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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL PEDRO HENRIQUE RIBAS FORTES ENTRE A POLÍTICA INDÍGENA E A POLÍTICA INDIGENISTA: UM ESTUDO SOBRE AS RELAÇÕES POLÍTICAS ENTRE ÍNDIOS E NÃO ÍNDIOS EM CURITIBA NO SÉCULO XIX CURITIBA 2014

Dissertação Pedro Henrique Ribas Fortes

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Entre a política indígena e a política indigenista

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

    PEDRO HENRIQUE RIBAS FORTES

    ENTRE A POLTICA INDGENA E A POLTICA INDIGENISTA: UM ESTUDO SOBRE AS RELAES POLTICAS ENTRE NDIOS E NO NDIOS EM CURITIBA NO SCULO XIX

    CURITIBA 2014

  • PEDRO HENRIQUE RIBAS FORTES

    ENTRE A POLTICA INDGENA E A POLTICA INDIGENISTA: UM ESTUDO SOBRE AS RELAES POLTICAS ENTRE NDIOS E NO NDIOS EM CURITIBA NO SCULO XIX

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps- Graduao em Antropologia Social da Universidade Federal do Paran, como requisito parcial para obteno do grau de Mestre em Antropologia Social. Orientador: Prof. Dr. Ricardo Cid Fernandes. Banca examinadora: Prof Dr Edilene Coffaci de Lima (PPGAS/UFPR); Prof Dr Marta Rosa Amoroso (PPGAS/USP).

    CURITIBA

    2014

  • Catalogao na publicao Fernanda Emanola Nogueira CRB 9/1607

    Biblioteca de Cincias Humanas e Educao - UFPR

    Fortes, Pedro Henrique Ribas Entre a poltica indgena e a poltica indigenista : um estudo sobre as

    relaes politicas entre ndios e no ndios em Curitiba no sculo XIX / Pedro Henrique Ribas Fortes Curitiba, 2014.

    183 f. Orientador: Prof. Dr. Ricardo Cid Fernandes

    Dissertao (Mestrado em Antropologia) Setor de Cincias Humanas da Universidade Federal do Paran.

    1. ndios da Amrica do Sul Paran - Histria. 2. ndios Kaingang. 3. ndios na cidade. I.Ttulo. CDD 980.4

  • Aos meus pais, Ana e Andr, por me ensinarem a respeitar e amar a vida.

    A Luana, o grande amor da minha vida, por todo o carinho e pacincia dedicados;

    Ao meu filho Chico, que apesar de ainda no saber, a minha iluminao e inspirao para amar o que fao.

  • AGRADECIMENTOS

    Jamais existiro termos ou linhas o suficiente para agradecer a tudo e todos que

    possibilitaram a excecuo dessa dissertao. Foram tantas as mudanas de

    tragetrias ao longo da vida acadmica, tantos conselhos e orientaes, que para os

    fins desse trabalho, s poderia os qualificar como coautores do trabalho, mas

    tambm da minha vida.

    Ao me deparar com a necesidade de agradecer a todo essa gama de indivduos e

    sentimentos que me influenciaram e me transformaram ao lono do tempo,

    inicialmente penso em todos aqueles que se foram, mas que de alguma forma,

    estaro guardados no corao e por entre os fios da memria. Adoraria compartilhar

    desse momento to especial na minha vida profissional com meus avs, meu tronco

    velho Agenor, Edite, Srgio e Maria do Carmo que por muito tempo, cada um do

    seu jeito, serviram de inspirao e de reflexo para compreender quem eu sou.

    Tenho certeza que hoje estariam do meu lado me apoiando, orgulhosos desse

    pequeno passo que estou dando em busca do meu sonho, aconselhando as fases

    do meu crescimento como indivduo e instigando a minha busca pelo conhecimento,

    como tendem a fazer os ancies em grande parte das sociedades humanas.

    Agradeo aqueles amigos que apesar de no compartilharem da mesma vida

    acadmica, sempre estiveram ao meu lado nos momento de desabafos e dos

    necesrios aconselhamentos, como Edson Straub e Daniel Lacerda. As risadas que

    me proporcionaram, as discusses e as mgoas que me ajudaram a desafogar,

    esto presentes em muitas das reflexes que aqui exponho.

    Agradeo aos meus irmos, Guilherme e Juca, que, indenpendente dos caminhos

    diversos que tomamos na vida, so os representantes do melhor tempo da minha

    vida (e da vida de todos), a infncia. Foram meus primeiros amigos, e por eu ser o

    caula, os primeiros a cuidar e me proteger de muitos dos meus medos, reais e

    irreais. Da mesma maneira agradeo as suas famlias, Susan, Ketelen e Joca;

    Fernanda, Luza e Gustavo, que formam uma grande parentela que aprendi a amar

    to intensamente, que muito dificilmente saem do meu pensamento, mesmo com a

    distncia que muitas vezes o mundo contemporneo nos impe.

  • Agradeo aos colegas do PPGAS/UFPR 2012, que me ajudaram a conhecer e me

    apaixonar perdidamente pela antropologia junto aos mestres e professores, Edilene

    Coffaci de Lima, Maria Ins Smiljanic Borges, Laura Prez Gil, Liliana de Mendona

    Porto, Miguel Alfredo Carid Naveira, Lorenzo Gustavo Macagno, Marcos Silva da

    Silveira e Larcio Loiola Brochier, que so os grandes responsveis por formar e

    domar meu conhecimento selvagem. Agradeo por aceitarem to amavelmente esse

    estranho egresso da Histria, e por confiarem seus conselhos e amizades que

    jamais sero esquecidas.

    Agradeo tambm ao professor Ricardo Cid Fernandes, amigo e orientador, para a

    dissertao e para a vida. Obrigado por todas as reflexes, conselhos, debates e

    palavras de amizade. O respeito que aprendi a cultivar com sua pessoa vai muito

    alm dos muros da academia ou do seu conhecimento sobre os Kaingang e a vida

    profissional do Antroplogo. Para mim o trabalho que fizemos juntos nessa pequena

    contribuio a Histria do ndios no Brasil, revela-se em um exemplo de como se

    pode manter uma relao de instrutor/instrudo de uma forma no esttica, variando

    sempre as posies desses polos.

    Chega por fim, o momento de agradecer aqueles que possibilitaram tudo, pelo

    menos o meu tudo. Vocs, minha me e meu pai, so os verdadeiros responsveis

    pela minha conquista. No existe como medir a importncia de vocs em tudo que

    sou: seu amor, seu carinho, sua confiana e dedicao so a baliza que mantm

    minhas escolhas. So os narradores da minha vida e os autnticos artesos dos

    meus sonhos, mas que da maneira mais humana e menos egosta possvel, deram

    liberdade para que a narrativa se revelasse por si s. Estarei sempre ao lado de

    vocs.

    Agradeo a voc Luana, no s pela pacincia, respeito e carinho irretocveis que

    teve comigo nesses anos, mas por nunca ter deixado de me fazer sentir amado.

    Voc sempre acreditou em mim, mesmo quando eu comeava a descreditar. Voc

    sempre me chacoalhou para que eu no desmorecesse. Voc sempre foi o grande

    amor da minha vida.

  • Da mesma forma agradeo a voc Chiquinho, meu filho, que mesmo sem saber me

    inspira com tudo que faz e aprende: desde o seu sorriso com poucos dentes, aos

    puxes de barba e cabelo que eu tanto aprecio e sinto falta quando estou longe. Seu

    pai lhe ama muito e estaremos sempre juntos, aprendendo e unidos. Dedico a voc

    e sua me o esforo da minha vida.

  • RESUMO

    A rede de alianas entre indos e no ndios no Paran Provincial um tema

    recorrente na anlise dos sociedades indgenas que habitavam esse territrio no

    perodo em questo. A cidade de Curitiba foi palco de intenso contato entre

    lideranas polticas e indgenas desde a chegada dos primeiros contingentes

    colonizadores a este territrio, apesar das narrativas tradicionais minimizarem e at

    mesmo desconsiderarem esta situao histrica. Durante muito tempo, governos e

    assemblias reais, imperiais, provinciais e municipais estiveram empenhados em

    garantir a aproximao ou o afastamento de indgenas, segundo os interesses e

    especificidades do perodo e regio. Os registros dos perodos, especialmente no

    sculo XIX, demonstram que indgenas de diversas regies encontraram na atual

    capital do estado do Paran um espao prprio para suas negociaes. Para alm

    da poltica indigenista de amansamento, a presena de lideranas indgenas em

    Curitiba configurou um cenrio de atuao poltica frente s autoridades municipais.

    A anlise dessa convivncia revela uma relao profunda entre a poltica indigenista,

    vigente na sociedade curitibana e a poltica indgena, representada aqui pela poltica

    Kaingang, que desafiou em diversos momentos da histria os discursos unilaterais

    da poltica e administrao da provncial.

    Palavras-chave: Poltica indigenista; poltica indgena; ndios na cidade; kaingang.

  • ABSTRACT

    The network of alliances between Indians and non-Indians in Provincial Paran is a

    recurring theme in the analysis of indigenous societies that inhabited this territory

    during the nineteenth century. The city of Curitiba was the scene of intense contact

    between indigenous leaders and policy since the arrival of the first settlers in this

    territory, despite traditional narratives disregard of such a historical situation. For too

    long, governments and royal, imperial, provincial and municipal assemblies were

    committed to ensuring the approach or departure of indigenous, according to the

    interests and characteristics of the period and region. The records of the periods,

    especially in the nineteenth century, show that indigenous people from various

    regions found in the current capital of the state of Paran own space for their

    negotiations. In addition to the indigenous policy of taming the presence of

    indigenous leaders in Curitiba configured a scenario of political action in the face of

    municipal authorities. The analysis of this interaction reveals a deep relationship

    between the indigenous policy and indigenous politics, represented here by

    Kaingang policy, which challenged at various times in history unilateral discourse of

    politics and the provincial administration.

    Keywords: indigenous polity, indigenous politics, urban Indians, Kaingang

  • LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

    A.B Antes do Branco D.B. Depois do Branco ASE American Society of Ethnohistory DEAP-PR Departamento de Arquivo Pblico do Paran IHGB Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro SPLINT Servio de Proteo aos ndios e Localizao de Trabalhadores Nacionais

    SPI - Servio de Proteo ao ndio HSAI Ncleo de Historia Indgena e do Indigenismo USP Universidade de So Paulo HCBP Handbook of South American Indians PRONAPA Programa Nacional de Pesquisa arqueolgica HCBP Harvard-Central Brazil Project PR Paran SC Santa Catarina SP So Paulo

  • LISTA DE FIGURAS E FOTOGRAFIAS

    FIGURA 1. Jean Baptiste Debret, 1768-1848. Sauvages Civiliss. Soldats Indiens De La Province De La Coritiba, Ramenant Des Sauvages Prisionrs Adaptado de Voyage Pittoresque au Brsil. FIGURA 2 - Colar J Meridional/ Xokleng produzido com sementes, frutas, dentes e animais, brindes e objetos obtidos aps lutas com colonizadores. Acervo Museu Paranaense. FIGURA 3 - Colar J Meridional/Kaingang produzido com sementes e nstrumentos colonizadores (uma moeda e um sino pequeno). Acervo Museu Paranaense

  • SUMRIO

    INTRODUO...........................................................................................................13

    1. A HISTRIA E OS NDIOS NO BRASIL .............................................................20

    1.1 A GUERRA DE CONQUISTA E AS POLTICAS DE OMISSO....................24

    1.2 O PARAN E OS OSIS DE MARTINS.........................................................26

    1.3 A EMERGNCIA DA HISTRIA INDGENA...................................................29

    1.3.1 ETNOHISTORIAS E HISTORIAS INDGENAS......................................31

    1.3.2 ENTRE O TICO E O MICO..............................................................33

    2. CURITIBA: SEUS SILNCIOS E SEUS VAZIOS.................................................37

    2.1 OS VAZIOS DEMOGRFICOS E OS TERRITORIOS INDGENAS...............38

    2.1.1 REGISTROS ARQUEOLGICOS EM CURITIBA E REGIO.............43

    2.2. O CENRIO DO CONTATO E CONQUISTA NO PLANALTO

    CURITIBANO......................................................................................................46

    2.2.1 AS ALIANAS, A CATEQUESE, O OURO E A ESCRAVIDO.......49

    2.2.2 CARIJS, TAPUIAS E CONQUISTADORES...................................53

    2.2.3 AS ALIANAS, CATEQUESE, OURO E ESCRAVIDO..................56

    2.2.4 BURACOS DE BUGRE - GUAIAN KAINGANG: UM ELO.........60

    2.3. SOBRE O SILNCIO................................................................................65

    2.3.1 OS VAZIOS DEMOGRFICOS E A CONQUISTA...........................68

    3. OS KAINGANG NO SCULO XIX........................................................................72

    3.1 EXPEDIES VICENTINAS AOS CAMPOS DE GUARAPUAVA...........73

    3.2 LEGISLAES INDIGENISTAS NO SCULO XIX..................................77

    3.2.1 ORDEM RGIA E 1808: LEI DE EXTERMNIO................................77

    3.2.2 NOVA LEI DO EXTERMNIO.............................................................79

    3.3 A BRANDURA, A REVOGAO DA GUERRA E AS MISSES.............81

    3.3.1 JOS BONIFCIO: BRANDURA E CONSTNCIA...........................82

    3.3.2 REVOGAO DA GUERRA..............................................................87

    3.3.3. REGULAMENTOS DAS MISSES...................................................88

    3.4 REGISTROS DO INCIO DO SCULO A CONQUISTA DOS

    BUGRES..........................................................................................................91

  • 3.4.1 A ASCENO DA NAO DOS COROADOS................................95

    3.4.2 O ETNMIO KAINGANG.................................................................97

    4. O PARAN PROVINCIAL E OS NDIOS............................................................103

    4.1 CONTL-OS, AFUGENTAL-OS OU CHAMAL-OS A PAZ E

    CIVILIZAO...........................................................................................................108

    4.1.1 OS 30.000 RIS DE COND...........................................................111

    4.2 REGISTROS DE NDIOS NAS CIDADES PROVINCIAIS.............................117

    4.2.1 REGISTROS DE REINVINDICAES DE TERRAS.......................126

    4.3 PROTESTOS DOS FG COM A PRESENA INDGENA EM CURITIBA.128

    4.3.1 MEDIDAS PARA CONTER A PRENSEA INDGENA....................133

    4.3.2 O INTERESSE DOS NDIOS PELAS CIDADES..............................136

    4.3.3 ENTRE A SEDUO DOS BRINDES E A PACIFICAO DOS

    BRANCOS.....................................................................................................141

    4.3.4 A TRANSFORMO DOS BRINDES E FERRAMENTAS..............146

    5. CONSIDERAES FINAIS.................................................................................152

    5.1 A LONGA RELAO ENTRE CURITIBA E OS NDIOS.............................153

    5.2 AS POLTICAS INDIGENISTAS E A AO DOS INDIGENAS...................155

    REFERNCIAS........................................................................................................157

    ANEXOS..................................................................................................................179

  • 13

    INTRODUO

    Nesse dia, enquanto ali andavam, danaram e bailaram sempre com os

    nossos, ao som de um tamboril nosso, como se fossem mais amigos nossos do que

    ns seus.1 Ao proferir essa clebre sentena no ano de 1500, Pero Vaz de

    Caminha, recm-nomeado escrivo de um posto portugus a ser erguido na ndia,

    antecipara um princpio que se generalizou entre os colonos ao longo de todo

    perodo colonial: os indgenas necessitavam mais dos conquistadores, do que estes,

    daqueles, a prova disso seria a suposta ausncia de f, leis ou reis. Entretanto, no

    demoraram a perceber que somente com o estabelecimento de acordos com os

    nativos, garantiriam sua presena no territrio, invertendo o princpio esboado. Os

    conquistadores eram completamente dependentes da mo-de-obra e do

    conhecimento indgena, de acordo com os quais fundamentaram as primeiras

    cidades, vilas e feitorias. Por outro lado, para muitos grupos indgenas, tratavam-se

    de acordos pontuais e estratgicos, que no se submetiam generalizadamente

    vontade dos forasteiros. Os recm-chegados portugueses eram pensados como

    poderosos aliados em potencial contra seus inimigos. Alm do prprio fortalecimento

    blico e seus usos simblicos, muitos grupos indgenas ao se posicionarem frente a

    esse tipo de abordagem estratgica, buscavam preservar suas terras da conquista

    portuguesa e os seus aliados da escravido, desviando a ao dos colonos para os

    grupos inimigos 2.

    Entretanto, o estabelecimento de boas relaes, na perspectiva colonizadora,

    s se daria atravs da relao hierrquica instrutor/instrudo, oscilando entre o

    ensinamento e punio, no conforme com qualquer necessidade concreta de um

    aprendizado, mas sim, com os objetivos especficos do projeto colonizador. A

    instaurao e manuteno da f e ordem pblica, atravs da catequese e da

    espada, destacam-se nas fontes coloniais como referncias diretas a relao entre

    ndios e no ndios. Alm da idia cnica, como descreve Monteiro, de que os

    1 CAMINHA. Pero Vaz de. Carta a El Rei D. Manuel, Dominus: So Paulo, 1963. Digitalizado por

    NUPILL - Ncleo de Pesquisas em Informtica, Literatura e Lingstica UFSC. p. 9 Disponvel em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000292.pdf. Acesso em 17/01/2014, s 23:50. 2 PARASO, Maria Hilda Baqueiro. De como se obter mo-de-obra indgena na Bahia entre os sculo

    XVI e XVIII. In: Revista de Histria, So Paulo, n. 129-I31,p. 179-208, agosto-dezembro/93 a agosto-dezembro de 94. p. 183.

  • 14

    amigos de hoje podem tornar-se os escravos de amanh. 3, o pressuposto da

    superioridade orientou as reflexes e inquietaes de religiosos e administradores

    das polticas indigenistas, perpetuando-se no imprio e na repblica. A escola

    severa termo utilizado por D. Joo VI em uma carta rgia de 1808, sobre a

    pacificao e colonizao dos campos de Curitiba e Guarapuava , implantada

    sobre um regime de guerra de conquista dos territrios indgenas, era a ferramenta

    central na captura de cativos e de administrados no perodo colonial e imperial, alm

    de ser o fiel da balana conquistadora nas relaes polticas e comerciais, e at

    mesmo, um instrumento de converso e doutrinao religiosa.

    Grupos indgenas so frequentemente classificados nas fontes coloniais e

    imperiais segundo o estado das relaes polticas entre o grupo ou indivduo e o

    projeto conquistador: inocente e demonaco, aliado e inimigo, manso e escravo,

    gentio e cristo, pacficos e selvagens. Em contextos especficos, os aliados

    indgenas podem at ser explicitados, sendo os pensadores da prpria oposio,

    como no caso da adoo portuguesa generalizada do binmio Tupi e Tapuia,

    utilizada por muito tempo para descrever o carter amistoso ou belicoso de

    indgenas da costa e dos sertes, respectivamente. No Paran, os grandes

    contingentes e diversos grupos Kaingang so descritos como o extremo negativo de

    muitas dessas classificaes. Entre outras, so considerado ao longo do tempo:

    povo Tapuia, gentio da lngua travada, selvagem, coroado, bugre, arredio, enfim,

    inimigo. Paralelamente os territrios que ocupam so considerados, de maneira

    contraditria, vazios demogrficos e polticos, ausentes de ordem e de algum tipo de

    controle territorial, portanto, considerados ocupveis

    Os registros de tais acordos entre grupos e lideranas indgenas so to

    antigos quanto o projeto colonizador nas Amricas, que, como j dito, alterna as

    categorias gerais em consonncia com interesses especficos e regionais. Os

    mecanismos institucionais da guerra de conquista aos territrios indgenas no atual

    territrio do estado do Paran acionam, de maneira ambgua, ambos os extremos

    das classificaes. No caso dos Kaingang, ou coroados como eram descritos no

    sculo XIX, a imensa maioria dessas imagens centralizam-se na figura de inimigos

    arredios, selvagens e politicamente passivos, j que simplesmente teriam reagido ao

    avano conquistador sobre seus territrios. Contudo, essa imagem simplista no faz

    3 MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: ndios e bandeirantes nas origens de So Paulo. So

    Paulo: Companhia das Letras, 1994. p.63

  • 15

    jus aos complexos esquemas da poltica e chefia Kaingang verificados nas

    etnografias, muito menos aos regimes de relaes polticas instauradas entre estes

    e os conquistadores, que variavam de alianas, a conflitos e embates, visualizados

    em diversas fontes do perodo colonial e imperial.

    Ao longo do sculo XIX, chefias e caciques dirigiram-se para a cidade de

    Curitiba-PR para dialogar com as lideranas provinciais, apesar da proibio formal

    ao livre deslocamento segundo as leis e normas indigenistas que regiam a

    catequese e civilizao dos ndios. As visitas constantes a essa cidade por diversos

    grupos Kaingang, oriundos dos aldeamentos e de seus territrios imemoriais, se

    davam em meio a um esforo poltico, que, alm de se utilizar e manipular em seu

    favor alguns dos fundamentos da conquista dialogavam frontalmente com os seus

    representantes, estabelecendo limites e discordncias conforme os pressupostos da

    poltica indgena. Apesar dos dilogos e negociaes polticas se darem a portas

    fechadas, ou seja, muitos no foram transcritos, ou se foram, estiveram

    manipulados pela omisso, podemos visualizar diversos esforos dessas lideranas

    para, destarte as proibies da presena indgena em Curitiba, instaurar um canal

    de comunicaes e reivindicaes com o governo provincial. Se este ltimo lhes era

    impedido, voltavam-se aos mais altos patamares polticos do Imprio, chegando a

    levar suas reclamaes ao Ministrio da Agricultura no Rio de Janeiro, ou mesmo,

    tentando as fazer ouvir o prprio Imperador, o que parece ter causado, no mnimo,

    grande constrangimento entre as autoridades provinciais.

    Esses e outros ocorridos semelhantes foram narrados em uma srie de

    correspondncias e ofcios entre diversos setores do poder indigenista no Paran.

    Diretores de aldeamentos, missionrios responsveis pela catequese, policiais, os

    prprios presidentes da provncia e at mesmo a guarda nacional, so alguns dos

    agentes que se embrenham na tentativa de controlar o fluxo de indgenas para a

    cidade. Por outro lado, lideranas indgenas como Victorino Cond, Igncio Viri e

    muitos outros, tambm se utilizavam, de diferentes maneiras do prprio projeto

    colonizador. Por vezes isso significava simplesmente no cumprir um acordo

    diretamente, priorizando a perspectiva da poltica indgena em meio ao confronto

    com os inimigos e os seus aliados. A chefia Kaingang, se encontra no cerne de seus

    regimes de polticas, muitas vezes manipulando redes de trocas e favores com os

    colonizadores, em favor de suas prticas sociais e cosmologias .

  • 16

    A pesquisa

    Este trabalho se ocupa desse regime de relaes polticas indgenas com as

    polticas indigenistas oficiais. Inicialmente constatamos que a imagem da presena

    de indgenas na capital do Paran, principalmente a partir da instalao da provncia

    em 1853, foi ofuscada em grande parte das anlises histricas por aquelas que

    salientavam o crescimento da presena e influncia de imigrantes europeus no

    perodo, caracterizando-se como um discurso praticamente hegemnico. Os

    trabalhos historiogrficos que se voltaram ao perodo estiveram to preocupados em

    dar ao momento um aspecto de ruptura, um divisor de guas fundador das

    caractersticas e de uma identidade contempornea paranaense, que

    negligenciaram a amplitude dos confrontos que envolviam a ocupao dos territrios

    paranaenses, bem como as diversas formas de resistncia que demonstraram

    grupos indgenas a pilhagem sistemtica em seus territrios. O objetivo aqui

    demonstrar no somente como so pensadas e agrupadas tais lideranas em meio

    a esse plantel de classificaes, mas tambm, como tais contatos podem ser

    interpretados do ponto de vista da poltica Kaingang em operao no sculo XIX.

    No primeiro captulo intitulado A Histria e os ndios no Brasil,

    demonstramos de que maneira a historiografia e os incipientes esforos da etnologia

    do sculo XIX descreveram o indgena como uma caricatura degenerada ou

    primitiva, sempre o associando formao de um discurso nacional que se

    debruava sobre as origens do povo brasileiro, exemplificados nos escritos de Von

    Martius e Varnhagen, respectivamente. Os Tupi da costa, ndio morto e

    conquistado nos primrdios da colonizao, so alados a uma das pedras

    fundamentais da formao da sociedade nacional, enquanto os vivos e prximos,

    como os Kaingang e Xokleng nos estados do sulinos, um obstculo ao

    amadurecimento do projeto colonizador. Essa perspectiva trata de exclu-los da

    histria, reduzindo-os a meros objetos de especulaes positivistas, segundo

    Carneiro da Cunha, o que os Tupi-Guarani so para a nacionalidade, os Botocudos

    so para a cincia 4

    Paralelamente, a imagem dos vazios demogrficos e polticos so

    manipulados na historiografia, perpetuando dessa maneira, e por muito tempo,

    4 CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. (org). Histria dos ndios no Brasil, So Paulo, Companhia das

    Letras, 1992. p. 136.

  • 17

    velhas polticas de omisso. No caso da historiografia regional paranaense,

    demonstramos essa ferramenta discursiva em sua perfeio na obra de Wilson

    Martins, Um Brasil diferente: Ensaios sobre fenmenos de aculturao no Paran

    (1955). A imagem manufaturada de um intrigante fenmeno da presena do

    imigrante europeu o que qualifica nesses estudos um marco de busca por uma

    ruptura entre um Paran antigo e um Paran moderno. A superao desse

    quadro negligente com as fontes, e minimalista com a histria indgena, esta ltima,

    at ento, somente alada como captulo introdutrio das anlises historiogrficas

    sobre o sistema colonial, ou mesmo, de algumas etnografias clssicas, se d

    principalmente a partir da dcada de 1990, com a apropriao de historiadores,

    etnlogos, arquelogos, lingistas, demgrafos, entre outros, do uso interdisciplinar

    das observaes e conceituaes produzidas no interior de cada uma dessas

    disciplinas, compondo o arcabouo metodolgico da etnohistria ou histria

    indgena.

    No segundo captulo, Curitiba: seus silncios, seus vazios e sua guerra

    de conquista, procura-se inicialmente demonstrar que apesar desses silncios e

    dos hiatos de continuidade entre povos indgenas de diversos e perodos,

    institucionalizados na historia do Paran (em especial a de sua capital), a ocupao

    indgena no s muito antiga, como comumente se sabe para todo o territrio

    brasileiro, mas sua presena no se destitui com a suposta conquista desses

    territrios, muito menos a influncia de seus regimes polticos entre os meandros da

    poltica indigenista do sculo XIX.

    No que concerne a formao de tais relaes no planalto curitibano,

    observamos que as descries do processo da conquista no sculo XVII revelam,

    por um lado, a presena e participao de contingentes cativos indgenas na

    instaurao das primeiras vistorias das minas de ouro do planalto, ento Serto de

    Paranagu, e por outro, uma descrio obliqua e difusa dos indgenas que

    ocupavam a regio naquele momento. Sobre estes ltimos, existem ainda

    referncias tardias que os descrevem como um grupo Tingui, ou Tindiquera.

    Descritos como pacficos e acolhedores, teriam orientado a localidade ideal para a

    fixao dos colonizadores, e em seguida, teriam dirigido-se aos sertes,

    abandonando o planalto para os recm-chegados. preciso ressaltar que se soma a

    essa estria uma antiga querela etnogrfica, reavivada no final do sculo XIX,

    principalmente por Capistrano de Abreu e Von Ihering, que buscava identificar a

  • 18

    procedncia tnica dos Guaian descritos no sculo XVI como habitantes do

    planalto paulista. Telmaco Borba insere o Paran e Curitiba nessa discusso, ao

    questionar sobre a procedncia dos grupos indgenas no momento do contato,

    principalmente diante dos diversos buracos de bugre encontrados dentro e nos

    arredores da cidade. Como veremos, as discusses sobre a existncia ou no de

    indgenas, sua importncia ou no para a formao dessa cidade, so orientadas

    para a construo da imagem do indgena como elemento primitivo, sucedido pela

    espada e pela cruz portuguesa, que por sua vez, vieram a ser superados pelos

    imigrantes como elemento distintivo da cidade. No h nenhum espao para as

    narrativas e o discurso indgena em meio aos manuais de histria dessa cidade, e a

    discusso sobre os indgenas na regio de Curitiba, reflete apenas a polarizao

    Tupi/Tapuia, institucionalizada para todo territrio brasileiro.

    O terceiro captulo dessa dissertao, Os kaingang no sculo XIX busca

    identificar alguns elementos centrais na politica indigenista, principalmente aqueles

    que sustentavam as prerrogativas com que se davam o relacionamento com os

    indgenas no sculo XIX. A constante em meio aos muitos decretos , leis e ordens

    rgias , era a polarizao da guerra e da brandura no trato com os ndios

    (expresso frequentemente utilizada no perodo para descrever alguma forma de

    relacionamento com os indgenas. Alm disso, segundo a tradio indigenista a que

    o Brasil se manteve caudatrio por muito tempo, esse trato deveria ser pautado na

    transformao do indgena, quando possvel, em trabalhador nacional. Outro

    aspecto que se mantm constante a ausncia de uma poltica centralizadora e

    geral, restando as provncias a aplicao de regimentos e regulaes genricas, que

    na maior parte das vezes, disputavam diretamente a posse dos territrios com os

    ndios.

    No a toa que a grande maioria da documentao e registros da poltica

    indigenista do perodo no Paran trate dos Kaingang: eram deles os braos

    cobiados para o trabalho e suas terras eram a garantia primordial do sucesso da

    empresa colonizadora. Contudo, como se pode facilmente constatar no

    agrupamento de documentos pesquisados, os kaingang no s resistiam diante da

    agenda de ocupao sistemtica de suas terras, mas negociaram e impuseram de

    forma ativa suas condies para a formao de acordos com os no ndios que

    favorecessem suas perspectivas polticas e garantissem a estes o acesso a terra.

  • 19

    No ltimo captulo intitulado A poltica indgena e a poltica indigenista em

    Curitiba no Paran provincial, demonstramos uma rede de relaes polticas,

    indgenas e indigenistas, expressas nos contatos peridicos entre ndios e no

    ndios em Curitiba a partir de meados do sculo XIX, at o final do perodo imperial.

    Tais relaes foram pesquisadas na documentao disponvel no Departamento de

    Arquivo Pblico do Paran (DEAP-PR) sobre a presena indgena na cidade,

    dispostos em ampla maioria nas Correspondncias de Governo e em menor parte

    nos Cdices Avulsos disponveis para o perodo provincial no Paran. O trabalho

    consistiu na anlise de tais fontes, at ento insuficientemente exploradas seja

    individualmente ou como corpo documental. Mesmo assim, sero necessrias novas

    incurses na documentao, muitas vezes de difcil leitura e com lacunas entre os

    registros.

    Os documentos do conta de rotinas administrativas que envolviam da elite

    paranaense interessada na ocupao dos territrios, o poder provincial e o Imprio

    na aplicao da legislao indigenista da poca, e ainda, a presena de grandes

    chefias e lideranas indgenas na capital da provncia, em sua maioria Kaingang.

    Nessas situaes, eram recebidos (ou no) pelos administradores da provncia,

    marcando compromissos, que para bem da verdade, nem sempre eram cumpridos,

    de ambas as partes, como se pode visualizar na prria documentao.

    Independente de muitas das vontades dos presidentes da provncia e membros da

    assemblia legislativa, os indgenas tambm buscavam impor sua poltica, distinta

    em sua forma e nos seus objetivos. Buscavam tambm as cidades como centros de

    obteno de ferramentas, brindes e negociaes que dificilmente poderiam ser

    visualizadas nas cidades do interior. Veremos tambm alguns do esforos que os

    Kaingang objetivaram para amansar, pacificar e associar o fog ao seu mundo

    poltico.

  • 20

    CAPTULO 1 A HISTRIA E OS NDIOS NO BRASIL

    No sculo XIX foram elaborados os elementos de uma historiografia nacional

    que isolou o indgena em suas descries, silenciando narrativas e restringindo sua

    existncia a um passado trgico ou a distantes selvas inexploradas. A difuso

    progressiva do evolucionismo em certos ambientes intelectuais impregnou esses

    debates polticos e acadmicos com elementos primitivistas. As sociedades

    indgenas, consideradas desorganizadas e sem Estado pela tradio da poca, so

    condenadas a uma eterna infncia 5, portanto, incapazes de produzir ou mesmo

    refletir sobre sua histria de maneira coerente. As elites polticas, por sua vez,

    reclamavam ao governo imperial brasileiro a elaborao de polticas indigenistas

    amplas de sedentarizao e civilizao, principalmente, atravs da utilizao da mo

    de obra indgena em seus projetos. Paralelamente, companhias colonizadoras e

    grandes fazendeiros cobiavam imensos territrios ocupados por indgenas, que

    buscavam integrar aos seus regimes de explorao e produo. Entretanto,

    independente do potencial mo de obra/terras, a prpria presena indgena nos

    territrios era uma das queixas mais frequentes dessas elites, j que dificultava a

    expanso das grandes propriedades, uma vez que os indgenas ofereciam

    resistncia desocupao de seus territrios. 6

    No meio acadmico, institucionalizaram-se as opinies que tratavam as

    sociedades amerndias como estticas e imutveis, em oposio s europeias,

    aladas como o maior exemplo civilizatrio e motor das transformaes. Alm das

    redescobertas de crnicas e relatos de viajantes dos sculos anteriores, circularam

    pelos espaos intelectuais as imagens produzidas por expedies cientficas, que

    classificavam o espao e o meio ambiente, mas tambm, os prprios indgenas de

    acordo com estgios sociais, correspondentes s noes oriundas das ideias

    evolucionistas que comearam a impor-se na metade do sculo XIX 7.

    5 CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. ndios do Brasil: histria, direitos e cidadania. So Paulo: Claro

    Enigma, 2012. p. 11. 6 MOTA, Lucio Tadeu. A Revista do Instituto Histrico Geogrfico Brasileiro (IHGB) e as Populaes

    Indgenas no Brasil no II Reinado. (1839-1889). In: Dilogos, DHI/PPH/UEM, v. 10, n. 1, p. 117-142, 2006. p. 120. 7 OLIVEIRA, Joo Pacheco de; FREIRE, Carlos Augusto da Rocha. A presena indgena na

    formao do Brasil. Braslia: LACED/Museu Nacional, 2006. p 94.

  • 21

    Karl Friedrich Philipp Von Martius foi um autor tpico do perodo, naturalista,

    especialista em botnica, viajante e historiador, que e empolgou elites intelectuais

    brasileiras e europeias com a publicao de Viagem ao Brasil, ao lado de seu

    mestre Von Spix em 1828. Em janeiro de 1845 publicou no Jornal do Instituto

    Histrico e Geogrfico Brasileiro (IHGB) o texto (sob a alcunha de dissertao)

    Como se deve escrever a histria do Brasil: acompanhada de uma biblioteca

    brasileira, ou lista das obras pertencentes histria do Brasil. Sua hiptese central

    no questionamento da histria brasileira foi a miscigenao entre as trs raas que

    se entrelaaram na histria do Brasil, originando a populao brasileira do sculo

    XIX, a de cor cobre ou americana, a branca ou a caucasiana, e enfim a preta ou

    etipica. 8 As reflexes pautavam-se na construo de uma historiografia da

    unidade nacional, sobretudo no ambiente do IGHB, que em meio essa e outras

    tramas, informavam os intelectuais e polticos que, reunidos e legitimados pela

    tutela daquela instituio, pensavam o pas. 9

    Na viso de Martius, foi a populao portuguesa, desbravadora,

    conquistadora, e por que no nessa lgica, heroica, quem garantiu as condies de

    existncia para uma nao independente. Por outro lado, tanto os indgenas, como

    os negros, simplesmente, reagiram sobre a raa predominante, de forma passiva.

    A aceitao de um papel relevante para tais raas inferiores seria uma filantropia,

    levada a cabo por espritos esclarecidos e imparciais.10 Apesar da suposta

    curiosidade e das consideraes de Martius acerca de uma possvel documentao

    histrica, esta ltima, resumia-se ou ao estudo de etnografias cheias de hipteses

    duvidosas que salientavam a degenerao e o fim dos indgenas, ou o estudo de

    lnguas indgenas, quase exclusivamente da lngua geral tupi adotada ao longo dos

    sculos na colnia portuguesa. O indgena percebido como o residuun de uma

    muito antiga, posto que perdida histria. 11, a decadncia moral e intelectual de uma

    antiga civilizao, que, j no momento dos primeiros contatos no sculo XVI,

    encontrava-se reduzida.

    8MARTIUS, Karl Friedrich Philipp von. Como se deve escrever a Histria do Brasil. In: Revista

    Trimensal de Histria e Geografia ou Jornal do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro. 6 (24): 389 411. Rio de Janeiro: Janeiro de 1845. p. 382. 9 RODRIGUES, Neuma Brilhante. Como se deve escrever a histria do Brasil: uma leitura de von

    Martius. In: SIMPSIO NACIONAL DE HISTRIA, 24., 2007, So Leopoldo, RS. Anais do XXIV Simpsio Nacional de Histria So Leopoldo: Unisinos, 2007. CD-ROM. p. 1. 10

    Id. Ibid. p. 3. 11

    Id. ibid p. 385

  • 22

    Contudo, nem todos seguiram as orientaes de Martius com respeito aos

    estudos da miscigenao. Estes na verdade, denotaram-se extremamente liberais

    para o ambiente intelectual do perodo no IHGB. Na verdade, o espao era

    dominado pelo Visconde de Porto Seguro, Francisco Adolfo de Varnhagen, autor

    dos cinco volumes da Histria Geral do Brasil, publicada em meados de 1850. Trata-

    se, segundo Vainfas, de uma obra lusfila e brigantina, a louvar a Restaurao dos

    Braganas, a mesma dinastia do imperador brasileiro, seu mecenas, sem aspas [...]

    Com Varnhagen, a miscigenao permaneceu oculta, seja racial, tnica ou

    cultural.12

    Ao considerar uma reflexo sobre a histria dos indgenas no Brasil,

    Varnhagen proclama uma clebre sentena, extremamente citada desde ento, e

    atualmente criticada: de tais povos na infncia no h histria: h s etnografia". O

    autor s considera um ndio histrico se for o ndio morto, nesse caso, o Tupi-

    guarani do litoral, presente nas primeiras descries do sculo XVI, ento elevados

    a smbolo de nacionalidade. Paralelamente, o ndio vivo considerado primitivo e

    ameaador para uma imagem histrica nacional que se pretende construir,

    relegando suas peculiaridades e curiosidades primitivas para uma cincia

    incipiente, a antropologia. 13

    As narrativas mitolgicas e histricas, portanto, so desconhecidas e aquelas

    poucas registradas consideradas insuficientes ou inconsistentes, no merecendo

    ateno da historiografia, mais do que tratando-se da biographia de qualquer varo,

    ao depois afamados por seus feitos, os contos da meninice e primitiva ignorncia do

    ao depois heroe ou sbio. Do outro lado da histria, em posio oposta civilizao

    europeia, os indgenas sem f, lei, ou rei, para utilizar uma expresso comum a

    diversas narrativas coloniais, representavam um momento inicial mal acabado,

    fadado ao esquecimento. Os estudos dessas sociedades, no mximo, podiam

    lanar alguma luz sobre as origens da histria da humanidade, como fosseis vivos

    de uma poca muito remota 14. Na anlise de Varnhagen, tais testemunhas tardias

    12

    Id ibid. 2 -3. 13

    CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Introduo a uma histria indgena, in: CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. da (org.) Histria dos ndios no Brasil, So Paulo: Companhia das Letras; Secretaria Municipal de Cultura; FAPESP, 1998. p. 20. 14

    MONTEIRO, John M. Tupis, Tapuias e historiadores: Estudos de Histria Indgena e do

    Indigenismo. Departamento de Antropologia IFCH-Unicamp. Tese Apresentada para o Concurso de Livre Docncia. rea de Etnologia, Subrea Histria Indgena e do Indigenismo Campinas, agosto de 2001. p. 2 -3.

  • 23

    de um princpio comum s civilizaes, selvagem e bruto, expunham somente os

    resduos de sentidos que foram perdidos ao longo do tempo, de difcil trato, e que

    dessa forma, no mereciam ser avaliados e interpretados: a infncia da

    humanidade na ordem moral, como a do indivduo na ordem physica, sempre

    acompanhada de pequenhez e de misrias. 15 No a toa que foi justamente no

    sculo XIX que pela primeira vez se duvida da humanidade dos indgenas, em um

    debate cientificista, preocupado em demarcar claramente os antropides humanos

    16, diversos autores gastaram tinta nesse af classificatrio. Martius, entretanto, ao

    contrario de Varnhagen, opunha-se a ideia de uma natureza primitiva universal que

    envolvesse os indgenas, j que pregava a degenerao:

    Enfeitado com as cores de uma filantropia e filosofia enganadora, consideravam este estado como primitivo do homem; procuravam explic-lo, e dele derivavam os mais singulares princpios para o Direito Pblico, a Religio e a Histria. Investigaes mais aprofundadas porm provaram ao

    homem desprevenido que aqui no se trata do estado primitivo do homem.17

    Apesar das diferenas entre os dois autores, concordavam que s etnografia

    e o estudo da lngua indgena podem lanar luz a tal obscuridade. De qualquer

    maneira, em todo continente americano os poucos pesquisadores que discutiram

    minimamente a possibilidade de uma histria indgena terminaram por alegar que a

    ausncia de arquivos e registros apurados nessas sociedades impossibilitava a

    continuidade e aprofundamento da pesquisa. Frequentemente alegava-se que os

    indgenas haviam mudado muito pouco, previamente ao contato com os europeus, e

    o que desde ento se podia perceber era, no mximo, um processo lento de

    assimilao, aculturao ou integrao, que de qualquer forma seria de pouco valor

    histrico.18 Tais argumentos, associados a descries de vazios geogrficos,

    perfilam uma autntica poltica de omisso da presena indgena, ferramenta

    indissocivel durante toda a toda conquista dos territrios indgenas, perpetuando

    em alguns elementos ainda no dia de hoje. As evidncias da presena indgena nos

    15

    VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Histria Geral do Brasil. Tomo I. Madrid: Imprensa de V. de

    Dominguez, 1854. p. 118. Disponvel em: http://www.brasiliana.usp.br /bbd/handle/1918/01818710 #page/124/mode/1up Acesso em: 26/07/2013, s 12:20. 16

    CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. (org.). Legislao Indigenista do sculo XIX: Uma compilao:

    1808-1889. So Paulo: EDUSP: Comisso Pr-ndio de So Paulo, 1992. p. 5. 17

    VON MARTIUS, Karl Friedrich Philipp. Op. cit. 385. 18

    TRIGGER, Bruce G. Ethnohistory and Archaeology. pp. 17 24. In: Ontario Archaeology. N 30, 1978. p. 18. Disponvel em: http://www.ontarioarchaeology.on.ca/publications/pdf/oa30-2-trigger.pdf Acesso em 27/07/2013 s 15:56.

  • 24

    espaos que se pretende dominar so redigidas, e paralelamente, destrudas ou

    destitudas de valor.

    Em um duplo movimento, os indgenas so diludos inicialmente entre

    rvores (a natureza, os animais) e, posteriormente, entre esquecimentos (os pobres,

    os despossudos). 19. Carneiro da Cunha, em uma discusso sobre as alforrias de

    escravos no sculo XIX, demonstra como a sociedade brasileira do perodo,

    escravista e conquistadora, instrumentava o direito positivo, escrito, para os homens

    livres e ricos, e o direito costumeiro, caracterizado pela ausncia de instituies

    formais que o sustentem, para a maioria desprivilegiada da populao,

    principalmente escravos, negros livres e libertos.20 Como salienta a autora, a

    sociedade brasileira oitocentista esse conjunto do escrito e do no escrito, que no

    se cruzam, um afirmando relaes sem privilgios entre cidados equivalentes,

    outro lidando com relaes particulares de dependncia e de poder. 21

    1.1 A GUERRA DE CONQUISTA E AS POLTICAS DE OMISSO

    Diversos silncios pautam a excludente sociedade brasileira do perodo, que,

    no caso das narrativas que envolvem os indgenas, so manipulados no

    estabelecimento de disputas pelos territrios. Antnio Carlos Souza Lima, em sua

    obra Um grande cerco de paz: poder tutelar, indianidade e formao do Estado do

    Brasil22, aborda um estudo sobre as relaes entre sociedades indgenas e

    administraes brasileiras, bem como, de que forma a guerra de conquista se

    desvela no sculo XX, em poder tutelar, e sobre essa bandeira, como o governo

    brasileiro e seus rgos indigenistas ao se fazer a paz, reatualiza a guerra de

    diferentes modos. 23

    O conceito de guerra de conquista descrito como os progressivos esforos

    destacados por organizaes conquistadoras, onde, atravs de diferentes frentes de

    atuao militar, econmica poltica, religiosa e ideolgica, pretende-se submeter o

    19 PORTELA, Cristiane de Assis. Por uma histria mais antropolgica: indgenas na contemporaneidade. In: Sociedade e Cultura, Goinia, v. 12, n. 1, p. 151-160, jan./jun. 2009. p. 152. 20

    CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Sobre os silncios da Lei: lei costumeira e positiva nas alforrias

    de escravos no Brasil do sculo XIX. In: Antropologia do Brasil: mito, histria, etnicidade. So Paulo: Brasiliense, 1987. p. 140. 21

    id. ibid.. 141 22

    LIMA, Antnio Carlos de Souza. Um grande cerco de paz: poder tutelar, indianidade e formao do

    Estado do Brasil. Petrpolis: Vozes, 1995. 23

    Id. ibid. p. 44

  • 25

    outro, via de regra desconhecido, associado a um espao geogrfico intocado pelo

    conquistador, sobre o qual pretende atuar. 24 Segundo o autor, esta guerra

    composta por trs eixos: primeiramente, a prpria organizao militar, encimada

    imaginariamente por uma realeza, um imprio ou constructos como Deus, a nao;

    em seguida, a origem dos conquistadores que lhe do direo comum e

    reconhecendo uma identidade social comum, ainda que esta se superponha a outras

    mltiplas; e por ltimo, o butim, composto pelo conquistado, no caso brasileiro o

    indgena, transformado em cativo, junto com seus bens terras e recursos naturais

    [...] transformados em mercadorias. 25

    Com a conquista, parte do povo conquistador fixa nos territrios

    conquistados; faz uma explorao sistematizada do butim e passa a veicular os

    elementos bsicos da cultura invasora atravs de instituies concebidas para

    tanto. 26 O uso dessa referncia pretende refutar abordagens tradicionais sobre o

    relacionamento entre os indgenas e as polticas dirigidas a eles pelos centros

    populacionais: de um lado, os estudos histricos que abordam a integrao dos

    indgenas a sociedade nacional, a cordialidade do portugus e a fbula das trs

    raas, de outro, a lgica interpretativa e a retrica pautadas sobre certas noes de

    colonizao e fronteira, das quais as ideias de conflito e guerra podem ser sempre

    afastadas. 27.

    No caso da regio que atualmente compreende o estado do Paran, assim

    como por todo Brasil, a guerra de conquista dos territrios indgenas empreendeu

    largamente a lgica dos espaos desocupados, vazios demogrficos ausentes de

    civilizao e carentes de progresso. Ao longo dos sculos, descreveu-se a ocupao

    de um territrio inspito, sobre os quais, foram semeados os atuais frutos do

    progresso ou desenvolvimento, ao passo que as narrativas e discursos nativos

    foram classificados como insuficientes e incompreensveis. Trata-se evidentemente

    de um discurso extremamente controverso, por que ao mesmo que revela a inteno

    de posse de supostos territrios vazios, acompanhado de intensos relatos de

    presena e da resistncia indgena sua ocupao. Uma das ferramentas para

    24

    Id. ibid. p. 48. 25

    Id. ibid. p. 49.

    26 MOTA, Lucio Tadeu. A Guerra de Conquista nos Territrios dos ndios Kaingang do Tibagi. In: Texto apresentado na V Encontro Regional de Histria - ANPUH-PR, de 10 a 13 de julho de 1996, em Ponta Grossa-PR, com o apoio da FAPESP. p. 188. 27

    LIMA, Antnio Carlos de Souza. op. cit. p. 45

  • 26

    refletir sobre a usurpao desses territrios uma anlise pautada em uma longa

    durao, que demonstre o carter intertnicos os conflitos e a sua reflexo na

    atualidade, principalmente nas diversas reivindicaes indgenas j que, como

    salienta Mota, no sculo XX a guerra de conquista continuou com o saque e

    invaso sistemtica - com apoio institucional ou por aes isoladas de fazendeiros e

    agricultores da regio [...] 28

    Entretanto, como veremos, deve-se computar que os interesses dos diversos

    grupos indgenas, independente das ambies conquistadoras, podem ser

    percebidos na prpria documentao da conquista, ainda que camuflados pela

    omisso, pelo desprezo ou generalizao aos termos e costumes desses grupos. Ao

    contrario, podemos no s supor e argumentar como os indgenas refletiram o

    processo partindo de seus conceitos, mas tambm, refletir como as novas situaes

    que se apresentavam, constituram um espao para a reproduo de prticas

    tradicionais, que se transformam nesse processo. Trata-se de um exemplo manifesto

    do que demonstrou Sahlins, o que comeou como reproduo termina como

    transformao. 29

    1.2 O PARAN E OS OSIS DE MARTINS

    Apesar desse longo e intenso conflito blico e de conceitos, surgiram casos

    extremos na historiografia regional paranaense, at mesmo de negao da presena

    e relevncia dos indgenas para compreenso de processos histricos no estado.

    Wilson Martins e sua obra Um Brasil diferente: Ensaios sobre fenmenos de

    aculturao no Paran (1955), ilustra perfeio este tipo de poltica de omisso. O

    autor descreve a matriz populacional regional relacionada ao imigrante europeu,

    relegando ao elemento indgena os parcos resultados de uma antiga miscigenao

    junto aos portugueses. Para ele, o territrio paranaense, previamente a chegada

    macia de imigrantes, era um ilimitado deserto, interrompidos irregularmente por

    dezenove pequenos osis, situados a distncias imensas uns dos outros. [...] 30

    28

    MOTA, Lucio Tadeu. 1996, op. cit. p. 188. 29

    SAHLINS, Marshall David. Metforas histricas e realidades mticas: estrutura nos primrdios da

    histria do reino Sandwich. Traduo e apresentao: Fraya Frehse. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. p. 125. 30

    Id. Ibid. p.64

  • 27

    As cidades, so os osis de Martins, e portanto, referncias civilizatrias que

    retratam a luta do conquistador contra tais territrios inspitos. Esse tipo de

    historiografia, segundo Mota, aceita a interpretao de que tais territrios eram

    espaos vazios, prontos para serem ocupados, porque essa interpretao lhe

    satisfaz est de acordo com o seu olhar presente sobre novas reas que esto

    sendo ocupadas, e as interpretaes posteriores repetem essas construes. 31

    Seus argumentos direcionam crticas manifestas Gilberto Freyre, elegendo o

    imigrante europeu no Paran como um elemento perturbador da anlise da

    democracia racial, j que o estado seria uma exceo regional regra brasileira de

    miscigenao. 32 Lanando mo de uma perspectiva limitada, o territrio paranaense

    descrito de forma irreal, e sua interpretao da histria da capital e generalizada

    para todo o estado do Paran. Quando esse autor discorre sobre o esquema geral

    da populao brasileira, pensada segundo ele a partir de Freyre como um tringulo

    retngulo tendo por hipotenusa o elemento portugus, o ndio como lado mais

    curto e como lado mais longo o africano , afirma que o mesmo no pode ser

    constatado no Paran. Para Martins, nesse estado tais elementos apresentar-se-iam

    de forma mais equilibrada, caracterizando-se como um polgono irregular de sete

    lados, cujas faces, em extenso decrescente e de tamanho varivel, representariam

    os elementos polons, ucraniano, alemo, italiano, os pequenos grupos, o ndio e o

    negro, estes ltimos em proporo praticamente insignificante.33

    Martins institui uma perspectiva hierarquizada, onde a figura do indgena

    dissolvida no passado, nos vazios dos sertes ou no processo de branqueamento da

    sociedade. Mesmo como elemento prejudicial, a exemplo de outras narrativas, a

    presena do indgena negada nessa anlise. Nas poucas linhas que reserva a

    estes, determina sua aculturao frente a sociedades regionais, e o irremedivel

    branqueamento destes grupos frente crescente imposio dos colonos. Nessas

    abordagens so excludas as reflexes sobre o profundo relacionamento entre

    indgenas e conquistadores, sendo tanto a anlise do tema como a documentao

    existente, negligenciados. Se o imigrante europeu do Paran, na anlise de Martins,

    apresenta uma perturbao em relao democracia racial de Freyre, da mesma

    31

    MOTA, Lcio Tadeu (org.). As Cidades e os Povos Indgenas: Mitologias e Vises. Maring,

    Eduem, 2000. p. 9. 32

    MARTINS, Wilson. Um Brasil diferente: Ensaios sobre fenmenos de aculturao no Paran. So

    Paulo: T.A. Queiroz, 1989. p.5. 33

    Id. ibid. p. 108.

  • 28

    forma, o negro e o ndio so os elementos perturbadores da sua como se diz em

    astronomia, de um planeta ainda desconhecido que perturba o comportamento dos

    demais.34 O apagamento dos sinais um dos instrumentos dessa poltica de

    omisso. A conquista no se faz somente a custo da colonizao violenta do

    territrio, imposio da religio, ou mesmo, como resultado do enfraquecimento das

    sociedades indgenas frente a barreiras epidemiolgicas.

    A ideia de que os acanhadas contingentes portuguesas litorneos

    simplesmente se expandiram para alm de suas fronteiras coloniais, desbravando

    territrios, impondo regras incondicionalmente e amansando ndios, carece de

    sentido devido unilateralidade interpretativa que aplica a tais situaes histricas.

    Como salienta Souza Lima, ao lembrar a obra A Conquista da Amrica: a questo

    do outro, de Tzevetan Todorov, a guerra de conquista possui caractersticas

    semiticas. Nessa situao se disputa os territrios com um outro radicalmente

    distinto, ao ponto de duvidar de sua humanidade, oscilando das relaes de

    violncia [...] s relaes de poder, e implica numa certa forma a busca de sentidos

    alheios nos atos alheios, tarefa essencialmente semitica 35

    Para contornar pelo menos alguns desses silncios necessrio

    compreender, primeiramente, que tanto a presena e posse dos territrios

    indgenas, como as relaes que estes estabeleceram com os exploradores e

    administradores coloniais, estavam imersas por diversos nveis de uma poltica de

    omisso, ferramenta indissocivel da conquista, e que, dessa maneira, por via

    simultnea das linguagens imagtica, gestual, histrico-narrativa, musical e

    arquitetnica, entre outras 36, exclui o indgena deliberadamente das narrativas. Da

    mesma maneira, deve-se ter como premissa bsica que tais silncios so polticos,

    pois no so desprovidos de sentidos, originando-se de linguagens polticas, todo

    poder que se percebe na escrita acompanhado de um silncio em uma trama

    simblica que permeiam os discursos. 37

    34

    id. p. 5. 35

    LIMA, Antnio Carlos de Souza.. op. cit. p. 47 36

    HARDMAN, Francisco Foot. A viso da Hilia: Euclides da Cunha, a Amaznia e a literatura

    moderna. So Paulo: UNESP, 2009. p. 307. 37

    APOLINRIO, Juciene Ricarte. Documentos e Instrumentos de pesquisa de Histria Indgena e do

    Indigenismo d'Aqum e d'Alm-Mar Atlntico: uma discusso necessria, urgente e inadivel in:, XXVI.Simpsio Nacional de Histria da ANPUH, So Paulo, 17 a 22 de julho de 2011. p. 1. Disponvel em: http://www.ifch.unicamp.br/ihb/SNH2011 /TextoJucieneRA.pdf. Acesso em 08/08/2013, s 08:00.

  • 29

    1.3 AS MOBILIZAES E A ASCENO DA HISTRIA

    Se h um trao comum entre cronistas coloniais, membros de expedies

    cientficas e acadmicos do sculo XIX (como Saint-Hilaire, Von Martius e

    Varnhagen e muitos outros), assim como historiadores e cientistas sociais do sculo

    XX como Florestan Fernandes e Darcy Ribeiro, e demais observadores e intrpretes

    dessas conjunturas histricas, o pessimismo com que encaravam o futuro dos

    povos nativos. 38 Uma viso otimista, sugere o aprofundamento da histria indgena

    e de suas relaes com a sociedade nacional, diacronicamente e sincronicamente

    falando, superando dessa maneira os limites impostos por abordagens histricas

    tradicionais. Os debates sobre a questo ou problema indgena no Brasil ganharam

    flego a partir do final da dcada de 1970, com a introduo de outras vertentes

    prticas e tericas, que inauguraram, segundo Monteiro, uma nova frente de

    estudos que buscava unir as preocupaes tericas referentes relao

    histria/antropologia com as demandas cada vez mais militantes de um emergente

    movimento indgena 39. Como salienta Seeger e Viveiros de Castro, a expresso

    capciosa, j que interpretaes mal embasadas podem sugerir que os indgenas

    criam um problema para a sociedade nacional, por exemplo como obstculos para

    ao desenvolvimento a qualquer custo, quando justamente o oposto. O problema,

    na verdade, nacional. 40

    A ascenso das mobilizaes e da participao poltica dos indgenas

    associada justamente as suas reivindicaes histricas, historicamente embasadas,

    at ento, negligenciadas pelos diversos governos atravs de seus rgos

    indigenistas. Os debates entre as diversas organizaes do movimento indgena e

    os setores desenvolvimentistas da sociedade nacional passaram, cada vez mais, a

    acionar a polarizao em torno das diferentes interpretaes do problema

    indgena. Nesse perodo de incremento tanto das demandas indgenas como das

    desenvolvimentistas, estimulou-se a produo de laudos e levantamentos

    38

    MONTEIRO, John Manuel. O Desafio da histria indgena no Brasil In: SILVA, A. L. & GRUPIONI,

    L. D. B. (Org.). A temtica indgena na escola. Braslia, MEC/MARI/UNESCO, 1995a, p. 222. 39

    MONTEIRO, John M. 2001 op. cit. p. 5. 40

    SEEGER, Anthony e VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo Pontos de vista sobre os ndios brasileiros: um ensaio bibliogrfico. In: BIB, Rio de Janeiro, (2): 11-35,1977. p. 22.

  • 30

    detalhados da legislao colonial e imperial, compondo estudos que foram utilizados

    no resgate dos direitos territoriais. a que se encontram, os fundamentos

    histricos e jurdicos das demandas atuais dos ndios ou, pelo menos, dos seus

    defensores. 41 Em partes, esse processo muito semelhante ao que ocorreu nos

    Estados Unidos, sobretudo a partir da promulgao do Indian Claims Act em 1946,

    quando muitos antroplogos comearam a subsidiar reivindicaes territoriais de

    grupos indgenas atravs de minuciosos levantamentos documentais. 42

    Na dcada de 1980, com o processo de redemocratizao do Brasil e o

    fortalecimento das organizaes indgenas, as narrativas sobre o derradeiro fim dos

    indgenas ou sua assimilao forada sociedade nacional passam ser substitudas

    por compreenses mais otimistas, principalmente frente os dados do incremento

    demogrfico dessas populaes e a j comentada ascenso das mobilizaes

    polticas indgenas no cenrio nacional. Nesse contexto a histria indgena surge

    como um elemento de anlise tica e mica, que, por um lado, busca desconstruir

    as narrativas tradicionais, revelando princpios ideolgicos nas assertivas dos

    autores sobre os indgenas, e por outro, busca compreender como os eventos se

    desenrolam e so pensados por essas sociedades, ou seja, como a historia

    produzida dentro das diferentes sociedades indgenas conforme com suas

    predisposies poltico-cosmolgicas.

    Segundo Oscar Calvia Saez, o tema em si no era novo, mas costumava

    aparecer nas monografias na forma de um captulo especfico, a saber, o contato

    com a sociedade dos brancos que a rigor teria trazido a histria para um lugar onde

    ela no se encontrava previamente. 43 Apesar da grande profuso de trabalhos e o

    momento poltico propcio para sua disseminao, as referncias as propostas no

    soam como unssonos, tornando-se necessrio um esclarecimento quanto a

    algumas das correntes terico-metodolgicas presentes nesses trabalhos. Nesse

    sentido, cabe um questionamento proposto por Jorge Eremites de Oliveira, que

    reflete sobre as particularidades dos conceitos histria indgena e etnohistria (ou

    41

    MONTEIRO, John M. 2001 op. cit. p. 5. 42

    Id. ibid. 6. 43

    CALVIA SAEZ, Oscar. A terceira margem da histria: estrutura e relato das sociedades

    indgenas. p. 39 In: Revista brasileira de cincias sociais - pp. 39 51, vol. 20. n. 57, 2004.

  • 31

    etnoistoria): quais so suas principais diferenas epistemolgicas, se que elas de

    fato existem? 44

    1.3.1 ETNOHISTRIAS E HISTRIAS INDGENAS

    Com relao etnohistria, a expresso foi empregada pela primeira vez em

    meio ao empenho de Franz Boas em demarcar a antropologia como uma cincia

    histrica, quando Clarck Wissler, em 1909, cunhou o termo como duas palavras,

    etno historical, para se referir documentao e dados arqueolgicos, buscando a

    reconstruo da histria e cultura indgena, produzindo registros de histria oral

    indgena. Tais esforos empregavam parte das propostas boazianas dos four fields,

    em crescimento na academia nos EUA no inicio do sculo XX, integrando um rol de

    pesquisas que abordavam o ser humano de uma perspectiva integrada, do ponto

    de vista biolgico, comportamental, temporal e espacial.45

    Nas trs dcadas seguintes, as aparies espordicas do termo se referem a

    evidncia etnohistrica, no como um campo especializado nas anlises dessas

    evidncias. Na tradio antropolgica americana, somente por volta da dcada de

    40, a etno-histria passou a ser descrita como a interpretao de registros histricos

    e dados coletados em trabalho de campo46, diante da mobilizao de estudiosos e

    indgenas.47 Nos EUA, no ano de 1946, demandas polticas de organizaes

    indgenas foram reunidas no Indian Claims Act. Pesquisadores de diversas reas e

    representantes de organizaes governamentais apresentaram laudos

    antropolgicos e histricos como prova das acusaes dirigidas ao governo pelos

    nativos americanos, reunidas pela primeira vez na Ohio Valley Historic Indian

    Conference, conhecida futuramente como a American Society of Ethnohistory (ASE).

    48 No ano de 1954 foi fundada a ASE, com o compromisso de investigar atravs de

    ferramentas interdisciplinares como etnografia, lingustica, arqueologia e ecologia, a

    44

    OLIVEIRA, J. E. Sobre os conceitos de etnoistria e histria indgena: uma discusso ainda

    necessria. ANPUH XXII Simpsio Nacional de Histria Joo Pessoa, 2003. p. 1. 45

    OLIVEIRA, J. E A Histria indgena no Brasil e em Mato Grosso do Sul. in: Espao Amerndio,

    Porto Alegre, vol. 6, n 2, p. 178-218, julho./dezembro. 2012. p. 192. 46

    BARBER, Russel J.; BERDAN, Frances F. The Emperors Mirror. Understanding Culture through Primary Sources. Tucson: University of Arizona Press, 1998. p. 24 47

    preciso destacar que na dcada de 1930, Fritz Rck e o Viennese Study Group for African Culture History desenvolveram modelos etnohistricos de estudo de diversas sociedades do continente africano, com base nos dados etnolgicos recm-coletados em trabalho de campo. 48

    Mais informaes sobre a ASE em http://www.ethnohistory.org/, acesso em 27/07/2013 s 23:00.

  • 32

    histria dos povos nativos das Amricas. Desde ento, a etnohistria passou a ser

    descrita como uma tcnica interdisciplinar, mas tambm como disciplina, centrada

    nos usos das metodologias e das fontes histricas, etnolgicas, entre outras.

    J em 1972, a historiadora Karen Spaldin salientava a necessidade de se

    aprofundar e dar continuidade aos estudos que focavam o ndio colonial na Amrica

    espanhola, a exemplo de Visin de ls Vencidos, de Miguel Len-Portilla e Aztecs

    under Spanish Rule, de Charles Gibson.49 Essas anlises pautaram diversos

    debates sobre a legislao indigenista, principalmente, em torno dos direitos

    espanhis sobre terras, trabalhadores e almas indgenas, as formas especficas de

    explorao da mo-de-obra-nativa 50. Alm dos registros institucionais como

    relatrios administrativos, registros territoriais, processos da Inquisio e

    investigaes policiais, essa tradio historiogrfica explorou testemunhos, registros,

    crnicas e genealogias nativas, escritas em comunidades indgenas da Amrica

    espanhola durante o regime colonial. Porm, como salienta Monteiro, existe a um

    contraste radical entre o mundo colonial espanhol e portugus, j que no segundo

    quadro existe uma ausncia de fontes tradicionalmente exploradas pelas

    metodologias historiogrficas, produzidas por escritores e artistas ndios [...] 51

    O que se popularizou no Brasil como etnohistria dos povos indgenas, ou

    mais comumente, Histria indgena, refere-se inicialmente as contribuies do

    Ncleo de Historia Indgena e do Indigenismo (NHII) na Universidade de So Paulo

    (USP), fundado em 1990 por Manuela Carneiro da Cunha junto a outros docentes da

    USP, com a proposta de favorecer a discusso e a produo de pesquisas

    interdisciplinares referentes Histria Indgena e Indigenismo.52 Apesar das

    diferentes perspectivas adotadas por diversos autores, existe um grande consenso

    em torno da vocao interdisciplinar da etnohistria como metodologia de estudo da

    histria indgena, segundo Eremites, um mtodo em construo e de carter

    interdisciplinar, cada vez mais slido frente s interfaces entre a antropologia, a

    49

    LEN-PORTILLA, Miguel. Visin de los Vencidos, Mxico, UNAM, 1961. ; Gibson, Charles. The

    Aztecs under Spanish Rule, Stanford, Stanford University Press. 1964. 50

    MONTEIRO, John M. 2001 op. cit. p. 1. 51

    Id. ibid. p. 2. 52

    Como exemplos destacam-se: As muralhas dos sertes: os povos indgenas no Rio Branco e a colonizao (1991) de Ndia Farage; Histria dos ndios no Brasil (1992), sob a coordenao de Manuela Carneiro da Cunha, (que parece ter se transformado, segundo Jorge Eremites Oliveira, um marco historiogrfico mais para os historiadores e talvez menos para os antroplogos no que se refere aos estudos sobre a histria dos povos indgenas no pas

    )Guia de Fontes para a Histria

    Indgena e do Indigenismo em arquivos brasileiros (1994), sob a coordenao de John Manuel Monteiro.

    52

  • 33

    arqueologia e a histria, dentre outros campos do conhecimento. 53. O mesmo

    autor, em um texto mais recente ,argumenta que "a histria indgena tem tido quase

    que o mesmo sentido lato sensu que o termo etno-histria [...] muito popular em

    outros pases latino-americanos, como Mxico, Guatemala e Argentina, e tambm

    nos Estados Unidos e Canad.54

    1.3.2 O MICO E O TICO

    No Brasil parte da discusso que envolve os estudos de histria indgena e

    etnohistria, pauta-se numa bipolarizao entre histria tica e mica. A primeira

    est relacionada, a histria que os cientistas sociais produzem acerca do transcurso

    sociocultural e histrico das populaes nativas do continente americano, quer dizer,

    das representaes que construmos sobre o outro, a nossa viso tica. Em linhas

    gerais, trata-se, como bem demonstra Calvia Saez, da recuperao de um grande

    acervo documental, produzido pelos administradores e agentes coloniais ou

    nacionais, maior em quantidade e qualidade e muito menos perdido do que era de

    praxe considerar. 55

    No caso da administrao das provncias brasileiras, principalmente a partir

    da segunda metade do sculo XIX, os registros analisados revelam de forma

    detalhada as estratgias de conquista dos indgenas, bem como seus consequentes

    preconceitos e etnocentrismos, referindo-se desde os meios mais brandos, como a

    catequese, at os mais dissuasivos, como as expedies punitivas. A reviso destes

    mesmos registros tambm revela diversos tipos de associaes e parcerias polticas

    entre os administradores provinciais, caciques e demais lideranas indgenas, bem

    como imposies de condies especficas para a manuteno de dilogos, que no

    raramente eram quebradas, por ambos agentes. Transita-se entre poltica indgena e

    a poltica indigenista, revelando, como salienta Calvia Saez, que o papel dos

    indgenas na constituio da sociedade nacional era muito mais constante e

    profundo do que os grandes relatos da formao do Brasil deixaram entrever. 56

    53

    OLIVEIRA, Jorge. Eremites A 2003 Op. cit. p. 7. 54

    OLIVEIRA, Jorge. Eremites A 2012. Op. cit. p. 191 192. 55

    CALVIA SAEZ, Oscar. op. cit. 2004. p. 40. 56

    Id.

  • 34

    A segunda perspectiva, busca a percepo indgenas de sua prpria histria,

    que foi instrumentalizada nos estudos etnohistricos desde seu princpio nos

    Estados Unidos: a histria narrada e interpretada segundo os prprios indgenas,

    via tradio oral, aqueles que recentemente foram reconhecidos por muitos

    historiadores brasileiros como agentes sociais plenos. 57 Nessa perspectiva, se

    aceita a tradio oral como valor documental, ou mesmo realando seu significado

    como viso alternativa histria oficial [...] uma indagao sobre a percepo

    indgena da histria, e, portanto, da abertura ao que se poderia se chamar de

    historicidades outras 58, em muitos casos trata-se abandonar ou romper com a tica

    linear que a historicidade ocidental encara sua prpria histria. Porm, como salienta

    Eremites de Oliveira, a viso que os prprios nativos constroem sobre sua trajetria

    , em muitos casos, impregnada por complexas representaes simblicas no

    facilmente decodificveis e passveis de serem ordenadas em termos temporais. 59

    necessrio uma espcie de equilbrio entre a experincia distante e a

    experincia prxima, um meio termo entre as perspectivas tradicionalmente

    reconhecidas como de dentro ou de fora; de primeira pessoa ou terceira

    pessoa; teorias fenomenolgicas ou teorias objetivistas; e finalmente, talvez

    mais comumente, anlises micas versus ticas.60 Segundo Marcio Goldman

    importante lembrar que a teoria etnogrfica no se confunde com uma teoria nativa

    61, o sentido de tais formulaes seriam a elaborao de certos modelos de

    compreenso, que, mesmo produzido em e para um contexto particular, seja capaz

    de funcionar como matriz de inteligibilidade em outros contextos. 62

    Em certo grau, a polarizao entre tais perspectivas, ticas e o micas, pode

    ser descrita como uma oposio de orientaes metodolgicas, a saber, o uso

    restrito de documentao, por exemplo a colonial, ou os registros das narrativas

    indgenas. Entretanto, como salienta Eremites, tal oposio, remete a uma longa e

    antiga discusso aparentemente longe de um entendimento consensual:

    57

    OLIVEIRA, Jorge Eremites de. op. cit. 2003. p. 2. 58

    CALVIA SAEZ, Oscar. op. cit. 2004. p. 40. 59

    OLIVEIRA, Jorge Eremites. 2003. op. cit. 2.. 60

    GEERTZ, Clifford. Do ponto de vista dos nativos: a natureza do entendimento antropolgico. In: O Saber Local: Novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrpolis: Vozes, 2003.p. 87. 61

    GOLDMAN, Marcio. op. cit. p. 459. 62

    Id. 460.

  • 35

    histria/eventos/diacronia versus estrutura/mitos/sincronia 63. Esses argumentos j

    foram amplamente utilizados para separar as disciplinas histricas e antropolgicas,

    entretanto, so esvaziados na perspectiva interdisciplinar da etnohistria (apesar

    das discusses sobre sua nomeao), j que sua verdadeira vocao parece ser

    menos como uma disciplina ou subdisciplina, e mais como ferramenta interdisciplinar

    no estudo da histria indgena. Atualmente, como argumenta Calvia:

    [...] os estudos sobre histria indgena j contam com uma razovel maturidade [...] nem a afirmao de uma historicidade ecumnica, nem a articulao de estrutura e histria so bandeiras que necessitem de mais defesa, muito embora haja uma defasagem importante entre sua afirmao genrica e sua aplicao a descries concretas. A documentao sobre a

    histria indgena passou a ser objeto de uma procura intensa. 64

    At a dcada de 1960, os estudos etnohistricos praticados nos EUA e

    publicados em grande parte na revisa Ethnohistory, empenhavam-se em identificar

    somente processos de aculturao, e nesse sentido, destoavam da antropologia

    praticada nos programas de ps-graduao do Brasil, como o Museu Nacional

    sendo nomeada pejorativamente como culturalista, o paradigma da aculturao se

    tornou cada vez mais criticado, obsoleto e anacrnico na antropologia mundial. 65

    Os sintomas do distanciamento entre essas perspectivas para os trabalhos

    antropolgicos produzidos no Brasil podem ser manifestados em associaes, por

    um lado, dos estudos etnohistricos antropologia histrica, e por outro lado, da

    histria indgena aos estudos americanistas. Apesar das divergncias (e por causa

    delas), as solues so to diversas quanto o so os pesquisadores que se atm ao

    tema. O antroplogo americano Shepard Krech III, por exemplo, busca se desligar

    de estigmas causados pelo radical etno, (etnobotnico, etnoastonmico, etc),

    preferindo o termo tratar da histria antropolgica ou da antropologia histrica,

    porm, tambm salienta a manuteno da matriz interdisciplinar tradicionalmente

    reconhecida para a etnohistria.66

    * * *

    63

    OLIVEIRA, Jorge. Eremites A. op. cit. 2003. p. 2. 64

    CALVIA SAEZ, Oscar. op. cit. 2004. p. 40, 41. 65

    OLIVEIRA, Jorge. Eremites de . op. cit. 2012. p. 194. 66

    KRECH, Sheppard, III. From Ethnohistory to Anthropological History. Smithsonian contributions to

    anthropology. n. 44 p. 87. Disponvel em: http://smithsonianrex.si .edu/index.php /sca/article /view/343/302. Acesso em 12/08/2013 s 08h00min.

  • 36

    A proposta para este trabalho transita de acordo com as necessidades e as

    especificidades dos casos analisados. O grande volume de registros sobre a

    presena de indgenas em Curitiba-PR ainda precisar ser revisitado em trabalhos

    futuros, j que somente agora, com os novos esforos da historia indgena, passam

    a serem revelados panoramas profundos, pr e ps-contato, entre sociedades

    indgenas distintas e, partir do sculo XVI, as no ndias. Tambm so visualizados

    novos contextos para descrio do funcionamento de seus sistemas polticos, da

    mesma maneira, a operao e manipulao dos registros e interpretaes da

    presena, agncia e participao dos indgenas nos mais diversos momentos

    histricos. A seguir, iremos trabalhar com fontes coloniais e registros provenientes

    de anlises de diversas disciplinas. Trata-se de uma abordagem histrica, no sentido

    literal da palavra, que no busca identificar a imagem ou panorama da formao

    populacional da capital paranaense, entretanto, demonstramos como as muitas

    narrativas que o fazem, silenciam ideologicamente em relao aos indgenas.

  • 37

    CAPTULO 2 APROXIMAES INTERDISCIPLINARES: POR UMA LONGA

    HISTRIA INDGENA

    Os registros de viajantes e missionrios sobre os Tupi que ocupavam a costa

    do Brasil no sculo XVI inauguram a produo de documentos escritos que versam

    sobre indgenas no Brasil, mas certamente no iniciam as suas histrias. Como

    argumenta Carneiro da Cunha, Sem dvida, a histria indgena tem duas eras,

    A.B. e D.B, antes do branco e depois do branco67, entretanto, no se trata de alar o

    no ndio como elemento instaurador dos princpios civilizatrios. Tal perspectiva

    salienta as transformaes que advm do contato, ou seja, o surgimento de novas

    agncias e relaes, a resistncia ao domnio, a persistncia de territorialidades, a

    interpretao dos hbitos dos brancos segundo seus esquemas cosmolgicos,

    novos contextos que alimentam e redefinem esquemas, enfim, uma lista inesgotvel

    de novas relaes que so objetos de novas reflexes.

    Abordagens interdisciplinares que transitam entre a arqueologia, lingustica,

    historiografia e etnologia, contribuem na sustentao de um grande cenrio,

    expandindo espacialmente e temporalmente certas construes limitadas s ticas

    colonizadoras. Estas, na maior parte das vezes, ausentam ou desconsideram, direta

    ou indiretamente, qualquer ocupao prvia aos territrios cobiados. Justamente

    por isso, como aponta Carneiro da Cunha, a diviso A.B. e D.B no pode determinar

    isoladamente a anlise, esta, tem de ser agora refinada, h vrias pocas em cada

    era cada uma com estratgias prprias de parte a parte, que as sociedades

    indgenas ou ndios individualmente fizeram das situaes em que se encontraram

    so elucidativos dos processos e dos quiproqus polticos gerados pela

    dominao.68

    Contudo, mesmo com os esforos de pesquisadores nas diversas reas,

    ainda muito pouco se sabe sobre esses grupos previamente ao perodo colonial, e

    67

    CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. 2009 op. cit. p 129. 68

    Id. ibid. p 130;

  • 38

    mesmo durante ele. Como salienta Renato Sztutman, apesar dos estudos

    arqueolgicos propiciarem alternativas a uma histria meramente conjectural, as

    maneiras pelas as quais ela elabora suas concluses sobre, por exemplo, a

    organizao social nativa podem conduzir, se no bem interpretadas, a uma

    inconsistncia antropolgica. Tudo o que temos so, imagens em conflito. 69 Alguns

    aspectos, contudo, podem ser ressaltados no que diz respeito aos dados sobre os

    povos tupi antes da chegada dos europeus, o que reenvia o debate sobre o

    expansionismo desses povos. 70

    2.1 J MERIDIONAL: KAINGANG E XOKLENG

    Os Kaingang e os Xokleng formam a populao conhecida como J do Sul,

    ou J Meridional (anexo 2). Tambm so reconhecidos nos estudos arqueolgicos

    atravs das tradies definidas pelo Programa Nacional de Pesquisa arqueolgica

    (PRONAPA): Casa de Pedra, Itarar e Taquara.71 Durante muito tempo foram

    classificados como grupos pequenos de nmades isolados caador-coletores. Um

    dos principais responsveis pela propagao de tal perspectiva, foi a publicao do

    primeiro volume do Handbook of South American Indians (HSAI) em 1946,

    organizado por Julian Steward. Nessa obra, como o prprio nome j diz, buscava-se

    uma viso continental dos indgenas na Amrica do Sul, amplamente baseada em

    uma oposio tendenciosa entre os ambientes dos Andes e a floresta tropical.

    Na perspectiva do HSAI, nas montanhas andinas floresceram grandes

    civilizaes que suportavam esquemas polticos complexos, alm de estruturas e

    tcnicas agrcolas e de domesticao de animais suficientemente desenvolvidas.

    69

    SZTUTMAN, Renato. O profeta e o principal: A ao amerndia e seus personagens. So Paulo:

    EDUSP; FAPESP, 2012. p. 152 70

    Id. ibid. p. 150 71

    Ao longo das ltimas dcadas, observa-se a profuso de estudos que estabelecem dilogos e discusses interdisciplinares, atingindo novas interpretaes e associaes, que ampliam as observaes sobre sociedades estudadas na etnologia e reconhecidas na histria. As tradies passam a ser estudadas e associadas aos grupos produtores dos vestgios, incorporando as discusses etnolgicas, lingusticas e de interpretaes das fontes histricas relacionadas. A interpretao do conceito de tradio adotada neste trabalho, assim como em muitos dos autores citados, distancia-se dos propsitos e dos limites impostos para o conceito nos tempos do PRONAPA. Parece que, segundo Arajo, a utilidade maior das tradies simplesmente nomear coisas. Assim, ao falarmos em Tradio Itarar ou Tradio Tupiguarani sabemos que a maioria dos colegas compreender, em termos gerais, do que estamos falando. . Ver: ARAUJO, Astolfo Gomes de Mello. A tradio cermica Itarar-Taquara: caractersticas, rea de ocorrncia e algumas hipteses sobre a expanso dos grupos J no sudeste do Brasil Revista de Arqueologia, 20: 09-38, 2007.

  • 39

    Nas terras baixas, ou todos os territrios a leste da cordilheira, situavam-se

    populaes menos complexas em meio a mata e o solo infrtil, razo pela qual, no

    se desenvolveu uma civilizao capaz de cultivar intensamente o solo, domesticar

    animais, dominar a metalurgia e conhecer os ardis do poder. 72 Na sua

    generalizao ecolgico-cultural, Steward props enquadrar as sociedades

    amerndias de acordo com quatro tipos, de acordo com a suposta complexidade

    observada: os povos marginais, as tribos da floresta tropical que ocupam as

    vrzeas, no caribe os cacicados, e por fim, os Andes centrais. Na classificao os

    grupos J so enquadrados como povos marginais, ou seja, caadores-coletores e

    exploradores de ambientes improdutivos e escassos de recursos naturais, alm de

    detentores de uma tecnologia muito simples, o que por fim, segundo o determinismo

    ecolgico e atualizaes evolucionistas, limitaria o tamanho e a composio das

    unidades polticas bem como o desenvolvimento institucional. 73

    No estudo o passado dos J Meridionais foi projetado de acordo com a

    situao demogrfica e territorial da primeira metade do sculo XX 74, caracterizada

    pela transformao de muitas de redes sociabilidades devido a conquista

    empreendida pelos colonizadores em seus territrios. Mesmo no Harvard-Central

    Brazil Project (HCBP), cujos trabalhos de campo se deram entre 1962 a 1967,

    focalizando especificamente os J sobre a coordenao de David Maybury-Lewis,

    tais grupos meridionais no tiveram espao nas investigaes, segundo esse autor:

    no inclumos estes grupos no nosso plano original de pesquisa por que pensamos,

    erroneamente, sou grato em dizer, que eles haviam desaparecido, ou ao menos que

    seu modo de vida estava extinto. 75

    Grande parte dos estudos arqueolgicos, por sua vez, no se propuseram a

    considerar os dados antropolgicos e histricos, inviabilizando perspectivas que

    aprofundassem a compreenso dos sistemas scias polticos desses grupos, como

    o faccionalismo por exemplo. Alm desses determinismos, no caso dos J

    Meridionais, seus registros arqueolgicos ainda foram alvo de uma das

    interpretaes mais enganosas na histria da arqueologia regional, j que alguns

    72

    FAUSTO, Carlos. Os ndios antes do Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. p. 10 73

    FAUSTO, Carlos. Op. cit. p. 60. 74

    Id ibid. p. 19. 75

    MAYBURY-LEWIS, David (Org.) (1979). Dialectical Societies: The G and Bororo of Central Brazil.

    Cambridge/MA and London, Harvard University Press. p. 6. apud. FERNANDES, Ricardo Cid. Poltica e Parentesco entre os Kaingang: uma anlise etnolgica. So Paulo: PPGAS-USP (Tese de Doutorado), 2003. p. 13.

  • 40

    equivocadamente consideraram, que essas trs tradies eram a continuidade

    regional da Tradio Humait, tendo-se imaginado que esta teria adotado por

    difuso a cermica, a agricultura e as tcnicas de polimento ltico. 76

    A imagem de caadores coletores neolticos que foi depositada sobre os

    Kaingang, no eram mais do que o resultado de construes ideolgicas que

    suportavam a ambio desde os primrdios da guerra de conquista sobre seus

    territrios, somadas ao preconceito e averso que os intelectuais tinham em

    relao aos Kaingang e Xokleng 77 Em diversos trabalhos, Noelli argumenta que

    necessria a superao desse modelo padro amplamente debruado sobre a

    ecologia cultural, pautando-se principalmente na reinterpretao de dados

    arqueolgicos, histricos e etnolgicos j coleados.78 Entretanto, as imagens de

    caadores-coletores primitivos que buscavam incessantemente e exclusivamente os

    meios mnimos para sua subsistncia, j no encontravam espao nos estudos de

    Nimuendaj, e comeam sucumbir completamente com Lvi-Strauss. Os J passam

    a ser percebidos como grupos que mantm uma sofisticada economia bimodal, que

    combina perodos de disperso com outros de agregao em grandes aldeias,

    estruturadas internamente por um conjunto de metades cerimoniais, por grupos

    etrios e segmentos residenciais. 79

    Apesar do longo cenrio acadmico em que estiveram envoltos tais enganos,

    atualmente, os estudos sobre os J Meridionais demonstram uma srie de novas

    reflexes, atravs do crescente nmero de pesquisadores interessados nas

    contribuies e esforos interdisciplinares. Nesses estudos ampliam-se no somente

    a rea de ocupao e disperso dos J Meridionais, mas o conhecimento sobre

    seus mecanismo de produo, frente a percepo de que eram e ainda so povos

    agricultores, como nos informam as fontes arqueolgicas e escritas 80, mas

    tambm, o conhecimento sobre suas disposies poltico-cosmolgicas.

    Para o estudo da ocupao territorial dos J Meridionais, Kaingang e Xokleng,

    Brochado foi o primeiro a propor uma perspectiva baseada amplamente em dados

    arqueolgicos. Entretanto mesmo Noelli, defensor das ideias desse autor da

    expanso Tupi-guarani, a pina de Brochado, no concorda com o autor quanto a