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INFLUÊNCIAS DA PERFORMANCE NA MÚSICA ENTRE 1970 E 90 EM PORTUGAL: JORGE PEIXINHO, CLOTILDE ROSA, EDUARDO SÉRGIO MARIA BEATRIZ DE MATOS VITAL SERRÃO ___________________________________________________ Dissertação de Mestrado em Ciências Musicais Área de Especialização em Musicologia Histórica 20 DE ABRIL DE 2011

DISSERTAÇÃO MESTRADO aluno 7013

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  • INFLUNCIAS DA PERFORMANCE NA MSICA ENTRE 1970 E 90 EM

    PORTUGAL: JORGE PEIXINHO, CLOTILDE ROSA, EDUARDO SRGIO

    MARIA BEATRIZ DE MATOS VITAL SERRO

    ___________________________________________________

    Dissertao de Mestrado em Cincias Musicais

    rea de Especializao em Musicologia Histrica

    20 DE ABRIL DE 2011

  • ii

    [DECLARAES]

    Declaro que esta tese/dissertao /trabalho de projecto o resultado da minha

    investigao pessoal e independente. O seu contedo original e todas as fontes

    consultadas esto devidamente mencionadas no texto, nas notas e na bibliografia.

    O candidato,

    Maria Beatriz de Matos Vital Serro

    Lisboa, 20 de Abril de 2011

    Declaro que esta Dissertao / Relatrio / Tese se encontra em condies de ser

    apresentada a provas pblicas.

    O(A) orientador(a),

    ____________________

    Lisboa, .... de ............... de ..............

  • iii

    AGRADECIMENTOS

    Apresento os meus agradecimentos Professora Doutora Paula Gomes Ribeiro, pelo

    aconselhamento competente e dedicado elaborao desta dissertao.

    Agradeo igualmente ao Professor Doutor Mrio Vieira de Carvalho pela entrevista

    esclarecedora que me concedeu em conjunto com Joo Romo; bem como o apoio que

    este colega me facultou.

    O meu reconhecimento vai tambm para os compositores e intrpretes que me

    receberam e forneceram informaes e materiais indispensveis a este estudo, Clotilde

    Rosa, Eduardo Srgio, Paulo Brando, Catarina Latino, Maria Joo Serro, Jos Lopes e

    Silva.

  • iv

    INFLUNCIAS DA PERFORMANCE NA MSICA ENTRE 1970 E 90 EM

    PORTUGAL: JORGE PEIXINHO, CLOTILDE ROSA, EDUARDO SRGIO

    MARIA BEATRIZ DE MATOS VITAL SERRO

    PALAVRAS-CHAVE: Msica portuguesa, sculo XX, performance, teatralizao da

    msica.

    RESUMO: A presente dissertao consiste num estudo dos elementos de performance

    que foram integrados em obras de composio musical e espectculos de carcter

    multimedia, em Portugal, nas dcadas de 70 a 80 do sculo XX. Centra-se no estudo de

    obras dos compositores Jorge Peixinho e Clotilde Rosa e do artista plstico Eduardo

    Srgio, apontando a especificidade de cada um e os aspectos estticos em que se

    identificam. Como exemplos paradigmticos desta opo, foram escolhidas para anlise

    as obras Rcitation II (1971) e Voix (1972) de Peixinho, Jogo Projectado I (1979), Jogo

    Projectado II (1981) e Hellas I (1982) e II (1985) de Clotilde Rosa e os espectculos

    intermedia Cuboversuesfera (1976) e Amagarte (1986) de Eduardo Srgio. Inclui uma

    contextualizao histrica e esttica da performance a nvel internacional e nacional.

  • v

    PERFORMANCE INFLUENCES ON MUSIC FROM 1970 TO 90 IN

    PORTUGAL: JORGE PEIXINHO, CLOTILDE ROSA, EDUARDO SRGIO

    MARIA BEATRIZ DE MATOS VITAL SERRO

    KEYWORDS: Portuguese music, twentieth-century, performance, theatrical music.

    ABSTRACT: The present dissertation consists of a study of the performance elements

    integrated in musical compositions and multimedia events from 1970 to 90 in Portugal.

    It focuses the work of composers Jorge Peixinho and Clotilde Rosa and visual artist

    Eduardo Srgio, pointing out the particular aspects of each one and their aesthetic

    affinities. As paradigmatical examples, were chosen Jorge Peixinho Rcitation II (1971)

    and Voix (1972), Clotilde Rosa Jogo Projectado I (1979), Jogo Projectado II (1981),

    Hellas I (1982) e II (1985) and Eduardo Srgio Cuboversuesfera (1976) e Amagarte

    (1986). It includes a historical and aesthetic overview of performance in an international

    and a national context.

  • vi

    NDICE

    Prembulo ........................................................................................................ vii

    INTRODUO .................................................................................................. 1

    Captulo I: A performance nas dcadas de 70-80 do sculo XX ...................... 4

    I .1. O conceito de performance: elementos histricos e estticos ............ 4

    I. 2. A performance em Portugal: contextualizao .................................. 17

    Captulo II: Elementos performativos na criao musical e no espectculo

    multimedia ...................................................................................................... . 27

    II. 1. Msica e performance: Jorge Peixinho ............................................... 32

    II. 1.1. Recitao II (1971) ........................................................................ 34

    II. 1.2. Voix (1972) ......................................................... ............................ 42

    II. 2. Msica e poesia: Clotilde Rosa ............................................................... 52

    II. 2.1. Jogo Projectado I (1979) .............................................................. 54

    II. 2.2. Jogo Projectado II (1981) ........................................................ 56

    II. 2.3. Hellas I e II (1982 e 1985) ........................................................73

    II. 3. Criaes intermedia: Eduardo Srgio .................................. .................. .79

    II. 3.1. Cuboversusesfera (1976) ........................................................ 81

    II. 3.2. Amagarte (1986) ..................................................................... 84

    CONCLUSO . ............................................................................................ .. 91

    BIBLIOGRAFIA ............................................................................................. 95

    ANEXOS ........................................................................................................ 111

    Anexos I: Textos e programa

    Anexos II: Partituras

  • vii

    Prembulo

    As razes fundamentais que me levaram a escolher o tema desta tese de Mestrado

    prendem-se com a minha experincia vivida como percussionista profissional, na rea da

    msica contempornea e do teatro musical. Este percurso relaciona-se, sem dvida, com

    memrias de infncia de concertos do Grupo de Msica Contempornea a que assisti, em

    que os msicos, na sua execuo musical, actuavam teatralmente de modo no

    convencional em cena, e que me deixaram uma marca decisiva condicionante de opes

    futuras.

    Com efeito, depois de um incio de formao como percussionista com o Prof.

    Jlio Campos no Conservatrio Nacional de Lisboa, continuei a minha formao no

    Conservatoire National de Rueil-Malmaison, na classe de percusso do Prof. Gaston

    Sylvestre. Uma das caractersticas desta classe era uma forte incidncia no estudo do

    repertrio contemporneo, nomeadamente de msica de cmara, de obras solistas e de

    teatro musical. Esta opo era em grande parte devida ao facto de este professor ser

    igualmente msico profissional, membro do Trio Le Cercle (com Jean-Pierre Drouet e

    Willy Coquillat) que com frequncia criava obras a ele dedicadas de compositores como

    Kagel, Aperghis, Globokar, Batisttelli, Drouet. Uma outra caracterstica, para alm da

    exigncia tcnica, era a pesquisa sistemtica para a produo de som. Esta pesquisa

    implicava uma consciencializao da fisicalidade do percussionista que se manifestava

    atravs do uso do peso do corpo e do movimento gestual para a realizao do som na sua

    mxima amplitude harmnica. A realizao das obras com esta preocupao inerente,

    juntamente com a disposio espacial necessria execuo dos instrumentos de

    percusso, conduzem ao desenvolvimento de uma gestualidade e de um movimento que se

    podem considerar coreogrficos. A formao e a realizao profissional nesta rea que

    fazem parte da minha experincia artstica, em que tive oportunidade de executar obras

    dos gneros referenciados, de vrios compositores, inclusiv portugueses, em concertos e

    em espectculos cnico-musicais, so a motivao, tal como referi, da escolha do tema

    desta tese.

  • INTRODUO

    Nesta dissertao propomo-nos realizar o estudo dos elementos de performance

    que foram integrados em obras de composio musical e espectculos de carcter

    multimedia, em Portugal, nas dcadas de 70 a 80 do sculo XX, espao temporal

    paradigmtico das transformaes que as artes, em geral, sofreram. Dado que se trata de

    um tema abrangente no perodo a que se reporta, organizmos esta dissertao comeando

    por referir, no captulo I A performance nas dcadas de 70-80 do sculo XX, os aspectos

    mais gerais do conceito de performance. Com esse objectivo, citamos definies propostas

    por diferentes autores, alguns dos quais foram igualmente agentes prticos dos eventos que

    definem, como o caso de John Cage a nvel internacional e de Ernesto de Sousa a nvel

    nacional. Propusemo-nos ainda elaborar uma sntese histrica e esttica sobre a

    contextualizao internacional da performance, apontando os intervenientes mais activos e

    influentes no desenvolvimento deste gnero. Foi nossa inteno igualmente recuar a

    criadores que, atravs das suas propostas artsticas ou conceptuais, deram azo a que se

    abrissem novos campos de aco que se repercutiram nas correntes estticas do perodo a

    que nos referimos, tais como Luigi Russolo, Marcel Duchamp e Erik Satie. Para tal

    apoimo-nos, sobretudo, em publicaes de referncia nesta matria, das quais destacamos

    alguns autores: Philip Auslander (1987), Renato Cohen (2002), John Glusberg (1987),

    Rosalee Goldberg (2001,1981), Arnaud Labelle-Rojoux (1988), Olivier Lussac (2004).

    Seguidamente procurmos compreender a influncia deste gnero no contexto portugus,

    referindo alguns dos primeiros acontecimentos nesta rea, os seus promotores e

    intervenientes. Neste contexto constatmos a recorrncia da interaco da msica com

    outras reas artsticas, tais como a poesia experimental e as artes plsticas, facto que nos

    levou a realar a aco destas no panorama artstico deste perodo. Em consequncia,

    nesta matria, apoimo-nos preferencialmente nos seguintes autores: Eugnio de Melo e

    Castro (1977), Ana Hatherly (1981), Ernesto de Sousa (1998).

    No captulo II, Elementos performativos na criao musical e no espectculo

    multimedia, centrmo-nos no estudo de obras dos compositores Jorge Peixinho e Clotilde

    Rosa e do artista plstico Eduardo Srgio, apontando a especificidade de cada um e os

    aspectos estticos em que se identificam. Como exemplos paradigmticos desta opo,

    escolhemos as obras Rcitation II e Voix de Peixinho, Jogo Projectado I, Jogo Projectado

    II e Hellas I e II de Clotilde Rosa e os espectculos intermedia Cuboversuesfera e

  • 2

    Amagarte de Eduardo Srgio. Para melhor entendimento destas obras no contexto da

    criao artstica portuguesa na poca, recorremos aos testemunhos, comentrios e crticas

    de algumas das personalidades que acompanharam este processo e sobre ele se

    manifestaram atravs dos seus escritos: Mrio Vieira de Carvalho (1978), Manuel Pedro

    Ferreira (2007), Jos Machado (2002), Cristina Delgado Teixeira (2006). Faremos

    previamente uma referncia s tcnicas de composio da vanguarda musical

    internacional, a partir das consideraes de autores como Jean-Yves Bosseur (2000),

    Reginald Smith Brindle (1987) Richard Toop (2004).

    No nosso objectivo principal realizar uma anlise musical exaustiva das obras

    escolhidas, mas sim uma anlise em que se d relevncia ao mesmo nvel msica e aos

    outros elementos performativos. Assim, um dos parmetros que nos orientou nos aspectos

    essenciais do tema em estudo, foi a anlise comparativa entre as obras referidas de Jorge

    Peixinho, Clotilde Rosa e Eduardo Srgio, procurando identificar as tendncias que os

    unem e destacar os traos especficos da orginalidade pela qual se distinguem. Com efeito

    enquanto Jorge Peixinho, desde sempre fascinado pelos aspectos plsticos e teatralizantes,

    desenvolve em simultneo tcnicas de escrita musical de complexidade profunda;

    enquanto Clotilde Rosa sente uma afinidade intrnseca pelo movimento coreogrfico e

    pela poesia, procurando traduzi-la por uma gestualidade que, ligada execuo musical, a

    vai tornar ainda mais significante; com Eduardo Srgio a partir do seu sentido plstico e

    visual que, em estreita unio com a tendncia para igual amor pela palavra, se torna por

    escolha um msico assumido tanto na criao como na execuo dos sons com que

    complementariza as suas propostas de criao cnica.

    A pesquisa a que nos dedicmos no mbito do presente gnero, bem como a nossa

    experincia pessoal a que j nos referimos, no nos pde deixar indiferentes a outras

    produes de compositores portugueses e de outras nacionalidades que se dedicaram com

    maior ou menor sucesso criao de msica na linha da contemporaneidade de ento.

    Como mencionarei mais tarde, relembramos de imediato nomes como Karlheinz

    Stockhausen, Luciano Berio, Maurcio Kagel, Vinko Globokar, entre outros, pelo

    desenvolvimento que imprimiram ao gnero; e ainda Gyrgy Ligeti que aplicou alguns

    dos novos processos na criao de uma pera de caractersticas inovadoras. Tambm em

    Portugal a produo deste tipo de obras se alarga, algumas das quais com sinais de

    identificao com as que foram objecto da nossa escolha. O experimentalismo neste

    perodo da criao artstica nem sempre foi bem compreendido e valorizado. Isso no

  • 3

    impede que dentro desse movimento muitas obras fossem criadas de forma estruturada,

    com cdigos prprios e com elevada exigncia na execuo, de forma a torn-las num

    meio privilegiado de comunicao com pblicos receptivos inovao. Realando a

    circunstncia de uma necessidade de compr com interferncia directa na sociedade a que

    se dirige, parece-nos pertinente a seguinte afirmao de Susan McClary (Leppert and

    McClary 2006, 18):

    The ways in which one composes, performs, listens, or interprets are heavily influenced

    by the need either to establish order or to resist it.

    Para alm das razes citadas, as preocupaes de ordem social e interventiva que

    estas obras reflectem, so tambm aspectos preponderantes da minha opo no

    aprofundamento deste estilo, o qual veio a exercer uma enorme influncia nas obras do

    gnero opertico que emergiram no final do sculo XX, princpio do sculo XXI em

    Portugal.

    Para a concretizao dos objectivos descritos procurmos pesquisar e reunir fontes

    de vrios tipos: escritos dos artistas das reas em estudo, partituras de obras musicais que

    incorporam elementos performativos, iconografia e materiais udio e vdeo da poca,

    artigos em revistas especializadas e em catlogos de exposies, programas de concertos e

    de festivais, assim como bibliografia especfica. Esta pesquisa foi feita na Biblioteca

    Nacional, na Biblioteca de Artes da Fundao Gulbenkian, na Hemeroteca Municipal de

    Lisboa, na Biblioteca do CESEM e em arquivos particulares. Foram igualmente realizadas

    entrevistas com personalidades representativas como Clotilde Rosa, Eduardo Srgio,

    Catarina Latino, Jos Lopes e Silva, Paulo Brando, Mrio Vieira de Carvalho e Maria

    Joo Serro. Esta recolha de materiais e a sua seleco foi essencial para determinar os

    contedos e a forma estrutural que imprimimos a esta dissertao.

    A concluso ser elaborada a partir desta configurao dos elementos enunciados

    que, para alm dos dados que descriminaremos, nos deixar espao para continuar a nossa

    pesquisa no mbito deste tema.

  • 4

    CAPTULO I

    A PERFORMANCE NAS DCADAS DE 60-80 NO SCULO XX

    Understanding of a texts original historical-cultural

    context is both an end to itself and a means of determining

    where we are in relation to where we have been.

    Michael Klein1

    I. 1. O conceito de performance: elementos histricos e estticos

    A palavra performance tem diferentes significados consoante os contextos e a

    poca onde a encontramos aplicada. No Dicionrio da Lngua Portuguesa, da Porto

    Editora, esta palavra tem entrada com a grafia inglesa anglicanismo que reflecte a

    adopo do seu uso corrente na nossa lngua e associada a desempenho,

    realizao, proeza, e igualmente a actuao, a qual consideramos ser a melhor

    traduo para esta palavra no contexto do campo artstico. De notar que existe

    igualmente neste dicionrio uma entrada para a palavra performer, como sinnimo de

    executante, intrprete, actor, artista e msico. A este propsito Ernesto de

    Sousa comentava, em 1979 (1998, 182):

    Performance. Primeiro a palavra. Questo para os puristas da lngua, tem at havido

    protestos pelo uso imoderado de palavras e ttulos anglo-saxnicos. Em tempo foi o

    francs e muitos desses protestos se justificam. (Entretanto j se esqueceu que Mozart

    utilizava o italiano para as suas obras, e que um rei-poeta castelhano escreveu em

    portugus...?). Claro que estas adopes e utilidades de lnguas-outras no so inocentes

    e esto entrelaadas tambm com a histria do poder: actualmente h uma resignao

    universal, sobretudo no domnio das 'vanguardas' estticas quanto s denominaes

    inglesas. (...) Mas quanto palavra performance a histria mais complexa: adoptada

    no mundo dos espectculos ou do desporto anglo-saxo, a sua origem latina, italiana:

    per formare, atingir de novo a forma, como numa afirmao platnica; a forma (ideia)

    existe antes da sua realizao (...).

    1 2005, Intertextuality in Western Art Music, Bloomington: Indiana University Press.

  • 5

    Parece-nos curioso que no Grove Dictionary of Music and Musicians

    performance seja unicamente considerada enquanto acto de execuo e de interpretao

    da msica ao longo dos sculos, no se fazendo qualquer referncia ao seu significado

    especfico enquanto expresso artstica nos movimentos de vanguarda das dcadas de

    60 a finais de 80 do sculo XX que se manifestaram intensamente nos Estados Unidos,

    no Japo e na Europa. Enquanto que tal facto nos parecia de algum modo compreensvel

    na edio de 1980, pela sua proximidade temporal com estes eventos, parece-nos uma

    lacuna importante o facto de continuar a no ser mencionada essa ligao na edio de

    2001. S o podemos entender pela dificuldade de uma definio que abranja os

    mltiplos sentidos conotados com esta palavra performance embora, no sentido

    restrito, se pudesse circunscrever a uma definio como gnero artstico pluridisciplinar.

    Estando conscientes que a definio de conceitos nos leva utilizao de outros

    conceitos, parece-nos muito relevante a ideia desenvolvida por Schopenhauer de

    conceito enquanto campo semntico. Nesta ideia o filsofo compara o campo semntico

    com um territrio definido por um crculo; cada crculo corresponde a um determinado

    conceito e interage com outros crculos (outros conceitos) porque no completamente

    independente e autnomo: em maior ou menor proporo ele contamina, contm ou

    coincide com outro. Como refere Ernesto de Sousa, o conceito faz-se e refaz-se em vez

    de ser um dado inicial. E com esta viso em mente que tentaremos problematizar o

    conceito de performance.

    Conforme afirma Roselee Goldberg (1998,12) o termo performance no

    preciso, nico e definitivo. De algum modo esse termo permevel a interpretaes, por

    tantos e to diferentes serem os artistas e as obras por estes produzidas com recurso a

    tcnicas e a materiais pertencentes s mais variadas reas artsticas artes plsticas,

    poesia, teatro, msica, dana, fotografia, cinema e tecnolgicas modos de

    captao, utilizao e difuso de som e imagem.

    Para esta autora, assim como para Renato Cohen (2002) e para Ernesto de Sousa

    (1998) entre outros, a performance est ligada a um movimento mais abrangente e a

    uma forma de se encarar a arte: a live art a arte ao vivo, mas igualmente a arte viva;

    uma arte onde se busca uma aproximao directa com a vida, em que se estimula o

    espontneo e o natural em detrimento do elaborado e do ensaiado e que, segundo

    Renato Cohen (2002, 137) se insere num movimento de ruptura que a pretende

    dessacralizar, retirando-lhe a sua funo puramente esttica e elitista. Esta forma de arte

  • 6

    comporta uma rede de conceitos e de manifestaes criativas que, a partir dos anos 50

    do sculo XX, tiveram origem primeiro nas artes plsticas e depois no teatro e na

    poesia: esttica moderna, vanguarda no-arte, arte para todos, arte da vida, body art,

    land art, live painting, live theatre, action-art, poesia concreta, poesia sonora... Estas

    manifestaes emergem em fases sucessivas nos vrios continentes.

    A ideia de arte aco em ruptura com a arte monumento (nas palavras de

    Ernesto de Sousa), a qual motiva uma colaborao intensa entre artistas de reas

    diferentes, no surge na segunda metade do sculo XX, mas sim no incio desse sculo,

    na Europa.

    Com efeito nessa altura que iro despontar diversos movimentos artsticos que

    agrupavam pintores, poetas, msicos, que se encontravam em seres onde se realizavam

    concertos, onde se recitava poesia, onde se liam manifestos e se defendiam concepes

    de criao artstica, dando muitas vezes azo a escndalos e mesmo a cenas de

    pancadaria.

    Assinalamos aqui alguns movimentos que deram sinais de provocao, de

    destruio das normas estabelecidas, de questionamento das estticas vigentes que,

    atravs de divergentes processos iro dar origem a aces e realizaes que sero

    retomados e desenvolvidos na segunda metade do sculo XX.

    Na dcada de 1910, o movimento futurista, de Marinetti defendia uma

    radicalizao dos conceitos de arte, realizando manifestaes que criavam polmicas e

    que se queriam provocadoras; em 1916, aberto o Cabaret Voltaire, em Zurique, por

    Hugo Ball e Emmy Hennings, no qual germinar o movimento Dada, integrando artistas

    como Tristan Tzara, Richard Huelsenbeck, Rudolf von Laban, Jean Arp, entre outros, e

    que, aps cinco meses, se espalhar por toda a Europa, passando Paris a ser o eixo

    central da sua actividade; em 1917, dois espectculos estreiam em Paris com grande

    impacto junto do pblico e da crtica: Parade, bailado de avant-garde, de Cocteau, para

    os ballets russes de Diaghilev, com msica de Satie, figurinos de Picasso e uma nota de

    programa de Apollinaire na qual, pela primeira vez, aparece a palavra surrealista; e Les

    mamelles de Tirsias, de Apollinaire, cujo tema da pea causa escndalo2. O conceito de

    dana e de encenao ser revolucionado por estes espectculos. Igualmente em 1917

    lanada a revista Littrature, por Andr Breton, Paul luard, Philippe Soupault e Louis

    2 Uma mulher que, cansada da sua condio de mulher, se transforma em homem e abandona o lar; o

    marido, por seu lado, d luz 40049 crianas.

  • 7

    Aragon, que marcar o incio do movimento surrealista; este tinha como objectivo

    realizar actos de provocao ao pblico, atravs do escndalo. Segundo Renato Cohen

    (2002, 98) o movimento surrealista ataca com veemncia o realismo no teatro,

    apresentando espectculos com elementos inovadores, como peas sem texto,

    personagens-cenrio fantsticos, multides representadas numa nica personagem.

    Estas peas acontecem tanto em teatros como em demonstraes de rua.

    Paralelamente ao surrealismo, na Bauhaus, fundada por Walter Gropius, vo-se

    desenvolver experincias cnicas importantes que se propem integrar, de um ponto de

    vista humanista, arte e tecnologia. Oskar Schlemmer, responsvel pela seco de artes,

    cria espectculos como o Triadisches Ballet (1922)3. Neste bailado, com msica de Paul

    Hindemith, o bailarino transformado em pura forma geomtrica em movimentao,

    pelo aco das mscaras e dos figurinos utilizados, concebidos sobre modelos

    elementares das formas plsticas (esfera, cubo, cilindro, espiral), a que a Bauhaus deu

    particular relevncia. Segundo Schlemmer, citado por Hatherly (2009, 30):

    (...) o sentimento corporal acentuado e modificado de uma maneira decisiva. Pode

    dizer-se que nestes figurinos mais o traje que enverga o bailarino do que o bailarino o

    traje... O fato mais ou menos rgido, a mscara mais ou menos total, so, pelos seus

    efeitos, semelhantes s armaduras do soldado que o torna tanto mais consciente de si e

    herico quanto mais completa e pesada ela for.

    A Bauhaus ser fechada em 1933, com a subida do nazismo ao poder e, a partir

    desta data, o eixo principal desta escola deslocar-se- da Europa para os Estados

    Unidos, onde se ir desenvolver posteriormente o happening.

    Segundo Peter Brger4 (1993, 122) o movimento de vanguarda do incio do

    sculo XX rompeu de forma radical com a tradio da arte na sua totalidade, a que

    chama obra de arte tradicional. Com efeito, o autor designa esta obra de arte como obra

    orgnica porque ao procurar dar uma viso de globalidade, os seus elementos

    constituintes s tm sentido quando integrados no todo; em contrapartida, considera que

    na arte de vanguarda, por ele designada de obra inorgnica, s em sentido figurado se

    pode falar de totalidade da obra, uma vez que as suas componentes possuem um grau

    3 Apresentaes experimentais deste bailado foram realizadas, em 1916, por Elsa Hotzel e Albert Berger.

    4 Autor que considera que a vanguarda surge como uma instncia autocrtica da estrutura social em que a

    arte se d.

  • 8

    elevado de independncia, podendo ser interpretadas tanto em conjunto como em

    separado: a obra montada em fragmentos; segundo o autor, a inteno dos

    movimentos histricos vanguardistas foi a destruio da instituio arte enquanto obra

    separada da praxis vital; e a provocao do pblico, atravs de um efeito de choque,

    com o objectivo de o levar a interrogar-se sobre a sua prpria concepo do mundo e de

    si mesmo, criando-lhe uma necessidade de modificao de comportamentos.

    Parece-nos ainda interessante a reflexo que faz sobre as manifestaes criativas

    dos anos 1950/60, os happenings, a que chama neovanguardistas (Brger distingue

    vanguarda primeira metade do sculo XX e neovanguarda incio da segunda

    metade desse sculo) e que considera serem um retorno arte como instituio e

    restaurao da categoria de obra de arte, logo, um reflexo de um fracasso das intenes

    do movimento de vanguarda: com a repetio, o efeito de choque deixa de provocar

    surpresa, tornando-se esperado pelo pblico que j no afectado com igual impacto.

    Pelo contrrio, ele vai consumir esse efeito. A ateno do pblico passa da tentativa

    de captao do sentido da obra atravs da leitura das suas partes, simplesmente para o

    seu princpio de construo. Ou seja, numa fase ps-vanguardista (segunda metade do

    sculo XX) aplica-se com fins artsticos os processos anteriormente concebidos com

    inteno anti-artstica: criam-se condies para a subsistncia da instituio arte

    separada da praxis vital. Citamos Peter Brger (1993, 104):

    " Assim, pois, o que referido pela categoria de obra no s restaurado a partir do

    fracasso da inteno vanguardista de reintegrar a arte na praxis vital, como ainda se

    amplia. O objet trouv, a coisa, que no resulta de um processo de produo individual,

    mas o encontro fortuito em que se materializa a inteno vanguardista de unir a arte

    praxis vital, hoje reconhecido como obra de arte. O objet trouv perdeu o seu carcter

    anti-artstico, transformou-se numa obra autnoma com lugar reservado, como as

    outras, nos museus."

    Consideramos que o processo que Brger refere, de reaco e de rebelio ao

    institucional atravs da procura de um instrumentarium e de formas inovadores e a sua

    posterior assimilao por esse mesmo meio institucional, um processo cclico que se

    repete ao longo dos tempos. Contudo, no sculo XX vai-se mais longe na concepo de

    Arte, elevando por um gesto de intencionalidade objectos do quotidiano a objectos

    artsticos. Como do conhecimento geral, este processo de ruptura radical foi

    inicialmente concretizado por Marcel Duchamp e influenciou decisivamente todo o

  • 9

    pensamento sobre Arte neste sculo. A este propsito citamos Labelle-Rojoux

    (1988,12):

    Retour donc Duchamp, oui, Duchamp, parce que Oui parce que, parce que cest

    ainsi: tout tourne, autour de Duchamp, Duchamp, oeil de cyclone, pe Dada multi-

    spires. Duchamp, pav dans la mare. Avec lui apparat une succession danneaux dans

    leau, leau trouble: Nouveau Ralisme, happenings, pop art, Fluxus, art conceptuel,

    body art, Arte Povera...

    Num comentrio menos irnico e mais afirmativo quanto aos meios

    determinantes de uma nova semntica, Ernesto de Sousa diz (1998, 92):

    Os bigodes que Duchamp ps na Gioconda no foram apenas o resultado de uma

    atitude de irreverncia, mas o comeo da grande libertao semntica que preside s

    novas cincias humanas e nomeadamente semiologia; a queda definitiva dos cones e

    a sua elevao a componentes de uma linguagem que se pretende enfim libertada,

    potica.

    No que diz respeito matria musical tambm uma nova atitude e novos

    conceitos vm permitir a ideia exposta por Brger de unir a arte praxis. Nesse

    contexto no podemos deixar de referir as ideias de Luigi Russolo (1885-1947) acerca

    do som-rudo quando considera que os sons da vida moderna da poca, ligados aos

    rudos dos meios urbano e industrial, afectam a percepo da escuta do ser humano,

    ampliando-a, devendo assim passar a fazer parte integrante da msica. Estas ideias so

    defendidas em pormenor no seu manifesto LArt des bruits, publicado em 1913.

    De igual importncia foi o contributo de Erik Satie (1866-1925) para uma nova

    viso da msica. Com efeito Satie foi uma personalidade parte na criao musical do

    sculo XX tendo sentido a necessidade de colocar a sua arte, ainda num perodo em que

    manifestava um vocabulrio relativamente reduzido, ao servio de uma convico, de

    uma causa esttica que implicava um grande esprito de ironia. Ele no se contentava

    em criar apenas a msica, mas fazia-a acompanhar de palavras, de manifestos. Esta

    tendncia manifesta-se igualmente nos ttulos que escolhe para as suas obras,

    frequentemente peas curtas, nas quais ele faz anotaes burlescas para a sua execuo

    ou onde inclui pequenos poemas de carcter humorstico. Numa breve passagem da

    biografia de Erik Satie descrita no Dictionnaire de La Musique Larousse (Serres-

    Cousinet 1987) faz-se uma referncia ao facto de Satie ter aberto a via a inovaes

  • 10

    estticas sobre as quais outros desenvolvero as suas carreiras, mantendo um carcter

    mais ligeiro nas suas prprias composies, tais como msica de fundo, a que chama

    Musique dameublement; msica grfica e conceptual, com partituras caligrafadas e

    acompanhadas de desenhos e de poemas que ele probe de serem lidos em voz alta

    (Sports et divertissements, 1914); msica de colagem, com citaes, efeitos realistas e

    com rudos (Parade, 1917); msica ininterrupta, de meditao (Vexations,1893), etc.

    Acentuando estas caractersticas de Satie, Olivier Lussac (2004, 148-149) afirma:

    Non seulement il est le crateur de nombreuses musiques pour la danse, mais il est trs

    vite intgr dans le groupe dadaste de Zurich, suite au scandale de Parade, dans lequel

    il place des trompe-loreille, sirne, roue de loterie, machine crire. Cocteau a

    compar les bruits de Parade a des fragments de ralit. (...) il [Satie] droute, imposant

    des textes ne pas lire et en demandant de jouer pendant dix-huit heures um motif

    vexatoire, ou encore en diffusant une musique quil interdit dcouter. (...) La Musique

    dAmeublement de Satie est donc le fond sonore de toute lactivit humaine:.

    Estas duas personalidades, Russolo e Satie, juntamente com Marcel Duchamp,

    so referenciadas por Olivier Lussac no seu livro Happening & Fluxus (2004) como

    precurssores destas novas formas artsticas, e como tendo influenciado decisivamente

    as ideias e a concepo esttica de John Cage. Com efeito, Lussac afirma (2004, 141):

    Cage a port llan crateur de Russolo son terme logique, en proposant que tout son

    puisse tre utilis en musique. Les sons ne ncessitent pas dtre oganiss par un auteur

    ou par une intention, il suffit simplement que quelquun les coute. Cette nouvelle

    apprhension de la musique a permis dlargir, aussi loin que possible, le champ du

    domaine sonore.

    E ainda, citando Cage no seu texto James Joyce, Marcel Duchamp, Erik Satie:

    un alphabet5, a propsito da msica de fundo (Musique dameublement) :

    Il nous faut mettre en oeuvre une musique qui soit comme du mobilier, cest--dire

    une musique qui puisse faire partie des bruits de lenvironnement, qui en tienne compte.

    Je la conois mlodique, tamponnant les bruits des cuillres et des fourchettes, mais

    sans les dominer, sans quelle simpose. Elle comblerait ces silences lourds qui se

    glissent parfois dans un groupe damis qui dnnent ensemble. Elle leur viterait davoir

    entendre leurs propres banalits. Et puis elle neutraliserait ces bruits de la ville qui

    5 Texto de introduo da pea para radio com o mesmo ttulo, de 1982, com msica de Mykel Rouse.

  • 11

    sinfiltrent avec tant dindiscrtion dans les conversations. Une telle musique rpondrait

    un besoin rel. (Lussac 2004, 148).

    Lussac depreende assim que, para Cage, todos os sons podem ser utilizados

    musicalmente e que no necessitam de serem organizados com uma inteno especfica.

    Eles s necessitam de ser escutados. E considera que a nova viso musical, trazida por

    Russolo e Satie, alarga consideravelmente o espectro sonoro que ir abranger o que, at

    a, era considerado dissonncia e rudo, abrindo uma via de explorao sonora e

    tmbrica que continuar a ser explorada ao longo da primeira metade do sculo XX, em

    diversos centros experimentais, tanto nos Estados Unidos como noutros pases (Frana,

    Itlia, Alemanha, Japo...)6.

    Continuando a expressar as ideias de Olivier Lussac, estes centros experimentais

    desenvolviam a sua pesquisa em dois vectores principais: por um lado exploravam a

    organizao do som atravs de todos os meios disponveis ao seu alcance

    osciladores, geradores, amplificadores de som e, por outro lado, exploravam uma

    prtica extra-musical teatro, dana, filme.

    Para John Cage esta prtica extra-musical, igualmente determinante na sua

    concepo de arte e nas suas obras, sendo referenciada no seu texto The Future of

    Music: Credo, de 19377. Os princpios da msica experimental esto assim definidos,

    assim como os da performance.

    Ligado a este pensamento e s experincias de John Cage patentes nos seus

    seminrios na New School of Social Research e no Black Mountain College, surgiu, na

    dcada de 1950 uma nova aco performativa, a qual tem origem num evento realizado

    em 1952 por Cage, em conjunto com artistas de outras reas e a que chamou Untitled

    Event. Merce Cunningham descreve esse acontecimento da seguinte forma:

    6 Em Nova York, as experincias feitas por Cage e os seus discpulos, por exemplo, o Project of Music

    for Magnetic Tape, primeira experincia americana de produo de msica para banda magntica com

    tcnicas de colagens de sons manipulados; a abertura de vrios estdios, normalmente ligados s rdios,

    de msica concreta em Paris e de msica electrnica em Colnia e em Milo.

    7 In http//:www.ele-mental.org/ele_ment/said&did/future_of_music.html, 28/07/2009. Este texto foi

    apresentado numa comunicao em Seattle, em 1937, mas s foi publicado em 1958, acompanhando o

    disco produzido por George Avakian, Cages 25-Year Retrospective Concert, integralmente composto

    de peas do compositor, escritas entre 1934 e 1958. (Texto completo no anexo I).

  • 12

    En 1952, Cage organiza un vnement thtral dun genre nouveau au Black Mountain

    Summer School. David Tudor jouait du piano, Mary Carlyn Richards and Charles Olsen

    lisaient de pomes. Les tableaux blancs de Robert Rauschenberg taient accrochs au

    plafond. Ce dernier passait des disques. Cage parlait, je dansais. La pice avait une

    dure de 45 minutes (...) Le public tait assis face face au milieu de la scne, et

    aucun spectateur ne pouvait directement observer tout ce qui se passait. (Lussac 2004,

    155-156).

    Estas novas aces multiplicam-se a partir do final dos anos 50 e so designadas

    happenings por Allan Kaprow, em 1957. Concretizado fora dos espaos habituais de

    representao e de concerto, comportando uma forte componente de elementos de

    improvisao, o happening utilizava recursos de diferentes disciplinas artsticas,

    conjugados com um certo sentido de teatralidade. Aqui, a arte no se queria separada da

    vida do quotidiano, e eram utilizados como materiais objectos utilitrios que se

    elevavam categoria de objectos de arte. Em resposta questo do que um

    happening, o compositor Giuseppe Chiari (1966) acrescenta a seguinte definio:

    Quest-ce quun happening? Assumer un acte qui saccomplit dans la vie quotidienne,

    habituellement, distraitement, presque sans sen apercevoir, comme un acte signifiant.

    Com um carcter efmero, construdo no momento para aquele momento, este

    acto criativo era igualmente inovador no modo de considerar a relao com o pblico,

    interagindo com este com o objectivo de o motivar para uma participao activa e

    tentando romper com a sua tradicional passividade de elemento essencialmente

    receptivo, ou seja, provocando a anulao das diferenas entre actor e espectador.

    Quebrando a barreira do palco, levando a arte para a rua, com uma estrutura

    fragmentada, defendendo a ideia que a arte deve ser feita por todos e classificando-se

    pelos prprios intervenientes como no-arte para se diferenciar do conceito de arte

    tradicional, o happening vai-se alimentar do que se produz nas diversas artes teatro

    ritual de Artaud, teatro laboratrio de Grotowski, teatro dialctico de Brecht, a nova

    dana de Martha Graham e de Merce Cunningham entre outros e ir dar origem ao

    movimento Fluxus, o qual, encabeado por artistas como John Cage, Allan Kaprow,

    George Maciunas, Robert Filliou, Wolf Vostell, Dick Higgins, entre muitos outros, ir

    divulgar esta esttica por todo o mundo, difundindo o seu carcter de criao colectiva e

    permanente de festa. Este movimento completou um crculo que, tendo sido iniciado na

  • 13

    Europa no incio do sculo e exportado para os Estados Unidos atravs de artistas em

    fuga da situao poltica dos anos trinta (fuga ao nazismo), retoma nesta altura o

    caminho inverso, em direco Europa.

    O conceito de happening est subjacente ao conceito de performance, sendo que

    esta se desenvolve, sobretudo, a partir do campo das artes plsticas. Com efeito, sero

    fundamentais as experincias de action painting desenvolvidas por Jackson Pollock, e a

    sua ideia que o artista deve ser o sujeito e o objecto da sua obra. O acto de pintar e os

    movimentos fsicos que o concretizam tornam-se objecto e aco artsticos. No acto de

    pintar, o corpo e a movimentao ganham importncia e so encenados pelo artista o

    corpo-instrumento ligado dimenso espao-tempo8. A partir da dcada de 1970 a

    performance afirmar-se- como uma arte cnica onde se vivenciam experincias mais

    estruturadas e desenvolvidas conceptualmente que no happening e onde se incorporam

    dois factores: o ponto de vista plstico, com supremacia da imagem, e a integrao de

    tecnologia microfones, vdeo, projeces; arte que se queria integrante e que

    pretendia romper com as fronteiras acadmicas disciplinares.

    Renato Cohen (2002, 199) compara a ideia de interdisciplinaridade como meio

    de construo da arte total em Wagner e em Bob Wilson, considerando que na

    concepo de pera wagneriana esse processo de utilizao de diferentes linguagens

    realizado de um modo harmonioso e linear, enquanto que na pera encenada por Bob

    Wilson, realizada uma fuso das linguagens, de um modo no linear, por justaposio

    e colagem, cada elemento sofrendo um desenvolvimento autnomo, embora interactivo.

    Assim, Cohen considera que a estrutura da performance construda sobre uma

    linguagem hbrida, cnico-teatral e mixed-media, privilegiando-se uma ou outra

    conforme a formao e a preferncia do artista. Este autor afirma ainda que a

    performance, contrariamente ao teatro tradicional, no se estrutura numa forma

    aristotlica com comeo, meio e fim e com uma linha narrativa mas antes uma

    criao que se desenvolve atravs da justaposio de elementos, de colagem e de

    encenao. Por seu lado, Ernesto de Sousa (1998, 60-62) no seu artigo Os 100 Dias da

    5 Documenta, esquematiza alguns pontos que considera importantes para a definio

    de anti-arte/ no arte/ contracultura: o fim de tabus formais; a utilizao catrtica do

    riso, valor potico numa linhagem surrealista; a eliminao da distncia entre o criador e

    8 Conceitos exaustivamente desenvolvidos por Laban, e ainda hoje aplicados nas prticas do movimento.

  • 14

    o espectador; a libertao formal e uma maior penetrao do quotidiano atravs da

    utilizao dos objectos e dos respectivos conceitos; a valorizao do efmero; o

    repensar tudo o que nos envolve at investigao sistemtica (a arte dos sistemas); o

    estudo do prprio corpo: body art; o exerccio da liberdade como experincia ou jogo: a

    valorizao do clown e do brinquedo a ludificao; a utilizao consciente e prtica,

    distanciada da utopia, logo como no-utopia; a investigao de tempo existencial:

    fotografia aleatria, cinema a tempo inteiro; o estetizar da investigao autobiogrfica.

    Annemieke Van de Pas, no programa do Festival Internacional de Arte Viva:

    Alternativa 29, realizado em Almada, em 1982, considera que a performance uma

    forma de expresso mais vulnervel e mais discutvel que outras formas teatrais ou

    artsticas pelo lado efmero dos seus meios e da sua expresso. O mago de uma

    performance sempre formado pelo investimento do corpo do artista, cuja presena se

    define em relao com os movimentos e a aco que apresenta. Os gestos premeditados

    ou espontneos, acompanhados pelo investimento total do corpo e da sua inteno

    podem integrar-se num mundo de performances atravs da distanciao abstracta e

    simbolizante que se estabelece na mente. Enquanto que a performance em si se afirma

    como uma linguagem prpria, situando-se entre a arte, o teatro, a poesia e a vida:

    "Comparada s lnguas antigas como a humanidade do teatro e da arte, a performance

    possui ainda a frescura de uma linguagem que acaba de ser criada. Uma linguagem

    directa, instantnea e varivel, que corresponde nossa poca e cujas possibilidades

    deveriam ser exploradas ao mesmo nvel que o teatro, a arte ou a literatura."10

    Mas a performance vai manter a ideia de radicalidade e a linguagem de

    experimentao j existentes nos happenings da dcada anterior, assumindo-se como

    uma arte de interveno e de transgresso, que tinha como objectivo provocar uma

    transformao no espectador/receptor. Esta transformao pretende-se que seja

    resultante duma atitude provocatria destes eventos, na medida em que dificilmente o

    receptor fica indiferente, pelo carcter inesperado, anacrnico e at por vezes um pouco

    contundente destas manifestaes. Elas pretendem contrariar a passividade e o

    conformismo frequentes do pblico de espectculos convencionais. No que nos diz

    9 Este festival, organizado por Egdio lvaro, realizou-se consecutivamente em Almada em 1981, 82 e

    83: Alternativa 1, 2 e 3, reunindo artistas de vanguarda nacionais e internacionais.

    10 In Programa do Festival Internacional de Arte Viva: Alternativa 2, 1982.

  • 15

    respeito, pressupomos ainda que essa transformao se possa dar igualmente na forma

    de sentir de cada um, na medida em que coloca novos questionamentos atravs deste

    tipo de interveno artstica.

    Segundo Ernesto de Sousa (1998, 21):

    (...) a verdadeira criatividade (que sempre moderna e no tropea no meio das

    imitaes) sempre tambm geradora de instabilidade e precisamente pe em causa a

    cidade, a casa, a parede, at ao escndalo e at crueldade muitas vezes. Precisamente

    para que tudo se reformule polemicamente e de novo se recomece pavorosamente

    (sagradamente) a estar-no-estar, a ser-no-ser... a acelerao das vanguardas necessria

    e explica-se por a e no por uma pretensa procura de originalidade.

    Assinalamos ainda a importncia de duas preocupaes que perpassam nos

    escritos de vrios criadores de performance. A preocupao de comunicao com o

    pblico, a ideia de dilogo constante, e a preocupao de uma nova pedagogia, a ideia

    de uma arte necessria a arte deve ser feita por todos a pedagogia pela arte. Neste

    ponto podemos referir Filliou, o qual, citado por Ernesto de Sousa (1998, 40), dizia que

    exercer o gnio precisamente comear. Ensinar e aprender valorizando a intuio,

    ensinar e aprender com objectivos de ordem esttica, atravs de um apelo constante

    criatividade e a uma pedagogia activa; Filliou foi responsvel pelo livro colectivo

    Ensinar e Aprender com as Artes da Aco... Happenings, Jogos, Charadas,

    Entretenimentos e Outras Partidas.

    Ainda com uma preocupao da arte como pedagogia, Ernesto de Sousa

    (1998,155) afirma:

    Ao no aceitar as relaes culturalizadas e mortas do sistema, a vanguarda esttica

    ope-lhe um certo nmero de operaes e paradigmas recriadores do estar-no-mundo,

    um novo vocabulrio, uma nova pedagogia. Tudo isto ainda muitas vezes confuso e

    mal definido, mas fremente de vida, tudo indicando que estamos no incio de uma

    grande poca criadora.

    Esta perspectiva de performance vai influenciar determinantemente toda a

    reflexo esttica sobre arte e pedagogia, tal como parte da produo artstica durante e

    aps as dcadas de 1960 a 90. Segundo Chantal Pontbriand, citada por Olivier Lussac

    (2004, 208):

  • 16

    Les notions de performance et de processus ont contribu changer

    considrablement le sens du temps et de lespace dans lart de ce sicle et ont amen

    avec elles une comprhension de lart et du monde diffrente. (...) Leffet de flux

    constant engendr par les nouvelles oeuvres a loign lart de la reprsentation pour

    montrer ce quil y a dirreprsentable : soit lentre-deux des choses, ce qui se passe,

    ce qui transite dans notre apprhension de la vie, ce qui souvent demeure infix, ou

    infixable par les moyens traditionnels de visualisation et de reprsentation. (...) Les

    nouvelles formes dart nous laissent voir lentre-deux, lespace entre, lespace sans

    nom.

    Gostaramos ainda de referir a importncia do gesto e do movimento, da palavra

    e do texto e da sua desconstruo grfica e fontica, a inter-aco com o pblico, a

    preocupao de comunicao e de dilogo, a concepo dos elementos cnicos como

    personagens que se autonomizam, o desenvolvimento da tecnologia do som e da

    imagem em estreita relao e aplicao criao artstica, todos estes factores vo estar

    presentes, em maior ou menor grau, posteriormente, nas criaes de dana, de msica,

    de poesia, de artes plsticas, de teatro, de vdeo, de fotografia, de cinema e no prprio

    conceito de instalao, atravs do recurso a uma interdisciplinaridade,

    independentemente das catalogaes que sero feitas: teatro gestual, teatro musical,

    dana-teatro, nova dana, etc.

    a esta concepo que nos referiremos quando mencionamos a palavra

    performance ao longo deste trabalho, tal como era concebida no espao temporal das

    dcadas de 1960-1980.

  • 17

    I. 2. A performance em Portugal: contextualizao

    Arte e no-arte. Arte e vida. Participao. Autor, actor,

    espectador. Obra de arte e acto esttico. Todas estas categorias

    sabemos isso depois dos modernismos todos e depois dos depois-

    do-modernismo pertencem ao mesmo sistema de vasos

    comunicantes.

    Ernesto de Sousa11

    Portugal, apesar do regime de ditadura em que vivia, est atento ao resto da Europa

    e uma nova gerao de artistas torna-se receptiva s ideias estticas, por exemplo, do

    movimento Fluxus, atitude que criou uma ruptura com a gerao anterior, muito marcada

    pela a influncia do movimento surrealista francs. Esta ruptura, de ordem esttica,

    relaciona-se com a ideia de levar a arte para a rua, retirando-a das instituies

    dominantes e, sobretudo, rompendo com os processos vigentes de criao. Pelo facto de se

    ter dado uma mudana no regime poltico portugus, criando-se a expectativa de uma

    abertura maior ao conhecimento da vida cultural no exterior, mudana personificada na

    figura de Marcelo Caetano, que assumiu a governao do pas em 1968, foi facilitada a

    assimilio dos novos movimentos emergentes, tambm em Portugal, a partir dos anos 70.

    Raquel Henriques da Silva (2009,12-17) descreve alguns pontos de viragem

    importantes na histria poltica e cultural de Portugal no perodo referenciado.

    Nomeadamente aponta algumas instituies e movimentos editoriais criados numa

    perspectiva de abertura de conceitos e prticas artsticas, em relao ao perodo

    antecedente. Corroborando a sua descrio, cita Sem Plinto nem parede: anos 70-90,

    artigo da autoria de Isabel Carlos, onde se l:

    a primeira vez que, numa histria geral da arte, se pretende desenhar um esquio para

    uma histria da experimentalidade em Portugal, em reas que no as das disciplinas

    artsticas consagradas como a pintura e a escultura. . (2009, 13.)

    11

    in Anos 70 Atravessar Fronteiras, catlogo de exposio, CAM, Lisboa: Fundao Calouste

    Gulbenkian, 2009, p.12.

  • 18

    Raquel Henriques da Silva faz ainda notar, relativamente ao mesmo artigo, que:

    Prolongando a anlise at meados da dcada de 80, a autora evoca o experimentalismo

    de artistas, grupos e galerias, expresso, por exemplo, na poesia visual e, sobretudo, na

    exposio Alternativa Zero, promovida por Ernesto de Sousa, que se prolonga em

    rituais, performances, intervenes. Este experimentalismo prolonga-se pela dcada de

    80 e chega at 90, numa continuidade no tanto de percursos autorais, mas de conceitos e

    derivas. (2009,14.)

    Um dos nomes mais representativos em Portugal desse experimentalismo, foi sem

    dvida Ernesto de Sousa que, para alm de um criador ecltico, foi tambm um elemento

    catalisador de experincias e de encontros, promovendo colaboraes tanto a nvel

    nacional como internacional. De notar a relevncia das suas ligaes por laos de

    identidade esttica e de amizade com Robert Filliou em Frana e com Wolff Vostell. Este

    cria um festival em Malpartida, Cceres, por onde passaro diversos elementos do ncleo

    de vanguarda portuguesa12

    .

    A imagem 1 (p. 19) mostra o programa e um momento de uma performance de

    Vostell, em 1985, no Centro de Arte Moderna da Fundao Calouste Gulbenkian, durante

    o evento Dilogos Sobre Arte Contempornea que envolveu uma exposio de artes

    visuais organizada por Fernando Aguiar, conferncias sobre arte contempornea,

    performances, teatro experimental e msica, com a participao de Mauricio Kagel e Les

    Percussions de Strasbourg.

    12 Recorremos com frequncia a pressupostos da autoria de Ernesto de Sousa por ele ter agido estreitamente

    com os criadores portugueses que so objecto deste estudo, criando uma ponte reflexiva entre o que se

    produziu neste campo artstico em Portugal e no estrangeiro.

  • 19

    Imagem 1. Concerto Fluxus, Wolff Vostell, CAM, F.C. Gulbenkian, 1985.

    Em Portugal este movimento de vanguarda teve, inicialmente, especial

    incidncia nas reas da poesia experimental e das artes visuais. Foram fundamentais os

    trabalhos de poetas como Ana Hatherly, E. M. Melo e Castro, Salette Tavares e,

    posteriormente, Alberto Pimenta. Consideramos de grande relevncia, pela sua clareza,

    o esquema de Melo e Castro (imagem 2, p. 20) onde este representa, associando uma

    identidade de terminologias, a ligao da poesia experimental: atravs da poesia

    concreta, s artes plsticas espao-superfcie-volume-cor-luz e, atravs da poesia

    fontica, msica som-tempo-ritmo-movimento (Castro 1973).

  • 20

    ESQUEMA de Melo e Castro

    Imagem 2. Esquema de E. Melo e Castro.

    Nas artes visuais, foram de enorme relevncia, entre outras, as intervenes de

    Joo Vieira, Helena Almeida, Artur Rosa, Fernando Aguiar, Lourdes Castro, Antnio

    Arago, Antnio Sena, Gracinda Candeias. Foi igualmente determinante, segundo o

    crtico Rui Mrio Gonalves13

    , a aco de divulgao de trabalhos destes artistas atravs

    da organizao de exposies e de happenings de Livrarias-Galerias como a Divulgao

    (no Porto, com delegao em Lisboa), a Quadrante, a 111, a Diferena (que, na dcada

    de 60, teve como director artstico o arquitecto e escultor Artur Rosa).

    13

    in Anos 60, Anos de Ruptura: Uma Perspectiva da Arte Portuguesa nos Anos Sessenta, catlogo de

    exposio, Lisboa Capital da Cultura 94, Palcio Galveias, Lisboa: Livros Horizonte, pp. 168.

  • 21

    Foi na Galeria Divulgao, em Lisboa, que, em Janeiro de 1965, aconteceu o

    primeiro happening portugus, o Concerto e Audio Pictrica, relacionado com a

    exposio VISOPOEMAS, de poesia experimental (Imagem 3, p. 22).

    Organizaram e participaram nesta aco Antnio Arago, E. M. Melo e Castro,

    Salette Tavares (poetas), Manuel Baptista, Jorge Peixinho (compositor), Clotilde Rosa e

    Mrio Falco (harpistas).

    Melo e Castro fundamenta esta aco num texto em que defende o happening

    como uma forma de teatro total, com fontes prximas do teatro futurista, Dada e da

    Bauhaus, e onde cita Al Hansen: "Para mim os happenings so a arte do nosso tempo.

    Neles eu fico comprometido com problemas de comunicao e de educao." (Castro

    1977, 61). Considera ainda que esta manifestao criativa tem como objectivo claro:

    (...) a desobstruo das vias da comunicao entre os indivduos e, simultaneamente,

    o suprir dos efeitos de uma educao convencional, em que os indivduos so ao

    mesmo tempo esmagados e mantidos em estado de incomunicao nos seus cacifos,

    tal como ovos num tabuleiro compartimentado. (Castro 1977, 62).

    E defende o hapenning como uma forma activa de contestao das foras que

    contrariam e evitam que os seres humanos usufruam plenamente da sua vida, ou seja,

    que participem, comuniquem, se desenvolvam, se conheam e conheam os outros.

  • 22

    Imagem 3. Programa do Concerto e Audio Pictrica, Galeria Divulgao, 1965.

  • 23

    Este primeiro hapenning provocou uma onda de polmica nos jornais lisboetas da

    poca, o que levou Melo e Castro a comentar:

    E creio que ainda haver pessoas ressentidas com o esbanjamento de 'talento' que

    nessa noite realizou Jorge Peixinho, ao tocar violino com uma arma de fogo, ao beber

    champagne por um bid, etc., etc., ou ento Salette Tavares a cantar esganiada uma

    ria cri-cri-cri-crtica, ou Antnio Arago dentro de um caixo, ou at Melo e Castro

    (eu) a tocar msica com instrumentos (chocalhos) silenciosos e a agredir as pessoas

    com focos de 1000 Watts!!! (Castro 1977, 63).

    Em Abril de 1967, outro happening se realizou, desta vez na Galeria Quadrante,

    a Conferncia-Objecto (Imagem 4), ligada exposio de Operao-I, poesia concreto-

    estrutural e publicao da revista com o mesmo nome, da qual s sairiam os dois

    primeiros nmeros: Operao-I e Operao-II (Imagem 5, p. 24).

    Organizaram e participaram: Ana Hatherly, E. M. Melo e Castro, Jos Alberto

    Marques e Jorge Peixinho; a apresentao foi feita por Jos Augusto Frana.

    Imagem 4. Programa da Conferncia Objecto, Galeria Quadrante,1967.

  • 24

    Imagem 5. Capa da Revista Operao I e II, 1967, de Joo Vieira.

    Segundo Hatherly e Melo e Castro (1981,79) um dos propsitos deste evento era

    fazer uma demonstrao da desmontagem sistemtica das metforas e de todas as

    convenes/regras do discurso que, segundo os prprios, se haviam tornado

    completamente ineficazes e representavam uma instalao nos hbitos literrios

    tradicionais. Esta conferncia foi concebida como um objecto, uma enorme metfora

    viva, com recorte formal, espacial e temporal, definido e previamente elaborado, mas,

    ainda segundo estes autores, tambm bastante aleatrio no seu significado final, na

    medida em que muito dependia da presena do pblico e das suas reaces. Colocando-

    se na posio de provocadores do acto criador, esta exposio espectculo s se

    concretiza verdadeiramente no momento da sua comunicao ao pblico, cuja

    participao era decisiva na materializao da obra.

  • 25

    A colaborao entre Jorge Peixinho e Ernesto de Sousa, continuou e ficou

    consagrada por mais uma obra que foi marcante no processo de evoluo de obras

    multimedia. Tratou-se de Lus Vaz 73, poema sinfnico electrnico em dez partes,

    concludo em 1974, acerca da qual Ana Filipa Candeias comenta:

    Assim, Lus Vaz 73 foi primeiramente concebida por Jorge Peixinho como composio

    electrnica que transfigurava o poema pico em corpo sonoro, de acordo com um

    mtodo combinatrio que o prprio Peixinho considerava largamente arbitrrio, de

    transposio simblica das partes do poema em trechos sonoros sobrepostos, rudos

    coloridos, ecos..., fragmentos meldicos, ondas de frequncia modificadas pela

    velocidade de transmisso. (Candeias 2009, 156).

    A primeira verso de Luz Vaz 73 como multi-media foi apresentada em 1975 no

    Esta V Festival Internacional de Mixed-Media de Gant, na Blgica. Diz ainda a autora

    que esta verso:

    (...) foi o suporte primeiro que permitiu a Ernesto de Sousa reprogramar o conceito da

    obra em instalao multi-media, cuja organizao perceptiva sonora e visual

    interseccionando-se, resultaria de um processo intencional e consciente idntico ao

    de Jorge Peixinho flutuando entre a programao e a indeterminao, o controlo e a

    improvisao. (Candeias 2009, 157).

    Escolhemos este exemplo por ele ajudar a demonstrar o tipo de relao entre os

    dois artistas e os processos que as realizaes de mixed-media implicavam. E sobre esta

    matria corroboramos ainda a afirmao de Ana Filipa Candeias quando diz:

    Este processo de ampliao/reduo visual a partir da estrutura musical pressupunha

    uma cumplicidade muito elevada entre os dois artistas e aclarava a dimenso de partilha

    mtua e livre que os uniu neste projecto em particular. (Candeias 2009, 157).

    A participao musical neste tipo de acontecimentos, em Portugal, era feita por

    compositores e intrpretes oriundos, sobretudo, de duas reas especficas: os que

    desenvolviam msica improvisada e os que interpretavam msica contempornea.

    Embora com objectivos diferentes, partilhavam interesses comuns: interesse pelas novas

    estticas ditas de vanguarda (Schaeffer, Cage, Stockhausen), pelos novos meios

    tecnolgicos (utilizao e manipulao de banda magntica, sintetizadores), por novas

    sonoridades, decorrentes de novos modos de tocar instrumentos acsticos (piano

  • 26

    preparado; utilizao percussiva das caixas acsticas dos instrumentos de corda e das

    chaves e embocaduras dos instrumentos de sopro; diversos objectos para provocar

    rudos; etc.) e ainda pela utilizao e explorao de amplificao e de microfones, de

    meios electroacsticos. Na rea da msica improvisada salientamos intervenes de

    Carlos Zngaro (1948) e do grupo Plexus que formou em 1967, grupo que se dedicava

    improvisao e ao free jazz, tendo sido o primeiro grupo em Portugal a dedicar-se a esta

    rea musical. Tambm Jorge Lima Barreto (n.1949) participou em algumas

    intervenes, nomeadamente na performance Rotura realizada por Ana Hatherly na

    Galeria Quadrum, em 1977, juntamente com Rui Reininho; participou tambm no

    concerto/recital Msico-Textos realizado na Cooperativa rvore, no Porto, em 1978,

    juntamente com Melo e Castro, que leu dois poemas das sua autoria, e o grupo Anar

    Band, por si formado em 1969, na rea da msica experimental. Esta sesso foi filmada,

    tendo sido emitida no mesmo ano pela RTP, num episdio do programa televisivo

    Obrigatrio no ver, da responsabilidade de Ana Hatherly (2009, p. 52).

    No que diz respeito aos intrpretes de msica contempornea, com uma

    formao musical clssica, estes desenvolvem processos de improvisao a partir do

    que lhes pedido pelos compositores nas partituras, com maior ou menor grau de

    liberdade de interveno. Alguns destes intrpretes participaram igualmente em

    performances no mbito de eventos em Portugal e no estrangeiro, tais como

    inauguraes de exposies de pintura (por exemplo na Sociedade Nacional de Belas-

    Artes) ou a participao na Bienal de Artes Visuais de Veneza, em 1980, com quatro

    performances intituladas A Palavra e a Letra. Esta realizao foi dirigida por Ernesto de

    Sousa e consistiu na criao de msica improvisada por Maria Joo Serro e Jos Lopes

    e Silva, inspirada nas obras de vrios artistas plsticos, tais como Joo Vieira, Ana

    Hatherly, Antnio Sena, Almada Negreiros, E. Melo e Castro. Numa dessas

    performances colaboraram ainda Maria do Cu Guerra e os actores do grupo de teatro A

    Barraca, acompanhando a improvisao musical e tendo como objectos manipulveis

    letras de espuma, de grande formato, criadas pelo pintor Joo Vieira. Todas estas

    sesses aconteceram na antiga Galeria Nacional de Arte, em Belm onde a exposio

    foi montada, tendo como objectivo a realizao das performances que foram gravadas

    em vdeo e difundidas ao longo de todo o tempo em que decorreu a exposio em

    Veneza (Sousa 2008, p. 169).

  • 27

    CAPTULO II

    ELEMENTOS PERFORMATIVOS NA CRIAO MUSICAL E NO

    ESPECTCULO MULTIMEDIA

    Consideraes de ordem geral:

    Richard Toop, no seu artigo Expanding horizons: the international avant-garde,

    1962-75 (Toop 2009) considera que o tema central deste perodo temporal a ideia de

    abertura. Abertura no sentido de multiplicidade e proliferao de ideias. Considera

    ainda que a figura de Boulez, figura tutelar na dcada anterior, perde influncia a favor

    da figura de Stockhausen, comentando que Purism gave way to pluralism (Toop

    2009,454). Ao longo deste texto, vai enumerando diversos factores, estticos e tcnicos,

    que vo caracterizar este perodo. Assim, destaca a mudana de uma vanguarda mais

    centrada no trabalho laboratorial dos estdios (dcada de 50) para uma vanguarda com

    uma orientao mais teatralizante, demonstrativa de uma apetncia para tratar temas

    fulcrais de carcter social e humano, dando como exemplo algumas obras de Berio,

    Passagio (1962), Epifanie (1964), Laborintus II (1965), de Stockhausen, Hymnen

    (1967) e de Xenakis, Terretektorh (1966), Kraanerg (1969) ou Persepolis (1971).

    Refere igualmente a preponderncia de vanguardas nacionais que vo surgindo

    nos diversos pases, referindo-se, por exemplo, emergncia na cena europeia de

    compositores dos pases de Leste, cuja msica causou impacto internacional, pelo

    nfase colocado em novas sonoridades relacionadas com o contraste entre texturas,

    determinantes de novas cores da massa sonora. Exemplos desta tendncia so duas

    obras emblemticas de 1961, Atmosphres (1961), de Ligeti e Threnody for the Victims

    of Hiroshima, de Penderecki. Nomeia igualmente outros compositores, destacando

    Vinko Globokar, jugoslavo, que ir ter uma presena muito importante enquanto

    compositor e intrprete virtuoso do trombone, e igualmente, acrescentamos ns,

    enquanto performer das suas prprias criaes teatralizantes.

    Considera ainda relevante a adeso de compositores asiticos s tcnicas de

    vanguarda ocidentais e o facto de estes trazerem uma outra sensibilidade na execuo e

    de mostrarem que msicas no ocidentais poderiam abrir novas perspectivas para a

    msica ocidental, dando como exemplo desta ideia a obra Bugaku per orchestra (1961)

    de Yoritsune Matsudaira que transpe aspectos de gagaku (msica japonesa antiga de

  • 28

    crte) para um contexto serial e aleatrio. Obras como esta sero importantes na medida

    em que despertam o interesse de compositores ocidentais e os levam a considerar a

    possibilidade de novas opes composicionais.

    Richard Toop salienta igualmente os processos de colagem, de citao e de

    utilizao de elementos imbudos de ironia. Para ilustrar estas tcnicas, o autor aponta

    exemplos vrios, entre os quais Sinfonia (1968) de Berio, Anfrage (1963) de Castaldi ou

    Sinfonie guerrire et amorose (1967), de Castiglioni. No caso portugus, igualmente no

    contexto do uso de citaes, so paradigmticas as obras Leves Vus Velam (1981) de

    Jorge Peixinho e Libera me (1977-79) de Constana Capdeville. Como exemplo de uso

    de elementos irnicos, Toop destaca obras do compositor Maurcio Kagel,

    considerando-o um virtuoso no domnio desta atitude irnica em obras como Match

    (1964) ou Staaststheater (1970).

    O sistema de notao j alargado pela escrita da dcada anterior, amplia-se ainda

    mais ao integrar notaes de carcter grfico que sugerem tipos de interpretao

    especficos, sendo John Cage, Earle Brown e Dieter Schnebel compositores

    representativos desta forma de escrita, bem como do uso recorrente de estruturas que

    compreendem o aleatrio, o indeterminismo e a improvisao nos processos de

    composio. Para alm dos compositores ligados New York School, muitos outros,

    sob a influnica desta escola, recorreram a este tipo de estruturas que iro originar duas

    situaes distintas que a seguir descrevemos.

    Por um lado, o desenvolvimento de intrpretes virtuosos especializados neste

    gnero de obras, as quais exigem uma grande familiariedade com as novas notaes e

    um conhecimento profundo das estticas dos respectivos compositores para a sua

    interpretao. O espao de liberdade interpretativa proporcionado em algumas destas

    obras tal que se cria uma nova relao compositor-intrprete em que este ltimo chega

    a ser, de algum modo, co-criador, o que origina o estabelecimento de algumas parcerias

    compositor-intrprete. A este propsito Lukas Foss (1963, 46) considera que:

    Composers are again involved in performance, with performance. More they work

    with handpicked performers toward a common goal. Among the new composer-

    performer teams: Cage and Tudor, Boulez and the Sdwestfunk, Berio and Cathy

    Berberian, Babbit and Bethany Bearsdlee, Pousseur and a group of seven, my own

    Improvisation Chamber Ensemble. Each of the teams mentioned is involved in a search,

    what we might call a joint enterprise in new music.

  • 29

    Por outro lado, assiste-se a uma proliferao de obras de composio colectiva.

    Um exemplo deste caso a obra Ensemble, para um intrprete e banda magntica,

    composta em colaborao com Stockhausen por doze jovens compositores que

    frequentaram a sua classe nos cursos de Vero de Darmstadt em 1967. Cada compositor

    comps uma parte para um instrumento especfico e para banda magntica. Nesta obra

    as peas dos doze compositores so tocadas em simultneo. Segundo Richard Toop,

    Stockhausen estabeleceu o plano geral e organizou a sincronizao das diferentes partes.

    Esquema da obra Ensemble, Darmstadt, 1967:

    Instrumento Compositor Msico

    Flute Tomas Marco Ladislav Soka

    Oboe Avo Somer Milan Jezo

    Clarinet Nicolaus A.Huber Juraj Bures

    Basoon Robert Wittinger Jan Martanovic

    French horn John McGuire Jozef Svenk

    Trumpet Peter R.Farmer Vladimir Jurca

    Trombone Gregory Biss Frantisek Hudecek

    Violin Jurgen Beurle Viliam Farkas

    Violoncello Mesias Maiguashca Frantisek Tannenberger

    Double Bass Jorge Peixinho Karol Illek

    Percussion Rolf Gelhaar Frantisek Rek

    Hammond Organ Johannes G.Fritsch Aloys Kontarsky

    Um dos compositores que participaram nesta criao foi Jorge Peixinho que,

    mais tarde, ir fazer experincias semelhantes com os intrpretes do Grupo de Msica

    Contempornea de Lisboa. A obra In-con-sub-sequncia, de 1974, um exemplo destas

  • 30

    experincias de composio colectiva e a primeira abordagem de Clotilde Rosa no

    domnio da composio.

    Aps esta panormica geral dos processos criativos da msica de vanguarda a

    nvel internacional no perodo relativo s dcadas de 1960-80, iremos focar a situao

    portuguesa. Em relao a uma exposio mais genrica sobre este tema referir-nos-

    emos, sobretudo, ao artigo Trajectrias da msica em Portugal no sculo XX: Escoro

    histrico preliminar, de Manuel Pedro Ferreira (2007, 44-51).

    Sem dvida, a partir dos anos 60 uma nova gerao de compositores emergiu em

    Portugal, produzindo obras que, semelhana do que aconteceu nos outros pases,

    quebraram as normas de composio vigentes. Vrias personalidades, umas mais

    conhecidas que outras, afirmaram-se num panorama ecltico que permitiu o

    desenvolvimento de interesses estticos distintos, tendo tido grande impacto as tcnicas

    de escrita atonal e serialista, assim como recursos mais ligados ao experimentalismo, ao

    indeterminismo e a um espao de maior improvisao a que Umberto Eco se referiu

    como caracterstica de obra aberta. A chamada vanguarda musical portuguesa, foi

    formada por uma gerao de compositores dos quais se destacaram nomes como

    Armando Santiago (n.1932), Filipe Pires (n.1934), lvaro Salazar (n.1938), Cndido

    Lima (n.1939), Maria de Lurdes Martins (n.1926), Jorge Peixinho (1940-1995),

    Constana Capdeville (1937-1992) e, j em meados dos anos 70, Clotilde Rosa

    (n.1930), Jos Lopes e Silva (n.1937) e Paulo Brando (n.1950).

    Alguns dos compositores acima referidos vo formar grupos dedicados

    divulgao da msica de vanguarda de que fazem parte as suas prprias composies:

    Jorge Peixinho criou o Grupo de Msica Contempornea de Lisboa, em 1970; Cndido

    Lima fundou o grupo Msica Nova, em 1976, no Porto; lvaro Salazar criou a Oficina

    Musical, em 1978, no Porto; e Constana Capdeville criou o grupo ColecViva, em

    1985, em Lisboa.

    Estes compositores conheciam bem as correntes estticas internacionais da

    poca, tendo frequentado cursos de composio em diferentes pases europeus,

    nomeadamente, Itlia, Frana e Alemanha. Vrios tiveram um contacto directo com o

    Groupe de Recherche Musical, dirigido por Pierre Schaeffer e Pierre Henry em Paris e

    quase todos frequentaram os cursos de vero de Darmstadt locais fulcrais de

    encontro, de debate e de confronto de ideias na rea musical na poca.

  • 31

    Os contactos com o exterior foram facilitados pela criao da Fundao Calouste

    Gulbenkian, em 1956, que assumiu um papel fundamental e quase exclusivo na dcada

    de 60, ao suportar financeiramente os artistas atravs de bolsas de estudo e de

    especializao, de encomendas de obras e de organizao de exposies, concertos e

    festivais.

    Tambm na rea das artes plsticas foi bem visvel a importncia desta aco na

    exposio realizada em 2007 na Gulbenkian, com o ttulo 50 Anos de Arte Portuguesa,

    onde estavam representadas as obras dos antigos bolseiros daquela instituio nessa

    rea, actualmente nomes incontornveis do meio artstico nacional, parte deles actores

    de movimentos experimentalistas com artistas de outras reas, nomeadamente poesia,

    msica, movimento, tecnologias emergentes de tratamento e projeco de imagem e de

    som.

    A partir de 1977, esta Fundao criou os Encontros Gulbenkian de Msica

    Contempornea que passaram a constituir uma oportunidade nica para a criao de um

    grande nmero de obras, encomendadas aos compositores portugueses e estrangeiros

    mais representativos das diferentes correntes da escrita contempornea. Nestes

    Encontros cumpriu-se igualmente a funo de divulgar este repertrio anualmente em

    concertos ao vivo que, de outra forma, no seriam acessveis ao pblico portugus. Em

    cada ano era ainda homenegeado um compositor de reconhecido mrito (entre outros

    John Cage, Luciano Berio, Karl Stockhausen, Maurcio Kagel, Emanuel Nunes, etc.) de

    quem eram tocadas vrias obras e que proferiam conferncias e dirigiam workshops de

    formao para jovens msicos.

    Em alguns casos, tambm a ento Secretaria de Estado da Cultura promovia a

    realizao de concertos com estes repertrios, pelos grupos portugueses, em localidades

    fora da capital, no mbito do seu programa de descentralizao cultural.

  • 32

    II.1. Msica e Performance: Jorge Peixinho

    Uma anlise um acto criador que deve ter como finalidade a abertura

    para a revelao de uma obra de arte na multivalncia dos seus

    significados, atravs da valorizao e interpretao dos seus fundamentos

    estruturais e dos seus princpios de organizao.

    Jorge Peixinho14

    Jorge Peixinho15

    (1940-1995) foi um compositor reconhecidamente de craveira

    internacional na escrita musical do perodo a que nos reportamos. Isto deve-se,

    fundamentalmente, mestria tcnica e criatividade das suas composies: s formas

    que usa, s opes harmnicas, a uma influncia assumida de certos aspectos da escrita

    serial, construo meldica, ao tratamento das vozes e das partes instrumentais,

    nomeadamente no que se reporta aos contrastes entre texturas, dinmicas e ritmos. O

    compositor conciliou esta primazia na composio, tendo influenciado vrios

    compositores mais jovens, seus discpulos, com a exigncia de uma escrita rigorosa, por

    exemplo a nvel da harmonia e da construo formal. Para alm de um aprofundamento

    tcnico na composio musical, a linguagem de certas composies de Jorge Pexininho

    acrescida com outros elementos que o vo conquistado e que introduz na sua escrita,

    os quais vm a caracterizar as suas criaes multidisciplinares: gestualidade,

    movimento, formas particulares na execuo instrumental e vocal, utilizao de objectos

    no musicais e enquadramentos cnicos.

    Jorge Peixinho, para alm de compositor um ser social. Algum que

    transcende a sua actividade criativa com aces directas na sociedade em que vive, quer

    seja atravs de uma funo pedaggica visando a formao dos jovens com uma

    interveno politico-social prtica quer seja com a produo de textos que vo desde

    essas preocupaes humanistas at teorizao de aspectos tcnicos e estticos da

    msica. Bastante elucidativo sobre estes aspectos so os textos da autoria do compositor

    14

    Peixinho, Jorge (2010, 83).

    15 Para consulta de biografia mais completa ver a Enciclopdia da Msica em Portugal no Sculo XX, 3.

    vol., L-P, dir. Salwa Castelo-Branco, Lisboa: Crculo de Leitores / Temas e Debates, 2010.

  • 33

    recolhidos por Cristina Delgado Teixeira e publicados juntamente com entrevistas

    muito esclarecedoras sobre a sua postura como artista e cidado num determinado meio

    e numa determinada poca16

    .

    Jorge Peixinho foi tambm um dos artistas intervenientes, nas dcadas de 60 e

    70, no happening, na performance e na msica improvisada, tendo participado nos

    primeiros eventos desse gnero em Portugal, como j mencionmos no captulo I.

    Pareceu-nos pertinente salientar, em excertos de duas obras de Peixinho,

    Recitativo II e Voix, sinais demonstrativos das caractersticas que acima descrevemos,

    particularmente no que se refere escrita musical e variedade dos elementos que

    contm, bem como aos processos e materiais usados e complexidade dos recursos que

    utiliza e que tornam o seu estilo original.

    Nestas duas obras procuraremos identificar aquilo que as caracteriza como obras

    multidisciplinares, intermedia ou multimedia17

    . Tentaremos ainda complementar pela

    anlise das respectivas partituras a atitude musical de Jorge Peixinho para melhor

    entendermos a sua esttica de composio.

    16

    Estes escritos e entrevistas esto reunidos no livro recentemente publicado: Jorge Peixinho (2010),

    Escritos e Entrevistas, org. Cristina Delgado Teixeira e Paulo Assis, Porto: Casa da Msica / CESEM.

    17 Sobre estas denominaes Daniel Charles diz o seguinte: On sest finalmente ralli, dans lensemble, la classification suggr en 1973 par Steve Gibb, laquelle oppose aux multimedia qui espectent lautonomie de principe des lments confronts - son, dcor, mouvement scnique, image, gestuelle, parfum - les

    pices mixed-media qui tendent une galisation des ingrdients sans pour autant procder leur hirarchisation, et les oeuvres intermedia qui poursuivent lidal de linterdpendance rigoureuse des diverses composantes., in C.R.E.M, n. 6/7, 1987-88, p. 99.

    Este assunto amplamente desenvolvido por Roberto Barbanti in Lachaud et Lussac (2004, 17-29).

  • 34

    II. 1.1. Recitativo II (1971)

    Recitativo II, cantata cnica para soprano, meio-soprano, harpa, percusso,

    projectores, velas e (eventualmente) um regente18

    . O harpista, o percussionista ou o

    eventual regente participam na declamao dos textos homnimos de Hmus, de Ral

    Brando (1917) e de Herberto Helder (1967). A relao entre estes dois textos -nos

    facultada por Herberto Helder (1996, 280) na nota inicial ao seu texto:

    Material: palavras, frases, fragmentos, imagens, metforas do Hmus de Ral Brando.

    Regra: liberdades, liberdade.

    Esta obra faz parte de um ciclo de quatro compostas entre 1966 e 1974, para

    instrumentao diferente. Para alm dela o ciclo inclui Recitativo I (1966-1971/72) para

    harpa solo, Recitativo III (1969) para harpa, flauta e percusso e Recitativo IV (1974)

    para flauta, flautim, guitarra, viola darco, fagote, contrafagote, percusso, vibrafone,

    piano, celesta, meldica e fita magntica. Tm em comum o facto de todas apresentarem

    material do Recitativo I que, por sua vez, composto com base no material da msica

    criada por Jorge Peixinho para a pea de teatro O Gebo e a Sombra19

    , encenada por

    Ernesto de Sousa e com cenrios de Jos Rodrigues, estreada em Fevereiro de 1966 no

    Porto, pelo Teatro Experimental do Porto, no Teatro de Bolso do Crculo de Cultura

    Teatral20

    . O Recitativo II a nica obra do ciclo que apresenta uma componente teatral,

    sendo essa a caracterstica determinante da presente opo de estudo21

    Ao longo da obra o compositor utiliza uma srie cromtica a partir de d: db -

    d - d# [-rb] - mib - mi [-fb] - f - f# - sol - lb - l - l# [-sib] - si - [db], dando

    especial relevncia aos intervalos de tom e de tom inteiro, jogando igulamente com a

    sua sobreposio.

    18

    Recitativo II igualmente sub-intitulado pelo compositor aco cnica.

    19 Desconhece-se a localizao desta partitura.

    20 Cristina Delgado Teixeira (2006, 152).

    21 Cludia Borges faz um estudo comparativo dos quatro Recitativos, na sua tese de mestrado O estilo

    composicional de Jorge Peixinho nas obras Recitativo I, II, III, IV. Departamento de Comunicao e

    Arte, Universidade de Aveiro, 2005.

  • 35

    Passamos seguidamente a descrever o tratamento especfico de que so objecto

    as duas vozes e os instrumentos harpa e percusso.

    Um dos aspectos que caracteriza esta partitura, constituda por 45 pginas, como

    outras do mesmo autor, no apresentar diviso de compassos, implicando uma relao

    de proporcionalidade de durao entre as partes das vozes e dos instrumentos. Este

    factor determinante de uma variabilidade de tempo, de uma pulsao que o dirigente

    lhe imprime (quando h dirigente), o que exige uma capacidade de interaco e de

    simultaneidade na pulsao entre os intrpretes. Com efeito, a estes pedido um tempo

    onde um certo grau de aleatrio est implcito, na medida em que, tratando-se de uma

    escrita vertical, os espaos entre as notas no correspondem a acordes em tempos

    simultneos, mas sim a uma sucesso de notas com espaos no rigorosamente

    regulares na partitura (ex. 1):

    Ex. 1. Recitativo II, p. 2.

  • 36

    Contribui para esta grande exigncia de concentrao na leitura o facto das notas

    no serem figuras que contenham a indicao rtmica, o que dificulta a determinao da

    durao do tempo de cada uma. A este propsito, o compositor esclarece nas notas

    explicativas da partitura o seguinte:

    Tempo mdio de cada pgina: 30 segundos. As relaes de tempo em cada pgina

    devem ser mais ou menos proporcionais ao espao grfico.

    Para alm desta indicao, a forma de execuo descodificada atravs de duas

    pginas de Sinais de Notao que contm um cdigo que cada intrprete deve

    respeitar. Este cdigo, s por si, demonstrativo do nmero e variedade de efeitos que

    so exigidos s vozes, harpa e percusso, que acrescentam semiologia musical

    prpria de pocas anteriores. Assim, Jorge Peixinho vai construindo a par da sua

    gramtica musical, uma gramtica de efeitos sonoros com a pretenso de criar novos

    campos de natureza tmbrica, rtmica e onomatopeica que confira a cada uma das suas

    composies um cunho pessoal.

    As partes de soprano e meio-soprano tm intervenes em alternncia ao longo

    de toda a obra; quando em simultneo, normalmente uma delas emite notas longas em

    contnuo ou com alguns momentos de tremolo durante a actuao da outra, quer ela seja

    uma declamao de um texto ou um pequeno motivo musical (ex. 2, p.37). O tratamento

    das vozes atravs dessas notas em legato assume com frequncia a funo de um

    ostinato ao qual os outros instrumentos se vm sobrepor nas suas partes especficas.

    Tal como est indicado na folha dos Sinais de Notao22, a voz intervm com

    outro tipo de sonorizaes, por vezes prximas de onomatopeias, de efeitos sussurrados,

    de transformaes com a ajuda da mo sobre a boca, de sons sobre vogais, prximos da

    tcnica de produo de harmnicos do som fundamental. So igualmente utilizados

    efeitos de passagens entre cantado e parlato (sic), ou vice-versa, numa transio quase

    imperceptvel; de produo de sons isolados no extremo grave e agudo da tessitura; e

    ainda de passagens com pequenos glissandos entre intervalos curtos (ex. 3, p. 37).

    22

    v. Anexo II.

  • 37

    Ex. 2. Recitativo II, p.7

    Ex. 3. Recitativo II, p. 21.

  • 38

    Relativamente ao uso da voz nesta obra, o compositor afirma:

    () Em Recitativo II, obra que se encontra indita, eu utilizo duas vozes femininas,

    uma cantando em sprechgesang, recorrendo ao uso de vrias tcnicas vocais aplicadas

    ao texto de Ral Brando, e a outra cantando o texto de Herberto Helder, de modo a

    criar uma intertextualidade.23

    Com efeito, o uso destas tcnicas vocais reporta-nos a processos inovadores

    usados por outros compositores, nomeadamente Luciano Berio, nas suas composies

    para a voz. O prprio Peixinho assume o conhecimento desses processos quando afirma:

    A minha formao musical e a minha orientao esttica devem muito admirvel

    gerao do ps-guerra (em particular a Boulez, Stockhausen e Berio) e tambm, claro

    est, a um estudo e assimilao dos seus directos precursores (Webern e a escola

    vienense).24

    A harpa tem intervenes que vo oscilando entre acordes, pequenos motivos,

    grupetos rpidos de seis ou oito notas e notas de curta durao que se sucedem ao longo

    dos vrios registos. Esta parte da harpa funciona de uma forma bastante interventiva

    relativamente s partes cantada e declamada das duas vozes, resultando num efeito

    contrastante. A parte musical da harpa constituda por material do Recitativo I que

    aparece igualmente transformado25

    .

    Os instrumentos de percusso dividem-se em dois grupos: um meldico

    glockenspiel, crtalos, meldica e tmpano outro de som indeterminado

    tringulos, pratos suspensos, gong, tam-tam, tom-tons, pandeireta, maraca, blocos

    chineses, wood-block, flauta jazz (de mbolo). Todos eles so utilizados com o mesmo

    processo de composio dos anteriores: com efeito, sons longos em contnuo ou em

    tremolo so realizados pelas maracas, pelos tam-tans e pelo gongo, da mesma forma que

    a meldica tambm tem partes de sons longos, atravs de acordes prolongados e de

    efeitos de clusters, mas igualmente com intervenes mais pontuais.

    23

    Eduardo Vaz Palma, Entrevista com o compositor Jorge Peixinho, in Arte Musical n. 1, 1995, pp. 15-16.

    24 in Plateia, 28 de de Janeiro de 1969, p. 12.

    25 Cludia Borges (2005, 22).

  • 39

    A percusso e a harpa tm frequentemente partes sobrepostas, contrariamente s

    partes das vozes que se relacionam sobretudo em alternncia.

    Do incio ao fim a obra vai oscilando entre passagens mais rarefeitas e passagens

    em que h uma maior sobreposio das partes instrumentais e vocais. Nestes casos,

    surgem momentos que criam uma textura densa, uma massa sonora mais compacta, de

    que apresentamos seguidamente um exemplo, pgina 16 da partitura (ex. 4) e que

    contrastam com os efeitos do procedimento anterior.

    Ex. 4. Recitativo II, p. 16.

    O texto sobretudo declamado pelas cantoras em alternncia e, pontualmente,

    pelo harpista, pelo percussionista e, quando este existe, pelo dirigente, havendo breves

    momentos em que uma frase dita de forma entoada. Os textos so usados nesta ob