Upload
vocong
View
215
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
0
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO - MESTRADO
Paulo Fernando Duarte Ramos
A LEGALIZAÇÃO DA PROPRIEDADE PRECÁRIA NA CIDADE DE CAXIAS DO SUL: A SIMPLIFICAÇÃO DOS PROCEDIMENTOS COM FUNDAMEN TO NA
SOLIDARIEDADE, SUBSIDIARIEDADE E BEM COMUM
Santa Cruz do Sul do Sul, março de 2009
1
Paulo Fernando Duarte Ramos
A LEGALIZAÇÃO DA PROPRIEDADE PRECÁRIA NA CIDADE DE CAXIAS DO SUL: A SIMPLIFICAÇÃO DOS PROCEDIMENTOS COM FUNDAMEN TO NA
SOLIDARIEDADE, SUBSIDIARIEDADE E BEM COMUM Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito - Mestrado -Universidade de Santa Cruz do Sul, para obtenção do título de Mestre em Direito. Orientador: Prof. Dr. João Pedro Schmidt
Santa Cruz do Sul, março de 2009
2
Paulo Fernando Duarte Ramos
A LEGALIZAÇÃO DA PROPRIEDADE PRECÁRIA NA CIDADE DE CAXIAS DO SUL: A SIMPLIFICAÇÃO DOS PROCEDIMENTOS COM FUNDAMEN TO NA
SOLIDARIEDADE, SUBSIDIARIEDADE E BEM COMUM
Esta dissertação foi submetida ao Programa de Pós-Graduação em Direito - Mestrado, Área de Concentração em Direitos Sociais e Políticas Públicas, Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito.
Prof. Dr. João Pedro Schmidt
Prof. Dr. João Telmo Vieira
Prof. Dr. Adir Ubaldo Rech
3
Fabíola, minha amada companheira
Sem ela, nada teria realizado.
Meu pai, in memoriam
Motivo de inspiração e orgulho.
4
AGRADECIMENTOS
Esta pessoa falou-me “Te inscreve!”, depois vibrou com a minha seleção e
continuou me incentivando, lendo e relendo meus trabalhos, corrigindo, sugerindo,
aturando a minha ausência e as viagens a Santa Cruz do Sul. Fabíola é a causa de
tudo, por isso agradeço-a de todo meu ser, porque foi o impulso para meu ingresso
no universo da pesquisa em direito e meu crescimento como pessoa e saber,
fazendo despertar em mim o gosto pela escrita das ideias e descobertas, a
oportunidade de realizar um sonho, fantasia e desejo.
Agradeço aos dedicados professores que nos mostraram os pensamentos de
grandes autores e nos fizeram pensar melhor, que nos exigiram aplicação, disciplina
e a mesma dedicação ao estudo que demonstraram em relação à cátedra, tornando-
nos melhores pessoas do que éramos ao ingressar no mestrado.
À Profª. Dra. Sandra, cuja sensibilidade e amor transbordam e nos enchem de
energia e crença no possível e no impossível, cuja preocupação com seus alunos os
torna mais que filhos e os faz retribuir e retirar de si mesmos coisas que sequer
imaginam ter, cujo conhecimento profundo compartilha com tal simplicidade que nos
permite alcançar o entendimento da complexa teoria da natureza humana.
Ao Prof. Dr. Luiz Ernani, pela seriedade e simultânea irreverência que carrega
em si próprio, que demonstra o equilíbrio que devem ter aqueles que amam a
liberdade.
À Profª. Dra. Fabiana, pela amizade e oportunidade de crescimento
profissional ao me aceitar como docente voluntário e permitir meus primeiros passos
5
no mister que pretendo seguir, oportunidade ímpar de experimentar o que sente um
professor em relação ao aluno e me fazer confirmar minha vontade e vocação para
tal tarefa abençoada.
Ao Prof. Dr. Ricardo, pelo exemplo de dedicação, estudo e perseverança que
transmitiu e demonstrou, como elementos fundamentais para alcançarmos nossos
propósitos, especialmente por trazer à luz as ideias de direito social, de
solidariedade e de subsidiariedade, que se tornaram fundamentação deste trabalho.
Agradeço também à Profª. Drª. Marli, por apoiar e acreditar naquilo que eram
idéias de projeto e, como professora, me fazer encontrar autores maravilhosos,
iluminando o trabalho e as discussões em sala de aula e nos grupos de estudo.
Ao meu orientador, Prof. Dr. João Pedro, que acolheu e aceitou orientar essa
pesquisa e, principalmente, pelos questionamentos, esclarecimentos, palavras de
estímulo e orientação, cujo apoio prestado com dedicação e atenção, transmitiu a
tranqüilidade que lhe é própria e me permitiu alcançar meus propósitos.
Agradeço também a todas as pessoas do corpo docente, diretivo, funcionários
e principalmente colegas, que na vida acadêmica e de alguma maneira dedicaram-
me suas bondades e atenção.
Por fim, agradeço aos entrevistados que me concederam seus preciosos
minutos e conhecimentos sobre a matéria, sem os quais essa dissertação restaria
vazia da experiência, da realidade dos fatos e dos procedimentos que demonstram
todo o conteúdo e objetivo desta pesquisa.
A TODOS, MUITO OBRIGADO!
6
“Não é que uma pessoa se põe aí a percorrer o mundo à procura de causas para defender. É quando as situações se apresentam que a solidariedade desperta. Enfim, faz o que se pode com a consciência de que não se pode muito e que, mesmo assim, há que se continuar a fazer”.
SARAMAGO, José
7
RESUMO
O estudo aborda a implementação e ações de regularização de loteamentos irregulares na cidade de Caxias do Sul, realizadas pelo executivo municipal em consonância com o poder judiciário e extrajudicial local, entre junho de 1988 e agosto de 1994. São analisados, mais especificamente, os procedimentos e instrumentos utilizados para a legalização da propriedade precária consolidada, em nome dos moradores do loteamento “Jardim das Hortências”. Procura-se responder como superar os obstáculos jurídicos e registrais, que são elementos de dificuldade nas regularizações fundiárias e preocupação constante dos administradores públicos municipais, na busca por melhores resultados. Os objetivos propostos são: identificar quais são estes entraves, examinar os procedimentos adotados no caso específico, encontrar fundamentos jurídicos para as regularizações no âmbito dos princípios do direito e apontar inovações que indiquem o caminho da simplificação e facilitação das regularizações. Tendo como orientação teórica a concepção dialética, o trabalho tem por base a análise da doutrina que envolve o direito registral imobiliário e dos princípios de direito fundamental. Além disso, analisa-se a legislação municipal, decretos, atas, portarias, provimentos judiciais e registros imobiliários, complementado com a percepção dos atores sociais envolvidos, representantes dos segmentos público municipal (executivo, legislativo e extrajudicial) e particular (iniciativa privada e comunidade organizada), que foram entrevistados. O estudo constata que os instrumentos e procedimentos são parcialmente inadequados ou ineficientes para a solução do problema, que se perpetua. Dessa maneira, aponta para a necessidade de inovações jurídicas que facilitem a transposição do fato moral em fato legal, como também outras providências para sustar o surgimento das irregularidades. Além disso, a análise empreendida, para contrapor ao caminho da concentração, da competição e da exclusão trilhado pela sociedade, aponta para a via da desconcentração e da cooperação, ou seja, indica que a simplificação e facilitação da legalização da propriedade precária são possíveis, na ação local em que os destinatários sejam agentes da própria transformação, sob os princípios sociais da solidariedade, subsidiariedade e bem comum. Palavras-chave : regularização fundiária, obstáculos registrais, propriedade precária consolidada, solidariedade, subsidiariedade, bem comum.
8
RESUMEN
El estudio aborda la implementación y acciones de regularización de urbanizaciones irregulares en la ciudad de Caxias do Sul, efectuadas por el ejecutivo municipal en consonancia con el poder judicial y extrajudicial local, entre junio de 1988 y agosto de 1994. Son analizadas más específicamente las acciones desarrolladas para la legalización de la propriedad precaria consolidada, en nombre de los moradores de la urbanización “Jardim das Hortências”. Busca-se responder como superar los obstáculos legales en el ámbito del registro de inmuebles, que son elementos de dificultad en las regularizaciones fundiarias y preocupación constante de los administradores públicos municipales, en busca de mejores resultados. Los objetivos son: identificar cuales son esas barreras, examinar procedimientos adoptados en lo caso específico, encontrar fundamentos jurídicos para las regularizaciones en el espacio de los principios del derecho y apuntar innovaciones que señalen el camino de la simplificación y facilitación de las regularizaciones. Teniendo como orientación teórica la concepción dialéctica, la obra tiene base en la doctrina del derecho del registro de inmuebles y de los principios del derecho fundamental. Además, analiza-se la legislación municipal, decretos, actas, portarías, normas judiciales y registros de inmuebles, añadido por la percepción de los actores sociales envueltos, representantes de los segmentos público municipal (ejecutivo, legislativo y extrajudicial), y particular (iniciativa privada, comunidad organizada), captadas en entrevistas. El estudio constata que los instrumentos y procedimientos son parcialmente inadecuados o ineficientes para solución del problema, que se perpetúa. Así, apunta-se el necesidad de innovaciones jurídicas que faciliten el transposición del hecho moral en echo legal, como también otras providencias para sostener el surgimiento de irregularidades. Además, el análisis formulado, para revolver al camino de la concentración, de la competición y de la exclusión trillado por la sociedad, apunta para la vía de la desconcentración y de la cooperación, o sea, señala que la simplificación y facilitación de legalización de la propiedad precaria son posibles, en acción local en la cual los destinatarios sean agentes de su propia transformación, bajo los principios sociales de solidariedad, subsidiariedad y bien colectivo. Palabras-clave : regularización urbana, obstáculos al registro, propiedad precaria consolidada, solidariedad, subsidiariedad, bien colectivo.
9
SUMÁRIO INTRODUÇÃO ....................................................................................................
11
1 POLÍTICAS PÚBLICAS DE REGULARIZAÇÃO E DE REGULAÇÃO FUNDIÁRIA: ASPECTOS JURÍDICOS ............................................................... 1.1 Observações conceituais sobre políticas públicas ........................................ 1.2 A relação entre as políticas fundiárias e os assentamentos informais .......... 1.2.1 A ineficácia da criminalização para conter a implantação de loteamentos ilegais .................................................................................................................. 1.3 Políticas de regulação e políticas de regularização: uma perspectiva local.. 1.3.1 Solidariedade, subsidiariedade e bem comum: fundamentos jurídicos da solução local ........................................................................................................ 1.4 A regularização fundiária e os obstáculos registrais ..................................... 1.4.1 O serviço registral e o interesse do setor econômico financeiro ................ 1.4.2 Os princípios registrais e a reserva de legalidade ..................................... 1.4.3 Os princípios registrais à luz dos direitos fundamentais ............................ 1.5 O direito como obstáculo para o acesso à moradia: entraves jurídicos e burocráticos para as regularizações fundiárias e a ação pró-ativa na esfera judicial ................................................................................................................. 1.6 A atividade jurisdicional e a transmutação do fato social em fato jurídico..... 1.6.1 O Projeto More Legal como fator de desburocratização e de garantia da realização constitucional da propriedade consolidada ........................................ 1.6.2 Outras inovações facilitadoras da regularização fundiária no âmbito jurisdicional-administrativo ..................................................................................
20 20 23 24 26 29 31 38 40 42 48 41 51 58 63
2 ASPECTOS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE REGULARIZAÇÃO DA PROPRIEDADE PRECÁRIA EM CAXIAS DO SUL ............................................ 2.1 As leis sempre atrás dos acontecimentos sociais ......................................... 2.2 A composição do problema em Caxias do Sul e a legislação pertinente ...... 2.2.1 A política desenvolvimentista como incremento da especulação urbana e das irregularidades .............................................................................................. 2.2.2 Os primeiros passos no rumo da regularização administrativa e no caminho da simplificação dos procedimentos ..................................................... 2.3 Os instrumentos jurídicos e os procedimentos de regularização do loteamento “Jardim das Hortências” .................................................................. 2.4 A regularização jurídica do “Jardim das Hortências”: a transmutação do fato moral em fato legal ....................................................................................... 2.5 Aspectos fundamentais e ações no âmbito da sociedade local ...................
65 65 66 69 71 77 81 84
10
3 A PERCEPÇÃO DOS ATORES SOCIAIS ACERCA DO PROCESSO DE REGULARIZAÇÃO .............................................................................................. 3.1 Aspectos gerais sobre o desenvolvimento da pesquisa empírica ................. 3.2 A regularização na ótica de quem atua no poder público e público não-estatal................................................................................................................... 3.2.1 A regularização na ótica de quem atua no poder executivo municipal ...... 3.2.2 A regularização na percepção de quem atua no registro imobiliário ......... 3.2.3 A regularização na percepção de quem atua no poder legislativo municipal ............................................................................................................. 3.3 A regularização na visão da comunidade local e da iniciativa privada ......... 3.3.1 O fortalecimento solidário na comunidade local como fonte da realização da moradia .......................................................................................................... 3.3.2 A percepção do agente da iniciativa privada .............................................
88 88 90 92 99 104 110 111 115
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ REFERÊNCIAS ...................................................................................................
124 132
ANEXOS ............................................................................................................. ANEXO A – Perfil dos entrevistados ................................................................... ANEXO B – Cronologia das ações no loteamento Jardim das Hortências ......... ANEXO C – Matrículas de registro do loteamento e o “Ex-Officio” ..................... ANEXO D – Mapas do Plano Diretor Municipal de Caxias do Sul, da área urbana e do loteamento “Jardim das Hortências” ...............................................
140 141 145 147 148
11
INTRODUÇÃO
Esta dissertação tem origem na experiência vivida pelo autor no exercício de
atividade ligada ao serviço notarial em Caxias do Sul, nos anos de 1994 até 2006. O
contato direto com o tema em pauta permitiu perceber sua relevância, assim como a
necessidade de aprofundar a análise da regularização da propriedade precária,
presente nos assentamentos urbanos informais, fenômeno social que tem sido
destaque há décadas no meio urbano. Especificamente, estudar os fatos e ações
que resultaram na regularização do loteamento “Jardim das Hortências”1 fez com
que fosse elaborado o projeto e, posteriormente, essa pesquisa, para responder
algumas indagações que colocam em confronto determinados paradigmas do direito
ligados às políticas públicas de regularização fundiária, considerada uma ação direta
na promoção do direito fundamental à moradia e de propriedade, substratos
constitucionais e elementos de redução das desigualdades e de inclusão social.
O estudo aborda as relações entre registro imobiliário, prefeitura municipal e a
comunidade diretamente envolvida na questão, permeado pela análise da legislação
aplicada e as ações empreendidas para o êxito da regularização pretendida. Parte
da premissa que a moradia legal é direito fundamental de todos e, simultaneamente,
é dever do Estado garantir o acesso a ela e a sua manutenção. Essa obrigação,
entretanto, não cabe tão-somente ao poder público, pois se sabe que a vida em
sociedade exige a participação de todos na busca do bem comum. Além disso,
sabe-se que as ações do Município prescindem de uma maior atuação da sociedade
para atingir a solução de seus próprios problemas, alcançando o ideal democrático
em que “os melhores intérpretes do interesse coletivo são os próprios
interessados”2, ou seja, o local onde os destinatários sejam os agentes da própria
transformação.
Desse modo, esse tema tem sido a preocupação de estudiosos do direito e da
filosofia, bem como objeto de seminários e conferências, como em destaque, a
Agenda Habitat II, documento aprovado durante a Segunda Conferência das Nações
1 “Jardim das Hortências” (sic). Apesar do erro gramatical esse é o nome que foi dado ao loteamento, conforme Decreto Municipal nº 7.481 de 25.08.1992 que aprovou o loteamento e que consta do registro imobiliário na matrícula correspondente. 2 BOBBIO, Norberto. Teorias das formas de governo. Brasília: Edunb, 1976, p. 79.
12
Unidas para os Assentamentos Humanos - Habitat II, Istambul, Turquia, 1996, de
que nosso país é signatário3. Esse documento foi avaliado e ratificado durante uma
Sessão Especial da Assembléia Geral da ONU - Istambul + 5, Nova York, 2001,
ocasião em que foi aprovada a Declaração do Milênio para os Assentamentos
Humanos4.
Neste diploma, voltado para a constituição de assentamentos humanos
eqüitativos, pode-se destacar as seguintes metas e princípios: diretrizes que
envolvem a garantia legal da posse da terra e propriedades (art. 27); a qualidade de
vida e eliminação das barreiras de acesso à moradia (art. 30); gerar ambiente de
cidadania e identidade, cooperação e diálogo para o bem comum, e um espírito de
voluntarismo e engajamento cívico, em que todas as pessoas são estimuladas e têm
oportunidades iguais de participar dos processos decisivos e de desenvolvimento
(art. 32); estimular a solidariedade, a cooperação e a assistência aos grupos
desfavorecidos em resposta aos desafios do desenvolvimento dos assentamentos
humanos, convocando os Governos a promover políticas e instrumentos sólidos e
eficazes para tal (art. 34); proteger os interesses das gerações atuais e futuras nos
assentamentos humanos, para tanto devem ser envidados esforços e recursos para
que se alcancem as metas de moradias adequadas para todos e o desenvolvimento
de assentamentos humanos sustentáveis em um mundo em urbanização (art. 35).
Assim sendo, as disposições da Agenda Habitat II justificam plenamente a
pesquisa aqui desenvolvida, pois a regularização da propriedade precária tem
ligação direta com essas diretrizes, uma vez que se está falando da moradia própria
constituída informalmente em assentamentos urbanos, também informais.
3 Disponível em: <http://www.ibam.org.br>. Acessado em: 28.10.2008. 4 “A Declaração do Milênio reconhece a importante contribuição de autoridades locais em todo o mundo na implementação da Agenda Habitat por meio de cooperação e parcerias entre Governos - em todos os níveis - e sociedade civil, visando assegurar uma melhor condição de vida nos assentamentos humanos e uma boa governança urbana”. Disponível em: <http://www.ibam.org.br>. Acessado em: 28.10.2008.
13
A moradia desempenha diversas funções: social, ambiental e econômica. É um direito básico de cidadania, reconhecido pela Constituição Federal. Em sua função social abriga a família, sendo uma das variáveis do seu processo de desenvolvimento. Portanto, pressupõe-se que a moradia deva atender aos princípios básicos de habitabilidade, segurança e salubridade. Sua inserção no meio ambiente urbano adequado é fundamental para que estejam asseguradas as condições básicas de vida, como infra-estrutura, saúde, educação, transportes, trabalho, lazer etc. A função econômica da moradia é inquestionável: sua produção oferece novas oportunidades de geração de emprego e renda, mobiliza vários setores da economia local e influencia os mercados imobiliários e de bens e serviços. As condições de vida, moradia e trabalho da população estão estreitamente vinculadas ao processo de desenvolvimento sustentável.5
No contexto das políticas públicas de inclusão social, assume relevância a
realização da moradia própria, como direito social condensado6 e fundamental
previsto na Constituição Federal. Este assunto remete à urbe como local onde se
concretiza este o sonho ou fantasia7 da propriedade, a qual é definida pelo filósofo
político David Hume como “a relação entre uma pessoa e um objeto de modo a
permitir a esta pessoa e a proibir a qualquer outra o livre uso e a posse do objeto,
sem violação das leis da justiça e da equidade moral.”8 Prossegue o filósofo
referindo que, ao se fazer menção da propriedade, o nosso pensamento transporta-
se naturalmente para o proprietário, prova de perfeita relação de ideias, e sempre
que um prazer ou uma dor nasce de um objeto ligado à pessoa pela propriedade,
podemos estar certos de que o orgulho ou a humildade deve originar-se desta
conjunção de relações.
5 Agenda Habitat para os Municípios. Publicação eletrônica do Instituto Brasileiro de Administração Municipal - IBAM. Disponível em: <http://www.ibam.org.br>. Acessado em: 28.10.2008. 6 Para Gurvitch o direito social condensado trata “[...] da incorporação pela ordem jurídica estatal das regras produzidas pelos grupos sociais, ou seja, direito social que seria puro e independente se se mantivesse alheio ao ordenamento do Estado é transmutado em ordem jurídica deste, mantendo, contudo, sua origem”. In: BOLZAN DE MORAIS, José Luis. A ideia de direito social: o pluralismo jurídico de Georges Gurvitch. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p.64. 7 Escreve João Paulo Monteiro, no prefácio da obra: “[...] é a partir dela (fantasia) que a associação (de idéias) por semelhança gera a simpatia (empatia), sem a qual seria impossível a obediência espontânea às regras morais. Sem as regras morais, por sua vez, as sociedades em que se organiza a vida dos homens seriam dilaceradas pelo conflito, não numa “guerra de todos contra todos” hobbesiana, mas em lutas intestinais que de qualquer modo a destruiriam. Ora, uma das mais centrais teses de Hume, diz-nos que sem a sociedade a espécie humana seria incapaz de sobreviver, por várias razões, como a sua relativa fraqueza física ou a longa e indefesa infância por onde começa a vida de cada ser humano. O círculo argumentativo fecha-se: a fantasia acaba por tornar-se também um princípio da natureza humana indispensável à sobrevivência individual, através da mediação da simpatia (empatia), da moral e da preservação da sociedade”. In: HUME, David. Tratado da natureza humana. Lisboa: Fundação Calouste Gulbelkian, 2001, p. 11. (grifei). 8 HUME, op. cit., p. 365.
14
Pode-se equiparar os conceitos da felicidade e bem estar em Aristóteles9 ao
conceito de prazer em Hume, para quem, pela mesma razão que a riqueza causa o
prazer e orgulho e a pobreza desperta mal estar e humildade, o poder produz as
primeiras emoções e a escravidão as segundas, e completa dizendo que “o poder
torna-nos capazes de contentar todos nossos desejos e a escravidão expõe-nos a
carências e mortificações”10. Assim sendo, pode-se afirmar que a incapacidade ou a
não realização dos nossos desejos de felicidade e bem estar, ou seja, a dor, nos
aproxima da escravidão e nos afasta da liberdade. Daí dizer-se que a realização da
propriedade, no sentido da moradia própria, traz significado de realização da pessoa
humana e, por conseguinte, de liberdade, da sua dignidade e da plenitude da
cidadania com inclusão social. Ao revés, a não realização afasta a pessoa e a relega
ao plano da exclusão, humilha e aprisiona, impede a felicidade e o bem estar, ideais
aristotélicos e finalidade do homem.
As políticas públicas de regularização fundiária, no âmbito administrativo da
municipalidade, estão voltadas primordialmente para a adequação do assentamento
às normas urbanísticas e de parcelamento e uso do solo. Nesse contexto, são
observadas as condições de estrutura e constituição do parcelamento,
especialmente nos quesitos das vias urbanas, dimensionamento dos lotes e da
existência de serviços básicos como água e luz. A importância dessa regularização
dá-se em razão de ser pré-requisito para o ingresso no álbum imobiliário, onde se
constituirá a propriedade.
De fato, para o sistema jurídico brasileiro a realização da propriedade dá-se
com o registro imobiliário. Daí por que não se dissociam esses fatores, na medida
em que o título de propriedade, conferido pelo registro do imóvel, é que transforma a
simples posse na propriedade. Nesse viés, o título de propriedade obtido com a
regularização é importante instrumento de inclusão social e faz aumentar e fortalecer
o capital social dos excluídos, haja vista que cria valores afetivos a respeito do lugar
de moradia, como refere João Pedro Schmidt.11 Por esse motivo, as ações no
9 ARISTÓTELES. Ética a Nicomacos. Livro I. São Paulo: Abril, 2000, Coleção Os Pensadores, p. 13. 10 HUME, op. cit., p. 371. 11 SCHMIDT, João Pedro. Exclusão, inclusão e capital social: o capital social nas ações de inclusão. In: REIS, J.R. dos; LEAL, R. (Org.). Direitos sociais & políticas públicas: desafios contemporâneos 6. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2006, p. 1776.
15
âmbito do registro imobiliário, ou a chamada regularização jurídica do assentamento
informal e da propriedade precária, revestem-se da maior importância para o êxito
da inclusão social pretendida e merecem atenção e análise, pois “o parcelamento do
solo urbano só será considerado regular se aprovado pelo Poder Público e ele for
efetivamente registrado no Cartório de Registro de Imóveis; se tal não ocorrer, ele é
irregular.”12 Assim sendo, as políticas públicas que se proponham ao objetivo da
regularização fundiária deverão contar com mecanismos e ações específicas para
superar as barreiras existentes no espaço do registro de imóveis.
Os estudos apontam para as dificuldades na implementação e eficácia das
regularizações fundiárias. “A organização interna de nossas cidades, grandes,
pequenas e médias, revela um problema estrutural, cuja análise sistêmica permite
verificar como todos os fatores mutuamente se causam, perpetuando a
problemática.”13. Em determinadas metrópoles a falta de regularização atinge índice
de 62% dos imóveis, a nível nacional para um montante de 12 milhões de imóveis
urbanos existem 5 milhões na irregularidade. Isso revela uma cidade informal média
de aproximadamente 40%, proporção equivalente à da chamada economia informal
do país14. Assim, nota-se a inter-relação direta da informalidade social com a
econômica, pode-se afirmar que uma parcela significativa das pessoas que
sobrevivem à custa da economia informal reside em propriedade igualmente
informal.
Nesse sentido, obstáculos técnicos, jurídicos e registrários têm sido
preocupação permanente dos administradores públicos municipais e produzem
resultados medíocres nas ações de regularização15. Na cidade de Porto Alegre, no
espaço de seis anos, o programa que previa regularizar 20.500 lotes alcançou
apenas 605, em Caxias do Sul os resultados foram pouco diferentes, pois, dos 4.981
lotes irregulares identificados em 1987 cerca de 2.700 foram regularizados até o ano
12 LEAL, Rogério Gesta. O parcelamento clandestino do solo e a responsabilidade municipal no Brasil: estudo de modelo. Revista do Direito nº 2 (Dez. 1994). Santa Cruz do Sul: UNISC, 1994. 13 SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. São Paulo: EUSP, 2005, p. 107. 14 Patrícia Ferraz, diretora de assuntos legislativos, regularização fundiária e urbanismo do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil – IRIB, no 29º Encontro de registradores de imóveis, Belém/PA, 2007. Disponível em: <http://www.irib.com.br>. Acesso em: 22.10.2007. 15 ALFONSIN, Betânia de Moraes. A regularização fundiária como parte da política urbana. In: Anais do seminário de regularização fundiária. São Paulo, junho/2003. Disponível em: <http://www.irib.org.br>. Acesso em: 14.07.2007.
16
de 1994. Entre os anos 1996 e 2007, em média, regularizaram-se 247 lotes por ano,
no total de 2.971, ao passo que, no mesmo período, o incremento das
irregularidades é superior e as estimativas apontam para a existência de 15.000
lotes ilegais16.
O problema que se apresenta é como transpor esses obstáculos jurídicos e
registrários que se opõem às regularizações. Para encontrar a solução é necessário
identificar os entraves referidos e encontrar fundamentos legais que possam servir
para superá-los e obter as regularizações pretendidas. Assim sendo, o objetivo
central é examinar como produzir melhores resultados na regularização fundiária,
tendo como perspectiva a simplificação dos procedimentos. Paralelamente,
perscrutar as relações entre o poder executivo municipal e os demais setores da
sociedade envolvidos na problemática, a partir da apreciação de caso concreto e de
êxito na regularização, no âmbito do município caxiense.
Nesse sentido, é importante buscar respostas que indiquem elementos que
possam favorecer a realização das ações regularizadoras. Assim sendo, por meio da
apreciação do sucesso na superação desses entraves e da percepção dos atores
sociais envolvidos nos procedimentos, pretende-se verificar como os obstáculos
podem ser superados e facilitados.
Para tanto, são analisados dogmas e paradigmas do direito imobiliário, na
forma como são colocados pela legislação e pela doutrina, e suas relações com as
políticas públicas de regularização implementadas, especificamente no âmbito do
município caxiense. Nesse último aspecto, dois pontos se sobressaem: o primeiro
diz respeito ao modo e instrumentos jurídicos utilizados pelo executivo público na
implementação das regularizações, em que se inclui a análise da política pública
adotada17; o segundo, refere-se à participação dos demais segmentos da sociedade,
na esfera judicial e não estatal, em que se inserem atores sociais diretamente 16 Conforme relatório interno do Setor de Loteamentos Irregulares, da Secretaria do Desenvolvimento Urbano, da Prefeitura Municipal de Caxias do Sul, e depoimento do responsável pelo setor, Bel. João Canton. 17 João Pedro Schmidt assinala que a literatura trabalha, em geral, com cinco fases das políticas públicas: a percepção e definição do problema, inserção na agenda política, formulação da política, implementação da política e avaliação da política. SCHMIDT, João Pedro. Para entender as políticas públicas: aspectos conceituais e metodológicos. In: Direitos sociais e políticas públicas: desafios contemporâneos. Tomo 8. Santa Cruz do Sul: Edunis, 2008, p. 2315/18.
17
envoltos no problema, tais como o juiz corregedor, o registrador e os moradores,
proprietários precários.
Na elaboração da pesquisa partiu-se das seguintes premissas:
1. As irregularidades presentes são frutos do exercício do direito social puro
à moradia, portanto, mesmo contrárias à lei, são legítimas, pois é direito
condensado na Constituição Federal;
2. Os obstáculos jurídicos e registrários à regularização podem ser
superados com fundamento nos princípios sociais da solidariedade, da
subsidiariedade e do bem comum e, em razão desses, é possível a
simplificação dos procedimentos regularizadores;
3. A ação pró-ativa da comunidade, especialmente dos segmentos judicial e
não estatal integrados ao executivo municipal, é imprescindível para o
alcance dos objetivos das políticas públicas de regularização fundiária;
4. As políticas públicas regularizadoras devem observar e conter todas as
fases que caracterizam os principais momentos dos processos político-
administrativos, principalmente o estabelecimento de metas e a avaliação
da sua efetividade, eficácia, eficiência e legitimidade, para melhorar a
performance e dar conta das necessidades.
Tendo por parâmetro a doutrina e a legislação, bem como a relação entre as
ações implementadas e os atores sociais envolvidos, o tema foi enfrentado a partir
das seguintes hipóteses:
1. Os procedimentos adotados e instrumentos disponíveis para superar os
obstáculos não são adequados, daí ineficazes;
2. Os procedimentos e instrumentos são adequados, mas a sua utilização é
ineficiente;
3. É necessário apontar outros instrumentos e outras possibilidades de
utilização dos procedimentos que envolvam a ideia de simplificação e
facilitação, de maneira que os destinatários sejam agentes da própria
transformação.
18
Os objetivos específicos que nortearam a pesquisa são os seguintes: a)
descrever e identificar os obstáculos jurídicos e registrais ao processo da
regularização fundiária, por meio da apreciação da legislação que regula a matéria e
da doutrina aplicada; b) examinar os procedimentos adotados no município caxiense
para as regularizações fundiárias e, especialmente, para a superação dos
obstáculos no âmbito da regularização efetivada no caso do loteamento “Jardim das
Hortências”; c) encontrar fundamentos jurídicos, tanto para a legítima constituição da
propriedade precária consolidada quanto para a sua regularização, no âmbito dos
princípios do direito; d) apontar outros procedimentos e tendências na legislação que
indiquem o caminho da simplificação e facilitação da regularização da propriedade
precária consolidada.
A pesquisa apresentada é descritiva e o estudo de caso do loteamento
“Jardim das Hortências” serve para examinar os aspectos peculiares que
envolveram a sua regularização, que demonstram as possibilidades de simplificação
nos procedimentos e a superação das barreiras jurídicas e registrais, que impedem
as regularizações em outras comunidades, em que se sobressai o aspecto de
propriedade precária, terminologia que identifica a situação fática consolidada e
juridicamente definida, mas que dependente de registro formal, ou seja, da
juridicidade. Muito embora seja um problema comum decorrente do processo da
urbanização corporativa presente em quase todos os municípios brasileiros, a
proliferação dos parcelamentos irregulares e suas regularizações encontram meio e
soluções próprias em cada localidade onde ocorrem. O tema tem sido tratado até
hoje, na maioria das situações, como uma questão que depende tão somente, ou
pelo menos preponderantemente, da atuação do poder público municipal para sua
solução, tese à qual não se deve aderir por estar claro que, na democracia pós-
moderna, vinculam-se todos os atores locais que compõem a comunidade, públicos
e privados, preferencialmente integrados e atuando sob os princípios da
solidariedade, da subsidiariedade e do bem comum.
Esta dissertação compõe-se de três capítulos. No primeiro são abordados,
inicialmente, os aspectos conceituais sobre políticas públicas, posteriormente, as
questões jurídicas e teóricas relacionadas à regularização fundiária e às normas de
19
uso e parcelamento do solo urbano, bem como os princípios do direito no âmbito do
registro imobiliário e a legislação aplicada, que constituem os obstáculos a serem
superados para alcançar as regularizações jurídicas pretendidas. No segundo, é
apresentado o problema das regularizações em Caxias do Sul, os aspectos
históricos ligados à origem dos loteamentos irregulares na cidade, bem como o caso
da regularização do loteamento “Jardim das Hortências”, cujo tratamento apresenta
aspectos sui generis em que os procedimentos adotados indicam a possibilidade, na
construção local, de uma solução fundamentada em princípios sociais para a
transmutação do fato moral em fato legal. Ou seja, a superação prática de
obstáculos jurídicos e registrais. No último capítulo abordam-se as entrevistas
realizadas com atores envolvidos no processo de regularização, cujos depoimentos
permitem testar as hipóteses e responder as questões que nortearam o estudo.
Por derradeiro, nas considerações finais apresenta-se a síntese das
observações do fato real em relação aos objetivos e hipóteses levantadas. Além
disso, a título de perspectiva de futuro, em relação às políticas públicas de
regularização fundiária, são analisadas algumas inovações propostas no Projeto de
Lei de Responsabilidade Territorial Urbana que tramita no Congresso Nacional.
Desse modo pretende-se contribuir para o debate e o levantamento de questões
pertinentes a esse complexo tema que envolve a realização do direito à moradia
legal, o qual, em suma é direito social puro e fundamental, condensado na
Constituição Federal, bem como forte fator de redução das desigualdades e de
inclusão social em todos os níveis. Esse ideal, fantasia ou sonho da liberdade e do
bem estar de todos como síntese da dignidade humana e cidadania, encontra-se
com todas as letras no Contrato Social brasileiro, tanto no artigo 3º, inciso IV quanto
no artigo 5ª, surge como direito dever de todos nós, a ser alcançado e exercitado
plenamente, desejado no presente em face de serem princípios fundamentais da
República.
20
1 POLÍTICAS PÚBLICAS DE REGULARIZAÇÃO E DE REGULAÇÃ O FUNDIÁRIA:
ASPECTOS JURÍDICOS
1.1 Observações conceituais sobre políticas pública s
A apreciação das políticas públicas deve partir de sua conceituação. O
conceito apresentado por João Pedro Schmidt18, configura decisões de caráter geral
que apontam rumos e linhas estratégicas de atuação governamental. Servem para
reduzir os efeitos da descontinuidade administrativa e potencializar os recursos
disponíveis ao tornarem públicas, expressas e acessíveis à população e aos
formadores de opinião, as intenções do governo no planejamento de programas e
atividades. Destaca o cientista político, ainda, a necessária distinção entre governo e
Estado, pois enquanto o governo é contingente, o Estado é permanente.
Essa distinção é difícil em face da estreita relação entre as três dimensões da
política, nos âmbitos institucional (polity), dos processos (politics) e material (policy).
A equação do problema dos loteamentos precários abrange especialmente a politics
e a policy, na medida em que se nota a importância dos processos entre forças
políticas e sociais na dimensão das relações de poder, na tomada de decisão, na
atuação dos partidos políticos e do resultado do jogo político (politics); materializado
nas ações, programas e atividades que visam a resolução dos problemas sociais e a
efetivação dos direitos (policy).
A policy, explica Schmidt, compreende os conteúdos concretos da política, é
o Estado em ação, visível nas ações de governo contidas nos programas, projetos e
atividades executadas no atendimento das demandas da comunidade.19 Pode-se
afirmar que a materialidade da regularização fundiária está presente no âmbito da
policy.
No aspecto jurídico, as políticas públicas sejam quais forem devem ser
voltadas para a realização dos preceitos e fundamentos da Constituição. Por isso,
18 SCHMIDT, João Pedro. Para entender políticas públicas: aspectos conceituais e metodológicos. In: REIS e LEAL (Org.). Direitos sociais e políticas públicas: desafios contemporâneos. Tomo 8. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2008, p. 2311. 19 SCHMIDT, op. cit., p. 2311.
21
pode-se afirmar que têm direta ligação com as diretrizes vindas da forma do Estado
(a polity).
Por isso, é importante que o processo político tenha como resultado o
estabelecimento da política pública (policy), ou ação do estado na solução da
demanda social. O interessante, nesse caso, é o estabelecimento de uma policy
com maior durabilidade temporal e independência. A ação pública (policy) que se
identificar prioritariamente com a política partidária (politics), corre o risco de assumir
características clientelista e eleitoreira na medida em que se mostra imediatista e de
curta duração, por estar vinculada a um programa político de governo ao invés de
uma política de Estado. Ermínia Maricatto sugere ser, essa identidade, um elemento
responsável pelo surgimento e manutenção dos loteamentos precários, ao referir:
Os políticos mantêm com esse universo uma relação muito funcional, pois a questão da regularização fundiária dos imóveis urbanos é objeto de relação clientelista. A ilegalidade é, portanto, funcional, para as relações políticas arcaicas, para um mercado imobiliário restrito e especulativo, para a aplicação arbitrária da lei, de acordo com a relação de favor.20
Na mesma direção, Raquel Rölnik refere:
[...] dessa forma o poder público estabelece uma base política popular, de natureza quase sempre clientelista, uma vez que os investimentos são levados à comunidade como “favores” do poder público. [...] Essa tem sido uma das grandes moedas de troca nas contabilidades eleitorais, fonte da sustentação popular de inúmeros governos.21
Nesse âmbito, se evidencia aquilo que se pode denominar “a não ação do
Estado” sendo essa, também, uma forma de política pública. Esse fator nos remete
à constituição de assentamentos informais como frutos da permissividade, ou ação
por omissão pública. Na realidade, essa ação por omissão revela-se verdadeira
política pública, lato sensu, pois, ao se tornar prática dos sucessivos governos torna-
se permanente no tempo e independente da política do governo que eventualmente
ocupa o executivo. Nesse caso, a característica recomendada de continuidade da
policy assume aspecto negativo. Além disso, a conduta omissiva e permissiva 20 MARICATO, Ermínia. As idéias fora do lugar e o lugar fora das idéias: planejamento urbano no Brasil. In: ARANTES, O. et al. A cidade do pensamento único: desmanchando conceitos. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 123. 21 RÖLNIK, Raquel. In: FASE e COHRE. Manual: regularização da terra e moradia - o que é e como implementar. São Paulo: Instituto Polis, 2002, p. 19.
22
mostra-se como exteriorização do interesse político na formação da clientela
eleitoreira que, no futuro, será objeto do atendimento de suas necessidades em
troca do voto22.
Na análise das políticas públicas cabe contemplar tanto os aspectos
descritivos quanto prescritivos, onde no primeiro momento, visa-se ao melhor
entendimento do processo das políticas e no segundo, se projeta as soluções
possíveis em face de resultados e alternativas utilizadas em outros ambientes.23
Segundo Schmidt, “a análise das políticas públicas não pode ser feita de forma
fragmentada ou isolada da análise mais geral sobre os rumos do Estado e da
sociedade”24. Nesse contexto, é relevante considerar a legislação como fonte de
definição de políticas, como também o período histórico e o local da implementação
das políticas públicas, em virtude da influência que exercem sobre os resultados
alcançados e que determinam seu sucesso ou fracasso.
Segundo Schmidt, é importante considerar as diversas fases das políticas
públicas, desde a percepção e definição do problema até a avaliação. O êxito ou
fracasso da política está vinculado ao conjunto dessas fases, sendo os problemas
ou acertos em uma delas incidentes sobre as fases seguintes25. Dessa maneira, o
equilíbrio entre as fases é primordial para que se tenha efetiva, eficaz, eficiente e
legítima política pública. É imperioso concordar com a afirmação do autor em que “o
planejamento e a avaliação constantes são indispensáveis, não apenas para o êxito
das políticas públicas, mas do próprio exercício de poder.”26
22 Confirmando esta premissa, notícia veiculada em pleno período de eleições municipais, em 14.08.2008, informa que: “Projeto que permite construções em loteamentos irregulares é aprovado em São José dos Campos/SP; medida beneficia 15 mil moradores. A proposta foi apresentada na semana passada pelo vereador Walter Hayashi (PSB), que integra a bancada governista. Anteontem, ele protocolou um projeto substitutivo, que foi o texto aprovado ontem em plenário pelos parlamentares. Dos 94 bairros clandestinos, 62 possuem a classificação de Zeis, mas os 13 em fase final de regularização são Jardim Coqueiro, o Michigan 1, o Michigan 2, o Michigan 3, o Chácaras Araújo, o Santa Lúcia, o Santa Rita, o Portal do Céu e o Primavera 1, localizados na zona leste, onde Hayashi possui seu principal reduto eleitoral”. In: Jornal Valeparaibano. Disponível em: <http://jornal.valeparaibano.com.br/sjc/zona1.htm>. Acesso em: 16.08.2008. 23 SCHMIDT, João Pedro. Para entender políticas públicas: aspectos conceituais e metodológicos. In: REIS e LEAL (Org.). Direitos sociais e políticas públicas: desafios contemporâneos. Tomo 8. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2008, p. 2315. 24 SCHMIDT, loc. cit. 25 SCHMIDT, loc. cit. 26 SCHMIDT, op. cit., p. 2320.
23
Visto isso, pode-se partir para uma análise das políticas públicas de
regularização e de regulação fundiária, para definir como se apresentam frente aos
problemas que pretendem resolver, ou pretenderam resolver, mas que, ao contrário,
agrava-se continuamente.
1.2 A relação entre as políticas fundiárias e os as sentamentos informais
Na abordagem do tema da propriedade precária deve-se voltar atenção para
aspectos ligados à regulação do uso do solo, pois como um sistema complexo, as
diferentes espécies de assentamentos urbanos informais ou precários27, que na
década de 80 e 90 são denominados loteamentos ilegais, clandestinos ou
irregulares, objetos das políticas regularizadoras, são consequências diretas das
políticas públicas que estabelecem as regras do uso do solo urbano, em que ainda
predomina a diretriz protecionista da propriedade privada, acumulativa e sem
limitações.
Por essas razões, a negação ao direito da moradia digna para milhões de
cidadãos, apesar de garantido na Constituição Cidadã, segue sendo um dos
principais problemas contemporâneos especialmente em face do estabelecimento
de uma sociedade cada vez mais urbana, cuja relação orgânica desequilibrada
acaba por trazer reflexos negativos a toda sociedade, a qual deve, urgentemente,
voltar sua atenção para a solução desse problema. Para agravar o quadro, no
contexto de um modelo de desenvolvimento forte na concentração de renda e
incremento da exclusão social, a concentração de pessoas no espaço urbano
produz o inchaço local e, daí, toda sorte de mazelas e degradações das pessoas e
do ambiente.
Estudos indicam que a irregularidade fundiária alcança cifras expressivas em
algumas grandes capitais. De acordo com o Ministério das Cidades, mais de 50%
dos imóveis urbanos do Brasil estão fora do sistema registral. A estimativa é de que
27 Conforme denominação do Ministério das Cidades ao Programa Urbanização, Regularização e Integração de Assentamentos Precários. Disponível em: <http://www.cidades.gov.br/ministerio-das-cidades/destaques>. Acesso em: 14.02.2008.
24
esse número chegue a 12 milhões de imóveis28. Há cidades inteiras fora do sistema
formal, o que demonstra o descompasso existente entre objetivos e resultados, bem
como o desequilíbrio do sistema social.
Num contexto histórico, as políticas públicas de habitação e moradia urbana
(de regulação), como de resto as demais políticas econômicas e sociais,
demonstram um viés de práticas conservadoras e privativistas que implicam um
violento processo de migração campo-cidade, especialmente na direção sul do país,
dos centros urbanos constituídos e da faixa litorânea29. Esse fenômeno produz
resultados visíveis nas cidades.
A concepção de propriedade privada permanece dissociada da sua função
social. Ainda que, nas Constituições de 1934 (art. 113), de 1946 (arts. 14 e 122) e de
1967 (art. 147) se vislumbre essa perspectiva, o que de fato ocorre é a expansão
desordenada da cidade na forma de cortiços, favelas e loteamentos precários,
decorrente da falta de oportunidade e de acesso à propriedade regular a uma
parcela da população, ao mesmo tempo em que a propriedade segue forte na
individualidade e acumulação de outra parcela.
O modelo de desenvolvimento (polity) e ações (policy) do Estado brasileiro,
como se sabe, gerou e ainda gera a distribuição desigual da renda e dos direitos,
entre esses o direito à moradia. Esta desigualdade cria classes de cidadãos com
diferentes níveis econômicos e de direitos. Pode-se afirmar que em toda a América
Latina, especialmente a partir da década de 70, por força da proposta de
desenvolvimento apresentada por organismos financeiros internacionais, agravaram-
se os problemas sociais, acirraram-se as diferenças de classes e privilegiaram-se
minorias que passaram a deter os recursos econômicos e o estoque imobiliário
urbano, com fins especulativos, cujo maior efeito foi o de marginalização das
categorias sociais em face de seus escassos rendimentos para aquisição de um lote
legal.
28 FERRAZ, Patricia A. C. Regularização fundiária e registro de imóveis: bases para o desenvolvimento econômico sustentável. São Paulo: RDI/IRIB, 2007. 29 LEAL, Rogério Gesta. A função social da propriedade e da cidade no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado; Santa Cruz do Sul: Edunisc, 1998, p. 75.
25
Esse quadro passa a se modificar somente após a Constituição de 1988 que
trouxe novos fundamentos e princípios para a propriedade, com ênfase na função
social, submetendo o seu aproveitamento ao atendimento das necessidades da
comunidade e do meio ambiente, abrindo-se um novo horizonte para o
estabelecimento de políticas públicas inclusivas, com destaque para as políticas
redistributivas fundiárias (de regularização).
Com efeito, no âmbito jurídico é preciso destacar que as relações de
propriedade e seu significado passam a ser reguladas no Brasil pelo direito civil de
Clóvis Beviláqüa,30 com a edição do Código Civil de 1916 que perdurou até 2003
quando passou a viger o “Novo” Código. Pelo diploma antigo, a propriedade do solo
é concebida com eminente característica individual, exclusiva, perpétua, absoluta e
ilimitada, adquirida pelo registro do título de transferência no registro de imóveis31,
que contempla-se no “utendi fruendi et abutendi, na plena in re potestas”32, de
Justiniano, e tal como em Roma, a propriedade “quiritária”33 serve, desde então,
como elemento de distinção de classe (ou, o que é pior, de cidadania), peculiar ao
“cives romani”, dispõe o proprietário de poder integral, individual e intransferível
sobre a coisa, podendo se apropriar de tantas quantas lhe for possível obter.
A distinção de classes sociais dá-se na medida em que a propriedade regular
(registrada) é direito exclusivo, acessível somente àqueles que possuem renda
suficiente para sua aquisição, restando aos demais somente a aquisição e posse
precária, fruto de invasão ou de parcelamento irregular das terras urbanas,
passando esta classe a se distinguir como a dos não proprietários. Sob este prisma,
o sistema que reconhece e protege a propriedade privada, inclusive contra o Estado
(público), vê a introdução no Direito Constitucional do conceito de função social.
Explica Eros Roberto Grau: “passa a propriedade, assim, a ser vista desde uma
30 BEVILÁQÜA, Clóvis. Código civil dos Estados Unidos do Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: F. Alves, 1934. 31 Conforme artigo 530, da Lei nº. 3.071, de 01.01.1916, do Código civil brasileiro. Atual artigo 1.245, do Código civil brasileiro de 2002. 32 Conforme art. 524, do Código civil brasileiro de 1916. “A lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua”. 33 CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de direito romano. São Paulo: Forense, 1973, p. 159, ensina que: “Chama-se quiritária porque é própria dos romanos, os quirites (de Quirino, nome de Rômulo depois de sua morte. Cures é a cidade dos sabinos. Quirites são os sabinos, elemento étnico que se fundiu com a população romana dos primeiros tempos).”
26
prospectiva comunitária, não mais sob uma visão individualista.”34 Porém, ontem
como hoje, quem dita estas escolhas e regras certamente não é a massa dos não
proprietários que buscam sua moradia, no exercício pleno (independente) de direito
social puro a que se refere José Luiz Bolzan de Morais35.
1.2.1 A ineficácia da criminalização para evitar a implantação de loteamentos
ilegais
De fato, a política pública fundiária com a concepção privatista de 1916 e seu
efeito de crescimento desordenado da cidade e de insegurança jurídica têm como
resultado a edição da primeira lei de parcelamento do solo por meio do Decreto Lei
nº 58, de 10.12.1937, promulgado por Getúlio Vargas, que introduz os dois princípios
básicos na constituição de loteamentos, que serão mantidos nas leis posteriores, a
saber: (a) a precedência e indispensabilidade do registro imobiliário dos
parcelamentos, com depósito de memorial, planta, certidões fiscais, etc.; e (b) a
necessidade da aprovação do plano e plantas do loteamento pela Prefeitura
Municipal, “ouvida a autoridade sanitária e militar”36.
A criminalização e imposição de pena para o descumprimento da lei, como
terceiro princípio básico e cogente das políticas de regulação fundiárias, vem a
acontecer anos mais tarde quando é editada a Lei nº 4.591, de 16.12.1964,
denominada Lei dos Condomínios e Incorporações. Essa lei surge em virtude do
crescimento vertical nos centros urbanos, resultado da ampliação e predominância
34 GRAU, Eros Roberto. Direito urbano: regiões metropolitanas, solo criado, zoneamento e controle ambiental, PL de Desenvolvimento Urbano. São Paulo: RT, 1983, p. 66. 35 “[...] uma ordem jurídica que esteja subsumida em duas perspectivas fundamentais para que possa configurar, realmente, uma ordem de integração, quais sejam: a. Pureza . O direito social retira sua eficácia de sua própria legitimidade como ordem normativa auto-instituída. b. Independência , sua plena autonomia, ou mesmo, sua soberania como ordem normativa desvinculada daquela própria ao Estado”. [grifo nosso]. MORAIS, José Luis Bolzan de. A ideia de direito social: o pluralismo jurídico de Georges Gurvitch. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 53. 36 DL nº 58/37, art. 1º, § 1º Tratando-se de propriedade urbana, o plano e planta do loteamento devem ser previamente aprovados pela Prefeitura Municipal, ouvidas, quanto ao que lhes disser respeito, as autoridades sanitárias e militares. Disponível em: <http://www.senado.org.br/legislação>. Acesso em: 12.12.2007.
27
dos condomínios edilícios, como consequência das políticas públicas de moradia
(leia-se SFH37).
Porém, a elaboração legal não inibiu a produção dos loteamentos irregulares,
pois segundo Luciano Caseiro,
não precisaria ser um jurisperito para chegar-se à conclusão que a redação legal da definição desse crime apresentava defeitos insuperáveis. Sobretudo não se atinou bem porque esse crime é, então, rotulado de “crime contra a economia popular”, quando a conduta reprovável se endereçava ao desrespeito direto às determinações da administração
pública municipal.38
Assim, essa medida tornou-se ineficaz haja vista a proliferação dos
loteamentos desde aquela data até hoje.
Com o Decreto Lei nº 271, de 28.02.1967, surge equiparação do loteador ao
incorporador pra todos os efeitos, inclusive os penais. Passa então a vigorar uma
política pública municipal de ação penal, coercitiva e cogente contra as ações dos
pretensos loteadores. Mas o resultado inibidor mais uma vez não se fez presente e a
situação faz com que as pessoas de baixa renda, “[...] sem condições de acesso a
terra urbanizada, ocupem áreas fora do mercado, de baixo valor imobiliário e pouco
fiscalizadas pelo poderes públicos”, na análise da Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade de São Paulo39.
Por sua vez, no entendimento de Caseiro:
Colocar loteadores clandestinos na cadeia, não será, por si só, medida que repare o dano causado ao poder público, e via de reflexo a todos os integrantes da comunidade. Não pode haver dúvida que da ação delituosa decorrem atos de extrema complexidade, na esfera civil. O compromisso ou a venda de lotes a terceiros geram direitos em relação a este e mais do que
isto, cria situações de fato, de ordem social.40
37 Sistema Financeiro da Habitação – SFH, instituído pela Lei 4.380/64, constituiu o Banco Nacional de Habitação- BNH e definiu parâmetros para a viabilização do sistema financeiro voltado à área habitacional. Promoveu o desenvolvimento nos setores da construção civil e financeiro. 38 CASEIRO, Luciano. Loteamentos clandestinos: conseqüências penais. São Paulo: EUD, 1979. p. 32. 39 Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. In: Manifesto em defesa do projeto de lei 3057. Disponível em: <http://www.irib.org.br. 40 CASEIRO, op. cit., p. 46.
28
Mesmo assim, as políticas de regulação fundiária optaram por manter o viés
criminal como instrumento para sustar a prática do loteamento irregular. A edição da
Lei nº 6.766 de 19 de dezembro de 1979, Lei do Parcelamento do Solo, vigente até
hoje e que tipifica como crime contra a administração pública efetuar loteamento ou
desmembramento do solo urbano sem autorização do órgão público competente
(art. 50), indica a prevalência da criminalização como instrumento para conter as
irregularidades.
Porém, a impunidade do loteador permaneceu latente, agora não mais quanto
ao tipo penal, mas sim quanto à prescrição penal, já que, pela natureza de “crime
instantâneo de efeitos permanentes”, o delito ocorre quando o loteamento é iniciado
e prescreve no decurso da pena (de 1 a 4 anos). Se a denúncia não for célere, o
risco da impunidade em virtude da prescrição do crime é grande, como bem
demonstrado nos Acórdãos nº 2006/129900541 e nº 2006/12346742, ambos do
TJ/RS.
Como se vê, historicamente as políticas públicas voltadas à habitação e
moradia mostra-se mais para a limitação do que para a distribuição do direito, com
agravante de que, a par de não atingirem seus propósitos, servem para o
surgimento das espécies de irregularidades e ilegalidades fundiárias, bem como se
mostram obstáculos ao alcance das regularizações.
41 Apelação Criminal Acórdão nº 2006/1299005: O delito de realizar loteamento irregular é instantâneo de efeitos permanentes, ocorrendo o termo “ad quo” do lapso prescricional, no momento em que o loteamento é iniciado. Nesse sentido a doutrina e farta jurisprudência. [...]. Desta forma, estou votando no sentido de negar provimento ao recurso do Ministério Público e de prover o recurso da defesa, para declarar extinta a punibilidade pela prescrição da pena imposta. 42 Apelação Criminal Acórdão nº 2006/123467: Os fatos ocorreram em 1994. A denúncia foi recebida em 25 de junho de 2003. A pena imposta foi de um ano de reclusão. Logo, tudo está fulminado pela prescrição, eis que decorridos mais de quatro anos entre a data do fato e a do recebimento da denúncia. [nosso grifo].
29
1.3 Políticas de regulação e políticas de regulariz ação: uma perspectiva local
A municipalização das prerrogativas e competências legais talvez seja o mais
importante aspecto da Lei nº 6.766/7943. O diploma traz normas reguladoras
urbanísticas para fins de implantação de loteamentos e abrange também normas de
regularizações. Assim sendo, cabe ao poder municipal definir os parâmetros para
alcançar a solução do problema da regularização.
Resta claro que a legislação reguladora nascida em 1937 tem como
motivação a proteção do adquirente do lote em face da insegurança jurídica
decorrente da possibilidade do arrependimento do loteador; da não realização do
empreendimento; da alienação de um mesmo lote a mais de um adquirente; e, da
incerteza da propriedade originária da gleba ou da solvência do empreendedor.
Luis Eduardo Schoueri,44 entende que toda a relação obrigacional encontra-se
baseada numa causa, explica que: “ao se buscar a causa, indaga-se acerca da
justificação da lei.” Apresenta a ideia que a justificação e as causas da lei direcionam
seu objetivo e resultados esperados, de modo que, no caminho inverso, resultados
inesperados indicam defeito na elaboração legal. Portanto, não se pode afastar a
motivação no exame da lei, já que sua aplicação atenderá aos fins sociais a que ela
se dirige45.
Desse modo, a lei que regula o parcelamento do solo e que estabelece a
política pública para a matéria tem como justificativa a proteção legal e individual da
propriedade e dos adquirentes, bem como a imposição de exigências tais que
afastem aqueles loteadores ou empresas que, potencialmente, venham a frustrar as
expectativas dos compradores. Porém, os efeitos são: (a) a reserva de mercado
para empreendedores com maiores condições econômicas de garantir a execução
das obras, que visam aos lucros compatíveis com sua dimensão; (b) o consequente
aumento do preço de custo e de venda dos lotes regulares; e, (c) a emergência dos
loteamentos irregulares para atender a demanda por lotes menos valorizados.
43 Conforme art. 6º, da Lei nº 6.766/79. 44 SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas tributárias indutoras e intervenção econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 136. 45 Conforme artigo 5º, da Lei de Introdução, Decreto-Lei nº 4657, de 4 de setembro de 1942.
30
Não se pode negar que as normas impostas são de fundamental importância
para o desenvolvimento sustentável das cidades, por iguais razões uma
infraestrutura necessária à adequação urbanística agrega valor ao terreno em
virtude dos investimentos realizados.
Por sua vez, as políticas públicas e diretrizes de regularização fundiária,
presentes na Lei 6.799/79, demonstram o legislador preocupado com a preservação
do interesse particular. Explica-se. O enfoque adotado na lei é o de proteção ao
adquirente dos lotes não regulares, a quem cabe o direito/dever46 de promover
medidas extremas, como por exemplo: a sustação dos pagamentos de prestação
vincenda e efetivar seu depósito judicial, bem como, ajuizar a notificação do loteador
para regularizar o empreendimento. A política de proteção atribui ao Estado, leia-se
poder municipal, a competência para promover a regularização do loteamento não
autorizado ou executado em desacordo ao planejamento licenciado, “para evitar
lesão aos seus padrões de desenvolvimento urbano e na defesa dos adquirentes de
lotes”47.
Observa-se nessas normas a clara intenção do legislador em conferir
possibilidade e responsabilidade jurídica ao executivo municipal para assumir a
conclusão do loteamento irregular, ou a correção dos equívocos do plano em
relação às normas reguladoras, às suas expensas, para dar segurança aos
adquirentes. Como se nota, os procedimentos regularizadores não estão sendo
exercidos pelo executivo municipal em suas prerrogativas de Estado48.
46 Conforme Lei nº 6.766/79, artigo 38 - Verificado que o loteamento ou desmembramento não se acha registrado ou regularmente executado ou notificado pela Prefeitura Municipal, ou pelo Distrito Federal quando for o caso, deverá o adquirente do lote suspender o pagamento das prestações restantes e notificar o loteador para suprir a falta. [nosso grifo]. 47 Conforme Lei nº 6.766/79, artigo 40 - A Prefeitura Municipal, ou o Distrito Federal quando for o caso, se desatendida pelo loteador a notificação, poderá regularizar loteamento ou desmembramento não autorizado ou executado sem observância das determinações do ato administrativo de licença, para evitar lesão aos seus padrões de desenvolvimento urbano e na defesa dos direitos dos adquirentes de lotes. [nosso grifo]. 48 “Com efeito, o Estado não tem exercido, como manda a lei, o poder de polícia. A realidade urbana é prova insofismável disso. Não há como se admitir o contrário, pois se essa gigantesca ocupação de terras não fosse tolerada e a população pobre não tivesse alternativa alguma, estaríamos diante de uma situação de guerra civil.” MARICATO, Ermínia. As idéias fora do lugar e o lugar fora das idéias. In: ARANTES, Otília, et al. A cidade do pensamento único: desmanchando conceitos. Petrópolis-RJ: Vozes, 2000, p. 161.
31
Porém, não se pode deixar de considerar que a regularização do loteamento
não depende tão somente da iniciativa do executivo municipal ou do enquadramento
do projeto técnico e sua execução de acordo com as normas urbanas do
município49. Como visto, o acesso do título do imóvel e do loteamento ao registro
imobiliário é o que consagra a regularidade do empreendimento e é justamente a
superação destes obstáculos o tema dessa pesquisa.
Em síntese, as possibilidades jurídicas para a regularização de qualquer
imóvel dependem da vontade política e do estabelecimento de políticas públicas
voltadas para esta finalidade no âmbito municipal e de procedimentos que superem
as barreiras registrais. Para tanto é imprescindível ampla movimentação e
manifestação da sociedade, tendo em vista que, historicamente, os avanços na
conquista de direitos e prerrogativas de cidadania são, paradoxalmente, promovidos
pelos não cidadãos, ou seja, pelos conflitos de excluídos por inclusão50.
1.3.1 Solidariedade, subsidiariedade e bem comum: f undamentos jurídicos da
solução local
Para visualizar como se construiu o entendimento e quais foram os elementos
jurídicos para o alcance da solução do problema de regularização do loteamento
“Jardim das Hortências”, é preciso compreender as ideias de solidariedade e
subsidiariedade, que são compatíveis com os princípios aparentes naquele processo
regularizador. Esse entendimento é importante tendo em vista que os princípios da
solidariedade e da subsidiariedade podem ser os elementos de legitimação de ações
que pretendam as regularizações fundiárias, tendo em vista a facilitação e
simplificação dos procedimentos de regularização fundiária como possibilidade
49 “A regularização fundiária, como se vê, não se encerra em ato isolado do Executivo, aprovando o parcelamento e verificando sua observância às regras vigentes. É preciso que o ato se materialize juridicamente com a criação jurídica das frações destacadas e, para tanto, passa necessariamente pelo Registro de Imóveis.” CHICUTA, Kioitsi. A função registral e a atuação do Judiciário: breves considerações sobre a desapropriação judicial e a concessão real de uso. In: Anais do seminário sobre regularização fundiária. São Paulo: 2007. Disponível em: <http://www.irib.org.br/index.asp>. Acesso em: 09.06.2007. 50 MAQUIAVEL. Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio (1517). Apud BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. Brasília: EUB, 1992, p. 92.
32
inovadora para superar obstáculos registrais e ampliar os resultados positivos na
solução do problema.
Sabe-se que o surgimento de loteamentos ilegais, como o “Jardim das
Hortências”, é resultado do complexo sistema econômico e social vigente, com as
conhecidas distorções e corrosão social produzidas pelo individualismo utilitarista51.
Para contrapor ao caminho da concentração, da competição e da exclusão trilhado
pela sociedade, Osvaldo Della Giustina aponta para a via da desconcentração e da
cooperação, ou seja, da participação e da solidariedade, “mesmo porque a
sociedade com o instinto da história, da evolução ou da sobrevivência, percebe este
caminho”52.
A par disso, pode-se notar que a participação propiciada pela
desconcentração, de que fala Della Giustina, nada mais é do que a subsidiariedade,
princípio que, na dicção de Reinholdo Aloysio Ullmann, “tem como fundamento
metafísico a autonomia da pessoa humana, a sua finalidade e a responsabilidade de
auto-realização”53. Para Ullmann, a subsidiariedade, junto com a solidariedade e o
bem comum54, completa os três princípios formadores da sociedade, seu sentido e
razão de existência.
Esses princípios refletem a ideia aristotélica de que o homem é ser social e só
consegue sobreviver em sociedade, pois frente a suas carências individuais
necessita de outras pessoas para satisfazer suas necessidades55. Nesse viés, o
filósofo David Hume56, cuja obra influenciou Kant, diz-nos que “sem a sociedade a
51 “The conventional view of Durkheim of social order [...] criticized utilitariam individualism as a major corrosive of social order, [...]”. In: TURNER, Bryan S.; ROJEK, Chris. Society and culture - principles of scarcity and solidarity. London: SAGE Publications, 2001, p. 85. 52 DELLA GIUSTINA, Osvaldo. Participação e solidariedade: a revolução do terceiro milênio II. Tubarão: Unisul, 2004, p. 158. 53 ULLMANN, Reinholdo Aloysio. O solidarismo. São Leopoldo: UNISINOS, 1993, p. 99. 54 “É o conjunto das condições da vida social que permitem aos grupos e cada um dos seus membros atingir, de maneira mais completa e desembaraçadamente, a própria perfeição”. ULLMANN, op. cit., p. 92. 55 Em1 Ethic, lect.1, ARISTÓTELES escreve: “O homem é naturalmente um animal social, porquanto necessita, para sua vida, de muitas coisas que ele próprio não consegue prover; segue daí ser o homem parte de uma multidão pela qual lhe deve ser prestado ajuda para bem sobreviver”. In: ULLMANN, op. cit., p. 81. 56 “A sua obra levou Bertrand Russel a declará-lo o maior filósofo da língua inglesa, e é bem conhecida a influência que exerceu sobre Adam Smith, e depois sobre Kant – levando o filósofo alemão a abandonar a metafísica racionalista e tornando possível a redação da Crítica da Razão
33
espécie humana seria incapaz de sobreviver, por várias razões, como a sua relativa
fraqueza física ou a longa e indefesa infância por onde começa a vida de cada ser
humano”57. O filósofo escocês chama de “simpatia” àquela identificação de um com
o outro, característica da vida em sociedade, que torna possível e, além disso,
indispensável a existência de um sistema de regras morais.
A divisão de trabalhos e tarefas na sociedade reflete essa interdependência e
é fonte do surgimento dos primeiros aglomerados urbanos e cidades. Empiricamente
falando pode-se dizer que esse mesmo princípio rege o surgimento dos atuais
assentamentos precários. A interdependência e a reciprocidade são as sementes do
solidarismo, ou princípio da solidariedade, “cuja origem teria duas vertentes
intelectuais: o estoicismo e o cristianismo primitivo”58.
Explica Farias que o tema da solidariedade, presente nos escritos de Pierre
Leroux, Auguste Comte e Proudhon, é sistematizado por Émile Durkheim, em cuja
obra aparece numa lógica que não se confunde com “caridade”, “filantropia” ou
“assistencialismo”, mas como política concreta, não somente um sistema de
proteção social, mas como “um fio condutor indispensável à construção e à
conceituação das políticas sociais”.59
Nessa construção, “não é entre os homens e o Estado ou a sociedade que se
põe o problema do direito e do dever; é entre os homens mesmos, mas entre
homens concebidos como associados a uma obra comum e obrigados uns com os
outros pelos elementos de um objetivo comum”60. Para Bryan Turner e Chris Rojek:
“The core of Durkheim view of social order was the notion that in the division of
labour the dependencies and reciprocities betwen individuals create a social bond
(an organic solidarity).”61 Ou seja, a divisão das funções cria entre as pessoas uma
Pura - bem como sobre centenas de outros filósofos até aos nossos dias” (sic.). Escreveu João Paulo Monteiro no prefácio da tradução para o português da obra de Hume. In: HUME, David. Tratado da natureza humana. Lisboa: Fund. C. Gulbenkian, 2001, p. 7. 57 HUME, op. cit., p. 11. 58 FARIAS, José Fernando de Castro. A origem do direito de solidariedade. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 188. 59 FARIAS, op. cit., p. 189. 60 BOURGEOIS. Léon. La solidarité. Paris: Libreirie Armand Colin, 1902, p. 89-90. Apud: FARIAS, op. cit., p. 190. 61 TURNER, Bryan S.; ROJEK, op. cit., p. 86.
34
ligação62 social fundamentada na solidariedade orgânica, “aquela baseada nas
diferenças, resposta para as aspirações criativas de cada um e para as verdadeiras
necessidades de todos, objeto justamente de nossa procura”63, a qual se difere da
solidariedade mecânica, “baseada nas semelhanças, que é a adesão gregária do
indivíduo ao grupo”64.
Esse pensamento está presente em L. Duguit, que considera a solidariedade
como verdadeira norma de “direito subjetivo”, e em Gurvitch, que desenvolve a ideia
do “direito social”. No Brasil do fim do século XIX e início do século XX, o discurso
solidarista alcança, Tobias Barreto, Joaquim Nabuco e Ruy Barbosa. Como relembra
Farias, o Águia de Haia defende um vasto programa envolvendo questões sociais,
como por exemplo, casa de operários, instrução popular, higiene pública, salário
mínimo, etc., e escreve Barbosa:
Já se não vê na sociedade um mero agregado, uma justaposição de unidades individuais, acasteladas cada qual com seu direito intratável, mas uma entidade naturalmente orgânica, em que a esfera do indivíduo tem por limites inevitáveis, de todos os lados, a coletividade. O direito vai cedendo à moral, o indivíduo à associação, o egoísmo à solidariedade humana.65
O importante para a solidariedade é que o indivíduo realmente sinta-se parte
do todo e que realmente precise da sociedade, de forma orgânica, interior e não
meramente mecânica. A recomendação solidária preconiza a preponderância do
coletivo sobre o individual, fundamentado na força do indivíduo e na sua realização
pessoal, desde que consiga integrar-se a essa estrutura social.
Isso nos leva a considerar, com Durkheim, a necessidade de reaproximar a
norma jurídica e a norma moral66, ou melhor dizendo, levar à importância jurídica a
62 Significados da palavra inglesa, bond (n.): acessório, aglutinante, contrato, fidelidade, grilhões (Portugal), laço (Portugal), ligadura, vínculo; bond (n.) (trade): obrigação; bond (v.): aderir, amarrar, atar, colar, penhorar; bond (econom.): obrigação financeira. 63 TÉVOÉDJRÈ, Albert. A pobreza, riqueza dos povos: a transformação pela solidariedade. 2ª ed. São Paulo: Cidade Nova, 1982, p. 144. 64 TÉVOÉDJRÈ, loc. cit. 65 BARBOSA, Ruy. Teoria política. Rio de Janeiro: W. M. Jackson, 1950, p. 297. Apud: FARIAS, op. cit., p. 192. 66 O que Gurvitch denomina “direito social condensado”. “[...] estabelece um vinculo direto entre democracia e direito social, para dizer que, mesmo uma ordem normativa sancionada pode ser tida como uma ordem de integração social na medida em que esta normatividade seja penetrada pelo
35
moral, pois é preciso redefinir regras de cooperação e troca de serviços entre os que
participam da vida da sociedade, ou seja, a preponderância progressiva da
solidariedade orgânica.
Da conhecida sistematização de T.H. Marshall, dos direitos civis (surgidos no
século XVIII), políticos (no século XIX), e sociais (no século XX)67, ou a de Paulo
Bonavides que fundamenta: os de primeira geração, na liberdade (civis e políticos),
os de segunda geração, na igualdade (econômica, cultural e social), os de terceira
geração, na fraternidade (solidariedade, desenvolvimento, paz) e, os de quarta
geração (democracia, informação e pluralismo)68, ligados à socialidade. Nota-se no
século XXI, na sociedade brasileira, a preponderância da socialidade, visível nas
eleições, liberdade de manifestação e organização, e da solidariedade ambas
presentes no ordenamento constitucional e cível69, no sentido do discurso solidarista
da inclusão social e pelo desenvolvimento humano, com políticas públicas concretas
em relação às mulheres, aos idosos e crianças, aos deficientes de todo gênero, aos
excluídos e discriminados70, à regularização fundiária e à preservação ambiental.
Pode-se então apontar que a ideia de solidariedade contamina e se torna a
solução do problema da regularização fundiária do loteamento “Jardim das
Hortências”. Nessa questão, os indivíduos diretamente envolvidos no problema,
movidos por exclusivo interesse moral de solucionar o impasse, promoveram o
diálogo e a cooperação como forma de transmutar a situação irregular em legal, de
direito social da comunidade subjacente, através da incorporação pela ordem jurídica estatal das regras produzidas pelos grupos sociais, ou seja, direito social que seria puro e independente se se mantivesse alheio ao ordenamento do Estado é transmutado em ordem jurídica deste, mantendo, contudo, sua origem. In: BOLZAN DE MORAIS, José Luis. A idéia de direito social: o pluralismo jurídico de Georges Gurvitch. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 64. 67 MARSHALL, Thomas Humprey. Citizenship and social class and other essays. Cambridge: CUP, 1950. 68 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 516-527. 69 Nesse viés, o jurista Miguel Reale denomina de “princípio da socialidade”, com presença marcante no vigente Código Civil Brasileiro de inspiração urbana, aquele em que prevalecem os valores coletivos sobre os individuais. Diz ele: “O Direito é social em sua origem e destino, impondo a correlação concreta e dinâmica dos valores coletivos com os individuais, para que a pessoa humana seja preservada sem privilégios e exclusivismos, numa ordem global de comum participação”. In: REALE, Miguel. O projeto do novo código civil. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 46. 70 Vide Lei Maria da Penha; os Estatutos dos Idosos e das Crianças; as leis de inclusão e reserva de quotas para deficientes físicos nos empregos públicos e no acesso aos meios de transporte, prédios públicos, etc.; as leis contra discriminação racial e religiosa e de cotas raciais nas universidades; facilitação das regularizações e linhas de crédito especiais; e assim por diante.
36
maneira a dar força jurídica àquela situação moral ou fato social da propriedade
precária.
Além disso, cabe ressaltar o princípio da subsidiariedade presente nas
decisões e solução encontrada no âmbito local, na atuação do registrador público e
do juiz (Diretor do Foro), decorrente da autonomia e distribuição de competências
que reveste as atividades desses agentes públicos.
A esse respeito, socorremo-nos de José Alfredo de Oliveira Baracho71, que
conceitua subsidiariedade como sendo o princípio de que as decisões devem ser
tomadas no nível político mais baixo possível, isto é, por aquelas pessoas que estão
o mais próximo possível das ações que são definidas, efetuadas e executadas.
Explica o jurista mineiro que a subsidiariedade está relacionada com a
situação constitucional na definição das competências dos entes que compõem o
tipo de estado consagrado (unitário, autonômico, regional ou federal) e o processo
de descentralização política e administrativa, cuja definição clássica está na
Encíclica Papal de Pio XI, Quadragesimo anno, retomada, ipsis verbis, por João
XXIII, na Mater et magistra, nos seguintes termos:
[...] é injusto e, ao mesmo tempo, gravemente danoso e perturbador da reta ordem delegar a uma sociedade maior e mais alta (ad maiorem et altiorem societatem avocare) o que pode ser conseguido e realizado por comunidades menores e inferiores, já que toda e qualquer atividade social, por sua natureza e definição, deve proporcionar auxílio (subsidium) aos membros do corpo social, nunca, porém, destruí-los e absorvê-los.72
A explicação desse pensamento, vem na observação de Baracho sobre a
legitimidade da ação da sociedade no espaço local, ao dizer que, “o melhor clima
das relações entre cidadãos e autoridades deve iniciar-se nos municípios, tendo em
vista o conhecimento recíproco, facilitando o diagnóstico dos problemas sociais e a
participação motivada e responsável dos grupos sociais na solução dos problemas,
gerando confiança e credibilidade”73. O jurista propõe a repartição de competências
71 BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O princípio de subsidiariedade: conceito e evolução. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 92. 72 ULLMANN, Reinholdo Aloysio. O solidarismo. São Leopoldo: UNISINOS, 1993, p. 98. 73 BARACHO. José Alfredo de Oliveira. O princípio de subsidiariedade: conceito e evolução. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 19.
37
ao referir que “vincula-se à compreensão do princípio de subsidiariedade, que o
Estado deve transferir ou delegar às coletividades os poderes que têm capacidade
de exercer”74, para desenvolvê-las e propiciar que possam agir em clima de
liberdade criativa.
De outra banda, Schmidt75 alerta para o risco do clientelismo, da
vulnerabilidade dos governos locais às pressões de grupos, do despreparo dos
agentes e burocracia geral, como problemas presentes na descentralização
decorrente do viés municipalista da Constituição de 1988. Essa manifestação ainda
que pareça argumento antagônico à subsidiariedade, ao contrário, atua como
reforço, pois prenuncia e enfatiza a necessidade cada vez maior da subsidiariedade
por meio da participação autônoma do indivíduo e da sociedade, para modificar a
situação.
Ora, é sabido que, entre outras incapacidades, o Estado não tem condições
de promover o controle sobre si mesmo e cabe à sociedade exercer essa função,
subsidiariamente. “O princípio de subsidiariedade assemelha-se a uma repartição de
competência entre sociedade e Estado”, diz Baracho, “ao mesmo tempo, impede o
avanço intervencionista do Estado, exigindo deste, ajuda e promoção das atividades
próprias do pluralismo social.”76 Pari passsu às ideias de German J. Bidart Campos77
para quem o Estado não deve assumir por si as atividades que os indivíduos e
grupos de cidadão podem desenvolver por eles próprios, devendo auxiliá-los,
estimulá-los e promovê-los.
Nessa tese, se é correto afirmar que a ideia e concretude da moradia, como
direito social puro e no princípio de subsidiariedade, é legitima na ação do indivíduo
ou grupo de indivíduos que arvoram a si a tarefa não cumprida pelo Estado, da
mesma forma, as ações e atos jurídicos procedidos pelo oficial registrador e pelo juiz
encontram amparo na subsidiariedade e, assim, justificam-se nos princípios gerais
74 BARACHO, op. cit., p. 32. 75 SCHMIDT, João Pedro. Gestão de políticas públicas: aspectos conceituais e aportes para um modelo pós-burocrático e pós-gerencialista. In: REIS e LEAL (Org.). Direitos sociais & políticas públicas: desafios contemporâneos. Tomo VII. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2007, p. 2000. 76 BARACHO, op. cit., p. 43. 77 CAMPOS, German J Bidart. Teoria del estado, los temas de la ciência política. Buenos Aires: Ediar, 1991, p. 40. Apud, BARACHO, op. cit., p. 47.
38
do direito. As propriedades precárias existentes em todas as cidades espelham essa
realidade e comprovam a tese, à que refere Ricardo Hermany:
Pelo princípio de subsidiariedade, a sociedade civil deve assumir um papel significativo nas atividades de controle e nas propostas de regulação do convívio, sem olvidar, contudo, a importância do Estado, seja em relação aos princípios constitucionais [...] seja para viabilizar o maior número de instrumentos que permitam o desenvolvimento de uma sociedade pluralista capaz de concretizar o princípio da cidadania e dignidade da pessoa humana.78
Como se sabe, a subsidiariedade atribuída ao juiz está expressa nos arts. 4º
e 5º da Lei de Introdução ao Código Civil (LICC), in verbis:
art. 4º - Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito. art. 5º - Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.
Assim sendo, torna-se claro que os princípios da ação do conjunto social e da
autonomia dos indivíduos para a realização do interesse de todos, que consiste na
regularização jurídica e obtenção do título de propriedade em nome do morador
precário, encontra sua explicação e razões de justificação e fundamentação nos
princípios sociais da solidariedade, da subsidiariedade e da busca do bem comum.
1.4 A regularização fundiária e os obstáculos regis trais
Preliminarmente cabe lembrar que o Registro de Imóveis tem sua gênese no
Decreto nº 482 de 14 de novembro de 1846 de regulamento geral para o registro de
hipotecas objetivando tornar a terra base para o crédito79. Destarte, a atividade
nasce em função da especialidade econômica e como exigência do sistema
78 HERMANY, Ricardo. (Re)Discutindo o espaço local: uma abordagem a partir do direito social de Gurvitch. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2007, p. 284. 79SANTOS, Flauzilino Araújo dos. Importância dos registros imobiliários para o desenvolvimento jurídico e socioeconômico do Brasil. A efetividade da segurança jurídica. In: Anais do III seminário internacional de direito registral imobiliário. Rio de Janeiro, abril de 2008, publicado no Boletim Eletrônico nº 3229. Disponível em: <http://www.irib.org.br>. Acesso em: 23.05.2008.
39
financeiro para obter garantia real dos empréstimos contratados. É a concepção de
Marcelo Salaroli ao dizer que:
[...] o registro imobiliário, ao exercer sua função de qualificação de títulos e publicidade de direitos, torna os bens imóveis em ativos econômicos, que podem ser negociados de maneira segura com baixos custos de transação. Isto enriquece o mercado imobiliário e lhe dá proteção, sendo sólida base para o desenvolvimento econômico.80
Destacam os autores que o registro imobiliário exerce a função primordial de
conferir segurança e eficácia jurídica aos atos que lhe são atribuídos pela legislação,
a par da publicidade e autenticidade em sede da qualificação dos títulos e negócios
imobiliários que acessam ao registro. Como se vê, a importância do registro está
muito mais ligada a fatores econômicos do que a interesses políticos ou sociais,
porém o autor defende que o registro produz estabilidade social ao proteger as
relações econômicas e o mercado. Afirma Vicente Dominguez Calatayud, que: “o
reconhecimento e a garantia do direito da propriedade e dos demais direitos reais
são condições de possibilidade da liberdade e do desenvolvimento econômico”81, e
completa dizendo que: “o registro da propriedade tem-se revelado como um dos
instrumentos mais eficazes para conseguir esses objetivos”.
A importância do registro é primordial para o estabelecimento do mercado
imobiliário, como informa Calatayud, ao dizer,
resulta evidente que sem direitos reais devidamente concedidos não há mercado, posto que os agentes não poderiam intercambiar os bens se não existe uma vinculação entre os titulares e esses bens; sem direitos de propriedade definidos não há mercados eficientes, e sem estes últimos não
há crescimento econômico.82
Na mesma linha, afirma Fernando P. Méndez Gonzáles que o registro
imobiliário, “como instituição de law enforcement, contribui para que a lei se
80 SALAROLI, Marcelo. O registro imobiliário brasileiro no combate à informalidade. In: Anais do VII seminário ibero-americano de direito registral, Santa Cruz de La Sierra, Bolívia, outubro de 2007. Publicado no Boletim Eletrônico nº 3177. Disponível em: <http://www.irib.org.br>. Acesso em: 29.10.2007. 81 CALATAYUD, Vicente Dominguez. Eficácia dos sistemas registrais como base da proteção jurídica dos direitos da propriedade do cidadão. São Paulo: RT, Revista de Direito Imobiliário nº 61, jul./dez., 2006. Disponível em: <http://www.irib.org.br>. Acesso em: 22.09.2007. 82 CALATAYUD, op. cit, p.2.
40
cumpra”83. Manifestações que são corroboradas por José Simeón Rodríguez
Sanchéz84 e Álvaro Delgado Scheelje, que explicam:
Dentre outras, cabe aos sistemas registrais uma importante função econômica na sociedade, função essa que inclui, entre outros aspectos, favorecer o crescimento econômico, o bem-estar público e a paz social, mediante a proteção jurídica dos direitos patrimoniais e, especialmente, das transações feitas com base neles.85
A regularização fundiária dos assentamentos precários, por meio da obtenção
do registro imobiliário, é apontada como instrumento de luta contra a pobreza, no
sentido de promover a inclusão no mercado daquelas pessoas excluídas em função
da ausência do título de propriedade regular. Afirma Nicolás Nogueroles, que: “o
registro, como mecanismo seguro de produzir títulos de propriedade, adquire um
papel decisivo”, completando que: “não basta simplesmente ter um documento, é
preciso que ele seja um direito garantido e que seja assim reconhecido pela
comunidade”. Para ele, o aspecto econômico é o fundamental na medida em que:
“assim, a propriedade, além de ser um ativo físico, se converte em um ativo
econômico, com o qual é possível obter crédito e financiamentos”86.
1.4.1 O serviço registral e o interesse do setor ec onômico financeiro
Não resta dúvida a respeito da interação entre a propriedade regular e o
mercado imobiliário, especialmente em função do interesse do setor financeiro para
o qual a propriedade é um produto ou mercadoria, ou seja, meio circulante de
riqueza e fonte de garantias. Em nome da segurança dos investimentos e dos
investidores é implementado pelo Estado o sistema registral que se encarrega de
conferir essa segurança, socorrendo-se para tanto de princípios jurídicos e requisitos
legais que determinam o acesso ou não, ao chamado fólio real, dos títulos e 83 GONZÁLEZ, Fernando P. Ménez. A função econômica da publicidade registral. In: Revista de Direito Imobiliário, nº 56, jul./dez. São Paulo: RT, 2003. 84 SANCHÉZ, José Simeón Rodríguez. Princípios de regulação e organização do sistema registral: poder público, organização, autofinanciamento, responsabilidade. In: Revista de Direito Imobiliário, nº 57, jul./dez. São Paulo: RT, 2004. 85 SCHEELJE, Álvaro Delgado. Eficácia dos sistemas registrais na proteção jurídica do direito de propriedade e demais direitos patrimoniais do cidadão. In: Revista de Direito Imobiliário, nº 57, jul./dez. São Paulo: RT, 2004. 86 NOGUEROLES, Nicolás. Registro, guardião do direito de propriedade. Boletim Eletrônico do IRIB nº 2871, 13.03.2007. Disponível em: <http://www.irib.org.br>. Acesso em: 13.03.2007.
41
documentos de propriedade, ou de parcelamento do solo. Para Gonzáles, “ao
autorizar uma inscrição, o registrador cuida que se respeite a legalidade vigente.
Contribui assim à realização do direito, atuando como “porteiro” ou gatekeeper das
transações cuja legalidade controla.”87
A legislação específica surge por meio da Lei dos Registros Públicos, Lei nº
6.015/73, que passou a viger em janeiro de 1976 e que introduz o conceito da
matrícula do imóvel, caracterizando a utilização do fólio real como sistema de
registro dos imóveis no país, em substituição ao fólio pessoal até então vigente. O
ordenamento jurídico pátrio passa então a adotar modelo similar ao da Alemanha e
Espanha, em que o registro é feito por imóvel, e não mais pela pessoa ou
proprietário, ou seja, trata-se da exclusividade específica e da inerência: para cada
imóvel uma matrícula, para cada direito sobre aquele imóvel um assento próprio.
Ensina Maria Helena Diniz que: “considera-se que a propriedade imobiliária
constitui um título outorgado pelo Estado, que lhe confere publicidade com o
assento.” E completa: “Consequentemente, o Registro do Imóvel é a declaração
pública do domínio e fonte da economia.”88 Reforça a civilista que antes do assento
do imóvel o adquirente não terá nenhum dos direitos de dono. Pelo princípio da
publicidade, embutido nessa premissa, apenas terá propriedade aquele em cujo
nome o imóvel estiver registrado.
A matrícula representa o suporte físico e jurídico do imóvel, explica Luiz Egon
Richter dizendo que: “é físico porque confeccionada em ficha de papel com os
requisitos legais, é jurídico porque tem como fundamento o domínio, ou seja, o
direito real de propriedade sobre o imóvel”.89 Destaca que: “é admissível abertura de
matrícula para o caso de imissão de posse provisória pelo Poder Público na
implantação de loteamentos populares”.90
87 GONZÁLEZ, Fernando P. Ménez. A função econômica da publicidade registral. In: Revista de Direito Imobiliário, nº 56, jul./dez. São Paulo: RT, 2003. 88 DINIZ, Maria Helena. Sistemas de registros de imóveis. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 5. 89 RICHTER, Luiz Egon. Fragmentos teóricos da base matricial do imóvel no registro de imóveis. In: Revista de Direito Imobiliário, nº 55, jul./dez. São Paulo: RT, 2003. 90 Por força do disposto no art. 18, §§ 4.º e 5.º, da Lei nº 6.766/79, com alteração da Lei nº 9.785/99.
42
Cabe aqui explicitar que o sistema jurídico brasileiro entende o registro
imobiliário com eficácia constitutiva, ou seja, “sem ele o direito real sobre coisa
alheia e o direito de propriedade imobiliária, oriundos de atos inter vivos, não
nasceriam.”91 Vale lembrar que, em nosso direito, os negócios jurídicos92 não são
hábeis para transferir o domínio de bem imóvel. Refere Diniz que: “para que se
possa adquiri-lo, além do acordo de vontades, entre adquirente e transmitente, será
imprescindível o registro do bem de raiz na circunscrição imobiliária competente.”93
Sem esse registro público não haverá transferência de propriedade ou do domínio.
Assim sendo, salvo na aquisição originária94, por usucapião95 ou por acessão, o
direito de propriedade constitui-se, de modo derivado, tão somente com o registro do
título aquisitivo, por força do disposto no Código Civil Brasileiro96.
1.4.2 Os princípios registrais e a reserva de legal idade
A relação entre a matrícula e a regularização fundiária é direta na medida em
que aquela é o objetivo final da regularização, ou seja, o imóvel somente será
considerado regular quando matriculado. Da mesma forma, o loteamento ou
desmembramento do solo urbano depende do seu registro imobiliário e da abertura 91 DINIZ, op. cit., p. 26. 92 São referidos no Título I do Código Civil Brasileiro (CCB), aqui se tratam de todos os atos jurídicos de transmissão da propriedade imobiliária, formalizados por contratos os quais são explicitados no Título V, tais como: a compra e venda, a doação, a dação em pagamento e a permuta. 93 DINIZ, op. cit., p. 7. 94 Embora alguns autores definam o direito hereditário como forma originária de aquisição da propriedade, somente com o registro da partilha o herdeiro poderá dispor do imóvel em face do princípio da continuidade. 95 “A sentença declaratória do domínio, em quaisquer das espécies de usucapião, servirá de título no Ofício Imobiliário competente para o registro, que terá o efeito apenas de publicidade, prevenindo a boa-fé dos terceiros e assegurando a continuidade do registro, quanto ao encadeamento das transmissões; não visa a transferir o domínio, já transferido e adquirido pela posse sem interrupção nem oposição. O registro não opera com efeito constitutivo. Ele funciona, nesse caso, como órgão refletor do estado da propriedade imóvel, dando publicidade à sua individuação e fornecendo a prova do direito de cada pessoa a determinado bem ou a uma parte ideal em determinado bem”. SANTOS, Luis A. Busanello. Formas de aquisição da propriedade imóvel pelo sistema do Código Civil e o seu registro. In: Revista de Direito Imobiliário, nº 57, jul./dez. São Paulo: RT, 2004. 96 Conforme o Código Civil Brasileiro, a propriedade imóvel se adquire pelo registro do título translativo no Registro de Imóveis (art. 1.245, caput). Determina o art. 1.227, caput, in verbis: “Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos (arts. 1.245 a 1.247), salvo os casos expressos neste Código”. Por sua vez, a Lei dos Registros Públicos, em seu art. 172, prevê que: “No Registro de Imóveis serão feitos, nos termos desta Lei, o registro e a averbação dos títulos constitutivos, declarativos, translativos e extintivos de direitos reais sobre imóveis reconhecidos em lei, inter vivos ou causa mortis, quer para sua constituição, transferência e extinção, quer para sua validade em relação a terceiros, quer para a sua disponibilidade”.
43
de matrículas próprias de cada lote. Portanto, a existência da matrícula expressa a
compatibilidade entre a realidade fática (existência do lote) e a realidade jurídica (o
registro do lote).
Para obtenção da matrícula do imóvel é necessário sobrepor as chamadas
“barreiras de entrada”97 das quais resultam a maior ou menor segurança jurídica que
o sistema registral, no desempenho de suas prerrogativas e no exercício da sua
função social, pode conferir à sociedade e ao sistema econômico-financeiro. Explica
Diniz que “essa segurança decorrerá da caracterização minuciosa do bem de raiz,
dificultando sua confusão com outro, e da identificação do titular de seu domínio ou
dos ônus reais que sobre ele, porventura, recaírem.”98 Pode-se dizer que a
segurança jurídica é a maior das eficácias do registro do imóvel, tanto para o
proprietário poder exercer seus direitos e vê-los corretamente declarados, quanto
para terceiros e para o mercado.
Ao abordar esse tema, Celso Antônio Bandeira de Mello ensina que: “o
princípio da segurança jurídica, se acaso não é o maior de todos os princípios gerais
de direito, como acreditamos que efetivamente o seja, por certo é um dos maiores
dentre eles”.99 Refere o jurista que esse elemento, presente e comum a todo e
qualquer sistema jurídico, cuida de evitar alterações surpreendentes que tornem
instáveis a situação e relações jurídicas da sociedade. Essa afirmação demonstra a
existência de uma escala valorativa dos princípios do direito.
No mesmo diapasão, no entender de Scheelje:
A eficácia de um sistema registral será garantida do ponto de vista jurídico com a correta aplicação dos princípios registrais em cada uma das etapas do trabalho efetuado pelo órgão responsável pelos registros públicos, o que inclui necessariamente a qualificação registral assim como a publicidade do que foi inscrito nos registros.100
97 GONZÁLEZ, Fernando P. Ménez. A função econômica da publicidade registral. In: Revista de Direito Imobiliário, nº 56, jul./dez. São Paulo: RT, 2003. 98 DINIZ, Maria Helena. Sistemas de registros de imóveis. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 24. 99 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de direito administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 83. 100 SCHEELJE, Álvaro Delgado. Eficácia dos sistemas registrais na proteção jurídica do direito de propriedade e demais direitos patrimoniais do cidadão. In: Revista de Direito Imobiliário, nº 57, jul./dez. São Paulo: RT, 2004.
44
Como bem esclarece esse autor, a qualificação e a publicidade registral são
etapas sucessivas do processo do registro propriamente dito e são fundamentadas
nos princípios gerais registrais. Na primeira etapa, trata o registrador “do exame para
determinar se o título apresentado ao registro é inscritível, com base nos diversos
princípios que, como requisitos e pressupostos técnicos para a inscrição, o sistema
considera”. Na segunda, em consequência surgem os efeitos de exteriorizar e dar
publicidade às determinadas situações jurídicas registradas.
Disso resulta que dentre os princípios informadores do registro, destacam-se
os denominados: princípio da continuidade e princípio da unicidade ou
especialidade. Esclarece Luiz Egon Richter, que o primeiro, “é de natureza
instrumental, na medida em que se destina a garantir o encadeamento dominial”101,
ou seja, os elementos constitutivos do registro expressam a história do imóvel,
desde sua origem até o momento atual, onde os atos jurídicos inscritos refletem o
nexo de causalidade existente entre estes. Prossegue dizendo que o segundo,
também instrumental, “preconiza a ideia de que a cada imóvel, considerado como
um corpo certo e contínuo, deve ser atribuído uma matrícula, e a cada matrícula
deve corresponder apenas um imóvel.”102 Esses princípios estão dispostos na Lei
dos Registros Públicos, nos artigos 176, § 1º, I; e, 235, § único.
Além desses, o registro imobiliário é informado por outros princípios cuja
observância tem relação direta com a regulação do uso e destino do solo urbano,
definido nas leis que regulamentam a matéria e, por conseguinte, com a
regularização fundiária que precisa observar e superar os obstáculos dessas
“barreiras de entrada”.
Nesse sentido, importa destacar o princípio da legalidade como sendo situado
em primeiro plano. Ocorre que a situação de irregularidade do imóvel vai de
encontro a esse princípio, o qual é, justamente, o que rege a função pública do
registro imobiliário e que, nas palavras de Bandeira de Mello: “explicita a
subordinação da atividade administrativa à lei e surge como decorrência natural da
101 RICHTER, Luiz Egon. Fragmentos teóricos da base matricial do imóvel no registro de imóveis. In: Revista de Direito Imobiliário, nº 55, jul./dez. São Paulo: RT, 2003. 102 RICHTER, loc. cit.
45
indisponibilidade do interesse público.”103 Daí a submissão do registro imobiliário ao
princípio da legalidade como agente público latu sensu.
Por outro lado, o princípio da legalidade não fica adstrito ao aspecto subjetivo
como também abrange os requisitos objetivos e formais materiais. Ou seja, não se
limita aos atos do registro imobiliário e do seu titular como também se aplica aos
títulos e documentos que pretendam ingressar no álbum imobiliário, especialmente
nas questões da regularização fundiária e transmissão da propriedade. É
precisamente o que refere Richter, ao dizer que: “a ideia nuclear é a de que a
validade do registro mantém uma relação lógica com a validade do título, o que não
quer dizer, por outro lado, que a validade do título necessariamente impõe validade
ao registro.”104
Nesse contexto, encontra-se a principal barreira a ser transposta na
regularização fundiária, eis que existem exigências legais em relação ao título ou
documento e sua admissão no álbum imobiliário. Por exemplo, as normas105 que
determinam as espécies de títulos registráveis não incluem os simples recibos ou
contratos particulares, às vezes defeituosos, que representam a maior ocorrência
nas aquisições dos lotes irregulares.
Além da legalidade, o princípio da especialidade106, conexo ao da unicidade, é
outro fundamento ligado diretamente à regularização fundiária e decorrente das
normas reguladoras, na medida em que determina a perfeita individuação do imóvel,
assim como dos direitos registrados. Em outras palavras, o direito (domínio) precisa
ser inequívoco, bem como o imóvel sobre o qual esse direito recai. Na dicção de
Richter, ambos devem ser perfeitamente individualizados de forma que não existam
dúvidas a respeito da situação, do perímetro, da localização e das demais
características físicas do imóvel ou da identificação do titular do direito, ou do próprio
103 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de direito administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 73. 104 RICHTER, Luiz Egon. Fragmentos teóricos da base matricial do imóvel no registro de imóveis. In: Revista de Direito Imobiliário, nº 55, jul./dez. São Paulo: RT, 2003. 105 Lei nº 6.766/73. 106 Está previsto nos arts. 176, § 1º, II, itens 3 e 4; e, nos arts. 222 e 225, da Lei nº 6.015/73. Como informa ERPEN, Décio Antônio; PAIVA, João Pedro Lamana. Princípios do registro imobiliário formal (comentários). In: Anais do congresso brasileiro das entidades de notas e registro. Salvador-BA, 2003. Disponível em: <http://www.lamanapaiva.com.br>. Acesso em: 14.06.2008.
46
direito107. Esse princípio é o que assegura a certeza sobre o objeto e as partes
envolvidas. Contrário senso, a falta de especialização do imóvel coloca esse na
situação de imóvel virtual, o que leva à perda da propriedade por falta de poder
identificar fisicamente o objeto e o direito. Ainda que exista de fato, o imóvel e a
propriedade não existirão de direito.
O princípio da especialidade determina o direito de domínio sobre a terra de
uma parte especial do território que é o imóvel com sua descrição legal e oficial na
matrícula imobiliária108. Decorrente disso, a propriedade apenas existe se o objeto,
de alguém próprio, existe e, ambos, são perfeitamente identificáveis por meio de
registro oficial, único. Explica Lilia L. Pelegrini Venosa que:
É o princípio da especialidade em essência, sem possibilidade de sobreposição de uma unidade imobiliária sobre a outra e a garantia de que a função social do Registro de Imóveis se perpetuará pela segurança jurídica e publicidade de seus atos, que favorece o tráfego seguro e coerente de informações de forma que, ao se analisar uma matrícula imobiliária, se tenha certeza da localização de um imóvel não somente na circunscrição a que pertence, mas no globo terrestre.109
Assim sendo, a especialidade “consiste no fato de assentar uma perfeita e
minuciosa identificação do imóvel registrado, com o escopo de impedir que sua
transmissão seja feita irregularmente.”110 O registro imobiliário especializado protege
e evita a possibilidade de erros que venham confundir propriedades e prejudicar
registros subsequentes.
Por outro lado, o elemento que identifica a irregularidade fundiária é
justamente a carência da individualização e caracterização da propriedade, ou seja,
a falta do princípio da especialidade aplicada ao caso concreto. Sanar esse defeito é
o objetivo final da regularização por meio da abertura da matrícula do imóvel,
devidamente identificado em nome do seu possuidor e legítimo proprietário.
107 RICHTER, Luiz Egon. Fragmentos teóricos da base matricial do imóvel no registro de imóveis. In: Revista de Direito Imobiliário, nº 55, jul./dez. São Paulo: RT, 2003. 108 “Especialidade – é a exigência da identificação geométrica de um imóvel com uma perfeição definida nos documentos registrais. Esta identificação é realizada desde a época da antiga Mesopotâmia, através de um levantamento técnico de agrimensura”. Definição disponível em: <http://www.geodesia.ufsc.br/wikirib/index.php/Princípio_da_Especialidade>. Acesso em: 16.06.2008. 109 VENOSA, Lilia Lúcia Pellegrini. Georreferenciamento e o procedimento de retificação judicial. In: Boletim Eletrônico do IRIB nº 2.307, de 15.02.2006. Disponível em: <http//www.irib.gov.br>. 110 DINIZ, Maria Helena. Sistemas de registros de imóveis. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 31.
47
Dentre os princípios referidos, para Walter Cruz Swensson, “um dos mais
importantes - senão o mais importante - princípios do direito imobiliário é o da
continuidade do registro”111. Esse princípio, que permanece atual112, foi introduzido
no direito pátrio com o Decreto nº 18.542 de 24.12.1928, nas palavras de Álvaro
Melo Filho: “de forma insofismável, determinando que, em qualquer caso, não se
poderá fazer o registro sem que o seja o título anterior de modo a assegurar a
continuidade do registro de cada imóvel (art. 206)”113.
Explica Richter a importância da continuidade ao dizer que: “é sustentáculo da
segurança jurídica, na medida em que, em relação a cada imóvel individuado, deve
existir um encadeamento de titularidades dos direitos reais. [...] Esse encadeamento
contribui para a segurança jurídica, pois assegura, apenas ao titular do direito, a
possibilidade de outorgá-lo.”114
Nessa construção, o titular do direito assim o é por tê-lo recebido de seu
antecessor legal. Por sua vez, explana Diniz que: “sendo o registro imobiliário um
dos modos derivados de aquisição do domínio da coisa imóvel, prende-se ele ao
anterior; se o imóvel não estiver registrado no nome do alienante, não se poderá
fazer seu assento em nome do adquirente.”115 Em síntese, nenhum assento registral
poderá ser efetuado sem a menção ao título anterior, formando uma cadeia
ininterrupta de titularidades jurídicas do imóvel, e eventualmente da sua própria
existência quando da abertura de matrícula nova, concatenando sucessivamente as
suas transmissões e existência. Esclarece que é em nome da continuidade
registraria que se faz necessário o registro da desapropriação116, ainda que o ato
expropriatório tenha o condão de, per si, transferir a propriedade. Da mesma forma,
na aquisição por usucapião, “enquanto a sentença declaratória do domínio não for
111 SWENSSON, Walter Cruz. Manual de registro de imóveis. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 42. 112 Está atualmente consagrado nos artigos 195, 196, 197, 222, 223, 225, 228, 229 e 237, da Lei nº 6.015/73. Como informa ERPEN, Décio Antônio; PAIVA, João Pedro Lamana. Princípios do registro imobiliário formal (comentários). In: Anais do congresso brasileiro das entidades de notas e registro. Salvador-BA, 2003. Disponível em: <http://www.lamanapaiva.com.br>. Acesso em: 14.06.2008. 113 MELO FILHO, Álvaro de. Direito registral imobiliário: enfoque didático e prático. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 10. 114 RICHTER, Luiz Egon. Fragmentos teóricos da base matricial do imóvel no registro de imóveis. In: Revista de Direito Imobiliário, nº 55, jul./dez. São Paulo: RT, 2003. 115 DINIZ, Maria Helena. Sistemas de registros de imóveis. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 29. 116 DINIZ, op. cit., p. 5.
48
registrada, o autor não poderá lançar mão da ação reivindicatória”.117 Tais elementos
são importantes destacar haja vista que, na regularização fundiária, a
desapropriação e a usucapião são os instrumentos jurídicos mais recomendados e
adequados à obtenção da regularidade formal da propriedade.
Em síntese, são os princípios registrais da legalidade, da unicidade, da
especialidade e da continuidade, os que fundamentam as barreiras de entrada da
regularização por ocasião da qualificação e publicidade dos atos registrais, e que
necessitam ser superados para o êxito da regularização fundiária.
1.4.3 Os princípios registrais à luz dos direitos f undamentais
As palavras de Calatayud, são no sentido de que: “o reconhecimento e a
garantia do direito de propriedade, como dos demais direitos reais, são ingredientes
indispensáveis da liberdade e do desenvolvimento econômico.” Assevera e justifica
que a força do registro, como elemento de comprovação da propriedade, depende
da importância que o sistema jurídico lhe confere, e que:
A característica primordial de todo Sistema de Registro há de ser que os direitos por ele publicados gozem de maior proteção que os não publicados. Quando se trata dos supostos que estão previstos legalmente, aquele que publica seu direito está protegido frente a outros terceiros que não o publicam e que derivam tal direito do mesmo autor. É o clássico princípio de inoponibilidade do não-inscrito ao inscrito.118
Nessa premissa nota-se incompatibilidade entre a discriminação presente na
fria interpretação dos princípios registrais e os direitos fundamentais, especialmente
o da igualdade, disposto no art. 5º da Constituição Cidadã. De fato, não há
embasamento jurídico que justifique esta discriminação, pois, além de favorecer aos
já tradicionalmente favorecidos, eis que se trata de pessoas com recursos
econômicos suficientes para aquisição de um imóvel regularizado, demonstra a
marginalização jurídica imposta àquelas que não têm essa oportunidade e que as
117 DINIZ, loc. cit. 118 CALATAYUD, Vicente Dominguez. Eficácia dos sistemas registrais como base da proteção jurídica dos direitos da propriedade do cidadão. São Paulo: RT, Revista de Direito Imobiliário, nº 61, jul./dez., 2006. Disponível em: <http://www.irib.org.br>. Acesso em: 22.09.2007.
49
coloca distante ou fora da proteção judicial. Assim sendo, não há justificativa para o
poder judiciário e o sistema jurídico ser dirigido e a posto a serviço tão somente do
proprietário regular.
A força do sistema do registro imobiliário deve fundamentar-se mais na
representação da realidade fática e menos na realidade formal. Quanto mais
aproximada e informadora da propriedade real mais força e credibilidade terá a
publicidade registral, pois haverá a certeza de que os elementos informadores são
os verdadeiramente existentes. Ou seja, o registro deve exprimir juridicamente a
realidade fática, a autenticidade e fé pública dos fatos.
Por sua vez, os princípios da unicidade, da especialidade e da continuidade
componentes da publicidade registral não podem ir contra os direitos fundamentais,
pois incorreria em inconstitucionalidade. Por isso, a interpretação dos princípios e a
sua aplicação devem ser revistas e adequadas aos princípios constitucionais que
garantem direitos fundamentais.
Nesse sentido, talvez seja recomendável a simplificação e flexibilização das
“barreiras de entrada” aos títulos de propriedade e de transferência de titularidade no
registro imobiliário, como forma de estender a proteção e a segurança jurídica a um
número expressivo de pessoas marginalizadas. Assim procedendo, o registro
poderá melhor executar sua função social e produzir estabilidade e igualdade social
ao proteger as relações econômicas e o mercado, ampliando o acesso ao sistema
financeiro de considerável parcela da população urbana. Em síntese, agir como
promotor da tão almejada inclusão social.
A lição de Calatayud explica as razões e fundamentação do registro de
imóveis, em que a realidade formal deve se aproximar da realidade material, ao
dizer que: “a publicidade (formal) supõe o oferecimento aos interessados da verdade
oficial.” Explica ainda que:
Um registro é público quando o acesso a ele está aberto a todos os membros da comunidade jurídica, podendo-se entender esta acessibilidade no duplo sentido de poder acorrer ao registro para conhecer seu conteúdo e obter informação dele, ou no sentido de poder integrar seu conteúdo, solicitando que se façam constar nele determinados dados. Todavia, esse
50
acesso deve ser oferecido de acordo com a natureza mesma da instituição registral, isto é, mantendo a idoneidade do arquivo e só facilitando aqueles dados com verdadeira relevância real. [nosso grifo]119
Disso pode-se referir que o principal dado de relevância real é justamente a
propriedade e seu titular, ou seja, a especialização do bem de raiz e identificação do
proprietário. Na expressão de que registro de imóveis deve ser aberto a todos, infere
o sentido de igualdade de acesso a todos os cidadãos, tanto para obter as
informações ali contidas, quanto para fazer parte das mesmas e a ter reconhecido
seu direito de propriedade.
Sobre a igualdade cidadã, Liszt Vieira ensina que: “[...] se traduz na forma,
garantindo a possibilidade de acesso aos tribunais, legislaturas e burocracias”120.
Fala no sentido de igualdade de oportunidades e equilíbrio entre direitos e deveres
com limitações, sem supremacias de uns sobre outros. De modo que, nesse ponto,
pode-se incluir como elemento de igualdade o acesso aos atos registrais com
escopo administrativo e burocrático, bem como acesso aos efeitos do registro em
relação ao mercado. Sendo ao mesmo tempo, direito de uns e dever de outros.
Ressalva Vieira não se tratar de igualdade completa, “mas em geral garante-
se aumento nos direitos dos subordinados em relação às elites dominantes”121, o
que significa um sentido de equidade e de atribuir prerrogativas especiais aos
menos cidadãos (os não proprietários), possibilitando aproximá-los dos privilegiados
detentores do poder especulativo e acumulador de propriedade regular; como por
exemplo, ao flexibilizar e facilitar o acesso ao registro imobiliário de todo e qualquer
título de propriedade emanado por agente público legalmente habilitado para tal.
Agir assim é realizar alguns dos objetivos fundamentais da República, qual seja
reduzir as desigualdades sociais e erradicar a pobreza (art. 3, III, CF/88).
Do contrário, deixa o registro de propriedade de se revestir do seu caráter
público, pois atende somente uma parte do público. Isso se torna mais importante se
for levada em conta a afirmação de Calatayud que: “compete ao registro mediante o
mecanismo de publicidade registral atuar uma faculdade cuja titularidade 119 CALATAYUD, op. cit, p.2. 120 VIEIRA, Liszt. Os argonautas da cidadania. São Paulo: Record, 2001, p. 34. 121 VIEIRA, op. cit., p. 35.
51
corresponde ao Poder Público: a de definir e atribuir frente a todos os direitos que
recaem sobre os bens”. Completa dizendo que: “O registro da propriedade atua
assim sobre um dos elementos centrais do sistema econômico, como é a atribuição
e proteção dos direitos”. Por essa razão, não pode ser discriminatório e desigual, em
face da inconstitucionalidade desse procedimento. A atuação do registro imobiliário
deve encontrar mecanismos que permitam a igualdade jurídica e acesso a todos,
sem as barreiras e os obstáculos existentes.
1.5 O direito como obstáculo para o acesso à moradi a: entraves jurídicos e
burocráticos para as regularizações fundiárias e a ação pró-ativa na esfera
judicial
O maior defeito apresentado pelo direito positivado está na sua origem e no
processo legislativo de que resulta. Como se sabe, o direito brasileiro sofre a
influência jurídica européia, especialmente francesa, dominado pela ideia liberal-
individualista, conservadora, com defeitos na técnica legislativa que, no dizer de
Eduardo Novoa Montreal122, encontra-se na forma não transparente, urgente e
precipitada com que são encaminhadas e editadas as leis, impedindo o legislador de
dar conta das demandas sociais de grande mobilidade e complexidade. Um
legislativo que confunde o urgente com o importante e faz diminuir o prestígio das
leis. Lembra ainda Montreal que, para agravar a situação de legitimidade e
credibilidade, a Lei:
A la que se tiene por una concreción de la voluntad general de un pueblo que, haciendo uso de su poder soberano, impone a través de sus representantes las reglas de vida social que deben imperar en una sociedad, generalmente se limita a expresar los intereses y aspiraciones del grupo social que de hecho ejerce su dominio sobre ésta.123
Na questão da legislação fundiária e dos loteamentos, por óbvio, não é
diferente. No setor imobiliário a terra passa a ser mercadoria como outra qualquer124.
122 MONTREAL, Eduardo Novoa. El derecho como obstáculo al cambio social. México: Siglo Veintiuno, 1981, p. 58. 123 MONTREAL, op. cit., p. 60. 124 SILVEIRA, Rogério L. L. Cidade, corporação e periferia urbana: acumulação de capital e segregação espacial na (re)produção do espaço urbano. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2003, p. 33.
52
Destaca Ricardo Pereira Lira que esse processo resulta no “banco de terras”125,
constituído em benefício do proprietário fundiário, que aguarda o momento de, pela
alienação do “estoque”, locupletar-se com a mais valia resultante do investimento de
toda a comunidade, ou seja, retém o aumento do valor produzido pelo
desenvolvimento da cidade, conhecido como “renda imobiliária urbana”126.
Ainda apontando incongruências, Montreal informa que o maior desajuste do
direito é que as leis têm uma intenção de perenidade, mas estão sempre atrás dos
acontecimentos sociais. Explica que, erroneamente: “o positivismo elevou a lei à
expressão da razão e considera que a imutabilidade é o caráter de uma boa lei”.
Esse é o entendimento dos defensores de leis duradouras e precisas: elas
representam segurança jurídica aos cidadãos, pois lhes permite conhecer de modo
estável o que a lei manda e o que fica reservado à sua esfera de liberdade. Na
esteira da crítica a este pensamento diz Montreal: “[...] si la vida social fuera
inmutavel, nada habria que objetar”127.
Note-se que especialmente a sociedade urbanizada tem enorme mobilidade e
necessita de igual dinâmica nas leis e nas ações públicas.
Completa Montreal dizendo haver uma brecha crescente entre a realidade
social e o direito, causada pela rigidez e atraso na elaboração deste contra a
mobilidade e demandas cada vez maiores daquela. Afirma ele: “la sociedad se
asemeja a un organismo vivo”128 e que a mobilidade social faz inevitável que os
esquemas, baseados em normas rígidas e ultrapassadas no tempo, vão se
desconectando cada vez mais das realidades sociais às quais deveriam ser
aplicadas. Isso faz com que a lei ande sempre atrasada em relação aos fenômenos
sociais. Detecta-se assim a ocorrência de um direito positivado que obstaculiza o
alcance das demandas sociais, as quais terminam por encontrar seus próprios
125 LIRA, Ricardo Pereira. Elementos de direito urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 157. 126 ARAÚJO, L. E. B. de; VIEIRA, J. T. Normas reguladoras da expansão urbana na ótica da complexidade ambiental: em busca da concretização de um ambiente ecologicamente equilibrado. In: REIS, J. R. dos; LEAL, R. G. (Org.). Direitos sociais e políticas públicas: desafios contemporâneos. Tomo 7. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2007, p. 2152. 127 MONTREAL. MONTREAL, Eduardo Novoa. El derecho como obstáculo al cambio social. México: Siglo Veintiuno, 1981, p. 35. 128 MONTREAL, loc. cit.
53
caminhos, às vezes, pela via da transgressão de leis paradas no tempo, não
legitimadas e com vício de origem.
O diagnóstico de Montreal mostra-se adequado à nossa realidade, eis que,
em pleno século XXI, adotamos ainda as diretrizes de normas editadas em 1937
(Decreto-lei nº58/37) atualizadas sob influência de governo militar ditatorial em 1976
e 1979 (Lei do Parcelamento do Solo e Lei dos Registros Públicos), especialmente
quanto aos princípios registrais cujas barreiras são obstáculos às regularizações.
Nota-se que essas regras ainda não sofreram a influência dos novos (nem tão
novos) ares da Constituição Cidadã (1988), portanto há 20 anos, e do Estatuto da
Cidade (2001).
Assim sendo, não há dúvida que esse distanciamento entre o estático direito
e a dinâmica realidade social traz consequências negativas, mormente mostrando-
se um obstáculo ao acesso à moradia legal.
1.6 A atividade jurisdicional e a transmutação do f ato social em fato jurídico
Os caminhos que as políticas públicas de regularização fundiária têm à
disposição, numa concepção de direito mais atual e adequado ao movimento social
que predomina na Constituição, sem depender da incerta ação do legislador,
comprometido com a situação e com o sistema, passam por uma construção jurídica
elaborada pelo Estado-juiz129. É no âmbito do judiciário que surge mais facilmente a
adequação do fato social ao fato jurídico.
Não se trata somente de uma ação judicial sobre a administração ou sobre as
políticas públicas, mas, sim, também envolve a utilização de mecanismos,
instrumentos e institutos jurídicos, criados a partir das ações pró-ativas do Estado-
juiz, no sentido de flexibilização na admissibilidade dos imóveis irregulares ao
registro e à regularidade, na busca da realização constitucional. Cabe ao Estado-
129 Esse termo é utilizado por Rogério Gesta Leal em sua obra: LEAL, Rogério Gesta. O Estado-juiz na democracia contemporânea: uma perspectiva procedimentalista. Porto Alegre: Liv. Advogado, 2007.
54
juiz, demandado ou mesmo ex-officio, a incumbência de promover e fazer valer as
prerrogativas dos princípios, direitos e garantias fundamentais, na medida em que
lhe cabe apreciar a lesão ou ameaça de direito por força do artigo 5º, inciso XXXV,
da CFB. Por conseguinte, as necessidades e interesses do cidadão lesado em seus
direitos somente são alcançados mediante a proteção judicial, quando as ações e
políticas públicas são insuficientes no atendimento da demanda. É Américo Bedê
Freire Junior que diz: “[...] devemos lembrar que a Constituição confere ao Supremo
sua guarda e que, no Brasil, qualquer juiz, pelo controle difuso de
constitucionalidade, deve, independentemente de alegação da parte, fazer
prevalecer a Constituição.”130
Esta atuação do judiciário deve ocorrer, não só no sentido de intervir, mas
sim, de fazer parte das políticas públicas. Ensina Freire Júnior131 que a concepção
positivista de mero aplicador da lei diminui a importância deste agente público que
tem poderes para completar o ordenamento jurídico ou interpretar a norma de modo
a viabilizar a justiça, mesmo que precise ir adiante do legislador. Inovar no sentido
de aplicar e adaptar a lei ao caso concreto, devendo tornar a Constituição efetiva e
conferir o direito da moradia e a função social da propriedade.
A ação judiciária, mesmo sendo um processo de intervenção nas relações
sociais e sendo o juiz um agente do Estado, implica a interação com as políticas
públicas regularizadoras e torna o poder judiciário como elemento destas. Sem o
risco de, atuando além da lei, atuar acima da lei, cuja proteção também é encargo
do Judiciário, ou de todos, como bem refere Gustavo Zagrebelsky, lembrado por
Freire Júnior:
Los jueces no son los señores del derecho en el mismo sentido en que lo era el legislador en el pasado siglo. Son más exactamente los garantes de la complejidad estructural del derecho em el Estado constitucional, es decir, los garante de la necesaria y dúctil coexistência entre ley, derechos y justicia. [...] El derecho no es um objeto de propriedad de uno, sino que
debe ser objeto del cuidado de todos. 132
130 FREIRE JÚNIOR, Américo Bedê. O controle judicial de políticas públicas. São Paulo: RT, 2005, p. 57. 131 FREIRE JÚNIOR, op. cit., p. 56. 132 ZAGREBELSKY, Gustavo. p. 153. Apud FREIRE JÚNIOR, op. cit., p. 58.
55
E, completa o autor dizendo que a atuação do juiz deve ser na efetivação das
normas constitucionais, especialmente dos direitos fundamentais, mesmo que isso
implique desagradar minorias ocasionais.
Nesse aspecto, deve-se recordar que o princípio da igualdade e os direitos
fundamentais à propriedade e à moradia são assegurados pela Constituição Federal
do Brasil. O artigo 5º, inciso XXII, estabelece que “é garantido o direito de
propriedade”. Um dos direitos sociais mais fortemente tutelados pela sociedade
humana, a propriedade deverá atender função social como exigência constitucional
do artigo 5º, inciso XXIII. Concomitantemente, o artigo 6º estabelece que são direitos
sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, etc. Assim sendo, para a
construção da cidadania e dignidade da pessoa humana, inerentes ao Estado
Democrático de Direito, a igualdade, a propriedade e a moradia são elementos
indispensáveis e integrantes.
Nesse contexto, a propriedade referida no Texto Magno é formal, aquela
devidamente registrada, com título hábil no Serviço do Registro Imobiliário da
situação do imóvel, o que confere ao proprietário os mais amplos poderes (usar, fruir
e dispor), oponíveis “erga omnes”, bem como as obrigações sobre a coisa. De pouco
ou nada adianta a Constituição dizer que a pessoa tem direito à moradia e que a
propriedade tem função social, se o mesmo direito determina uma moradia e uma
propriedade que não está ao alcance da renda dessa pessoa e que, assim,
afastando-a do ideal, inviabiliza a função social da habitação.
As leis que regulamentam a matéria são plenamente conhecidas e as
políticas de natureza reguladoras têm claro objetivo de coordenar as ações dos
particulares, impondo-lhes sanções, inclusive criminais, como instrumentos para
coagir e coibir a prática ilegal de promover parcelamentos irregulares. Entretanto, o
que se visualiza é a persistência do crescimento desordenado da cidade. É certo
que o direito fundamental da moradia, constitucionalmente posto, deveria valer-se de
normas infraconstitucionais para concretizá-lo totalmente e estas não se deveriam
tornar-se obstáculos à realização do ideal constitucional.
56
No âmbito das políticas reguladoras, como também no das políticas de
regularização, a situação de entraves é a mesma, pois ambas têm fundamento na
mesma Lei 6.766/79 que promove as regras. Torna-se senso comum que o direito
oferece obstáculos à regularização fundiária. É o que refere Betânia de Moraes
Alfonsin, ao dizer:
Os obstáculos (jurídicos, técnicos, registrários) enfrentados pelo Programa de Regularização Fundiária de Porto Alegre fizeram com que embora tivesse muita vontade política, a Prefeitura só obtivesse resultados medíocres na implementação do Programa. Em 1996 a Prefeitura de Porto Alegre atuava há seis anos com Regularização Fundiária. 65 assentamentos tinham sido indicados pelo Orçamento Participativo (e assumidos) para serem regularizados. No entanto, de 20.500 lotes em processo de regularização, apenas 605 tinham sido regularizados. 133
Aponta a jurista que a criminalização do loteamento ilegal134 como
instrumento para sustar o surgimento das ilegalidades não produziu efeitos e, ao
contrário, mostrou-se como entrave para a regularização. Alfonsin faz severa crítica
à “eterna corrida atrás do loteador clandestino enquanto estratégia/forma de
lidar/prevenir a proliferação do problema”, alertando que: “É preciso lidar com o
problema de tal forma que se considere que a população moradora dessa parte da
cidade é uma vítima da ilegalidade”. Questiona, ainda: “não seria uma postura
dualizante e ingênua?”135 De fato, nota-se um paradoxo para a administração
pública que, por um lado, criminaliza o loteamento e por outro é instada a sanar a
ilegalidade, como aponta Caseiro136.
Na esfera jurisdicional, nas ações penais porventura iniciadas por demanda
do Município contra potenciais loteadores irregulares, a atuação do judiciário não
pode afastar-se da concepção de aplicador da lei, posto que é o que se espera do
judiciário. Não obstante, em face das consequências do delito do loteador quando
133 ALFONSIN, Betânia de Moraes. A regularização fundiária como parte da política urbana. In: Anais do seminário de regularização fundiária. São Paulo, jun./2003. Disponível em: <http://www.irib.org.br>. Acesso em: 14.07.2007. 134 Conforme art. 50 e seguintes da Lei nº 6.766/79. 135 ALFONSIN, loc. cit. 136 “[...] colocar loteadores clandestinos na cadeia, não será, por si só, medida que repare o dano causado ao poder público, e via de reflexo a todos os integrantes da comunidade. Não pode haver dúvida que da ação delituosa decorrem atos de extrema complexidade, na esfera civil. O compromisso ou a venda de lotes a terceiros geram direitos em relação a este e mais do que isto, cria situações de fato, de ordem social”. CASEIRO, Luciano. Loteamentos clandestinos: consequências penais. São Paulo: EUD, 1979, p. 46.
57
afeta a esfera civil do comprador em relação à consolidação da propriedade, a
atuação do judiciário deve ser pró-ativa na efetivação da Constituição e
reconhecimento da propriedade em nome de seu detentor, independentemente do
rumo que tome a questão no âmbito da esfera criminal.
Assim sendo, a decisão dos Tribunais está a demonstrar dois caminhos: o
primeiro de rechaçar a criminalidade aplicando a prescrição da ilicitude, como antes
visto; o segundo, de cobrar a responsabilidade do Município em promover ações de
regularização fundiária por força da lei e dos mandamentos constitucionais. Isso
ocorreu, por exemplo, na decisão da Décima Nona Câmara Cível do TJ/RS, cuja
elaboração intervém na administração pública e determina aplicação de políticas
efetivas para a regularização de loteamentos irregulares. Cabe destacar parte do
voto do relator, nos seguintes termos:
[...] Como o Município irá garantir este bem-estar, se a regularização de um loteamento feito de forma irregular fica em uma mera faculdade do Município regularizá-lo ou não ? Vale a pena lembrar que a regularização não é somente dar legalidade no "papel" a uma coisa ilegal mas sim executar saneamento básico no sentido de evitar qualquer tipo de catástrofe aos habitantes, atenuando danos ecológicos etc... causado pelo mau loteador. Portanto a nível constitucional não é mera faculdade do Município ou do Distrito Federal, quando for o caso, mas um estado-dever de regularizar um loteamento executado de forma irregular, quando isto torna-se impossível por parte do loteador, assim o Município é parte legítima no pólo passivo, quando acionado para regularização de loteamento por parte do Ministério Público. Sob a ótica do art. 40 caput da Lei 6.799/79, pode-se chegar a mesma conclusão, ou, seja a expressão poderá, dando em princípio conotação de mera faculdade na realidade, trata-se de um poder que se transforma em dever "quando for o caso" previsto no próprio caput do referido artigo. O dever, em lugar de faculdade, da Prefeitura Municipal se inicia após tomar ciência que o loteamento está irregular e com o não atendimento, pelo loteador, da notificação, desde que este esteja sem nenhuma condição económica e financeira devidamente confirmada pela Prefeitura, devendo se concretizar, quando o bem estar dos habitantes não estiver devidamente garantido, tudo conforme o artigo 182 caput da Constituição Federal que determina "garantir o bem-estar de seus habitantes. Pois bem, desde que o pressuposto maior que é a garantia do bem estar dos habitantes, (art. 182, CF) não estiver assegurado, a antinomia verbal "pode" assume as proporções e o efeito de "deve". Carlos Maximiliano. Concluo que a Legitimidade passiva do Município é legítima em caso de loteamento irregular podendo somente ser afastada com a análise do mérito." ("Parcelamento do Solo, Loteamento”, p. 17/19”, Editora Jurídica Mizuno, 1998).” [nosso grifo].137
137 Acórdão. Reexame Necessário nº 70018523522, Décima Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Desembargador Guinther Spode. Julgado em: 17/04/2007.
58
Esta intervenção do judiciário na esfera do executivo, no sentido de que a
aplicação da norma constitucional deve prevalecer sobre a discricionariedade do
administrador público, demonstra na prática o que Freire Júnior refere como ação
legítima e justificada do Estado-juiz ao dizer:
Se o Estado deixar de adotar medidas necessárias à realização concreta dos preceitos da Constituição, em ordem a torná-los efetivos, operantes e exeqüíveis, abstendo-se, em consequência de cumprir o dever de prestação que a Constituição lhe impôs, incidirá em violação negativa do texto constitucional. Desse ‘non facere’ ou ‘non prestare’, resultará a inconstitucionalidade por omissão, que pode ser total, quando nenhuma providência é adotada ou parcial, quando é insuficiente a medida efetivada pelo poder Público.138
Além desse fator, a atuação do judiciário serve como alerta ao administrador
público no sentido de que passe a adotar, como política pública regularizadora dos
loteamentos irregulares, os procedimentos constitucionais de assumir as
prerrogativas legais que lhe são impostas e utilizar o arcabouço jurídico de que
dispõe, privilegiadamente. Especificamente, em relação à regularização do
loteamento, seja nos seus aspectos urbanísticos quanto nos burocráticos,
independentemente da ação do loteador ou do encaminhamento criminal do
problema, o poder público deve utilizar o privilégio que a lei lhe concede de
promover desapropriações e expropriações das áreas irregulares e efetivar a
regularização. Caso seja omissa, a administração pública pratica crime maior do que
a própria formação do loteamento ilegal, haja vista o princípio da legalidade de que
se reveste a ação do poder público, posto que a ação do loteador é
descompromissada com qualquer preceito legal.
1.6.1 O Projeto More Legal como fator de desburocra tização e de garantia da
realização constitucional da propriedade consolidad a
Outra forma possível de atuação do poder judiciário, na questão da
regularização fundiária, está na sua capacidade de agir também sobre os aspectos
burocráticos ligados ao registro dos imóveis e obtenção da matrícula imobiliária.
138 FREIRE JUNIOR, Américo Bedê. O controle judicial de políticas públicas. São Paulo: RT, 2005, p. 84.
59
Nessa função o judiciário age administrativamente e não jurisdicionalmente,
propriamente dito, no exercício das prerrogativas de estabelecer a fiscalização e
normatização dos serviços de registro de imóveis139.
Nessa linha de ação, o judiciário tem condições de promover a realização dos
objetivos constitucionais de regularização das propriedades irregulares e do acesso
à moradia. Essa atividade administrativa (normativa e fiscalizadora), no âmbito do
judiciário é exercida pela Corregedoria-Geral da Justiça (CGJ), do Estado membro.
É justamente nessa função que a CGJ tem competência para estabelecer
procedimentos que facilitem a regularização e permitam a superação de alguns
obstáculos legais, sem descuidar da observância da legalidade e dos princípios
registrais da continuidade e da especialidade, já referidos.
Tendo em mente que a consolidação da propriedade leva-nos aos
procedimentos jurídico-administrativos da regularização fundiária, a cargo do Ofício
do Serviço do Registro Imobiliário, órgão existente como parte do sistema legal e de
segurança jurídica, que para ser igualitário necessita acolher a todos que o
demandam, é justamente no âmbito do registro imobiliário que se apresenta a
possibilidade da ação administrativa do judiciário e fonte do direito.
A burocratização contida na legislação e os obstáculos criados dão margem
às propriedades informais, cujo caráter principal é a negação ao seu titular do
acesso ao correspondente título que lhe assegure plenos direitos. O titular do imóvel
ilegal tem seu direito de propriedade diminuído por falta da matrícula, não lhe sendo
permitido o acesso ao mercado formal, à concessão de garantias reais, ao
financiamento imobiliário, entre outros.
Porém, a característica marcante e fundamental desta propriedade incompleta
é a irreversibilidade, ou seja, a situação de propriedade do lote irregular, mesmo não
formal, é consolidada e de difícil reversão, sem causar maiores danos do que sua
139 Conforme disposto no art. 37, da Lei nº 8.935/94. Esse artigo determina que a fiscalização será exercida pelo juízo competente, explica Walter Ceneviva, que: “O juízo competente se enquadra no rol dos tribunais e juízes dos Estados e do Distrito Federal, cujas funções são definidas nos arts. 125 e 126 da Constituição Federal”. CENEVIVA, Walter. Lei dos notários e registradores comentada. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 231.
60
própria constituição ou existência representam. O proprietário, via de regra, já
consolidou sua posse e edificou moradia no local, estabelecendo o vínculo familiar
juntamente ao vínculo patrimonial, tornando-se um direito adquirido, um bem de
família, que deve ser amplamente protegido pelo ordenamento jurídico pátrio.
Embora decorrentes de circunstâncias diversas, seja fruto de irregularidade
frente à não execução do projeto de parcelamento ou de sua execução desconforme
o projeto, ou ainda, até mesmo decorrente da falta de projeto de parcelamento, o
loteamento precário apresenta situação fática que não pode ficar ao desabrigo da
ordem constitucional, determinada pelo caráter social que a Constituição Federal
impõe (art. 5º, inciso XXIII), a qual, no dizer de Eros Roberto Grau: “visa atender às
funções do urbanismo, ou seja, está vinculada a um ‘destino urbanístico’140 definido
pelo Poder Público”141.
Da mesma maneira, o mandamento Constitucional do direito social à moradia
disposto no artigo 6º, introduzido pela EC nº 26, não pode ficar ao desabrigo do
Estado-juiz quando os poderes executivo e legislativo não proporcionarem tal
desiderato, ou seja, quando por burocracia administrativa e legal obstaculizarem o
acesso à moradia. Nas palavras de Freire Junior: “[...] não que o Judiciário deva
estar acima dos demais poderes, mas quando a tarefa não for cumprida, não pode o
juiz ser coautor da omissão e relegar a Constituição a um nada jurídico”.142
Nessa linha, a atuação da CGJ do Estado do Rio Grande do Sul tem servido
de parâmetro e exemplo a todo país por meios das medidas inovadoras que
implementou no sistema extrajudicial, com destaque para o denominado “Projeto
More Legal”, atualmente na sua terceira edição143. Trata-se da possibilidade de ação
em um processo, não contencioso, de iniciativa do possuidor do lote irregular ou da
140 COLLADO, Pedro Escribano. La propriedad privada urbana. Madrid: Montecorvo, 1979, p. 174. Apud GRAU, Eros Roberto. Direito urbano: regiões metropolitanas, solo criado, zoneamento e controle ambiental, projeto de lei de desenvolvimento urbano. São Paulo: RT, 1983, p. 71. 141 COLLADO, loc. cit. 142 FREIRE JÚNIOR, Américo Bedê. O controle judicial de políticas públicas. São Paulo: RT, 2005, p. 70/71. 143 O atual More Legal 3, instituído pelo Provimento nº 28/2004-CGJ/RS, foi concebido originalmente como Projeto More Legal por meio do Provimento nº 39/1995-CGJ/RS, o qual posteriormente sofreu alterações no Provimento nº 17/99-CGJ/RS passando a denominar-se More Legal 2 e que hoje está incluído no Provimento nº 32/06 (Consolidação Normativa Notarial e Registral do RGS, nos artigos 532 a 544).
61
municipalidade junto ao registrador público, o qual remete os autos ao juízo
competente (direção do Foro) para chancela judicial e posterior acolhimento no fólio
real. Não é considerado lei, por ausência de processo legislativo e sanção executiva,
mas trata-se de uma norma administrativa a ser seguida e aplicada em todos os
municípios do Estado-membro.
Nota-se na implantação deste procedimento uma ação do Poder Judiciário,
por meio de seu órgão normativo e fiscalizador (CGJ), que institui mecanismos
legais e normas de procedimentos relacionados à regularização fundiária e o acesso
de títulos ao serviço de registro imobiliário de forma facilitadora. Isso indica uma
efetiva orientação e participação nas políticas públicas de regularização, a qual
surge como proteção às situações consolidadas.
Para tanto, a norma considera situação consolidada aquela que se apresenta
com um prazo considerável de ocupação da área, da existência de edificações e
moradias, com a localização de vias de circulação definidas, com equipamentos e
áreas públicas comunitárias disponíveis, e que indique uma situação de
irreversibilidade da posse que induza ao domínio. Com isso, o procedimento resulta
na obtenção da matrícula do imóvel e a consequente individualização (em nome do
proprietário) e a caracterização (descrição pormenorizada) do imóvel, como único
título legal e válido de comprovação de propriedade e regularidade do imóvel.
Ademais, pode-se afirmar que o resultado maior é a mudança de uma
situação em que a propriedade passa a ser um ativo e não um passivo para a
sociedade, ingressando no mercado e fazendo a inserção legal do seu proprietário
na sociedade. Passa a ser cidadão pleno.
Na concepção medular do More Legal está o conceito de que a simplicidade é
o segredo para obter o resultado. Através desse procedimento foram diminuídas as
exigências para o efetivo registro do parcelamento no serviço do registro de imóveis.
Entendeu o órgão normativo e fiscalizador dos atos judiciais e extrajudiciais que os
requisitos urbanísticos e as exigências fiscais e administrativas não devem ser
causa de obstáculos ao efetivo registro de lotes irregulares com posse e situação
irreversível. Trata-se de uma clara construção legal que permite alcance e efetivação
62
dos princípios fundamentais constitucionais e pode-se enquadrar como uma legítima
diretriz para as ações de políticas públicas de regularização fundiária.
O programa More Legal 3 como indicador de política pública influenciou a
edição da Lei nº 9.785/99, que introduziu modificações na Lei do Parcelamento do
Solo (Lei nº 6.766/79)144, trazendo facilidades, prerrogativas e incumbências ao
poder público federal, estadual e municipal para resolver as questões fundiárias, que
devem não mais estar ou permanecer dependentes ou atreladas à
discricionariedade executiva.
O Programa representou um avanço no sentido da realização constitucional
da moradia e tornou-se um modelo adotado por outros Estados da federação
brasileira, como é o caso do Estado de Santa Catarina que criou o Lar Legal e de
Alagoas com o Programa Moradia Legal. No Estado de São Paulo foi objeto de
inúmeros seminários, debates e audiências públicas, servindo como parâmetro de
discussão e implementação de programas de regularização de loteamentos145, que
culminaram na edição do Decreto nº 52.052 de 13 de agosto de 2007, que institui a
política pública estadual do Programa de Regularização de Núcleos Habitacionais -
Cidade Legal, no âmbito da Secretaria da Habitação do Estado de São Paulo.
Essas medidas vêm ao encontro de outros procedimentos já recomendados,
indicadores de uma política que consiste em proceder com segurança jurídica,
agilidade e presteza, o registro do loteamento, desmembramento ou fracionamento
de imóveis urbanos ou urbanizados, com objetivo de assegurar ao cidadão não
somente a posse e propriedade do imóvel, mas sua imprescindível titulação.
144 Conforme Art. 18, § 4º: “O título de propriedade será dispensado quando se tratar de parcelamento popular, destinado as classes de menor renda, em imóvel declaração de utilidade pública, com processo de desapropriação judicial em curso e imissão provisória na posse, desde que promovido pela União, Estados, Distrito Federal, Municípios ou suas entidades delegadas, autorizadas por lei a implantar projetos de habitação”; e, Art. 2º, § 6º ”A infra-estrutura básica dos parcelamentos situados nas zonas habitacionais declaradas por lei como de interesse social (ZHIS) consistirá, no mínimo, de: I - vias de circulação; II - escoamento das águas pluviais; III - rede para o abastecimento de água potável; IV - soluções para o esgotamento sanitário e para a energia elétrica domiciliar.” 145 Ver em: <http://www.irib.org.br> salas temáticas sobre regularização fundiária.
63
1.6.2 Outras inovações facilitadoras da regularizaç ão fundiária no âmbito
jurisdicional-administrativo
Outras providências facilitadoras da regularização fundiária são provenientes
do mesmo foro judicial. Nesse viés, conforme o Provimento nº 32/06-CGJ/RS
(CNNR), artigo 506, a Municipalidade pode, por meio de simples requerimento, obter
o registro no fólio real, das áreas de domínio público, ou seja, a abertura de
matrícula das áreas públicas ou de uso comum da população, das vias de circulação
e comunicação, das praças, dos espaços livres e das áreas destinadas a edifícios
públicos e outros equipamentos urbanos. Como consequência, as áreas objetos
desta afetação ficam destacadas (averbadas) na matrícula original (mãe) impedindo
que façam parte de comercialização indevida e garantindo a futura regularização do
loteamento, uma vez que parte das obrigações do loteador estarão cumpridas
compulsoriamente.
Outra medida efetiva, constante do Provimento nº 32/06-CGJ/RS (CNNR),
artigo 506 e seguintes, demonstra a proteção judicial ao acesso à moradia legal.
Trata-se da possibilidade de ser acolhido no Serviço do Registro de Imóveis toda
forma de contrato de compra e venda que tenha como objeto áreas urbanas, mesmo
que em desatenção às disposições da Lei nº 6.766/79 ou às leis municipais, desde
que celebrado antes de 20 de dezembro de 1979, data da entrada em vigor da lei
federal. Aplica-se, também, a todos aqueles documentos que importarem na
formalização de parcelamento já efetivado de fato, mediante lotação individual das
partes fracionadas feita pelo Município para fins tributários. Mas a norma de maior
expressão é, sem dúvida, a que determina a possibilidade de acolhimento ao
registro dos parcelamentos que atendam as exigências de dimensionamento fixadas
pelo poder público municipal, independentemente de toda a documentação exigível
pelo artigo 18 da Lei nº 6.766/79, ou seja, muitos documentos entre títulos, certidões
negativas, atos de aprovação, declarações e editais, tornam-se dispensáveis para o
registro que é feito de forma simplificada, célere e sem perder a segurança jurídica
necessária.
A política indicada pelo judiciário pretende enfrentar a regularização de títulos
de domínio com a legalização ou regularização de imenso contingente de lotes de
64
terrenos urbanos e respectivas moradias. Providência essa necessária à medida que
crescem os aglomerados urbanos e proporcionalmente se intensificam os casos de
não-regularização do instituto constitucional da propriedade, situação à qual o
Estado-juiz não pode ficar inerte ou omisso. Portanto, com base nos preceitos
constitucionais que consagraram o direito de propriedade e à moradia, cujo objetivo
visa atender ao interesse social, principalmente em relação àqueles menos
afortunados que possuem imóveis em situações irregulares e irreversíveis e àqueles
que não conseguem que o registro de sua propriedade reflita a realidade, é que o
judiciário pode instituir planos emergenciais de ação pública, cuja estratégia objetiva
a regularização das propriedades informais, dispensando exigências outras, que não
a documentação relativa à boa origem do imóvel e a simplificação de procedimentos.
Essa ação do Poder Judiciário justifica-se no que Freire Júnior146 refere como:
“a não efetivação de direito fundamental expresso em norma constitucional passa a
configurar uma omissão qualificada que implica possibilidade de existir controle
dessa omissão”. No contexto, resta demonstrado que o judiciário pode ir além do
controle das políticas públicas e de sua implementação, partindo para uma ação pró-
ativa, de construção de políticas públicas de regularização fundiária por meio da
criação de instrumentos e processos desburocratizantes, que eliminem e superem
alguns dos obstáculos impostos pelo direito ao acesso à moradia legal, como
também compelir o Estado, enquanto poder local, a promover as regularizações
necessárias.
146 FRERE JÚNIOR, Américo Bedê. O controle judicial de políticas públicas. São Paulo: RT, 2005, p. 68.
65
2 ASPECTOS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE REGULARIZAÇÃO DA
PROPRIEDADE PRECÁRIA EM CAXIAS DO SUL
2.1 As leis sempre atrás dos acontecimentos sociais
A preocupação com o ordenamento do uso do espaço urbano e o atraso na
edição das leis apropriadas não é recente em Caxias do Sul. Maria Abel Machado
informa que a cidade sofreu um crescimento muito rápido e desordenado após a
Segunda Guerra Mundial, provocando a necessidade da promulgação, em 1951, de
um novo Código Administrativo, em substituição ao Código de 16 de fevereiro de
1927147, que já fora complementado pelo Ato 31 de 8 de outubro de 1929 que baixou
instruções para a demarcação de lotes e abertura de ruas. Lembra a autora que, no
período da guerra, algumas das principais indústrias foram declaradas pelo governo
federal “empresas de interesse militar” e deviam trabalhar com capacidade plena
para as forças armadas brasileiras, a ponto do operário não poder abandonar o
posto de trabalho sob pena de ser considerado desertor. Dessa forma, a cidade teve
um aumento substancial na produtividade industrial e nas atividades afins,
especialmente o comércio, com aumento de salários e da procura de bens de
consumo e, consequentemente, da população carente de moradia.
As políticas de parcelamento do solo da época, como hoje, chegaram após os
acontecimentos sociais. Refere Machado que “a legislação não conseguiu
acompanhar a velocidade dos loteamentos que cresciam desordenadamente, sem
observar as exigências mínimas de urbanização”148. Nesse quadro, cada loteamento
era regularizado posteriormente à sua implantação, de maneira que o primeiro
registro de loteamento ocorreu somente em 1947, do Bairro Medianeira, e o
segundo em 1949, da Vila Imperial, ambos aprovados pela Câmara de Vereadores
porque o Prefeito Municipal negou-se a sancionar a lei, por considerá-los em
desacordo com o Ato nº 31 de 1929, o que lhes atribuía a categoria de
“clandestinos”.
147 MACHADO. Maria Abel. Construindo uma cidade: história de Caxias do Sul, 1875/1950. Caxias do Sul: Maneco, 2001, p. 90. 148 MACHADO, op. cit., p. 112.
66
Nesse viés, a Lei nº 304, de 08 de maio de 1950, que instituiu o Plano Diretor,
estimulou e regulamentou a verticalização da área central da cidade e demonstrou a
preocupação em criar uma política de ocupação do solo urbano, tendo como maior
efeito, “garantir a elevação dos preços dos terrenos e dos imóveis e possibilitando
uma maior lucratividade a todos aqueles que se dedicavam ao ramo imobiliário.”149
2.2 O problema habitacional em Caxias do Sul e a le gislação pertinente
O problema do loteamento ilegal e da propriedade precária faz parte de um
contexto social, presente com diferença de grau e de intensidade em todas as
cidades brasileiras. Ainda que apresentem tamanhos e atividades diversas, os
problemas da habitação, transportes, água, esgotos, educação e saúde são comuns
e demonstram enormes carências. Quanto maior a cidade for, mais visíveis serão
essas mazelas. Informa Milton Santos que esse processo se amplia a partir do final
do século XX, devido à “urbanização corporativa”150, identificada como sendo aquela
empreendida sob o comando dos interesses das grandes firmas, que “constitui um
receptáculo das conseqüências de uma expansão capitalista devorante dos recursos
públicos, uma vez que esses são orientados para os investimentos econômicos, em
detrimento dos gastos sociais”151(sic).
De fato, isso se comprova em Caxias do Sul, local em que o problema
fundiário urbano surge diretamente ligado à evolução econômica da cidade que, no
período entre 1950 e 1975 demonstra o crescimento do número de empresas na
ordem de 270%, passando de 413 indústrias para 1443 e de 450 casas comerciais
para 1671152. No mesmo período, o desenvolvimento social e populacional é de
144%, passando o número de habitantes de 59.533 para 145.502153. Como se nota,
o panorama é decorrência de políticas públicas voltadas para a ideologia
149 MACHADO, Maria Abel. Construindo uma cidade: história de Caxias do Sul, 1875/1950. Caxias do Sul: Maneco, 2001, p. 113. 150 SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. 5. ed. São Paulo: EDUSP, 2005, p. 105. 151 SANTOS, loc. cit. 152 GIRON, Loraine Slomp. Caxias do Sul: evolução histórica. Porto Alegre: Grafosul, 1977, p. 76. 153 BRUGALLI, Alvino Melquides. Caxias Grande do Sul: dados e números do 1º pólo econômico do interior do Rio Grande. Caxias do Sul: De Zorzi, 1988, p. 13.
67
desenvolvimentista dos anos 1950 e a posterior ideologia do crescimento e do Brasil
potência dos anos 1960 e 1970, as quais, afirma Santos: “justificavam e legitimavam
a orientação do gasto público em benefício de grandes empresas, cujo desempenho
permitiria ao Brasil aumentar suas exportações para poder equiparar-se mais
depressa e melhor”154.
Nesse contexto, a ação do administrador público caxiense era, assim, voltada
aos gastos com o setor produtivo e a indigência dos cofres municipais conduzia à
atração de atividades capazes de gerar empregos e pagar impostos e, assim,
ampliar as receitas locais, ou seja, mais indústrias e comércio que exigem mais
investimentos em infraestrutura da cidade econômica.
Dessa maneira, evidencia-se em Caxias a principal característica da
urbanização corporativa, qual seja a ocupação de vastas superfícies entremeadas
de vazios. Na dicção de Santos, as consequências dessas “cidades espraidas” são,
entre outras: “o tamanho da urbe, a carência de infraestruturas, os problemas de
transporte, a especulação fundiária e imobiliária e a periferização da população
pobre”155, sendo que esses fatores produzem a proliferação dos assentamentos
urbanos precários, como expressão do modelo centro-periferia adotado pelo sistema
corporativo.
Nessa construção, cada qual das realidades alimenta as demais e o
crescimento urbano é também o crescimento sistêmico dessas características. A
cidade cresce porque há especulação fundiária e imobiliária; há especulação porque
há vazios; porque há vazios, as cidades são grandes; e assim por diante. Explica
Santos que: “havendo especulação, há criação mercantil da escassez e acentua-se
o problema do acesso à terra e à habitação”156, o que conduz à periferização da
população mais pobre e, de novo, ao aumento do tamanho urbano. A especulação é
alimentada, ainda, pela valorização diferenciada das diversas frações do território
urbano, em face das carências de serviços que lhes correspondem. Os transportes
urbanos seguem essa dinâmica e oneram os pobres que têm que pagar mais caro
por seus deslocamentos e pelos bens e serviços mais dispendiosos nos bairros. “E 154 SANTOS, op. cit., p. 113. 155 SANTOS, op. cit., p. 107. 156 SANTOS, loc. cit.
68
isso fortalece os centros em detrimento das periferias, num verdadeiro círculo
vicioso”157, completa o geógrafo. Nessa sua análise, a especulação fundiária e
imobiliária alimenta-se da dinâmica criação de locais privilegiados e da disputa entre
as atividades econômicas ou pessoas por estas localizações.
Assim, a sociedade urbana torna certos pontos mais acessíveis e atrativos em
função da sua localização e serviços, de maneira que as atividades ou pessoas com
maiores recursos buscam apropriar-se dessas áreas privilegiadas que lhes pareçam
mais convenientes, segundo os ditames do momento. No diagnóstico de Santos: “O
planejamento urbano acrescenta um elemento de organização ao mecanismo de
mercado. O marketing urbano (das construções e dos terrenos) gera expectativas
que influem nos preços”.158 A planificação urbana é sobretudo técnica e voltada para
o desenvolvimento econômico da cidade, quando o que se necessita é uma
planificação sociopolítica, afirma ele.
Agrega-se e realimenta o processo especulativo, a promessa ou expectativa
de lucro futuro obtido com a terra urbana, loteada ou não, justificado pela demanda
crescente por lotes, em face à expansão das classes médias e à chegada de
migrantes pobres à cidade. Entre os anos 1960 e 1980, os habitantes de Caxias do
Sul originavam-se 59,30% de outros municípios ou Estados, em busca de
oportunidade e emprego: 38,8% na indústria, 2,7% no comércio e 11,1% na
prestação de serviços, como informa Alvino Melquides Brugalli159. Dessa forma, a
apropriação acumulativa e sem utilização de terras agrava a escassez, bem como
conduz a que as extensões incorporadas ao perímetro urbano fiquem cada vez
maiores. Assim, Santos refere que: “A organização interna de nossas cidades,
grandes, pequenas e médias, revela um problema estrutural, cuja análise sistêmica
permite verificar como todos os fatores mutuamente se causam, perpetuando a
problemática”160.
157 SANTOS, op. cit., p. 107. 158 SANTOS, loc. cit. 159 BRUGALLI, Alvino Melquides. Caxias Grande do Sul: dados e números do 1º pólo econômico do interior do Rio Grande. Caxias do Sul: De Zorzi, 1988, p. 16. 160 SANTOS, loc. cit.
69
2.2.1 A política desenvolvimentista como incremento da especulação urbana e
das irregularidades
As políticas públicas federais de moradia optaram pelo viés financeiro como
medida de solução para o problema da expansão territorial da cidade, transferindo
recursos públicos para o setor privado suprir a demanda via crescimento vertical. Na
dicção de Santos: “O estabelecimento de um mercado da habitação ‘por atacado’, a
partir da presença do Banco Nacional da Habitação (BNH) e do sistema de crédito
correspondente, gerou novas expectativas, infundadas para a maioria da população,
mas atuantes no nível geral”161. Desse modo, a criação vertical de solo urbano,
como em Caxias, estimulado pelo sistema BNH162 não surtiu o efeito proposto, na
medida em que o produto se revelou inacessível à parcela da população que
constrói a periferia, e os imóveis edificados acabaram tornando-se mais uma
mercadoria a disposição da especulação imobiliária, realimentando o problema.
A razão de criação do BNH dava-o como instrumento de melhoria das
condições de moradia dos habitantes urbanos. Deveria realizar esta tarefa mediante
a utilização de recursos arrecadados junto a todos os trabalhadores, por meio de
suas poupanças compulsórias juntadas no Fundo de Garantia por Tempo de Serviço
(FGTS), canalizadas para o financiamento da construção de apartamentos e casas.
Nesse quadro, os conjuntos residenciais para as classes de menor renda, edificados
por empresas privadas com tal dinheiro público, situaram-se também,
predominantemente, nas periferias urbanas. Isso porque, buscando o lucro das
empresas, a edificação nos terrenos afastados exigia a extensão de serviços
públicos como luz, água, pavimentação e transporte, cuja infraestrutura era custeada
pelos mesmos recursos e executada pelas mesmas empresas, que os consumiam
por completo. Explica Santos: “É desse modo que o BNH contribuiu para agravar a
tendência ao espraiamento das cidades e para estimular a especulação
imobiliária”163. O modelo produz novos vazios urbanos ao mesmo tempo em que a
população, sem poder pagar pelo preço, deve deslocar-se para mais longe,
161 SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. 5. ed. São Paulo: EDUSP, 2005, p. 107. 162 Empresa pública financeira, instituído pela Lei nº 5.762, de 14 de dezembro de 1971, órgão central e gestor do Sistema Financeiro da Habitação (SFH), extinto por incorporação à Caixa Econômica Federal (CEF) pelo Decreto-Lei nº 2.291 de 21.11.1986. 163 SANTOS, op. cit., p. 124.
70
ampliando a periferização. Completa o geógrafo dizendo que: “A rapidez com que se
instala o processo de verticalização tem como paralelo um processo de
suburbanização”, e o resultado é a expansão geográfica da cidade.
De fato, ao final na década de 1980, informa Brugalli,164 a situação em Caxias
do Sul revela programas habitacionais com 343 unidades concluídas e 4322 em
projeto de construção pelo programa Cohab165. Na questão de loteamentos
populares, em construção pelo programa Prolurb166, apresenta-se com 1537 lotes
urbanizados. De outra banda, a evolução dos loteamentos irregulares, que Brugalli
denomina de “núcleos de sub-habitação”, deu-se de forma vertiginosa, de 3 núcleos
existentes em 1968 passou para 15 núcleos em 1973, revelando um acréscimo de
400% em 5 anos. Após isso, o índice de crescimento foi de 60%, até 1980, quando
alcançou a cifra de 24 núcleos, para novamente dar um salto de 346% atingindo 107
núcleos em 1984, com 4622 moradias irregulares, correspondendo a 21.300
habitantes, no total.
Esses assentamentos foram verificados em áreas públicas, áreas verdes e
em áreas privadas invadidas ou adquiridas. Porém, segundo Brugalli, a maior
incidência estava em loteamentos irregulares em que o morador tinha a posse, mas
não dispunha de serviços públicos essenciais tais como água, luz, transporte,
pavimentação, escolas, etc.167
O perfil do consumidor do lote irregular pode ser identificado nos dados do
Sindicato da Construção Civil, publicados em 2005168, cujo trabalho aponta para
déficit habitacional em Caxias do Sul, na ordem de 3.500 moradias na faixa de 1 a 2
salários mínimos, representando 12%, enquanto na faixa de renda de 3 a 5 salários
mínimos, um déficit de 10.761 moradias, equivalente a 38,04% da demanda, e de
13.000 moradias, ou 49,50%, na faixa acima dos 5 salários mínimos. Sabe-se que
nas primeiras categorias encontram-se as pessoas que adquirem o imóvel irregular,
164 BRUGALLI, Alvino Melquides. Caxias Grande do Sul: dados e números do 1º pólo econômico do interior do Rio Grande. Caxias do Sul: De Zorzi, 1988, p. 15. 165 Companhia da Habitação do Estado do Rio Grande do Sul (COHAB). 166 Programa Lotes Urbanizados (Prolurb) da Cohab-RS e Prefeitura Municipal de Caxias do Sul. 167 BRUGALLI, op. cit., p. 15. 168 Sindicato das Empresas da Construção Civil, Sinduscon, seção Caxias do Sul. Diagnóstico do déficit habitacional de Caxias 2005. In: Jornal Pioneiro, de 15 de julho de 2007, p. 20 e 21.
71
pois, os da última têm capacidade de pagamento e encontram suporte nos
financiamentos bancários ou das próprias construtoras. Assim, pode-se identificar o
público alvo dos loteadores irregulares na ordem de 50% da demanda por moradia
nas cidades, número esse que é compatível com as irregularidades detectadas,
conforme estudos do Ministério das Cidades.
2.2.2 Os primeiros passos no rumo da regularização administrativa e no
caminho da simplificação dos procedimentos
A radiografia dos loteamentos irregulares, promovida em exaustivo trabalho
de 7 meses pela então criada Secretaria do Desenvolvimento Urbano da Prefeitura
Municipal de Caxias do Sul (SDU)169, identificou em 1985 existência de 256
loteamentos, o que revelava um crescimento de 139% em relação a 1984. Esses
loteamentos, com quase 20mil lotes criados, ocupavam uma área de 1040hectares e
226 deles localizavam-se no perímetro urbano, os demais incorporavam
120hectares do espaço rural ao processo de periferização e expansão geográfica da
cidade. Entretanto, o maior efeito da pesquisa foi o de expor a dura realidade de
tendência inexorável ao crescimento desordenado e a necessidade de iniciativas
públicas para enfrentar o problema.
Para tanto, a SDU identificou os loteamentos passíveis de regularização,
dividindo-os em três grupos, dentro do critério de cumprimento da legislação vigente,
ou seja a Lei Municipal nº 2.088/72 que disciplinava o parcelamento do solo, desse
modo, 181 loteamentos apresentavam-se respeitando a legislação necessitando de
pequenas correções, 41 loteamentos necessitavam adequações maiores e 34
loteamentos não respeitavam a legislação urbanística e sua regularização não era
possível. Nesse cenário, até 1987 foram regularizados administrativamente 30
loteamentos, perfazendo 2336 lotes, e adequados à regularização 21 loteamentos
com 2645 lotes, estes aguardando a aprovação de lei específica170. Assim, as
políticas públicas de regularização municipal alcançaram o percentual de
169 A Secretaria do Desenvolvimento Urbano do município foi criada pela Lei Municipal nº 2966/85. 170 CAXIAS DO SUL. Informativo da Secretaria de Desenvolvimento Urbano de Caxias do Sul, nº 4, ano 1987, p. 14.
72
regularização de 19,92%, em relação à totalidade de irregularidades e de 28% dos
loteamentos adequados à legislação. Essas cifras demonstram a complexidade na
equação do problema, haja vista tratar de áreas que exigiam somente
procedimentos administrativos e legais para sua regularização, não demandando a
necessidade de grandes obras para seu enquadramento legal e, mesmo assim, foi
pequeno o avanço.
A lei específica que definiu a política pública e veio para incrementar as
regularizações foi a Lei Municipal nº 3.292, de 25 de novembro de 1988, que instituiu
o Programa de Regularização dos Parcelamentos Irregulares. O diploma manteve o
critério para diferenciação do nível de irregularidade em que se enquadravam os
respectivos loteamentos para fins de admissibilidade no programa, ao mesmo tempo
em que nomeou cada um dos loteamentos passíveis de regularização administrativa
e seus respectivos níveis de enquadramento.
Nessa construção, pertenciam ao Nível I os parcelamentos que dispunham,
obrigatoriamente, de área verde, de lotes, quadras e logradouros demarcados em
planta de situação e localização com medidas e confrontações de lotes, quarteirão,
vias de circulação e áreas institucionais, e com, no mínimo, dois equipamentos
urbanos dentre os seguintes: a) vias de circulação; b) rede de esgoto implantada; c)
rede hidráulica conforme normas do Serviço Autônomo de Água e Esgoto (SAMAE);
d) rede de energia elétrica implantada conforme normas da Companhia Estadual de
Energia Elétrica (CEEE); e) rede de iluminação pública implantada conforme normas
da Secretaria dos Serviços Públicos Urbanos (SSPU). A ausência justificada de área
verde poderia ser substituída por mais um dos equipamentos de infraestrutura.
No Nível II estariam os loteamentos que não cumprissem os requisitos do
primeiro nível e no Nível III os parcelamentos situados em áreas onde esse tipo de
empreendimento fosse vedado por disposição expressa da lei, ou seja, em áreas
públicas ou impróprias por vedações ambientais, como por exemplo: as áreas de
bacias de captação, de preservação permanente ou declividade acentuada. A
regularização somente seria possível nos loteamentos no Nível I. Os do segundo
nível deveriam avançar no processo e completar os requisitos para ascender ao
primeiro.
73
Dessa maneira, o Programa estava dirigido aos loteamentos irregulares
promovidos por loteadores individuais ou empresas, em áreas privadas e próprias
para tais empreendimentos, cuja maior irregularidade administrativa consistia na
falta de aprovação prévia pela Prefeitura Municipal, mas que se apresentavam
adequados, minimamente, aos requisitos legais. Ou seja, voltada aos
assentamentos que, em razão de sua implantação ilícita, eram considerados
loteamentos clandestinos em relação ao conhecimento do poder público municipal e
loteamentos irregulares em relação ao registro imobiliário e publicidade pública,
conforme a classificação de Gasparini171. Não obstante, em face da sua constituição
não afrontar sobremaneira a Lei nº 6.766/79 e a lei específica municipal vir a
simplificar os requisitos de enquadramento, colocavam-se como aptos à fácil
regularização e adequação às normas urbanas. Contrário senso, os demais
loteamentos não arrolados na lei específica, além de clandestinos e irregulares
continham vícios insanáveis a impedir a regularização.
A política pública implantada definiu e simplificou a documentação a ser
encaminhamento para o processo de regularização, bem como, o próprio processo
restou facilitado. Na mesma linha, o art. 6º definiu os critérios de preferência no
encaminhamento dos processos, voltados para: a maior existência de infraestrutura,
maior ocupação populacional, maior proximidade com a malha urbana, maior
antiguidade e maior nível de organização popular residente. De modo que,
administrativamente, restou bem definida a abrangência da ação pública no
processo e os limites da atuação.
Entretanto, a ação proposta não foi capaz de atingir o âmago da questão, pois
como visto anteriormente, a palavra “regular” significa loteamento com registro
imobiliário e lotes em nome dos proprietários, porém esse requisito não foi
contemplado na elaboração do legislador local.
Como se vê no diploma, pelo art. 10 ficou definido a responsabilidade de o
proprietário do parcelamento levar o decreto de aprovação ao registro junto ao Ofício
171 GASPARINI, Diógenes. O município e o parcelamento do solo. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 144.
74
de Registro de Imóveis, no prazo de 180 (cento e oitenta dias), obedecidos os
demais requisitos legais. Da mesma forma, o parcelador ficava obrigado a transferir
ao Município, por doação, as áreas institucionais e viárias descritas no memorial
técnico do projeto aprovado, bem como promover o registro desta doação no órgão
competente. Nessa elaboração, a parte jurídica da regularização do loteamento,
considerada por muitos como a mais importante e definitiva, pois ligada diretamente
ao conceito de propriedade, ficou sob responsabilidade da própria pessoa que gerou
o problema. Uma situação de duvidosa solução.
Pode-se afirmar que foi uma opção antagônica aos objetivos da
regularização, por torná-la incompleta, como também demonstra certa omissão do
executivo municipal em assumir a si essa tarefa. Mas seria da sua competência? Na
análise de Silva172, a legitimidade para a regularização é exclusiva do poder público
local, por força do disposto no art. 40 da Lei nº 6.766/79. Para ele, a redação da lei é
clara no sentido de que, omitindo-se o loteador, a regularização será efetuada pelo
Município, seja o parcelamento não autorizado (clandestino) ou executado sem
registro ou observância das exigências impostas na concessão da licença (irregular),
para evitar lesão aos seus padrões de desenvolvimento urbano e na defesa dos
direitos dos adquirentes de lotes.
Pelas normas vigentes, a Prefeitura Municipal tinha e tem a prerrogativa de
obter o ressarcimento das despesas que efetivar para a regularização, podendo
levantar ou receber as prestações vincendas diretamente dos adquirentes, ou por
meio da expropriação dos lotes remanescentes na propriedade do loteador ilícito, ou
seja, aqueles lotes ainda não alienados.
Assim, pode-se apontar a relativa omissão do poder local em assumir essas
prerrogativas e efetivar uma regularização completa, ou seja, administrativa e
jurídica, como um dos fatores que impediu uma maior efetividade do programa de
regularizações na cidade de Caxias do Sul. Pois, a elaboração legislativa local, no
sentido de atribuir ao proprietário do loteamento prerrogativa de efetivar o registro
172 SILVA, José Marcelo Tossi Silva. Registro de parcelamento regularizado (no Estado de São Paulo). In: Revista de Direito Imobiliário, nº 62, jan./jun. São Paulo: RT/IRIB, 2007. Disponível em: <http://www.irib.org.br/rdi/rdi62a.asp>. Acesso em: 14.12.2007.
75
esbarrava no fato de que, na maioria dos casos, o proprietário da terra ou o loteador,
ou ambos, não tinham mais interesse neste processo posto que já haviam obtido
seu objetivo imediato, qual seja, o lucro fácil pela alienação de lotes com alto lucro
final e de baixo custo inicial por falta de infraestrutura adequada.
De outra banda, os incautos adquirentes e verdadeiros novos proprietários
não tinham conhecimento necessário para promover o registro do loteamento. A
regularização administrativa efetivada pela Prefeitura e a adequação do projeto às
condições mínimas (vias, água e luz) já era o suficiente para eles, moradores. Além
disso, qualquer iniciativa em busca da regularização jurídica esbarrava nas
exigências registrais, em decorrência dos títulos aquisitivos que portavam, com
pouca ou nenhuma eficácia, o acesso ao registro era dificultado ou simplesmente
impedido.
De maneira que, na elaboração legal municipal voltada unicamente para a
regularização administrativa, ou seja, para a aprovação do loteamento sob
condições especiais, dois aspectos não estavam plenamente satisfeitos. O primeiro
é que a irregularidade “strito sensu” caracteriza-se pela falta do registro imobiliário
do loteamento e não somente quanto ao conhecimento e aprovação do mesmo pela
autoridade municipal competente. O segundo, também ligado à questão jurídica do
loteamento irregular, como aspecto principal, é a falta de título de propriedade em
nome dos compradores, por carência da matrícula dos lotes. É verdade que ambos
dependem da prévia aprovação municipal, mas, essa, não implica necessariamente
no registro e na matrícula, em virtude das “barreiras de entrada” registrais. Isso
significa que, mesmo o loteamento sendo regular perante a administração pública
poderá estar irregular juridicamente, como visto anteriormente.
Vale lembrar que por força da Lei nº 6.766/79 (art. 18), a regularidade
administrativa, presente na aprovação facilitada do loteamento pelo município, é tão-
somente um dos requisitos, dentre mais de sete para o ingresso e aceitação do
registro do loteamento. Da mesma forma, por força da Lei nº 6.015/76 (art. 195),
deverá haver continuidade de registro de modo a preservar a corrente dominial, ou
seja, é necessário que o comprador apresente título eficaz da aquisição da
propriedade de seu anterior e legítimo dono.
76
Sabe-se que na questão do loteamento irregular a dificuldade maior para a
regularização é justamente a condição da propriedade precária não só em nome dos
adquirentes, mas principalmente em nome do loteador-vendedor, cujo maior
interesse é de não aparecer e assumir suas obrigações legais. Desse modo, os
compradores não têm a quem recorrer para obter o título válido, pois a promessa de
compra e venda mal-formatada e imprecisa, que firmaram com o pseudo-
proprietário, não lhes permite obter a matrícula do imóvel em seus nomes. Além
disso, por força desse princípio registral e pelo princípio da especialização, o título
que firmaram, mesmo que seja eficaz, somente será admitido ao registro se contiver
a caracterização do imóvel coincidentemente com a descrição que consta no registro
anterior. Ora, em geral a descrição que consta na matrícula “mãe” diz respeito à
gleba maior de onde foram gerados os lotes sucedâneos, os quais mesmo regulares
perante o executivo municipal, não possuem a coincidência necessária com a
descrição da matrícula original, em virtude da diferença de área e confrontações, ou
da sua localização no espaço geográfico, urbano ou rural. Desse modo, restava
complicada a regularização jurídica do loteamento e de seus respectivos lotes, em
nome de seus adquirentes/possuidores.
Assim sendo, se nenhum imóvel urbano é regular se não tiver proprietário,
não se pode falar em propriedade sem mencionar a quem pertence, como prova da
perfeita relação de ideias 173.
Esse é o caso do loteamento “Jardim das Hortências”174, semelhante a tantos
outros em diversas cidades que têm como ponto comum a sua origem, nas ações de
parcelamento informal do solo e a transferência da propriedade de lotes por
consentimento mútuo em contrato firmado entre as partes. Ou seja, fundamentam-se
173 O filósofo político David Hume (1739) define propriedade como: “a relação entre uma pessoa e um objeto de modo a permitir a esta pessoa e a proibir a qualquer outra o livre uso e a posse do objeto, sem violação das leis da justiça e da equidade moral”. Prossegue o filósofo referindo que, ao se fazer menção da propriedade o nosso pensamento transporta-se naturalmente para o proprietário, prova de perfeita relação de ideias, e sempre que um prazer ou uma dor nasce de um objeto ligado à pessoa pela propriedade, podemos estar certos de que o orgulho ou a humildade deve originar-se desta conjunção de relações. In: HUME, David. Tratado da natureza humana. Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 365. 174 “Jardim das Hortências” (sic.). Apesar do erro gramatical esse é o nome conferido ao loteamento, conforme Decreto Municipal nº 7.481 de 25.08.1992 que aprovou o loteamento e consta do registro imobiliário na Matrícula correspondente.
77
na livre disposição da propriedade e na liberdade contratual, dois sustentáculos do
sistema jurídico pátrio. Esse aspecto é relevante porque essa forma de aquisição
difere frontalmente da invasão ou ocupação, que são modos originários de alcançar
a propriedade175, e não são objetos desse estudo, ao passo que a contratual é forma
derivada de aquisição da propriedade e, portanto, depende da eficácia do título
aquisitivo.
Assim sendo, em face da ineficácia do título aquisitivo a situação havida no
“Jardim das Hortências” configura a denominada propriedade precária, em que
temos um proprietário sem o título correspondente. Nesse quadro, não há dúvida de
quem seja possuidor do imóvel, porém, mesmo que o tenha adquirido formalmente e
esteja na sua posse, uso e gozo, falta-lhe o título, componente essencial da
propriedade que a torna juridicamente existente em nome do morador.
Nesse contexto, o processo encontrado para a solução do problema de
regularização do loteamento “Jardim das Hortências”, apresenta um modelo de
construção jurídica que transformou a propriedade precária dos moradores, em
propriedade juridicamente existente por meio do registro imobiliário. Tal construção
em análise pode responder como foi possível superar com sucesso as dificuldades
para a regularização, assim sendo, pode-se encontrar o caminho a ser seguido em
outros assentamentos informais e precários na mesma situação. Ou ainda responder
a questão sobre o que fazer para tornar as regularizações fundiárias mais simples e
eficazes? E se é possível assim proceder.
2.3 Os instrumentos jurídicos e os procedimentos de regularização do
loteamento “Jardim das Hortências”
O surgimento do problema deu-se no ano de 1978 quando os agricultores
proprietários da área rural em que foi desenvolvido o referido loteamento,
pressionados pelo crescimento da cidade e pela inviabilidade econômica da
175 O filósofo David Hume refere que das circunstâncias que possam originar a propriedade, encontra-se “quatro muito importantes: a ocupação, a prescrição, a acessão e a sucessão”. In: HUME, David. Tratado da natureza humana. Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 582.
78
exploração agrícola minifundiária como meio de subsistência, bem como seduzidos
pela valorização da terra proposta pelos pretensos loteadores, optaram por transferir
a propriedade ao empreendedor para a realização do loteamento.
O loteador, por sua vez, com finalidade de obter imediato retorno e lucro do
investimento, apenas promoveu a demarcação dos lotes e prontamente iniciou a
venda para terceiros adquirentes, sem se preocupar com os aspectos legais e
formais da constituição do loteamento junto ao poder público municipal ou ao
registro imobiliário, sabedor da impossibilidade em face da situação rural da gleba,
ou seja, fora do perímetro urbano. Como resultado dessa iniciativa, que se pode
considerar padrão na origem da maioria dos loteamentos precários nas cidades em
crescimento, deu-se a constituição do loteamento irregular denominado “Jardim das
Hortências”, contendo 217 lotes, cobrindo uma área total de 135.478,86m2, sendo
36.058m2 destinados para ruas e passeios públicos, 9.288,00m2 para áreas
institucionais e 90.132,86m2 para os lotes,176 o que representa 34% de área pública
e 66% privada.
Essa área total fazia parte dos lotes rurais nºs. 50 e 52 do Travessão
Gablontz no município de Caxias do Sul/RS, de propriedade de Ludovico Dante Boff
e sua mulher Maria Giacomina Pedrotti Boff, e foi alienada por contrato particular de
promessa de compra e venda, em 14.03.1979, para a compromissária compradora
Imobiliária e Empreendimentos Vila Rica Ltda. que imediatamente demarcou a gleba
e passou a comercializar os lotes, de maneira que o levantamento feito pela
Prefeitura Municipal em 1987 constatou a ocupação de 62% dos terrenos177, ou seja,
mais da metade do loteamento já havia sido adquirida por terceiros, diretamente da
empresa loteadora.
Os instrumentos jurídicos para tais alienações foram escrituras públicas de
compra e venda de fração ideal dentro de todo maior, ou por contratos particulares
de promessa de compra e venda com individualização e demarcação precária dos
lotes, e todos sem registro imobiliário. Portanto, eram instrumentos que não tinham
176 Conforme Averbação nº 01, na Matrícula nº 39.425, do Livro nº 2 - RG do Ofício do Registro de Imóveis da 2ª Zona de Caxias do Sul, em 13.01.1993. 177 Conforme Anexo I da Lei Municipal nº 3.292, de 25 de novembro de 1988.
79
eficácia jurídica para constituir propriedade. Assim sendo, os moradores tornaram-se
vítimas da situação, pois haviam comprado os imóveis, mas eram donos apenas de
fato. Além disso, alguns desses compradores repassaram o problema para outras
pessoas vendendo-lhes o imóvel, agravando ainda mais a situação.
Os procedimentos de regularização tiveram início por ação do poder
executivo que promoveu o encaminhamento das medidas para equação dos
loteamentos irregulares no município. Na época, estudo da Secretaria do
Desenvolvimento Urbano, criada pela Lei Municipal nº 2.966/85, constatou a
predominância de informações desencontradas, números irreais e apenas uma
certeza: os loteamentos irregulares eram muitos178. No levantamento de dados que
se seguiu, esboçado em sete meses e concluído em reunião realizada no dia 16 de
abril de 1986, foi definida a listagem dos loteamentos passíveis de regularização. Na
oportunidade foi definido o critério de qualificação do loteamento, de acordo com a
maior ou menor necessidade de adequações para regularização. Desse modo, o
loteamento “Jardim das Hortências” restou enquadrado na categoria do “sinal verde”,
isto é, carente de pequenas concessões para regularização administrativa.
Dando prosseguimento ao processo, no ano de 1988 foi editada a Lei
Municipal nº 3.292/88, que instituiu o Programa de Regularização dos Loteamentos
Irregulares, já referido, que regulamentou os procedimentos de regularização e
permitiu ao Poder Público local promover as ações necessárias, tais como
levantamentos e adequação dos loteamentos às diretrizes urbanísticas especiais,
delimitadas para tanto. Desse modo, adequado e aprovado o projeto e a
implementação, seguiu-se a aprovação administrativa do loteamento “Jardim das
Hortências”, por meio do Decreto Municipal nº 7481, de 25 de agosto de 1992.
Como se vê, após treze anos, contados do início da implantação, a
regularização administrativa do loteamento estava finda, ou seja, a participação do
poder público municipal no procedimento havia sido encerrada com o decreto de
reconhecimento oficial do empreendimento encaminhado ao registro.
178 Conforme consta no artigo, Radiografia dos Loteamentos Irregulares em Caxias do Sul. In: Informativo da Secretaria de Desenvolvimento Urbano de Caxias do Sul, 1987, p. 13.
80
Porém, para que o loteamento fosse considerado juridicamente regular
necessitava o registro do loteamento e a abertura das matrículas individuais dos
lotes, em nome dos proprietários finais. Dessa maneira, era preciso que os imóveis
fossem registrados e, também, que fossem registrados as originais escrituras e
contratos de transferência dos lotes aos respectivos adquirentes dos 217 lotes.
Iniciava-se então outro problema de difícil e demorada solução, comum a muitos
loteamentos no país, qual seja a regularização jurídica ou registral em nome dos
proprietários dos terrenos.
A situação fática do loteamento, implantado com projeto aprovado pelo
executivo municipal e registrado no registro imobiliário, apresentava-se constituído
por propriedades consolidadas na posse dos legítimos adquirentes dos lotes, porém,
juridicamente, a área total originária do loteamento permanecia em nome do antigo
proprietário, em virtude de ser em seu nome o registro da Matrícula nº 39.425, do
Livro 2-RG, do 2º Ofício do Serviço do Registro de Imóveis de Caxias do Sul. Por
outro lado, esse proprietário legal mas não de fato, estava impedido de transmitir os
lotes aos adquirentes de fato mas não legais, haja vista haver alienado tal área em
1978 para a empresa Vila Rica. Da mesma forma, essa empresa não mais ativa,
apesar de haver registrado a transferência de parte da gleba para seu nome, não
poderia fazer a alienação aos moradores, por ser proprietária de somente uma parte
da gleba e de ter abandonado o loteamento à própria sorte e à conclusão pelo poder
público.
Portanto, a situação representava um impasse, não havia meios de a
empresa transmitir a propriedade aos moradores, tampouco o antigo proprietário
estava habilitado a escriturar os terrenos dos quais não era mais dono. Nesse
quadro, os adquirentes permaneciam como os maiores prejudicados, pois tanto a
loteadora quanto os antigos proprietários já haviam realizado seu lucro e não havia
meio jurídico para forçá-los a cumprir os contratos, haja vista que os impedimentos
eram em virtude de disposições da lei, não por vontade dos vendedores. Ou seja,
mesmo que quisessem (e queriam) não podiam transmitir os imóveis legalmente.
Modificar o quadro e desfazer o impasse somente foi possível a partir da ação
dos moradores do loteamento, organizados na Associação dos Moradores do Bairro
81
Jardim das Hortências, entidade civil nascida em 26 de fevereiro de 1981 por 25
sócios fundadores, que buscaram o diálogo com as demais partes e autoridades
envolvidas para alcançar a regularização jurídica, pautada na ação de todos no
objetivo comum. Desse modo, os atores diretamente envolvidos na questão
despiram-se das prerrogativas de cargos e funções e construíram a solução do
problema.
Considerando-se que a questão envolve matéria jurídica o seu
equacionamento dependeria de fundamentação teórica nesse campo, ou seja, as
razões de justificação das ações implementadas deveriam ter amparo em princípios
fundamentais do direito e de constituição da sociedade. Haverá como fazer?
2.4 A regularização jurídica do “Jardim das Hortênc ias”: a transmutação do
fato moral em fato legal
Para entender os princípios que fundamentaram o alcance da solução jurídica
do problema da regularização fundiária do loteamento “Jardim das Hortências”, é
preciso compreender como se construiu o entendimento e quais foram os elementos
que se pode depreender nesse processo regularizador. Esse entendimento é
primordial tendo em vista que se tratam dos elementos de alcance e legitimação das
ações empreendidas que transformaram o ilegal no legal. A resposta a essa alta
indagação é a resposta aos anseios de facilitação e simplificação dos procedimentos
de regularização fundiária - abordado ao longo do texto - que poderá ser aplicado
em outros casos de legalização da propriedade precária.
Neste quadro, os indivíduos diretamente envolvidos no problema, movidos
por exclusivo interesse moral de solucionar o impasse e despidos de cargos,
prerrogativas e interesse pessoal ou material, promoveram o diálogo e a cooperação
como forma de transmutar a situação irregular em legal, de maneira a dar força
jurídica àquela situação moral ou fato social da propriedade precária.
De fato, no dia 22 de abril de 1994, reuniram-se nas dependências do 1º
Ofício de Registro de Imóveis de Caxias do Sul, os representantes dos moradores
82
do loteamento, advogados, os antigos proprietários da gleba, o representante da
empresa loteadora e o titular do serviço público, atendendo resolução emanada nas
Portarias nº 052/91-DF e nº 022/94-DF, da Direção do Foro da Comarca de Caxias
do Sul, para discutirem e estabelecerem os mecanismos e procedimentos a serem
executados, com o objetivo de regularizar os títulos de propriedade dos
compradores de terrenos do loteamento denominado “Jardim das Hortências”. Vale
lembrar que a gleba pertencia a Ludovico Dante Boff e fora vendida à Imobiliária Vila
Rica e irregularmente loteada por essa, sendo que a conclusão e regularização
administrativa do loteamento fora feita pela Prefeitura Municipal. Na histórica
reunião, buscava-se o preenchimento de requisitos legais ligados aos instrumentos
de transmissão e ao registro imobiliário.
Esse objetivo, como se antevê, constitui o que pode ser denominado “o bem
comum”179, pois representa a vontade e o interesse de todos, cujos efeitos serão
benéficos a todos os envolvidos diretamente e à sociedade. Dessa maneira, prima
facie, visualiza-se nesse contexto o princípio do bem comum, que junto com a
subsdiariedade e a solidariedade completa a trinômia a que Ullmann refere como
sendo ontológicos princípios sociais.
Na construção jurídica da situação moral (consolidada), o Oficial Registrador,
abriu mão de requisitos legais, por conta dos princípios da anterioridade, da
continuidade e da especialidade registral - tratados exaustivamente no capítulo
anterior -, e indicou que acataria a forma instrumental de um acordo, a ser firmado
entre o antigo proprietário e a empresa loteadora, de maneira a possibilitar aos
primeiros outorgarem por escritura pública os terrenos aos moradores. Como
consequência dessa decisão, o domínio da gleba retornou ao detentor original.
Tal elaboração jurídica retirou a empresa (Vila Rica) do polo passivo da
obrigação de transmitir os imóveis aos compradores, e colocou no seu lugar o antigo
proprietário (Ludovico), porém as obrigações e responsabilidades pelo
empreendimento permaneceram na órbita da loteadora, mesmo que essa não mais
179 “O bem comum consiste, pois, naquilo que todos, na sociedade, se tornam beneficiários, quer se trate a da sociedade como um todo (não excluindo a sociedade internacional), quer se trate de segmentos dela.” In: ULLMANN, op. cit., 1993, p. 92.
83
fizesse parte nas escrituras e nas relações obrigacionais. Ou seja, o antigo
proprietário, que não tinha qualquer obrigação jurídica em relação ao
empreendimento ou mesmo em relação à outorga das escrituras, faria a transmissão
apenas por vontade própria, de sua inteira liberdade, movido pela simpatia em
relação aos compradores. Ao mesmo tempo, a empresa, que não tinha qualquer
participação jurídica na transmissão, permanecia solidária nas demais obrigações
civis, trabalhistas e fiscais decorrentes do empreendimento, bem como devia conferir
autorização para a lavra das escrituras de transmissão, tão-somente por sua
vontade e liberdade.
Seja como for, a convenção moral sobrepujou a norma jurídica na medida em
que alguns princípios do direito foram relegados a plano secundário, como por
exemplo: o princípio da evicção180 que restou afastado do alienante (Ludovico) e
transferido para a empresa (Vila Rica), a qual sequer fez parte das escrituras de
venda; o mesmo sucedeu em relação à fé pública das escrituras, que retrataram
uma inverdade, do conhecimento de todos, haja vista que os moradores haviam
negociado com a imobiliária (Vila Rica) e não com o outorgante e transmitente
(Ludovico); por último, os princípios da continuidade e especialidade registral foram
deixados à margem do processo, na medida em que foi cancelada a aquisição da
gleba e propriedade, em nome da empresa imobiliária (Vila Rica), por simples
averbação (ex-offício) de encerramento da matrícula, retornando a gleba ao
proprietário original sem o indispensável instrumento público de retorno de
propriedade181, ao mesmo tempo em que a descrição da gleba modificou-se com a
introdução das especializações dos lotes, conforme se lê na Matrícula nº 16.908, do
Livro 2-RG, do 2º Ofício do Registro de Imóveis de Caxias do Sul182.
180 É princípio de garantia dos contratos onerosos que assenta no alienante a responsabilidade pela integridade total do objeto do negócio jurídico. Esse instituto, expresso no art. 447 e seguintes, do Código Civil Brasileiro, prevê a possibilidade de diminuir, aumentar ou excluir essa responsabilidade, desde que conste em cláusula expressa no contrato (art. 448, CCB). Porém não existe no direito brasileiro a hipótese de transmitir essa responsabilidade a quem quer que seja, muito menos a quem não faça parte do negócio jurídico. In: BARROS, Ana Lucia Porto de; [et al.]. O novo código civil: comentado. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2002, p. 346/347. 181 Vale lembrar que a transferência de propriedade imobiliária somente pode ser feita por escritura pública ou sentença judicial. Neste caso é cabível uma retrovenda, ou um distrato, ou mesmo uma dação. 182 “EX-OFFICIO em 13 de julho de 1999. Certifico que as baixas sob matrículas nºs 17792, [...], 17.892, bom como a área total desta matrícula estão incluídas no Loteamento Jardim das Hortências, registrado sob matrícula nº 39425 – Lº02/RG e portanto fica ENCERRADA A PRESENTE MATRÍCULA. Tudo de acordo com a Av. 3/39425 – Lº02/RG, desta 2ª Zona.”. Ver no ANEXO B.
84
Desse modo, as escrituras outorgadas pelo proprietário original da gleba
(Ludovico) em favor dos adquirentes foram acolhidas no registro imobiliário que
promoveu a abertura das matrículas dos lotes perfeitamente individualizados,
conforme os dados constantes do registro do loteamento e certidão municipal,
ficando a cadeia dominial devidamente caracterizada nos títulos de propriedade
abertos em nome dos moradores, tornando realidade a regularização jurídica do
empreendimento.
Em suma, essa foi a formatação da solução encontrada para alcançar “o bem
comum” de regularização dos títulos de propriedade em nome dos adquirentes, em
que a verdade moral tornou-se verdade jurídica, contra tudo e contra todos, erga
omnes.
2.5 Aspectos fundamentais e ações no âmbito da soci edade local
Importante lembrar que a solução para a regularização do loteamento “Jardim
das Hortências”, e de outros na mesma época e situação, foi o embrião do chamado
“Projeto More Legal”, abordado no capítulo anterior, que veio a ser formatado pela
Corregedoria-Geral da Justiça do RS, por meio dos Provimentos nºs. 39/1995 e
01/1998, que atualmente faz parte da Consolidação Normativa Notarial e Registral,
por força do Provimento nº 32/2006, o qual sinaliza para a facilitação e simplificação
nos procedimentos de regularização fundiária dos loteamentos irregulares, quando
se tratar de situação consolidada.
Entretanto, cabe ressaltar nesse contexto, que a solução do problema foi
possível por força das decisões no âmbito local, eis que se observa, aqui, a atuação
tanto do Oficial Registrador quanto do Juiz Corregedor, ambos personificando o
Estado-juiz, menos para obrigar ação ou realização do direito pelo Estado, que tem
se mostrado insuficiente para tal tarefa, e mais para garantir os direitos ativos da
sociedade exercidos por aqueles menos cidadãos (proprietários precários) no seu
espaço de cidadania (local), na realização de direito social puro (moradia).
85
Diante disso é correto afirmar que a ideia e concretude da moradia como
direito social puro e no princípio de subsidiariedade é legitima na ação do indivíduo
ou grupo de indivíduos que arvoram a si a tarefa não cumprida pelo Estado, ou seja,
a de suprir-lhes as necessidades. Desse modo, as ações e atos jurídicos procedidos
pelo oficial registrador e todos os envolvidos encontram justificativa nos princípios
gerais do direito, daí não podem jamais ser considerados contrários ou fora do
direito. O loteamento “Jardim das Hortências” e as demais propriedades precárias
em todas as cidades espelham essa realidade e comprovam a hipótese.
Por esse motivo, não pode o Estado ir contra a realização social naturalmente
atribuída ao indivíduo, executada nas ações do grupo de interesse (etre assemble -
o ser conjunto)183. Assim sendo, cabe ao agente público integrar-se ao corpo social
multifacetado e multidisciplinar composto por diversos segmentos - associação de
moradores, registros de imóveis, judiciário, empresas, ONG’s, universidades,
organizações, etc., para atingir um propósito democrático, como refere Hermany,
cujas palavras vão ao encontro da realização do direito social condensado por meio
da ação da sociedade como fato normativo184, de que fala José Luis Bolzan de
Morais, no exercício de direito social puro e independente185:
É nesta ótica, de um direito produzido pela própria sociedade, uma regulação autônoma de cada grupo, alheia ao direito estatal, que Gurvitch pretende ancorar sua idéia de direito social, não apenas como regulação de uma parcela das relações sociais, tais as relações de trabalho ou as das questões relativas à seguridade social [...].186
183 Expressão utilizada por Gurvitch ao abordar o direito social. In: HERMANY, Ricardo. (Re)Discutindo o espaço local: uma abordagem a partir do direito social de Gurvitch. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2007, p. 284. 184 Fatos normativos “são fatos sociais que têm a capacidade de, por sua tão-só existência, apreenderem valores positivos e, assim, produzirem condições mínimas de justiça [...] deve, além da sua durabilidade temporal, ser, desde sua origem, penetrado por valores jurídicos e materiais atemporais”; “[...] ele deve poder se justificar como tal: os valores que ele encarna devem se justificar como valores positivos, se afirmar como atrelados à justiça e servindo ao ideal moral.” GURVITCH (1932), p. 129. Apud BOLZAN DE MORAIS, José Luis. A idéia de direito social: o pluralismo jurídico de Georges Gurvitch. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 42. Este conceito - fatos normativos - carrega a ideia de um valor jurídico e moral; são as ideés actions (ideias ação). BOLZAN DE MORAIS, op. cit., p. 41. 185 “[...] é puro na medida em que não busca recurso em uma sanção incondicionada e, é independente quando, em caso de conflito com o direito estatal, ele se coloca em igualdade com este.” BOLZAN DE MORAIS, op. cit., p. 50. 186 BOLZAN DE MORAIS, op. cit., p. 35.
86
Com efeito, o direito produzido na concretização da moradia nos loteamentos
irregulares, alheios às normas estatais, legitima-se como direito social fundamentado
na construção da cidadania e dignidade da pessoa humana, no espaço local,
conforme disposto no artigo 1º, incisos II e III da Constituição da República
Federativa do Brasil. É o empoderamento individual da realização do seu próprio
desenvolvimento.
Desse modo, as decisões do Estado-juiz, personalizado nos agentes públicos
e pessoas do Oficial Registrador Público e do Juiz Corregedor, representam a
interação do agente público e da sociedade, como entes do conjunto social, isto é,
indivíduos da sociedade. Sendo que o magistrado, no exercício das prerrogativas
legalmente possuídas, determinou em Portaria normas que permitiram a
regularização pretendida e sacramentou os atos com sua decisão. Como se sabe, o
juiz goza do princípio da independência e autonomia para tomada das decisões,
além de ser o órgão jurisdicional do estado mais próximo dos acontecimentos. Por
conseguinte, o magistrado local é a pessoa-Estado que tem melhores condições de
conhecer e fazer o diagnóstico dos problemas sociais e decidir sobre solução dos
problemas, gerando confiança e credibilidade, na busca do bem comum.
Ora, a ação que se espera do Estado-juiz está elucidativamente registrada no
enunciado do art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil (LICC)187, a saber: “Na
aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências
do bem comum.” Como se nota trata-se da norma moral tornada norma jurídica, na
medida em que os fins sociais e o bem comum trazem consigo conteúdo valorativo,
de que cuida a moral e a justiça, bem como referem-se “ao bem da sociedade
constituída, para proporcionar aos seus membros o desenvolvimento
especificamente humano, isto é, o bem da pessoa como tal.”188 Dessa maneira, o
bem comum não é uma noção abstrata, mas real, pois se constitui no bem pessoal
concreto de muitas individualidades, na medida em que só pode ser atingido por
meios empregados em comum.
187 BRASIL. Decreto-lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942. Institui a lei de introdução ao código civil brasileiro. 188 ULLMANN, op. cit., p. 97.
87
Assim, como explana Ullmann, são postulados do bem comum ação solidária
e autônoma, “porquanto o homem só pode realizar plenamente o seu
desenvolvimento pessoal em relação de comunhão solidária com os demais homens
e deles recebendo auxílio.”189 Por conseguinte, considerando-se a formação do
loteamento e constituição da propriedade precária, presentes no “Jardim das
Hortências”, como um direito social puro, fundamentado na ação do conjunto em
plena autonomia, deduz-se que o alcance do bem comum e solução do problema
somente será possível apoiando-se nesses mesmos fatores.
Realmente, a solução do problema, contaminado pela ação conjunta, passou
pela autonomia existente na função do Oficial do Registro de Imóveis, pessoa que
exerce constitucionalmente a atividade privada por delegação do Estado190. Esse
indivíduo, mesmo tendo uma função subordinada às disposições legais, possui
relativa autonomia condicionada à sua própria decisão, pois se assim não fosse
deixaria de ser uma atividade privada para retornar à esfera pública. Além disso,
como atividade denominada “extrajudicial”, mesmo submetido à norma e fiscalização
pelo Poder Judiciário, pelos órgãos competentes da Corregedoria-Geral da Justiça e
do Juiz Diretor do Foro da localidade, goza o registrador das mesmas prerrogativas
de autonomia e independência das suas decisões, sob responsabilidade civil, penal
e administrativa pessoal, bem como deve promover a interpretação e a aplicação da
lei para atender os fins sociais e promover o bem comum, a exemplo do magistrado.
A contrario sensu, restaria impossibilitada a adoção das medidas que foram
legitimadas e efetivamente implementadas para a regularização jurídica dos títulos
de propriedade, em nome dos adquirentes no caso do Jardim das Hortências, por
serem, de alguma forma, não previstas no direito positivado.
Assim sendo, torna-se incontestável que a regularização jurídica e emissão
do título de propriedade (matrícula do imóvel) em nome do comprador do lote
irregular, somente foram alcançadas com fundamentos nos princípios sociais: da
ação do conjunto social (solidário), da autonomia (subsidiaria), na realização do bem
comum.
189 ULLMANN, op. cit., p. 92. 190 Conforme art. 236 da Constituição brasileira.
88
3 A PERCEPÇÃO DOS ATORES SOCIAIS ACERCA DO PROCESSO DE
REGULARIZAÇÃO
3.1 Aspectos gerais sobre o desenvolvimento da pesq uisa empírica
Para superar uma análise meramente doutrinária, o autor buscou captar a
percepção de pessoas diretamente envolvidas com a problemática das
regularizações em Caxias do Sul, sendo várias delas participante do processo de
regularização do Jardim das Hortências. Desse modo, pela pesquisa empírica
buscou-se testar as hipóteses e chegar a novas conclusões a partir da experiência
dos atores, no campo da realidade social.
Dados e informações foram obtidos a partir de fontes diretas, de pessoas que
vivenciaram e têm conhecimento sobre a problemática, podem trazer diferentes
abordagens e entendimento, conduzindo a novos entendimentos sobre
procedimentos adotados, de modo a enriquecer e transformar em realidade as
iniciativas regularizadoras. A pesquisa orientou-se por uma concepção realista das
possibilidades jurídicas das regularizações e dos procedimentos regularizadores
com apoio na experiência de atores diretos do processo de regularização, bem como
na análise de documentos, legislação, portarias, ofícios, acordos, contratos, etc. Do
“ser” ao “dever ser”; do “real” ao ideal191.
A análise de documentos contemplou as atas das reuniões realizadas no
âmbito da Associação de Moradores do Jardim das Hortências e de reuniões
conjuntas entre organismos privados e públicos. Nesses documentos buscou-se
apreender como se desenvolveu a regularização e quais os instrumentos e
fundamentos jurídicos utilizados que permitiram a superação dos obstáculos
registrais. Além das atas, a matrícula da gleba, objeto da implantação do
loteamento, e as matrículas dos imóveis individualizados serviram para demonstrar
os procedimentos adotados e inovações jurídicas implementadas, a par de serem
documentos dotados de fé pública, portanto de validade inconteste. Por sua vez,
191 VIANNA, Túlio Lima. Roteiro didático de elaboração de projetos de pesquisa em direito. São Paulo: Jus2, 2003. Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina. Acesso em 01.11.2008.
89
com a análise da legislação municipal específica para regras de uso do solo e para
as regularizações foi possível detectar a dimensão do problema e as diretrizes da
política pública voltada à sua solução. Nesse contexto estão ainda inseridas as
portarias judiciais e os decretos municipais que contêm fundamentos e justificativas
para os procedimentos adotados.
Quanto às entrevistas, a seleção dos depoentes foi baseada no critério da
experiência pessoal (vivência) e na importância da respectiva função ou cargo em
relação ao problema, ou seja, são atores que estão ligados ao problema a partir da
sua constituição até a sua solução. Assim sendo, junto às pessoas que constituíram
a irregularidade, buscou-se obter a visão histórica do processo, bem como quais os
pontos positivos e negativos podem ser apontados para obter melhores resultados
em iniciativas regularizadoras. Ainda na seara do ente particular, a impressão do
empresário imobiliário foi considerada fundamental para o entendimento das
questões ligadas à implementação do loteamento regular em contraponto ao
irregular, enriquecendo assim o debate sobre o tema com uma visão própria.
Por sua vez, os agentes públicos entrevistados, tanto no âmbito do executivo
municipal quanto no do registro de imóveis, têm um papel decisivo na
implementação das regularizações e no encaminhamento da solução do problema,
daí a importância da sua experiência e opinião em relação às soluções
apresentadas.
As entrevistas foram realizadas pelo próprio autor, no decorrer do mês de
novembro de 2008, e não obedecem a um roteiro fixo; a conversa foi conduzida pelo
entrevistador com base nos problemas e hipóteses da pesquisa, com especial
atenção para as possibilidades de superar as barreiras registrais e melhorar o
desempenho das regularizações fundiárias, mas sempre permitindo amplo espaço à
espontaneidade dos entrevistados. Os depoimentos foram gravados, para assegurar
a fidedignidade das opiniões emitidas pelos entrevistados.
Os entrevistados pertencem aos seguintes segmentos:
a) Poder executivo municipal, como executor da regularização administrativa,
através do setor responsável pela regularização fundiária;
90
b) Poder judiciário, na esfera do registro de imóveis local, através do
responsável pela regularização jurídica;
c) Poder legislativo municipal, através de parlamentar conhecido por sua
atuação em temas da área habitacional;
d) Sociedade civil, pela representante da organização dos moradores, AMOBJH;
e) Iniciativa privada, através de empresário especializado na produção e
implantação de loteamentos regulares.
3.2 A regularização na ótica de quem atua no poder público e público não-
estatal
O poder público, ator primordial para a regularização fundiária, com
fundamento no art. 2º, da Constituição Federal, engloba os poderes legislativo,
executivo e judiciário, independentes e harmônicos entre si, devendo agir para
cumprir e fazer cumprir os objetivos constitucionais. Dentre esses, clama-se mais
diretamente pela atuação e performance do poder executivo, em virtude de ser o
espaço público em que se processam as fases192 da policy da regularização
fundiária aqui abordada. Mas a experiência demonstra que o judiciário e o legislativo
também exercem papel significativo para o êxito das ações regularizadoras. Por
exemplo, no espaço local e no âmbito judicial, viu-se que tem sido fundamental a
atuação do Juiz Corregedor permanente e do segmento extrajudicial que abrange o
serviço cartorial.
Nessa concepção, o poder executivo municipal, como órgão público
diretamente responsável pelo regramento das condições de uso do solo urbano e
fiscalização do seu cumprimento, sobressai-se na matéria. Como regra, a nível
municipal essa tarefa está ao encargo da Secretaria Municipal de Desenvolvimento
Urbano, cuja nomenclatura varia de cidade a cidade, porém em todas elas existem
órgãos assim assemelhados pela função. No âmbito desse órgão estão também as
192 Explica Schmidt que as fases das políticas públicas são: 1. Percepção e definição de problemas; 2. Inserção na agenda política; 3. Formulação; 4. Implementação; 5. Avaliação. SCHMIDT, João Pedro. Para entender as políticas públicas: aspectos conceituais e metodológicos. In: REIS & LEAL. Direitos sociais e políticas públicas: desafios contemporâneos. Tomo 8. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2008, p. 2315/2321.
91
definições e decisões relativas às obras civis, ou seja, os licenciamentos para as
edificações de casas ou prédios, bem como a imposição das regras e fiscalização do
parcelamento de solo. Não menos importante para os procedimentos
regularizadores tem-se o papel e a função exercida, especialmente no município
caxiense, pelo setor de regularizações fundiárias, órgão especializado na atividade,
que executa diretamente toda a tramitação documental, burocrática e levantamentos
técnicos necessários para as regularizações administrativas e jurídicas.
Outro agente público, de importância para as regularizações fundiárias, está
presente no poder legislativo. A Câmara de Vereadores é o foro de discussão e
aprovação das mais relevantes matérias que envolvem a cidade, como é o caso do
Plano Diretor Urbano e demais leis de uso do solo, bem como as legislações que
envolvem a policy regularizadora.
Ainda no enquadramento de ente público encontra-se o poder judiciário, o
qual na situação local e em relação ao tema, é presente na figura do Juiz
Corregedor permanente, cujo papel é fundamental nas regularizações, pois é a sua
autorização e decisão que permite a regularização jurídica da propriedade precária.
Especialmente no processo do More Legal, é da caneta do juiz diretor do foro que
depende o sucesso da regularização.
O espaço do poder público não-estatal é preenchido pelo oficial registrador,
cujo poder delegado e prestação de serviço público lhe confere o status de poder
extrajudicial. Tem ele a supremacia de tornar realidade a regularização fundiária por
meio da abertura da matrícula individual da unidade habitacional e emissão do título
de domínio correspondente.
No município de Caxias do Sul, por força da Portaria nº 052/91-DF, de 30 de
março de 1991, expedida pelo Juiz Diretor do Foro da comarca (corregedor
permanente), foi designado o Sr. Olintho Mendes de Castilhos, Oficial do Registro de
Imóveis da 1ª Zona de Caxias do Sul, para proceder articulação entre os órgãos
competentes da Administração Municipal e do Poder Legislativo com o fim de buscar
a formulação legal para a regularização de loteamentos, com a execução dos
procedimentos pertinentes. Tal determinação foi posteriormente re-editada na
92
Portaria nº 022/94-DF, de 30 de março de 1994, que permanece em vigor até os
dias de hoje. Na exposição de motivos consta disposição dos Poderes Executivo e
Legislativo municipais em regularizar as irregularidades, o interesse do Poder
Judiciário na prevenção de ações judiciais cíveis e criminais originadas de conflitos
de loteamentos irregulares, bem como a necessidade e interesse dos órgãos
envolvidos em dar continuidade aos procedimentos regularizatórios, beneficiando
elevado número de pessoas. Dessa maneira, ficou concentrada na pessoa do Oficial
Registrador a coordenação e orientação dos procedimentos de regularização, além
da prerrogativa de dar início aos processos e ordenar o trâmite dos mesmos.
Essa medida, eminentemente uma criação local, demonstra a realização do
princípio da subsidiariedade, contido nas ações autônomas do poder local, na busca
de soluções próprias para os problemas da cidade, tanto por parte do poder
judiciário quanto pelo executivo e legislativo. Da mesma forma, revestem-se desse
mesmo princípio as ações do registrador público que, na sua autonomia privada e
prerrogativa de legalizar o que antes fora ilegal, passa a determinar, orientar e
coordenar as ações dos poderes públicos institucionalmente constituídos.
3.2.1 A regularização na ótica de quem atua no pode r executivo municipal
Como referido, na municipalidade caxiense a policy das regularizações
fundiárias está na competência do Setor de Regularização Fundiária, da Secretaria
do Desenvolvimento Urbano, por isso nada mais adequado para elucidar e
expressar as ações do executivo nessa área do que a percepção desse órgão
especializado, cuja equipe, chefiada por bacharel em direito, compõe-se de um
topógrafo e dois auxiliares de topografia, duas estagiárias desenhistas e um auxiliar
escriturário. Desse modo, as informações aqui constantes foram prestadas pelo
chefe do mencionado setor, Bel. João Canton193.
Inicialmente vale referir que a equipe, ainda que conte com apoio dos demais
órgãos do executivo, aparenta tratar-se de um pequeno contingente frente à
193 Depoimento do Bel. João Canton, Chefe do Setor de Regularização Fundiária, prestado em 09.11.2008. O perfil do entrevistado está detalhado adiante, no Anexo A, fl. 141.
93
dimensão das irregularidades fundiárias no município. No contexto das ações do
departamento, cabe ao topógrafo e seus auxiliares o levantamento técnico dos lotes
a serem regularizados e, ao chefe do setor e seus demais colaboradores, a
montagem do processo de regularização, bem como a elaboração e
acompanhamento do processo judicial do More Legal do lote a regularizar desde sua
fase inicial, com a coleta dos documentos pessoais e outros, até a obtenção do
registro imobiliário do lote, momento que caracteriza a regularização fundiária
definitiva.
O setor articula-se com os demais órgãos da prefeitura especialmente com a
Secretaria de Planejamento Urbano, com o Cadastro Imobiliário, com a Secretaria
da Fazenda. Porém, afirma o servidor, “a ideia de uma coordenadoria que
aglutinasse esses organismos, a Coordenadoria das Regularizações Fundiárias
(COREL), com setores trabalhando em conjunto para agilizar e facilitar, não saiu do
papel”.
O denominado setor de regularizações nasceu com a SDU em 1985 e com a
Lei nº 3.292/88, que deu início aos processos de regularização no município, entre
os quais os do “Loteamento Jardim das Hortências”. Essa lei era limitada aos
loteamentos ali especificados e não está mais em uso, ao passo que “o processo de
regularizações e surgimento de loteamentos irregulares nunca pararam no
município”, explica Canton. Estima, ele, que haja atualmente em torno de 15mil lotes
irregulares e outras tantas irregularidades. Essas, não só em relação ao lote, mas
também quanto às benfeitorias edificadas nos mesmos.
O chefe do setor atribui como causa dos loteamentos irregulares,
principalmente, “a demanda por lotes populares”. Pois para ele, “o reflexo para a
carência está no loteamento irregular como meio mais rápido para aquisição da
moradia”. Realmente, os procedimentos para aquisição informal requerem pequena
quantia em dinheiro para o sinal de compra e parcelamento do saldo, aliado ao
estabelecimento de um simplório contrato de promessa de compra e venda, tendo
de um lado o comprador e de outro o responsável pelo parcelamento ilegal. Nesse
quadro, para o comprador interessa fugir do aluguel e demais despesas ao menor
94
custo e prazo possível, isto é, por meio da posse do imóvel onde construirá teto.
Enquanto que ao vendedor, interessa o lucro fácil e ganho com o ilícito.
O estudo demonstra que a população carente de moradia própria e que
possui condições de adquirir um lote irregular está situada na faixa de renda entre
quatro e sete salários mínimos e representa algo em torno de 48% da população
urbana em Caxias do Sul. Ou seja, trata-se de um mercado potencial de
irregularidades que a municipalidade deve estar atenta para incluir na sua agenda
de decisões.
As regularizações dos lotes individuais estão sendo implementadas via More
Legal, em que ocorre a manifestação do Juiz Corregedor permanente e o devido
processo legal. Além dessas regularizações de lotes, segmento em que estão
concentrados os esforços do setor, também a regularização das áreas viárias dos
parcelamentos irregulares é iniciada no órgão. Nesse processo, após levantamento
técnico e manifestação dos setores do planejamento urbano pela viabilidade, por
meio de uma certidão contendo o memorial descritivo das áreas das vias e áreas
públicas e um requerimento do Prefeito Municipal dirigido ao Registrador Imobiliário,
procede-se a abertura da respectiva matrícula dos espaços de circulação e uso
públicos, considerando que são áreas públicas por destinação.
O responsável pelo setor entende que, “a burocracia e exigências para o
parcelamento são grandes e os proprietários rurais são seduzidos pela valorização
da terra, o que resulta em aumento das irregularidades”. Acrescenta que “com a
expansão do perímetro urbano recentemente foi possível incrementar o uso do More
Legal para as regularizações, tendo em vista que quase todos os loteamentos
irregulares existentes estão, agora, incluídos no perímetro da cidade”, o que abrange
alguns condomínios fechados que passaram a ser considerados parcelamentos
irregulares.
Quanto à organização social (indicador da solidariedade), a maioria dos
loteamentos irregulares possui alguma forma associativa de moradores, que serve
como elemento para as reivindicações, porém a ausência da associação não é fator
impeditivo desde que o loteamento tenha sido lançado no cadastro imobiliário do
95
município. Informa o entrevistado que “esse lançamento é feito por vistoria do órgão
público no local, após lançado, o imóvel passa a recolher IPTU e está apto a pleitear
a regularização através do More Legal desde que o morador tenha escritura pública
de fração ideal registrada, nos demais casos dependem da ação de usucapião”.
O chefe do setor demonstrou sua preocupação quanto à necessidade de
estancar ou evitar o surgimento de novas irregularidades, pois reconhece que a
regularização de 3.000 lotes é incipiente para a solução do problema. Afirma ele: “no
ritmo em que são feitas as regularizações, nunca vão alcançar a solução, penso que
teria que existir uma medida mais efetiva para impedir o surgimento de novos
loteamentos irregulares”. Reconhece o entrevistado que “não há estrutura para
fiscalizar, pois quando a Prefeitura toma conhecimento do parcelamento, a situação
já está consolidada e o parcelador já sumiu, deixando os moradores necessitados da
regularização e o ônus para a municipalidade regularizar e concluir o loteamento”.
Na busca de elementos facilitadores para as regularizações, o setor de
regularização e o registrador imobiliário obtiveram junto ao Juiz Corregedor
permanente autorização para que sejam lavradas escrituras de fração ideal para as
situações consolidadas. Esclarece o chefe do setor que “a Ordem de Serviço nº
002/08-DF, do Juiz Corregedor que permite a escritura de fração ideal, vai contra o
Provimento nº30-CGJ de 1988, que impede a escritura de fração ideal”. Essa
afirmação reforça a ideia desse trabalho sobre a importância da decisão local,
fundamentada na autonomia e subsidiariedade, a qual torna possível realizar algo
que não era permitido. A escrituração de fração ideal possibilita o acesso e o
enquadramento de maior número de moradores no More Legal e maior número de
regularizações. Para as situações em que não se localize o loteador ou o
proprietário da gleba a fim de outorgar as escrituras, solucionáveis apenas com a
usucapião, “estuda-se a proposta de que seja nomeado um curador especial de
regularizações com poderes para outorgar referidas escrituras”, esclarece ele.
O entrevistado reconhece que são necessárias medidas para facilitar e
simplificar os procedimentos regularizadores. Refere, ainda, à intenção do
registrador apresentar proposta ao juiz corregedor para que seja autorizada a
regularização por escritura pública, sem necessidade da intervenção jurisdicional
96
que ocorre no More Legal. Explana textualmente: “nos próximos dias o Sr. Olintho
irá propor que se façam as regularizações por escritura pública, para evitar o More
Legal e para facilitar e agilizar os procedimentos”. Nessa construção, o tabelião de
notas, portador da fé pública de ofício, poderá lavrar o instrumento público
reconhecendo a situação consolidada e fazendo a individualização e descrição
pormenorizada do lote objeto da regularização, que será acolhida a registro,
encerrando o processo regularizador com a expedição do título de propriedade.
De fato, esse seria um importante passo no sentido da simplificação dos
procedimentos e sua viabilidade e possibilidade de existência não está longe dos
acontecimentos, como se torna evidente em estudos jurídicos e na minuta de projeto
de lei do instrumento de usucapião extrajudicial194. Além disso, essa elaboração é
perfeitamente plausível, especialmente frente à tendência de desafogo do judiciário,
presente no direcionamento ao tabelionato de notas das partilhas de bens nos
inventários, separações ou divórcios, conforme Lei nº 11.441/2007.
De outra banda, levando-se em conta as palavras de Schmidt a respeito das
fases da policy, em que destaca a importância da fase avaliativa195, indagou-se
sobre a efetividade, a eficácia, a eficiência e a legitimidade do setor de
regularizações fundiárias, utilizando-se as perguntas: a política formulada foi de fato
implementada? Os resultados esperados foram alcançados? Qual o montante dos
recursos investidos para alcançar os resultados? E, qual o grau de aceitação da
política por parte dos beneficiários?
Respondendo essas questões, o servidor diz que, quanto à efetividade a
resposta é sim, a política foi implementada e ainda está em ação, quanto à eficácia,
a resposta positiva do entrevistado fica prejudicada, pois afirma paralelamente que
não existem metas a serem cumpridas. Assim sendo, prima facie, tecnicamente não
há como responder essa questão, pois a regularização de quase três mil lotes em
nove anos, por meio do More Legal, não significa êxito ou fracasso no alcance de
194 Conforme Boletim Eletrônico nº 3458, ANO VIII, São Paulo: IRIB, 2008. Disponível em: <http://www.irib.com.br>. Acesso em: 13.11.2008. 195 SCHIMIDT, João Pedro. Para entender as políticas públicas: aspectos conceituais e metodológicos. In: Direitos sociais & políticas públicas: desafios contemporâneos. Tomo 8. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2008, p. 2321.
97
metas, pois, não havendo metas definidas ou expectativas de resultados, não há
como fazer comparação e, consequentemente, avaliação da eficácia.
Por outro lado, não se pode deixar de ver o otimismo que substitui a ausência
de metas pela suficiência do serviço, colocado à disposição dos que lhe procurem.
Nesse raciocínio, não há o risco da frustração dos objetivos, pois se apenas um lote
for regularizado será contabilizado como resultado positivo. Ainda que não se tenha
um parâmetro exato, pode-se dizer que o razoável número de uma regularização por
dia, média que tem sido alcançada pelo setor de regularização fundiária da
municipalidade caxiense, pode ser considerado como demonstrativo de eficácia
positiva, contabilizando-se a demora do processo no judiciário e a falta de procura
pela regularização como ingredientes negativos a melhores resultados. Para
contrapor a isso, é necessário, então, retirar do judiciário e melhorar a divulgação ou
ir ao encontro das dificuldades, talvez seja melhor solução para melhores resultados.
Justamente, esse é o entendimento do responsável pelo setor tendo em vista
que a estrutura funcional é enxuta e depende da procura pela regularização por
parte das pessoas interessadas. O setor não obedece à prática de ir atrás do
problema, mas sim, de enfrentar o problema que aparece. Além disso, nem todas as
irregularidades existentes podem ser solucionadas por meio do More Legal, que
depende da existência da área ideal devidamente registrada. Na análise do
entrevistado, nesse quesito, o leque de enquadramento precisa ser ampliado e
justamente as alterações que pretendem implementar, por meio de escritura pública
de regularização, poderão melhorar os resultados positivos.
Na avaliação da eficiência, a resposta do entrevistado, em relação aos
recursos investidos no setor para alcançar os resultados, resta prejudicada uma vez
que o responsável não dispõe dessa informação. Além disso, afirma que o custo do
departamento está incluído no orçamento geral da SDU. Assim sendo, essa uma
resposta eminentemente técnica, fica incompleta, pois não existem meios de
mensurar o custo do setor de regularizações fundiárias para a Prefeitura Municipal.
Assim, não pôde responder o quanto custam para os cofres públicos caxienses as
regularizações fundiárias.
98
Por último, a resposta quanto à legitimidade pode ser considerada
satisfatória, se levar em conta aquelas pessoas que procuram pela regularização e
que se enquadram nos requisitos para tal. Na avaliação do entrevistado, a
legitimidade é muito boa, tendo em vista que a procura é constante. Porém, se
considerar a amplitude do problema e aqueles que estão de alguma forma excluídos
da solução, a resposta é a carência de legitimidade, pois deveria ser um programa
mais abrangente, por certo.
Perguntado sobre uma auto-avaliação, o entrevistado considera satisfatória a
atuação do setor e para melhorar e facilitar as regularizações, ele entende
dispensável a participação do poder judiciário, pois na forma atual do More Legal,
todos os processos devem passar pelo crivo do Juiz Corregedor e Ministério Público
e isso emperra e torna demoradas as soluções. Entende ele que a tramitação do
processo devia se limitar à prefeitura municipal, que é o órgão mais interessado na
solução do problema e o registro de imóveis, que é quem confere a juridicidade à
regularização. Isso poderia ser realizado exclusivamente na esfera administrativa, a
exemplo da forma utilizada para as regularizações das vias públicas que dependem
apenas do expediente da Prefeitura Municipal. Na sua manifestação, identifica,
ainda, a necessidade de maior divulgação pela Prefeitura Municipal para que as
pessoas, que dependem de regularizações, procurem o Setor responsável.
Quanto aos reflexos positivos, arrola o chefe do setor, como sendo o
benefício da Prefeitura no recolhimento de impostos como IPTU e ITBI, nas
regularizações das obras (INSS), benefício para o mercado imobiliário e para o setor
dos financiamentos habitacionais e imobiliários, e para o Registro de Imóveis com a
abertura de matrículas, registros das transferências de propriedades e de outros
negócios jurídicos de imóveis, como as hipotecas, as alienações fiduciárias e demais
contratos com o sistema financeiro.
Sintetizando, a percepção do poder público refletido pelo setor de
regularizações fundiárias demonstra o perfeito entendimento das dificuldades para
alcançar melhores resultados nas regularizações fundiárias, especialmente das
situações consolidadas e irreversíveis fundamentadas em contratos de aquisição de
frações ideais de imóveis em loteamentos irregulares. Ao reconhecer que as
99
irregularidades avançam mais rapidamente do que as regularizações conseguem
contrapor-se, o responsável sugere mecanismos para sustar a expansão irregular
mesmo sabendo que não existe essa ação mágica e que a busca pela moradia é um
direito natural do ser humano e o único meio de estancar essa busca é propiciar o
seu alcance.
Por outro lado, o entrevistado destaca ainda como a medida mais efetiva para
alcançar melhores resultados nas regularizações, a importância da simplificação e
facilitação do processo regularizador indicando o caminho do serviço extrajudicial
como o próximo passo nessa direção, bem como a maior divulgação do trabalho
para atrair os interessados. O exemplo das regularizações do loteamento “Jardim
das Hortências” e demais loteamentos efetivadas a partir do final dos anos 1980
servem para indicar o caminho da simplificação dos procedimentos e a necessidade
do reconhecimento das situações do fato social da propriedade precária consolidada
e irreversível. Esse indicativo resultou no More Legal, hoje, o principal instrumento
regularizador utilizado no âmbito estadual e no município caxiense. Entretanto, esse
mecanismo, na visão do administrador público, necessita de oxigenação e
modernização, retirando-se da esfera pública judicial a prerrogativa das
regularizações e transpondo-a para o setor privado aonde poderá obter maior
agilidade, eficiência e eficácia, e como consequência maior legitimidade, entre
outros benefícios ao bem comum.
3.2.2 A regularização na percepção de quem atua no registro imobiliário
De fato, é incontestável a importância do registro de imóveis na composição
das regularizações fundiárias pois sem a matrícula do imóvel não se pode falar em
lote regular. Nesse viés, a percepção do problema emanada por esse órgão, na
pessoa do titular do serviço imobiliário, é fundamental para o entendimento da
matéria e para a elaboração de qualquer solução que vise ao processo de
regularização fundiária, pois traz indicativos para superar as barreiras de entrada
que o direito imobiliário opõe aos processos de regularização, amplamente
debatidas no Capítulo I.
100
Desse modo, no município de Caxias do Sul, a pessoa mais indicada e
qualificada para prestar tais esclarecimentos e iluminar a questão é o titular do 1º
Ofício de Registro Imobiliário da comarca, Sr. Olintho Mendes de Castilhos196, para
quem “esse é um tema candente e, depois da corrupção, é o tema mais debatido no
Brasil”. Inicialmente, destaca que é assunto para ser tratado, debatido e solucionado
na situação do imóvel, ou seja, “deve ser apresentado perante o registro da situação
do imóvel, por força do art. 512, da Consolidação Normativa Notarial e Registral do
Rio Grande do Sul”, afirma.
Ressalta o Oficial que a sua participação pessoal e engajamento nas
questões relativas às regularizações fundiárias no município deve-se à determinação
do Juiz Diretor do Foro da comarca, Dr. Lívio Paulo Susim, que em 1991 nomeou-o
para essa função por meio da Portaria nº 051/91-DF. Esclarece que essa decisão do
pretório competente: “deu-se motivada pela situação anárquica e singular
efetivamente estabelecida no município” na questão dos parcelamentos do solo
urbano. Naquela oportunidade, conta ele, diversas entidades de Caxias,
especialmente a Câmara de Indústria e Comércio (CIC) e a União das Associações
de Bairros (UAB), procuraram o Juiz Diretor do Foro solicitando-lhe providências,
pois os adquirentes dos imóveis, normalmente pessoas de modesta renda, estavam
prejudicados em seus direitos na medida em que tinham um documento de
aquisição que não era reconhecido, como por exemplo, apresentavam na Prefeitura
Municipal um projeto para construção de casa e não era aceito, pois era um terreno
irregular. Fato que, segundo o registrador, demonstrava uma incoerência do poder
executivo municipal na medida em que, para recolhimento de tributos como o ITBI e
o IPTU, o imóvel não era considerado irregular e tinha sua avaliação para base de
cálculo feita plenamente em igualdade de condições aos terrenos regulares.
Além disso, relata o Oficial, os moradores irregulares apresentavam-se com
seus títulos precários nos agentes financiadores da casa própria e também eram
recusados no acolhimento porque o título não era hábil. Assim, precisavam ter seu
título formalizado com matrícula e registro, pois nas condições em que se
196 O Sr. Olintho Mendes de Castilhos, “Seu Olintho”, como prefere ser chamado e cujo perfil está adiante explicitado no Anexo A, fl. 142, concedeu esta entrevista no dia 14.11.2008, nas dependências do Registro de Imóveis da 1ª Zona de Caxias do Sul.
101
apresentavam não havia meios de os agentes financeiros aceitarem o imóvel em
garantia para financiamento. Por outro lado, prossegue Castilhos, as situações eram
irreversíveis e consolidadas, na maioria das vezes já existiam construções (da
moradia) e a Prefeitura Municipal exercia uma função meramente contemplativa e
não fiscalizadora como a lei impõe.
Dessa maneira, o Juiz Corregedor acolheu os pedidos formulados e
determinou em portaria a designação do oficial registrador para promover a
articulação e a formulação legal para a regularização de loteamentos irregulares,
com a execução dos procedimentos pertinentes. Posteriormente, a Portaria 022/94-
DF, da Juíza Corregedora Dra. Maria Olivier, re-editou a Portaria nº 052/91-DF, e
permanece em vigor até os dias atuais. Dessa maneira, restou instituído um
procedimento de regularizações que se tornou o embrião do Projeto More Legal, na
medida em que as escrituras de frações ideais passaram a ser acolhidas ao registro
e os registros de frações ideais passaram a ser convertidos, por retificação da
escritura, em matrículas de imóveis individualizados, mediante certidão expedida
pela municipalidade.
Relata Castilhos: “no início dos trabalhos de regularizações, antes do More
Legal, por combinação havida entre a SDU e o Registro de Imóveis, passou-se a
agilizar e produzir convenientemente bem a regularização de determinados
loteamentos de modo que, para aqueles [loteamentos] que tinham a escritura se
fazia uma retificação, dizendo que a intenção era vender a unidade autônoma, isso
em decorrência da regularização administrativa da municipalidade que emitia as
certidões de medidas e confrontações dos lotes”. Tratava-se da conversão da fração
ideal em unidade autônoma, aprovada pelo Juiz Corregedor. “Desenvolvemos na
época dezenas e dezenas de loteamentos”, e acrescenta,
Com o decorrer do tempo, houve outras dificuldades para regularizar loteamentos, ou porque a empresa loteadora não existia mais, ou porque pessoas físicas também não estavam mais aí, então passamos a olhar essa questão na regularização individual, porque o More Legal faculta a regularização do loteamento, do quarteirão ou do lote.
De maneira que, completa, “optou-se pela regularização do lote individual
porque essa pessoa já saía com seu título”.
102
Esclarece o registrador que a regularização pelo More Legal é possível tanto
para imóveis urbanos quanto para imóveis rurais, desde que nesses, a destinação
do imóvel não seja mais produtiva ou extrativa agrícola. No curso da sua
explanação, explica o Oficial, que não vê maiores problemas para a titulação,
inclusive das áreas de risco ou de preservação, pois isso representaria a
possibilidade de estabelecer negociação entre a Prefeitura Municipal e o proprietário
precário para sua remoção do local. Para ele: “a discriminação que existe quanto à
área de risco é muito relativa, pois hoje, com a engenharia, pode-se construir até
mesmo em penhasco”. Contudo, pelo Provimento da CGJ e legislação municipal não
é possível fazer-se a regularização da área de risco, não obstante para o registrador,
não se justificam esses impedimentos, pois como diz:
Há um princípio do Código Civil de que o ônus acompanha o imóvel, então eu não vejo maior problema em se titular essas pessoas que mantêm contratos, e que são essencialmente proprietários, e averbar nessa mesma matrícula essas circunstâncias fáticas do imóvel, para efeitos de terceiros, e a fim de que tenham o título e possam negociar com a Prefeitura uma remoção. Assim sendo, os proprietários precários têm que ter título para negociar com a Prefeitura. Ficaria muito estranho e incômodo eles terem que negociar com a Prefeitura em cima de contrato de fração ideal, pois a Prefeitura receberia uma área sem título em troca de área titulada, isso corrigiria uma situação, mas criaria outra, não desejada.
Pondera-se então, se esse princípio é admissível em relação às áreas de
risco, com mais razão pode ser estendido às demais áreas não oneradas, isto é, aos
lotes enquadrados nas normas urbanísticas básicas, ainda que irregulares, com o
que concorda o servidor.
Inusitado é o relato do Oficial a respeito do programa de loteamentos
populares do município:
No curso dessas ações nos deparamos com o maior dos absurdos, em que a Prefeitura Municipal mostrou-se a maior loteadora irregular do Estado, pois vendia lotes por meio de contrato de promessa de compra e venda, com mútuo e garantia hipotecária. Notam-se os seguintes absurdos, em primeiro lugar, a venda sem o loteamento estar registrado, em segundo, que mútuo é contrato de empréstimo em dinheiro e não de venda de imóvel, e em terceiro, a garantia hipotecária de bem imóvel somente pode ser conferida por instrumento público.
Com referência à regularização do loteamento “Jardim das Hortências”, em
que o proprietário da gleba passou a outorgar as escrituras dos lotes diretamente
103
aos moradores, sem a participação da empresa loteadora, modelo nesse estudo da
possibilidade de transmutar o fato moral em fato legal, lembrou o Registrador sua
participação direta no episódio, pois partira dele a iniciativa de reunir as partes
envolvidas e promover a formulação legal para a execução dos procedimentos
adequados. Com a intervenção do Oficial e ameaça de encaminhar o problema para
a via judicial criminal, prontamente foi acatada a elaboração que permitiu a outorga
das escrituras aos moradores. Da mesma forma, os obstáculos legais foram
suplantados pelo interesse do bem comum, sacramentado pela autorização judicial
do juiz corregedor que homologou o acordo então estabelecido, como declara o
entrevistado: “Os compradores não tinham nada a ver com a desavença entre o
proprietário e o parcelador e eram os que estavam sendo prejudicados”.
Perguntado se a tendência é facilitar as regularizações, o Registrador
responde: “Sabe-se que existe um projeto no Congresso Nacional em que dão uma
especial atenção às irregularidades, não tenho conhecimento do texto, mas acredito
que sim”, e completa: “existem cidades inteiras registradas como fração ideal e não
há individualização das unidades”. Cita ainda que a regularização das vias públicas
foi facilitada por requerimento, que as escrituras de fração ideal de situação
consolidada, que passaram a ser autorizadas pela Ordem de Serviço nº 002/08-DF
como instrumento para se habilitar ao More Legal, decisões que são mais uma
demonstração de que a simplificação dos procedimentos é o caminho natural da
regularização fundiária.
Perguntado se acredita que um procedimento totalmente administrativo, sem
necessitar do judiciário seria possível, o registrador afirma: “Eu acredito que sim,
pois a retificação de área, que era feita por procedimento judicial, foi deslocada pela
Lei 10.931 de 2004 para a via administrativa, no Registro de Imóveis, onde o Oficial
recebe o processo, faz o exame e mesmo decide sobre o assunto”.
Complementando:
Outro desafogo do judiciário são as partilhas em inventários, divórcios e separações que foram para a área notarial, também há notícias de que a usucapião também poderá seguir para a área notarial extrajudicial, desafogando o judiciário de uma forma expressiva. Então, considerando essa evolução e que as questões sociais atropelam as leis, considerando esses avanços e precedentes, nos tribunais e corregedorias, eu tenho a impressão que nós vamos avançar nesse processo e que esse exame será
104
feito pelo tabelião e pelo registrador, afinal o tabelião e o registrador têm fé de ofício, se não cumprirem as determinações legais, têm as sanções, então não vejo motivos para que assim não se proceda, evidentemente regrado pelo judiciário.
“A ciência do direito, se não levar em conta o fato social é vazia. É um
absurdo que a lei não tenha encontrado até hoje um meio de regularizar os imóveis”,
enfatiza o entrevistado.
Assim sendo, pouco resta para complementar essas tão lúcidas e objetivas
observações que em muito enriquecem este trabalho, especialmente tendo em vista
a autoridade do Sr. Olintho Castilhos, aliada ao profundo conhecimento jurídico e
prática da matéria.
3.2.3 A regularização na percepção de quem atua no poder legislativo
municipal
“Esse assunto é muito importante e me interessa muito”, assim respondeu o
vereador Francisco Spiandorello197, ao convite que lhe foi feito para abordar o tema
e conceder esta entrevista.
Com a finalidade de contemporizar e contextualizar a matéria, inicialmente
foram colocados alguns fatos ligados à regularização fundiária no município
caxiense, entre os anos 1980 e 1990, cujos reflexos perduram e se propagam até os
dias de hoje. Como por exemplo, os resultados alcançados, de regularizar cerca de
cinco mil lotes dos vinte mil lotes irregulares detectados em 1988, são singelos se
comparados à extensão do problema, que mostra a ampliação de outras quinze mil
irregularidades no mesmo período.
Além disso, o setor de regularizações do município reconhece que nesse
ritmo não consegue solucionar o problema. Por sua vez, a policy municipal de
moradia, implementada via FUNCAP, é preponderantemente no sentido do
197 O vereador Francisco Spiandorello (PSDB), concedeu a entrevista no dia 19.11.2008, no seu gabinete junto à Câmara Municipal de Caxias do Sul. Maiores referências em relação à sua pessoa e sua atuação pública estão adiante explicitadas, no Anexo A, fl.142.
105
atendimento das necessidades de moradia das famílias de renda de até três salários
mínimos, enquanto que o segmento com rendimentos acima de oito salários
mínimos é canalizado pela política habitacional para o setor financeiro, o qual não
tem limites para investimentos. Desse modo, os cidadãos situados na faixa entre
três e oito salários mínimos, que representam ao redor de 48% dos moradores da
cidade, tornam-se os clientes da informalidade e alimentam a expansão das
irregularidades, pois não têm acesso a financiamentos que aceitam comprometer
tão-somente 20% da renda, e requerem imóveis registrados.
Por último, a regularização do “Jardim das Hortências” demonstrou a
possibilidade da autonomia do registrador público para proceder as regularizações e
tornar o fato social em fato legal, desde que homologado pelo juízo competente,
ambos sob o princípio da subsidiariedade, bem como a facilidade documental como
um dos fundamentos para a agilidade do processo, desde que obtida a certidão
autorizadora do executivo municipal.
Nesse quadro, em que o legislativo local tem papel importante, pode-se
perguntar inicialmente, na visão do vereador, qual é a situação do parlamento frente
à questão da regularização de loteamentos no município?
O conhecimento do vereador na matéria é notório e sua experiência idem,
especialmente pelo fato de que já esteve no exercício do poder executivo, como
Secretário Municipal, e atualmente integra o legislativo como parlamentar. Assim
sendo, tem a perfeita visão do poder público em ambos os segmentos. Inicia
dizendo que, quando no executivo municipal, teve oportunidade de implementar um
plano habitacional para famílias com renda de até três salários mínimos e produziu
diversas regularizações e quatro mil unidades em loteamentos populares, com
módulos residenciais de 40m2, dotados de infraestrutura básica, escola e serviços.
Na época, a prefeitura iniciou ações de regularização e algumas foram concluídas
na gestão de que fez parte. Cita os loteamentos: Reolon, Arcobaleno, Jardim das
Hortências, Diamantino, Bom Pastor, Vila Leon, Cabos e Soldados, entre outros.
Enquanto no legislativo, teve oportunidade de votar e aprovar leis de uso e
parcelamento do solo urbano e planos diretores, bem como programas de
regularizações, além da aprovação legislativa de loteamentos regularizados.
106
Na exposição do vereador, esses são fatos que demonstram a falta de
prioridade e da vinculação das verbas orçamentárias para a moradia. Aponta que o
orçamento público é o ponto nevrálgico das políticas públicas e que somente com a
priorização das ações, por meio da destinação dos recursos em orçamento, pode-se
garantir a mudança no quadro. “Qualquer ação depende da inclusão no orçamento”,
declara. Cita como exemplo a educação e a saúde que se modificaram somente a
partir da vinculação do orçamento em 15 a 25%, na esfera federal, estadual e
municipal. Para o parlamentar: “No mínimo 5% do orçamento deveria ser destinado
à moradia em todas as esferas políticas”. Aponta ainda que programas
emergenciais, como por exemplo, o “banco de materiais”, mutirões e regularizações
pontuais não consegue suprir deficiências históricas.
Nesse viés, manifesta que “hoje a intervenção tem que ser rápida, pois está
atrasada em trinta anos, porque se tivessem acordado trinta anos atrás, não
teríamos esses problemas”. Completa dizendo que: “Então o poder público cria
problemas para ele mesmo”. Em seu diagnóstico, a municipalidade deve antecipar-
se aos acontecimentos e sair da passividade, “tem que ser ativo com a sociedade e
dar soluções à frente dos acontecimentos, tem que ser inteligente”. Alerta que: “A
passividade do poder público é prejudicial e ele tem que interagir com a
comunidade”.
Continuando a análise das ações no âmbito do executivo, o edil sugere
algumas mudanças que defende em sua plataforma legislativa, as quais, como se
verá, parecem convergir para o princípio da subsidiariedade, tema deste trabalho.
Entende ele que as ações de regularização fundiária, com recursos do orçamento,
devem ser integradas no seio do poder executivo, isto é, as diversas secretarias
municipais devem trabalhar em conjunto sob uma mesma coordenação e sob
orientação (subsidiária) de um conselho com a participação de todos os segmentos
interessados, assegurados o assento dos cidadãos. “Precisa fazer um grupo de
trabalho com interação das outras secretarias para uma resposta mais imediata”, diz
o vereador.
107
Além disso, a municipalidade deve “ampliar as ações e parcerias”, deve criar
uma legislação própria e “a universidade tem que ser chamada para esse campo”,
pois ressalta, “o processo deve ser multidisciplinar envolvendo pessoas com
conhecimento, formação e que possam apresentar soluções rápidas”. A participação
da iniciativa particular é uma das bandeiras, como afirma: “Temos que chamar a
iniciativa privada não só para fazer loteamentos, mas também para a regularização
fundiária”. Para o vereador, “precisamos fazer com que o poder público, através de
licitações e meios legais, comece também a transferir para a iniciativa particular essa
tarefa”. Justifica que, “em última instância quem está pagando a regularização e tem
interesse nisso é o próprio pretenso proprietário, ele tem interesse em pagar e
colocar em ordem, ele faz sacrifício e paga”. Completa dizendo, “é lógico que o
poder público tem que subsidiar, mas para ter rapidez e agilidade, temos que fazer
isso”.
A respeito da atuação do legislativo, o parlamentar considera que a casa tem
feito um bom trabalho, como exemplo cita a legislação do uso do solo e o plano
diretor urbano de 2007, ambos com avanços sociais adequados ao Estatuto da
Cidade e às legislações específicas do código de obras e da destinação do lixo
urbano e industrial que são exemplares a nível nacional. Entretanto, confrontado
com a Lei nº 6.810, de 20 de dezembro de 2007, que disciplina o parcelamento do
solo urbano e a regularização fundiária no município, a qual nos seus oitenta e
quatro artigos não trata da regularização fundiária198, e perguntado se os vereadores
estão preparados para as discussões e votações algumas vezes eminentemente
técnicas ou jurídicas. Ele justifica dizendo: “realmente, o legislativo não tem o
assessoramento técnico que o executivo dispõe”. Reconhece que os vereadores
devem-se preparar melhor sobre os temas. Sobre isso, lembra que as viagens de
estudo e participação em eventos de conhecimento por parte de vereadores sofreu
intensa crítica em setores da sociedade, em função dos desperdícios e desvios
praticados em alguns municípios. Por isso, essas iniciativas foram reduzidas,
inclusive no legislativo caxiense, “muito embora esses escândalos não tenham
ocorrido nesta Casa”, completa.
198 Salvo os conceitos da regularização fundiária de interesse social e regularização fundiária de interesse específico, dispostos no art. 4º, IV e V, respectivamente.
108
Por outro lado, pondera o entrevistado: “é do debate e da discussão que
surgem boas leis”, cita como exemplo, o Plano Diretor vigente que tramitou dois
anos para aprovação após ampla discussão em audiências públicas. O mesmo
tratamento deve ser dado às demais leis, diz ele. Ressalva: “A lei por si só não
garante sua execução, temos milhares de leis que não adiantam nada porque não
têm ligação com a realidade”.
O edil explica que: “o trabalho do legislativo não é somente fazer leis, cuidar
do cumprimento das leis, da fiscalização do executivo e derrogar leis não cumpridas
ou desnecessárias” são atividades que fazem parte das suas funções. Contudo,
afirma: “grandes questões não chegam na profundidade de conhecimento de
integrantes do legislativo”. Aponta como aspecto relevante e influente nas votações
as convicções e os compromissos do legislador com o grupo político e o eleitor que
lhe elege.
Perguntado sobre qual o papel que o legislativo pode desempenhar nas
regularizações fundiárias, o vereador responde que, nesse propósito, a principal
tarefa parlamentar é fiscalizar o poder executivo e a aplicação das leis, mas
principalmente, “levantar o debate sobre o tema, promover a discussão para
encontrar alternativa e mobilizar a comunidade”. Explica que por força da limitação
de competência “as leis que dão despesa não podem ter origem no legislativo”,
assim lhe resta apreciar e votar as leis que forem e se forem encaminhadas pelo
executivo. Reclama que, “pelo sistema vigente, o legislador não conseguiu se situar
comunitariamente. Na cabeça do povo é tudo com o executivo, é o que tem a
máquina, é o que tem o dinheiro, é o que faz! O povo quer saber quem faz!”. Assim,
a participação da Câmara no processo legislativo das regularizações, propriamente
dito, tem sido examinar e aprovar as leis específicas, em relação à matéria,
encaminhadas pelo executivo. Especialmente aquelas de aprovação dos
loteamentos e as de diretrizes orçamentárias do município para a execução das
ações.
A manifestação do vereador deixa claro que a limitação para propor algumas
espécies de leis, como aquelas voltadas às regularizações fundiárias, é uma
dificuldade para o exercício do legislativo, pois não pode mexer no orçamento que é
109
o espaço onde são viabilizadas as ações regularizadoras. Ressalva a possibilidade
de o vereador apresentar emendas ao orçamento, mas a aplicação dessas emendas
depende da vontade do executivo, pois, não as querendo, pode transferir os
recursos da emenda para outra finalidade. Relata o entrevistado: “durante oito anos
como oposição nenhuma emenda minha foi aceita. Diziam que só vale o que estiver
no Orçamento Participativo, o que não estiver não é aceito.” Por outro lado, lembra
que o orçamento deliberado nas comunidades não apresenta a moradia como
prioridade, pois as carências são tantas na área da saúde, segurança e
infraestrutura básica, que as escolhas são canalizadas para esses segmentos.
Completa dizendo: “desconhecem que essas carências têm como uma das fontes a
falta da moradia digna”.
Perguntado como deveriam ser as ações e legislação municipal voltadas a
facilitar e melhorar os resultados das regularizações e diminuir a demanda por lotes
irregulares, o edil declinou alguns aspectos fundamentais relativos ao legislativo, ao
executivo e à sociedade civil que, a seu ver, precisam ser equacionados. O primeiro
deles diz respeito aos próprios vereadores que, “precisam estar integrados, tratando
com a Universidade, tratando com os intelectuais, tratando com o empresariado e
com os trabalhadores para ter o conhecimento e equilíbrio necessário para apreciar
a matéria”. Em relação ao executivo, disse que ele precisa definir prioridades, incluir
o tema no orçamento para aprovação no plenário e transferir competências. Por sua
vez, a sociedade deve assumir cada vez mais a tarefa, não só da implantação de
loteamentos, mas também, da regularização, sempre em conjunto e sob orientação
do Poder Público.
Quanto à legislação e ações propriamente ditas, o vereador entende que a lei
de implantação de loteamentos deve definir requisitos menos exigentes que os
atuais para diminuir os custos, “se não o povo não consegue comprar”. Disse que o
loteador deve ter obrigações essenciais para cumprir, mas não dá para exigir
requintes, pois vão continuar existindo irregularidades porque as pessoas não
conseguem comprar o lote legal. O entrevistado destaca que a legislação pode
estabelecer condições especiais e estender benefícios, inclusive fiscais, como
incentivo e meio de atrair a iniciativa privada para atender a demanda e operar
nesse nicho de mercado.
110
Nesse sentido, refere o parlamentar que medidas para suprir a escassez de
recursos, entre as quais a fiscalização tributária e a diminuição dos impostos podem
servir para aumentar a arrecadação, na medida em que podem retirar a economia
informal da clandestinidade e diminuir a sonegação formal. Cita como exemplo a
legislação de Minas Gerais e de São Paulo, onde a redução de impostos dobrou a
arrecadação. Com mais recursos o executivo pode assumir mais tarefas e, inclusive,
subsidiar a moradia.
Ainda na questão do uso da legislação como incentivo à ação da iniciativa
particular, lembra que é possível estabelecer condições especiais, além dos
benefícios fiscais, para o loteador privado atender a demanda das diversas classes
de renda, como por exemplo, determinar percentuais nos lotes do loteamento de 5%
para baixa renda e de 25% para media renda. Ou ainda, para cada loteamento de
alta renda, o loteador poderá implantar número determinado de loteamentos
populares ou sociais, e assim por diante.
Havendo recursos, o vereador sugere lei que determine ao executivo
implementar loteamentos não só para famílias com renda abaixo dos três salários
mínimos, mas, também, para o segmento até sete salários mínimos. Justifica
dizendo que assumir as irregularidades e concluir loteamentos inacabados ou ilegais
sai mais caro para a população do que a prefeitura executar projetos específicos
para cada faixa de renda, desde o início. Para tanto, a municipalidade pode fazer
parcerias com proprietários de glebas dispostos ao parcelamento, chegando antes
que o loteador clandestino e evitando sua ação, ou seja, antecipando-se ao
problema. O executivo pode, ainda, transferir essa parceria para a iniciativa privada,
deixando-a executar o empreendimento.
Declinando, por fim, que o legislativo estará sempre pronto para dar a
resposta que lhe for solicitada, desde que o poder público executivo encaminhe as
propostas legislativas.
111
3.3 A regularização na visão da comunidade local e da iniciativa privada
“A situação de vários municípios brasileiros pode ser considerada angustiante
se for levado em conta a falta de recursos pessoais e qualificado para realizar seus
projetos.”199 Com essas palavras, Hugo Thamir Rodrigues e Priscila Rettenmaier
justificam a necessidade desses entes federativos partirem para ações conjuntas e
união de esforços entre si, com exemplo na regionalização de ações, para
superarem deficiências. Nesse rol é possível incluir ações com a comunidade
organizada e a iniciativa privada, por meio de parceria ou transferência de
atribuições. Nota-se nesse enfoque a presença, novamente, dos elementos de
solidariedade e subsidiariedade na realização do bem comum.
Desse modo, é importante obter a palavra do segmento de moradores de
loteamentos irregulares, bem como do setor da iniciativa privada que visa à
exploração econômica de parcelamento urbano, para incluir no rol das
possibilidades os anseios e dificuldades que a seus olhos aparecem.
3.3.1 O fortalecimento solidário na comunidade loca l como fonte da realização
da moradia
A regularização do “Loteamento Jardim das Hortências” pelo ineditismo de
providências e soluções encontradas, serve de modelo para as ações
regularizadoras, por isso, captar a impressão da comunidade local deve estar
incluída nesse trabalho e auxiliar para a compreensão da essência do problema.
Nesse propósito, segue a entrevista realizada com a presidenta da Associação dos
Moradores do Jardim das Hortências, Srª. Vanir Teresinha Dalzotto Costa200.
Relata que é moradora no local desde março de 1982 e que viu nascer o
bairro cujo único serviço público disponível era o recolhimento de lixo, duas vezes
199 RODRIGUES, Hugo Thamir; RETTENMAIER, Priscila. Convênios e consórcios municipais: instrumentos de harmonização de políticas públicas tributárias. In: Direitos sociais & políticas públicas: desafios contemporâneos. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2008, p. 2508. 200 A entrevista com a Srª Vanir Teresinha Dalzotto Costa foi concedida no dia 21.11.2008, na sua residência no Bairro Jardim das Hortências. O perfil da entrevistada está adiante, no Anexo A, fl. 143.
112
por semana iniciado em 1983, mas que não tinham água, esgoto, luz e calçamento.
Conta que a luz precária alcançou parte do bairro e foi colocada em 1982, mas o
transformador não garantia o fornecimento regular com constantes “apagões”,
situação que foi regularizada a partir de 1985.
O transporte coletivo só chegou ao “Jardim das Hortências” em 1991 e,
segundo a presidenta, é de grande importância para a vida comunitária. Descreve
que, antes disso, os deslocamentos das pessoas eram feitos com auxílio prestado
entre os moradores, por meio de carona em veículos particulares ou
compartilhamento em veículos de aluguel. Pode-se aqui apontar elementos que
fortalecem o capital social e as redes de relacionamento baseado na mútua
confiança, também componentes essenciais na solidariedade.
Prossegue dizendo a presidenta que os moradores ficaram quatro anos sem
receber qualquer serviço básico por parte da municipalidade, o que gerou um
sentimento de abandono nos moradores, completa a entevistada: “nós somos
abandonados até hoje pelo poder público”. Solicitada a esclarecer melhor, explica:
“com essa divisão da cidade em microregiões, nós pertencemos ao Bairro Cruzeiro,
o que não nos ajuda em nada, pois aquele bairro, por ser maior que o nosso quer
tudo pra si, e nós, porque somos um bairro pequeno, ficamos em segundo plano e
não temos por perto um bairro para trabalhar em parceria”. Estas divisões
administrativas tem sido objeto de crítica constante das associações de bairros e
bairros próximos tentam modificar essa situação, comenta.
O abastecimento de água era feito em um poço comunitário e captação de
água da chuva, posteriormente o bairro foi abastecido por caminhões particulares e
o fornecimento de água encanada foi implantado em 1985, após mobilização dos
moradores junto ao Serviço Municipal de Água e Esgoto (SAMAE). O acordo
estabelecido resultou no pagamento dos custos divididos, 50% para os moradores e
50% para a autarquia. A pavimentação do loteamento veio em 1998, também pela
movimentação e contribuição dos moradores que fizeram o calçamento das
principais vias locais, faltando pouca coisa para completar o serviço, informa a
entrevistada. A principal participação da comunidade dá-se por meio do Orçamento
Comunitário (antes Orçamento Participativo), onde conseguiram a pavimentação do
113
restante do loteamento sem que houvesse necessidade de complementação paga
pelos moradores.
Quanto à faixa de renda dos moradores, assevera a presidenta, é constituída
por trabalhadores na indústria com renda entre cinco e oito salários mínimos e que
todos os moradores têm sua casa edificada, a maioria com carro próprio.
Respondendo sobre o nível de organização social, esclarece que o bairro, além da
AMOB e de grupos religiosos, conta com um Clube de Mães, apontado como o mais
ativo das entidades locais, e a Associações de Pais e Mestres da Escola Municipal.
Além disso, a AMOBJH é filiada à União das Associações de Bairros de Caxias do
Sul (UAB). No quesito educação, ela informa que a maioria dos moradores possui
nível escolar médio e técnico, enquanto filhos de moradores frequentam a
universidade caxiense.
Comentando a regularização, a entrevistada esclarece que ainda não tem a
escritura do seu imóvel, alega que há dois anos, quando tentou fazer, enfrentou
dificuldades em função da negativa da prefeitura em dar a certidão do lote alegando
a necessidade do registro da benfeitoria, esse registro, por sua vez, também era
difícil por falta da planta da obra, cuja execução fora feita pela própria moradora.
Assim, em razão dessas dificuldades, a presidenta e outros moradores na mesma
situação acomodaram-se e ainda não obtiveram seu título de propriedade. Desse
modo, atribui a falta de regularização de alguns lotes tão-somente à situação de
comodidade e/ou por falta de recursos para legalizar sua propriedade, cujos custos
andam ao redor dos dois mil e quinhentos reais (R$ 2.500,00) por conta do ITBI e
despesas cartorárias com escritura e registro.
Ademais, entre as dificuldades para regularizar afirma a moradora: “a maior
parte é falta de informação do que de documentos, inclusive falta de informação de
como alcançar tais e quais documentos”. Complementa dizendo que essa situação
vem desde a aquisição, refere, “em primeiro lugar a falta de informação pelo
vendedor, pois ao quitar, muitas pagaram à vista e algumas em doze meses, e não
foram informados das irregularidades. Depois, a falta de informação pela prefeitura
também contribuiu para a demora nas regularizações”. Assim sendo, estima que
quase um terço dos moradores ainda não dispõem do título de propriedade, muito
114
embora há vinte anos todos paguem IPTU, cujo valor médio atual é de R$250,00 por
terreno, como afirma. Isso significa que em IPTU o loteamento contribui com algo em
torno de R$ 60.000,00 anuais, em contrapartida, a municipalidade investiu nas
pavimentações R$ 100.000,00 em três anos, o que para a presidenta “é muito pouco
investimento”.
No âmbito da cidadania, o “Jardim das Hortências” possui em torno de dois
mil eleitores e, informa a moradora: “tem três urnas que ficam localizadas na Escola,
único prédio público local”. Votam ainda no bairro os moradores da redondeza, pois
os bairros Capivari e Vila Telles não têm urnas de votação. Quanto à representação
do bairro no legislativo, afirma a presidenta que não há vereador específico que seja
prioritário ou identificado com o loteamento, “em época de campanha eles
aparecem”, afirma.
Perguntada sobre a relação de união e mobilização entre os moradores, a
presidenta responde: “no início eles trabalharam e se mobilizaram mais e hoje estão
mais acomodados”. Acrescenta que, “todas as melhorias no local somente foram
alcançadas pelo esforço comum de todos na busca dos mesmos objetivos e com
muita presença e pressão junto aos órgãos do município”. Destaca que as mulheres
são as que mais se mobilizam, “nós temos um grupo muito grande de mulheres que
começaram em 1993 a se reunir, inicialmente com o número de dezesseis mulheres
e até hoje temos uma solidariedade muito grande entre nós”. Assegura que como
presidenta (mulher) não tem encontrado dificuldades em trabalhar, sempre obtendo
sucesso nos abaixo-assinados e demais mobilizações da comunidade. Acrescenta
ela: “se convocados eles comparecem, nem que seja para criticar”.
Desse modo, após a entrevista, restam bastante claros alguns aspectos que
marcam a vida da comunidade. Primeiramente o segmento social que desenvolveu o
loteamento está enquadrado na faixa dos três a sete salários mínimos, composto por
pessoas jovens e idade média, com bom nível de escolaridade e com trabalhadores
especializados da indústria metalúrgica que gravita próxima ao loteamento. Em
seguida, destaca-se o sentimento solidário presente em todas as ações dos
moradores, desde a constituição do loteamento, passando pela instituição da
AMOBJH e pelas mobilizações e mutirões para alcançar as melhorias de
115
infraestrutura, serviços e transporte público do loteamento. Também é marcante o
fato que foram justamente as dificuldades que provocaram a necessidade da união e
conjugação dos esforços, pois o fato de “hoje estarem mais acomodados”, deve-se
mais à realização dos anseios do que seja reflexo de qualquer desânimo dos
moradores, que convocados comparecem!
Na análise sobre as barreiras encontradas no processo de regularização, sua
maior referência é quanto ao custo e à falta de informação que dificulta mais do que
a falta de documentos, pois “há falta de informação inclusive de como alcançar tais e
quais documentos”, situação que perdura desde a aquisição precária até hoje. Aqui
um alerta para o administrador modificar sua postura de esperar pelo problema e
passar a ir ao local para esclarecer e debater a questão, para melhorar os
resultados.
Na verdade, o que se destaca e sobressai no que foi dito é que a realização
da moradia é um trabalho fundamentado na união, participação e solidariedade
existente entre os moradores do “Jardim das Hortências”, no exercício de suas
autonomias. Por sua vez, os resultados positivos no âmbito do poder público
somente são alcançados após intensa mobilização da comunidade organizada. De
modo que se podem considerar as dificuldades como alimentadoras da
solidariedade.
3.3.2 A percepção do agente da iniciativa privada
Sabe-se que os loteamentos irregulares por suas características de formação,
que envolve primeiramente o baixo custo dos lotes e, em segundo plano, a rapidez
para se formar e prontamente solucionar o problema da moradia para trabalhadores
que buscam afastar-se do aluguel, encontra um segmento social ávido por essa
mercadoria, situado em faixa própria de renda a qual não se enquadra nos
programas habitacionais sociais de baixa renda, tampouco no seleto grupo que
acessa o mercado financeiro imobiliário.
116
Nesse contexto, a opinião do setor empresarial que atua na implantação de
loteamento regulares pode trazer elementos que sirvam para esclarecer a
problemática e apontar aspectos para melhorar os resultados das regularizações ou,
ao menos, que sirvam para contrapor-se ao crescimento do problema, na medida
em que supram a demanda por moradia desse segmento social.
Assim sendo pode-se inicialmente perquirir qual papel pode desempenhar a
iniciativa privada nas regularizações fundiárias? Ou, ainda, quais elementos podem
ser apontados em relação ao problema, tanto para causa quanto para solução?
Quem responde é o Sr. Ovídio Deitos201, conceituado empresário do setor de
urbanização e loteamentos na cidade de Caxias do Sul, onde atua há trinta e quatro
anos, cuja empresa implanta em torno de dois loteamentos por ano e já produziu e
entregou mais de quatorze mil lotes na cidade.
O entrevistado começa explanando que o plano diretor da cidade instituído
em 1972 foi readequado em 1973 e 1976, posteriormente nada mais foi feito neste
setor até 1996, quando o plano físico urbano implantado pela administração pública
marcou um retrocesso na cidade, na medida em que reduziu o perímetro urbano e
trouxe reflexos negativos na produção dos loteamentos regulares, bem como,
indiretamente, causou a expansão dos irregulares. A iniciativa do governo municipal
de 1996 revogou as leis anteriores e, diz ele: “voltou-se praticamente à estaca zero.
Reduziu-se o município a uma coisa muito pequena, tão pequena que algumas das
grandes empresas de Caxias ficaram fora do perímetro urbano”, afirma.
Ressalta o empresário que as medidas de definição do perímetro urbano
devem ser muito bem pensadas pelo executivo municipal antes de serem feitas,
“porque elas têm uma duração muito grande e têm grande impacto na comunidade,
seus efeitos se refletem por muitos anos, como aquela redução do perímetro de
1996 que tem reflexos até hoje, doze anos depois”. Complementa dizendo que
somente no ano de 2007, a legislação anterior foi revista e foi feito um novo plano
201 Esta entrevista foi concedida pelo empresário Sr. Ovídio Deitos no dia 25.11.2008, na sede da empresa que dirige, Urbanizadora Rodobrás Ltda, em Caxias do Sul. Maiores referências pessoais e sobre sua atuação pública e empresarial estão adiante detalhadas, no Anexo A, fl. 144.
117
diretor que estendeu o perímetro urbano praticamente aos limites do município em
algumas áreas, como por exemplo na direção de Farroupilha, Flores da Cunha e
São Marcos, o que favorece as condições e planejamento para implantação de
loteamentos.
Perguntado em que segmento social a empresa atua e a que tipo de clientes
atende, o empresário responde que só consegue atender à classe média alta e
acima dessa, e completa o empresário: “àquele indivíduo com renda baixa, mas com
capacidade de pagar um financiamento adequado, não conseguimos acessar
porque temos que trabalhar quase no centro da cidade”. Com o encolhimento do
perímetro urbano os espaços para implantação de loteamentos ficam reduzidos. E
acrescenta ele: “hoje fazemos loteamentos ao lado do Recreio da Juventude, ao
lado dos Pavilhões da Festa da Uva que são terras altamente valorizadas”. Explica
que isso onera o custo do lote urbanizado, ao passo que com o perímetro ampliado
pelo novo plano diretor é possível trabalhar em outras áreas mais afastadas, como
em Ana Rech ou no fundo do Desvio Rizzo. Diz o entrevistado: “Posso trabalhar com
áreas maiores que têm preços melhores e, portanto, posso atender uma categoria
com menor renda”. Justifica: “desde 1996 para cá só conseguimos trabalhar a classe
média alta porque encolheu a cidade, quer dizer, só ficou a nata que tem alto preço,
não adianta querer diferente”.
Ressalva que atualmente a expectativa do setor volta-se para os segmentos
de menor renda. “Hoje já estamos projetando coisas para locais mais distantes, com
capacidade de absorver empreendimentos grandes, com grande número de lotes,
que possa viabilizar uma coisa mais econômica, em áreas mais baratas”, afirma o
loteador.
Dessa explanação pode-se inferir que a limitação do espaço urbano é um
fator preponderante de incentivo para a produção das irregularidades, na medida em
que as empresas que atuam no segmento não conseguem atender à demanda por
lotes de menor preço, a qual se canaliza naturalmente para as irregularidades como
meio de satisfação das necessidades de moradia com baixo custo.
118
Para o problema apontado por alguns autores no sentido de que a expansão
periférica das cidades traz maiores custos para a sociedade, em face da
necessidade de investimentos em infraestrutura básica pela municipalidade,
transporte, entre outros, o entrevistado contrapõe dizendo que esses investimentos
são realizados pelas empresas loteadoras e não pelo município. Afirma que no setor
do transporte, as empresas têm interesse em expandir seus serviços. Completa
dizendo que o fornecimento de água potável, esgoto e energia elétrica, são feitos
pelo loteador. Lembra que em outros países não existe essa preocupação com a
expansão urbana, pois são constituídos por pequenas comunidades distantes dez a
quinze quilômetros entre elas. Acrescenta o empresário: “em Caxias, a água
captada em Ana Rech, cruza a cidade inteira para abastecer o Desvio Rizzo”.
Explana que essa é uma situação decorrente das condições físico-geográficas na
qual o planejamento tem que adaptar-se às peculiaridades locais,
independentemente da intenção de evitar custos decorrentes da expansão territorial.
Além disso, prossegue, muitos dos gastos com infraestrutura são suportados
igualmente pelo setor público e o privado, “quando foi feita a ampliação da adutora
que foi para o Desvio Rizzo, a empresa participou com o poder público porque nós
tínhamos interesse”, afirma o entrevistado, “não é somente o poder público que
investe, na verdade é a própria pessoa que vai comprar o terreno”. Ressalta o
empresário,
Essa questão de querer limitar a expansão territorial do município não é democrático, não é justo, pois querer que uma pessoa que nasceu em Santa Lúcia vai ter que viver toda a vida lá. Isso não é verdade, isso não acontece. As pessoas têm liberdade de locomoção, de ir aonde quiserem. Então, a cidade vai crescer enquanto tiver que crescer, não adianta fazer nada, ou limitar no papel.
E, conclui: “não é impedindo a expansão que se consegue diminuir os custos
com infraestrutura, mas sim, com planejamento e racionalização dos gastos”.
Questionado sobre o interesse de investidores no mercado imobiliário e a
relação com o custo do terreno, o entrevistado explica que aproximadamente 20%
dos compradores de terrenos são investidores de mercado, mas não sabe precisar o
estoque de terrenos baldios na cidade, “os demais compram para morar”. Por outro
lado, considera que esse estoque não deva ser elevado, pois a empresa também
119
não possui grande reserva. Atribui a ausência de lotes no patrimônio da empresa à
“dificuldade em aprovar e licenciar novos empreendimentos na velocidade em que
seriam necessários”.
Como indicativo dessa falta de lotes regulares à venda aponta ele: “o terreno
ficou muito valorizado. Quando isso acontece, avalio que o estoque deva estar muito
pequeno”. Em relação ao imóvel como investimento, o empresário revela que os
lotes novos vendidos pela empresa são revendidos, no espaço de dois a três anos,
às vezes pelo dobro do preço original, o que considera um absurdo. Entretanto,
explica ele, isso demonstra que aquele lote legalizado, registrado, com infraestrutura
básica, tem um valor significativo, e como isso demora muito para ser obtido, por ser
uma atividade difícil de ser exercida, o valor do terreno fica elevado.
Na relação que possa existir entre os loteamentos irregulares e a atividade da
empresa, o dirigente explica que as irregularidades não influenciam na atividade
regular, pois o cliente do lote irregular compra em primeiro lugar pelo preço e, em
segundo lugar, pela velocidade com que o “loteador” pode entregar o imóvel. Nesse
sentido a entrega imediata não é possível para a sua empresa, pois depende da
burocracia em geral até finalizar o empreendimento. O empresário reafirma que a
restrição do perímetro levou muitos empreendedores à irregularidade, estes
poderiam estar fazendo lotes regulares, mas o executivo não lhes aprova os
projetos, pois ainda que estejam adequados às normas urbanísticas não se
localizam na área urbana. Ou seja, a definição do perímetro urbano e oferta de lotes
têm maior influência na produção das irregularidades do que a atividade privada no
segmento.
Para exemplificar, o entrevistado diz:
Se traçarmos uma linha imaginária do perímetro urbano, dentro dessa linha o preço da terra é um e do lado de fora o preço da terra é outro, então o loteador irregular vai direto para o lado de fora e consegue produzir um lote 30 a 40% mais barato do que a empresa regular consegue fazer.
Daí, então, a importância da definição desse perímetro de forma ampla e
depois, o município examina se aprova ou não, ressalta.
120
Nessa análise, o loteador entende que deva ser interesse do município que
empreendedores produzam regularmente lotes que sejam acessíveis às populações
de baixa renda. Assim, projetos de loteamento para 500 famílias deveriam ser
privilegiados e estimulados pela administração pública, uma das medidas é a
expansão do perímetro urbano. Para ele, o loteamento irregular é fruto muitas vezes
dessas limitações que o poder público coloca, tais como: limite de perímetro urbano,
exigências documentais ou de áreas públicas, demora na aprovação de um
loteamento regular, entre outras.
Na questão da aprovação do loteamento pela municipalidade o entrevistado
identifica a burocracia existente como um dos fatores que influencia na composição
do preço do lote e na expansão das irregularidades, pois “o empreendedor que não
tiver uma boa estrutura, não consegue esperar dois a três anos para poder iniciar as
vendas e se obriga a vender irregularmente para recuperar o capital investido”,
afirma, e completa dizendo: “São barreiras que a própria sociedade coloca para que
a coisa seja bem feita, mas nem sempre isso acontece”.
Nesse viés, entende o empreendedor que o poder público deveria simplificar
os procedimentos de aprovação dos projetos, coisa que a nova lei não fez, pois
manteve as mesmas exigências da lei anterior. Não houve avanços. Explica que se
tiver que fazer um loteamento, a empresa tem que consultar o setor do meio
ambiente e o serviço de abastecimento de água, cujas manifestações são cruciais,
“pois dependendo delas não sai o loteamento”, enfatiza. Nesses órgãos são obtidas
as licenças prévias, essenciais para iniciar o projeto. Deve, depois, apresentar uma
diretriz de esgoto sanitário e pluvial, uma diretriz do sistema elétrico, uma diretriz do
sistema viário, uma diretriz de localização das áreas públicas. “São sete itens em
duas fases, o que resulta em quatorze análises diferentes. Se demorar um mês em
cada análise são quatorze meses, mas demora mais”. Depois disso, ainda, aguarda
a licença de instalação e o decreto de aprovação e a seguir vai para o registro
imobiliário para só, então, poder colocar lotes à venda. Com isso, o tempo para
aprovação de um loteamento gira em torno de dois a três anos na média, tempo
esse que custa dinheiro que é agregado ao preço final do imóvel, encarecendo-o por
certo. Para obter a simplificação, sem ter que abdicar dos cuidados necessários, os
121
órgãos envolvidos na aprovação poderiam reunir-se numa sessão para,
conjuntamente, analisar o anteprojeto ou o projeto, sem a necessidade da romaria
da documentação entre as diversas secretarias e autarquias municipais, podendo
assim acelerar o processo de forma significativa.
Além disso, para o entrevistado, a simplificação dos procedimentos poderia
ser ainda mais ampliada se fosse atribuída responsabilidade técnica do projeto e sua
implantação aos profissionais que o elaboram. Explica que as empresas estão
assessoradas por excelentes técnicos, engenheiros, geólogos, ambientalistas, entre
outros, os quais, na maioria das vezes, têm maior conhecimento e preparo do que
as pessoas que fazem análise dos projetos no âmbito público. Assim, o poder
público deveria limitar-se a conferir e arquivar o projeto, podendo fiscalizar a
implantação e adequação do loteamento às normas urbanísticas, pois, a aprovação
do loteamento, na forma em que é feita, não é segurança absoluta de que será
implantado na forma planejada. A aprovação não elide a municipalidade da
fiscalização, que deverá ser feita, obrigatoriamente. Com a simplificação, seria
possível prestigiar a iniciativa particular e outorgar mais responsabilidades aos
projetistas e executores, além de acelerar notavelmente a expansão dos
loteamentos regulares e a oferta de lotes para atender a demanda e baixar os
preços.
Refere o empresário que muitas vezes os projetos de loteamento não
aprovados pela prefeitura vêm a se tornar loteamentos irregulares, cuja conclusão e
adequação ficam a cargo do poder público, o que acaba por onerar toda a
sociedade.
Ao abordar a questão do mercado e demanda por lotes populares, o
entrevistado refere que nos anos 1997 a 2000 teve oportunidade de vender 688
unidades por meio do financiamento da Caixa Federal, oportunidade em que o
comprador dava uma entrada de dois mil reais e financiava o saldo, de oito mil reais,
pela instituição. Ressalta o empresário: “todas estas pessoas estão extremamente
contentes, pois os lotes de dez mil reais, hoje valem cinquenta a sessenta mil reais”,
o que comprova a necessidade deste tipo de lote no mercado. Outro detalhe nesse
aspecto é que os programas da Caixa têm prazos definidos ao passo que as
122
aprovações de loteamentos, se demorarem como demoram, acabam por não
encontrar o financiamento disponível.
Ao apontar outros fatores ou iniciativas no âmbito do poder público que
poderiam contribuir para a diminuição dos valores dos lotes, o dirigente refere que a
concessão de incentivos ou desoneração fiscal, especialmente redução de ICMS
nos insumos da produção de loteamentos e no Imposto de Renda da Pessoa
Jurídica, contribuiriam para tal objetivo. Pois, explana, atualmente não há nenhum
tipo de isenção ou benefício fiscal para as empresas loteadoras. Acrescenta que
outros incentivos, como a exemplo dos índices construtivos que são permutáveis na
construção civil, na implantação de loteamentos populares poderiam ter diminuídas
as exigências de áreas públicas ou institucionais, ou ainda, nos loteamentos classe
alta, poderiam ser majorados esses índices ou cobrado taxas que seriam
transpostas aos loteamentos populares para diminuir o preço dos lotes.
Indagado sobre as parcerias entre o poder público e a iniciativa privada, o
empresário esclarece que são possíveis desde que haja interesse do executivo, que
até hoje não tomou qualquer iniciativa nesse sentido. Entende ele que a
municipalidade não deve executar tarefas para as quais a iniciativa privada está
mais preparada. A parceria pode ser estabelecida no momento em que é constituído
o loteamento, de modo que o poder público participe da implantação de
infraestrutura, como exemplo, a de água e, posteriormente, aproveite-se dos
equipamentos em benefício de outros loteamentos populares edificados próximo ao
primeiro. “Ao colocar encanamento de 100 milímetros ou de 300 milímetros a
estrutura é a mesma, o poder público poderia participar e depois, lá na frente,
aproveitar da estrutura colocada”, completa.
Estimulado a falar sobre outros componentes que oneram o empreendimento
e o preço dos lotes, o empresário refere que a empresa tem adotado até hoje o
sistema de parceria com o proprietário da gleba para a efetivação do loteamento,
mas que esse fator onera os lotes na medida em que os proprietários acham que as
áreas valem muito e têm reivindicado 50% dos lotes. O dirigente entende que esse
preço é por demais elevado e reflete-se na composição do preço final. Assim sendo,
123
a empresa está partindo para a aquisição prévia de toda a gleba e posterior
negociação dos lotes, o que poderá torná-los mais econômicos.
Perguntado sobre qual a sua impressão em relação às regularizações, o
empresário responde que as regularizações têm efeitos benéficos para a
comunidade, na medida em que aquelas pessoas que obtêm o título de propriedade,
conseguem uma valorização de seus imóveis que lhes permite uma vida mais digna,
além de obter um acréscimo de capital que pode ser utilizado em novas aquisições.
Por último, o empresário esclarece que, com a expansão do perímetro
urbano, a tendência é baixar o preço dos empreendimentos em face da maior oferta
de áreas para loteamentos. Nesse viés é intenção da empresa voltar-se para o
segmento de classe média baixa, pois expressivo número de pessoas dessa
categoria tem procurado a empresa para aquisição desse tipo de imóvel e,
acrescenta, se a iniciativa privada ou o poder público não atenderem a essa
demanda, os loteadores irregulares se encarregarão de fazê-lo. Porém, ressalta que
é imprescindível acelerar as aprovações dos loteamentos para atender uma
demanda cada vez mais crescente. Para constar, refere que não é por falta de
projetos, pois a empresa tem vinte e cinco em andamento e, anualmente, encaminha
dois a três processos para aprovação pelo poder público e se tudo for atendido a
oferta será significativa e servirá para diminuir a pressão pela expansão das
irregularidades e diminuição dos preços dos lotes.
Desse modo, a contribuição do empresário, pelos esclarecimentos e
indicação de aspectos relevantes ligados ao tema, traz novos elementos para a
solução do problema. Cabe destacar que, na opinião do autor, as observações são
pertinentes, pois se referem às iniciativas e procedimentos no âmbito do poder
municipal e privado que, se adotadas, podem servir para melhorar os processos de
regularização fundiária, especialmente pela possibilidade de interferir na expansão
das irregularidades por meio do atendimento imediato das necessidades por
moradia de baixo custo.
124
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesse trabalho procurou-se trazer o conteúdo e a experiência dos excelentes
autores que o mestrado nos apresentou no decorrer do curso em suas diversas
disciplinas. As ideias desses escritores serviram para dar o embasamento teórico e
filosófico que se converte na espinha estrutural dessa dissertação. Estudo que, de
início, constituía-se tão-somente em algumas indagações superficiais motivadas
pelo insuficiente conhecimento da matéria que a pesquisa serviu para superar. A
experiência vivida pelo autor, no âmbito do direito notarial e registral imobiliário, foi
essencial para detectar o problema e buscar perspectiva de solução, porém,
alcançar os fundamentos teóricos, entender profundamente os problemas envolvidos
e encontrar proposta de solução, somente foi possível após as leituras e os debates
ocorridos no seio da academia.
Uma grande dificuldade foi delimitar o tema, uma vez que as políticas
públicas de regularização fundiária envolvem múltiplos aspectos nos âmbitos social,
político, jurídico, administrativo e econômico, entre outros. Mais ainda, vincula-se às
três esferas políticas e diz respeito tanto ao direito público quanto ao privado. A
delimitação do espaço tempo-geográfico em Caxias do Sul e, mais especificamente,
na regularização do loteamento “Jardim das Hortências”, mostrou-se adequada para
obter resposta ao problema inicial de como superar os obstáculos às regularizações
existentes no âmbito do registro imobiliário, identificados nos princípios registrais
que impedem o ingresso dos títulos aquisitivos precários.
Os procedimentos adotados e instrumentos disponíveis para superar esses
obstáculos, identificados nos decretos municipais que formalizam a regularização
administrativa do loteamento, não conferem a regularidade jurídica aos lotes nem a
legalidade da propriedade precária, a qual é somente obtida com a matrícula do
imóvel em nome do morador. Daí pode-se dizer que são ineficazes.
Paradoxalmente, o mesmo não ocorre em relação ao poder público, haja vista que
em relação aos bens públicos, dito dominiais, o simples requerimento da
municipalidade é suficiente para que sejam abertas as matrículas relativas às áreas
das vias públicas em nome do município, superando os obstáculos registrais. Esse
125
modelo poderia ser adotado em relação às regularizações dos lotes, como síntese
da simplificação pretendida, sem prejuízo da almejada “segurança jurídica”.
O instrumento do More Legal que está sendo utilizado pela municipalidade
nas regularizações, apesar de sua importância inovadora por introduzir o conceito da
propriedade consolidada, bem como por instituir procedimento que tem condições de
superar os obstáculos registrais, mostra-se da mesma forma ineficiente pois: (a)
depende de requisitos e documentos prévios (escritura de fração ideal) para seu
encaminhamento junto ao cartório, isto é, não se aplica a toda irregularidade; e (b)
carece da iniciativa do morador e da manifestação do judiciário. Ou seja, ainda que
adequado para a regularização jurídica do lote em nome do morador, não se aplica
em todas as espécies de irregularidades e depende de certa burocracia, por isso, na
opinião do autor não é eficiente. Ressalte-se, ainda, que a sua utilização é
insuficiente e, para melhores resultados, necessita de maior divulgação e
esclarecimento junto às comunidades irregulares.
Desse modo, dentre as hipóteses, mostra-se imprescindível apontar outros
instrumentos e procedimentos para superar as barreiras registrais e legalizar a
propriedade precária. Nesse contexto, não se pode abrir mão da ideia de que os
destinatários sejam os agentes da própria transformação, de modo a alcançar
melhores resultados.
De fato, o fator humano e social mostrou-se fundamental para o sucesso da
regularização jurídica do loteamento “Jardim das Hortências”, em face da interação
havida entre os diversos atores sociais, agentes públicos e privados envolvidos na
solução do problema, imbuídos de solidariedade e subsidiariedade, na busca do
bem comum. Esses, princípios basilares da vida em sociedade, são os que
permitiram a regularização no município caxiense e que fundamentam a supremacia
do coletivo sobre o individual. In casu, o bem comum sobrepondo-se às barreiras
registrárias.
A moradia mostra-se como um direito fundamental, social, puro e legítimo,
portanto deve e pode ser promovido pelo cidadão, independentemente da ação
pública favorável, desfavorável ou, especialmente, omissa, quando o Estado não
126
consegue realizar o direito. Por seu turno, leis anacrônicas e princípios do direito
registral devem sucumbir ou adequar-se aos princípios fundamentais da
Constituição Federal do direito à moradia, da função social da propriedade, da
solidariedade, do bem comum e da redução das desigualdades.
Nesse viés, destaca-se a atuação do poder judiciário, não no sentido de
intervir nas relações, mas, sim, de fazer parte das políticas públicas e apresentar
soluções inovadoras. O judiciário não somente adotou o princípio do poder/dever
que cabe ao município de promover as regularizações, retirando do rol da
discricionariedade do administrador público, como também, no âmbito
administrativo, introduziu instrumentos de facilitação dos procedimentos
regularizadores. Assim sendo, sinaliza para a possibilidade da simplificação dos
procedimentos regularizadores para alcançar melhores resultados.
Outro ponto de realce diz respeito ao poder local. O enfoque municipalista, ou
seja, a competência atribuída aos municípios para a solução de seus próprios
problemas, é altamente positivo e traz à tona o princípio da subsidiariedade, como
fundamento de legitimidade para a policy regularizadora. In casu, merecem
destaque as pessoas do juiz corregedor permanente e do Oficial registrador, os
quais solicitados pelo movimento social dos moradores e sensíveis à situação fática
da propriedade precária, consolidada e irreversível encontram solução para a
irregularidade, cujo maior dano é justamente permanecer na situação em que se
encontra, isto é, de exclusão dos indivíduos que a constituem e que devem ser
protegidos pelo ordenamento jurídico pátrio.
Merece reflexão a manifestação do integrante do legislativo municipal
entrevistado no sentido da sua impotência para interferir mais contundentemente na
questão das regularizações, seja por deficiência de conhecimento da matéria, seja
pela limitação da competência legislativa que lhe impede de propor matérias que
onerem o orçamento do município, ou, pior ainda, pelos compromissos com os
grupos que elegem os parlamentares.
A configuração do problema em Caxias do Sul e a solução implementada
demonstram claramente que o surgimento das irregularidades não pode ser
127
impedida tão-somente por força da lei, pois está em jogo a satisfação das
necessidades de moradia de 48% da população da cidade. Além disso, as
regularizações carecem de melhor performance, sendo necessária a simplificação
dos procedimentos e novos instrumentos, bem como maior participação dos
segmentos sociais beneficiários, os quais manifestaram sentimento de abandono e
falta de informação dos procedimentos regularizadores.
No âmbito das instâncias administrativas vinculadas às políticas públicas de
regularização e adotadas na municipalidade caxiense, detectou-se a carência de
planejamento, evidenciada pela falta de metas a serem cumpridas e falta de
divulgação para os interessados acerca dos procedimentos a cumprir. Detectou-se
igualmente a falta de processos de avaliação da efetividade, eficácia, eficiência e
legitimidade da policy. É imperioso concordar com a afirmação de Schmidt, que “o
planejamento e a avaliação constante são indispensáveis, não apenas para o êxito
das políticas públicas, mas do próprio exercício de poder.”202
No campo da avaliação da policy nota-se importante a percepção dos atores
sociais envolvidos, os quais foram unânimes em destacar a necessidade da
desburocratização para obter melhores resultados. Dentre as sugestões arroladas
de simplificação dos procedimentos e medida de celeridade do processo, destaca-se
a possibilidade da efetivação por meio de escritura pública de regularização
fundiária, afastando assim a intervenção direta do poder judiciário, sem perder a
segurança jurídica. A manifestação da iniciativa privada aponta a necessidade do
estabelecimento de ações conjuntas entre a municipalidade e as empresas
loteadoras para a produção de loteamentos voltados àquelas famílias que são
potencialmente clientes das irregularidades. A policy reclamada por esse setor não é
complexa, pois se refere à flexibilização das diretrizes de aprovação de projetos e
expansão do perímetro urbano para aumentar a oferta de lotes e evitar o surgimento
da propriedade precária.
A título de perspectivas de futuro no campo da temática estudada, em Caxias
do Sul pouca coisa se pode esperar de novo, pois as recentes leis específicas
202 SCHMIDT, op. cit., p. 2320.
128
voltadas à regularização fundiária nada trazem de inovação em relação à matéria. A
sinalização de mudança se verifica na esfera federal, em que o Estatuto da Cidade
recomenda a simplificação na legislação com vistas a permitir a redução dos custos
e o aumento da oferta de lotes e unidades habitacionais (art.2º, inc. XVI e XV), bem
como retira a exclusividade do poder público para promover as regularizações
fundiárias e abre a possibilidade, em igualdade de condições, para que os agentes
privados promovam as ações necessárias (art. 2º, XVI).
Nesse contexto, o horizonte legislativo federal oferece algumas novidades em
medidas voltadas à regularização fundiária, como por exemplo, as que estão
contidas no reapresentado Projeto de Lei nº 20/2007, antes PL 3057/01, que trata da
Lei de Responsabilidade Territorial Urbana e que estabelece as normas gerais
disciplinadoras da regularização fundiária sustentável de áreas urbanas. O diploma
projetado dedica diversos artigos para o regramento da matéria203, além de, nas
Disposições Gerais (art. 2), explicitar os princípios da função social da propriedade
urbana e da cidade, e o da garantia do direito à moradia e ao desenvolvimento
sustentável dos assentamentos humanos, com prevalência do interesse coletivo
sobre o privado, como suas razões de justificação.
Uma breve avaliação de princípios, diretrizes e instrumentos jurídicos lá
contidos serve para delinear os rumos que o legislador pretende adotar no trato da
matéria. No diploma é mantido o enfoque municipalista em relação à competência
para estabelecerem leis especiais para as regularizações fundiárias (art. 95, II).
Além disso, destacam-se as diretrizes que devem pautar as regularizações (art. 94),
dentre essas, a prioridade para a permanência da população na área ocupada, a
articulação com iniciativas públicas e privadas, a participação da população
interessada em todas as etapas do processo de regularização, o estímulo à
resolução extrajudicial de conflitos e a preferência de titulação para a mulher. O
permissivo legal, em projeto, ressalta a situação irreversível (consolidada)204 como
elemento de distinção para a regularização, conceitua como sendo aquela em que o
prazo e a natureza da ocupação, bem como as edificações e infraestrutura
203 Disposto no Título III - Da Regularização Fundiária Sustentável de Áreas Urbanas, arts. 93 a 119. 204 Fundamento básico do Projeto More Legal.
129
existentes, indiquem grave dano social no caso de eventual reversão da situação já
consolidada pelo tempo.
No âmbito dos institutos jurídicos inovadores previstos no mencionado projeto
de lei, a chamada demarcação urbanística (art. 108) e a legitimação de posse (art.
112) emergem como instrumentos que evidenciam a orientação do legislador de
simplificar os procedimentos para alcançar melhores resultados. No primeiro, o
poder público municipal, com base no levantamento técnico da área a ser
regularizada (mapas e memoriais) e no cadastro dos ocupantes, fará inscrever no
registro de imóveis a demarcação urbanística da área, objeto da regularização, em
matrícula própria205. O segundo, certamente o de maior impacto nos conceitos de
propriedade, permite ao executivo municipal expedir título oficial de posse de imóvel
urbano em favor do morador do imóvel. Esse título será admitido no registro de
imóveis e poderá ser dado em garantia real e objeto de transferência, inter vivos ou
causa mortis. Além disso, decorridos cinco anos do registro do título oficial de posse,
por simples requerimento do morador, o direito real de posse converter-se-á em
direito real de propriedade.
Assim sendo, a conversão de posse em propriedade sem interferência do
poder judiciário (usucapião ou More Legal), tem tamanha importância e ineditismo
no âmbito do direito brasileiro que seria justificativa e tema para uma dissertação
própria. Só para lembrar, a concessão de título de direito real de posse foi o sistema
utilizado no Brasil Imperial para a concessão de terras aos senhores e aos nobres
da corte. Agora, o projeto de lei pretende destinar esse sistema à regularização da
propriedade precária (sem título), sob fundamento da prevalência do interesse
público sobre o privado, na promoção do desenvolvimento e inclusão social, em
suma, como realização do bem comum.
Desse modo, estes institutos servem como exemplo de que a simplificação
dos procedimentos de regularização fundiária é viável, é possível e se avizinha,
205 Nota-se que a demarcação urbanística como se apresenta é similar ao atual modo de registro das áreas viárias, ou seja, por simples requerimento e memoriais. Pode-se inferir que a ideia do legislador é que havendo interesse público a área torna-se bem à disposição do poder público para suas ações.
130
desde que haja entendimento local e decisão política206 para sua implementação. Ou
seja, a inclusão desses instrumentos no âmbito da legislação federal não é garantia
da sua implementação no espaço local, em razão da repartição de competência
(subsidiariedade) que confere autonomia ao município. Isso será efetivado tão-
somente se houver aplicação prática do objetivo constitucional (art. 3º, CF) de
construção de uma sociedade livre, justa e solidária, e assim concretizar a
convocação do homem ao princípio da solidariedade, com a meta de erradicar a
pobreza e a marginalização, além da redução de desigualdades sociais e regionais.
Com essas considerações, acredita-se terem sido atingidos os objetivos que
nortearam a pesquisa. Os elementos trazidos pelos atores entrevistados serviram
para corroborar as premissas iniciais e testar as hipóteses da pesquisa. Foram
confirmadas as três hipóteses levantadas no início do trabalho. Há utilização
ineficiente do adequado procedimento – isto é, do More Legal -, como também, os
instrumentos disponíveis não são adequados para superar as barreiras registrais
que impedem regularizar juridicamente grande parte das irregularidades. Há também
necessidade de novos instrumentos e procedimentos facilitadores, para obter
melhores resultados nas regularizações jurídicas da propriedade precária
consolidada, segundo opinião unânime dos entrevistados. Além disso, os
depoimentos trazem perspectivas e sugestões que comprovam a necessidade da
interação entre os atores sociais, como agentes da própria transformação, de modo
a alcançar melhores resultados nas regularizações.
A superação dos obstáculos registrários às regularizações jurídicas deve ser
embasada na solidariedade, subsidiariedade e no bem comum, que são valores
acima das disposições legais que lhes sejam contrárias. Nesse viés, diminuir a
complexidade e simplificar os procedimentos é modo de superar e acelerar o
processo, bem como é o anseio e expectativa manifestada pelos entrevistados.
206 Refere João Pedro Schmidt que a inserção do problema na agenda de decisão política (agenda setting) é uma das fases das políticas públicas e depende da importância que é dada ao tema no âmbito das relações que envolvem a sociedade, assim entendido o executivo, o legislativo, o judiciário, os partidos políticos e os demais atores sociais. “São os guardiães da agenda pública (agenda setters)”. SCHMIDT, João Pedro. Para entender as políticas públicas: aspectos conceituais e metodológicos. In: REIS & LEAL. Direitos sociais e políticas públicas: desafios contemporâneos. Tomo 8. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2008, p. 2317.
131
Em síntese, a policy simplificadora dos procedimentos e de superação dos
obstáculos registrários às regularizações, com fundamento na solidariedade,
subsidiariedade e bem comum, vai ao encontro das diretrizes da Agenda Habitat II,
Istambul, 1996, bem como da Declaração do Milênio para os Assentamentos
Humanos, Nova York, 2001, as quais apresentam propostas concretas que
envolvem a garantia legal da propriedade, a eliminação de barreiras de acesso à
moradia legal, a geração de ambiente de cidadania, cooperação e diálogo igualitário,
a promoção da solidariedade e a proteção dos interesses das gerações atuais e
futuras, alocando esforços e recursos para que se alcancem as metas de propiciar
moradia legal e adequada para todos e o desenvolvimento de assentamentos
humanos sustentáveis, em um mundo cada vez mais urbanizado.
“Não é tarefa fácil nem é tarefa individual. Mas, se é verdade que a paciência
dos conceitos é grande, a paciência da utopia é infinita”. Diz-nos, Boaventura de
Souza Santos.207
207 SANTOS, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1997, p. 346.
132
REFERÊNCIAS
ALFONSIN, Betânia de Moraes. A regularização fundiária como parte da política urbana. In: Anais do seminário de regularização fundiária. São Paulo: junho/2003. Disponível em: http://www.irib.org.br. Acesso em: 14.07.2007.
ARAÚJO, L. E. B. de; VIEIRA, J. T.. Normas reguladoras da expansão urbana na ótica da complexidade ambiental: em busca da concretização de um ambiente ecologicamente equilibrado. In: REIS, J. R. dos; LEAL, R. G. (Org.). Direitos sociais & políticas públicas: desafios contemporâneos. Tomo 7. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2007.
ARISTÓTELES. Ética a Nicomacos. Livro I. Coleção os pensadores. São Paulo: Abril, 2000.
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de direito administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O princípio de subsidiariedade: conceito e evolução. Rio de Janeiro: Forense, 1996.
BARBOSA, Ruy. Teoria política. Rio de Janeiro: W. M. Jackson, 1950.
BARROS, Ana Lucia Porto De. Et. al. O novo código civil: comentado. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2002.
BEAMS, Nick. Sombras de 1929: as implicações globais do colapso bancário americano. Sydney: SEP, 2008.
BEVILÁQÜA, Clóvis. Código civil dos Estados Unidos do Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: F. Alves, 1934.
BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. Brasília: EUB, 1992.
BOLZAN DE MORAIS, José Luis. A Idéia de direito social: o pluralismo jurídico de Georges Gurvitch. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2001.
BOURGEOIS, Léon. Essai d’une philosophie de la solidarieté. Paris: Alcan, 1902. ___. La Solidarité. Paris: Libreirie Armand Colin, 1902.
133
BRASIL. Decreto Lei nº 58, de 1937. Lei dos Loteamentos. Disponível em: <http://www.senado.org.br>. Acesso em: 12.12.2007. ___. Decreto-lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942. Institui a Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro (LICC). ___. Lei nº 3.071, de 01.01.1916. Código Civil Brasileiro.
___. Lei nº 4.380, de 1964, Banco Nacional de Habitação- BNH e Sistema Financeiro da Habitação – SFH ___. Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Dispõe sobre os registros públicos e dá outras providências. ___. Lei nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979. Dispõe sobre o parcelamento do solo urbano e dá outras providências. ___. Lei nº 8.935, de 18.11.1994. Lei dos Notários e Registradores (LNR). ___. Lei nº 9.785, de 29 de janeiro de 1999. Altera as Leis 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Registros Públicos) e 6.766, de 19 de dezembro de 1979 (Parcelamento do Solo Urbano). ___. Lei nº 10.257, de 10 de junho de 2001. Estatuto da Cidade. Regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. ___. Lei nº 10.931, de 02 de agosto de 2004. Introduz alterações na lei dos registros públicos, Lei 6.015/79, e dá outras providências.
___. Programa Urbanização, Regularização e Integração de Assentamentos Precários. Ministério das Cidades. Disponível em: <http://www.cidades.gov.br>. Acesso em: 14.02.2008.
BRUGALLI, Alvino Melquides. Caxias grande do sul: dados e números do 1º pólo econômico do interior do Rio Grande. Caxias do Sul: De Zorzi, 1988.
CALATAYUD, Vicente Dominguez. Eficácia dos sistemas registrais como base da proteção jurídica dos direitos da propriedade do cidadão. In: Revista de Direito Imobiliário, nº61, jul./dez., São Paulo: RT, 2006. Disponível em: <http://www.irib.org.br>. Acesso em: 22.09.2007.
CAMPOS, German J. Bidart. Teoria del estado, los temas de la ciência política. Buenos Aires: Ediar, 1991.
134
CASEIRO, Luciano. Loteamentos clandestinos: conseqüências penais. São Paulo: EUD, 1979. CAXIAS DO SUL. Informativo da Secretaria de Desenvolvimento Urbano de Caxias do Sul, nº 4, ano 1987. Caxias do Sul: SDU, 1987. ____. Lei nº 304, de 08 de maio de 1950. Regulamenta as edificações verticais, uso do solo, levantamento plani-altimétrico, cadastro imobiliário, demarcações e institui o plano diretor de Caxias do Sul.
____. Lei nº 2.088, 8 de agosto de 1972. Disciplina o parcelamento do solo urbano e dá outras providências. ____. Lei nº 3.292 de 25 de novembro de 1988. Institui o Programa de Regularização dos Parcelamentos Irregulares, atribuiu à Secretaria do Desenvolvimento Urbano sua coordenação e dá outras providências. ____. Lei nº 3.300, de 29 de novembro de 1988. Disciplina o parcelamento do solo, para fins urbanos, e dá outras providências.
____. Lei nº 6.810, de 20 de dezembro de 2007. Disciplina o parcelamento do solo para fins urbanos, a regularização fundiária sustentável e dá outras providências. ____. Lei Complementar nº 27, de 15 de julho de 1996. Institui o Plano Físico Urbano do município de Caxias do Sul e dá outras providências.
____. Lei Complementar nº 290, de 24 de setembro de 2007. Institui o plano diretor do município de Caxias do Sul, e dá outras providências.
CENEVIVA, Walter. Lei dos notários e registradores: comentada. São Paulo: Saraiva, 2002.
CHICUTA, Kioitsi. A função registral e a atuação do Judiciário Breves considerações sobre a desapropriação judicial e a concessão real de uso. In: Anais do seminário sobre regularização fundiária. São Paulo: 2007. Disponível em: <http://www.irib.org.br/index.asp>. Acesso em: 09.06.2007.
COLLADO, Pedro Escribano. La propriedad privada urbana. Madrid: Montecorvo, 1979.
CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de direito romano. São Paulo: Forense, 1973.
DELLA GIUSTINA, Osvaldo. Participação e solidariedade: a revolução do terceiro milênio II. Tubarão: Unisul, 2004.
DINIZ, Maria Helena. Sistemas de registros de imóveis. São Paulo: Saraiva, 2003.
135
DURKHEIM, Émile. De la division du travail social. Paris: 1893. ERPEN, Décio Antônio; PAIVA, João Pedro Lamana. Princípios do registro imobiliário formal (comentários). In: Anais do congresso brasileiro das entidades de notas e registro. Salvador/BA, 2003. Disponível em <<http//www.irib.org.br>>. Acesso em 12.12.2007.
FARIAS, José Fernando de Castro. A origem do direito de solidariedade. Rio de Janeiro: Renovar, 1998.
FERRAZ, Patricia A. C. Regularização fundiária e registro de imóveis: bases para o desenvolvimento econômico sustentável. São Paulo: RDI/IRIB, 2007.
FREIRE JÚNIOR, Américo Bedê. O controle judicial de políticas públicas. São Paulo: RT, 2005.
GASPARINI, Diógenes. O município e o parcelamento do solo. São Paulo: Saraiva, 1988.
GAZETA MERCANTIL, de 07 de outubro de 2008, Caderno C. São Paulo:2008
GIRON, Loraine Slomp. Caxias do Sul: evolução histórica. Porto Alegre: Grafosul, 1977.
GONZÁLEZ, Fernando P. Ménez. A Função econômica da publicidade registral. In: Revista de Direito Imobiliário, nº 56, jul./dez.. São Paulo: IRIB/RT, 2003.
GRAU, Eros Roberto. Direito urbano: regiões metropolitanas, solo criado, zoneamento e controle ambiental, PL de desenvolvimento urbano. São Paulo: RT, 1983.
HERMANY, Ricardo. (Re)Discutindo o espaço local: uma abordagem a partir do direito social de Gurvitch. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2007.
HUME, David. Tratado da natureza humana. Lisboa: Fundação Gulbenkian, 2001.
LEAL, Rogério Gesta. O parcelamento clandestino do solo e a responsabilidade municipal no Brasil: estudo de modelo. In: Revista do Direito, nº 2 (Dez. 1994). Santa Cruz do Sul: UNISC, 1994. ___. A função social da propriedade e da cidade no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998.
136
___. O Estado-juiz na democracia contemporânea: uma perspectiva procedimentalista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.
LIRA, Ricardo Pereira. Elementos de direito urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997.
MACHADO. Maria Abel. Construindo uma cidade: história de Caxias do Sul, 1875/1950. Caxias do Sul: Maneco, 2001.
MAQUIAVEL, Nicolo. Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio. Florença, 1520.
MARICATO, Ermínia. As idéias fora do lugar e o lugar fora das idéias: planejamento urbano no Brasil. In: ARANTES, O. et al. A cidade do pensamento único: desmanchando conceitos. Petrópolis: Vozes, 2000.
MARSHALL, Thomas Humprey. Citizenship and social class and other essays. Cambridge: CUP, 1950.
MELO FILHO, Álvaro de. Direito registral imobiliário: enfoque didático e prático. Rio de Janeiro: Forense, 1979.
MONTREAL, Eduardo Novoa. El derecho como obstáculo al cambio social. México: Siglo Veintiuno, 1981. MORAIS, José Luis Bolzan de. A Idéia de direito social: o pluralismo jurídico de Georges Gurvitch. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997.
NOGUEROLES, Nicolás. Registro, guardião do direito de propriedade. Boletim Eletrônico do IRIB nº2871, 13.03.2007. Disponível em: <http://www.irib.org.br>. Acesso em: 13.03.2007.
REALE, Miguel. O projeto do novo código civil. São Paulo: Saraiva, 1999.
RICHTER, Luiz Egon. Fragmentos teóricos da base matricial do imóvel no registro de imóveis. In: Revista de Direito Imobiliário, nº 55, jul./dez.. São Paulo: IRIB/RT, 2003.
RIO GRANDE DO SUL. Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, de 3 de outubro de 1989.
137
___. Lei nº 10.116, de 23 de março de 1994. Institui a Lei do Desenvolvimento Urbano, que dispõe sobre os critérios e requisitos mínimos para a definição e delimitação de áreas urbanas e de expansão urbana, sobre as diretrizes e normas gerais de parcelamento do solo para fins urbanos, sobre a elaboração de planos e de diretrizes gerais de ocupação do território pelos municípios e dá outras providências.
___. Provimento nº 39/1995, da Corregedoria-Geral da Justiça do Rio Grande do Sul. ___. Provimento nº 32/2006, da Corregedoria-Geral da Justiça do Rio Grande do Sul. Institui a Consolidação Normativa Notarial e Registral. RODRIGUES, Hugo Thamir; RETTENMAIER, Priscila. Convênios e consórcios municipais: instrumentos de harmonização de políticas públicas tributárias. In: REIS, J.R. dos; LEAL, R. (Org.). Direitos sociais & políticas públicas: desafios contemporâneos. Tomo 8. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2008.
RÖLNIK, Raquel. A cidade e a lei. São Paulo: Nobel, 1997.
___. Manual: regularização da terra e moradia – o que é e como implementar. São Paulo: Instituto Polis, 2002.
SALAROLI, Marcelo. O registro imobiliário brasileiro no combate à informalidade. In: Anais do VII seminário ibero-americano de direito registral, Santa Cruz de La Sierra, Bolívia, outubro de 2007. Publicado no Boletim Eletrônico nº 3177. Disponível em: <http://www.irib.org.br>. Acesso em: 29.10.2007. SANCHÉZ, José Simeón Rodríguez. Princípios de regulação e organização do sistema registral: poder público, organização, autofinanciamento, responsabilidade. In: Revista de Direito Imobiliário, nº 57, jul./dez.. São Paulo: IRIB/RT, 2004.
SANTOS, Boaventura de Souza. Pela Mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1997.
SANTOS, Flauzilino Araújo dos. Importância dos registros Imobiliários para o desenvolvimento jurídico e socioeconômico do Brasil. A efetividade da segurança jurídica. In: Anais do III seminário internacional de direito registral imobiliário. Rio de Janeiro, abril de 2008, publicado no Boletim Eletrônico nº 3229. Disponível em: <http://www.irib.org.br>. Acesso em: 23.05.2008.
SANTOS, Luis A. Busanello. Formas de aquisição da propriedade imóvel pelo sistema do Código Civil e o seu registro. In: Revista de Direito Imobiliário, n. 57, jul./dez. São Paulo: IRIB/RT, 2004.
SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. 5. ed. São Paulo: EDUSP, 2005.
138
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. 30ª ed. São Paulo: Cia das Letras, 2004.
SCHEELJE, Álvaro Delgado. Eficácia dos sistemas registrais na proteção jurídica do direito de propriedade e demais direitos patrimoniais do cidadão. In: Revista de Direito Imobiliário, nº 57, jul./dez. São Paulo: IRIB/RT, 2004. SCHMIDT, João Pedro. Exclusão, inclusão e capital social: o capital social nas ações de inclusão. In: REIS, J.R. dos; LEAL, R. (Org.). Direitos sociais & políticas públicas: desafios contemporâneos. Tomo 6. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2006. ___. Gestão de políticas públicas: aspectos conceituais e aportes para um modelo pós-burocrático e pós-gerencialista. In: REIS & LEAL (Org.). Direitos sociais & políticas públicas: desafios contemporâneos. Tomo 7. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2007. ___. Para entender as políticas públicas: aspectos conceituais e metodológicos. In: REIS & LEAL. (Org.). Direitos sociais e políticas públicas: desafios contemporâneos. Tomo 8. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2008. SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas tributárias indutoras e intervenção econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
SIDOU. J. M. Othon. Dicionário jurídico da Academia Brasileira de Letras Jurídicas. Rio de Janeiro: Forense, 1995.
SILVA, José Marcelo Tossi Silva. Registro de parcelamento regularizado (no Estado de São Paulo). In: Revista do Direito Imobiliário, nº 62, jan./jun de 2007. São Paulo: IRIB/RT, 2007.
SILVEIRA, Rogério L. L. Cidade, corporação e periferia urbana: acumulação de capital e segregação espacial na (re)produção do espaço urbano. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2003.
SWENSSON, Walter Cruz. Manual de registro de imóveis. São Paulo: Saraiva, 1991.
TÉVOÉDJRÈ, Albert. A pobreza, riqueza dos povos: a transformação pela solidariedade. 2. ed. São Paulo: Cidade Nova, 1982. TURNER, Bryan S.; ROJEK, Chris. Society and culture - principles of scarcity and solidarity. London: SAGE Publications, 2001.
ULLMANN, Reinholdo Aloysio. O solidarismo. São Leopoldo: UNISINOS, 1993.
139
VENOSA, Lilia Lúcia Pellegrini. Georreferenciamento e o procedimento de retificação judicial. In: Boletim Eletrônico do IRIB, São Paulo, nº 2.307, fevereiro de 2006. Disponível em: <http://www.irib.gov.br>. Acesso em 20.05.2007. VIANNA, Túlio Lima. Roteiro didático de elaboração de projetos de pesquisa em direito. São Paulo: Jus2, 2003. VIEIRA, Liszt. Os argonautas da cidadania. São Paulo: Record, 2001.
140
ANEXOS
141
ANEXO A
PERFIL DOS ENTREVISTADOS
I. EXECUTIVO MUNICIPAL Na municipalidade caxiense a policy das regularizações fundiárias está afeta
ao Setor de Regularização Fundiária da Secretaria do Desenvolvimento Urbano, da
Prefeitura Municipal, criado no ano de 1985. Esse órgão especializado é chefiado
pelo bacharel de direito Sr. João Canton que atua no setor, desde o ano de 1994,
em conjunto com um topógrafo e dois auxiliares de topografia, duas estagiárias
desenhistas e um auxiliar escriturário, cujo depoimento foi gravado nas
dependências da repartição, no mês de novembro de 2008.
Dentre as atribuições do entrevistado estão: a articulação com os demais
órgãos da prefeitura, especialmente com a Secretaria de Planejamento Urbano, com
o Cadastro Imobiliário e com a Secretaria da Fazenda; a articulação com o poder
judiciário, registro de imóveis, Associações de Moradores e demais entidades e
pessoas físicas; a montagem do processo de regularização, elaboração e
acompanhamento do processo judicial do More Legal do lote a regularizar desde sua
fase inicial, com a coleta dos documentos pessoais e outros, até a obtenção do
registro imobiliário do lote, momento que caracteriza a regularização fundiária
definitiva; e, a regularização das áreas viárias e dominiais públicas, dos
parcelamentos irregulares por meio da abertura da respectiva matrícula junto ao
registro imobiliário.
II. JUDICIÁRIO E EXTRAJUDICIAL No âmbito do poder judiciário, as informações foram obtidas junto à Escrivã
da Vara da Direção do Foro, Srª. Vera, que disponibilizou o acesso ao arquivo de
portarias, ofícios e atas referentes às regularizações fundiárias no município, bem
como aos processos do More Legal, que necessariamente tramitam naquele órgão
sob chancela do Juiz Diretor da Vara, na função de juiz corregedor permanente.
142
Em relação ao segmento extrajudicial no município de Caxias do Sul, a
pessoa mais indicada e qualificada para prestar informações e enriquecer o trabalho
é o Sr. Olintho Mendes de Castilhos, titular do 1º Ofício de Registro Imobiliário da
comarca, nomeado para a função de coordenar e orientar as ações de regularização
fundiária no município, pelo Juiz Diretor do Foro, por meio da Portaria nº 051/91-DF,
reeditada com a Portaria 022/94-DF, a qual permanece em vigor.
Além dessa atribuição, o entrevistado é pessoa de notório conhecimento
jurídico na área do direito registral imobiliário, em face do exercício da atividade há
mais de 40 anos. Por esse motivo e por diversas vezes, ministrou palestras sobre o
tema a acadêmicos e profissionais do Direito. Pelas mesmas razões, os magistrados
que ocupam a função de juiz corregedor, com mandato de 2 anos, costumam buscar
a opinião e orientação do registrador para esclarecer as dúvidas do cotidiano em
relação à matéria.
O registrador entrevistado é a pessoa responsável por muitas das soluções
encontradas para as regularizações fundiárias no município, entre estas: a
conversão das escrituras de fração ideal em área individualizada, o que é embrião
do Projeto More Legal, na medida em que esses instrumentos passaram a ser
acolhidas ao registro e convertidos, por retificação da escritura, em matrículas de
imóveis individualizados mediante certidão, expedida pela municipalidade. Da
mesma maneira, é da concepção do Sr. Olintho o registro das áreas viárias e
dominiais em nome do município, por meio de simples requerimento.
III. LEGISLATIVO Para responder pelo legislativo, o entrevistado é o Vereador Francisco
Spiandorello, o “Chico da Caixa” como é conhecido, por ter exercido o cargo de
gerente da Caixa Econômica Estadual - RS durante mais de 25 anos, na agência de
Caxias do Sul. Seu currículo é expressivo: dois mandatos de Deputado Estadual
(1978, 1982); Secretário Municipal da Habitação, Assistência Social e Saúde (1989);
Vice-prefeito do município (1992); quatro mandatos consecutivos como Vereador
(1996, 2000, 2004 e 2008); três vezes Presidente da Câmara e atual Presidente da
143
Comissão de Constituição e Justiça da Câmara de Vereadores, além de líder de
bancada (PSDB).
Sua experiência na matéria é ampla pelo fato de que já esteve no exercício
do poder executivo, como secretário municipal, e atualmente integra o legislativo.
Assim sendo, tem a perfeita visão do poder público em ambos os segmentos. Na
municipalidade teve oportunidade de implementar plano habitacional que produziu
diversos loteamentos populares, bem como de participar das ações de regularização
de diversos loteamentos irregulares, entre os quais a do “Jardim das Hortências”.
Além disso, discutiu, votou e aprovou leis de uso e parcelamento do solo urbano e
planos diretores, bem como programas de regularizações, além da aprovação
legislativa de loteamentos regularizados.
IV. COMUNITÁRIO Tendo como foco a comunidade do loteamento “Jardim das Hortências”,
buscou-se obter a opinião e experiência vivida pelos moradores do loteamento. Para
tanto, a pessoa indicada é a Presidenta da Associação dos Moradores do Bairro
Jardim das Hortências, Sra. Vanir Teresinha Dalzotto Costa, que ocupa a
presidência da associação desde 2005, a qual concedeu a entrevista em sua
residência, no bairro Jardim das Hortências.
A entrevistada é moradora no local desde março de 1982 e viu nascer o bairro
com todas as deficiências e dificuldades decorrentes das irregularidades. Por
ocasião da entrevista, oportunizou análise das atas de reuniões da associação, em
que se visualiza o desenrolar da regularização do loteamento e também dos
contratos de compra e venda dos lotes, firmados entre os moradores e a empresa
Vila Rica.
Ainda na esfera da comunidade, o Sr. Gelson Huger prestou significativas
informações na qualidade de preposto do Sr. Ludovico Dante Boff, este o
proprietário original da gleba rural onde foi implantado o irregular loteamento “Jardim
das Hortências”. O entrevistado, esclareceu aspectos e elementos relativos à
constituição do loteamento, bem como franqueou acesso aos contratos preliminares
144
de compra e venda da gleba rural, firmados entre Ludovico e a loteadora Vila Rica e
a outros documentos e atas. Infelizmente, o Sr. Ludovico não pôde prestar
informações pessoalmente em virtude de problemas de saúde.
V. EMPRESARIAL Quem concede a entrevista e interpreta a visão da iniciativa privada é o Sr.
Ovídio Deitos, conceituado empresário do setor de urbanização e loteamentos na
cidade de Caxias do Sul há trinta e quatro anos. A empresa que dirige, Urbanizadora
Rodobrás Ltda, implanta em torno de dois loteamentos por ano e já produziu e
entregou mais de quatorze mil lotes na cidade.
Na vida pública, foi Vereador por dois mandatos, o primeiro em 1973 quando
foi Presidente da Câmara por dois anos, e o último em 1976 que durou até 1982 por
prorrogação dos mandatos. Nesse período teve oportunidade de participar de alguns
avanços promovidos pelo executivo municipal, entre os quais alterações no
ordenamento urbano.
A entrevista, gravada, foi concedida no escritório da empresa em novembro
de 2008.
145
ANEXO A
CRONOLOGIA DAS AÇÕES NO LOTEAMENTO JARDIM DAS HORTÊ NCIAS
Data Evento Atores 1 14.03.79 Promessa de Compra e Venda da área de 11ha,
valor de Cr$16.500.000,00 Ludovico Boff Imobiliária Vila Rica
2 30.05.79 Demarcação dos lotes e início da venda de lotes por contratos particulares, ocupação e construção das primeiras moradias
Imob. Vila Rica e compradores
3 26.02.81 Constituição da Associação dos Moradores do Bairro Jardim das Hortências (AMOB-JH), com 25 sócios fundadores – Livro de Atas
Compradores e Moradores – Fundadores
4 20.11.81 Loteadora não cumpre pagamento ao proprietário original Ludovico e recebe escritura com menos área e abandona o loteamento à própria sorte Moradores depositam pagamento no RI Imobiliária Vila Rica registra 5.969,80m2 em seu nome. Matricula nº 16.908
Ludovico B. Imobiliária Vila Rica Registro de Imóveis
5 15.05.83 Reativada a AMOB-JH que estava paralisada – Reivindicação de linha de ônibus, água, esgoto e rede elétrica
Sócios e moradores
6 20.08.83 Serviço Municipal de Água e Esgoto – Samae inicia levantamento e orçamento para fornecimento do serviço de água
Moradores e SAMAE
7 17.06.84 Moradores reivindicam escrituras Samae apresenta orçamento e promete poço artesiano até o fim do ano Moradores deverão pagar pelos canos
Moradores SAMAE
8 14.07.84 Ludovico Boff doa terreno para sorteio e levantamento de recursos para complementar compra de canos. 2000 números a Cr$2,50 cada número, sorteio em 01.12.84 e entrega do lote em 08.12.84 Organizada comissão Mutirão da Água Protocolo na PM para pedir linha de ônibus e coleta de lixo Promessa de projeto de iluminação pública
Ludovico Moradores Prefeitura Municipal
9 27.07.84 Mapa do loteamento – 1ª versão Projeto de água e esgoto
Prefeitura M.
10 07.11.84 Projeto de iluminação pública Prefeitura M. 11 05.01.85 Inicia coleta de lixo
Arrecadado Cr$ 4.157.500,00 para instalação da água Samae propõe custeio de 50% pelos moradores e 50% pelo órgão
Moradores SAMAE P.Municipal
12 09.09.85 Iniciam obras de rede de água Moradores deverão pagar Cr$ 360.000,00 em 3 parcelas, até 30.12.85
SAMAE Moradores
13 28.06.86 Inaugurada linha de ônibus Moradores Transp. Caxiense
14 25.11.88 SDU conclui mapa oficial do loteamento, planilhas dos lotes e memoriais Inicia levantamento dos Moradores
Prefeitura M. Moradores
15 25.11.88 Lei Municipal nº 3.292. Institui o Programa de Regularização dos Parcelamentos Irregulares
Prefeitura M.
146
16 29.11.88 Lei Municipal nº 3.300. Disciplina o parcelamento do solo urbano
Prefeitura M.
17 19.12.90 Denominação oficial das ruas e avenidas do Bairro Jardim das Hortênsias Lei Municipal nº 3.610
Legislativo Municipal
18 15.05.91 AMOB-JH requer o cadastro dos Moradores para pagamento do IPTU
Prefeitura M. Moradores
19 10.03.92 Memoriais do Loteamento e doação de áreas de ruas e institucionais – por instrumento particular Matrículas 933 e 7623 da 2ª Zona do RI
Prefeitura M. Ludovico Registro de Imóveis
20 24.04.92 Parecer favorável da Procuradoria Municipal Prefeitura M. 21 15.06.92 Parecer favorável da SDU Prefeitura M. 22 04.08.92 Requerimento Ludovico B. p/ aprovação do
loteamento. Ludovico B. Prefeitura M.
23 25.08.92 Decreto Municipal 7481 – REGULARIZAÇÃO ADMINISTRATIVA do Loteamento J.H.
Prefeitura M.
24 05.11.92 PM. começa expedir Certidão dos lotes, medidas e confrotações
Prefeitura M.
25 13.01.93 Registro do loteamento no RI da 2ª Zona, em nome de Ludovico Boff. Conforme Matrícula n. 39.425/2-RG
Prefeitura M. Registro de Imóveis
26 13.01.93 Averbação Av. 2/M.39.425/2-RG, EX-OFFICIO do retorno de 13 matrículas de vendas de frações ideais, saídas da fração ideal da Matricula nº 16.908/2-RG, da Imob. Vila Rica
Registro de Imóveis
27 22.04.94 Reunião no RI/1ª Zona para estabelecer o acordo para que Ludovico D. Boff outorgasse escrituras definitivas aos Moradores em substituição à Imobiliária Vila Rica. Acordo assinado em 25.04.94
Ludovico Boff Imobiliária VR Registro de Imóveis Advogados
28 09.08.94 Averbação Av.3/M.39.425/2-RG, EX-OFFICIO de retificação da Av.2/M.39.425/2-RG, retorno de mais 13 matrículas de venda de frações ideais, saídas da fração ideal da Matrícula nº16.908/2-RG, da Imob. Vila Rica
Registro de Imóveis
29 1994 / 2008 Continuidade da transmissão dos lotes por Ludovico D. Boff em favor dos Moradores.
Ludovico B. Moradores
Fontes: Livro de Atas da AMOBJH, arquivos de contratos, registros imobiliários, legislação municipal e depoimento pessoal.
147
ANEXO C
MATRÍCULAS DE REGISTRO DO LOTEAMENTO E O “EX OFFICI O”
148
ANEXO D
MAPAS DO PLANO DIRETOR DE CAXIAS DO SUL, DA ÁREA UR BANA E DO LOTEAMENTO “JARDIM DAS HORTÊNCIAS”