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7/13/2019 Dissertação - Normalizada Em PDF http://slidepdf.com/reader/full/dissertacao-normalizada-em-pdf 1/103  Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Faculdade de Comunicação Social Marcio Blanco Chavez A questão da autoria na produção de filmes em duas oficinas de formação audiovisual Rio de Janeiro 2014

Dissertação - Normalizada Em PDF

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  • Universidade do Estado do Rio de Janeiro

    Centro de Educao e Humanidades

    Faculdade de Comunicao Social

    Marcio Blanco Chavez

    A questo da autoria na produo de filmes em duas oficinas de

    formao audiovisual

    Rio de Janeiro

    2014

  • Marcio Blanco Chavez

    A questo da autoria na produo de filmes em duas oficinas de formao audiovisual

    Dissertao apresentada como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre ao Programa de Ps-Graduao em Comunicao da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. rea de concentrao: Tecnologias da Comunicao e Cultura.

    Orientador: Prof. Dr. Fernando do Nascimento Gonalves

    Rio de Janeiro

    2014

  • CATALOGAO NA FONTE UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A

    Autorizo, apenas para fins acadmicos e cientficos, a reproduo total ou parcial desta dissertao, desde que citada a fonte. ___________________________________ _______________ Assinatura Data

    C512 Chavez, Marcio Blanco. A questo da autoria na produo de filmes em duas oficinas de

    formao audiovisual / Marcio Blanco Chavez. 2014. 101 f. Orientador: Fernando do Nascimento Gonalves. Dissertao (Mestrado) Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

    Faculdade de Comunicao Social. 1. Autoria Teses. 2. Cinema na educao Teses. 3. Subjetividade

    Teses. I. Gonalves, Fernando do Nascimento. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Faculdade de Comunicao Social. III. Ttulo.

    es CDU 791:37(81)

  • Marcio Blanco Chavez

    A questo da autoria na produo de filmes em duas oficinas de formao

    audiovisual

    Dissertao apresentada como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre ao Programa de Ps-Graduao em Comunicao da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. rea de concentrao: Tecnologias da Comunicao e Cultura.

    Aprovada em 26 de maro de 2014

    Banca Examinadora:

    _______________________________________________ Prof. Dr. Fernando do Nascimento Gonalves (Orientador) Faculdade de Comunicao Social UERJ _______________________________________________ Prof.a Dra. Patricia Rebello da Silva Faculdade de Comunicao Social UERJ _______________________________________________ Prof. Dr. Cezar Migliorin Universidade Federal Fluminense UFF

    Rio de Janeiro

    2014

  • AGRADECIMENTOS

    minha famlia que sempre esteve por perto com seu amor.

    Karine Mueller que sempre acredita, que me acompanha e nos momentos

    difceis me conduz.

    Aos meus guias e protetores.

    Ao tempo que tudo concebe e transforma.

    Aos companheiros de jornada do Ppgcom da UERJ, professores e funcionrios,

    que amparam a construo do conhecimento.

    Ao meu orientador Fernando Gonalves, sempre disponvel ao dilogo, uma

    escuta generosa, um comentador preciso, um incentivador.

    Aos integrantes da banca Cezar Migliorin e Patricia Rebello que forneceram

    opinies teis e uma avaliao interessada da pesquisa.

    Aos realizadores dos filmes que fazem parte desta pesquisa.

    As pessoas que muito gentilmente cederam ateno e trabalho para que esta

    pesquisa se realizasse: Viviane Ayres (Cinemaneiro), Andr Sandino (Cinemaneiro),

    Luiz Cludio Lima (Ncleo Arte Grcia / Subrbio em Transe), Taris Oliveira, Walter

    Fernandes, Loureno Cezar, Guilherme Cezar de Oliveira, Sabrine Muller, Ramon

    Bezerra, Fernanda Bruno, Theresa Medeiros.

    Ao Tito, a vida que se renova.

  • RESUMO

    CHAVEZ, Marcio Blanco. A questo da autoria na produo de filmes em duas oficinas de formao audiovisual. 2014. 101 f. Dissertao (Mestrado em Comunicao) Faculdade de Comunicao Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.

    na interseco entre o campo do audiovisual e o da educao que se localiza o interesse desta pesquisa. Ela parte da premissa que o meu objeto aquilo que passvel de ser mapeado, um dispositivo de subjetivao que se d no entrecruzamento de elementos presentes, de maneira mais ou menos direta, nos processos de fabricao de filmes em duas oficinas de formao audiovisual: oficina Cinemaneiro e oficina de video do Ncleo Arte Grcia. Apoiando-se metodologicamente na Teoria Ator Rede, de Bruno Latour, esta pesquisa ir apresentar um rastreamento da rede sciotcnica a partir das figuras discursivas presentes nos crditos dos filmes produzidos nessas oficinas: "No Limite do Horizonte, Complexo de Juninho e Kur, o valor da amizade. Esta pesquisa considera que a investigao sobre a autoria desses filmes revela muito sobre os modos de construo de vises de mundo implicados nos processos de formao em questo. Palavras-chave: Audiovisual. Educao. Coletivo. Metodologia

  • ABSTRACT

    CHAVEZ, Marcio Blanco. The question of authorship in film production in two workshops audiovisual training. 2014. 101 f. Dissertao (Mestrado em

    Comunicao) Faculdade de Comunicao Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. It is in the intersection between the audiovisual field and the education that is the interest for this research. It starts from the premise that my object is what is able to be mapped device, a subjectivity that occurs in the intersection of elements present in a more or less direct way, the manufacturing processes of films made in two workshops audiovisual training: oficina Cinemaneiro e oficina de video Ncleo Arte Grcia . Using Actor Network Theory, by Bruno Latour, this research will present a tracking of socio-technical network from discursive figures present in the credits of films produced in these workshops: "No limite do horizonte", "Complexo de Juninho" and "Kur, o valor da amizade". This research considers that the investigation into the authorship of these films reveals much about the ways of constructing worldviews implicated in the formation processes in question. Keywords: Audiovisual. Education. Collective. Methodology

  • SUMRIO

    INTRODUO............................................................................................. 7

    1 O ESPECTADOR COMO CRIADOR NO ENSINO DO AUDIOVISUAL..... 18

    1.1 O uso do vdeo pelos movimentos sociais no Brasil............................. 18

    1.2 Reduzindo distncias entre espectador e criador na oficina

    Cinemaneiro................................................................................................ 24

    1.3 Audiovisual e Geografia se unem na oficina do Ncleo Arte Grcia.... 30

    1.4 As distncias entre espectador e criador no processo de formao... 33

    2 AUTORIA NOS FILMES DE OFICINA........................................................ 40

    2.1 A autoria no cinema................................................................................... 40

    2.2 A autoria como gesto na direo de Kur, o valor da amizade....... 43

    2.3 A autoria no cruzamento entre audiovisual e educao em No

    Limite do Horizonte ................................................................................ 51

    3 A FICO COMO CAMPO DE NEGOCIAO ENTRE A RAZO E O

    AFETO......................................................................................................... 59

    3.1 Representao e afeto na escrita de Complexo de Juninho.............. 59

    3.2 A fico da oficina e a fico de Kur: uma analogia......................... 66

    3.3 No Limite do Horizonte e a importncia dos afetos na construo

    do espao geogrfico................................................................................ 69

    4 A CONSTRUO DA VISIBILIDADE DA PRODUO AUDIOVISUAL

    DE OFICINA................................................................................................. 74

    4.1 A afetao mtua entre os filmes e suas vias de circulao................. 74

    4.2 A ficha de inscrio faz o filme se dizer coletivo ............................... 76

    4.3 A primeira exibio pblica de Kur e Complexo de Juninho....... 77

    4.4 A circulao da obra legitima a autoria................................................... 79

    4.5 De quem a obra? .................................................................................... 83

    CONSIDERAES FINAIS......................................................................... 89

    REFERNCIAS........................................................................................... 93

    ANEXO A - Cronograma de aulas da oficina Cinemaneiro......................... 99

    ANEXO B - Argumento de Kur, o valor da amizade............................... 100

  • 7

    INTRODUO

    Este trabalho de pesquisa o desdobramento de um percurso de 14 anos,

    iniciado quando ainda era aluno de graduao em cinema na Universidade Federal

    Fluminense. Nesse trajeto, que iria durar 04 anos, passei por diversas disciplinas que

    aos poucos me introduziram nesse vasto campo de estudos que o cinema. Tomei

    contato com diversas formas de tratar o som e a imagem, conheci cinematografias,

    diretores, gneros e todo um universo at ento desconhecido se abriu. Esse caminho

    foi percorrido no sem dificuldade e espanto diante da complexidade que a arte

    cinematogrfica, atravessada por inmeras reas de conhecimento, o que contrastava

    com o gesto banal de assistir a um filme como espectador. Tendo trabalhado em

    alguns filmes nesse percurso, em diversas funes, a ponte estabelecida entre teoria

    e prtica forjou em mim o sentido do cinema como forma de interveno no mundo.

    Na metade do curso resolvi fazer uma oficina em uma favela que ficava ao lado do

    campus. Ali passei muitos momentos dos ltimos dois anos de universidade

    conversando sobre cinema. Esse meio de expresso esttica acabou por promover e

    facilitar a convivncia, a troca de conhecimentos e a construo do afeto entre seus

    participantes. Os quatro movimentos entrelaados: o de ver um filme por prazer; o de

    estudar o cinema por uma necessidade de compreender e ampliar o sentido desse

    gesto; a realizao de algumas obras; e a relao, mediada pelo cinema, com

    moradores daquela comunidade tiveram um forte impacto na minha vida, na minha

    subjetividade.

    Aps a concluso da graduao esses quatro movimentos continuaram se

    desenvolvendo e, como em uma dana sem coreografia, seguiram desenhando linhas

    de fora que hora se encontravam, hora se distanciavam mas sem jamais perderem a

    relao entre elas. Desenvolvi e participei de vrias experincias de ensino em

    oficinas, escolas e organizaes no-governamentais. Ao mesmo tempo, de maneira

    informal, continuava minha pesquisa, tomando conhecimento de outras experincias

    na cidade e no pas que uniam educao e cinema, anteriores ou concomitantes a

    minha prpria. Ganhava a percepo de que essas experincias se multiplicavam a

  • 8

    medida que um novo ciclo de inovao tecnolgica impulsionada pelo digital ia se

    disseminando pela sociedade brasileira, a exemplo do que acontecera em outros

    perodos, como foi o caso da chegada da tecnologia do vdeo no pas no incio dos

    anos 80.

    Em 2007 os quatro movimentos se encontraram na criao do Festival Vises

    Perifricas, idealizado e coordenado por mim em suas sete edies. O Vises nasceu

    com a proposta de discutir e divulgar a produo de projetos educativos em espaos

    populares que lanam mo do audiovisual em alguma etapa do seu processo

    metodolgico, seja como um fim em si, seja como meio para se alcanar outros

    objetivos de interesse dos projetos. O festival comeou com 180 inscries, reunidas

    em 06 mostras, e pulou para uma mdia de 500 inscries por edio nos ltimos 02

    anos, basicamente no formato de curta-metragem. O nmero de mostras tambm

    cresceu, tendo dobrado de nmero na ltima edio em 2012 e includo produes da

    regio ibero-americana. Hoje, uma de suas principais mostras a Visorama, que

    rene filmes produzidos em oficinas, escolas livres e projetos sociais.

    O desejo desta pesquisa surge de uma evidncia reiterada ao longo de 07 anos

    fazendo a curadoria da mostra Visorama. Uma parte relevante de filmes nela inscrita

    preenchia uma ou mais funes de equipe utilizando o termo coletivo(a). Geralmente

    o termo associado funo direo mas ele tambm podia ser encontrado em

    funes como roteiro e produo. Dentro dessa mostra tais filmes contrastavam

    com outros onde as funes continham nomes de pessoa fsica, um modo mais

    comum de se preencher as funes de uma equipe de filmagem. Essa evidncia

    colocou em um primeiro momento duas perguntas: afinal o que quer dizer o uso do

    termo coletivo no caso desses filmes que chegam ao Vises Perifricas? O que os

    diferenciaria de filmes que atribuem suas funes a nomes prprios?

    Como coordenador do Vises Perifricas considero ser uma de suas misses

    provocar uma reflexo sobre os processos de fabricao dos filmes que participam

    dele, ouvir os indivduos que participam desses processos, incluindo a o pblico do

    festival se consideramos que o processo no termina com a produo da obra mas se

    estende at a sua exibio. Um dos pontos que sempre me interessou e que procurei

    explorar nos debates das duas ltimas edies foi acerca da metodologia de ensino.

  • 9

    Ainda que houvesse um esforo dos realizadores e coordenadores envolvidos nos

    projetos para falar sobre o assunto sentia que as falas deixavam lacunas e que o

    tempo de debate era insuficiente para esclarecer minhas dvidas. Alm disso,

    contribua para provocar essa insatisfao a percepo de uma certa idealizao nas

    falas acerca do uso do termo coletivo nos crditos, o que se chocava com a minha

    prpria experincia sobre os procedimentos usuais de produo de um filme, onde h

    uma ntida hierarquizao de funes e onde cada uma delas desempenhada por

    um indivduo ou at mais de um pessoa fsica. As falas no equacionavam a

    relao entre as decises que forosamente devem ser tomadas no processo de

    realizao de um filme e o prprio processo pedaggico dos projetos onde esses

    filmes so realizados.

    Partindo dessa percepo esta pesquisa se inicia com um levantamento de

    filmes no banco de dados do Festival Vises Perifricas. Foi usado como filtro de

    levantamento a ocorrncia do termo coletivo (a) apenas na funo direo. No

    objetivo fazer uma anlise estatstica mas, apenas para marcar a relevncia desse

    conjunto, em trs anos (2010 a 2012) foram encontrados 101 filmes inscritos onde

    consta a palavra coletivo(a) na funo direo. Um dos filmes desse conjunto foi

    escolhido para fazer parte dessa pesquisa: No Limite do Horizonte. uma

    realizao em parceria do Cineclube Subrbio em Transe, da oficina de vdeo do

    Ncleo Arte Grcia (NAG) e do Ponto de Cultura Carpintaria de Montagem. Ele foi

    inscrito e exibido no festival em 2012 como direo coletiva.

    Quando a pesquisa tem incio nesse mesmo ano a ideia era investigar apenas

    filmes j finalizados que apresentassem o uso do termo coletivo na direo. Por

    questes metodolgicas surgiu o desejo de se investigar outros filmes a partir do

    acompanhamento in locu de seus processos de fabricao. Nessa poca teve incio

    na cidade a realizao de uma oficina de cinema realizada pelo projeto Cinemaneiro,

    que j havia participado do Vises Perifricas. Em edies passadas do festival essa

    oficina compareceu com filmes utilizando o termo coletivo na ficha de inscrio. Isso

    fica evidente na consulta ao banco de dados. Decidiu-se ento acompanhar a

    produo dos filmes nessa oficina para se investigar o possvel uso do termo coletivo

    nesse caso. Dessa forma, surgem os outros dois filmes que fazem parte do objeto:

  • 10

    Kur, o Valor de uma Amizade e Complexo de Juninho. Eles foram realizados no

    perodo de 15 a 03 de Maio de 2013. Embora j tenham sido finalizados e exibidos

    publicamente, eles no foram inscritos na edio 2014 do festival1. Nos crditos finais

    desses dois filmes todas as funes, dentre elas a de direo, so atribudas a nomes

    de pessoas fsicas. Houve ento uma adaptao da proposta inicial e o interesse

    desta pesquisa se deslocou para a questo da autoria nos filmes. A pesquisa passou

    a se concentrar na investigao dos enunciados que faziam emergir diferentes figuras

    de discurso o coletivo no caso de No Limite do Horizonte, e o uso de nomes

    prprios ocupando as funes no caso de Kur e Complexo de Juninho.

    na interseco entre o campo do audiovisual e o da educao que se localiza

    o interesse desta pesquisa. Ela parte da premissa que o meu objeto aquilo que

    passvel de ser mapeado, um dispositivo de subjetivao que se d no

    entrecruzamento de elementos presentes, de maneira mais ou menos direta, nos

    processos de fabricao dos filmes. Deleuze considera o dispositivo uma maquinao,

    um conjunto de foras heterogneas que, reunidos sob uma arquitetura, distribuem o

    visvel e o invisvel. Os filmes desta pesquisa so resultado desse conjunto de foras

    que convergem em dado momento para a sua materializao mas que no se

    esgotam neles, e como tal, podem ser vistos como enunciados no discursivos que

    produzem efeitos de subjetivao. Por sua vez a maneira como as figuras discursivas

    so dadas a ver nos filmes o termo coletivo na ficha de inscrio ou os nomes

    prprios nos crditos emergem no interior de regimes de enunciados que mobilizam

    oficina, escola, manuais, mquinas de captao de imagem e som, roteiro, alunos,

    facilitadores, festival, territrio, etc.

    Desde que o Festival Vises Perifricas surgiu ele rene e sistematiza um

    amplo panorama de projetos de todo o Brasil que estimulam jovens, em sua maioria, a

    dar os primeiros passos na produo audiovisual. Alguns desses jovens tem a

    oportunidade de participar pela primeira vez de um festival e trocar experincia com

    realizadores de outros lugares do pas. Esta pesquisa assume que a relao ensino-

    1 Kur, o valor de uma amizade e Complexo de Juninho foram produzidos no intervalo entre uma edio e outra do Festival Vises Perifricas. No momento que essa dissertao redigida as inscrio para a edio 2014 ainda no estava aberta.

  • 11

    aprendizagem desses projetos compe um conjunto heterogneo de foras onde

    indivduos se posicionam em relao a elas e se constituem como sujeitos. Portanto,

    no existe um sujeito pronto e acabado mas processo de subjetivao. No caso desta

    pesquisa este processo se d no entrecruzamento de linhas de fora que tm origem

    em diversos campos de atividade, desde a etapa de captao de recursos para

    financiamento das oficinas, passando pelas metodologias de ensino, produo dos

    filmes at o momento em que estes chegam ao pblico.

    Os termos ou nomes nos crditos que geralmente acompanham uma obra

    audiovisual podem ser vistos como rastros desse processo. Eles evidenciam uma

    certa maneira de organizar a produo dos filmes. A equipe dividida por funes e

    estas so anlogas as etapas que uma obra cinematogrfica percorre para ser

    produzida. Cada etapa por sua vez tem uma forma de organizar e distribuir

    responsabilidades por indivduos reconhecidos pela competncia para assumir aquele

    trabalho. Geralmente assim que acontece mas claro que esse modelo pode ter

    suas excees. Por sua vez, nas oficinas de vdeo que fazem parte desta pesquisa

    temos uma situao em que indivduos so estimulados a produzir filmes sem que

    possuam uma experincia prvia com esse trabalho, portanto, estariam em uma

    situao de aprendizagem, aprendendo a fazer filmes. Esta a regra geral mas que

    tambm pode ter suas ressalvas.

    O processo de fabricao dos filmes se d no cruzamento de dois regimes de

    enunciado, o do cinema que estabelece uma maneira de organizar os crditos de uma

    obra com base na experincia dos realizadores. E outro, o da educao que presume

    que o pblico alvo dos projetos no tem experincia ou no sabe produzir um filme. O

    encontro entre esses dois regimes tem como efeito produzir aes por parte de todos

    os envolvidos. nesse encontro que acontecem os processos de subjetivao nas

    oficinas. Para efeito desta pesquisa considere-se um rastro desse processo a forma

    como os crditos so organizados nos filmes. No caso dos filmes que so abordados

    um deles se inscreve no Festival Vises Perifricas como direo coletiva. Os outros

    dois atribuem a mesma funo (e outras mais) pessoas fsicas em seus crditos. O

    que motiva que em cada um deles estabelea um modo diferente de nomear tais

    funes? Essa pergunta ir permear esta investigao do incio ao fim e seus

  • 12

    desdobramentos iro procurar fazer ver os processos de produo subjetiva que

    parecem atravessar e produzir essas nomeaes.

    A pesquisa toma emprestado o campo conceitual de produo de subjetividade

    do trabalho em conjunto de Gilles Deleuze e Flix Guattari. Eles esto de acordo em

    que a subjetividade produzida pelas redes e campos de foras sociais. Eles afirmam

    que no h sujeito mas processo de subjetivao. Para Guattari subjetivao :

    (...) o conjunto das condies que torna possvel que instncias individuais e/ou coletivas estejam em posio de emergir como territrio existencial auto referencial, em adjacncia ou em relao de delimitao com uma alteridade ela mesma subjetiva. (GUATTARI, 1992, p.19)

    A principal hiptese desta pesquisa que os enunciados que organizam de

    distintas formas as figuras discursivas presentes nos crditos dos filmes em questo

    tem muito a dizer sobre a relao ensino-aprendizagem das oficinas e os processos

    de subjetivao que tal relao implica. As linhas de fora que atravessam a

    realizao dos filmes prope modos de sentir e induzem formas de subjetividade que

    esto em sintonia com os modos de fabricao ou as metodologias de cada uma das

    oficinas, bem como das vises de mundo que delas fazem parte. Ao mesmo tempo

    essa operao tem um impacto na esttica das obras que nesta pesquisa sero

    observadas em funo das condies de aprendizagem, produo e visibilidade

    (formas de circulao e de legitimao) de cada filme.

    Quais a condies que permitem diferentes configuraes nos crditos de cada

    filme? Elas no esto dadas a priori, preciso torn-las visveis, mas no se trata de

    um segredo que iremos revelar, algo de oculto por detrs dos filmes. Uma vez

    colocado que o objeto desta pesquisa encontra-se na relao entre vrias foras que

    o atravessam, preciso estabelecer uma maneira de rastrear as associaes de

    foras heterogneas e caminhar entre elas. Nesse sentido usaremos a Teoria Ator

    Rede, de Bruno Latour. A TAR , antes de tudo, um mtodo, um caminho para seguir

    a construo e fabricao dos fatos. Um dos efeitos propiciados por esta teoria-

    mtodo o de evidenciar que os elementos podem ter a capacidade de agenciar ou

    produzir efeitos, aes e mudanas num dado contexto. Os filmes no sero

  • 13

    analisados como obra fechada em si, mas como desdobramentos de agncias e

    mediaes presentes em seu processo de realizao. No caso de nosso objeto,

    entenda-se como agncia a capacidade que tem os diversos actantes envolvidos

    (alunos, facilitadores, oficinas, escolas, discursos, objetos, etc.) de incidir no processo

    de aprendizagem e produo dos filmes, modificando-os de acordo com os seus

    prprios interesses e vises de mundo. preciso aqui esclarecer que o termo actante2

    no se refere apenas a humanos nem supe que ele exista de forma autnoma.

    Dentro da relao de aprendizado que se estabelece nas oficinas no so apenas os

    humanos ou instituies que agem. Existe uma srie de artefatos tcnicos (cmeras,

    manuais, filmes, etc.) que incidem sobre a relao, fazendo com que o curso da ao

    nesse contexto assuma direes previsveis ou inesperadas no processo de produo

    dos filmes. Os prprios filmes sero considerados actantes na medida em que eles

    incidem nos processos de subjetivao na oficina. Os actantes tambm podem agir

    pela mediao. Eles transformam e modificam o significado ou os elementos que

    supe devem transportar na medida que incidem sobre o curso da ao. Latour difere

    mediador do intermedirio3.

    Sempre que nos deparamos com um fato visto como natural podemos rastre-

    lo como efeito de uma rede de mediaes que subtraem elementos, acrescentam

    outros ou apenas os transmitem adiante. A rede no uma coisa e que teria forma

    aproximada de pontos interconectados, ela uma expresso que serve para verificar

    quanta energia, movimento e especificidade so capazes de capturar nossos prprios

    informes (LATOUR, 2005, p.190). Quanto menos esse fluxo de aes for

    transformado pelos mediadores mais natural ele parecer, mais ele se aproximar da

    ordem dos fatos.

    Embora a realizao de um filme de formao j contenha por si s um grande

    potencial de controvrsia ao unir condies de produo diferentes esta pesquisa no

    2 Ele no a fonte de uma ao seno um branco mvel de uma enorme quantidade de entidades que convergem at ele. (LATOUR, 2005, p.73) No caso desta pesquisa importante compreender a importncia de se atribuir tambm capacidade de ao a no-humanos.

    3 Intermedirio seria o que transporta significado ou fora sem transformao: definir seus dados de entrada basta para definir seus dados de sada. J o mediador por simples que ele possa parecer, pode virar algo complexo; pode levar a mltiplas direes. (LATOUR,2005,p.63)

  • 14

    procura confirmar se os filmes so ou no realizados coletivamente ou se a

    distribuio de funes nos filmes entre participantes respondeu a algum critrio

    coerente. Partindo do princpio que todo fato uma construo coletiva, e no caso de

    um filme isso ainda mais evidente, o que se quer investigar os efeitos de

    subjetivao que resultam da organizao dos crditos nos filmes. As figuras

    discursivas que aparecem nos crditos so apenas um ponto de partida para se

    investigar isso. Em outras palavras, como as condies que tornam visvel os filmes e

    seus crditos se configuram como produtoras de subjetividade para os envolvidos no

    processo. Essa uma pergunta que estar presente como foco de anlise em todos

    os captulos.

    Vistos como aquilo que Foucault chamou de enunciados no-discursivos

    (DELEUZE,2005) seguiremos o trabalho de fabricao dos filmes, dos sujeitos, dos

    objetos; fabricao que se faz em redes-sociotcnicas, atravs de alianas entre

    actantes humanos e no-humanos. No caso de No Limite do Horizonte, uma vez que

    o filme j se encontrava acabado quando esta pesquisa foi iniciada, uma parte do

    rastreamento de seu processo de produo foi feito atravs de entrevistas com os

    actantes envolvidos. Outra parte foi feita analisando-se qualquer tipo de actante que

    houvesse deixado rastros acerca da produo do filme, sendo ele prprio considerado

    um actante. A internet foi fundamental para seguir os rastros de algum desses

    actantes (oficina, alunos, professores, cineclube). A partir da observao de seus

    crditos no site do Festival Vises Perifricas, tambm considerado um actante

    importante nessa rede, identificamos e entrevistamos alguns indivduos que a partir de

    seus depoimentos nos levaram a outros. Assim fomos restituindo o movimento de

    fabricao do filme.

    Em Complexo de Juninho e Kur a observao dos processos de produo

    e de autoria foi feito in locu, durante o processo de sua fabricao. A Oficina

    Cinemaneiro, onde eles foram produzidos, teve durao de 03 semanas. Durante esse

    tempo pude acompanhar e registrar em udio e vdeo alguns momentos-chaves: a

    primeira aula, os primeiros exerccios com equipamento de captao, a primeira

    reunio para escrever o roteiro, o dia de gravao, a edio do filme e sua primeira

    exibio para moradores da Mar, onde a oficina aconteceu e o filmes foram

  • 15

    produzidos. Trata-se de uma outra forma de rastreamento pois neste caso participei

    como observador dos momentos em que o filme foi fabricado antes dele virar uma

    caixa preta 4 . Alm da observao foram feitas entrevistas com alguns dos

    participantes envolvidos na produo do filme. Ao contrrio de No Limite do

    Horizonte esse curta no foi inscrito no festival.

    Na verdade, a investigao de processos de produo de subjetividade

    pressupe quase sempre um processo em curso. No caso de se rastrear processos

    que partem de filmes prontos e acabados a dificuldade de se instalar em um

    experincia que remete ao passado evidente. Portanto, acompanhar a fabricao

    dos filmes in locu foi fundamental para esta pesquisa pois abriu a oportunidade de se

    acompanhar um momento em que praticamente toda a rede de foras ao qual o objeto

    se encontra conectado estava presente e atuante.

    Os filmes que fazem parte desta pesquisa foram escolhidos levando em conta o

    tempo de existncia dos projetos, a sua relao com o Festival Vises Perifricas e a

    localizao de forma que o acompanhamento da oficina e o contato com os envolvidos

    pudesse ser feita de forma mais frequente e direta. Alm desses pontos j

    enumerados, vale destacar que ambos os projetos atendem um pblico morador de

    regies da cidade consideradas perifricas, o que refora a importncia da pesquisa

    como instrumento til de reflexo no mbito de polticas pblicas para esses

    segmentos da populao.

    A partir das perguntas provocadas pelos filmes, a pesquisa procura contribuir

    para o debate acerca da relao entre educao e audiovisual que atualmente

    realizado em diversos fruns espalhados pelo pas, sendo o prprio Vises Perifricas

    um deles. A discusso dessa relao ganhou flego com o projeto de lei de n 7.507,

    de 2010, que incorpora e acrescenta a Lei n 9.394, de 20 de Dezembro de 1996, das

    diretrizes e bases da educao nacional, no seu artigo 26, pargrafo 6, a

    obrigatoriedade de exibio de filmes e audiovisuais de produo nacional nas

    escolas de educao bsica.

    4 Latour retira esse termo da ciberntica onde caixas pretas so colocadas no lugar de sistemas muito complexos.

  • 16

    Embora a aprovao desta lei seja um passo adiante para a aproximao dos

    dois campos, ela se limita a garantir a exibio de filmes dentro da escola. Nesse

    sentido a relao audiovisual e educao ainda se encontra fragilizada no mbito mais

    formal da educao pela falta de uma perspectiva contempornea que contemple uma

    reflexo sobre o campo do audiovisual na escola na perspectiva de sua realizao.

    Em uma poca em que o acesso aos meios de produo e difuso audiovisual

    enormemente facilitado grande parte da populao, principalmente aos mais jovens,

    essa uma falta que deve ser encarada com seriedade.

    Tendo apresentado nesta introduo os objetivos da pesquisa e as bases

    metodolgicas de investigao a estrutura da dissertao pode ser assim

    apresentada: o segundo captulo deste trabalho procura contextualizar a produo dos

    filmes em questo. Para comear, feito um breve panorama histrico dos modos de

    apropriao do audiovisual pelos movimentos sociais, de onde podemos ver em

    perspectiva as atuais experincias de formao audiovisual. A segunda e terceira

    parte se encarregam de rastrear os principais actantes envolvidos no processo de

    aprendizagem e produo dos filmes em questo, detendo-se mais nas metodologia

    das oficinas. Segundo Latour, somente podem ser considerados actantes aqueles

    elementos que produzem efeito na rede, que a modificam e so modificados por ela.

    Necessariamente um actante deve deixar rastros. Sendo os filmes os actantes que

    instigaram essa investigao, a partir do contexto em que eles foram produzidos que

    o rastreamento se inicia. A ltima parte do captulo faz uma reflexo sobre como as

    metodologias das oficinas instauram distncias entre o espectador e criador e como

    essas distncias incidem no processo de fabricao dos filmes.

    O terceiro captulo traa um panorama da constituio da funo autor no

    campo do cinema. Os filmes desta pesquisa so atravessados por diversas linhas de

    fora que, ao interagirem entre si, enunciam sua autoria. Consideramos aqui que as

    figuras discursivas presentes nos crditos finais so rastros desse tipo de enunciao.

    O interesse deste captulo investigar o modo como os indivduos envolvidos se

    posicionam em relao a essas foras. Como isso contribui para organizar as figuras

    que surgem nos crditos finais reiterando ou propondo novas formas de

    funcionamento do discurso.

  • 17

    O quarto captulo vai pensar, a partir do pensamento de Jacques Rancire, a

    fico como um campo de negociao entre as diversas linhas de fora que incidem

    sobre a fabricao dos filmes. A fico como a representao dos espaos anterior a

    produo dos filmes ou resultante de uma partilha de afetos provocada pela produo

    dos filmes. Essa negociao um lugar privilegiado onde podemos ver como os

    indivduos se posicionam em relao as foras que incidem na fabricao os filmes.

    Finalmente, o quinto captulo descreve a afetao entre os filmes e suas vias

    de circulao fazendo ver com a autoria tambm se constri nesse contato.

  • 18

    1 O ESPECTADOR COMO CRIADOR NO ENSINO DO AUDIOVISUAL

    1.1 O uso do vdeo pelos movimentos sociais no Brasil

    Em certa medida o sculo XX foi o sculo das imagens em movimento e ele

    seria completamente diferente sem o cinema. O mundo contemporneo o lugar das

    imensas e superlotadas metrpoles que se configuram por efeito e influncia de uma

    variedade de meios de comunicao. No sculo XIX foram realizadas muitas

    pesquisas sobre o papel constitutivo do corpo na apreenso do mundo visvel

    (CRARY, 2012). Essas pesquisas geraram um acmulo de conhecimento sobre o olho

    humano que teve como uma de suas consequncias a criao da mquina

    cinematogrfica. Desde o seu incio o cinema foi usado em contextos polticos

    diversos enquanto tcnica de normatizao dos sujeitos e de racionalizao de sua

    percepo. O seu alto custo de produo e circulao durante muito tempo afastou as

    camadas mais populares da sociedade do polo produtor dessa cadeia. A maior parte

    da populao participava dessa relao com o cinema apenas na condio de

    observador. Foi apenas com o surgimento da tecnologia do vdeo no final da dcada

    de 60 que ela comeou a ganhar autonomia para realizar suas prprias produes.

    Nessa poca comeam a surgir as primeiras experincias de vdeo popular na

    Europa e Amrica do Norte. Luiz Fernando Santoro (1989), no seu livro A imagem

    nas mos, conceitua o vdeo popular como a produo de programas de video com a

    participao direta dos movimentos populares em sua concepo, elaborao e

    distribuio, inclusive apropriando-se dos equipamentos de video. Santoro entende

    como movimentos populares os sindicatos, associaes de moradores, movimentos

    dos sem-terra e grupos independentes.

    O surgimento dessas experincias aconteceu principalmente por dois motivos:

    reduo dos custos de produo e a simplificao operacional dessa tecnologia,

    ambas mudanas significativas se comparadas ao cinema e televiso da poca. A

    experincia que resultou desse alargamento da faixa de realizadores aconteceu sob o

  • 19

    esprito de efervescncia poltica da poca e foi enxergada como instrumento de

    contrainformao ou militncia com objetivo de se opor informao hegemnica,

    oferecendo uma outra verdade livre de discriminao e alienao. Articuladas com a

    tecnologia de distribuio da televiso por cabo, essas experincias fizeram surgir as

    primeiras TVs comunitrias no incio da dcada de 70, principalmente no Canad e

    na Frana. Uma das linhas em torno da qual giravam essas experincias de

    contrainformao diz respeito a uma guerrilha receptiva, onde o pblico, assumindo

    o papel de agente do discurso audiovisual, tambm desenvolve instrumentos para a

    sua leitura crtica.

    Surgiu assim um sistema de TV onde a participao do espectador era possvel, os temas ligados ao seu dia-a-dia estavam presentes nos programas, a midiatizao das mensagens pelos profissionais era reduzida, enfim, onde os papis de emissor e receptor estavam sujeitos a permutas, onde o espectador passivo da TV de massa poderia tornar-se ativo. (SANTORO, 1989, p. 25)

    Nas palavras de Santoro, o movimento do vdeo popular no Brasil nasceu junto

    com a chegada e difuso dessa tecnologia no pas. Lanado no final dos anos 50, s

    a partir do incio da dcada de 80 o vdeo comea a atuar na vida do brasileiro.

    Primeiramente consumido como um bem de status, o seu uso alternativo ao

    domstico inicia-se em 1983 com um curso de capacitao em vdeo especificamente

    para grupos que atuavam junto a movimentos populares.

    O incio da dcada de 80 marcado pelo afrouxamento das restries polticas

    e o incio do processo de retomada da democracia. Os Movimentos de base que se

    disseminaram em torno de uma crescente estagnao econmica e social, ento se

    ressentiam de um canal de disseminao de suas ideias e reivindicaes. Na poca a

    televiso chegava a 100 milhes de brasileiros e possua uma estrutura bastante

    vertical, em forma de redes, concentrada nas mos de poucos proprietrios e com

    abrangncia nacional. Em um contexto desses os acontecimentos locais no

    possuam lugar de divulgao, o que estabelecia uma viso bastante parcial e

    centralizadora do que acontecia em territrio nacional. A produo, desde 1982, de

    aparelhos de videocassetes nacionais e o interesse de entidades financiadoras

  • 20

    ligadas a Igreja catlica com vistas a uma democratizao dos meios de comunicao

    lanaram terreno para o surgimento de experincias que preconizavam a utilizao da

    tecnologia do vdeo como canal de articulao e divulgao dos Movimentos

    Populares.

    Em 1980 o Documento de So Bernardo, assinado por lderes sindicais e de

    movimento de bairro definia o movimento popular como:

    Todas as formas de mobilizao e organizao de pessoas das classes populares, direta ou indiretamente, vinculadas ao processo produtivo, tanto na cidade como no campo. So movimentos populares as associaes de bairro, os clubes de mes, os grupos organizados em funo da luta pela terra, e outras formas de luta e organizao popular. Faz parte tambm o movimento sindical, que por sua prpria natureza tem um carter de classe, definido pelas categorias profissionais que dele fazem parte. (SANTORO, 1989, p.59)

    As diversas experincias do vdeo popular na dcada de 80 vo acontecer em

    um momento onde a rgida dicotomia esquerda-direita comeava a mostrar sinais de

    flexibilizao em funo da retomada do processo de democratizao do pas e uma

    suposta vitria do capitalismo. Isso ir conferir as primeiras experincias uma maior

    abrangncia do espectro social ao valorizar a atomizao de suas manifestaes

    polticas. Quem se coloca atrs das cmeras e orienta o seu foco agora sero grupos

    ligados diretamente a movimentos populares, como por exemplo os sindicatos e

    associaes de moradores e movimentos dos Sem Terra. So dessa poca a TV dos

    Trabalhadores e a TV dos Bancrios, o CECIP, todos ligados a movimentos sindicais

    de So Paulo.

    A maneira como esses grupos vo se inserir nos movimentos populares e as

    relaes que estabelecem com as instncias de poder local, com as lideranas e

    entidades, sem dvida uma questo-chave da discusso sobre o vdeo popular no

    Brasil. Quando esses grupos aparecem normalmente so organizados a partir de

    alguma entidade capaz de dar o suporte financeiro e poltico ao trabalho de vdeo,

    seja diretamente, com recursos prprios, como acontece na rea sindical, ou

    repassando recursos conseguidos no exterior para esse fim, como no caso da TV Viva

    de Olinda (mantida pelo Centro Luiz Freire) ou do Projeto Audiovisual (mantido pela

    arquidiocese de Teresina). Os movimentos nos quais essas entidades esto inseridas

  • 21

    definem as necessidades e direcionamento do grupo que realiza a produo de

    programas de vdeo, mas que nem sempre privilegia esse tipo de trabalho.

    O vdeo realizado passa a substituir a presena fsica de lideranas na tarefa

    de ser porta-voz do movimento, e por isso no pode escapar ao seu controle. As

    produes dessa poca obedecem ao modelo tradicional de organizao de uma

    equipe e trazem sempre a figura do diretor, geralmente um agente externo ao grupo

    de pessoas e a situao enfocada na produo. A noo de participao local

    compreende mais uma mudana no discurso sobre a situao vivida pela comunidade

    do que propriamente uma transferncias de recursos tcnicos com vistas a uma

    autonomizao de produo dessa comunidade.

    Henrique Luiz Oliveira (2001) faz uma anlise interessante sobre a participao

    dos movimentos populares na dcada de 80. Na sua opinio o vdeo trata de contribuir

    para a percepo de alguma coisa que deve ser transformada. Mais ainda: tratava-se

    de engajar a vontade de indivduos e grupos em uma ao transformadora. O territrio

    da existncia diagnosticado como problema, em geral, remete ao mundo do trabalho e

    o sujeito da ao invariavelmente um sujeito coletivo: ele se configura como agente

    por pertencer a uma organizao que o unifica e potencializa a sua ao. Pela

    organizao o indivduo toma conscincia da possibilidade de agir e transformar. Um

    exemplo desse tipo de vdeo o Batalha em Guararapes, produzido em 1984 pela

    FASE (Federao de rgos para Assistncia Social e Educacional). Os moradores

    do Jardim Guararapes, zona oeste do Rio de Janeiro reproduzem sua histria em

    forma de fico, tendo como centro a luta contra despejos, mostrando a participao

    de associaes e da FAMERJ (Federao das Associaes de Moradores do Estado

    do Rio de Janeiro) como articuladores do movimento.

    A virada de dcada traz uma preocupao maior com o processo

    comunicacional. Assim, o final da dcada de 80 e incio de 90 marcado pelas TVs de

    rua, onde a produo e veiculao de vdeos e programas eram feitas de forma

    itinerante, geralmente em kombis estacionadas em lugares pblicos. So dessa

    poca a TV Viva (Olinda), TV Maxambomba (Baixada Fluminense), TV Sala de Espera

    (Belo Horizonte), TV Acabo na Praa (Belo Horizonte) e outras mais. Essas

    experincias tiveram uma repercusso muito grande junto a populao pois atuavam

  • 22

    diretamente nas ruas, discutindo assuntos do dia a dia, como machismo, sexualidade.

    Muitas misturavam produo com participao: a comunidade aprendendo tcnicas

    de como fazer vdeo, TV.

    No incio (em 1982) a Maxambomba percorria os municpios da Baixada Fluminense com o intuito de comunicar temas de interesse da comunidade. Com a produo ainda realizada pelos membros da equipe essa dinmica estabeleceu o perfil de televiso da baixada em virtude do uso de cmeras para as reportagens dos jornais de bairro. Com o tempo houveram modificaes no sentido de tornar a populao no apenas interlocutora mas tambm produtora. Consequncia dessa opo metodolgica, o projeto Reprteres de Bairro se caracterizou pela capacitao tcnica e crtica de elementos da comunidade interessados no processo de produo em vdeo, com vistas a realizao de programas exibidos, a princpio, em Nova Iguau e Municpios da Baixada Fluminense. (LOURENO,1999, p. 17)

    Nesse perodo h uma ampliao das formas de vinculao dos indivduos para

    alm das relaes de trabalho (a multiplicidade de grupos no-sindicais: mulheres,

    crianas de rua, homossexuais, prostitutas, ndios, negros, sem-teto, etc.) e do

    interesse pelas estratgias de resistncia desses grupos. Gradualmente se tornou

    menos incisiva a denncia das relaes de trabalho e de explorao, ao mesmo

    tempo que a problematizao da responsabilidade individual se acentuou. A produo

    assume um formato claramente televisivo, com nfase na reportagem. A lei do cabo

    que viria a ser criada em 1995 d um impulso a essas experincias. A expresso TV

    Comunitria amplamente usada. Nesse contexto j se percebe um envolvimento de

    agentes pertencentes ao lugar de atuao da TV. A tnica parece ser utilizao do

    vdeo para formao de comunidades em torno dos projetos. A presena de

    moradores locais na confeco dos programas torna-se estratgia de aproximao e

    identificao com base na recepo dos programas. No entanto as produes ainda

    so estimuladas e conduzidas por agentes externos s localidades de atuao. O

    apresentador do programa de nmero 19 da TV Sala de Espera, produzida entre 1993

    e 97 em Belo Horizonte, faz questo de afirmar na abertura que aquele se trata de um

    programa especial:

    Est entrando no ar mais um TV Sala de Espera, s que o programa de hoje especial. Ele foi todo feito pelos seus amigos a do Bairro. O pessoal reuniu, escolheu os temas, dirigiu as filmagens e participou da montagem final do

  • 23

    programa, agora voc confere os resultados. (TV Sala de Espera/ pgm 19, 1993).

    Ao longo da dcada de 90 ocorre um recuo dos antigos apoios de

    investimentos estrangeiros sob a alegao de que a democracia j se encontrava

    consolidada. Muitas das experincias de Vdeo e TV popular que surgiram na dcada

    anterior sofreram transformaes ou simplesmente interromperam suas atividades.

    Algumas delas, atravs de seus antigos colaboradores, se desdobraram em

    Organizaes No Governamentais ou pequenas produtoras independentes. A equipe

    da TV Sala de Espera criou uma ONG, a Associao Imagem Comunitria5 que h 20

    anos trabalha com o conceito de protagonismo juvenil, realizando Oficinas de

    Audiovisual entre jovens dessa cidade. No Rio de janeiro temos o caso da TV

    Comunitria Bem TV6 que atua produzindo e exibindo vdeo em sete comunidades de

    Niteri .

    Os anos 2000 assistem o surgimento de inmeros projetos de audiovisual no

    pas (SGANZERLA; PAIVA; MAZER, 2005). Um dos caminhos escolhidos e que se

    configurou com um espao de grande interesse e desenvolvimento diz respeito ao da

    formao audiovisual ou educao miditica. O foco passa a ser o ensino do

    audiovisual em escolas e territrios de baixa renda. As leis de incentivo ganham cada

    vez mais importncia, sua forma de aplicao cria um modelo de investimento com

    nfase na parceria entre o capital privado e o estado mas com grande ingerncia do

    primeiro. Boa parte das oficinas mantida por uma srie de patrocinadores privados,

    nacionais e internacionais. O governo federal tambm d importantes passos na

    direo de uma poltica pblica mais abrangente como os programas Revelando os

    Brasis e Olhar Brasil, da Secretaria de Audiovisual do MinC. Dentre os projetos

    organizados por Associaes privadas e que surgem nesse perodo temos as oficinas

    Kinoforum (SP), Oficina de Imagens (BH) e o prprio Cinemaneiro (RJ). A oficina de

    vdeo do Ncleo Arte Grcia criada em 2003.

    A exemplo do que aconteceu na dcada de 80, um novo ciclo de inovao

    tecnolgica impulsiona o desenvolvimento dessas experincias. Dessa vez o digital

    5 http://www.aic.org.br

    6 http://www.bemtv.org.br/portal/

  • 24

    que vai oferecer argumentos para os discursos em defesa pela democratizao da

    mdia em geral e mais especificamente do cinema. Apesar da semelhana os dois

    momentos possuem uma grande diferena na forma como os projetos se organizam e

    propsitos. O dilogo em maior ou menor grau com o mercado vai gerar uma

    diversidade de mtodos de atuao mas com uma afinidade entre eles: uma real

    transferncia de recursos tcnicos e conceituais sobre a prtica audiovisual. Muitas

    experincias continuaram se inspirando na esttica televisiva e avanando com essa

    proposta mas uma novidade que vai fazer a diferena que o cinema passa a ser um

    campo de atuao favorvel para esses projetos depois de quase uma dcada de

    retomada. No demais lembrar que em 2002 acontece o fenmeno Cidade de

    Deus. Para selecionar os atores do filmes os diretores vo criar a ONG Ns do

    Cinema, que depois viria a se transformar no Cinema Nosso. Foi este contexto de

    otimismo em torno do discurso das Novas Tecnologias que incentivou a configurao

    de um conjunto de experincias em diversos estados que, mesmo no podendo ser

    delimitado por parmetros claros de afinidade, ainda assim permitiu que milhares de

    moradores de territrios de baixa renda experimentassem pela primeira vez a

    linguagem audiovisual, exercendo seu direito constitucional de comunicao e

    expresso. A seguir iremos descrever as duas experincias de formao audiovisual

    que integram esta pesquisa e que fazem parte deste panorama mais recente de

    projetos voltados para a formao audiovisual que atuam em locais de baixa renda.

    1.2 Reduzindo distncias entre espectador e criador na Oficina Cinemaneiro

    A oficina Cinemaneiro um dos projetos que surgiram nos anos 2000 com

    ajuda das leis de incentivo culturais. um projeto desenvolvido pela ONG Cidadela

    desde 2002 que oferece cursos gratuitos de produo audiovisual em comunidades

  • 25

    populares do Rio de Janeiro. Em sua pgina online 7 no Facebook, a oficina assim

    descrita:

    O Projeto Cinemaneiro Oficinas e Exibio de filmes tem como objetivo a democratizao do acesso a bens e saberes culturais, sociais e artsticos, utilizando para essa finalidade, as ferramentas de produo audiovisual. Trata-se do desenvolvimento de cursos gratuitos de realizao audiovisual em vdeo digital para jovens e adultos que, no decorrer das aulas, aprendem a produzir um filme de curta durao desde a ideia at a edio do vdeo.

    Na edio de 2013 ele foi patrocinado pela LAMSA (Linhas Amarelas S.A)

    atravs da lei Rouanet.8 Ela a concessionria que administra a Linha Amarela, uma

    das mais importantes vias expressas da cidade do Rio de Janeiro. Ela faz parte do

    grupo Invepar que mantm um instituto com o mesmo nome, responsvel por

    mobilizar e apoiar as iniciativas de responsabilidade social do grupo. O conceito de

    responsabilidade social do Invepar pode ser encontrada no ltimo relatrio anual da

    empresa disponibilizado no site:

    A Companhia compreende que gerir os seus impactos na sociedade e no meio ambiente fundamental para criar um ambiente em que seus negcios possam ser impulsionados sem que nenhuma das partes seja esquecida (INVEPAR, 2012, p. 57).

    Uma das diretrizes de sua poltica de responsabilidade social o entendimento

    da realidade social, econmica e ambiental dos territrios e a efetiva participao das

    empresas na dinmica socioterritorial. Os Objetivos do Milnio9 e os princpios do

    Pacto Global10 norteiam essa gesto. As 16 comunidades que integram o bairro da

    Mar ficam ao largo da Linha Amarela e por isso so contemplados por essa poltica.

    7 O endereo eletrnico https://www.facebook.com/Cinemaneiro/info?ref=ts

    8 A Lamsa patrocina a oficina Cinemaneiro desde 2007

    9 Em setembro de 2000, 189 naes firmaram um compromisso para combater a extrema pobreza e outros males da sociedade. Esta promessa acabou se concretizando nos 8 objetivos do Milnio (ODM) que devero se alcanados at 2015.

    10

    O Pacto Global uma iniciativa desenvolvida pelo ex secretrio-geral da ONU, Kofi Annan, com o objetivo de mobilizar a comunidade empresarial internacional para a adoo, em suas prticas de negcios, de valores fundamentais e internacionalmente aceitos nas reas de direitos humanos, relaes de trabalho, meio ambiente e combate corrupo refletidos em 10 princpios.

  • 26

    A Mar se localiza na Zona Norte do Rio de Janeiro e considerada uma rea de

    baixo ndice de Desenvolvimento Humano (IDH). No ano 2000 era o 123o colocado da

    cidade. No relatrio de 2012 da empresa o Cinemaneiro aparece como um dos

    projetos conduzidos pela LAMSA que contribuem para o desenvolvimento

    socioeconmico das comunidades.

    Ao longo dos seus 11 anos de existncia centenas de jovens passaram pelo

    projeto e hoje alguns trabalham nele em funes como produtor e orientador. Os

    filmes produzidos em seus cursos participam do Festival Vises Perifricas desde seu

    comeo, somando ao todo sete filmes exibidos em quatro edies (2007, 2008, 2010 e

    2012). Complexo de Juninho e Kur, o valor da amizade so resultado de uma

    oficina realizada em 2013, entre os dias 15 de Abril e 03 de Maio, na Baixa do

    Sapateiro, uma das 16 comunidades que formam o Complexo da Mar. O grupo de 15

    pessoas que participou da oficina foi composto por moradores de diversas

    procedncias e faixas etrias, inclusive moradores da comunidade. Os encontros

    aconteceram na Associao de Moradores da Baixa na Rua Nova Jerusalm.

    Por meio de observao participante procurei acompanhar o processo de

    construo dos filmes, desde o primeiro encontro na Associao de Moradores at a

    primeira exibio pblica do filme no Museu da Mar. No primeiro encontro, no dia 15

    de Abril, foi fornecido aos alunos um kit contendo uma camisa da oficina com a

    logomarca dos patrocinadores e do projeto, uma apostila, uma carta de boas-vindas

    com informaes gerais e a grade do curso com os dias de encontro e uma breve

    descrio do contedo programtico (Anexo I). Esse kit integra uma das peas de

    comunicao que devem ser previstas no projeto enviado para o Ministrio da Cultura

    e para o Invepar11. uma contrapartida exigida pela empresa e pela lei Rouanet para

    patrocnio do projeto. No total a oficina constituda de 15 encontros de 05 horas

    cada, totalizando 75 horas de curso.

    Os quatro primeiros encontros so dedicados a uma Introduo histria e

    linguagem do cinema. Participei como observador no primeiro dia e o que pude

    11

    Tanto o Ministrio da Cultura quanto a Invepar disponibilizam um formulrio onde um dos campos a serem preenchidos pelo projeto diz respeito as peas de comunicao que iro integrar a ao contemplada.

  • 27

    apreender que a oficina procurava construir um percurso de aprendizagem do fazer

    audiovisual pautado por funes e etapas que geralmente fazem parte do processo de

    realizao de um filme, apresentando essas funes de forma mais ou menos linear

    como elas se sucedem nas etapas de pr-produo, produo e ps-produo. Tendo

    como base a grade do curso, o rastreamento procurou acompanhar os momentos

    onde as diversas linhas de fora que atravessavam a oficina emergissem em decises

    e aes.

    Em filmes que seguem um desenho de produo com etapas e funes bem

    definidas geralmente os sujeitos que integram uma equipe de filmagem possuem

    algum conhecimento prvio daquela funo, se reconhece neles a competncia para

    fazer alguma coisa. No caso da oficina partia-se do pressuposto que todos os

    integrantes da turma se no detinham o mesmo nvel de conhecimento, pelo menos

    ingressavam em uma relao desempenhando um mesmo papel, o de aprendizes.

    Esse era um pacto implcito desde o comeo e que de certa maneira justificava

    mesmo a realizao do projeto, o acesso aos bens e saberes culturais e artsticos.

    Dessa forma era difcil avaliar de incio em quais momentos as linhas de fora se

    desdobrariam em tomadas de deciso. Na verdade todos os momentos teriam igual

    importncia, mas pela impossibilidade de estar presente em todos elegi aqueles que

    pareciam mostrar mais relevncia dentro daquilo que pude apreender como um dos

    actantes da oficina: a linguagem clssico-narrativa.

    Ao longo do percurso fui percebendo que a relao de aprendizagem estava

    intimamente relacionada com os momentos de criao dos filmes e que esses

    momentos aconteciam de maneira ao mesmo tempo induzida dentro de um certo

    propsito pensado pela coordenao da oficina e aberta assimilando as ideias,

    saberes e afetos produzidos na relao entre os participantes e entre eles e a oficina.

    O primeiro encontro foi iniciado com uma rpida apresentao dos participantes

    onde ficou perceptvel a diversidade de interesses, de faixa etria (dos 13 aos 50

    anos) e de conhecimentos sobre o cinema (alguns j tendo passado por outras

    oficinas de audiovisual). Em meio as apresentaes e comentrios, Walter Fernandes,

  • 28

    um dos facilitadores12, prope que a oficina tenha como objetivo a realizao de dois

    curta-metragem de 05 minutos cada.

    Terminada a rodada de apresentao, Walter d incio parte de introduo

    histria de linguagem do cinema exibindo e comentando obras do chamado primeiro

    cinema (CESARINO, 1995). Comeando por trs das famosas tomadas fotografadas

    por Louis Lumire, nesta ordem: A sada da fbrica (1895) A Chegada do trem a

    estao de Ciotat (1895), o regador regado (1895). Em seguida sendo exibida a

    Viagem a Lua (1902) de Georges Mlis e algo de Griffith. As obras foram

    apresentadas como sendo parte da formao da linguagem cinematogrfica, seguindo

    uma certa historiografia bem conhecida que entende essa formao como um

    processo gradual e evolutivo, precedida pelas pesquisas e invenes no campo da

    fotografia. A exibio foi antecedida por uma contextualizao da poca, biografia dos

    realizadores e o pedido para que os participantes prestassem ateno em aspectos

    como a fotografia e a montagem.

    Segundo Walter o objetivo ali era sair da posio de espectadores e assumirem

    a de realizadores, enxergando uma tcnica que segundo ele era bem menos

    conhecida do que em outras artes, o que deixaria o espectador mais vulnervel. Aqui

    o principal da questo passar pro outro lado, no entrar na questo do gosto ou

    no gosto, tem que entrar na questo da compreenso e no compreenso

    (Fernandes, 2013). possvel ver nesta frase toda uma viso de mundo que est

    implicada no formao da oficina e que vai incidir sobre a realizao dos filmes. Ela

    parte do princpio que existem dois polos separados, aquele que detm um saber

    sobre um certo modo de fazer cinema, representado pelos facilitadores e

    coordenadores, e aquele que desconhece esse modo, representado pelos

    participantes. Ao mesmo tempo que Walter analisava os filmes ele tambm citava

    exemplos de obras e diretores que ao seu ver subvertiam um uso mais vulgar da

    decupagem clssica: Sergio Leone, Inquietos (2011) de Gus Van Sant. Os

    participantes, por sua vez, procuravam dialogar com os filmes relacionando as

    anlises feitas por Walter com filmes e contedos de seus repertrios: As invenes

    12

    A oficina Cinemaneiro refere-se aos responsveis pela conduo dos encontros como facilitadores.

  • 29

    de Hugo Cabret (2012); Matrix (1999); O Poderoso Chefo (1972); Os Cavaleiro do

    Zodaco.

    O meu segundo encontro com a oficina foi durante a aula que levou o nome de

    Fotografia e Cmera. Ela foi dada por Alexandre Mizrahi, ex-aluno da oficina. Nesse

    encontro resolvi levar uma cmera de vdeo para registrar. A proposta era que o debate

    sobre contedo programtico daquele encontro fosse feito todo em cima da prtica dos

    alunos. Alexandre pediu que a turma se dividisse em trs grupos e cada um criasse

    uma pequena histria que pudesse ser gravada nas imediaes da oficina. Forado a

    fazer uma escolha aleatria, acompanhei um dos grupos e fiz o registro de todo o

    processo, da discusso at a exibio do trabalho. Como havia apenas uma cmera, o

    grupo foi obrigado a esperar um pouco, o que permitiu que eles burilassem mais a

    situao e fizessem uma decupagem desenhada em um papel.

    Ao fim das gravaes todos voltaram e os trabalhos foram exibidos e avaliados

    em grupo. Interessante notar que de uma maneira geral as situaes que foram

    gravadas apresentavam uma utilizao condizente com recursos apresentados nos

    primeiros encontros: utilizao do ponto de vista (diferentes ngulos de cmera), da

    continuidade (corte dentro da mesma cena) e da montagem paralela (aes

    acontecendo em espaos diferentes simultaneamente). Algo na verdade esperado uma

    vez que esses procedimentos da decupagem clssica haviam sido analisados nas

    primeiras quatro aulas e ainda so utilizados de forma massificada pelo cinema e

    televiso. O efeito esperado pela oficina parecia estar sendo atingido. Alguns

    procedimentos inaugurais da linguagem clssico narrativa, naturalmente assimilados

    pelo pblico em geral no convvio com uma cultura audiovisual massificada, estavam

    sendo apropriados pelo grupo a servio de suas ideias e, para muitos, pela primeira

    vez. Esses procedimentos foram utilizados nos encontros seguintes e passariam a ser

    uma caixa de ferramentas para a produo dos filmes. O resultado pela avaliao

    certamente gerou uma satisfao, expressada por todos, de estarem atravessando a

    linha que separava espectadores de realizadores, o que significava aprender um certo

    modo de fazer e produzir cinema.

  • 30

    1.3 No limite do Horizonte: geografia e audiovisual se unem na oficina do Ncleo

    Arte Grcia

    No Limite do Horizonte conta a histria de Marta, uma jovem que est prestes

    a se casar. Ela mora no subrbio do Rio de Janeiro e trabalha em um salo de beleza.

    Marta parece perdida, desestimulada, no tem certeza se est fazendo a coisa certa.

    O filme acompanha o cotidiano de Marta pelas ruas do Subrbio, se relacionando com

    seus moradores, os eventos locais. A certa altura ela parece caminhar sem rumo e o

    filme alterna cenas de sonho e cenas do cotidiano da personagem.

    Assim como os dois filmes do Cinemaneiro, o curta No Limite do Horizonte

    tambm foi produzido em um contexto de formao audiovisual. Ele foi realizado

    atravs de uma parceria entre a oficina de vdeo do Ncleo de Arte Grcia (NAG), o

    Cineclube Subrbio em Transe e o Ponto de Cultura Carpintaria de Montagem, os trs

    localizados em bairros do Subrbio do Rio de Janeiro. O NAG, como conhecido,

    participou do festival Vises Perifricas em seis edies (2001-2012) com oito filmes.

    O Subrbio em Transe exibiu 05 filmes em trs edies (2008, 2009 e 2012), incluindo

    um longa-metragem. No Limite a quarta parceria entre o NAG e o Subrbio em

    Transe e a histria dos dois se confundem. Segundo a pgina online oficial13 do NAG

    a oficina de vdeo assim descrita:

    A oficina de vdeo pretende ser o lugar onde os alunos podero realizar suas produes audiovisuais, atravs do seu prprio olhar e vivncia (...) Desde j mostramos o interesse de aulas passeios em que os alunos possam perceber e compreender o espao geogrfico onde ele mora e comparar com outras localidades.

    O texto de descrio tambm sugere alguns contedos como Introduo ao

    cinema Clssico Narrativo; o Cinema Novo Brasileiro; os enquadramentos, os

    movimentos de cmera e a inteno dramtica.

    13

    O endereo http://nucleodeartegrecia.wordpress.com

  • 31

    O NAG fica em Vila da Penha e possui diversas oficinas, dentre elas a

    de vdeo. Ele um espao de extenso educacional e funciona ligado a 4a CRE

    (Coordenadoria Regional de Educao) que quem repassa a verba distribuda pela

    Secretaria Municipal de Educao para esses espaos e as unidades escolares. At

    2012 eram 42 espaos espalhados pelas regionais mas que tiveram que ser reduzidos

    metade. O NAG foi um dos ncleos mantidos segundo critrios que privilegiaram o

    nmero de alunos atendidos. At 2012 eles atendiam alm dos alunos do municpio,

    os da rede estadual e particular da regio. A partir de ento por direcionamento da

    secretaria passou a atender apenas os alunos da rede municipal dos 08 at os 17

    anos de idade. O NAG assim descrito em sua pgina on-line oficial14:

    Programa de Extenso Ncleo de Arte uma iniciativa da Secretaria Municipal de Educao e tem como objetivo estimular o potencial criador inerente a cada ser humano, estabelecendo uma relao intuitiva e sensvel do aluno com o que o cerca, de forma a lev-lo a interagir com sociedade em que vive, expressando-se atravs de mltiplas linguagens e produzindo cultura. Oportuniza tambm ao aluno que tenha talento e/ou interesse especfico por determinada linguagem artstica a possibilidade de aprofundar conhecimentos e tcnicas.

    Luiz Claudio Lima o professor da oficina de vdeo do NAG desde 2003. Ele foi

    chamado a integrar o corpo docente do ncleo 01 ano depois que ingressou na rede

    municipal de ensino como professor de geografia e que o NAG comeou a funcionar.

    Na poca a Secretaria de Educao props ao ncleo que abrisse uma oficina de

    vdeo. Para isso, ofereceu uma capacitao na rea audiovisual a professores da rede

    municipal de ensino. Luiz fez parte desse curso e depois foi chamado. Diferente dos

    professores das outras oficinas (teatro, dana e artes visuais), que possuem

    licenciatura para darem aula nessas reas, poca no existiam professores

    licenciados para darem aula de audiovisual. Uma das condies para trabalhar no

    NAG que o professor do Ncleo fosse matriculado na rede pblica.

    14

    O endereo http://nucleodeartegrecia.wordpress.com/video/

  • 32

    Figura 1 - Alunos da oficina de vdeo do Ncleo Arte Grcia gravando um curta.

    A relao de Luiz com o Subrbio no se d apenas por ele ser morador e

    trabalhar nessa regio. uma relao de afeto com o espao que se deu tambm por

    vias do cinema novo, movimento cinematogrfico que Luiz admira e onde vai buscar

    muitas referncias para seus filmes e para a oficina. Ele conta que quando era garoto

    comeou a gostar de cinema porque tinha um projeto que levava alunos de sua escola

    para um cinema que ficava ali perto, no Largo do Tanque, o extinto CineCisne:

    A a escola levava a gente pra ver esses filmes de cineastas brasileiros, dentre os quais o Nelson Pereira, Cac Diegues e eu gostava muito desses filmes e eu comecei a gostar ali, ao contrrio dos alunos, meus colegas (...) o pessoal corria atrs da sinopse do filme, na poca no tinha internet, o pessoal ia na locadora e pegava alguns filmes que tinha na locadora, a eu j gostava, aquilo pra mim eu achava legal, me interessei, na poca que eu ia fazer faculdade, eu queria fazer cinema mas foi uma poca ruim, 93...(LIMA,2010)

    Gegrafo por formao Lima se graduou com um trabalho sobre Rio 40o

    (1957), de Nelson pereira dos Santos e fez a dissertao de mestrado em geografia

    sobre filmes do mesmo diretor, Rio Zona Norte (1957) e El Justicero (1966), o que Luiz

    chama de a trilogia dos cafajestes cariocas. Hoje Luiz afirma que a relao entre

  • 33

    cinema e geografia permanece viva na oficina de vdeo do NAG, o que ele procura

    explorar incentivando os alunos a criarem em cima do espao onde vivem. Nessa

    pequena biografia de Luiz podemos encontrar um dos elementos de criao de No

    Limite, curta que todo rodado em locaes da Zona Norte da Cidade.

    A oficina de vdeo do NAG acontece durante a semana no contraturno da

    escola. Ela atende alunos de escolas municipais ligadas a 4a CRE. Os alunos podem

    fazer quantas oficinas quiserem at os 17 anos de idade. Eles podem ingressar no

    NAG a partir dos 08 anos de idade. Nesse perodo, podem permanecer na oficina de

    vdeo o tempo que desejarem, bastando para isso que se rematriculem. Alm do texto

    que consta no site do NAG um vdeo15 postado mostra Luiz explicando com suas

    prprias palavras quais so os objetivos da oficina. Ele d nfase no uso artstico e

    criativo de novos equipamentos de gravao como mquinas fotogrficas e espera

    que o aluno possa sair dali com uma boa noo de como se d a construo de um

    produto audiovisual, enxergando a ideologia que h por detrs.

    (...) e ento acredito que que aqui na oficina eles tem essa noo, que eles sabem construir, sabem editar, sabem elaborar um roteiro, ento quando eles vo ver um noticirio eles sabem que aquilo ali foi editado, foi roteirizado, teve seleo das cenas, teve uma construo e de uma certa maneira teve ideologia de quem fez (...) (LIMA, 2010)

    1.4 As distncias entre espectador e criador no processo de formao

    Certamente as duas oficinas (Cinemaneiro e NAG) mantm, por diferentes

    caminhos, uma ntima relao com os seus espaos geogrficos e ambas investem

    em uma formao que coloca o espectador como produtor do espetculo

    cinematogrfico. Elas colocam essa passagem como necessria ao desenvolvimento

    de um olhar crtico por parte dos participantes. E do nfase a esse aspecto partindo

    da premissa de que existe um desconhecimento por parte do espectador sobre o

    15

    http://nucleodeartegrecia.wordpress.com/video/

  • 34

    modo como os produtos audiovisuais so construdos. A maneira como as oficinas

    lidam com a passagem do observador para o produtor pano de fundo para a

    elaborao da metodologia em ambas as oficinas. Por isso sua anlise pede algumas

    consideraes com base em autores que desenvolveram uma reflexo sobre o

    estatuto do espectador.

    O espectador conforme sugerido por Walter Fernandes, facilitador do

    Cinemaneiro, parece ser um sujeito em uma posio vulnervel frente ao uso

    massificado de diversas tcnicas empregadas pelo cinema e pela televiso. Na sua

    opinio, o telejornal teria um exemplo clssico disso quando faz o uso abusivo do

    zoom sobre entrevistados em momentos de maior emoo e o faria para poder

    envolver o espectador e vender jornal impresso no dia seguinte. Este tipo de viso

    colocada assim de forma simplista tributria aos anos 70, um momento que estava

    em voga nos estudos cinematogrficos associar o efeito de realidade (LABEL, 1975)

    ou impresso de realidade (XAVIER, 1977) ao seu uso ideolgico. O espectador

    visto como uma presa fcil para as ideologias dominantes de qualquer matiz, em

    especial a ideologia ligada ao espetculo cinematogrfico norte-americano. Seria

    misso do artista trazer o espectador para o centro do espetculo e expor sua

    observao e esclarecimento as tcnicas que fabricam a iluso, o engano. Um gesto

    que pressupe uma distncia entre espetculo e espectador a ser suprimida pelo

    artista esclarecido.

    Por sua vez Jonathan Crary vai fazer uma distino entre espectador e

    observador no livro Tcnicas do Observador (2012). A palavra espectador

    carregaria conotaes especficas, especialmente no contexto da cultura do sculo

    XIX (...) [sendo] aquele que assiste passivamente a um espetculo. Em seu livro ele

    prefere usar a palavra observador que teria a vantagem de conter um significado

    etimolgico mais prximo aos seus propsitos de fazer uma genealogia da viso

    descolada de um determinismo das mquinas. Para Crary, o observador aquele que

    v como efeito de um sistema irredutivelmente heterogneo de relaes discursivas,

    sociais, tecnolgicas e institucionais. No h sujeito observador prvio a esse campo

    em contnua transformao. Nesse sentido a noo de observador se aproxima das

    ideias de Foucault sobre a constituio do sujeito. Ou seja, para Crary no h um

  • 35

    observador passivo, vazio, que evoluiria ao longo do curso da histria, ele mesmo

    sendo constitudo por um cruzamento de foras que se atualizam e se reconfiguram

    no tempo.

    Apesar da viso de Label e Crary sobre o espectador se aproximarem no

    tocante a uma suposta vulnerabilidade frente aos poderes que o atravessa eles

    diferem sobre as causas desse efeito. Para Label a tcnica de representao que

    exerce esse poder sobre um sujeito anteriormente dado como permevel a ideologia

    dominante. J para Crary a forma de representao mais uma linha de fora dentre

    um conjunto heterogneo de relaes discursivas, sociais, tecnolgicas e

    institucionais que incidem sobre essa relao. Para ele mquina e sujeito so efeito de

    uma mesma operao.

    a partir de outros parmetros que Jaques Rancire vai pensar o estatuto do

    espectador no seu livro O espectador emancipado (2012). A condio do

    espectador no a de um indivduo membro de um corpo coletivo idealizado, nem o

    espetculo deve ter a misso de retirar o espectador de sua ignorncia e devolv-lo a

    um ideal de corpo coletivo. Rancire faz uma ligao entre o pensamento filosfico de

    Plato sobre o teatro de sua poca, a transmisso da ignorncia que torna as

    pessoas doentes atravs do meio da ignorncia que a iluso de tica, e o

    experimento de alguns autores do teatro moderno como Brecht e Artaud, para quem o

    teatro deve tirar o espectador dessa ignorncia entendida tambm como sinnimo de

    passividade. Rancire problematiza esse gesto, afirmando que ele incorreria na

    constituio de uma distncia, a de que o artista teria algo a dizer ou ensinar que

    escapa a capacidade do espectador apreender por si prprio. Inspirado em outra obra

    de sua autoria, o Mestre Ignorante (2011), ele vai pensar o espectador com outro

    estatuto, o de indivduo com poder de traduzir do seu prprio modo aquilo que ele

    est vendo

    Ser espectador no a condio passiva que deveramos converter em atividade. nossa situao normal. Aprendemos e ensinamos, agimos e conhecemos tambm como espectadores que relacionam todo instante o que veem ao que viram e disseram, fizeram e sonharam. (RANCIRE, 2012, P. 21).

  • 36

    A reflexo sobre o estatuto do espectador feita pelos autores citados fornecem

    pistas importantes e teis para pensar a relao de foras que incidem sobre o

    processo de formao nas duas oficinas. Certamente os discursos que justificam a

    passagem espectador-produtor como necessria ao desenvolvimento de um olhar

    crtico tomam como premissa geral uma viso bem prxima as de Label. Seria o

    equivalente cinematogrfico do mtodo brechtiano que teria como finalidade fazer

    passar o espectador de uma atitude passiva de fascinao mistificada a uma atitude

    criativa de compreenso. Mas interessante destacar que nos anos 70 o lugar dessa

    desconstruo a obra cinematogrfica ao nvel das formas dramticas. No caso das

    oficinas ela operada do lado do espectador tomando como premissa a distncia que

    existe entre o saber do professor e o saber

    dos participantes. Nas duas oficinas os professores agem como o artista esclarecido

    dos anos 70. A nica maneira de diminuir a distncia entre os poderes da fico e a

    suposta alienao dos participantes, de faz-los ver a ideologia que existe na tcnica

    estimul-los a desconstruir esse poder atravs do seu exerccio.

    No primeiro encontro Walter vai concentrar seu esforo em revelar a tcnica

    que h por detrs de uma suposta ideologia dominante, conferindo uma distncia

    entre o seu conhecimento acerca dessa relao e a passividade dos participantes.

    Ele dirige o olhar sobre as obras que apresenta, esmia o plano, chama ateno

    para detalhes que passariam desapercebidos, faz ver um fora da tela que eles no

    conseguem enxergar. interessante o esforo que Walter faz para trazer a ateno

    dos participantes para o foco quando eles comentam aspectos da obra que fogem

    completamente ao seu direcionamento. Ao contrrio da distncia instaurada pelo

    discurso de Walter o espectador passivo, ali representado pelos participantes

    presentes na oficina, atravessado por um conjunto heterogneo de foras que que

    levam em conta outros referenciais: o conhecimento adquirido na vida cotidiana, os

    filmes vistos, o territrio onde eles habitam, a escola que eles frequentaram, as redes

    sociais por onde circulam.

    Ao criar as condies para que esses mesmos espectadores passivos se

    coloquem na condio de produtores fica patente no resultado dos exerccios o quanto

    eles j conhecem essas tcnicas e sua capacidade de traduzi-las a seu modo. A

  • 37

    prtica tem uma importncia fundamental pois o momento em que eles colocam a

    tcnica servio de suas sensibilidades, de seus conhecimentos. Quando eles tem

    oportunidade de ver por si prprios os resultados do que fizeram se tornam mais

    conscientes do seu querer dizer. nesse gesto reflexivo que a metodologia da oficina

    se aproxima daquilo que Rancire afirma em o Mestre Ignorante:

    Todo saber fazer um querer dizer e que esse querer dizer se dirige a todo ser razovel (...) a pintura, como a escultura, a gravura e qualquer outra arte uma lngua que pode ser compreendida e falada por qualquer um que tenha inteligncia de sua lngua. (Rancire, 2011, p.98)

    Para Rancire todos os homens tem em comum essa capacidade de

    experimentar o prazer e a pena. A verificao dessa similitude s pode se dar atravs

    da alteridade mas no basta aventurar-se na floresta de signos que, por si s, no

    querem dizer nada, no mantm qualquer acordo. Para se conceber bem tem que se

    enunciar claramente. Bem conceber prprio do homem razovel. Bem enunciar uma

    obra do arteso. Com isso Rancire quer dizer que no basta conceber, preciso

    aprender a lngua prpria a cada uma das coisas a que se quer fazer: sapato,

    mquina, poema, filme. Ele defende que esse esforo seja aprendido com os homens

    que trabalharam o abismo entre o sentimento e a expresso, entre a linguagem muda

    da emoo e o arbitrrio da lngua. (Rancire, 2011, p.101). Mas o parmetro aqui

    a obra e as principais referncias so os artistas de grande expresso. no terreno

    da arte que Rancire vai expor sua reflexo sobre as distncias entre espectador e

    criador.

    O cruzamento entre audiovisual e educao provoca uma reflexo sobre o

    lugar do fazer esttico na atualidade, um fazer que cada vez mais reivindicado como

    um direito de existncia que escapa aos circuitos institucionalizados de sua fruio

    (museus, galerias, etc.) e parece se espalhar por toda parte. Rancire nos aponta

    para uma relao entre o espetculo e o espectador que, embora devolva a este

    ltimo a autonomia sobre a fruio da obra e o direito ao querer dizer, ainda submete

    essa relao a arte institucionalizada e as obras manifestadas no campo social.

  • 38

    Em uma poca em que se discute as fronteiras entre formas expressivas, os

    seus suportes e os limites das prprias prticas artsticas (GONALVES, 2009;

    RANCIRE, 2012) de se questionar em que sentido ainda pode-se defender uma

    ideia de produo esttica com base apenas no domnio de uma tcnica ou de uma

    linguagem. tambm preciso pensar o fazer esttico nessas oficinas fora de um

    regime que o enuncia apenas no campo social com base em suas evidncias

    materiais, no caso os filmes. Partindo-se da premissa que a sensibilidade esttica est

    ligado na atualidade a um regime mais difuso que o da arte e que tem a ver com a

    prpria vida, nos arriscamos a dizer que essas experincias de formao audiovisual

    se oferecem como lugar de novos regimes de enunciado para a produo esttica de

    seus participantes. Essa produo est em todos os lugares.

    As formas de fazer das duas oficinas, aquilo que poderia ser chamado de suas

    metodologias, so apenas dois exemplos de um leque amplo de caminhos que podem

    ser construdos na relao de aprendizado. O trajeto percorrido pelos facilitadores e

    participantes no unvoco, ele cheio de paradas, velocidades cruzamentos,

    bifurcaes, momentos onde eles se posicionam frente aos diversos actantes

    envolvidos na relao de aprendizagem: patrocnio; decupagem clssica; escola;

    mquinas; apostila; tempo de oficina, etc. oportuno trazer mais uma vez a reflexo

    que Crary faz sobre o observador. Pens-lo junto s mquinas de viso, ambos

    atravessados pelas mesmas linhas de fora que impe uma racionalizao da ateno

    visual, da sensao e da percepo. Uma vez que viso passou a se localizar no

    corpo emprico e imediato do observador, ela passou a pertencer ao tempo, ao fluxo,

    morte. (CRARY, 2012, p.32). Mesmo que se possa argumentar que a atual

    disseminao em grande escala das mquinas de viso seja uma exerccio mais

    sofisticado e complexo do mesmo controle e racionalizao do sujeito humano no sc.

    XIX inegvel que ela tambm adquire o carter ambguo e potencialmente anrquico

    que o fluxo das redes (MUSSO, 2004) ganham no sc XXI. Metodologias de

    formao audiovisual no devem ter como finalidade ltima a produo de filmes.

    Estes valem como rastros das articulaes e desarticulaes que os projetos operam

    nas linhas de fora que atravessam o contexto de sua aplicao, uma operao

    sempre no limite de sua inoperncia.

  • 39

    A distncia entre espectador e criador guarda relao direta com a questo da

    autoria. Foi atravs de um processo lento e gradual de controle dos discursos que

    circulam na sociedade que essa distncia instaurada e o autor surge como uma

    marca de identificao passvel de ser comercializada. Esse autor o mesmo do

    regime de propriedade privada que associa a obra a um sujeito e que se transformou

    em um modelo de produo artstica em todos os campos. As obras produzidas nas

    oficinas desta pesquisa se inserem nesse regime mas ao mesmo tempo o

    transformam na medida em que arriscam novos arranjos de produo. O prximo

    captulo ir discutir mais detidamente essa questo.

  • 40

    2 AUTORIA NOS FILMES DE OFICINA

    2.1 A autoria no cinema

    A relao quase automtica que hoje se estabelece entre autor e obra no

    natural. Historicamente, os textos passaram a ter autores na medida em que os

    discursos tornaram-se transgressores com origens passveis de punio, levando-se

    em conta fatores sociais, polticos e econmicos em cada poca. Se na antiguidade o

    anonimato no constitua um problema e os textos eram colocados em circulao e

    valorizados sem questionamento da autoria por sua vez na Idade Mdia o anonimato

    passa a ser uma questo. A Igreja Catlica neste perodo a maior responsvel pela

    preservao e produo de obras intelectuais e artsticas. Ela passa a exercer um

    controle sobre a circulao de discursos, inibindo a divulgao de livros que eram

    contra seus dogmas. Isso estimulou a identificao de responsveis pelos textos

    profanos, designados como autores. J a partir da Renascena a noo moderna de

    autor comea a ganhar forma, estimulada principalmente pela inveno da prensa

    tipogrfica que permitiu a reproduo de obras literrias em uma escala maior que no

    perodo anterior. A passagem do autor no final do sculo XVIII e incio do sculo XIX

    para o sistema de propriedade caracterstico de nossa sociedade estabelece regras

    sobre os direitos de autor, direitos intelectuais, de reproduo etc.

    Para Foucault a noo de autor constitui um momento forte da individualizao

    na histria das ideias, dos conhecimentos (FOUCAULT, 1998, p.38). Ele faz uma

    reflexo sobre as condies de funcionamento de prticas discursivas a partir de sua

    vinculao com a noo de autoria. Para Foucault o vnculo do nome do autor com o

    que nomeia no funciona da mesma forma que o vnculo entre nome prprio e

    indivduo nomeado. O autor teria a funo classificatria de fazer um discurso ser

    recebido de uma determinada forma. Ele garantiria uma unidade ao discurso, ao

    agrupar sob um mesmo nome um determinado nmero de textos, estabelecer entre

  • 41

    eles uma relao de afinidade, parentesco. Dessa forma pode-se tambm entender a

    funo autor como um modo de controle sobre a circulao dos discursos e a maneira

    como eles so recebidos no interior de uma sociedade.

    Embora o cinema tenha surgido quando o direito do autor j era uma fato na

    sociedade a autoria como atribuio de um conjunto de obras a uma individualidade

    no foi algo que nasceu com a produo e exibio das primeiras pelculas

    cinematogrficas. Franois Jost (2009) em seu artigo O autor nas suas obras vai at

    os primeiros anos de formao da linguagem cinematogrfica para escavar as

    condies materiais da poca que permitiram o nascimento do autor no cinema.

    Segundo ele, antes que um filme pudesse ganhar o status de artefato atribudo a um

    autor ele estava a servio de experimentos cientficos no campo da reproduo de

    imagens. Os primeiro filmes careciam de uma intencionalidade artstica, portanto, de

    um autor. O mito fundador do cinema, o de espectadores que fogem a medida que a

    locomotiva avana na tela sobre eles reforaria esse aspecto, a da ausncia do gesto

    humano, de uma intencionalidade ou ideia que caracterizaria a obra de arte. Jost

    define trs momentos que ao seu ver demarcam no incio do cinema o

    desenvolvimento que leva do autor-artfice ao o autor-artista. O polo do ofcio

    corresponde ao momento em que o executante pago por metro de pelcula

    impressionada. No polo profisso surge a reivindicao do talento, a remunerao

    feita com base na experincia. No polo da arte dado destaque a singularidade de

    um nome, atestado pela sua assinatura, pela sua biografia.

    Ele corresponde precisamente a esta funo-autor que, no cinema como na literatura, permite a um indivduo se apropriar de uma obra, perodo que coincide, em um caso como no outro, com o momento em que surge a questo dos direitos autorais. somente quando o artista comea a emergir como figura unificadora e identificada que a cpia se torna uma prtica condenvel (JOST, 2009, P.17).

    O polo da arte corresponde ao desenvolvimento de um modelo de produo

    de filmes tornado hegemnico pelos grandes estdios norte-americanos e adotado por

    praticamente todas as cinematografias mundiais. Um modelo que divide a equipe de

    produo por competncias e atribui cada uma delas a um nome, um autor. A relao

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    entre realizao cinematogrfica e discurso aqui penso nas funes chaves de uma

    equipe como figuras discursivas e nas suas diversas implicaes, econmicas,

    jurdicas, etc. passa necessariamente pela equao dos diversos componentes da

    cadeia cinematogrfica: esquema de produo e distribuio, crtica especializada,

    mdia, bilheteria de pblico, circulao e premiao em festiv