade.

A ação judiciária, mesmo sendo um processo de intervenção nas relações

sociais e sendo o juiz um agente do Estado, implica a interação com as políticas

públicas regularizadoras e torna o poder judiciário como elemento destas. Sem o

risco de, atuando além da lei, atuar acima da lei, cuja proteção também é encargo

do Judiciário, ou de todos, como bem refere Gustavo Zagrebelsky, lembrado por

Freire Júnior:

Los jueces no son los señores del derecho en el mismo sentido en que lo era el legislador en el pasado siglo. Son más exactamente los garantes de la complejidad estructural del derecho em el Estado constitucional, es decir, los garante de la necesaria y dúctil coexistência entre ley, derechos y justicia. [...] El derecho no es um objeto de propriedad de uno, sino que

debe ser objeto del cuidado de todos. 132

130 FREIRE JÚNIOR, Américo Bedê. O controle judicial de políticas públicas. São Paulo: RT, 2005, p. 57. 131 FREIRE JÚNIOR, op. cit., p. 56. 132 ZAGREBELSKY, Gustavo. p. 153. Apud FREIRE JÚNIOR, op. cit., p. 58.

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E, completa o autor dizendo que a atuação do juiz deve ser na efetivação das

normas constitucionais, especialmente dos direitos fundamentais, mesmo que isso

implique desagradar minorias ocasionais.

Nesse aspecto, deve-se recordar que o princípio da igualdade e os direitos

fundamentais à propriedade e à moradia são assegurados pela Constituição Federal

do Brasil. O artigo 5º, inciso XXII, estabelece que “é garantido o direito de

propriedade”. Um dos direitos sociais mais fortemente tutelados pela sociedade

humana, a propriedade deverá atender função social como exigência constitucional

do artigo 5º, inciso XXIII. Concomitantemente, o artigo 6º estabelece que são direitos

sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, etc. Assim sendo, para a

construção da cidadania e dignidade da pessoa humana, inerentes ao Estado

Democrático de Direito, a igualdade, a propriedade e a moradia são elementos

indispensáveis e integrantes.

Nesse contexto, a propriedade referida no Texto Magno é formal, aquela

devidamente registrada, com título hábil no Serviço do Registro Imobiliário da

situação do imóvel, o que confere ao proprietário os mais amplos poderes (usar, fruir

e dispor), oponíveis “erga omnes”, bem como as obrigações sobre a coisa. De pouco

ou nada adianta a Constituição dizer que a pessoa tem direito à moradia e que a

propriedade tem função social, se o mesmo direito determina uma moradia e uma

propriedade que não está ao alcance da renda dessa pessoa e que, assim,

afastando-a do ideal, inviabiliza a função social da habitação.

As leis que regulamentam a matéria são plenamente conhecidas e as

políticas de natureza reguladoras têm claro objetivo de coordenar as ações dos

particulares, impondo-lhes sanções, inclusive criminais, como instrumentos para

coagir e coibir a prática ilegal de promover parcelamentos irregulares. Entretanto, o

que se visualiza é a persistência do crescimento desordenado da cidade. É certo

que o direito fundamental da moradia, constitucionalmente posto, deveria valer-se de

normas infraconstitucionais para concretizá-lo totalmente e estas não se deveriam

tornar-se obstáculos à realização do ideal constitucional.

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No âmbito das políticas reguladoras, como também no das políticas de

regularização, a situação de entraves é a mesma, pois ambas têm fundamento na

mesma Lei 6.766/79 que promove as regras. Torna-se senso comum que o direito

oferece obstáculos à regularização fundiária. É o que refere Betânia de Moraes

Alfonsin, ao dizer:

Os obstáculos (jurídicos, técnicos, registrários) enfrentados pelo Programa de Regularização Fundiária de Porto Alegre fizeram com que embora tivesse muita vontade política, a Prefeitura só obtivesse resultados medíocres na implementação do Programa. Em 1996 a Prefeitura de Porto Alegre atuava há seis anos com Regularização Fundiária. 65 assentamentos tinham sido indicados pelo Orçamento Participativo (e assumidos) para serem regularizados. No entanto, de 20.500 lotes em processo de regularização, apenas 605 tinham sido regularizados. 133

Aponta a jurista que a criminalização do loteamento ilegal134 como

instrumento para sustar o surgimento das ilegalidades não produziu efeitos e, ao

contrário, mostrou-se como entrave para a regularização. Alfonsin faz severa crítica

à “eterna corrida atrás do loteador clandestino enquanto estratégia/forma de

lidar/prevenir a proliferação do problema”, alertando que: “É preciso lidar com o

problema de tal forma que se considere que a população moradora dessa parte da

cidade é uma vítima da ilegalidade”. Questiona, ainda: “não seria uma postura

dualizante e ingênua?”135 De fato, nota-se um paradoxo para a administração

pública que, por um lado, criminaliza o loteamento e por outro é instada a sanar a

ilegalidade, como aponta Caseiro136.

Na esfera jurisdicional, nas ações penais porventura iniciadas por demanda

do Município contra potenciais loteadores irregulares, a atuação do judiciário não

pode afastar-se da concepção de aplicador da lei, posto que é o que se espera do

judiciário. Não obstante, em face das consequências do delito do loteador quando

133 ALFONSIN, Betânia de Moraes. A regularização fundiária como parte da política urbana. In: Anais do seminário de regularização fundiária. São Paulo, jun./2003. Disponível em: <http://www.irib.org.br>. Acesso em: 14.07.2007. 134 Conforme art. 50 e seguintes da Lei nº 6.766/79. 135 ALFONSIN, loc. cit. 136 “[...] colocar loteadores clandestinos na cadeia, não será, por si só, medida que repare o dano causado ao poder público, e via de reflexo a todos os integrantes da comunidade. Não pode haver dúvida que da ação delituosa decorrem atos de extrema complexidade, na esfera civil. O compromisso ou a venda de lotes a terceiros geram direitos em relação a este e mais do que isto, cria situações de fato, de ordem social”. CASEIRO, Luciano. Loteamentos clandestinos: consequências penais. São Paulo: EUD, 1979, p. 46.

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afeta a esfera civil do comprador em relação à consolidação da propriedade, a

atuação do judiciário deve ser pró-ativa na efetivação da Constituição e

reconhecimento da propriedade em nome de seu detentor, independentemente do

rumo que tome a questão no âmbito da esfera criminal.

Assim sendo, a decisão dos Tribunais está a demonstrar dois caminhos: o

primeiro de rechaçar a criminalidade aplicando a prescrição da ilicitude, como antes

visto; o segundo, de cobrar a responsabilidade do Município em promover ações de

regularização fundiária por força da lei e dos mandamentos constitucionais. Isso

ocorreu, por exemplo, na decisão da Décima Nona Câmara Cível do TJ/RS, cuja

elaboração intervém na administração pública e determina aplicação de políticas

efetivas para a regularização de loteamentos irregulares. Cabe destacar parte do

voto do relator, nos seguintes termos:

[...] Como o Município irá garantir este bem-estar, se a regularização de um loteamento feito de forma irregular fica em uma mera faculdade do Município regularizá-lo ou não ? Vale a pena lembrar que a regularização não é somente dar legalidade no "papel" a uma coisa ilegal mas sim executar saneamento básico no sentido de evitar qualquer tipo de catástrofe aos habitantes, atenuando danos ecológicos etc... causado pelo mau loteador. Portanto a nível constitucional não é mera faculdade do Município ou do Distrito Federal, quando for o caso, mas um estado-dever de regularizar um loteamento executado de forma irregular, quando isto torna-se impossível por parte do loteador, assim o Município é parte legítima no pólo passivo, quando acionado para regularização de loteamento por parte do Ministério Público. Sob a ótica do art. 40 caput da Lei 6.799/79, pode-se chegar a mesma conclusão, ou, seja a expressão poderá, dando em princípio conotação de mera faculdade na realidade, trata-se de um poder que se transforma em dever "quando for o caso" previsto no próprio caput do referido artigo. O dever, em lugar de faculdade, da Prefeitura Municipal se inicia após tomar ciência que o loteamento está irregular e com o não atendimento, pelo loteador, da notificação, desde que este esteja sem nenhuma condição económica e financeira devidamente confirmada pela Prefeitura, devendo se concretizar, quando o bem estar dos habitantes não estiver devidamente garantido, tudo conforme o artigo 182 caput da Constituição Federal que determina "garantir o bem-estar de seus habitantes. Pois bem, desde que o pressuposto maior que é a garantia do bem estar dos habitantes, (art. 182, CF) não estiver assegurado, a antinomia verbal "pode" assume as proporções e o efeito de "deve". Carlos Maximiliano. Concluo que a Legitimidade passiva do Município é legítima em caso de loteamento irregular podendo somente ser afastada com a análise do mérito." ("Parcelamento do Solo, Loteamento”, p. 17/19”, Editora Jurídica Mizuno, 1998).” [nosso grifo].137

137 Acórdão. Reexame Necessário nº 70018523522, Décima Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Desembargador Guinther Spode. Julgado em: 17/04/2007.

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Esta intervenção do judiciário na esfera do executivo, no sentido de que a

aplicação da norma constitucional deve prevalecer sobre a discricionariedade do

administrador público, demonstra na prática o que Freire Júnior refere como ação

legítima e justificada do Estado-juiz ao dizer:

Se o Estado deixar de adotar medidas necessárias à realização concreta dos preceitos da Constituição, em ordem a torná-los efetivos, operantes e exeqüíveis, abstendo-se, em consequência de cumprir o dever de prestação que a Constituição lhe impôs, incidirá em violação negativa do texto constitucional. Desse ‘non facere’ ou ‘non prestare’, resultará a inconstitucionalidade por omissão, que pode ser total, quando nenhuma providência é adotada ou parcial, quando é insuficiente a medida efetivada pelo poder Público.138

Além desse fator, a atuação do judiciário serve como alerta ao administrador

público no sentido de que passe a adotar, como política pública regularizadora dos

loteamentos irregulares, os procedimentos constitucionais de assumir as

prerrogativas legais que lhe são impostas e utilizar o arcabouço jurídico de que

dispõe, privilegiadamente. Especificamente, em relação à regularização do

loteamento, seja nos seus aspectos urbanísticos quanto nos burocráticos,

independentemente da ação do loteador ou do encaminhamento criminal do

problema, o poder público deve utilizar o privilégio que a lei lhe concede de

promover desapropriações e expropriações das áreas irregulares e efetivar a

regularização. Caso seja omissa, a administração pública pratica crime maior do que

a própria formação do loteamento ilegal, haja vista o princípio da legalidade de que

se reveste a ação do poder público, posto que a ação do loteador é

descompromissada com qualquer preceito legal.

1.6.1 O Projeto More Legal como fator de desburocra tização e de garantia da

realização constitucional da propriedade consolidad a

Outra forma possível de atuação do poder judiciário, na questão da

regularização fundiária, está na sua capacidade de agir também sobre os aspectos

burocráticos ligados ao registro dos imóveis e obtenção da matrícula imobiliária.

138 FREIRE JUNIOR, Américo Bedê. O controle judicial de políticas públicas. São Paulo: RT, 2005, p. 84.

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Nessa função o judiciário age administrativamente e não jurisdicionalmente,

propriamente dito, no exercício das prerrogativas de estabelecer a fiscalização e

normatização dos serviços de registro de imóveis139.

Nessa linha de ação, o judiciário tem condições de promover a realização dos

objetivos constitucionais de regularização das propriedades irregulares e do acesso

à moradia. Essa atividade administrativa (normativa e fiscalizadora), no âmbito do

judiciário é exercida pela Corregedoria-Geral da Justiça (CGJ), do Estado membro.

É justamente nessa função que a CGJ tem competência para estabelecer

procedimentos que facilitem a regularização e permitam a superação de alguns

obstáculos legais, sem descuidar da observância da legalidade e dos princípios

registrais da continuidade e da especialidade, já referidos.

Tendo em mente que a consolidação da propriedade leva-nos aos

procedimentos jurídico-administrativos da regularização fundiária, a cargo do Ofício

do Serviço do Registro Imobiliário, órgão existente como parte do sistema legal e de

segurança jurídica, que para ser igualitário necessita acolher a todos que o

demandam, é justamente no âmbito do registro imobiliário que se apresenta a

possibilidade da ação administrativa do judiciário e fonte do direito.

A burocratização contida na legislação e os obstáculos criados dão margem

às propriedades informais, cujo caráter principal é a negação ao seu titular do

acesso ao correspondente título que lhe assegure plenos direitos. O titular do imóvel

ilegal tem seu direito de propriedade diminuído por falta da matrícula, não lhe sendo

permitido o acesso ao mercado formal, à concessão de garantias reais, ao

financiamento imobiliário, entre outros.

Porém, a característica marcante e fundamental desta propriedade incompleta

é a irreversibilidade, ou seja, a situação de propriedade do lote irregular, mesmo não

formal, é consolidada e de difícil reversão, sem causar maiores danos do que sua

139 Conforme disposto no art. 37, da Lei nº 8.935/94. Esse artigo determina que a fiscalização será exercida pelo juízo competente, explica Walter Ceneviva, que: “O juízo competente se enquadra no rol dos tribunais e juízes dos Estados e do Distrito Federal, cujas funções são definidas nos arts. 125 e 126 da Constituição Federal”. CENEVIVA, Walter. Lei dos notários e registradores comentada. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 231.

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própria constituição ou existência representam. O proprietário, via de regra, já

consolidou sua posse e edificou moradia no local, estabelecendo o vínculo familiar

juntamente ao vínculo patrimonial, tornando-se um direito adquirido, um bem de

família, que deve ser amplamente protegido pelo ordenamento jurídico pátrio.

Embora decorrentes de circunstâncias diversas, seja fruto de irregularidade

frente à não execução do projeto de parcelamento ou de sua execução desconforme

o projeto, ou ainda, até mesmo decorrente da falta de projeto de parcelamento, o

loteamento precário apresenta situação fática que não pode ficar ao desabrigo da

ordem constitucional, determinada pelo caráter social que a Constituição Federal

impõe (art. 5º, inciso XXIII), a qual, no dizer de Eros Roberto Grau: “visa atender às

funções do urbanismo, ou seja, está vinculada a um ‘destino urbanístico’140 definido

pelo Poder Público”141.

Da mesma maneira, o mandamento Constitucional do direito social à moradia

disposto no artigo 6º, introduzido pela EC nº 26, não pode ficar ao desabrigo do

Estado-juiz quando os poderes executivo e legislativo não proporcionarem tal

desiderato, ou seja, quando por burocracia administrativa e legal obstaculizarem o

acesso à moradia. Nas palavras de Freire Junior: “[...] não que o Judiciário deva

estar acima dos demais poderes, mas quando a tarefa não for cumprida, não pode o

juiz ser coautor da omissão e relegar a Constituição a um nada jurídico”.142

Nessa linha, a atuação da CGJ do Estado do Rio Grande do Sul tem servido

de parâmetro e exemplo a todo país por meios das medidas inovadoras que

implementou no sistema extrajudicial, com destaque para o denominado “Projeto

More Legal”, atualmente na sua terceira edição143. Trata-se da possibilidade de ação

em um processo, não contencioso, de iniciativa do possuidor do lote irregular ou da

140 COLLADO, Pedro Escribano. La propriedad privada urbana. Madrid: Montecorvo, 1979, p. 174. Apud GRAU, Eros Roberto. Direito urbano: regiões metropolitanas, solo criado, zoneamento e controle ambiental, projeto de lei de desenvolvimento urbano. São Paulo: RT, 1983, p. 71. 141 COLLADO, loc. cit. 142 FREIRE JÚNIOR, Américo Bedê. O controle judicial de políticas públicas. São Paulo: RT, 2005, p. 70/71. 143 O atual More Legal 3, instituído pelo Provimento nº 28/2004-CGJ/RS, foi concebido originalmente como Projeto More Legal por meio do Provimento nº 39/1995-CGJ/RS, o qual posteriormente sofreu alterações no Provimento nº 17/99-CGJ/RS passando a denominar-se More Legal 2 e que hoje está incluído no Provimento nº 32/06 (Consolidação Normativa Notarial e Registral do RGS, nos artigos 532 a 544).

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municipalidade junto ao registrador público, o qual remete os autos ao juízo

competente (direção do Foro) para chancela judicial e posterior acolhimento no fólio

real. Não é considerado lei, por ausência de processo legislativo e sanção executiva,

mas trata-se de uma norma administrativa a ser seguida e aplicada em todos os

municípios do Estado-membro.

Nota-se na implantação deste procedimento uma ação do Poder Judiciário,

por meio de seu órgão normativo e fiscalizador (CGJ), que institui mecanismos

legais e normas de procedimentos relacionados à regularização fundiária e o acesso

de títulos ao serviço de registro imobiliário de forma facilitadora. Isso indica uma

efetiva orientação e participação nas políticas públicas de regularização, a qual

surge como proteção às situações consolidadas.

Para tanto, a norma considera situação consolidada aquela que se apresenta

com um prazo considerável de ocupação da área, da existência de edificações e

moradias, com a localização de vias de circulação definidas, com equipamentos e

áreas públicas comunitárias disponíveis, e que indique uma situação de

irreversibilidade da posse que induza ao domínio. Com isso, o procedimento resulta

na obtenção da matrícula do imóvel e a consequente individualização (em nome do

proprietário) e a caracterização (descrição pormenorizada) do imóvel, como único

título legal e válido de comprovação de propriedade e regularidade do imóvel.

Ademais, pode-se afirmar que o resultado maior é a mudança de uma

situação em que a propriedade passa a ser um ativo e não um passivo para a

sociedade, ingressando no mercado e fazendo a inserção legal do seu proprietário

na sociedade. Passa a ser cidadão pleno.

Na concepção medular do More Legal está o conceito de que a simplicidade é

o segredo para obter o resultado. Através desse procedimento foram diminuídas as

exigências para o efetivo registro do parcelamento no serviço do registro de imóveis.

Entendeu o órgão normativo e fiscalizador dos atos judiciais e extrajudiciais que os

requisitos urbanísticos e as exigências fiscais e administrativas não devem ser

causa de obstáculos ao efetivo registro de lotes irregulares com posse e situação

irreversível. Trata-se de uma clara construção legal que permite alcance e efetivação

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dos princípios fundamentais constitucionais e pode-se enquadrar como uma legítima

diretriz para as ações de políticas públicas de regularização fundiária.

O programa More Legal 3 como indicador de política pública influenciou a

edição da Lei nº 9.785/99, que introduziu modificações na Lei do Parcelamento do

Solo (Lei nº 6.766/79)144, trazendo facilidades, prerrogativas e incumbências ao

poder público federal, estadual e municipal para resolver as questões fundiárias, que

devem não mais estar ou permanecer dependentes ou atreladas à

discricionariedade executiva.

O Programa representou um avanço no sentido da realização constitucional

da moradia e tornou-se um modelo adotado por outros Estados da federação

brasileira, como é o caso do Estado de Santa Catarina que criou o Lar Legal e de

Alagoas com o Programa Moradia Legal. No Estado de São Paulo foi objeto de

inúmeros seminários, debates e audiências públicas, servindo como parâmetro de

discussão e implementação de programas de regularização de loteamentos145, que

culminaram na edição do Decreto nº 52.052 de 13 de agosto de 2007, que institui a

política pública estadual do Programa de Regularização de Núcleos Habitacionais -

Cidade Legal, no âmbito da Secretaria da Habitação do Estado de São Paulo.

Essas medidas vêm ao encontro de outros procedimentos já recomendados,

indicadores de uma política que consiste em proceder com segurança jurídica,

agilidade e presteza, o registro do loteamento, desmembramento ou fracionamento

de imóveis urbanos ou urbanizados, com objetivo de assegurar ao cidadão não

somente a posse e propriedade do imóvel, mas sua imprescindível titulação.

144 Conforme Art. 18, § 4º: “O título de propriedade será dispensado quando se tratar de parcelamento popular, destinado as classes de menor renda, em imóvel declaração de utilidade pública, com processo de desapropriação judicial em curso e imissão provisória na posse, desde que promovido pela União, Estados, Distrito Federal, Municípios ou suas entidades delegadas, autorizadas por lei a implantar projetos de habitação”; e, Art. 2º, § 6º ”A infra-estrutura básica dos parcelamentos situados nas zonas habitacionais declaradas por lei como de interesse social (ZHIS) consistirá, no mínimo, de: I - vias de circulação; II - escoamento das águas pluviais; III - rede para o abastecimento de água potável; IV - soluções para o esgotamento sanitário e para a energia elétrica domiciliar.” 145 Ver em: <http://www.irib.org.br> salas temáticas sobre regularização fundiária.

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1.6.2 Outras inovações facilitadoras da regularizaç ão fundiária no âmbito

jurisdicional-administrativo

Outras providências facilitadoras da regularização fundiária são provenientes

do mesmo foro judicial. Nesse viés, conforme o Provimento nº 32/06-CGJ/RS

(CNNR), artigo 506, a Municipalidade pode, por meio de simples requerimento, obter

o registro no fólio real, das áreas de domínio público, ou seja, a abertura de

matrícula das áreas públicas ou de uso comum da população, das vias de circulação

e comunicação, das praças, dos espaços livres e das áreas destinadas a edifícios

públicos e outros equipamentos urbanos. Como consequência, as áreas objetos

desta afetação ficam destacadas (averbadas) na matrícula original (mãe) impedindo

que façam parte de comercialização indevida e garantindo a futura regularização do

loteamento, uma vez que parte das obrigações do loteador estarão cumpridas

compulsoriamente.

Outra medida efetiva, constante do Provimento nº 32/06-CGJ/RS (CNNR),

artigo 506 e seguintes, demonstra a proteção judicial ao acesso à moradia legal.

Trata-se da possibilidade de ser acolhido no Serviço do Registro de Imóveis toda

forma de contrato de compra e venda que tenha como objeto áreas urbanas, mesmo

que em desatenção às disposições da Lei nº 6.766/79 ou às leis municipais, desde

que celebrado antes de 20 de dezembro de 1979, data da entrada em vigor da lei

federal. Aplica-se, também, a todos aqueles documentos que importarem na

formalização de parcelamento já efetivado de fato, mediante lotação individual das

partes fracionadas feita pelo Município para fins tributários. Mas a norma de maior

expressão é, sem dúvida, a que determina a possibilidade de acolhimento ao

registro dos parcelamentos que atendam as exigências de dimensionamento fixadas

pelo poder público municipal, independentemente de toda a documentação exigível

pelo artigo 18 da Lei nº 6.766/79, ou seja, muitos documentos entre títulos, certidões

negativas, atos de aprovação, declarações e editais, tornam-se dispensáveis para o

registro que é feito de forma simplificada, célere e sem perder a segurança jurídica

necessária.

A política indicada pelo judiciário pretende enfrentar a regularização de títulos

de domínio com a legalização ou regularização de imenso contingente de lotes de

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terrenos urbanos e respectivas moradias. Providência essa necessária à medida que

crescem os aglomerados urbanos e proporcionalmente se intensificam os casos de

não-regularização do instituto constitucional da propriedade, situação à qual o

Estado-juiz não pode ficar inerte ou omisso. Portanto, com base nos preceitos

constitucionais que consagraram o direito de propriedade e à moradia, cujo objetivo

visa atender ao interesse social, principalmente em relação àqueles menos

afortunados que possuem imóveis em situações irregulares e irreversíveis e àqueles

que não conseguem que o registro de sua propriedade reflita a realidade, é que o

judiciário pode instituir planos emergenciais de ação pública, cuja estratégia objetiva

a regularização das propriedades informais, dispensando exigências outras, que não

a documentação relativa à boa origem do imóvel e a simplificação de procedimentos.

Essa ação do Poder Judiciário justifica-se no que Freire Júnior146 refere como:

“a não efetivação de direito fundamental expresso em norma constitucional passa a

configurar uma omissão qualificada que implica possibilidade de existir controle

dessa omissão”. No contexto, resta demonstrado que o judiciário pode ir além do

controle das políticas públicas e de sua implementação, partindo para uma ação pró-

ativa, de construção de políticas públicas de regularização fundiária por meio da

criação de instrumentos e processos desburocratizantes, que eliminem e superem

alguns dos obstáculos impostos pelo direito ao acesso à moradia legal, como

também compelir o Estado, enquanto poder local, a promover as regularizações

necessárias.

146 FRERE JÚNIOR, Américo Bedê. O controle judicial de políticas públicas. São Paulo: RT, 2005, p. 68.

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2 ASPECTOS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE REGULARIZAÇÃO DA

PROPRIEDADE PRECÁRIA EM CAXIAS DO SUL

2.1 As leis sempre atrás dos acontecimentos sociais

A preocupação com o ordenamento do uso do espaço urbano e o atraso na

edição das leis apropriadas não é recente em Caxias do Sul. Maria Abel Machado

informa que a cidade sofreu um crescimento muito rápido e desordenado após a

Segunda Guerra Mundial, provocando a necessidade da promulgação, em 1951, de

um novo Código Administrativo, em substituição ao Código de 16 de fevereiro de

1927147, que já fora complementado pelo Ato 31 de 8 de outubro de 1929 que baixou

instruções para a demarcação de lotes e abertura de ruas. Lembra a autora que, no

período da guerra, algumas das principais indústrias foram declaradas pelo governo

federal “empresas de interesse militar” e deviam trabalhar com capacidade plena

para as forças armadas brasileiras, a ponto do operário não poder abandonar o

posto de trabalho sob pena de ser considerado desertor. Dessa forma, a cidade teve

um aumento substancial na produtividade industrial e nas atividades afins,

especialmente o comércio, com aumento de salários e da procura de bens de

consumo e, consequentemente, da população carente de moradia.

As políticas de parcelamento do solo da época, como hoje, chegaram após os

acontecimentos sociais. Refere Machado que “a legislação não conseguiu

acompanhar a velocidade dos loteamentos que cresciam desordenadamente, sem

observar as exigências mínimas de urbanização”148. Nesse quadro, cada loteamento

era regularizado posteriormente à sua implantação, de maneira que o primeiro

registro de loteamento ocorreu somente em 1947, do Bairro Medianeira, e o

segundo em 1949, da Vila Imperial, ambos aprovados pela Câmara de Vereadores

porque o Prefeito Municipal negou-se a sancionar a lei, por considerá-los em

desacordo com o Ato nº 31 de 1929, o que lhes atribuía a categoria de

“clandestinos”.

147 MACHADO. Maria Abel. Construindo uma cidade: história de Caxias do Sul, 1875/1950. Caxias do Sul: Maneco, 2001, p. 90. 148 MACHADO, op. cit., p. 112.

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Nesse viés, a Lei nº 304, de 08 de maio de 1950, que instituiu o Plano Diretor,

estimulou e regulamentou a verticalização da área central da cidade e demonstrou a

preocupação em criar uma política de ocupação do solo urbano, tendo como maior

efeito, “garantir a elevação dos preços dos terrenos e dos imóveis e possibilitando

uma maior lucratividade a todos aqueles que se dedicavam ao ramo imobiliário.”149

2.2 O problema habitacional em Caxias do Sul e a le gislação pertinente

O problema do loteamento ilegal e da propriedade precária faz parte de um

contexto social, presente com diferença de grau e de intensidade em todas as

cidades brasileiras. Ainda que apresentem tamanhos e atividades diversas, os

problemas da habitação, transportes, água, esgotos, educação e saúde são comuns

e demonstram enormes carências. Quanto maior a cidade for, mais visíveis serão

essas mazelas. Informa Milton Santos que esse processo se amplia a partir do final

do século XX, devido à “urbanização corporativa”150, identificada como sendo aquela

empreendida sob o comando dos interesses das grandes firmas, que “constitui um

receptáculo das conseqüências de uma expansão capitalista devorante dos recursos

públicos, uma vez que esses são orientados para os investimentos econômicos, em

detrimento dos gastos sociais”151(sic).

De fato, isso se comprova em Caxias do Sul, local em que o problema

fundiário urbano surge diretamente ligado à evolução econômica da cidade que, no

período entre 1950 e 1975 demonstra o crescimento do número de empresas na

ordem de 270%, passando de 413 indústrias para 1443 e de 450 casas comerciais

para 1671152. No mesmo período, o desenvolvimento social e populacional é de

144%, passando o número de habitantes de 59.533 para 145.502153. Como se nota,

o panorama é decorrência de políticas públicas voltadas para a ideologia

149 MACHADO, Maria Abel. Construindo uma cidade: história de Caxias do Sul, 1875/1950. Caxias do Sul: Maneco, 2001, p. 113. 150 SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. 5. ed. São Paulo: EDUSP, 2005, p. 105. 151 SANTOS, loc. cit. 152 GIRON, Loraine Slomp. Caxias do Sul: evolução histórica. Porto Alegre: Grafosul, 1977, p. 76. 153 BRUGALLI, Alvino Melquides. Caxias Grande do Sul: dados e números do 1º pólo econômico do interior do Rio Grande. Caxias do Sul: De Zorzi, 1988, p. 13.

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desenvolvimentista dos anos 1950 e a posterior ideologia do crescimento e do Brasil

potência dos anos 1960 e 1970, as quais, afirma Santos: “justificavam e legitimavam

a orientação do gasto público em benefício de grandes empresas, cujo desempenho

permitiria ao Brasil aumentar suas exportações para poder equiparar-se mais

depressa e melhor”154.

Nesse contexto, a ação do administrador público caxiense era, assim, voltada

aos gastos com o setor produtivo e a indigência dos cofres municipais conduzia à

atração de atividades capazes de gerar empregos e pagar impostos e, assim,

ampliar as receitas locais, ou seja, mais indústrias e comércio que exigem mais

investimentos em infraestrutura da cidade econômica.

Dessa maneira, evidencia-se em Caxias a principal característica da

urbanização corporativa, qual seja a ocupação de vastas superfícies entremeadas

de vazios. Na dicção de Santos, as consequências dessas “cidades espraidas” são,

entre outras: “o tamanho da urbe, a carência de infraestruturas, os problemas de

transporte, a especulação fundiária e imobiliária e a periferização da população

pobre”155, sendo que esses fatores produzem a proliferação dos assentamentos

urbanos precários, como expressão do modelo centro-periferia adotado pelo sistema

corporativo.

Nessa construção, cada qual das realidades alimenta as demais e o

crescimento urbano é também o crescimento sistêmico dessas características. A

cidade cresce porque há especulação fundiária e imobiliária; há especulação porque

há vazios; porque há vazios, as cidades são grandes; e assim por diante. Explica

Santos que: “havendo especulação, há criação mercantil da escassez e acentua-se

o problema do acesso à terra e à habitação”156, o que conduz à periferização da

população mais pobre e, de novo, ao aumento do tamanho urbano. A especulação é

alimentada, ainda, pela valorização diferenciada das diversas frações do território

urbano, em face das carências de serviços que lhes correspondem. Os transportes

urbanos seguem essa dinâmica e oneram os pobres que têm que pagar mais caro

por seus deslocamentos e pelos bens e serviços mais dispendiosos nos bairros. “E 154 SANTOS, op. cit., p. 113. 155 SANTOS, op. cit., p. 107. 156 SANTOS, loc. cit.

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isso fortalece os centros em detrimento das periferias, num verdadeiro círculo

vicioso”157, completa o geógrafo. Nessa sua análise, a especulação fundiária e

imobiliária alimenta-se da dinâmica criação de locais privilegiados e da disputa entre

as atividades econômicas ou pessoas por estas localizações.

Assim, a sociedade urbana torna certos pontos mais acessíveis e atrativos em

função da sua localização e serviços, de maneira que as atividades ou pessoas com

maiores recursos buscam apropriar-se dessas áreas privilegiadas que lhes pareçam

mais convenientes, segundo os ditames do momento. No diagnóstico de Santos: “O

planejamento urbano acrescenta um elemento de organização ao mecanismo de

mercado. O marketing urbano (das construções e dos terrenos) gera expectativas

que influem nos preços”.158 A planificação urbana é sobretudo técnica e voltada para

o desenvolvimento econômico da cidade, quando o que se necessita é uma

planificação sociopolítica, afirma ele.

Agrega-se e realimenta o processo especulativo, a promessa ou expectativa

de lucro futuro obtido com a terra urbana, loteada ou não, justificado pela demanda

crescente por lotes, em face à expansão das classes médias e à chegada de

migrantes pobres à cidade. Entre os anos 1960 e 1980, os habitantes de Caxias do

Sul originavam-se 59,30% de outros municípios ou Estados, em busca de

oportunidade e emprego: 38,8% na indústria, 2,7% no comércio e 11,1% na

prestação de serviços, como informa Alvino Melquides Brugalli159. Dessa forma, a

apropriação acumulativa e sem utilização de terras agrava a escassez, bem como

conduz a que as extensões incorporadas ao perímetro urbano fiquem cada vez

maiores. Assim, Santos refere que: “A organização interna de nossas cidades,

grandes, pequenas e médias, revela um problema estrutural, cuja análise sistêmica

permite verificar como todos os fatores mutuamente se causam, perpetuando a

problemática”160.

157 SANTOS, op. cit., p. 107. 158 SANTOS, loc. cit. 159 BRUGALLI, Alvino Melquides. Caxias Grande do Sul: dados e números do 1º pólo econômico do interior do Rio Grande. Caxias do Sul: De Zorzi, 1988, p. 16. 160 SANTOS, loc. cit.

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2.2.1 A política desenvolvimentista como incremento da especulação urbana e

das irregularidades

As políticas públicas federais de moradia optaram pelo viés financeiro como

medida de solução para o problema da expansão territorial da cidade, transferindo

recursos públicos para o setor privado suprir a demanda via crescimento vertical. Na

dicção de Santos: “O estabelecimento de um mercado da habitação ‘por atacado’, a

partir da presença do Banco Nacional da Habitação (BNH) e do sistema de crédito

correspondente, gerou novas expectativas, infundadas para a maioria da população,

mas atuantes no nível geral”161. Desse modo, a criação vertical de solo urbano,

como em Caxias, estimulado pelo sistema BNH162 não surtiu o efeito proposto, na

medida em que o produto se revelou inacessível à parcela da população que

constrói a periferia, e os imóveis edificados acabaram tornando-se mais uma

mercadoria a disposição da especulação imobiliária, realimentando o problema.

A razão de criação do BNH dava-o como instrumento de melhoria das

condições de moradia dos habitantes urbanos. Deveria realizar esta tarefa mediante

a utilização de recursos arrecadados junto a todos os trabalhadores, por meio de

suas poupanças compulsórias juntadas no Fundo de Garantia por Tempo de Serviço

(FGTS), canalizadas para o financiamento da construção de apartamentos e casas.

Nesse quadro, os conjuntos residenciais para as classes de menor renda, edificados

por empresas privadas com tal dinheiro público, situaram-se também,

predominantemente, nas periferias urbanas. Isso porque, buscando o lucro das

empresas, a edificação nos terrenos afastados exigia a extensão de serviços

públicos como luz, água, pavimentação e transporte, cuja infraestrutura era custeada

pelos mesmos recursos e executada pelas mesmas empresas, que os consumiam

por completo. Explica Santos: “É desse modo que o BNH contribuiu para agravar a

tendência ao espraiamento das cidades e para estimular a especulação

imobiliária”163. O modelo produz novos vazios urbanos ao mesmo tempo em que a

população, sem poder pagar pelo preço, deve deslocar-se para mais longe,

161 SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. 5. ed. São Paulo: EDUSP, 2005, p. 107. 162 Empresa pública financeira, instituído pela Lei nº 5.762, de 14 de dezembro de 1971, órgão central e gestor do Sistema Financeiro da Habitação (SFH), extinto por incorporação à Caixa Econômica Federal (CEF) pelo Decreto-Lei nº 2.291 de 21.11.1986. 163 SANTOS, op. cit., p. 124.

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ampliando a periferização. Completa o geógrafo dizendo que: “A rapidez com que se

instala o processo de verticalização tem como paralelo um processo de

suburbanização”, e o resultado é a expansão geográfica da cidade.

De fato, ao final na década de 1980, informa Brugalli,164 a situação em Caxias

do Sul revela programas habitacionais com 343 unidades concluídas e 4322 em

projeto de construção pelo programa Cohab165. Na questão de loteamentos

populares, em construção pelo programa Prolurb166, apresenta-se com 1537 lotes

urbanizados. De outra banda, a evolução dos loteamentos irregulares, que Brugalli

denomina de “núcleos de sub-habitação”, deu-se de forma vertiginosa, de 3 núcleos

existentes em 1968 passou para 15 núcleos em 1973, revelando um acréscimo de

400% em 5 anos. Após isso, o índice de crescimento foi de 60%, até 1980, quando

alcançou a cifra de 24 núcleos, para novamente dar um salto de 346% atingindo 107

núcleos em 1984, com 4622 moradias irregulares, correspondendo a 21.300

habitantes, no total.

Esses assentamentos foram verificados em áreas públicas, áreas verdes e

em áreas privadas invadidas ou adquiridas. Porém, segundo Brugalli, a maior

incidência estava em loteamentos irregulares em que o morador tinha a posse, mas

não dispunha de serviços públicos essenciais tais como água, luz, transporte,

pavimentação, escolas, etc.167

O perfil do consumidor do lote irregular pode ser identificado nos dados do

Sindicato da Construção Civil, publicados em 2005168, cujo trabalho aponta para

déficit habitacional em Caxias do Sul, na ordem de 3.500 moradias na faixa de 1 a 2

salários mínimos, representando 12%, enquanto na faixa de renda de 3 a 5 salários

mínimos, um déficit de 10.761 moradias, equivalente a 38,04% da demanda, e de

13.000 moradias, ou 49,50%, na faixa acima dos 5 salários mínimos. Sabe-se que

nas primeiras categorias encontram-se as pessoas que adquirem o imóvel irregular,

164 BRUGALLI, Alvino Melquides. Caxias Grande do Sul: dados e números do 1º pólo econômico do interior do Rio Grande. Caxias do Sul: De Zorzi, 1988, p. 15. 165 Companhia da Habitação do Estado do Rio Grande do Sul (COHAB). 166 Programa Lotes Urbanizados (Prolurb) da Cohab-RS e Prefeitura Municipal de Caxias do Sul. 167 BRUGALLI, op. cit., p. 15. 168 Sindicato das Empresas da Construção Civil, Sinduscon, seção Caxias do Sul. Diagnóstico do déficit habitacional de Caxias 2005. In: Jornal Pioneiro, de 15 de julho de 2007, p. 20 e 21.

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pois, os da última têm capacidade de pagamento e encontram suporte nos

financiamentos bancários ou das próprias construtoras. Assim, pode-se identificar o

público alvo dos loteadores irregulares na ordem de 50% da demanda por moradia

nas cidades, número esse que é compatível com as irregularidades detectadas,

conforme estudos do Ministério das Cidades.

2.2.2 Os primeiros passos no rumo da regularização administrativa e no

caminho da simplificação dos procedimentos

A radiografia dos loteamentos irregulares, promovida em exaustivo trabalho

de 7 meses pela então criada Secretaria do Desenvolvimento Urbano da Prefeitura

Municipal de Caxias do Sul (SDU)169, identificou em 1985 existência de 256

loteamentos, o que revelava um crescimento de 139% em relação a 1984. Esses

loteamentos, com quase 20mil lotes criados, ocupavam uma área de 1040hectares e

226 deles localizavam-se no perímetro urbano, os demais incorporavam

120hectares do espaço rural ao processo de periferização e expansão geográfica da

cidade. Entretanto, o maior efeito da pesquisa foi o de expor a dura realidade de

tendência inexorável ao crescimento desordenado e a necessidade de iniciativas

públicas para enfrentar o problema.

Para tanto, a SDU identificou os loteamentos passíveis de regularização,

dividindo-os em três grupos, dentro do critério de cumprimento da legislação vigente,

ou seja a Lei Municipal nº 2.088/72 que disciplinava o parcelamento do solo, desse

modo, 181 loteamentos apresentavam-se respeitando a legislação necessitando de

pequenas correções, 41 loteamentos necessitavam adequações maiores e 34

loteamentos não respeitavam a legislação urbanística e sua regularização não era

possível. Nesse cenário, até 1987 foram regularizados administrativamente 30

loteamentos, perfazendo 2336 lotes, e adequados à regularização 21 loteamentos

com 2645 lotes, estes aguardando a aprovação de lei específica170. Assim, as

políticas públicas de regularização municipal alcançaram o percentual de

169 A Secretaria do Desenvolvimento Urbano do município foi criada pela Lei Municipal nº 2966/85. 170 CAXIAS DO SUL. Informativo da Secretaria de Desenvolvimento Urbano de Caxias do Sul, nº 4, ano 1987, p. 14.

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regularização de 19,92%, em relação à totalidade de irregularidades e de 28% dos

loteamentos adequados à legislação. Essas cifras demonstram a complexidade na

equação do problema, haja vista tratar de áreas que exigiam somente

procedimentos administrativos e legais para sua regularização, não demandando a

necessidade de grandes obras para seu enquadramento legal e, mesmo assim, foi

pequeno o avanço.

A lei específica que definiu a política pública e veio para incrementar as

regularizações foi a Lei Municipal nº 3.292, de 25 de novembro de 1988, que instituiu

o Programa de Regularização dos Parcelamentos Irregulares. O diploma manteve o

critério para diferenciação do nível de irregularidade em que se enquadravam os

respectivos loteamentos para fins de admissibilidade no programa, ao mesmo tempo

em que nomeou cada um dos loteamentos passíveis de regularização administrativa

e seus respectivos níveis de enquadramento.

Nessa construção, pertenciam ao Nível I os parcelamentos que dispunham,

obrigatoriamente, de área verde, de lotes, quadras e logradouros demarcados em

planta de situação e localização com medidas e confrontações de lotes, quarteirão,

vias de circulação e áreas institucionais, e com, no mínimo, dois equipamentos

urbanos dentre os seguintes: a) vias de circulação; b) rede de esgoto implantada; c)

rede hidráulica conforme normas do Serviço Autônomo de Água e Esgoto (SAMAE);

d) rede de energia elétrica implantada conforme normas da Companhia Estadual de

Energia Elétrica (CEEE); e) rede de iluminação pública implantada conforme normas

da Secretaria dos Serviços Públicos Urbanos (SSPU). A ausência justificada de área

verde poderia ser substituída por mais um dos equipamentos de infraestrutura.

No Nível II estariam os loteamentos que não cumprissem os requisitos do

primeiro nível e no Nível III os parcelamentos situados em áreas onde esse tipo de

empreendimento fosse vedado por disposição expressa da lei, ou seja, em áreas

públicas ou impróprias por vedações ambientais, como por exemplo: as áreas de

bacias de captação, de preservação permanente ou declividade acentuada. A

regularização somente seria possível nos loteamentos no Nível I. Os do segundo

nível deveriam avançar no processo e completar os requisitos para ascender ao

primeiro.

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Dessa maneira, o Programa estava dirigido aos loteamentos irregulares

promovidos por loteadores individuais ou empresas, em áreas privadas e próprias

para tais empreendimentos, cuja maior irregularidade administrativa consistia na

falta de aprovação prévia pela Prefeitura Municipal, mas que se apresentavam

adequados, minimamente, aos requisitos legais. Ou seja, voltada aos

assentamentos que, em razão de sua implantação ilícita, eram considerados

loteamentos clandestinos em relação ao conhecimento do poder público municipal e

loteamentos irregulares em relação ao registro imobiliário e publicidade pública,

conforme a classificação de Gasparini171. Não obstante, em face da sua constituição

não afrontar sobremaneira a Lei nº 6.766/79 e a lei específica municipal vir a

simplificar os requisitos de enquadramento, colocavam-se como aptos à fácil

regularização e adequação às normas urbanas. Contrário senso, os demais

loteamentos não arrolados na lei específica, além de clandestinos e irregulares

continham vícios insanáveis a impedir a regularização.

A política pública implantada definiu e simplificou a documentação a ser

encaminhamento para o processo de regularização, bem como, o próprio processo

restou facilitado. Na mesma linha, o art. 6º definiu os critérios de preferência no

encaminhamento dos processos, voltados para: a maior existência de infraestrutura,

maior ocupação populacional, maior proximidade com a malha urbana, maior

antiguidade e maior nível de organização popular residente. De modo que,

administrativamente, restou bem definida a abrangência da ação pública no

processo e os limites da atuação.

Entretanto, a ação proposta não foi capaz de atingir o âmago da questão, pois

como visto anteriormente, a palavra “regular” significa loteamento com registro

imobiliário e lotes em nome dos proprietários, porém esse requisito não foi

contemplado na elaboração do legislador local.

Como se vê no diploma, pelo art. 10 ficou definido a responsabilidade de o

proprietário do parcelamento levar o decreto de aprovação ao registro junto ao Ofício

171 GASPARINI, Diógenes. O município e o parcelamento do solo. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 144.

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de Registro de Imóveis, no prazo de 180 (cento e oitenta dias), obedecidos os

demais requisitos legais. Da mesma forma, o parcelador ficava obrigado a transferir

ao Município, por doação, as áreas institucionais e viárias descritas no memorial

técnico do projeto aprovado, bem como promover o registro desta doação no órgão

competente. Nessa elaboração, a parte jurídica da regularização do loteamento,

considerada por muitos como a mais importante e definitiva, pois ligada diretamente

ao conceito de propriedade, ficou sob responsabilidade da própria pessoa que gerou

o problema. Uma situação de duvidosa solução.

Pode-se afirmar que foi uma opção antagônica aos objetivos da

regularização, por torná-la incompleta, como também demonstra certa omissão do

executivo municipal em assumir a si essa tarefa. Mas seria da sua competência? Na

análise de Silva172, a legitimidade para a regularização é exclusiva do poder público

local, por força do disposto no art. 40 da Lei nº 6.766/79. Para ele, a redação da lei é

clara no sentido de que, omitindo-se o loteador, a regularização será efetuada pelo

Município, seja o parcelamento não autorizado (clandestino) ou executado sem

registro ou observância das exigências impostas na concessão da licença (irregular),

para evitar lesão aos seus padrões de desenvolvimento urbano e na defesa dos

direitos dos adquirentes de lotes.

Pelas normas vigentes, a Prefeitura Municipal tinha e tem a prerrogativa de

obter o ressarcimento das despesas que efetivar para a regularização, podendo

levantar ou receber as prestações vincendas diretamente dos adquirentes, ou por

meio da expropriação dos lotes remanescentes na propriedade do loteador ilícito, ou

seja, aqueles lotes ainda não alienados.

Assim, pode-se apontar a relativa omissão do poder local em assumir essas

prerrogativas e efetivar uma regularização completa, ou seja, administrativa e

jurídica, como um dos fatores que impediu uma maior efetividade do programa de

regularizações na cidade de Caxias do Sul. Pois, a elaboração legislativa local, no

sentido de atribuir ao proprietário do loteamento prerrogativa de efetivar o registro

172 SILVA, José Marcelo Tossi Silva. Registro de parcelamento regularizado (no Estado de São Paulo). In: Revista de Direito Imobiliário, nº 62, jan./jun. São Paulo: RT/IRIB, 2007. Disponível em: <http://www.irib.org.br/rdi/rdi62a.asp>. Acesso em: 14.12.2007.

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esbarrava no fato de que, na maioria dos casos, o proprietário da terra ou o loteador,

ou ambos, não tinham mais interesse neste processo posto que já haviam obtido

seu objetivo imediato, qual seja, o lucro fácil pela alienação de lotes com alto lucro

final e de baixo custo inicial por falta de infraestrutura adequada.

De outra banda, os incautos adquirentes e verdadeiros novos proprietários

não tinham conhecimento necessário para promover o registro do loteamento. A

regularização administrativa efetivada pela Prefeitura e a adequação do projeto às

condições mínimas (vias, água e luz) já era o suficiente para eles, moradores. Além

disso, qualquer iniciativa em busca da regularização jurídica esbarrava nas

exigências registrais, em decorrência dos títulos aquisitivos que portavam, com

pouca ou nenhuma eficácia, o acesso ao registro era dificultado ou simplesmente

impedido.

De maneira que, na elaboração legal municipal voltada unicamente para a

regularização administrativa, ou seja, para a aprovação do loteamento sob

condições especiais, dois aspectos não estavam plenamente satisfeitos. O primeiro

é que a irregularidade “strito sensu” caracteriza-se pela falta do registro imobiliário

do loteamento e não somente quanto ao conhecimento e aprovação do mesmo pela

autoridade municipal competente. O segundo, também ligado à questão jurídica do

loteamento irregular, como aspecto principal, é a falta de título de propriedade em

nome dos compradores, por carência da matrícula dos lotes. É verdade que ambos

dependem da prévia aprovação municipal, mas, essa, não implica necessariamente

no registro e na matrícula, em virtude das “barreiras de entrada” registrais. Isso

significa que, mesmo o loteamento sendo regular perante a administração pública

poderá estar irregular juridicamente, como visto anteriormente.

Vale lembrar que por força da Lei nº 6.766/79 (art. 18), a regularidade

administrativa, presente na aprovação facilitada do loteamento pelo município, é tão-

somente um dos requisitos, dentre mais de sete para o ingresso e aceitação do

registro do loteamento. Da mesma forma, por força da Lei nº 6.015/76 (art. 195),

deverá haver continuidade de registro de modo a preservar a corrente dominial, ou

seja, é necessário que o comprador apresente título eficaz da aquisição da

propriedade de seu anterior e legítimo dono.

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Sabe-se que na questão do loteamento irregular a dificuldade maior para a

regularização é justamente a condição da propriedade precária não só em nome dos

adquirentes, mas principalmente em nome do loteador-vendedor, cujo maior

interesse é de não aparecer e assumir suas obrigações legais. Desse modo, os

compradores não têm a quem recorrer para obter o título válido, pois a promessa de

compra e venda mal-formatada e imprecisa, que firmaram com o pseudo-

proprietário, não lhes permite obter a matrícula do imóvel em seus nomes. Além

disso, por força desse princípio registral e pelo princípio da especialização, o título

que firmaram, mesmo que seja eficaz, somente será admitido ao registro se contiver

a caracterização do imóvel coincidentemente com a descrição que consta no registro

anterior. Ora, em geral a descrição que consta na matrícula “mãe” diz respeito à

gleba maior de onde foram gerados os lotes sucedâneos, os quais mesmo regulares

perante o executivo municipal, não possuem a coincidência necessária com a

descrição da matrícula original, em virtude da diferença de área e confrontações, ou

da sua localização no espaço geográfico, urbano ou rural. Desse modo, restava

complicada a regularização jurídica do loteamento e de seus respectivos lotes, em

nome de seus adquirentes/possuidores.

Assim sendo, se nenhum imóvel urbano é regular se não tiver proprietário,

não se pode falar em propriedade sem mencionar a quem pertence, como prova da

perfeita relação de ideias 173.

Esse é o caso do loteamento “Jardim das Hortências”174, semelhante a tantos

outros em diversas cidades que têm como ponto comum a sua origem, nas ações de

parcelamento informal do solo e a transferência da propriedade de lotes por

consentimento mútuo em contrato firmado entre as partes. Ou seja, fundamentam-se

173 O filósofo político David Hume (1739) define propriedade como: “a relação entre uma pessoa e um objeto de modo a permitir a esta pessoa e a proibir a qualquer outra o livre uso e a posse do objeto, sem violação das leis da justiça e da equidade moral”. Prossegue o filósofo referindo que, ao se fazer menção da propriedade o nosso pensamento transporta-se naturalmente para o proprietário, prova de perfeita relação de ideias, e sempre que um prazer ou uma dor nasce de um objeto ligado à pessoa pela propriedade, podemos estar certos de que o orgulho ou a humildade deve originar-se desta conjunção de relações. In: HUME, David. Tratado da natureza humana. Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 365. 174 “Jardim das Hortências” (sic.). Apesar do erro gramatical esse é o nome conferido ao loteamento, conforme Decreto Municipal nº 7.481 de 25.08.1992 que aprovou o loteamento e consta do registro imobiliário na Matrícula correspondente.

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na livre disposição da propriedade e na liberdade contratual, dois sustentáculos do

sistema jurídico pátrio. Esse aspecto é relevante porque essa forma de aquisição

difere frontalmente da invasão ou ocupação, que são modos originários de alcançar

a propriedade175, e não são objetos desse estudo, ao passo que a contratual é forma

derivada de aquisição da propriedade e, portanto, depende da eficácia do título

aquisitivo.

Assim sendo, em face da ineficácia do título aquisitivo a situação havida no

“Jardim das Hortências” configura a denominada propriedade precária, em que

temos um proprietário sem o título correspondente. Nesse quadro, não há dúvida de

quem seja possuidor do imóvel, porém, mesmo que o tenha adquirido formalmente e

esteja na sua posse, uso e gozo, falta-lhe o título, componente essencial da

propriedade que a torna juridicamente existente em nome do morador.

Nesse contexto, o processo encontrado para a solução do problema de

regularização do loteamento “Jardim das Hortências”, apresenta um modelo de

construção jurídica que transformou a propriedade precária dos moradores, em

propriedade juridicamente existente por meio do registro imobiliário. Tal construção

em análise pode responder como foi possível superar com sucesso as dificuldades

para a regularização, assim sendo, pode-se encontrar o caminho a ser seguido em

outros assentamentos informais e precários na mesma situação. Ou ainda responder

a questão sobre o que fazer para tornar as regularizações fundiárias mais simples e

eficazes? E se é possível assim proceder.

2.3 Os instrumentos jurídicos e os procedimentos de regularização do

loteamento “Jardim das Hortências”

O surgimento do problema deu-se no ano de 1978 quando os agricultores

proprietários da área rural em que foi desenvolvido o referido loteamento,

pressionados pelo crescimento da cidade e pela inviabilidade econômica da

175 O filósofo David Hume refere que das circunstâncias que possam originar a propriedade, encontra-se “quatro muito importantes: a ocupação, a prescrição, a acessão e a sucessão”. In: HUME, David. Tratado da natureza humana. Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 582.

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exploração agrícola minifundiária como meio de subsistência, bem como seduzidos

pela valorização da terra proposta pelos pretensos loteadores, optaram por transferir

a propriedade ao empreendedor para a realização do loteamento.

O loteador, por sua vez, com finalidade de obter imediato retorno e lucro do

investimento, apenas promoveu a demarcação dos lotes e prontamente iniciou a

venda para terceiros adquirentes, sem se preocupar com os aspectos legais e

formais da constituição do loteamento junto ao poder público municipal ou ao

registro imobiliário, sabedor da impossibilidade em face da situação rural da gleba,

ou seja, fora do perímetro urbano. Como resultado dessa iniciativa, que se pode

considerar padrão na origem da maioria dos loteamentos precários nas cidades em

crescimento, deu-se a constituição do loteamento irregular denominado “Jardim das

Hortências”, contendo 217 lotes, cobrindo uma área total de 135.478,86m2, sendo

36.058m2 destinados para ruas e passeios públicos, 9.288,00m2 para áreas

institucionais e 90.132,86m2 para os lotes,176 o que representa 34% de área pública

e 66% privada.

Essa área total fazia parte dos lotes rurais nºs. 50 e 52 do Travessão

Gablontz no município de Caxias do Sul/RS, de propriedade de Ludovico Dante Boff

e sua mulher Maria Giacomina Pedrotti Boff, e foi alienada por contrato particular de

promessa de compra e venda, em 14.03.1979, para a compromissária compradora

Imobiliária e Empreendimentos Vila Rica Ltda. que imediatamente demarcou a gleba

e passou a comercializar os lotes, de maneira que o levantamento feito pela

Prefeitura Municipal em 1987 constatou a ocupação de 62% dos terrenos177, ou seja,

mais da metade do loteamento já havia sido adquirida por terceiros, diretamente da

empresa loteadora.

Os instrumentos jurídicos para tais alienações foram escrituras públicas de

compra e venda de fração ideal dentro de todo maior, ou por contratos particulares

de promessa de compra e venda com individualização e demarcação precária dos

lotes, e todos sem registro imobiliário. Portanto, eram instrumentos que não tinham

176 Conforme Averbação nº 01, na Matrícula nº 39.425, do Livro nº 2 - RG do Ofício do Registro de Imóveis da 2ª Zona de Caxias do Sul, em 13.01.1993. 177 Conforme Anexo I da Lei Municipal nº 3.292, de 25 de novembro de 1988.

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eficácia jurídica para constituir propriedade. Assim sendo, os moradores tornaram-se

vítimas da situação, pois haviam comprado os imóveis, mas eram donos apenas de

fato. Além disso, alguns desses compradores repassaram o problema para outras

pessoas vendendo-lhes o imóvel, agravando ainda mais a situação.

Os procedimentos de regularização tiveram início por ação do poder

executivo que promoveu o encaminhamento das medidas para equação dos

loteamentos irregulares no município. Na época, estudo da Secretaria do

Desenvolvimento Urbano, criada pela Lei Municipal nº 2.966/85, constatou a

predominância de informações desencontradas, números irreais e apenas uma

certeza: os loteamentos irregulares eram muitos178. No levantamento de dados que

se seguiu, esboçado em sete meses e concluído em reunião realizada no dia 16 de

abril de 1986, foi definida a listagem dos loteamentos passíveis de regularização. Na

oportunidade foi definido o critério de qualificação do loteamento, de acordo com a

maior ou menor necessidade de adequações para regularização. Desse modo, o

loteamento “Jardim das Hortências” restou enquadrado na categoria do “sinal verde”,

isto é, carente de pequenas concessões para regularização administrativa.

Dando prosseguimento ao processo, no ano de 1988 foi editada a Lei

Municipal nº 3.292/88, que instituiu o Programa de Regularização dos Loteamentos

Irregulares, já referido, que regulamentou os procedimentos de regularização e

permitiu ao Poder Público local promover as ações necessárias, tais como

levantamentos e adequação dos loteamentos às diretrizes urbanísticas especiais,

delimitadas para tanto. Desse modo, adequado e aprovado o projeto e a

implementação, seguiu-se a aprovação administrativa do loteamento “Jardim das

Hortências”, por meio do Decreto Municipal nº 7481, de 25 de agosto de 1992.

Como se vê, após treze anos, contados do início da implantação, a

regularização administrativa do loteamento estava finda, ou seja, a participação do

poder público municipal no procedimento havia sido encerrada com o decreto de

reconhecimento oficial do empreendimento encaminhado ao registro.

178 Conforme consta no artigo, Radiografia dos Loteamentos Irregulares em Caxias do Sul. In: Informativo da Secretaria de Desenvolvimento Urbano de Caxias do Sul, 1987, p. 13.

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Porém, para que o loteamento fosse considerado juridicamente regular

necessitava o registro do loteamento e a abertura das matrículas individuais dos

lotes, em nome dos proprietários finais. Dessa maneira, era preciso que os imóveis

fossem registrados e, também, que fossem registrados as originais escrituras e

contratos de transferência dos lotes aos respectivos adquirentes dos 217 lotes.

Iniciava-se então outro problema de difícil e demorada solução, comum a muitos

loteamentos no país, qual seja a regularização jurídica ou registral em nome dos

proprietários dos terrenos.

A situação fática do loteamento, implantado com projeto aprovado pelo

executivo municipal e registrado no registro imobiliário, apresentava-se constituído

por propriedades consolidadas na posse dos legítimos adquirentes dos lotes, porém,

juridicamente, a área total originária do loteamento permanecia em nome do antigo

proprietário, em virtude de ser em seu nome o registro da Matrícula nº 39.425, do

Livro 2-RG, do 2º Ofício do Serviço do Registro de Imóveis de Caxias do Sul. Por

outro lado, esse proprietário legal mas não de fato, estava impedido de transmitir os

lotes aos adquirentes de fato mas não legais, haja vista haver alienado tal área em

1978 para a empresa Vila Rica. Da mesma forma, essa empresa não mais ativa,

apesar de haver registrado a transferência de parte da gleba para seu nome, não

poderia fazer a alienação aos moradores, por ser proprietária de somente uma parte

da gleba e de ter abandonado o loteamento à própria sorte e à conclusão pelo poder

público.

Portanto, a situação representava um impasse, não havia meios de a

empresa transmitir a propriedade aos moradores, tampouco o antigo proprietário

estava habilitado a escriturar os terrenos dos quais não era mais dono. Nesse

quadro, os adquirentes permaneciam como os maiores prejudicados, pois tanto a

loteadora quanto os antigos proprietários já haviam realizado seu lucro e não havia

meio jurídico para forçá-los a cumprir os contratos, haja vista que os impedimentos

eram em virtude de disposições da lei, não por vontade dos vendedores. Ou seja,

mesmo que quisessem (e queriam) não podiam transmitir os imóveis legalmente.

Modificar o quadro e desfazer o impasse somente foi possível a partir da ação

dos moradores do loteamento, organizados na Associação dos Moradores do Bairro

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Jardim das Hortências, entidade civil nascida em 26 de fevereiro de 1981 por 25

sócios fundadores, que buscaram o diálogo com as demais partes e autoridades

envolvidas para alcançar a regularização jurídica, pautada na ação de todos no

objetivo comum. Desse modo, os atores diretamente envolvidos na questão

despiram-se das prerrogativas de cargos e funções e construíram a solução do

problema.

Considerando-se que a questão envolve matéria jurídica o seu

equacionamento dependeria de fundamentação teórica nesse campo, ou seja, as

razões de justificação das ações implementadas deveriam ter amparo em princípios

fundamentais do direito e de constituição da sociedade. Haverá como fazer?

2.4 A regularização jurídica do “Jardim das Hortênc ias”: a transmutação do

fato moral em fato legal

Para entender os princípios que fundamentaram o alcance da solução jurídica

do problema da regularização fundiária do loteamento “Jardim das Hortências”, é

preciso compreender como se construiu o entendimento e quais foram os elementos

que se pode depreender nesse processo regularizador. Esse entendimento é

primordial tendo em vista que se tratam dos elementos de alcance e legitimação das

ações empreendidas que transformaram o ilegal no legal. A resposta a essa alta

indagação é a resposta aos anseios de facilitação e simplificação dos procedimentos

de regularização fundiária - abordado ao longo do texto - que poderá ser aplicado

em outros casos de legalização da propriedade precária.

Neste quadro, os indivíduos diretamente envolvidos no problema, movidos

por exclusivo interesse moral de solucionar o impasse e despidos de cargos,

prerrogativas e interesse pessoal ou material, promoveram o diálogo e a cooperação

como forma de transmutar a situação irregular em legal, de maneira a dar força

jurídica àquela situação moral ou fato social da propriedade precária.

De fato, no dia 22 de abril de 1994, reuniram-se nas dependências do 1º

Ofício de Registro de Imóveis de Caxias do Sul, os representantes dos moradores

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do loteamento, advogados, os antigos proprietários da gleba, o representante da

empresa loteadora e o titular do serviço público, atendendo resolução emanada nas

Portarias nº 052/91-DF e nº 022/94-DF, da Direção do Foro da Comarca de Caxias

do Sul, para discutirem e estabelecerem os mecanismos e procedimentos a serem

executados, com o objetivo de regularizar os títulos de propriedade dos

compradores de terrenos do loteamento denominado “Jardim das Hortências”. Vale

lembrar que a gleba pertencia a Ludovico Dante Boff e fora vendida à Imobiliária Vila

Rica e irregularmente loteada por essa, sendo que a conclusão e regularização

administrativa do loteamento fora feita pela Prefeitura Municipal. Na histórica

reunião, buscava-se o preenchimento de requisitos legais ligados aos instrumentos

de transmissão e ao registro imobiliário.

Esse objetivo, como se antevê, constitui o que pode ser denominado “o bem

comum”179, pois representa a vontade e o interesse de todos, cujos efeitos serão

benéficos a todos os envolvidos diretamente e à sociedade. Dessa maneira, prima

facie, visualiza-se nesse contexto o princípio do bem comum, que junto com a

subsdiariedade e a solidariedade completa a trinômia a que Ullmann refere como

sendo ontológicos princípios sociais.

Na construção jurídica da situação moral (consolidada), o Oficial Registrador,

abriu mão de requisitos legais, por conta dos princípios da anterioridade, da

continuidade e da especialidade registral - tratados exaustivamente no capítulo

anterior -, e indicou que acataria a forma instrumental de um acordo, a ser firmado

entre o antigo proprietário e a empresa loteadora, de maneira a possibilitar aos

primeiros outorgarem por escritura pública os terrenos aos moradores. Como

consequência dessa decisão, o domínio da gleba retornou ao detentor original.

Tal elaboração jurídica retirou a empresa (Vila Rica) do polo passivo da

obrigação de transmitir os imóveis aos compradores, e colocou no seu lugar o antigo

proprietário (Ludovico), porém as obrigações e responsabilidades pelo

empreendimento permaneceram na órbita da loteadora, mesmo que essa não mais

179 “O bem comum consiste, pois, naquilo que todos, na sociedade, se tornam beneficiários, quer se trate a da sociedade como um todo (não excluindo a sociedade internacional), quer se trate de segmentos dela.” In: ULLMANN, op. cit., 1993, p. 92.

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fizesse parte nas escrituras e nas relações obrigacionais. Ou seja, o antigo

proprietário, que não tinha qualquer obrigação jurídica em relação ao

empreendimento ou mesmo em relação à outorga das escrituras, faria a transmissão

apenas por vontade própria, de sua inteira liberdade, movido pela simpatia em

relação aos compradores. Ao mesmo tempo, a empresa, que não tinha qualquer

participação jurídica na transmissão, permanecia solidária nas demais obrigações

civis, trabalhistas e fiscais decorrentes do empreendimento, bem como devia conferir

autorização para a lavra das escrituras de transmissão, tão-somente por sua

vontade e liberdade.

Seja como for, a convenção moral sobrepujou a norma jurídica na medida em

que alguns princípios do direito foram relegados a plano secundário, como por

exemplo: o princípio da evicção180 que restou afastado do alienante (Ludovico) e

transferido para a empresa (Vila Rica), a qual sequer fez parte das escrituras de

venda; o mesmo sucedeu em relação à fé pública das escrituras, que retrataram

uma inverdade, do conhecimento de todos, haja vista que os moradores haviam

negociado com a imobiliária (Vila Rica) e não com o outorgante e transmitente

(Ludovico); por último, os princípios da continuidade e especialidade registral foram

deixados à margem do processo, na medida em que foi cancelada a aquisição da

gleba e propriedade, em nome da empresa imobiliária (Vila Rica), por simples

averbação (ex-offício) de encerramento da matrícula, retornando a gleba ao

proprietário original sem o indispensável instrumento público de retorno de

propriedade181, ao mesmo tempo em que a descrição da gleba modificou-se com a

introdução das especializações dos lotes, conforme se lê na Matrícula nº 16.908, do

Livro 2-RG, do 2º Ofício do Registro de Imóveis de Caxias do Sul182.

180 É princípio de garantia dos contratos onerosos que assenta no alienante a responsabilidade pela integridade total do objeto do negócio jurídico. Esse instituto, expresso no art. 447 e seguintes, do Código Civil Brasileiro, prevê a possibilidade de diminuir, aumentar ou excluir essa responsabilidade, desde que conste em cláusula expressa no contrato (art. 448, CCB). Porém não existe no direito brasileiro a hipótese de transmitir essa responsabilidade a quem quer que seja, muito menos a quem não faça parte do negócio jurídico. In: BARROS, Ana Lucia Porto de; [et al.]. O novo código civil: comentado. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2002, p. 346/347. 181 Vale lembrar que a transferência de propriedade imobiliária somente pode ser feita por escritura pública ou sentença judicial. Neste caso é cabível uma retrovenda, ou um distrato, ou mesmo uma dação. 182 “EX-OFFICIO em 13 de julho de 1999. Certifico que as baixas sob matrículas nºs 17792, [...], 17.892, bom como a área total desta matrícula estão incluídas no Loteamento Jardim das Hortências, registrado sob matrícula nº 39425 – Lº02/RG e portanto fica ENCERRADA A PRESENTE MATRÍCULA. Tudo de acordo com a Av. 3/39425 – Lº02/RG, desta 2ª Zona.”. Ver no ANEXO B.

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Desse modo, as escrituras outorgadas pelo proprietário original da gleba

(Ludovico) em favor dos adquirentes foram acolhidas no registro imobiliário que

promoveu a abertura das matrículas dos lotes perfeitamente individualizados,

conforme os dados constantes do registro do loteamento e certidão municipal,

ficando a cadeia dominial devidamente caracterizada nos títulos de propriedade

abertos em nome dos moradores, tornando realidade a regularização jurídica do

empreendimento.

Em suma, essa foi a formatação da solução encontrada para alcançar “o bem

comum” de regularização dos títulos de propriedade em nome dos adquirentes, em

que a verdade moral tornou-se verdade jurídica, contra tudo e contra todos, erga

omnes.

2.5 Aspectos fundamentais e ações no âmbito da soci edade local

Importante lembrar que a solução para a regularização do loteamento “Jardim

das Hortências”, e de outros na mesma época e situação, foi o embrião do chamado

“Projeto More Legal”, abordado no capítulo anterior, que veio a ser formatado pela

Corregedoria-Geral da Justiça do RS, por meio dos Provimentos nºs. 39/1995 e

01/1998, que atualmente faz parte da Consolidação Normativa Notarial e Registral,

por força do Provimento nº 32/2006, o qual sinaliza para a facilitação e simplificação

nos procedimentos de regularização fundiária dos loteamentos irregulares, quando

se tratar de situação consolidada.

Entretanto, cabe ressaltar nesse contexto, que a solução do problema foi

possível por força das decisões no âmbito local, eis que se observa, aqui, a atuação

tanto do Oficial Registrador quanto do Juiz Corregedor, ambos personificando o

Estado-juiz, menos para obrigar ação ou realização do direito pelo Estado, que tem

se mostrado insuficiente para tal tarefa, e mais para garantir os direitos ativos da

sociedade exercidos por aqueles menos cidadãos (proprietários precários) no seu

espaço de cidadania (local), na realização de direito social puro (moradia).

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Diante disso é correto afirmar que a ideia e concretude da moradia como

direito social puro e no princípio de subsidiariedade é legitima na ação do indivíduo

ou grupo de indivíduos que arvoram a si a tarefa não cumprida pelo Estado, ou seja,

a de suprir-lhes as necessidades. Desse modo, as ações e atos jurídicos procedidos

pelo oficial registrador e todos os envolvidos encontram justificativa nos princípios

gerais do direito, daí não podem jamais ser considerados contrários ou fora do

direito. O loteamento “Jardim das Hortências” e as demais propriedades precárias

em todas as cidades espelham essa realidade e comprovam a hipótese.

Por esse motivo, não pode o Estado ir contra a realização social naturalmente

atribuída ao indivíduo, executada nas ações do grupo de interesse (etre assemble -

o ser conjunto)183. Assim sendo, cabe ao agente público integrar-se ao corpo social

multifacetado e multidisciplinar composto por diversos segmentos - associação de

moradores, registros de imóveis, judiciário, empresas, ONG’s, universidades,

organizações, etc., para atingir um propósito democrático, como refere Hermany,

cujas palavras vão ao encontro da realização do direito social condensado por meio

da ação da sociedade como fato normativo184, de que fala José Luis Bolzan de

Morais, no exercício de direito social puro e independente185:

É nesta ótica, de um direito produzido pela própria sociedade, uma regulação autônoma de cada grupo, alheia ao direito estatal, que Gurvitch pretende ancorar sua idéia de direito social, não apenas como regulação de uma parcela das relações sociais, tais as relações de trabalho ou as das questões relativas à seguridade social [...].186

183 Expressão utilizada por Gurvitch ao abordar o direito social. In: HERMANY, Ricardo. (Re)Discutindo o espaço local: uma abordagem a partir do direito social de Gurvitch. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2007, p. 284. 184 Fatos normativos “são fatos sociais que têm a capacidade de, por sua tão-só existência, apreenderem valores positivos e, assim, produzirem condições mínimas de justiça [...] deve, além da sua durabilidade temporal, ser, desde sua origem, penetrado por valores jurídicos e materiais atemporais”; “[...] ele deve poder se justificar como tal: os valores que ele encarna devem se justificar como valores positivos, se afirmar como atrelados à justiça e servindo ao ideal moral.” GURVITCH (1932), p. 129. Apud BOLZAN DE MORAIS, José Luis. A idéia de direito social: o pluralismo jurídico de Georges Gurvitch. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 42. Este conceito - fatos normativos - carrega a ideia de um valor jurídico e moral; são as ideés actions (ideias ação). BOLZAN DE MORAIS, op. cit., p. 41. 185 “[...] é puro na medida em que não busca recurso em uma sanção incondicionada e, é independente quando, em caso de conflito com o direito estatal, ele se coloca em igualdade com este.” BOLZAN DE MORAIS, op. cit., p. 50. 186 BOLZAN DE MORAIS, op. cit., p. 35.

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Com efeito, o direito produzido na concretização da moradia nos loteamentos

irregulares, alheios às normas estatais, legitima-se como direito social fundamentado

na construção da cidadania e dignidade da pessoa humana, no espaço local,

conforme disposto no artigo 1º, incisos II e III da Constituição da República

Federativa do Brasil. É o empoderamento individual da realização do seu próprio

desenvolvimento.

Desse modo, as decisões do Estado-juiz, personalizado nos agentes públicos

e pessoas do Oficial Registrador Público e do Juiz Corregedor, representam a

interação do agente público e da sociedade, como entes do conjunto social, isto é,

indivíduos da sociedade. Sendo que o magistrado, no exercício das prerrogativas

legalmente possuídas, determinou em Portaria normas que permitiram a

regularização pretendida e sacramentou os atos com sua decisão. Como se sabe, o

juiz goza do princípio da independência e autonomia para tomada das decisões,

além de ser o órgão jurisdicional do estado mais próximo dos acontecimentos. Por

conseguinte, o magistrado local é a pessoa-Estado que tem melhores condições de

conhecer e fazer o diagnóstico dos problemas sociais e decidir sobre solução dos

problemas, gerando confiança e credibilidade, na busca do bem comum.

Ora, a ação que se espera do Estado-juiz está elucidativamente registrada no

enunciado do art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil (LICC)187, a saber: “Na

aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências

do bem comum.” Como se nota trata-se da norma moral tornada norma jurídica, na

medida em que os fins sociais e o bem comum trazem consigo conteúdo valorativo,

de que cuida a moral e a justiça, bem como referem-se “ao bem da sociedade

constituída, para proporcionar aos seus membros o desenvolvimento

especificamente humano, isto é, o bem da pessoa como tal.”188 Dessa maneira, o

bem comum não é uma noção abstrata, mas real, pois se constitui no bem pessoal

concreto de muitas individualidades, na medida em que só pode ser atingido por

meios empregados em comum.

187 BRASIL. Decreto-lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942. Institui a lei de introdução ao código civil brasileiro. 188 ULLMANN, op. cit., p. 97.

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Assim, como explana Ullmann, são postulados do bem comum ação solidária

e autônoma, “porquanto o homem só pode realizar plenamente o seu

desenvolvimento pessoal em relação de comunhão solidária com os demais homens

e deles recebendo auxílio.”189 Por conseguinte, considerando-se a formação do

loteamento e constituição da propriedade precária, presentes no “Jardim das

Hortências”, como um direito social puro, fundamentado na ação do conjunto em

plena autonomia, deduz-se que o alcance do bem comum e solução do problema

somente será possível apoiando-se nesses mesmos fatores.

Realmente, a solução do problema, contaminado pela ação conjunta, passou

pela autonomia existente na função do Oficial do Registro de Imóveis, pessoa que

exerce constitucionalmente a atividade privada por delegação do Estado190. Esse

indivíduo, mesmo tendo uma função subordinada às disposições legais, possui

relativa autonomia condicionada à sua própria decisão, pois se assim não fosse

deixaria de ser uma atividade privada para retornar à esfera pública. Além disso,

como atividade denominada “extrajudicial”, mesmo submetido à norma e fiscalização

pelo Poder Judiciário, pelos órgãos competentes da Corregedoria-Geral da Justiça e

do Juiz Diretor do Foro da localidade, goza o registrador das mesmas prerrogativas

de autonomia e independência das suas decisões, sob responsabilidade civil, penal

e administrativa pessoal, bem como deve promover a interpretação e a aplicação da

lei para atender os fins sociais e promover o bem comum, a exemplo do magistrado.

A contrario sensu, restaria impossibilitada a adoção das medidas que foram

legitimadas e efetivamente implementadas para a regularização jurídica dos títulos

de propriedade, em nome dos adquirentes no caso do Jardim das Hortências, por

serem, de alguma forma, não previstas no direito positivado.

Assim sendo, torna-se incontestável que a regularização jurídica e emissão

do título de propriedade (matrícula do imóvel) em nome do comprador do lote

irregular, somente foram alcançadas com fundamentos nos princípios sociais: da

ação do conjunto social (solidário), da autonomia (subsidiaria), na realização do bem

comum.

189 ULLMANN, op. cit., p. 92. 190 Conforme art. 236 da Constituição brasileira.

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3 A PERCEPÇÃO DOS ATORES SOCIAIS ACERCA DO PROCESSO DE

REGULARIZAÇÃO

3.1 Aspectos gerais sobre o desenvolvimento da pesq uisa empírica

Para superar uma análise meramente doutrinária, o autor buscou captar a

percepção de pessoas diretamente envolvidas com a problemática das

regularizações em Caxias do Sul, sendo várias delas participante do processo de

regularização do Jardim das Hortências. Desse modo, pela pesquisa empírica

buscou-se testar as hipóteses e chegar a novas conclusões a partir da experiência

dos atores, no campo da realidade social.

Dados e informações foram obtidos a partir de fontes diretas, de pessoas que

vivenciaram e têm conhecimento sobre a problemática, podem trazer diferentes

abordagens e entendimento, conduzindo a novos entendimentos sobre

procedimentos adotados, de modo a enriquecer e transformar em realidade as

iniciativas regularizadoras. A pesquisa orientou-se por uma concepção realista das

possibilidades jurídicas das regularizações e dos procedimentos regularizadores

com apoio na experiência de atores diretos do processo de regularização, bem como

na análise de documentos, legislação, portarias, ofícios, acordos, contratos, etc. Do

“ser” ao “dever ser”; do “real” ao ideal191.

A análise de documentos contemplou as atas das reuniões realizadas no

âmbito da Associação de Moradores do Jardim das Hortências e de reuniões

conjuntas entre organismos privados e públicos. Nesses documentos buscou-se

apreender como se desenvolveu a regularização e quais os instrumentos e

fundamentos jurídicos utilizados que permitiram a superação dos obstáculos

registrais. Além das atas, a matrícula da gleba, objeto da implantação do

loteamento, e as matrículas dos imóveis individualizados serviram para demonstrar

os procedimentos adotados e inovações jurídicas implementadas, a par de serem

documentos dotados de fé pública, portanto de validade inconteste. Por sua vez,

191 VIANNA, Túlio Lima. Roteiro didático de elaboração de projetos de pesquisa em direito. São Paulo: Jus2, 2003. Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina. Acesso em 01.11.2008.

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com a análise da legislação municipal específica para regras de uso do solo e para

as regularizações foi possível detectar a dimensão do problema e as diretrizes da

política pública voltada à sua solução. Nesse contexto estão ainda inseridas as

portarias judiciais e os decretos municipais que contêm fundamentos e justificativas

para os procedimentos adotados.

Quanto às entrevistas, a seleção dos depoentes foi baseada no critério da

experiência pessoal (vivência) e na importância da respectiva função ou cargo em

relação ao problema, ou seja, são atores que estão ligados ao problema a partir da

sua constituição até a sua solução. Assim sendo, junto às pessoas que constituíram

a irregularidade, buscou-se obter a visão histórica do processo, bem como quais os

pontos positivos e negativos podem ser apontados para obter melhores resultados

em iniciativas regularizadoras. Ainda na seara do ente particular, a impressão do

empresário imobiliário foi considerada fundamental para o entendimento das

questões ligadas à implementação do loteamento regular em contraponto ao

irregular, enriquecendo assim o debate sobre o tema com uma visão própria.

Por sua vez, os agentes públicos entrevistados, tanto no âmbito do executivo

municipal quanto no do registro de imóveis, têm um papel decisivo na

implementação das regularizações e no encaminhamento da solução do problema,

daí a importância da sua experiência e opinião em relação às soluções

apresentadas.

As entrevistas foram realizadas pelo próprio autor, no decorrer do mês de

novembro de 2008, e não obedecem a um roteiro fixo; a conversa foi conduzida pelo

entrevistador com base nos problemas e hipóteses da pesquisa, com especial

atenção para as possibilidades de superar as barreiras registrais e melhorar o

desempenho das regularizações fundiárias, mas sempre permitindo amplo espaço à

espontaneidade dos entrevistados. Os depoimentos foram gravados, para assegurar

a fidedignidade das opiniões emitidas pelos entrevistados.

Os entrevistados pertencem aos seguintes segmentos:

a) Poder executivo municipal, como executor da regularização administrativa,

através do setor responsável pela regularização fundiária;

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b) Poder judiciário, na esfera do registro de imóveis local, através do

responsável pela regularização jurídica;

c) Poder legislativo municipal, através de parlamentar conhecido por sua

atuação em temas da área habitacional;

d) Sociedade civil, pela representante da organização dos moradores, AMOBJH;

e) Iniciativa privada, através de empresário especializado na produção e

implantação de loteamentos regulares.

3.2 A regularização na ótica de quem atua no poder público e público não-

estatal

O poder público, ator primordial para a regularização fundiária, com

fundamento no art. 2º, da Constituição Federal, engloba os poderes legislativo,

executivo e judiciário, independentes e harmônicos entre si, devendo agir para

cumprir e fazer cumprir os objetivos constitucionais. Dentre esses, clama-se mais

diretamente pela atuação e performance do poder executivo, em virtude de ser o

espaço público em que se processam as fases192 da policy da regularização

fundiária aqui abordada. Mas a experiência demonstra que o judiciário e o legislativo

também exercem papel significativo para o êxito das ações regularizadoras. Por

exemplo, no espaço local e no âmbito judicial, viu-se que tem sido fundamental a

atuação do Juiz Corregedor permanente e do segmento extrajudicial que abrange o

serviço cartorial.

Nessa concepção, o poder executivo municipal, como órgão público

diretamente responsável pelo regramento das condições de uso do solo urbano e

fiscalização do seu cumprimento, sobressai-se na matéria. Como regra, a nível

municipal essa tarefa está ao encargo da Secretaria Municipal de Desenvolvimento

Urbano, cuja nomenclatura varia de cidade a cidade, porém em todas elas existem

órgãos assim assemelhados pela função. No âmbito desse órgão estão também as

192 Explica Schmidt que as fases das políticas públicas são: 1. Percepção e definição de problemas; 2. Inserção na agenda política; 3. Formulação; 4. Implementação; 5. Avaliação. SCHMIDT, João Pedro. Para entender as políticas públicas: aspectos conceituais e metodológicos. In: REIS & LEAL. Direitos sociais e políticas públicas: desafios contemporâneos. Tomo 8. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2008, p. 2315/2321.

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definições e decisões relativas às obras civis, ou seja, os licenciamentos para as

edificações de casas ou prédios, bem como a imposição das regras e fiscalização do

parcelamento de solo. Não menos importante para os procedimentos

regularizadores tem-se o papel e a função exercida, especialmente no município

caxiense, pelo setor de regularizações fundiárias, órgão especializado na atividade,

que executa diretamente toda a tramitação documental, burocrática e levantamentos

técnicos necessários para as regularizações administrativas e jurídicas.

Outro agente público, de importância para as regularizações fundiárias, está

presente no poder legislativo. A Câmara de Vereadores é o foro de discussão e

aprovação das mais relevantes matérias que envolvem a cidade, como é o caso do

Plano Diretor Urbano e demais leis de uso do solo, bem como as legislações que

envolvem a policy regularizadora.

Ainda no enquadramento de ente público encontra-se o poder judiciário, o

qual na situação local e em relação ao tema, é presente na figura do Juiz

Corregedor permanente, cujo papel é fundamental nas regularizações, pois é a sua

autorização e decisão que permite a regularização jurídica da propriedade precária.

Especialmente no processo do More Legal, é da caneta do juiz diretor do foro que

depende o sucesso da regularização.

O espaço do poder público não-estatal é preenchido pelo oficial registrador,

cujo poder delegado e prestação de serviço público lhe confere o status de poder

extrajudicial. Tem ele a supremacia de tornar realidade a regularização fundiária por

meio da abertura da matrícula individual da unidade habitacional e emissão do título

de domínio correspondente.

No município de Caxias do Sul, por força da Portaria nº 052/91-DF, de 30 de

março de 1991, expedida pelo Juiz Diretor do Foro da comarca (corregedor

permanente), foi designado o Sr. Olintho Mendes de Castilhos, Oficial do Registro de

Imóveis da 1ª Zona de Caxias do Sul, para proceder articulação entre os órgãos

competentes da Administração Municipal e do Poder Legislativo com o fim de buscar

a formulação legal para a regularização de loteamentos, com a execução dos

procedimentos pertinentes. Tal determinação foi posteriormente re-editada na

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Portaria nº 022/94-DF, de 30 de março de 1994, que permanece em vigor até os

dias de hoje. Na exposição de motivos consta disposição dos Poderes Executivo e

Legislativo municipais em regularizar as irregularidades, o interesse do Poder

Judiciário na prevenção de ações judiciais cíveis e criminais originadas de conflitos

de loteamentos irregulares, bem como a necessidade e interesse dos órgãos

envolvidos em dar continuidade aos procedimentos regularizatórios, beneficiando

elevado número de pessoas. Dessa maneira, ficou concentrada na pessoa do Oficial

Registrador a coordenação e orientação dos procedimentos de regularização, além

da prerrogativa de dar início aos processos e ordenar o trâmite dos mesmos.

Essa medida, eminentemente uma criação local, demonstra a realização do

princípio da subsidiariedade, contido nas ações autônomas do poder local, na busca

de soluções próprias para os problemas da cidade, tanto por parte do poder

judiciário quanto pelo executivo e legislativo. Da mesma forma, revestem-se desse

mesmo princípio as ações do registrador público que, na sua autonomia privada e

prerrogativa de legalizar o que antes fora ilegal, passa a determinar, orientar e

coordenar as ações dos poderes públicos institucionalmente constituídos.

3.2.1 A regularização na ótica de quem atua no pode r executivo municipal

Como referido, na municipalidade caxiense a policy das regularizações

fundiárias está na competência do Setor de Regularização Fundiária, da Secretaria

do Desenvolvimento Urbano, por isso nada mais adequado para elucidar e

expressar as ações do executivo nessa área do que a percepção desse órgão

especializado, cuja equipe, chefiada por bacharel em direito, compõe-se de um

topógrafo e dois auxiliares de topografia, duas estagiárias desenhistas e um auxiliar

escriturário. Desse modo, as informações aqui constantes foram prestadas pelo

chefe do mencionado setor, Bel. João Canton193.

Inicialmente vale referir que a equipe, ainda que conte com apoio dos demais

órgãos do executivo, aparenta tratar-se de um pequeno contingente frente à

193 Depoimento do Bel. João Canton, Chefe do Setor de Regularização Fundiária, prestado em 09.11.2008. O perfil do entrevistado está detalhado adiante, no Anexo A, fl. 141.

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dimensão das irregularidades fundiárias no município. No contexto das ações do

departamento, cabe ao topógrafo e seus auxiliares o levantamento técnico dos lotes

a serem regularizados e, ao chefe do setor e seus demais colaboradores, a

montagem do processo de regularização, bem como a elaboração e

acompanhamento do processo judicial do More Legal do lote a regularizar desde sua

fase inicial, com a coleta dos documentos pessoais e outros, até a obtenção do

registro imobiliário do lote, momento que caracteriza a regularização fundiária

definitiva.

O setor articula-se com os demais órgãos da prefeitura especialmente com a

Secretaria de Planejamento Urbano, com o Cadastro Imobiliário, com a Secretaria

da Fazenda. Porém, afirma o servidor, “a ideia de uma coordenadoria que

aglutinasse esses organismos, a Coordenadoria das Regularizações Fundiárias

(COREL), com setores trabalhando em conjunto para agilizar e facilitar, não saiu do

papel”.

O denominado setor de regularizações nasceu com a SDU em 1985 e com a

Lei nº 3.292/88, que deu início aos processos de regularização no município, entre

os quais os do “Loteamento Jardim das Hortências”. Essa lei era limitada aos

loteamentos ali especificados e não está mais em uso, ao passo que “o processo de

regularizações e surgimento de loteamentos irregulares nunca pararam no

município”, explica Canton. Estima, ele, que haja atualmente em torno de 15mil lotes

irregulares e outras tantas irregularidades. Essas, não só em relação ao lote, mas

também quanto às benfeitorias edificadas nos mesmos.

O chefe do setor atribui como causa dos loteamentos irregulares,

principalmente, “a demanda por lotes populares”. Pois para ele, “o reflexo para a

carência está no loteamento irregular como meio mais rápido para aquisição da

moradia”. Realmente, os procedimentos para aquisição informal requerem pequena

quantia em dinheiro para o sinal de compra e parcelamento do saldo, aliado ao

estabelecimento de um simplório contrato de promessa de compra e venda, tendo

de um lado o comprador e de outro o responsável pelo parcelamento ilegal. Nesse

quadro, para o comprador interessa fugir do aluguel e demais despesas ao menor

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custo e prazo possível, isto é, por meio da posse do imóvel onde construirá teto.

Enquanto que ao vendedor, interessa o lucro fácil e ganho com o ilícito.

O estudo demonstra que a população carente de moradia própria e que

possui condições de adquirir um lote irregular está situada na faixa de renda entre

quatro e sete salários mínimos e representa algo em torno de 48% da população

urbana em Caxias do Sul. Ou seja, trata-se de um mercado potencial de

irregularidades que a municipalidade deve estar atenta para incluir na sua agenda

de decisões.

As regularizações dos lotes individuais estão sendo implementadas via More

Legal, em que ocorre a manifestação do Juiz Corregedor permanente e o devido

processo legal. Além dessas regularizações de lotes, segmento em que estão

concentrados os esforços do setor, também a regularização das áreas viárias dos

parcelamentos irregulares é iniciada no órgão. Nesse processo, após levantamento

técnico e manifestação dos setores do planejamento urbano pela viabilidade, por

meio de uma certidão contendo o memorial descritivo das áreas das vias e áreas

públicas e um requerimento do Prefeito Municipal dirigido ao Registrador Imobiliário,

procede-se a abertura da respectiva matrícula dos espaços de circulação e uso

públicos, considerando que são áreas públicas por destinação.

O responsável pelo setor entende que, “a burocracia e exigências para o

parcelamento são grandes e os proprietários rurais são seduzidos pela valorização

da terra, o que resulta em aumento das irregularidades”. Acrescenta que “com a

expansão do perímetro urbano recentemente foi possível incrementar o uso do More

Legal para as regularizações, tendo em vista que quase todos os loteamentos

irregulares existentes estão, agora, incluídos no perímetro da cidade”, o que abrange

alguns condomínios fechados que passaram a ser considerados parcelamentos

irregulares.

Quanto à organização social (indicador da solidariedade), a maioria dos

loteamentos irregulares possui alguma forma associativa de moradores, que serve

como elemento para as reivindicações, porém a ausência da associação não é fator

impeditivo desde que o loteamento tenha sido lançado no cadastro imobiliário do

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município. Informa o entrevistado que “esse lançamento é feito por vistoria do órgão

público no local, após lançado, o imóvel passa a recolher IPTU e está apto a pleitear

a regularização através do More Legal desde que o morador tenha escritura pública

de fração ideal registrada, nos demais casos dependem da ação de usucapião”.

O chefe do setor demonstrou sua preocupação quanto à necessidade de

estancar ou evitar o surgimento de novas irregularidades, pois reconhece que a

regularização de 3.000 lotes é incipiente para a solução do problema. Afirma ele: “no

ritmo em que são feitas as regularizações, nunca vão alcançar a solução, penso que

teria que existir uma medida mais efetiva para impedir o surgimento de novos

loteamentos irregulares”. Reconhece o entrevistado que “não há estrutura para

fiscalizar, pois quando a Prefeitura toma conhecimento do parcelamento, a situação

já está consolidada e o parcelador já sumiu, deixando os moradores necessitados da

regularização e o ônus para a municipalidade regularizar e concluir o loteamento”.

Na busca de elementos facilitadores para as regularizações, o setor de

regularização e o registrador imobiliário obtiveram junto ao Juiz Corregedor

permanente autorização para que sejam lavradas escrituras de fração ideal para as

situações consolidadas. Esclarece o chefe do setor que “a Ordem de Serviço nº

002/08-DF, do Juiz Corregedor que permite a escritura de fração ideal, vai contra o

Provimento nº30-CGJ de 1988, que impede a escritura de fração ideal”. Essa

afirmação reforça a ideia desse trabalho sobre a importância da decisão local,

fundamentada na autonomia e subsidiariedade, a qual torna possível realizar algo

que não era permitido. A escrituração de fração ideal possibilita o acesso e o

enquadramento de maior número de moradores no More Legal e maior número de

regularizações. Para as situações em que não se localize o loteador ou o

proprietário da gleba a fim de outorgar as escrituras, solucionáveis apenas com a

usucapião, “estuda-se a proposta de que seja nomeado um curador especial de

regularizações com poderes para outorgar referidas escrituras”, esclarece ele.

O entrevistado reconhece que são necessárias medidas para facilitar e

simplificar os procedimentos regularizadores. Refere, ainda, à intenção do

registrador apresentar proposta ao juiz corregedor para que seja autorizada a

regularização por escritura pública, sem necessidade da intervenção jurisdicional

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que ocorre no More Legal. Explana textualmente: “nos próximos dias o Sr. Olintho

irá propor que se façam as regularizações por escritura pública, para evitar o More

Legal e para facilitar e agilizar os procedimentos”. Nessa construção, o tabelião de

notas, portador da fé pública de ofício, poderá lavrar o instrumento público

reconhecendo a situação consolidada e fazendo a individualização e descrição

pormenorizada do lote objeto da regularização, que será acolhida a registro,

encerrando o processo regularizador com a expedição do título de propriedade.

De fato, esse seria um importante passo no sentido da simplificação dos

procedimentos e sua viabilidade e possibilidade de existência não está longe dos

acontecimentos, como se torna evidente em estudos jurídicos e na minuta de projeto

de lei do instrumento de usucapião extrajudicial194. Além disso, essa elaboração é

perfeitamente plausível, especialmente frente à tendência de desafogo do judiciário,

presente no direcionamento ao tabelionato de notas das partilhas de bens nos

inventários, separações ou divórcios, conforme Lei nº 11.441/2007.

De outra banda, levando-se em conta as palavras de Schmidt a respeito das

fases da policy, em que destaca a importância da fase avaliativa195, indagou-se

sobre a efetividade, a eficácia, a eficiência e a legitimidade do setor de

regularizações fundiárias, utilizando-se as perguntas: a política formulada foi de fato

implementada? Os resultados esperados foram alcançados? Qual o montante dos

recursos investidos para alcançar os resultados? E, qual o grau de aceitação da

política por parte dos beneficiários?

Respondendo essas questões, o servidor diz que, quanto à efetividade a

resposta é sim, a política foi implementada e ainda está em ação, quanto à eficácia,

a resposta positiva do entrevistado fica prejudicada, pois afirma paralelamente que

não existem metas a serem cumpridas. Assim sendo, prima facie, tecnicamente não

há como responder essa questão, pois a regularização de quase três mil lotes em

nove anos, por meio do More Legal, não significa êxito ou fracasso no alcance de

194 Conforme Boletim Eletrônico nº 3458, ANO VIII, São Paulo: IRIB, 2008. Disponível em: <http://www.irib.com.br>. Acesso em: 13.11.2008. 195 SCHIMIDT, João Pedro. Para entender as políticas públicas: aspectos conceituais e metodológicos. In: Direitos sociais & políticas públicas: desafios contemporâneos. Tomo 8. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2008, p. 2321.

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metas, pois, não havendo metas definidas ou expectativas de resultados, não há

como fazer comparação e, consequentemente, avaliação da eficácia.

Por outro lado, não se pode deixar de ver o otimismo que substitui a ausência

de metas pela suficiência do serviço, colocado à disposição dos que lhe procurem.

Nesse raciocínio, não há o risco da frustração dos objetivos, pois se apenas um lote

for regularizado será contabilizado como resultado positivo. Ainda que não se tenha

um parâmetro exato, pode-se dizer que o razoável número de uma regularização por

dia, média que tem sido alcançada pelo setor de regularização fundiária da

municipalidade caxiense, pode ser considerado como demonstrativo de eficácia

positiva, contabilizando-se a demora do processo no judiciário e a falta de procura

pela regularização como ingredientes negativos a melhores resultados. Para

contrapor a isso, é necessário, então, retirar do judiciário e melhorar a divulgação ou

ir ao encontro das dificuldades, talvez seja melhor solução para melhores resultados.

Justamente, esse é o entendimento do responsável pelo setor tendo em vista

que a estrutura funcional é enxuta e depende da procura pela regularização por

parte das pessoas interessadas. O setor não obedece à prática de ir atrás do

problema, mas sim, de enfrentar o problema que aparece. Além disso, nem todas as

irregularidades existentes podem ser solucionadas por meio do More Legal, que

depende da existência da área ideal devidamente registrada. Na análise do

entrevistado, nesse quesito, o leque de enquadramento precisa ser ampliado e

justamente as alterações que pretendem implementar, por meio de escritura pública

de regularização, poderão melhorar os resultados positivos.

Na avaliação da eficiência, a resposta do entrevistado, em relação aos

recursos investidos no setor para alcançar os resultados, resta prejudicada uma vez

que o responsável não dispõe dessa informação. Além disso, afirma que o custo do

departamento está incluído no orçamento geral da SDU. Assim sendo, essa uma

resposta eminentemente técnica, fica incompleta, pois não existem meios de

mensurar o custo do setor de regularizações fundiárias para a Prefeitura Municipal.

Assim, não pôde responder o quanto custam para os cofres públicos caxienses as

regularizações fundiárias.

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Por último, a resposta quanto à legitimidade pode ser considerada

satisfatória, se levar em conta aquelas pessoas que procuram pela regularização e

que se enquadram nos requisitos para tal. Na avaliação do entrevistado, a

legitimidade é muito boa, tendo em vista que a procura é constante. Porém, se

considerar a amplitude do problema e aqueles que estão de alguma forma excluídos

da solução, a resposta é a carência de legitimidade, pois deveria ser um programa

mais abrangente, por certo.

Perguntado sobre uma auto-avaliação, o entrevistado considera satisfatória a

atuação do setor e para melhorar e facilitar as regularizações, ele entende

dispensável a participação do poder judiciário, pois na forma atual do More Legal,

todos os processos devem passar pelo crivo do Juiz Corregedor e Ministério Público

e isso emperra e torna demoradas as soluções. Entende ele que a tramitação do

processo devia se limitar à prefeitura municipal, que é o órgão mais interessado na

solução do problema e o registro de imóveis, que é quem confere a juridicidade à

regularização. Isso poderia ser realizado exclusivamente na esfera administrativa, a

exemplo da forma utilizada para as regularizações das vias públicas que dependem

apenas do expediente da Prefeitura Municipal. Na sua manifestação, identifica,

ainda, a necessidade de maior divulgação pela Prefeitura Municipal para que as

pessoas, que dependem de regularizações, procurem o Setor responsável.

Quanto aos reflexos positivos, arrola o chefe do setor, como sendo o

benefício da Prefeitura no recolhimento de impostos como IPTU e ITBI, nas

regularizações das obras (INSS), benefício para o mercado imobiliário e para o setor

dos financiamentos habitacionais e imobiliários, e para o Registro de Imóveis com a

abertura de matrículas, registros das transferências de propriedades e de outros

negócios jurídicos de imóveis, como as hipotecas, as alienações fiduciárias e demais

contratos com o sistema financeiro.

Sintetizando, a percepção do poder público refletido pelo setor de

regularizações fundiárias demonstra o perfeito entendimento das dificuldades para

alcançar melhores resultados nas regularizações fundiárias, especialmente das

situações consolidadas e irreversíveis fundamentadas em contratos de aquisição de

frações ideais de imóveis em loteamentos irregulares. Ao reconhecer que as

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irregularidades avançam mais rapidamente do que as regularizações conseguem

contrapor-se, o responsável sugere mecanismos para sustar a expansão irregular

mesmo sabendo que não existe essa ação mágica e que a busca pela moradia é um

direito natural do ser humano e o único meio de estancar essa busca é propiciar o

seu alcance.

Por outro lado, o entrevistado destaca ainda como a medida mais efetiva para

alcançar melhores resultados nas regularizações, a importância da simplificação e

facilitação do processo regularizador indicando o caminho do serviço extrajudicial

como o próximo passo nessa direção, bem como a maior divulgação do trabalho

para atrair os interessados. O exemplo das regularizações do loteamento “Jardim

das Hortências” e demais loteamentos efetivadas a partir do final dos anos 1980

servem para indicar o caminho da simplificação dos procedimentos e a necessidade

do reconhecimento das situações do fato social da propriedade precária consolidada

e irreversível. Esse indicativo resultou no More Legal, hoje, o principal instrumento

regularizador utilizado no âmbito estadual e no município caxiense. Entretanto, esse

mecanismo, na visão do administrador público, necessita de oxigenação e

modernização, retirando-se da esfera pública judicial a prerrogativa das

regularizações e transpondo-a para o setor privado aonde poderá obter maior

agilidade, eficiência e eficácia, e como consequência maior legitimidade, entre

outros benefícios ao bem comum.

3.2.2 A regularização na percepção de quem atua no registro imobiliário

De fato, é incontestável a importância do registro de imóveis na composição

das regularizações fundiárias pois sem a matrícula do imóvel não se pode falar em

lote regular. Nesse viés, a percepção do problema emanada por esse órgão, na

pessoa do titular do serviço imobiliário, é fundamental para o entendimento da

matéria e para a elaboração de qualquer solução que vise ao processo de

regularização fundiária, pois traz indicativos para superar as barreiras de entrada

que o direito imobiliário opõe aos processos de regularização, amplamente

debatidas no Capítulo I.

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Desse modo, no município de Caxias do Sul, a pessoa mais indicada e

qualificada para prestar tais esclarecimentos e iluminar a questão é o titular do 1º

Ofício de Registro Imobiliário da comarca, Sr. Olintho Mendes de Castilhos196, para

quem “esse é um tema candente e, depois da corrupção, é o tema mais debatido no

Brasil”. Inicialmente, destaca que é assunto para ser tratado, debatido e solucionado

na situação do imóvel, ou seja, “deve ser apresentado perante o registro da situação

do imóvel, por força do art. 512, da Consolidação Normativa Notarial e Registral do

Rio Grande do Sul”, afirma.

Ressalta o Oficial que a sua participação pessoal e engajamento nas

questões relativas às regularizações fundiárias no município deve-se à determinação

do Juiz Diretor do Foro da comarca, Dr. Lívio Paulo Susim, que em 1991 nomeou-o

para essa função por meio da Portaria nº 051/91-DF. Esclarece que essa decisão do

pretório competente: “deu-se motivada pela situação anárquica e singular

efetivamente estabelecida no município” na questão dos parcelamentos do solo

urbano. Naquela oportunidade, conta ele, diversas entidades de Caxias,

especialmente a Câmara de Indústria e Comércio (CIC) e a União das Associações

de Bairros (UAB), procuraram o Juiz Diretor do Foro solicitando-lhe providências,

pois os adquirentes dos imóveis, normalmente pessoas de modesta renda, estavam

prejudicados em seus direitos na medida em que tinham um documento de

aquisição que não era reconhecido, como por exemplo, apresentavam na Prefeitura

Municipal um projeto para construção de casa e não era aceito, pois era um terreno

irregular. Fato que, segundo o registrador, demonstrava uma incoerência do poder

executivo municipal na medida em que, para recolhimento de tributos como o ITBI e

o IPTU, o imóvel não era considerado irregular e tinha sua avaliação para base de

cálculo feita plenamente em igualdade de condições aos terrenos regulares.

Além disso, relata o Oficial, os moradores irregulares apresentavam-se com

seus títulos precários nos agentes financiadores da casa própria e também eram

recusados no acolhimento porque o título não era hábil. Assim, precisavam ter seu

título formalizado com matrícula e registro, pois nas condições em que se

196 O Sr. Olintho Mendes de Castilhos, “Seu Olintho”, como prefere ser chamado e cujo perfil está adiante explicitado no Anexo A, fl. 142, concedeu esta entrevista no dia 14.11.2008, nas dependências do Registro de Imóveis da 1ª Zona de Caxias do Sul.

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apresentavam não havia meios de os agentes financeiros aceitarem o imóvel em

garantia para financiamento. Por outro lado, prossegue Castilhos, as situações eram

irreversíveis e consolidadas, na maioria das vezes já existiam construções (da

moradia) e a Prefeitura Municipal exercia uma função meramente contemplativa e

não fiscalizadora como a lei impõe.

Dessa maneira, o Juiz Corregedor acolheu os pedidos formulados e

determinou em portaria a designação do oficial registrador para promover a

articulação e a formulação legal para a regularização de loteamentos irregulares,

com a execução dos procedimentos pertinentes. Posteriormente, a Portaria 022/94-

DF, da Juíza Corregedora Dra. Maria Olivier, re-editou a Portaria nº 052/91-DF, e

permanece em vigor até os dias atuais. Dessa maneira, restou instituído um

procedimento de regularizações que se tornou o embrião do Projeto More Legal, na

medida em que as escrituras de frações ideais passaram a ser acolhidas ao registro

e os registros de frações ideais passaram a ser convertidos, por retificação da

escritura, em matrículas de imóveis individualizados, mediante certidão expedida

pela municipalidade.

Relata Castilhos: “no início dos trabalhos de regularizações, antes do More

Legal, por combinação havida entre a SDU e o Registro de Imóveis, passou-se a

agilizar e produzir convenientemente bem a regularização de determinados

loteamentos de modo que, para aqueles [loteamentos] que tinham a escritura se

fazia uma retificação, dizendo que a intenção era vender a unidade autônoma, isso

em decorrência da regularização administrativa da municipalidade que emitia as

certidões de medidas e confrontações dos lotes”. Tratava-se da conversão da fração

ideal em unidade autônoma, aprovada pelo Juiz Corregedor. “Desenvolvemos na

época dezenas e dezenas de loteamentos”, e acrescenta,

Com o decorrer do tempo, houve outras dificuldades para regularizar loteamentos, ou porque a empresa loteadora não existia mais, ou porque pessoas físicas também não estavam mais aí, então passamos a olhar essa questão na regularização individual, porque o More Legal faculta a regularização do loteamento, do quarteirão ou do lote.

De maneira que, completa, “optou-se pela regularização do lote individual

porque essa pessoa já saía com seu título”.

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Esclarece o registrador que a regularização pelo More Legal é possível tanto

para imóveis urbanos quanto para imóveis rurais, desde que nesses, a destinação

do imóvel não seja mais produtiva ou extrativa agrícola. No curso da sua

explanação, explica o Oficial, que não vê maiores problemas para a titulação,

inclusive das áreas de risco ou de preservação, pois isso representaria a

possibilidade de estabelecer negociação entre a Prefeitura Municipal e o proprietário

precário para sua remoção do local. Para ele: “a discriminação que existe quanto à

área de risco é muito relativa, pois hoje, com a engenharia, pode-se construir até

mesmo em penhasco”. Contudo, pelo Provimento da CGJ e legislação municipal não

é possível fazer-se a regularização da área de risco, não obstante para o registrador,

não se justificam esses impedimentos, pois como diz:

Há um princípio do Código Civil de que o ônus acompanha o imóvel, então eu não vejo maior problema em se titular essas pessoas que mantêm contratos, e que são essencialmente proprietários, e averbar nessa mesma matrícula essas circunstâncias fáticas do imóvel, para efeitos de terceiros, e a fim de que tenham o título e possam negociar com a Prefeitura uma remoção. Assim sendo, os proprietários precários têm que ter título para negociar com a Prefeitura. Ficaria muito estranho e incômodo eles terem que negociar com a Prefeitura em cima de contrato de fração ideal, pois a Prefeitura receberia uma área sem título em troca de área titulada, isso corrigiria uma situação, mas criaria outra, não desejada.

Pondera-se então, se esse princípio é admissível em relação às áreas de

risco, com mais razão pode ser estendido às demais áreas não oneradas, isto é, aos

lotes enquadrados nas normas urbanísticas básicas, ainda que irregulares, com o

que concorda o servidor.

Inusitado é o relato do Oficial a respeito do programa de loteamentos

populares do município:

No curso dessas ações nos deparamos com o maior dos absurdos, em que a Prefeitura Municipal mostrou-se a maior loteadora irregular do Estado, pois vendia lotes por meio de contrato de promessa de compra e venda, com mútuo e garantia hipotecária. Notam-se os seguintes absurdos, em primeiro lugar, a venda sem o loteamento estar registrado, em segundo, que mútuo é contrato de empréstimo em dinheiro e não de venda de imóvel, e em terceiro, a garantia hipotecária de bem imóvel somente pode ser conferida por instrumento público.

Com referência à regularização do loteamento “Jardim das Hortências”, em

que o proprietário da gleba passou a outorgar as escrituras dos lotes diretamente

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aos moradores, sem a participação da empresa loteadora, modelo nesse estudo da

possibilidade de transmutar o fato moral em fato legal, lembrou o Registrador sua

participação direta no episódio, pois partira dele a iniciativa de reunir as partes

envolvidas e promover a formulação legal para a execução dos procedimentos

adequados. Com a intervenção do Oficial e ameaça de encaminhar o problema para

a via judicial criminal, prontamente foi acatada a elaboração que permitiu a outorga

das escrituras aos moradores. Da mesma forma, os obstáculos legais foram

suplantados pelo interesse do bem comum, sacramentado pela autorização judicial

do juiz corregedor que homologou o acordo então estabelecido, como declara o

entrevistado: “Os compradores não tinham nada a ver com a desavença entre o

proprietário e o parcelador e eram os que estavam sendo prejudicados”.

Perguntado se a tendência é facilitar as regularizações, o Registrador

responde: “Sabe-se que existe um projeto no Congresso Nacional em que dão uma

especial atenção às irregularidades, não tenho conhecimento do texto, mas acredito

que sim”, e completa: “existem cidades inteiras registradas como fração ideal e não

há individualização das unidades”. Cita ainda que a regularização das vias públicas

foi facilitada por requerimento, que as escrituras de fração ideal de situação

consolidada, que passaram a ser autorizadas pela Ordem de Serviço nº 002/08-DF

como instrumento para se habilitar ao More Legal, decisões que são mais uma

demonstração de que a simplificação dos procedimentos é o caminho natural da

regularização fundiária.

Perguntado se acredita que um procedimento totalmente administrativo, sem

necessitar do judiciário seria possível, o registrador afirma: “Eu acredito que sim,

pois a retificação de área, que era feita por procedimento judicial, foi deslocada pela

Lei 10.931 de 2004 para a via administrativa, no Registro de Imóveis, onde o Oficial

recebe o processo, faz o exame e mesmo decide sobre o assunto”.

Complementando:

Outro desafogo do judiciário são as partilhas em inventários, divórcios e separações que foram para a área notarial, também há notícias de que a usucapião também poderá seguir para a área notarial extrajudicial, desafogando o judiciário de uma forma expressiva. Então, considerando essa evolução e que as questões sociais atropelam as leis, considerando esses avanços e precedentes, nos tribunais e corregedorias, eu tenho a impressão que nós vamos avançar nesse processo e que esse exame será

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feito pelo tabelião e pelo registrador, afinal o tabelião e o registrador têm fé de ofício, se não cumprirem as determinações legais, têm as sanções, então não vejo motivos para que assim não se proceda, evidentemente regrado pelo judiciário.

“A ciência do direito, se não levar em conta o fato social é vazia. É um

absurdo que a lei não tenha encontrado até hoje um meio de regularizar os imóveis”,

enfatiza o entrevistado.

Assim sendo, pouco resta para complementar essas tão lúcidas e objetivas

observações que em muito enriquecem este trabalho, especialmente tendo em vista

a autoridade do Sr. Olintho Castilhos, aliada ao profundo conhecimento jurídico e

prática da matéria.

3.2.3 A regularização na percepção de quem atua no poder legislativo

municipal

“Esse assunto é muito importante e me interessa muito”, assim respondeu o

vereador Francisco Spiandorello197, ao convite que lhe foi feito para abordar o tema

e conceder esta entrevista.

Com a finalidade de contemporizar e contextualizar a matéria, inicialmente

foram colocados alguns fatos ligados à regularização fundiária no município

caxiense, entre os anos 1980 e 1990, cujos reflexos perduram e se propagam até os

dias de hoje. Como por exemplo, os resultados alcançados, de regularizar cerca de

cinco mil lotes dos vinte mil lotes irregulares detectados em 1988, são singelos se

comparados à extensão do problema, que mostra a ampliação de outras quinze mil

irregularidades no mesmo período.

Além disso, o setor de regularizações do município reconhece que nesse

ritmo não consegue solucionar o problema. Por sua vez, a policy municipal de

moradia, implementada via FUNCAP, é preponderantemente no sentido do

197 O vereador Francisco Spiandorello (PSDB), concedeu a entrevista no dia 19.11.2008, no seu gabinete junto à Câmara Municipal de Caxias do Sul. Maiores referências em relação à sua pessoa e sua atuação pública estão adiante explicitadas, no Anexo A, fl.142.

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atendimento das necessidades de moradia das famílias de renda de até três salários

mínimos, enquanto que o segmento com rendimentos acima de oito salários

mínimos é canalizado pela política habitacional para o setor financeiro, o qual não

tem limites para investimentos. Desse modo, os cidadãos situados na faixa entre

três e oito salários mínimos, que representam ao redor de 48% dos moradores da

cidade, tornam-se os clientes da informalidade e alimentam a expansão das

irregularidades, pois não têm acesso a financiamentos que aceitam comprometer

tão-somente 20% da renda, e requerem imóveis registrados.

Por último, a regularização do “Jardim das Hortências” demonstrou a

possibilidade da autonomia do registrador público para proceder as regularizações e

tornar o fato social em fato legal, desde que homologado pelo juízo competente,

ambos sob o princípio da subsidiariedade, bem como a facilidade documental como

um dos fundamentos para a agilidade do processo, desde que obtida a certidão

autorizadora do executivo municipal.

Nesse quadro, em que o legislativo local tem papel importante, pode-se

perguntar inicialmente, na visão do vereador, qual é a situação do parlamento frente

à questão da regularização de loteamentos no município?

O conhecimento do vereador na matéria é notório e sua experiência idem,

especialmente pelo fato de que já esteve no exercício do poder executivo, como

Secretário Municipal, e atualmente integra o legislativo como parlamentar. Assim

sendo, tem a perfeita visão do poder público em ambos os segmentos. Inicia

dizendo que, quando no executivo municipal, teve oportunidade de implementar um

plano habitacional para famílias com renda de até três salários mínimos e produziu

diversas regularizações e quatro mil unidades em loteamentos populares, com

módulos residenciais de 40m2, dotados de infraestrutura básica, escola e serviços.

Na época, a prefeitura iniciou ações de regularização e algumas foram concluídas

na gestão de que fez parte. Cita os loteamentos: Reolon, Arcobaleno, Jardim das

Hortências, Diamantino, Bom Pastor, Vila Leon, Cabos e Soldados, entre outros.

Enquanto no legislativo, teve oportunidade de votar e aprovar leis de uso e

parcelamento do solo urbano e planos diretores, bem como programas de

regularizações, além da aprovação legislativa de loteamentos regularizados.

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Na exposição do vereador, esses são fatos que demonstram a falta de

prioridade e da vinculação das verbas orçamentárias para a moradia. Aponta que o

orçamento público é o ponto nevrálgico das políticas públicas e que somente com a

priorização das ações, por meio da destinação dos recursos em orçamento, pode-se

garantir a mudança no quadro. “Qualquer ação depende da inclusão no orçamento”,

declara. Cita como exemplo a educação e a saúde que se modificaram somente a

partir da vinculação do orçamento em 15 a 25%, na esfera federal, estadual e

municipal. Para o parlamentar: “No mínimo 5% do orçamento deveria ser destinado

à moradia em todas as esferas políticas”. Aponta ainda que programas

emergenciais, como por exemplo, o “banco de materiais”, mutirões e regularizações

pontuais não consegue suprir deficiências históricas.

Nesse viés, manifesta que “hoje a intervenção tem que ser rápida, pois está

atrasada em trinta anos, porque se tivessem acordado trinta anos atrás, não

teríamos esses problemas”. Completa dizendo que: “Então o poder público cria

problemas para ele mesmo”. Em seu diagnóstico, a municipalidade deve antecipar-

se aos acontecimentos e sair da passividade, “tem que ser ativo com a sociedade e

dar soluções à frente dos acontecimentos, tem que ser inteligente”. Alerta que: “A

passividade do poder público é prejudicial e ele tem que interagir com a

comunidade”.

Continuando a análise das ações no âmbito do executivo, o edil sugere

algumas mudanças que defende em sua plataforma legislativa, as quais, como se

verá, parecem convergir para o princípio da subsidiariedade, tema deste trabalho.

Entende ele que as ações de regularização fundiária, com recursos do orçamento,

devem ser integradas no seio do poder executivo, isto é, as diversas secretarias

municipais devem trabalhar em conjunto sob uma mesma coordenação e sob

orientação (subsidiária) de um conselho com a participação de todos os segmentos

interessados, assegurados o assento dos cidadãos. “Precisa fazer um grupo de

trabalho com interação das outras secretarias para uma resposta mais imediata”, diz

o vereador.

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Além disso, a municipalidade deve “ampliar as ações e parcerias”, deve criar

uma legislação própria e “a universidade tem que ser chamada para esse campo”,

pois ressalta, “o processo deve ser multidisciplinar envolvendo pessoas com

conhecimento, formação e que possam apresentar soluções rápidas”. A participação

da iniciativa particular é uma das bandeiras, como afirma: “Temos que chamar a

iniciativa privada não só para fazer loteamentos, mas também para a regularização

fundiária”. Para o vereador, “precisamos fazer com que o poder público, através de

licitações e meios legais, comece também a transferir para a iniciativa particular essa

tarefa”. Justifica que, “em última instância quem está pagando a regularização e tem

interesse nisso é o próprio pretenso proprietário, ele tem interesse em pagar e

colocar em ordem, ele faz sacrifício e paga”. Completa dizendo, “é lógico que o

poder público tem que subsidiar, mas para ter rapidez e agilidade, temos que fazer

isso”.

A respeito da atuação do legislativo, o parlamentar considera que a casa tem

feito um bom trabalho, como exemplo cita a legislação do uso do solo e o plano

diretor urbano de 2007, ambos com avanços sociais adequados ao Estatuto da

Cidade e às legislações específicas do código de obras e da destinação do lixo

urbano e industrial que são exemplares a nível nacional. Entretanto, confrontado

com a Lei nº 6.810, de 20 de dezembro de 2007, que disciplina o parcelamento do

solo urbano e a regularização fundiária no município, a qual nos seus oitenta e

quatro artigos não trata da regularização fundiária198, e perguntado se os vereadores

estão preparados para as discussões e votações algumas vezes eminentemente

técnicas ou jurídicas. Ele justifica dizendo: “realmente, o legislativo não tem o

assessoramento técnico que o executivo dispõe”. Reconhece que os vereadores

devem-se preparar melhor sobre os temas. Sobre isso, lembra que as viagens de

estudo e participação em eventos de conhecimento por parte de vereadores sofreu

intensa crítica em setores da sociedade, em função dos desperdícios e desvios

praticados em alguns municípios. Por isso, essas iniciativas foram reduzidas,

inclusive no legislativo caxiense, “muito embora esses escândalos não tenham

ocorrido nesta Casa”, completa.

198 Salvo os conceitos da regularização fundiária de interesse social e regularização fundiária de interesse específico, dispostos no art. 4º, IV e V, respectivamente.

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Por outro lado, pondera o entrevistado: “é do debate e da discussão que

surgem boas leis”, cita como exemplo, o Plano Diretor vigente que tramitou dois

anos para aprovação após ampla discussão em audiências públicas. O mesmo

tratamento deve ser dado às demais leis, diz ele. Ressalva: “A lei por si só não

garante sua execução, temos milhares de leis que não adiantam nada porque não

têm ligação com a realidade”.

O edil explica que: “o trabalho do legislativo não é somente fazer leis, cuidar

do cumprimento das leis, da fiscalização do executivo e derrogar leis não cumpridas

ou desnecessárias” são atividades que fazem parte das suas funções. Contudo,

afirma: “grandes questões não chegam na profundidade de conhecimento de

integrantes do legislativo”. Aponta como aspecto relevante e influente nas votações

as convicções e os compromissos do legislador com o grupo político e o eleitor que

lhe elege.

Perguntado sobre qual o papel que o legislativo pode desempenhar nas

regularizações fundiárias, o vereador responde que, nesse propósito, a principal

tarefa parlamentar é fiscalizar o poder executivo e a aplicação das leis, mas

principalmente, “levantar o debate sobre o tema, promover a discussão para

encontrar alternativa e mobilizar a comunidade”. Explica que por força da limitação

de competência “as leis que dão despesa não podem ter origem no legislativo”,

assim lhe resta apreciar e votar as leis que forem e se forem encaminhadas pelo

executivo. Reclama que, “pelo sistema vigente, o legislador não conseguiu se situar

comunitariamente. Na cabeça do povo é tudo com o executivo, é o que tem a

máquina, é o que tem o dinheiro, é o que faz! O povo quer saber quem faz!”. Assim,

a participação da Câmara no processo legislativo das regularizações, propriamente

dito, tem sido examinar e aprovar as leis específicas, em relação à matéria,

encaminhadas pelo executivo. Especialmente aquelas de aprovação dos

loteamentos e as de diretrizes orçamentárias do município para a execução das

ações.

A manifestação do vereador deixa claro que a limitação para propor algumas

espécies de leis, como aquelas voltadas às regularizações fundiárias, é uma

dificuldade para o exercício do legislativo, pois não pode mexer no orçamento que é

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o espaço onde são viabilizadas as ações regularizadoras. Ressalva a possibilidade

de o vereador apresentar emendas ao orçamento, mas a aplicação dessas emendas

depende da vontade do executivo, pois, não as querendo, pode transferir os

recursos da emenda para outra finalidade. Relata o entrevistado: “durante oito anos

como oposição nenhuma emenda minha foi aceita. Diziam que só vale o que estiver

no Orçamento Participativo, o que não estiver não é aceito.” Por outro lado, lembra

que o orçamento deliberado nas comunidades não apresenta a moradia como

prioridade, pois as carências são tantas na área da saúde, segurança e

infraestrutura básica, que as escolhas são canalizadas para esses segmentos.

Completa dizendo: “desconhecem que essas carências têm como uma das fontes a

falta da moradia digna”.

Perguntado como deveriam ser as ações e legislação municipal voltadas a

facilitar e melhorar os resultados das regularizações e diminuir a demanda por lotes

irregulares, o edil declinou alguns aspectos fundamentais relativos ao legislativo, ao

executivo e à sociedade civil que, a seu ver, precisam ser equacionados. O primeiro

deles diz respeito aos próprios vereadores que, “precisam estar integrados, tratando

com a Universidade, tratando com os intelectuais, tratando com o empresariado e

com os trabalhadores para ter o conhecimento e equilíbrio necessário para apreciar

a matéria”. Em relação ao executivo, disse que ele precisa definir prioridades, incluir

o tema no orçamento para aprovação no plenário e transferir competências. Por sua

vez, a sociedade deve assumir cada vez mais a tarefa, não só da implantação de

loteamentos, mas também, da regularização, sempre em conjunto e sob orientação

do Poder Público.

Quanto à legislação e ações propriamente ditas, o vereador entende que a lei

de implantação de loteamentos deve definir requisitos menos exigentes que os

atuais para diminuir os custos, “se não o povo não consegue comprar”. Disse que o

loteador deve ter obrigações essenciais para cumprir, mas não dá para exigir

requintes, pois vão continuar existindo irregularidades porque as pessoas não

conseguem comprar o lote legal. O entrevistado destaca que a legislação pode

estabelecer condições especiais e estender benefícios, inclusive fiscais, como

incentivo e meio de atrair a iniciativa privada para atender a demanda e operar

nesse nicho de mercado.

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Nesse sentido, refere o parlamentar que medidas para suprir a escassez de

recursos, entre as quais a fiscalização tributária e a diminuição dos impostos podem

servir para aumentar a arrecadação, na medida em que podem retirar a economia

informal da clandestinidade e diminuir a sonegação formal. Cita como exemplo a

legislação de Minas Gerais e de São Paulo, onde a redução de impostos dobrou a

arrecadação. Com mais recursos o executivo pode assumir mais tarefas e, inclusive,

subsidiar a moradia.

Ainda na questão do uso da legislação como incentivo à ação da iniciativa

particular, lembra que é possível estabelecer condições especiais, além dos

benefícios fiscais, para o loteador privado atender a demanda das diversas classes

de renda, como por exemplo, determinar percentuais nos lotes do loteamento de 5%

para baixa renda e de 25% para media renda. Ou ainda, para cada loteamento de

alta renda, o loteador poderá implantar número determinado de loteamentos

populares ou sociais, e assim por diante.

Havendo recursos, o vereador sugere lei que determine ao executivo

implementar loteamentos não só para famílias com renda abaixo dos três salários

mínimos, mas, também, para o segmento até sete salários mínimos. Justifica

dizendo que assumir as irregularidades e concluir loteamentos inacabados ou ilegais

sai mais caro para a população do que a prefeitura executar projetos específicos

para cada faixa de renda, desde o início. Para tanto, a municipalidade pode fazer

parcerias com proprietários de glebas dispostos ao parcelamento, chegando antes

que o loteador clandestino e evitando sua ação, ou seja, antecipando-se ao

problema. O executivo pode, ainda, transferir essa parceria para a iniciativa privada,

deixando-a executar o empreendimento.

Declinando, por fim, que o legislativo estará sempre pronto para dar a

resposta que lhe for solicitada, desde que o poder público executivo encaminhe as

propostas legislativas.

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3.3 A regularização na visão da comunidade local e da iniciativa privada

“A situação de vários municípios brasileiros pode ser considerada angustiante

se for levado em conta a falta de recursos pessoais e qualificado para realizar seus

projetos.”199 Com essas palavras, Hugo Thamir Rodrigues e Priscila Rettenmaier

justificam a necessidade desses entes federativos partirem para ações conjuntas e

união de esforços entre si, com exemplo na regionalização de ações, para

superarem deficiências. Nesse rol é possível incluir ações com a comunidade

organizada e a iniciativa privada, por meio de parceria ou transferência de

atribuições. Nota-se nesse enfoque a presença, novamente, dos elementos de

solidariedade e subsidiariedade na realização do bem comum.

Desse modo, é importante obter a palavra do segmento de moradores de

loteamentos irregulares, bem como do setor da iniciativa privada que visa à

exploração econômica de parcelamento urbano, para incluir no rol das

possibilidades os anseios e dificuldades que a seus olhos aparecem.

3.3.1 O fortalecimento solidário na comunidade loca l como fonte da realização

da moradia

A regularização do “Loteamento Jardim das Hortências” pelo ineditismo de

providências e soluções encontradas, serve de modelo para as ações

regularizadoras, por isso, captar a impressão da comunidade local deve estar

incluída nesse trabalho e auxiliar para a compreensão da essência do problema.

Nesse propósito, segue a entrevista realizada com a presidenta da Associação dos

Moradores do Jardim das Hortências, Srª. Vanir Teresinha Dalzotto Costa200.

Relata que é moradora no local desde março de 1982 e que viu nascer o

bairro cujo único serviço público disponível era o recolhimento de lixo, duas vezes

199 RODRIGUES, Hugo Thamir; RETTENMAIER, Priscila. Convênios e consórcios municipais: instrumentos de harmonização de políticas públicas tributárias. In: Direitos sociais & políticas públicas: desafios contemporâneos. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2008, p. 2508. 200 A entrevista com a Srª Vanir Teresinha Dalzotto Costa foi concedida no dia 21.11.2008, na sua residência no Bairro Jardim das Hortências. O perfil da entrevistada está adiante, no Anexo A, fl. 143.

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por semana iniciado em 1983, mas que não tinham água, esgoto, luz e calçamento.

Conta que a luz precária alcançou parte do bairro e foi colocada em 1982, mas o

transformador não garantia o fornecimento regular com constantes “apagões”,

situação que foi regularizada a partir de 1985.

O transporte coletivo só chegou ao “Jardim das Hortências” em 1991 e,

segundo a presidenta, é de grande importância para a vida comunitária. Descreve

que, antes disso, os deslocamentos das pessoas eram feitos com auxílio prestado

entre os moradores, por meio de carona em veículos particulares ou

compartilhamento em veículos de aluguel. Pode-se aqui apontar elementos que

fortalecem o capital social e as redes de relacionamento baseado na mútua

confiança, também componentes essenciais na solidariedade.

Prossegue dizendo a presidenta que os moradores ficaram quatro anos sem

receber qualquer serviço básico por parte da municipalidade, o que gerou um

sentimento de abandono nos moradores, completa a entevistada: “nós somos

abandonados até hoje pelo poder público”. Solicitada a esclarecer melhor, explica:

“com essa divisão da cidade em microregiões, nós pertencemos ao Bairro Cruzeiro,

o que não nos ajuda em nada, pois aquele bairro, por ser maior que o nosso quer

tudo pra si, e nós, porque somos um bairro pequeno, ficamos em segundo plano e

não temos por perto um bairro para trabalhar em parceria”. Estas divisões

administrativas tem sido objeto de crítica constante das associações de bairros e

bairros próximos tentam modificar essa situação, comenta.

O abastecimento de água era feito em um poço comunitário e captação de

água da chuva, posteriormente o bairro foi abastecido por caminhões particulares e

o fornecimento de água encanada foi implantado em 1985, após mobilização dos

moradores junto ao Serviço Municipal de Água e Esgoto (SAMAE). O acordo

estabelecido resultou no pagamento dos custos divididos, 50% para os moradores e

50% para a autarquia. A pavimentação do loteamento veio em 1998, também pela

movimentação e contribuição dos moradores que fizeram o calçamento das

principais vias locais, faltando pouca coisa para completar o serviço, informa a

entrevistada. A principal participação da comunidade dá-se por meio do Orçamento

Comunitário (antes Orçamento Participativo), onde conseguiram a pavimentação do

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restante do loteamento sem que houvesse necessidade de complementação paga

pelos moradores.

Quanto à faixa de renda dos moradores, assevera a presidenta, é constituída

por trabalhadores na indústria com renda entre cinco e oito salários mínimos e que

todos os moradores têm sua casa edificada, a maioria com carro próprio.

Respondendo sobre o nível de organização social, esclarece que o bairro, além da

AMOB e de grupos religiosos, conta com um Clube de Mães, apontado como o mais

ativo das entidades locais, e a Associações de Pais e Mestres da Escola Municipal.

Além disso, a AMOBJH é filiada à União das Associações de Bairros de Caxias do

Sul (UAB). No quesito educação, ela informa que a maioria dos moradores possui

nível escolar médio e técnico, enquanto filhos de moradores frequentam a

universidade caxiense.

Comentando a regularização, a entrevistada esclarece que ainda não tem a

escritura do seu imóvel, alega que há dois anos, quando tentou fazer, enfrentou

dificuldades em função da negativa da prefeitura em dar a certidão do lote alegando

a necessidade do registro da benfeitoria, esse registro, por sua vez, também era

difícil por falta da planta da obra, cuja execução fora feita pela própria moradora.

Assim, em razão dessas dificuldades, a presidenta e outros moradores na mesma

situação acomodaram-se e ainda não obtiveram seu título de propriedade. Desse

modo, atribui a falta de regularização de alguns lotes tão-somente à situação de

comodidade e/ou por falta de recursos para legalizar sua propriedade, cujos custos

andam ao redor dos dois mil e quinhentos reais (R$ 2.500,00) por conta do ITBI e

despesas cartorárias com escritura e registro.

Ademais, entre as dificuldades para regularizar afirma a moradora: “a maior

parte é falta de informação do que de documentos, inclusive falta de informação de

como alcançar tais e quais documentos”. Complementa dizendo que essa situação

vem desde a aquisição, refere, “em primeiro lugar a falta de informação pelo

vendedor, pois ao quitar, muitas pagaram à vista e algumas em doze meses, e não

foram informados das irregularidades. Depois, a falta de informação pela prefeitura

também contribuiu para a demora nas regularizações”. Assim sendo, estima que

quase um terço dos moradores ainda não dispõem do título de propriedade, muito

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embora há vinte anos todos paguem IPTU, cujo valor médio atual é de R$250,00 por

terreno, como afirma. Isso significa que em IPTU o loteamento contribui com algo em

torno de R$ 60.000,00 anuais, em contrapartida, a municipalidade investiu nas

pavimentações R$ 100.000,00 em três anos, o que para a presidenta “é muito pouco

investimento”.

No âmbito da cidadania, o “Jardim das Hortências” possui em torno de dois

mil eleitores e, informa a moradora: “tem três urnas que ficam localizadas na Escola,

único prédio público local”. Votam ainda no bairro os moradores da redondeza, pois

os bairros Capivari e Vila Telles não têm urnas de votação. Quanto à representação

do bairro no legislativo, afirma a presidenta que não há vereador específico que seja

prioritário ou identificado com o loteamento, “em época de campanha eles

aparecem”, afirma.

Perguntada sobre a relação de união e mobilização entre os moradores, a

presidenta responde: “no início eles trabalharam e se mobilizaram mais e hoje estão

mais acomodados”. Acrescenta que, “todas as melhorias no local somente foram

alcançadas pelo esforço comum de todos na busca dos mesmos objetivos e com

muita presença e pressão junto aos órgãos do município”. Destaca que as mulheres

são as que mais se mobilizam, “nós temos um grupo muito grande de mulheres que

começaram em 1993 a se reunir, inicialmente com o número de dezesseis mulheres

e até hoje temos uma solidariedade muito grande entre nós”. Assegura que como

presidenta (mulher) não tem encontrado dificuldades em trabalhar, sempre obtendo

sucesso nos abaixo-assinados e demais mobilizações da comunidade. Acrescenta

ela: “se convocados eles comparecem, nem que seja para criticar”.

Desse modo, após a entrevista, restam bastante claros alguns aspectos que

marcam a vida da comunidade. Primeiramente o segmento social que desenvolveu o

loteamento está enquadrado na faixa dos três a sete salários mínimos, composto por

pessoas jovens e idade média, com bom nível de escolaridade e com trabalhadores

especializados da indústria metalúrgica que gravita próxima ao loteamento. Em

seguida, destaca-se o sentimento solidário presente em todas as ações dos

moradores, desde a constituição do loteamento, passando pela instituição da

AMOBJH e pelas mobilizações e mutirões para alcançar as melhorias de

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infraestrutura, serviços e transporte público do loteamento. Também é marcante o

fato que foram justamente as dificuldades que provocaram a necessidade da união e

conjugação dos esforços, pois o fato de “hoje estarem mais acomodados”, deve-se

mais à realização dos anseios do que seja reflexo de qualquer desânimo dos

moradores, que convocados comparecem!

Na análise sobre as barreiras encontradas no processo de regularização, sua

maior referência é quanto ao custo e à falta de informação que dificulta mais do que

a falta de documentos, pois “há falta de informação inclusive de como alcançar tais e

quais documentos”, situação que perdura desde a aquisição precária até hoje. Aqui

um alerta para o administrador modificar sua postura de esperar pelo problema e

passar a ir ao local para esclarecer e debater a questão, para melhorar os

resultados.

Na verdade, o que se destaca e sobressai no que foi dito é que a realização

da moradia é um trabalho fundamentado na união, participação e solidariedade

existente entre os moradores do “Jardim das Hortências”, no exercício de suas

autonomias. Por sua vez, os resultados positivos no âmbito do poder público

somente são alcançados após intensa mobilização da comunidade organizada. De

modo que se podem considerar as dificuldades como alimentadoras da

solidariedade.

3.3.2 A percepção do agente da iniciativa privada

Sabe-se que os loteamentos irregulares por suas características de formação,

que envolve primeiramente o baixo custo dos lotes e, em segundo plano, a rapidez

para se formar e prontamente solucionar o problema da moradia para trabalhadores

que buscam afastar-se do aluguel, encontra um segmento social ávido por essa

mercadoria, situado em faixa própria de renda a qual não se enquadra nos

programas habitacionais sociais de baixa renda, tampouco no seleto grupo que

acessa o mercado financeiro imobiliário.

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Nesse contexto, a opinião do setor empresarial que atua na implantação de

loteamento regulares pode trazer elementos que sirvam para esclarecer a

problemática e apontar aspectos para melhorar os resultados das regularizações ou,

ao menos, que sirvam para contrapor-se ao crescimento do problema, na medida

em que supram a demanda por moradia desse segmento social.

Assim sendo pode-se inicialmente perquirir qual papel pode desempenhar a

iniciativa privada nas regularizações fundiárias? Ou, ainda, quais elementos podem

ser apontados em relação ao problema, tanto para causa quanto para solução?

Quem responde é o Sr. Ovídio Deitos201, conceituado empresário do setor de

urbanização e loteamentos na cidade de Caxias do Sul, onde atua há trinta e quatro

anos, cuja empresa implanta em torno de dois loteamentos por ano e já produziu e

entregou mais de quatorze mil lotes na cidade.

O entrevistado começa explanando que o plano diretor da cidade instituído

em 1972 foi readequado em 1973 e 1976, posteriormente nada mais foi feito neste

setor até 1996, quando o plano físico urbano implantado pela administração pública

marcou um retrocesso na cidade, na medida em que reduziu o perímetro urbano e

trouxe reflexos negativos na produção dos loteamentos regulares, bem como,

indiretamente, causou a expansão dos irregulares. A iniciativa do governo municipal

de 1996 revogou as leis anteriores e, diz ele: “voltou-se praticamente à estaca zero.

Reduziu-se o município a uma coisa muito pequena, tão pequena que algumas das

grandes empresas de Caxias ficaram fora do perímetro urbano”, afirma.

Ressalta o empresário que as medidas de definição do perímetro urbano

devem ser muito bem pensadas pelo executivo municipal antes de serem feitas,

“porque elas têm uma duração muito grande e têm grande impacto na comunidade,

seus efeitos se refletem por muitos anos, como aquela redução do perímetro de

1996 que tem reflexos até hoje, doze anos depois”. Complementa dizendo que

somente no ano de 2007, a legislação anterior foi revista e foi feito um novo plano

201 Esta entrevista foi concedida pelo empresário Sr. Ovídio Deitos no dia 25.11.2008, na sede da empresa que dirige, Urbanizadora Rodobrás Ltda, em Caxias do Sul. Maiores referências pessoais e sobre sua atuação pública e empresarial estão adiante detalhadas, no Anexo A, fl. 144.

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diretor que estendeu o perímetro urbano praticamente aos limites do município em

algumas áreas, como por exemplo na direção de Farroupilha, Flores da Cunha e

São Marcos, o que favorece as condições e planejamento para implantação de

loteamentos.

Perguntado em que segmento social a empresa atua e a que tipo de clientes

atende, o empresário responde que só consegue atender à classe média alta e

acima dessa, e completa o empresário: “àquele indivíduo com renda baixa, mas com

capacidade de pagar um financiamento adequado, não conseguimos acessar

porque temos que trabalhar quase no centro da cidade”. Com o encolhimento do

perímetro urbano os espaços para implantação de loteamentos ficam reduzidos. E

acrescenta ele: “hoje fazemos loteamentos ao lado do Recreio da Juventude, ao

lado dos Pavilhões da Festa da Uva que são terras altamente valorizadas”. Explica

que isso onera o custo do lote urbanizado, ao passo que com o perímetro ampliado

pelo novo plano diretor é possível trabalhar em outras áreas mais afastadas, como

em Ana Rech ou no fundo do Desvio Rizzo. Diz o entrevistado: “Posso trabalhar com

áreas maiores que têm preços melhores e, portanto, posso atender uma categoria

com menor renda”. Justifica: “desde 1996 para cá só conseguimos trabalhar a classe

média alta porque encolheu a cidade, quer dizer, só ficou a nata que tem alto preço,

não adianta querer diferente”.

Ressalva que atualmente a expectativa do setor volta-se para os segmentos

de menor renda. “Hoje já estamos projetando coisas para locais mais distantes, com

capacidade de absorver empreendimentos grandes, com grande número de lotes,

que possa viabilizar uma coisa mais econômica, em áreas mais baratas”, afirma o

loteador.

Dessa explanação pode-se inferir que a limitação do espaço urbano é um

fator preponderante de incentivo para a produção das irregularidades, na medida em

que as empresas que atuam no segmento não conseguem atender à demanda por

lotes de menor preço, a qual se canaliza naturalmente para as irregularidades como

meio de satisfação das necessidades de moradia com baixo custo.

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Para o problema apontado por alguns autores no sentido de que a expansão

periférica das cidades traz maiores custos para a sociedade, em face da

necessidade de investimentos em infraestrutura básica pela municipalidade,

transporte, entre outros, o entrevistado contrapõe dizendo que esses investimentos

são realizados pelas empresas loteadoras e não pelo município. Afirma que no setor

do transporte, as empresas têm interesse em expandir seus serviços. Completa

dizendo que o fornecimento de água potável, esgoto e energia elétrica, são feitos

pelo loteador. Lembra que em outros países não existe essa preocupação com a

expansão urbana, pois são constituídos por pequenas comunidades distantes dez a

quinze quilômetros entre elas. Acrescenta o empresário: “em Caxias, a água

captada em Ana Rech, cruza a cidade inteira para abastecer o Desvio Rizzo”.

Explana que essa é uma situação decorrente das condições físico-geográficas na

qual o planejamento tem que adaptar-se às peculiaridades locais,

independentemente da intenção de evitar custos decorrentes da expansão territorial.

Além disso, prossegue, muitos dos gastos com infraestrutura são suportados

igualmente pelo setor público e o privado, “quando foi feita a ampliação da adutora

que foi para o Desvio Rizzo, a empresa participou com o poder público porque nós

tínhamos interesse”, afirma o entrevistado, “não é somente o poder público que

investe, na verdade é a própria pessoa que vai comprar o terreno”. Ressalta o

empresário,

Essa questão de querer limitar a expansão territorial do município não é democrático, não é justo, pois querer que uma pessoa que nasceu em Santa Lúcia vai ter que viver toda a vida lá. Isso não é verdade, isso não acontece. As pessoas têm liberdade de locomoção, de ir aonde quiserem. Então, a cidade vai crescer enquanto tiver que crescer, não adianta fazer nada, ou limitar no papel.

E, conclui: “não é impedindo a expansão que se consegue diminuir os custos

com infraestrutura, mas sim, com planejamento e racionalização dos gastos”.

Questionado sobre o interesse de investidores no mercado imobiliário e a

relação com o custo do terreno, o entrevistado explica que aproximadamente 20%

dos compradores de terrenos são investidores de mercado, mas não sabe precisar o

estoque de terrenos baldios na cidade, “os demais compram para morar”. Por outro

lado, considera que esse estoque não deva ser elevado, pois a empresa também

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não possui grande reserva. Atribui a ausência de lotes no patrimônio da empresa à

“dificuldade em aprovar e licenciar novos empreendimentos na velocidade em que

seriam necessários”.

Como indicativo dessa falta de lotes regulares à venda aponta ele: “o terreno

ficou muito valorizado. Quando isso acontece, avalio que o estoque deva estar muito

pequeno”. Em relação ao imóvel como investimento, o empresário revela que os

lotes novos vendidos pela empresa são revendidos, no espaço de dois a três anos,

às vezes pelo dobro do preço original, o que considera um absurdo. Entretanto,

explica ele, isso demonstra que aquele lote legalizado, registrado, com infraestrutura

básica, tem um valor significativo, e como isso demora muito para ser obtido, por ser

uma atividade difícil de ser exercida, o valor do terreno fica elevado.

Na relação que possa existir entre os loteamentos irregulares e a atividade da

empresa, o dirigente explica que as irregularidades não influenciam na atividade

regular, pois o cliente do lote irregular compra em primeiro lugar pelo preço e, em

segundo lugar, pela velocidade com que o “loteador” pode entregar o imóvel. Nesse

sentido a entrega imediata não é possível para a sua empresa, pois depende da

burocracia em geral até finalizar o empreendimento. O empresário reafirma que a

restrição do perímetro levou muitos empreendedores à irregularidade, estes

poderiam estar fazendo lotes regulares, mas o executivo não lhes aprova os

projetos, pois ainda que estejam adequados às normas urbanísticas não se

localizam na área urbana. Ou seja, a definição do perímetro urbano e oferta de lotes

têm maior influência na produção das irregularidades do que a atividade privada no

segmento.

Para exemplificar, o entrevistado diz:

Se traçarmos uma linha imaginária do perímetro urbano, dentro dessa linha o preço da terra é um e do lado de fora o preço da terra é outro, então o loteador irregular vai direto para o lado de fora e consegue produzir um lote 30 a 40% mais barato do que a empresa regular consegue fazer.

Daí, então, a importância da definição desse perímetro de forma ampla e

depois, o município examina se aprova ou não, ressalta.

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Nessa análise, o loteador entende que deva ser interesse do município que

empreendedores produzam regularmente lotes que sejam acessíveis às populações

de baixa renda. Assim, projetos de loteamento para 500 famílias deveriam ser

privilegiados e estimulados pela administração pública, uma das medidas é a

expansão do perímetro urbano. Para ele, o loteamento irregular é fruto muitas vezes

dessas limitações que o poder público coloca, tais como: limite de perímetro urbano,

exigências documentais ou de áreas públicas, demora na aprovação de um

loteamento regular, entre outras.

Na questão da aprovação do loteamento pela municipalidade o entrevistado

identifica a burocracia existente como um dos fatores que influencia na composição

do preço do lote e na expansão das irregularidades, pois “o empreendedor que não

tiver uma boa estrutura, não consegue esperar dois a três anos para poder iniciar as

vendas e se obriga a vender irregularmente para recuperar o capital investido”,

afirma, e completa dizendo: “São barreiras que a própria sociedade coloca para que

a coisa seja bem feita, mas nem sempre isso acontece”.

Nesse viés, entende o empreendedor que o poder público deveria simplificar

os procedimentos de aprovação dos projetos, coisa que a nova lei não fez, pois

manteve as mesmas exigências da lei anterior. Não houve avanços. Explica que se

tiver que fazer um loteamento, a empresa tem que consultar o setor do meio

ambiente e o serviço de abastecimento de água, cujas manifestações são cruciais,

“pois dependendo delas não sai o loteamento”, enfatiza. Nesses órgãos são obtidas

as licenças prévias, essenciais para iniciar o projeto. Deve, depois, apresentar uma

diretriz de esgoto sanitário e pluvial, uma diretriz do sistema elétrico, uma diretriz do

sistema viário, uma diretriz de localização das áreas públicas. “São sete itens em

duas fases, o que resulta em quatorze análises diferentes. Se demorar um mês em

cada análise são quatorze meses, mas demora mais”. Depois disso, ainda, aguarda

a licença de instalação e o decreto de aprovação e a seguir vai para o registro

imobiliário para só, então, poder colocar lotes à venda. Com isso, o tempo para

aprovação de um loteamento gira em torno de dois a três anos na média, tempo

esse que custa dinheiro que é agregado ao preço final do imóvel, encarecendo-o por

certo. Para obter a simplificação, sem ter que abdicar dos cuidados necessários, os

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órgãos envolvidos na aprovação poderiam reunir-se numa sessão para,

conjuntamente, analisar o anteprojeto ou o projeto, sem a necessidade da romaria

da documentação entre as diversas secretarias e autarquias municipais, podendo

assim acelerar o processo de forma significativa.

Além disso, para o entrevistado, a simplificação dos procedimentos poderia

ser ainda mais ampliada se fosse atribuída responsabilidade técnica do projeto e sua

implantação aos profissionais que o elaboram. Explica que as empresas estão

assessoradas por excelentes técnicos, engenheiros, geólogos, ambientalistas, entre

outros, os quais, na maioria das vezes, têm maior conhecimento e preparo do que

as pessoas que fazem análise dos projetos no âmbito público. Assim, o poder

público deveria limitar-se a conferir e arquivar o projeto, podendo fiscalizar a

implantação e adequação do loteamento às normas urbanísticas, pois, a aprovação

do loteamento, na forma em que é feita, não é segurança absoluta de que será

implantado na forma planejada. A aprovação não elide a municipalidade da

fiscalização, que deverá ser feita, obrigatoriamente. Com a simplificação, seria

possível prestigiar a iniciativa particular e outorgar mais responsabilidades aos

projetistas e executores, além de acelerar notavelmente a expansão dos

loteamentos regulares e a oferta de lotes para atender a demanda e baixar os

preços.

Refere o empresário que muitas vezes os projetos de loteamento não

aprovados pela prefeitura vêm a se tornar loteamentos irregulares, cuja conclusão e

adequação ficam a cargo do poder público, o que acaba por onerar toda a

sociedade.

Ao abordar a questão do mercado e demanda por lotes populares, o

entrevistado refere que nos anos 1997 a 2000 teve oportunidade de vender 688

unidades por meio do financiamento da Caixa Federal, oportunidade em que o

comprador dava uma entrada de dois mil reais e financiava o saldo, de oito mil reais,

pela instituição. Ressalta o empresário: “todas estas pessoas estão extremamente

contentes, pois os lotes de dez mil reais, hoje valem cinquenta a sessenta mil reais”,

o que comprova a necessidade deste tipo de lote no mercado. Outro detalhe nesse

aspecto é que os programas da Caixa têm prazos definidos ao passo que as

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aprovações de loteamentos, se demorarem como demoram, acabam por não

encontrar o financiamento disponível.

Ao apontar outros fatores ou iniciativas no âmbito do poder público que

poderiam contribuir para a diminuição dos valores dos lotes, o dirigente refere que a

concessão de incentivos ou desoneração fiscal, especialmente redução de ICMS

nos insumos da produção de loteamentos e no Imposto de Renda da Pessoa

Jurídica, contribuiriam para tal objetivo. Pois, explana, atualmente não há nenhum

tipo de isenção ou benefício fiscal para as empresas loteadoras. Acrescenta que

outros incentivos, como a exemplo dos índices construtivos que são permutáveis na

construção civil, na implantação de loteamentos populares poderiam ter diminuídas

as exigências de áreas públicas ou institucionais, ou ainda, nos loteamentos classe

alta, poderiam ser majorados esses índices ou cobrado taxas que seriam

transpostas aos loteamentos populares para diminuir o preço dos lotes.

Indagado sobre as parcerias entre o poder público e a iniciativa privada, o

empresário esclarece que são possíveis desde que haja interesse do executivo, que

até hoje não tomou qualquer iniciativa nesse sentido. Entende ele que a

municipalidade não deve executar tarefas para as quais a iniciativa privada está

mais preparada. A parceria pode ser estabelecida no momento em que é constituído

o loteamento, de modo que o poder público participe da implantação de

infraestrutura, como exemplo, a de água e, posteriormente, aproveite-se dos

equipamentos em benefício de outros loteamentos populares edificados próximo ao

primeiro. “Ao colocar encanamento de 100 milímetros ou de 300 milímetros a

estrutura é a mesma, o poder público poderia participar e depois, lá na frente,

aproveitar da estrutura colocada”, completa.

Estimulado a falar sobre outros componentes que oneram o empreendimento

e o preço dos lotes, o empresário refere que a empresa tem adotado até hoje o

sistema de parceria com o proprietário da gleba para a efetivação do loteamento,

mas que esse fator onera os lotes na medida em que os proprietários acham que as

áreas valem muito e têm reivindicado 50% dos lotes. O dirigente entende que esse

preço é por demais elevado e reflete-se na composição do preço final. Assim sendo,

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a empresa está partindo para a aquisição prévia de toda a gleba e posterior

negociação dos lotes, o que poderá torná-los mais econômicos.

Perguntado sobre qual a sua impressão em relação às regularizações, o

empresário responde que as regularizações têm efeitos benéficos para a

comunidade, na medida em que aquelas pessoas que obtêm o título de propriedade,

conseguem uma valorização de seus imóveis que lhes permite uma vida mais digna,

além de obter um acréscimo de capital que pode ser utilizado em novas aquisições.

Por último, o empresário esclarece que, com a expansão do perímetro

urbano, a tendência é baixar o preço dos empreendimentos em face da maior oferta

de áreas para loteamentos. Nesse viés é intenção da empresa voltar-se para o

segmento de classe média baixa, pois expressivo número de pessoas dessa

categoria tem procurado a empresa para aquisição desse tipo de imóvel e,

acrescenta, se a iniciativa privada ou o poder público não atenderem a essa

demanda, os loteadores irregulares se encarregarão de fazê-lo. Porém, ressalta que

é imprescindível acelerar as aprovações dos loteamentos para atender uma

demanda cada vez mais crescente. Para constar, refere que não é por falta de

projetos, pois a empresa tem vinte e cinco em andamento e, anualmente, encaminha

dois a três processos para aprovação pelo poder público e se tudo for atendido a

oferta será significativa e servirá para diminuir a pressão pela expansão das

irregularidades e diminuição dos preços dos lotes.

Desse modo, a contribuição do empresário, pelos esclarecimentos e

indicação de aspectos relevantes ligados ao tema, traz novos elementos para a

solução do problema. Cabe destacar que, na opinião do autor, as observações são

pertinentes, pois se referem às iniciativas e procedimentos no âmbito do poder

municipal e privado que, se adotadas, podem servir para melhorar os processos de

regularização fundiária, especialmente pela possibilidade de interferir na expansão

das irregularidades por meio do atendimento imediato das necessidades por

moradia de baixo custo.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesse trabalho procurou-se trazer o conteúdo e a experiência dos excelentes

autores que o mestrado nos apresentou no decorrer do curso em suas diversas

disciplinas. As ideias desses escritores serviram para dar o embasamento teórico e

filosófico que se converte na espinha estrutural dessa dissertação. Estudo que, de

início, constituía-se tão-somente em algumas indagações superficiais motivadas

pelo insuficiente conhecimento da matéria que a pesquisa serviu para superar. A

experiência vivida pelo autor, no âmbito do direito notarial e registral imobiliário, foi

essencial para detectar o problema e buscar perspectiva de solução, porém,

alcançar os fundamentos teóricos, entender profundamente os problemas envolvidos

e encontrar proposta de solução, somente foi possível após as leituras e os debates

ocorridos no seio da academia.

Uma grande dificuldade foi delimitar o tema, uma vez que as políticas

públicas de regularização fundiária envolvem múltiplos aspectos nos âmbitos social,

político, jurídico, administrativo e econômico, entre outros. Mais ainda, vincula-se às

três esferas políticas e diz respeito tanto ao direito público quanto ao privado. A

delimitação do espaço tempo-geográfico em Caxias do Sul e, mais especificamente,

na regularização do loteamento “Jardim das Hortências”, mostrou-se adequada para

obter resposta ao problema inicial de como superar os obstáculos às regularizações

existentes no âmbito do registro imobiliário, identificados nos princípios registrais

que impedem o ingresso dos títulos aquisitivos precários.

Os procedimentos adotados e instrumentos disponíveis para superar esses

obstáculos, identificados nos decretos municipais que formalizam a regularização

administrativa do loteamento, não conferem a regularidade jurídica aos lotes nem a

legalidade da propriedade precária, a qual é somente obtida com a matrícula do

imóvel em nome do morador. Daí pode-se dizer que são ineficazes.

Paradoxalmente, o mesmo não ocorre em relação ao poder público, haja vista que

em relação aos bens públicos, dito dominiais, o simples requerimento da

municipalidade é suficiente para que sejam abertas as matrículas relativas às áreas

das vias públicas em nome do município, superando os obstáculos registrais. Esse

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modelo poderia ser adotado em relação às regularizações dos lotes, como síntese

da simplificação pretendida, sem prejuízo da almejada “segurança jurídica”.

O instrumento do More Legal que está sendo utilizado pela municipalidade

nas regularizações, apesar de sua importância inovadora por introduzir o conceito da

propriedade consolidada, bem como por instituir procedimento que tem condições de

superar os obstáculos registrais, mostra-se da mesma forma ineficiente pois: (a)

depende de requisitos e documentos prévios (escritura de fração ideal) para seu

encaminhamento junto ao cartório, isto é, não se aplica a toda irregularidade; e (b)

carece da iniciativa do morador e da manifestação do judiciário. Ou seja, ainda que

adequado para a regularização jurídica do lote em nome do morador, não se aplica

em todas as espécies de irregularidades e depende de certa burocracia, por isso, na

opinião do autor não é eficiente. Ressalte-se, ainda, que a sua utilização é

insuficiente e, para melhores resultados, necessita de maior divulgação e

esclarecimento junto às comunidades irregulares.

Desse modo, dentre as hipóteses, mostra-se imprescindível apontar outros

instrumentos e procedimentos para superar as barreiras registrais e legalizar a

propriedade precária. Nesse contexto, não se pode abrir mão da ideia de que os

destinatários sejam os agentes da própria transformação, de modo a alcançar

melhores resultados.

De fato, o fator humano e social mostrou-se fundamental para o sucesso da

regularização jurídica do loteamento “Jardim das Hortências”, em face da interação

havida entre os diversos atores sociais, agentes públicos e privados envolvidos na

solução do problema, imbuídos de solidariedade e subsidiariedade, na busca do

bem comum. Esses, princípios basilares da vida em sociedade, são os que

permitiram a regularização no município caxiense e que fundamentam a supremacia

do coletivo sobre o individual. In casu, o bem comum sobrepondo-se às barreiras

registrárias.

A moradia mostra-se como um direito fundamental, social, puro e legítimo,

portanto deve e pode ser promovido pelo cidadão, independentemente da ação

pública favorável, desfavorável ou, especialmente, omissa, quando o Estado não

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consegue realizar o direito. Por seu turno, leis anacrônicas e princípios do direito

registral devem sucumbir ou adequar-se aos princípios fundamentais da

Constituição Federal do direito à moradia, da função social da propriedade, da

solidariedade, do bem comum e da redução das desigualdades.

Nesse viés, destaca-se a atuação do poder judiciário, não no sentido de

intervir nas relações, mas, sim, de fazer parte das políticas públicas e apresentar

soluções inovadoras. O judiciário não somente adotou o princípio do poder/dever

que cabe ao município de promover as regularizações, retirando do rol da

discricionariedade do administrador público, como também, no âmbito

administrativo, introduziu instrumentos de facilitação dos procedimentos

regularizadores. Assim sendo, sinaliza para a possibilidade da simplificação dos

procedimentos regularizadores para alcançar melhores resultados.

Outro ponto de realce diz respeito ao poder local. O enfoque municipalista, ou

seja, a competência atribuída aos municípios para a solução de seus próprios

problemas, é altamente positivo e traz à tona o princípio da subsidiariedade, como

fundamento de legitimidade para a policy regularizadora. In casu, merecem

destaque as pessoas do juiz corregedor permanente e do Oficial registrador, os

quais solicitados pelo movimento social dos moradores e sensíveis à situação fática

da propriedade precária, consolidada e irreversível encontram solução para a

irregularidade, cujo maior dano é justamente permanecer na situação em que se

encontra, isto é, de exclusão dos indivíduos que a constituem e que devem ser

protegidos pelo ordenamento jurídico pátrio.

Merece reflexão a manifestação do integrante do legislativo municipal

entrevistado no sentido da sua impotência para interferir mais contundentemente na

questão das regularizações, seja por deficiência de conhecimento da matéria, seja

pela limitação da competência legislativa que lhe impede de propor matérias que

onerem o orçamento do município, ou, pior ainda, pelos compromissos com os

grupos que elegem os parlamentares.

A configuração do problema em Caxias do Sul e a solução implementada

demonstram claramente que o surgimento das irregularidades não pode ser

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impedida tão-somente por força da lei, pois está em jogo a satisfação das

necessidades de moradia de 48% da população da cidade. Além disso, as

regularizações carecem de melhor performance, sendo necessária a simplificação

dos procedimentos e novos instrumentos, bem como maior participação dos

segmentos sociais beneficiários, os quais manifestaram sentimento de abandono e

falta de informação dos procedimentos regularizadores.

No âmbito das instâncias administrativas vinculadas às políticas públicas de

regularização e adotadas na municipalidade caxiense, detectou-se a carência de

planejamento, evidenciada pela falta de metas a serem cumpridas e falta de

divulgação para os interessados acerca dos procedimentos a cumprir. Detectou-se

igualmente a falta de processos de avaliação da efetividade, eficácia, eficiência e

legitimidade da policy. É imperioso concordar com a afirmação de Schmidt, que “o

planejamento e a avaliação constante são indispensáveis, não apenas para o êxito

das políticas públicas, mas do próprio exercício de poder.”202

No campo da avaliação da policy nota-se importante a percepção dos atores

sociais envolvidos, os quais foram unânimes em destacar a necessidade da

desburocratização para obter melhores resultados. Dentre as sugestões arroladas

de simplificação dos procedimentos e medida de celeridade do processo, destaca-se

a possibilidade da efetivação por meio de escritura pública de regularização

fundiária, afastando assim a intervenção direta do poder judiciário, sem perder a

segurança jurídica. A manifestação da iniciativa privada aponta a necessidade do

estabelecimento de ações conjuntas entre a municipalidade e as empresas

loteadoras para a produção de loteamentos voltados àquelas famílias que são

potencialmente clientes das irregularidades. A policy reclamada por esse setor não é

complexa, pois se refere à flexibilização das diretrizes de aprovação de projetos e

expansão do perímetro urbano para aumentar a oferta de lotes e evitar o surgimento

da propriedade precária.

A título de perspectivas de futuro no campo da temática estudada, em Caxias

do Sul pouca coisa se pode esperar de novo, pois as recentes leis específicas

202 SCHMIDT, op. cit., p. 2320.

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voltadas à regularização fundiária nada trazem de inovação em relação à matéria. A

sinalização de mudança se verifica na esfera federal, em que o Estatuto da Cidade

recomenda a simplificação na legislação com vistas a permitir a redução dos custos

e o aumento da oferta de lotes e unidades habitacionais (art.2º, inc. XVI e XV), bem

como retira a exclusividade do poder público para promover as regularizações

fundiárias e abre a possibilidade, em igualdade de condições, para que os agentes

privados promovam as ações necessárias (art. 2º, XVI).

Nesse contexto, o horizonte legislativo federal oferece algumas novidades em

medidas voltadas à regularização fundiária, como por exemplo, as que estão

contidas no reapresentado Projeto de Lei nº 20/2007, antes PL 3057/01, que trata da

Lei de Responsabilidade Territorial Urbana e que estabelece as normas gerais

disciplinadoras da regularização fundiária sustentável de áreas urbanas. O diploma

projetado dedica diversos artigos para o regramento da matéria203, além de, nas

Disposições Gerais (art. 2), explicitar os princípios da função social da propriedade

urbana e da cidade, e o da garantia do direito à moradia e ao desenvolvimento

sustentável dos assentamentos humanos, com prevalência do interesse coletivo

sobre o privado, como suas razões de justificação.

Uma breve avaliação de princípios, diretrizes e instrumentos jurídicos lá

contidos serve para delinear os rumos que o legislador pretende adotar no trato da

matéria. No diploma é mantido o enfoque municipalista em relação à competência

para estabelecerem leis especiais para as regularizações fundiárias (art. 95, II).

Além disso, destacam-se as diretrizes que devem pautar as regularizações (art. 94),

dentre essas, a prioridade para a permanência da população na área ocupada, a

articulação com iniciativas públicas e privadas, a participação da população

interessada em todas as etapas do processo de regularização, o estímulo à

resolução extrajudicial de conflitos e a preferência de titulação para a mulher. O

permissivo legal, em projeto, ressalta a situação irreversível (consolidada)204 como

elemento de distinção para a regularização, conceitua como sendo aquela em que o

prazo e a natureza da ocupação, bem como as edificações e infraestrutura

203 Disposto no Título III - Da Regularização Fundiária Sustentável de Áreas Urbanas, arts. 93 a 119. 204 Fundamento básico do Projeto More Legal.

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existentes, indiquem grave dano social no caso de eventual reversão da situação já

consolidada pelo tempo.

No âmbito dos institutos jurídicos inovadores previstos no mencionado projeto

de lei, a chamada demarcação urbanística (art. 108) e a legitimação de posse (art.

112) emergem como instrumentos que evidenciam a orientação do legislador de

simplificar os procedimentos para alcançar melhores resultados. No primeiro, o

poder público municipal, com base no levantamento técnico da área a ser

regularizada (mapas e memoriais) e no cadastro dos ocupantes, fará inscrever no

registro de imóveis a demarcação urbanística da área, objeto da regularização, em

matrícula própria205. O segundo, certamente o de maior impacto nos conceitos de

propriedade, permite ao executivo municipal expedir título oficial de posse de imóvel

urbano em favor do morador do imóvel. Esse título será admitido no registro de

imóveis e poderá ser dado em garantia real e objeto de transferência, inter vivos ou

causa mortis. Além disso, decorridos cinco anos do registro do título oficial de posse,

por simples requerimento do morador, o direito real de posse converter-se-á em

direito real de propriedade.

Assim sendo, a conversão de posse em propriedade sem interferência do

poder judiciário (usucapião ou More Legal), tem tamanha importância e ineditismo

no âmbito do direito brasileiro que seria justificativa e tema para uma dissertação

própria. Só para lembrar, a concessão de título de direito real de posse foi o sistema

utilizado no Brasil Imperial para a concessão de terras aos senhores e aos nobres

da corte. Agora, o projeto de lei pretende destinar esse sistema à regularização da

propriedade precária (sem título), sob fundamento da prevalência do interesse

público sobre o privado, na promoção do desenvolvimento e inclusão social, em

suma, como realização do bem comum.

Desse modo, estes institutos servem como exemplo de que a simplificação

dos procedimentos de regularização fundiária é viável, é possível e se avizinha,

205 Nota-se que a demarcação urbanística como se apresenta é similar ao atual modo de registro das áreas viárias, ou seja, por simples requerimento e memoriais. Pode-se inferir que a ideia do legislador é que havendo interesse público a área torna-se bem à disposição do poder público para suas ações.

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desde que haja entendimento local e decisão política206 para sua implementação. Ou

seja, a inclusão desses instrumentos no âmbito da legislação federal não é garantia

da sua implementação no espaço local, em razão da repartição de competência

(subsidiariedade) que confere autonomia ao município. Isso será efetivado tão-

somente se houver aplicação prática do objetivo constitucional (art. 3º, CF) de

construção de uma sociedade livre, justa e solidária, e assim concretizar a

convocação do homem ao princípio da solidariedade, com a meta de erradicar a

pobreza e a marginalização, além da redução de desigualdades sociais e regionais.

Com essas considerações, acredita-se terem sido atingidos os objetivos que

nortearam a pesquisa. Os elementos trazidos pelos atores entrevistados serviram

para corroborar as premissas iniciais e testar as hipóteses da pesquisa. Foram

confirmadas as três hipóteses levantadas no início do trabalho. Há utilização

ineficiente do adequado procedimento – isto é, do More Legal -, como também, os

instrumentos disponíveis não são adequados para superar as barreiras registrais

que impedem regularizar juridicamente grande parte das irregularidades. Há também

necessidade de novos instrumentos e procedimentos facilitadores, para obter

melhores resultados nas regularizações jurídicas da propriedade precária

consolidada, segundo opinião unânime dos entrevistados. Além disso, os

depoimentos trazem perspectivas e sugestões que comprovam a necessidade da

interação entre os atores sociais, como agentes da própria transformação, de modo

a alcançar melhores resultados nas regularizações.

A superação dos obstáculos registrários às regularizações jurídicas deve ser

embasada na solidariedade, subsidiariedade e no bem comum, que são valores

acima das disposições legais que lhes sejam contrárias. Nesse viés, diminuir a

complexidade e simplificar os procedimentos é modo de superar e acelerar o

processo, bem como é o anseio e expectativa manifestada pelos entrevistados.

206 Refere João Pedro Schmidt que a inserção do problema na agenda de decisão política (agenda setting) é uma das fases das políticas públicas e depende da importância que é dada ao tema no âmbito das relações que envolvem a sociedade, assim entendido o executivo, o legislativo, o judiciário, os partidos políticos e os demais atores sociais. “São os guardiães da agenda pública (agenda setters)”. SCHMIDT, João Pedro. Para entender as políticas públicas: aspectos conceituais e metodológicos. In: REIS & LEAL. Direitos sociais e políticas públicas: desafios contemporâneos. Tomo 8. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2008, p. 2317.

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Em síntese, a policy simplificadora dos procedimentos e de superação dos

obstáculos registrários às regularizações, com fundamento na solidariedade,

subsidiariedade e bem comum, vai ao encontro das diretrizes da Agenda Habitat II,

Istambul, 1996, bem como da Declaração do Milênio para os Assentamentos

Humanos, Nova York, 2001, as quais apresentam propostas concretas que

envolvem a garantia legal da propriedade, a eliminação de barreiras de acesso à

moradia legal, a geração de ambiente de cidadania, cooperação e diálogo igualitário,

a promoção da solidariedade e a proteção dos interesses das gerações atuais e

futuras, alocando esforços e recursos para que se alcancem as metas de propiciar

moradia legal e adequada para todos e o desenvolvimento de assentamentos

humanos sustentáveis, em um mundo cada vez mais urbanizado.

“Não é tarefa fácil nem é tarefa individual. Mas, se é verdade que a paciência

dos conceitos é grande, a paciência da utopia é infinita”. Diz-nos, Boaventura de

Souza Santos.207

207 SANTOS, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1997, p. 346.

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SILVEIRA, Rogério L. L. Cidade, corporação e periferia urbana: acumulação de capital e segregação espacial na (re)produção do espaço urbano. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2003.

SWENSSON, Walter Cruz. Manual de registro de imóveis. São Paulo: Saraiva, 1991.

TÉVOÉDJRÈ, Albert. A pobreza, riqueza dos povos: a transformação pela solidariedade. 2. ed. São Paulo: Cidade Nova, 1982. TURNER, Bryan S.; ROJEK, Chris. Society and culture - principles of scarcity and solidarity. London: SAGE Publications, 2001.

ULLMANN, Reinholdo Aloysio. O solidarismo. São Leopoldo: UNISINOS, 1993.

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139

VENOSA, Lilia Lúcia Pellegrini. Georreferenciamento e o procedimento de retificação judicial. In: Boletim Eletrônico do IRIB, São Paulo, nº 2.307, fevereiro de 2006. Disponível em: <http://www.irib.gov.br>. Acesso em 20.05.2007. VIANNA, Túlio Lima. Roteiro didático de elaboração de projetos de pesquisa em direito. São Paulo: Jus2, 2003. VIEIRA, Liszt. Os argonautas da cidadania. São Paulo: Record, 2001.

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ANEXOS

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ANEXO A

PERFIL DOS ENTREVISTADOS

I. EXECUTIVO MUNICIPAL Na municipalidade caxiense a policy das regularizações fundiárias está afeta

ao Setor de Regularização Fundiária da Secretaria do Desenvolvimento Urbano, da

Prefeitura Municipal, criado no ano de 1985. Esse órgão especializado é chefiado

pelo bacharel de direito Sr. João Canton que atua no setor, desde o ano de 1994,

em conjunto com um topógrafo e dois auxiliares de topografia, duas estagiárias

desenhistas e um auxiliar escriturário, cujo depoimento foi gravado nas

dependências da repartição, no mês de novembro de 2008.

Dentre as atribuições do entrevistado estão: a articulação com os demais

órgãos da prefeitura, especialmente com a Secretaria de Planejamento Urbano, com

o Cadastro Imobiliário e com a Secretaria da Fazenda; a articulação com o poder

judiciário, registro de imóveis, Associações de Moradores e demais entidades e

pessoas físicas; a montagem do processo de regularização, elaboração e

acompanhamento do processo judicial do More Legal do lote a regularizar desde sua

fase inicial, com a coleta dos documentos pessoais e outros, até a obtenção do

registro imobiliário do lote, momento que caracteriza a regularização fundiária

definitiva; e, a regularização das áreas viárias e dominiais públicas, dos

parcelamentos irregulares por meio da abertura da respectiva matrícula junto ao

registro imobiliário.

II. JUDICIÁRIO E EXTRAJUDICIAL No âmbito do poder judiciário, as informações foram obtidas junto à Escrivã

da Vara da Direção do Foro, Srª. Vera, que disponibilizou o acesso ao arquivo de

portarias, ofícios e atas referentes às regularizações fundiárias no município, bem

como aos processos do More Legal, que necessariamente tramitam naquele órgão

sob chancela do Juiz Diretor da Vara, na função de juiz corregedor permanente.

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Em relação ao segmento extrajudicial no município de Caxias do Sul, a

pessoa mais indicada e qualificada para prestar informações e enriquecer o trabalho

é o Sr. Olintho Mendes de Castilhos, titular do 1º Ofício de Registro Imobiliário da

comarca, nomeado para a função de coordenar e orientar as ações de regularização

fundiária no município, pelo Juiz Diretor do Foro, por meio da Portaria nº 051/91-DF,

reeditada com a Portaria 022/94-DF, a qual permanece em vigor.

Além dessa atribuição, o entrevistado é pessoa de notório conhecimento

jurídico na área do direito registral imobiliário, em face do exercício da atividade há

mais de 40 anos. Por esse motivo e por diversas vezes, ministrou palestras sobre o

tema a acadêmicos e profissionais do Direito. Pelas mesmas razões, os magistrados

que ocupam a função de juiz corregedor, com mandato de 2 anos, costumam buscar

a opinião e orientação do registrador para esclarecer as dúvidas do cotidiano em

relação à matéria.

O registrador entrevistado é a pessoa responsável por muitas das soluções

encontradas para as regularizações fundiárias no município, entre estas: a

conversão das escrituras de fração ideal em área individualizada, o que é embrião

do Projeto More Legal, na medida em que esses instrumentos passaram a ser

acolhidas ao registro e convertidos, por retificação da escritura, em matrículas de

imóveis individualizados mediante certidão, expedida pela municipalidade. Da

mesma maneira, é da concepção do Sr. Olintho o registro das áreas viárias e

dominiais em nome do município, por meio de simples requerimento.

III. LEGISLATIVO Para responder pelo legislativo, o entrevistado é o Vereador Francisco

Spiandorello, o “Chico da Caixa” como é conhecido, por ter exercido o cargo de

gerente da Caixa Econômica Estadual - RS durante mais de 25 anos, na agência de

Caxias do Sul. Seu currículo é expressivo: dois mandatos de Deputado Estadual

(1978, 1982); Secretário Municipal da Habitação, Assistência Social e Saúde (1989);

Vice-prefeito do município (1992); quatro mandatos consecutivos como Vereador

(1996, 2000, 2004 e 2008); três vezes Presidente da Câmara e atual Presidente da

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Comissão de Constituição e Justiça da Câmara de Vereadores, além de líder de

bancada (PSDB).

Sua experiência na matéria é ampla pelo fato de que já esteve no exercício

do poder executivo, como secretário municipal, e atualmente integra o legislativo.

Assim sendo, tem a perfeita visão do poder público em ambos os segmentos. Na

municipalidade teve oportunidade de implementar plano habitacional que produziu

diversos loteamentos populares, bem como de participar das ações de regularização

de diversos loteamentos irregulares, entre os quais a do “Jardim das Hortências”.

Além disso, discutiu, votou e aprovou leis de uso e parcelamento do solo urbano e

planos diretores, bem como programas de regularizações, além da aprovação

legislativa de loteamentos regularizados.

IV. COMUNITÁRIO Tendo como foco a comunidade do loteamento “Jardim das Hortências”,

buscou-se obter a opinião e experiência vivida pelos moradores do loteamento. Para

tanto, a pessoa indicada é a Presidenta da Associação dos Moradores do Bairro

Jardim das Hortências, Sra. Vanir Teresinha Dalzotto Costa, que ocupa a

presidência da associação desde 2005, a qual concedeu a entrevista em sua

residência, no bairro Jardim das Hortências.

A entrevistada é moradora no local desde março de 1982 e viu nascer o bairro

com todas as deficiências e dificuldades decorrentes das irregularidades. Por

ocasião da entrevista, oportunizou análise das atas de reuniões da associação, em

que se visualiza o desenrolar da regularização do loteamento e também dos

contratos de compra e venda dos lotes, firmados entre os moradores e a empresa

Vila Rica.

Ainda na esfera da comunidade, o Sr. Gelson Huger prestou significativas

informações na qualidade de preposto do Sr. Ludovico Dante Boff, este o

proprietário original da gleba rural onde foi implantado o irregular loteamento “Jardim

das Hortências”. O entrevistado, esclareceu aspectos e elementos relativos à

constituição do loteamento, bem como franqueou acesso aos contratos preliminares

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de compra e venda da gleba rural, firmados entre Ludovico e a loteadora Vila Rica e

a outros documentos e atas. Infelizmente, o Sr. Ludovico não pôde prestar

informações pessoalmente em virtude de problemas de saúde.

V. EMPRESARIAL Quem concede a entrevista e interpreta a visão da iniciativa privada é o Sr.

Ovídio Deitos, conceituado empresário do setor de urbanização e loteamentos na

cidade de Caxias do Sul há trinta e quatro anos. A empresa que dirige, Urbanizadora

Rodobrás Ltda, implanta em torno de dois loteamentos por ano e já produziu e

entregou mais de quatorze mil lotes na cidade.

Na vida pública, foi Vereador por dois mandatos, o primeiro em 1973 quando

foi Presidente da Câmara por dois anos, e o último em 1976 que durou até 1982 por

prorrogação dos mandatos. Nesse período teve oportunidade de participar de alguns

avanços promovidos pelo executivo municipal, entre os quais alterações no

ordenamento urbano.

A entrevista, gravada, foi concedida no escritório da empresa em novembro

de 2008.

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ANEXO A

CRONOLOGIA DAS AÇÕES NO LOTEAMENTO JARDIM DAS HORTÊ NCIAS

Data Evento Atores 1 14.03.79 Promessa de Compra e Venda da área de 11ha,

valor de Cr$16.500.000,00 Ludovico Boff Imobiliária Vila Rica

2 30.05.79 Demarcação dos lotes e início da venda de lotes por contratos particulares, ocupação e construção das primeiras moradias

Imob. Vila Rica e compradores

3 26.02.81 Constituição da Associação dos Moradores do Bairro Jardim das Hortências (AMOB-JH), com 25 sócios fundadores – Livro de Atas

Compradores e Moradores – Fundadores

4 20.11.81 Loteadora não cumpre pagamento ao proprietário original Ludovico e recebe escritura com menos área e abandona o loteamento à própria sorte Moradores depositam pagamento no RI Imobiliária Vila Rica registra 5.969,80m2 em seu nome. Matricula nº 16.908

Ludovico B. Imobiliária Vila Rica Registro de Imóveis

5 15.05.83 Reativada a AMOB-JH que estava paralisada – Reivindicação de linha de ônibus, água, esgoto e rede elétrica

Sócios e moradores

6 20.08.83 Serviço Municipal de Água e Esgoto – Samae inicia levantamento e orçamento para fornecimento do serviço de água

Moradores e SAMAE

7 17.06.84 Moradores reivindicam escrituras Samae apresenta orçamento e promete poço artesiano até o fim do ano Moradores deverão pagar pelos canos

Moradores SAMAE

8 14.07.84 Ludovico Boff doa terreno para sorteio e levantamento de recursos para complementar compra de canos. 2000 números a Cr$2,50 cada número, sorteio em 01.12.84 e entrega do lote em 08.12.84 Organizada comissão Mutirão da Água Protocolo na PM para pedir linha de ônibus e coleta de lixo Promessa de projeto de iluminação pública

Ludovico Moradores Prefeitura Municipal

9 27.07.84 Mapa do loteamento – 1ª versão Projeto de água e esgoto

Prefeitura M.

10 07.11.84 Projeto de iluminação pública Prefeitura M. 11 05.01.85 Inicia coleta de lixo

Arrecadado Cr$ 4.157.500,00 para instalação da água Samae propõe custeio de 50% pelos moradores e 50% pelo órgão

Moradores SAMAE P.Municipal

12 09.09.85 Iniciam obras de rede de água Moradores deverão pagar Cr$ 360.000,00 em 3 parcelas, até 30.12.85

SAMAE Moradores

13 28.06.86 Inaugurada linha de ônibus Moradores Transp. Caxiense

14 25.11.88 SDU conclui mapa oficial do loteamento, planilhas dos lotes e memoriais Inicia levantamento dos Moradores

Prefeitura M. Moradores

15 25.11.88 Lei Municipal nº 3.292. Institui o Programa de Regularização dos Parcelamentos Irregulares

Prefeitura M.

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16 29.11.88 Lei Municipal nº 3.300. Disciplina o parcelamento do solo urbano

Prefeitura M.

17 19.12.90 Denominação oficial das ruas e avenidas do Bairro Jardim das Hortênsias Lei Municipal nº 3.610

Legislativo Municipal

18 15.05.91 AMOB-JH requer o cadastro dos Moradores para pagamento do IPTU

Prefeitura M. Moradores

19 10.03.92 Memoriais do Loteamento e doação de áreas de ruas e institucionais – por instrumento particular Matrículas 933 e 7623 da 2ª Zona do RI

Prefeitura M. Ludovico Registro de Imóveis

20 24.04.92 Parecer favorável da Procuradoria Municipal Prefeitura M. 21 15.06.92 Parecer favorável da SDU Prefeitura M. 22 04.08.92 Requerimento Ludovico B. p/ aprovação do

loteamento. Ludovico B. Prefeitura M.

23 25.08.92 Decreto Municipal 7481 – REGULARIZAÇÃO ADMINISTRATIVA do Loteamento J.H.

Prefeitura M.

24 05.11.92 PM. começa expedir Certidão dos lotes, medidas e confrotações

Prefeitura M.

25 13.01.93 Registro do loteamento no RI da 2ª Zona, em nome de Ludovico Boff. Conforme Matrícula n. 39.425/2-RG

Prefeitura M. Registro de Imóveis

26 13.01.93 Averbação Av. 2/M.39.425/2-RG, EX-OFFICIO do retorno de 13 matrículas de vendas de frações ideais, saídas da fração ideal da Matricula nº 16.908/2-RG, da Imob. Vila Rica

Registro de Imóveis

27 22.04.94 Reunião no RI/1ª Zona para estabelecer o acordo para que Ludovico D. Boff outorgasse escrituras definitivas aos Moradores em substituição à Imobiliária Vila Rica. Acordo assinado em 25.04.94

Ludovico Boff Imobiliária VR Registro de Imóveis Advogados

28 09.08.94 Averbação Av.3/M.39.425/2-RG, EX-OFFICIO de retificação da Av.2/M.39.425/2-RG, retorno de mais 13 matrículas de venda de frações ideais, saídas da fração ideal da Matrícula nº16.908/2-RG, da Imob. Vila Rica

Registro de Imóveis

29 1994 / 2008 Continuidade da transmissão dos lotes por Ludovico D. Boff em favor dos Moradores.

Ludovico B. Moradores

Fontes: Livro de Atas da AMOBJH, arquivos de contratos, registros imobiliários, legislação municipal e depoimento pessoal.

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ANEXO C

MATRÍCULAS DE REGISTRO DO LOTEAMENTO E O “EX OFFICI O”

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ANEXO D

MAPAS DO PLANO DIRETOR DE CAXIAS DO SUL, DA ÁREA UR BANA E DO LOTEAMENTO “JARDIM DAS HORTÊNCIAS”