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O E S S E N C I A L S O B R E

William Shakespeare

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O E S S E N C I A L S O B R E

William ShakespeareMário Avelar

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Índice

7 Prólogo13 Os primeiros anos39 À descoberta da urbe69 Ao serviço do lorde camareiro‑mor107 Ao serviço do rei137 Os derradeiros anos159 Bibliografia

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Prólogo

Poucos escritores terão sido objecto de tantaespeculaçãoacercadasuavida,dosseusgostos,dassuaspaixões,dasuavidaafectiva,dasuaorientaçãosexual, das suas opções políticas, dasuasensibili‑dadereligiosa,edasuaprópria...existência,comoWilliam Shakespeare. Ocasionalmente surgemnovos (?) olhares, eventualmente devedores dasidiossincrasias dos tempos que se vivem, comopor exemplo um Shakespeare anónimo, em cujaconcepção ecoa a teoria da conspiração.

Já há algumas décadas um shakespearianoportuguês, Luiz Cardim, escrevia que «o proble‑ma do impersonalismo de Shakespeare tem sidomuito debatido. Já em 1899 um hábil jornalista,FrankHarris,escreveuumlivroquefezescândalo, Shakespeare The Man,emquereconstituiuaalmadodramaturgocomosendoumcocktail,digamos,de Romeu, Hamlet, Macbeth, o duque Ângelo,Póstumo e Próspero» (Cardim, p. 67). Nada denovo, portanto, nas «novas» versões sobre a vidado bardo de Avon...

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O mistério que envolve a biografia de Shakes‑peare deve‑se, em grande parte, à inexistênciade diários, cartas, apontamentos, notas, onde eletenha revelado os seus sentimentos mais profun‑dos, as suas sensibilidades afectivas, políticas oureligiosas. Outros autores coevos fizeram‑no, e é,muitas vezes, através deles, de fontes alheias, quepodemos desvendar um ou outro detalhe sobre osilêncio no qual ele se encerrou. Recorda HaroldBloom,aquelequeéhojeemdiaumdosmaisen‑tusiastas defensores do seu génio, que «[h]á umafirme tradição biográfica segundo a qual WilliamShakespeare, o homem, não era de modo algumidiossincrático… Os seus amigos e conhecidosdeixaram testemunhos de uma pessoa amigável,e bastante normal: aberta, amiga do seu vizinho,espirituosa, descontraída, alguém com quem sepodiatomarumabebidaà‑vontade.Todosconcor‑damqueeleerabem‑humoradoedespretensioso,emboracomumespíritoaguçadoparaonegócio»(Bloom, p. 55 [1])1

.Comefeito,asuavidaterásidobastantebanal;

afinal, ele não foi um espião, como o seu con‑temporâneo Marlowe terá sido, nem se envolveuem polémicas políticas, como o igualmente seucontemporâneo e amigo Ben Jonson se envolveu.Esta banalidade não nos perturbaria, não tivesseele criado uma obra maior na nossa tradição lite‑rária ocidental.

As páginas que se seguem não pretendem serumestudo,ouumasíntesedosestudos,sobreesta____________1 Semprequecitarmaisdoqueumaobradeumautor,indicarei

com[1]aobramaisantigaecom[2]amaisrecente.

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suaobra.Paraoleitoroualeitoramenosfamilia‑rizadoscomaspolémicasqueenvolvemouniversoliterário anglo‑saxónico, importa esclarecer que acríticashakespearianaéumespaçodeacesodebateecontrovérsia.Nela,nessacrítica,reflectem‑seasdiferentes e não raro antagónicas sensibilidadesexistentes nas universidades britânicas e ameri‑canas, onde, contrariamente ao que sucede entrenós,odebatepolíticoamiúdemarcaradicalmenteas posturas hermenêuticas.

Ainda há poucos anos, mais precisamente en‑tre Dezembro de 2007 e os primeiros meses de2008, as páginas do Times Literary Supplementforam palco de uma acesa polémica desencadea‑da pela publicação de um livro particularmentefascinante,Shakespeare — The Thinker,daautoriade A. D. Nuttall. Foi, então, estimulante seguir osargumentos distintos em torno de leituras sobrepassos específicos das obras, de versos e palavrasaté; argumentos esses que reflectiam, afinal, asposturas face à vida dos seus autores.

Nestas páginas eventuais argumentos a essenívelpoderão,porventura,despontar,masapenasisso. O meu objectivo concreto será o de resgatardosilênciodotempoumpercursodevida.Paraofazerapoiar‑me‑ei,sobretudo,embiografiasescri‑tasporreputadosshakespearianosnestesúltimosanos. Tentarei identificar sempre qual a fonte oufontes onde colhi os detalhes mencionados, indi‑cando entre parêntesis o apelido do autor dessafonte e a página ou páginas onde ela se encontra(nabibliografiaseleccionadafinalestarádisponívelarestanteidentificação).Devo,todavia,esclarecerque muita da informação que nestas páginas se

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espelha,foipormimabsorvidaaolongodeváriasdécadas de leitura de bibliografia sobre o nossoautor, directa ou indirectamente decorrente daleccionação em cursos de licenciatura e de mes‑trado. Afinal, mesmo quando ele não é o objectocentral do ensino, a sua presença não deixa de seinsinuar; veja‑se como seria impensável meditarsobre Moby‑Dick sem o lembrar.

Independentementedepodernãosertãocitadanestas páginas como outras, a biografia de ParkHonan, Shakespeare — A Life, tem‑me continua‑menteimpressionadodesdeasuaprimeiraleituraem 1999, pelo rigor e pela diversidade de fontesonde o autor colheu os dados que lhe permitiramtraçaravidadoautor.Creioqueelateránorteadoa estrutura e a própria abordagem que concebi.Fontes preciosas para este livro foram tambémShakespeare — The Biography, de Peter Ackroyd,Soul of the Age — The Life, Mind and World of William Shakespeare,deJonathanBate,Will in the World — How Shakespeare Became Shakespeare,deStephenGreenblatt,eShakespeare — An Ungentle Life, de Katherine Duncan‑Jones. Devedoras doscontinuados e relevantes estudos filológicos quetêmmarcadoosestudosshakespearianos,apoiadasnumacriteriosainvestigaçãointerdisciplinar,rigo‑rosas nas suas interpretações e intelectualmentehonestas sempre que entram em terrenos maissinuosos,estasobrasserãováriasvezesconvocadasao longo das páginas que se seguem.

DevoregistartambémaconvocaçãodotrabalhorealizadopelosinvestigadoresdaFaculdadedeLe‑trasdoPortoque,sobacoordenaçãodeM.GomesdaTorre,têmvindoatraduziraobradramáticade

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Shakespearenoâmbitodoprojecto«Shakespearepara o século xxi». Os seus estudos introdutó‑rios às peças até agora publicadas constituíramum apoio precioso. Além disso, segui os títulosescolhidos por este projecto. Ainda no plano datradução,devoesclarecerque,salvoemrelaçãoaosmonarcas,habitualmenteconhecidoscomoIsabel,Maria ou Jaime, por exemplo, optei por manteros nomes próprios em inglês. O mesmo sucedeucom as obras para as quais não detectei versãoemportuguêseparaasquaisnãosemeafiguravapossível fazer uma tradução literal.

Escreveu Fernando de Mello Moser, um dosnossosmaisreputadosshakespearianos,que:«Nãoserá exagero afirmar que ele [Shakespeare] já foiconsiderado, com argumentos mais ou menosplausíveis assentes na selecção interpretativa dostestemunhos que os seus textos proporcionam,como sendo: um papista convicto, ou um papistaenvergonhado, ou apenas um simpatizante; comoumcriptocatólico,ouRecusant;comoanglicanodomodelo isabelino; como calvinista e como augus‑tiniano severo; como agnóstico; como estudiosoda literatura hermético‑cabalista, indiferente àreligiãoporfaltadeconvicçãoeouporprudência,embora servindo‑se constantemente de estere‑ótipos e clichés de tradição religiosa; etc. etc.»(Moser, p. 233.)

É à descoberta desta misteriosa personagemque vamos agora partir. Para isso peço‑vos, parajá, que me acompanhem até Henley Street, emStratford‑upon‑Avon, uma quarta‑feira...

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Os primeiros anos

A nossa história começa numa quarta‑feira.Estamos em Strafford‑upon‑Avon e este é o dia26 de Abril de 1564. Vindo de Henley Street, umgrupodepessoasdesceHighStreet,rumoàigreja.Entreestasdestaca‑seumdosnotáveislocais,JohnShakespeare,que,aocolo,levaconsigoumrecém‑‑nascido.Acompanham‑no,entreoutros,umvizi‑nho,WilliamSmith,proprietáriodeumacapelistaepadrinhodobebé.EsteseriabaptizadonaIgrejada Santa Trindade, a qual, onze anos antes, haviasido expurgada de todos os vestígios do catolicis‑mo. Em breve, junto à pia baptismal, o sacerdote,JohnBretchgirdle, lembrariaaospadrinhosquaisassuasobrigações.Recordar‑lhes‑iaquedeveriamassegurar que a criança ouviria regularmente ossermões,equeaprenderiaocredoeoPaiNosso...«eminglês».Apósobaptismo,umpedaçodelinhobrancoseriacolocadonatestadobebé,sódevendoser retirado quando a mãe fosse «purificada» naIgreja (Ackroyd, p. 3).

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Comoerahábitonaépoca,amãe,Mary,estiveraausente da cerimónia. Ficara em Henley Street,onde, alguns dias antes, dera à luz o pequenoWilliam, «Gulielmus filius Johannes Shakspere»,comoficariaassentenoregistoparoquial(Honan,p. 10).

De acordo com a tradição, Mary tivera a ajudade uma parteira, após o que o recém‑nascido ha‑via sido lavado e, posteriormente, envolvido numtecido macio. Em seguida fora levado à presençado pai que o aguardava no piso térreo, para denovo regressar ao andar superior, aos aposentosonde a mãe «chamaria a si todas as doenças domenino», antes de finalmente ser colocado noberço. Ainda de acordo com a tradição, ter‑lhe‑ãoposto um pouco de manteiga e de mel na boca.NoWarwickshire,eratambémhábitodaraobebégeleia feita de miolos de lebre.

Qual a data precisa em que o parto ocorreu,é algo que, até hoje, foi impossível de datar comprecisão. Uma coisa é certa, o pequeno Williamterá nascido entre 21 e 23 de Abril; esta últimadatatornar‑se‑iaalgomíticadevidoaofactodetersido o dia da sua morte, o que, de acordo com achamadacosmovisãoisabelinaentãoprevalecente,corresponderiaaodelineardeumcírculoperfeitopela Roda Fortuna. No entanto, o dia 22 é umadata igualmente possível, visto ter sido escolhidapelaneta,ElizabethHall,paracasardezanosapósa morte do nosso protagonista (Honan, p. 16); oumesmo o dia 21, embora nenhum evento especiala ele tenha sido posteriormente associado.

Esteseramtemposdifíceis.1564persistirianamemória como um ano marcado pela peste e por

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grandesinundaçõeseporumfrioforadocomum.Em Londres, por exemplo, que ficava a dois diasdeviagemdeStratford—acavalo,esclareça‑se—,oTamisacongelaria,sendopossívelatravessá‑loapédeumamargemparaaoutra,passearsobreele,ou ainda nele praticar vários jogos (Bate, p. 60).Mais devastador do que as intempéries naturaisrevelar‑se‑ia a peste, que, só em Julho desse ano,dizimariaumsextodapopulaçãolocal.Particular‑mente afectados por estas calamidades seriam osrecém‑nascidos. Com efeito, cerca de dois terçosdos bebés nascidos nesse ano morreram antes decompletaremumanodeidade(Greenblatt,p.93).Emapenasseismeses,faleceram237habitantesdeStratford(estima‑sequeestapovoaçãoteriaentãocerca de 1200 habitantes, vindo a atingir os 1900no final do século); ali mesmo, em Henley Street,morreria toda uma família composta por quatropessoas (Ackroyd, p. 4).

O pequeno William seria, assim, desde logo,um sobrevivente. Ainda na sua infância viria asobreviver a outro surto de peste que, em Junhode 1566, avassalou Leicester e, pouco depois, Co‑ventry (Honan, p. 17). Já adulto, sobreviveria aoutros grandes surtos de pestilência, desta feita,emLondres,entre1592e1594,entre1603e1604e entre 1608 e 1610.

Masestesnãoeramtemposdifíceisapenasde‑vidoàsdoençaseàsintempériesnaturais.Williamnascera cinco anos depois da coroação da rainhaIsabel,sobcujoreinadoiriaviveramaiorpartedavida.EmboraestefosseoanoemquesecelebraraapazcomaFrança,odomíniocatólicopersistianosuldaEuropaeoperigootomanoavizinhava‑seno

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Mediterrâneo.AstensõesreligiosaseramintensasportodaaEuropa.EmAgostode1572dar‑se‑iaotristemente célebremassacre deSãoBartolomeu.Todasestasconvulsões,pormuitodistantesqueofossem, não deixavam de perturbar o quotidianodas gentes de Stratford. Ao conselho municipaldesta comunidade foi várias vezes solicitado orecrutamentodehomens,oenviodearmas,arma‑duras, cavalos, arreios, etc.

Na sequência do Acto de Supremacia de 1534,quedesignaracomochefedaIgrejaopaideIsabel,HenriqueVIII,quereinouentre1509e1547,edaconsequente separação de Roma, Inglaterra seriapalcodeumasériedeconflitosreligiososqueiriamculminar na estabilização de um protestantismomoderado durante o reinado da monarca, que seiniciouem1558equeterminariacomasuamorteem Março de 1603. Entre o reinado paterno e oseu,opaísassistiriaaodeEduardoVI(1547‑1553),durante o qual seria efectivamente implantadoo protestantismo em Inglaterra, e ao de Maria I(1553‑1558), marcado por uma profunda reacçãocatólica.

Poder‑se‑á,porisso,considerarqueouniversomentaldeWilliamiriaoscilarentredoismundos,o do passado e o do presente, ou, se quisermos,entre catolicismo e protestantismo, entre hábi‑tos feudais e ambição burguesa, entre instinto epensamentoracional,entreféecepticismo(Bate,p.18). Em breve, algumas tradições perenes se‑riam apenas meros objectos de revisitação pelamemória,comoos«milagres»,tradiçãodramáticacentenária, e a representação dos ciclos ligada à

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festa do Corpo de Cristo, ambos proibidos com areforma protestante.

O próprio círculo familiar não seria imune aestas tensões. É muito provável que tanto Johncomo Mary Shakespeare tenham sido católicos«conformados»,equeojovemWilliamtenhasidoeducadonaproximidadeda«velhafé».AligaçãodeJohn ao catolicismo tem sido sustentada atravésde um documento encontrado na casa de HanleyStreet, no qual ele confirma a sua fé católica. Noentanto,tambémestaeventualligaçãoexigeconfir‑mação,jáqueasuaautenticidadesuscitaalgumasdúvidas (Bate, p. 73).

Em Stratford, o padre católico Roger Dyos,que baptizara Joan, a primeira filha do casal,foi afastado e substituído pelo protestante JohnBretchgirdle, que, como acima referi, baptizou oprimeiro filho varão dos Shakespeare. Mas estasmudanças não significavam que o catolicismofosse já um episódio do passado. Com efeito, emMaiode1570,quandoWilliamtinhaseisanos,umcatólico, John Felton, pregou à porta do bispo deLondres uma bula papal excomungando a rainhaIsabel (Greenblatt, p. 92).

Não seria apenas devido à educação recebidaouacontextosfamiliaresqueastensõesreligiosasestariam presentes no dia‑a‑dia dos Shakespeare.Também as funções de John na vida da comuni‑dadeiriamconfrontá‑loscomessaescolhaque,hádécadas, atravessava a sociedade isabelina. Comefeito, caberia a John Shakespeare, enquanto ca‑mareirodeStratford,supervisionarostrabalhosde«reparação» da Capela da Corporação, ou seja, deapagarosvestígiosdocatolicismo:SantaHelenae

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aDescobertadaCruz,SãoJorgeeoDragão,oas‑sassinatodeSãoTomásBecket,arcebispodeCan‑tuária, e o Dia do Juízo Final (Greenblatt, p. 95).

John, um dos 23 luveiros de Stratford, erauma figura destacada da comunidade. Entre 1558e 1559, assume o cargo de condestável, que seriaparticularmentesensívelnoplanopolítico, jáqueoobrigavaalidarcomastensõesentreprotestan‑tes e católicos durante a transição do reinado dacatólicaMariaparaaprotestanteIsabel.Doisanosdepois, assume o de camareiro, no qual se man‑terá até 1565, ano em que passa a vereador. Oseupercurso ascendente atinge um novo patamar em1658,aoserdesignadomeirinhodeStratford,cargoem que se manterá ainda durante o ano seguinte,altura em que solicita autorização para ter cotade armas. Em 1571, será nomeado vereador‑chefe(Greenblatt,pp.59e94).Esteé,defacto,umper‑cursodeumcidadãoparticularmenterelevantenasociedade local.

Além disso, era membro da guilda dos luvei‑ros, actividade pela qual Stratford era bastanteconhecida.Independentementedestaactividade,àsemelhançadoquesucediacommuitoshabitantesde Stratford, era um pequeno proprietário rural.Juntamentecomopai,trabalhavaaterraemSnit‑terfielde,comoirmão,naaldeiavizinhadeIngon.Aqui criava os animais cuja pele iria utilizar pos‑teriormente no fabrico de luvas (Ackroyd, p. 20).

Muitapolémicaselevantouaolongodostemposrelativamente ao nome de família, insinuando‑sea existência de outras personagens que poderiamusurpar a identidade do futuro dramaturgo. Defacto, foram encontradas mais de 80 formas

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diferentesdeescreveroapelidodeJohn:Sakspere,Schakosper, Schackspere, Saxper, Schaftspere,Shakstaf, Chacsper, Shasspeere... Ele próprio,paraalémdeJohnShakespeare,surgecomoJhonShacksper ou como John Shaxpere (Honan, p. 8).Trata‑se, na verdade, de um nome que mergulhabemfundonotempo,poisjánosGrandes RolosdaNormandia,quedatamde1195,existereferênciaaumWilliamSakeespee.Poroutrolado,emfinaisdoséculoxiii,surgeumanarrativanormandaescritapor um «Jakemes Sekesep» (Ackroyd, p. 17).

Algures entre o final de 1556 e meados deDezembro de 1557, John casou com Mary Arden,oriunda de uma família de convicções católicas,e uma das mais distintas de Warwickshire, cujalinhagem remontava a 1086. Este nome, Arden,possui,alémdisso,umprofundosignificadoaníveldeumaidentidadenacional,poisseWarwickshireera o coração da Inglaterra a floresta de Arden e,por extensão, os Arden eram o coração de Wa‑rwickshire.Maistarde,elefuncionariacomoumaespécie de pretensão e legitimação nobiliárquicapara o jovem William (Duncan‑Jones, p. 9).

Após o nascimento de William, a famíliaShakespeare veria ainda surgir mais cinco crian‑ças: Gilbert, nascido em Outubro de 1566, Joan,a 15 de Abril de 1569, Anne, baptizada a 28 deSetembro de 1571, e que viria a falecer sete anosmais tarde, Richard, baptizado a 11 de Março de1574, e Edmund a 3 de Maio de 1580. Esta eraa família que acompanharia William durante ainfância e juventude.

Como referi, Stratford era então uma comu‑nidade com cerca de 1200 habitantes, duzentas e

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quarentacasaseumadúziaderuas,umadimensãoidêntica à de Birmingham e um pouco superiora Liverpool, com os seus quase 1000 habitantes.Por seu turno, Coventry tinha entre 7000 a 8000habitantes.Foinestacomunidadeque,comovimos,JohnShakespeareassumiuumlugardedestaque,o qual, importa referir, abrangia ainda negóciosenvolvendo a concessão de crédito.

Derepente,em1575,algosucede,poisdeixamosdeencontrarregistosdasuapresençaemreuniõesdoConselhoMunicipal(Greenblatt,p.60).Williamtem então 13 anos. Peter Ackroyd lança várias hi‑pótesesparaesteseudesaparecimento.Problemasde saúde? De alcoolismo? Recorda ainda que, noano anterior, o Conselho havia sido instruído nosentido de averiguar eventuais casos de heresia(Ackroyd, p. 63). Teria sido John objecto de al‑guma denúncia relativa à sua opção religiosa? Narealidade, a par do eventual declínio económico,devidoà suaparticipaçãoemnegóciosmenosfiá‑veisenvolvendocréditoserestriçõesnocomércioda lã (Greenblatt, p. 634), surgem também possi‑velmente os problemas de ordem religiosa.

Em1592,Johnéobjectodeumaintimaçãode‑vidoaofactodenãoparticiparnoserviçoreligiosoda Igreja Anglicana, o que, importa acentuar, eraobrigatório.Ajustificaçãoqueapresentaéadequeofizerademodoaevitarosseuscredores(Honan,p. 39). Uma justificação credível. Mas correspon‑deria à verdade? As dúvidas relativas a este argu‑mento surgem, desde logo, quando constatamosque o principal signatário dos dois documentosonde John é acusado de não participar nos servi‑ços religiosos é Thomas Lucy, um protestante de

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convicçõesprofundaseumconhecidoperseguidordos católicos. Independentemente da firmeza dassuas convicções, dever‑se‑á assinalar que Lucyreceberia terras que haviam sido confiscadas aoscatólicos,equeocatolicismoestavaprofundamen‑teenraizadoentreosestratossenhoriaisdaregião(Ackroyd, p. 69).

Algures entre 1578 e 1579, a situação familiaraltera‑se,assim,radicalmente.Mas,antesdeche‑garmosaostemposdessamudança,importarecor‑daraquelesqueforamosanosdeaprendizagemdeWilliam, ainda criança.

Na segunda metade do século xvi, durante aqual William cresce, as crianças eram educadasde acordo com uma disciplina muito rígida, emparticular se a confrontarmos com a dos temposque correm. Por exemplo, sempre que um jovemse dirigia a alguém mais velho, deveria descobrir‑‑se.Jáquandosedirigiaaopai,deviacomeçarporo referir como «Senhor». De igual modo, teria deesperarpelapresençadosmaisvelhosàmesa,algonão muito distante de nós, direis. Esclareça‑se,porém,que,nãoraro,acriançadeveriaficardepédurante a refeição.

O dia começava pouco depois das 5 da manhã.Apóster‑selevantado,acriançadiziaassuasora‑ções, lavava a cara e as mãos e penteava‑se. Emseguida ia ao encontro dos pais, ajoelhando‑se àesperadasuabênção.Sódepoistomavaaprimeirarefeição do dia (Ackroyd, p. 43).

Aos 6 anos, William foi para a escola, a «NovaEscola do Rei», em Church Street. Ali chegariadiariamente às 6 da manhã, durante o Verão, eàs7,duranteoInverno.Asaulasdecorriamdurante

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toda a semana, excepto ao domingo; no entanto,isso não significava que este dia fosse apenas delazer,jáqueeraexigidoaosjovensquefalassemnaescoladostemasqueouviamnosermãodominicalproferido pelo pastor, neste caso Henry Heicroft.Heircroft seria uma das personalidades de relevoquepassariaporStratford,oqueseráatestadopelofactodeterpertencidoàdirecçãodaFaculdadedeSt. John, em Cambridge.

O conhecimento da Bíblia era, deste modo,uma realidade cultural determinante, e a igrejaum espaço de aprendizagem. Com efeito, a partirdos 5 ou dos 6 anos, a criança deveria assistir aossermões e às homilias, as quais eram aprovadaspela rainha e pelo seu Conselho Privado, e divul‑gavamasdoutrinasdaIgrejaedoEstado.NoLivro das Homilias,publicadoem1574,há,porexemplo,uma oração «Contra a desobediência e a rebeliãopremeditada».Estashomiliaseram,assim,funda‑mentalmente, lições de boa cidadania isabelina,que mais tarde não deixariam de ecoar nas peçashistóricas de Shakespeare (Ackroyd, p. 51).

Àchegadaàescola,oprofessorfaziaachamada.Quando ouvia o seu nome, a criança respondia«adsum». Seguiam‑se as orações, o cântico de umsalmo e, por fim, as lições. Depois de uma pausapara uma pequena refeição, as aulas prosseguiamatéàhoradoalmoço,apósoquecontinuavamatéàs 17 horas, com um pequeno intervalo de quinzeminutos durante o qual as crianças podiam brin‑car.Asaulasexigiamessencialmenteumtrabalhode memorização: cada aula da parte da manhãtinhadeserrepetidapelosalunosnodiaseguinte;

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à sexta‑feira, as aulas da semana tinham de sersabidas de cor.

Embora não tenha sobrevivido documentaçãoespecíficasobreaestruturacurriculardaescoladeStratford,estaeraidênticaemtodasasescolasdoperíodoTudor,peloqueéfácildesvendaraquelasque terão sido as diferentes etapas educativas dojovem William.

O percurso educativo estava dividido em qua‑tro níveis. O 1.º era destinado aos mais jovens,designados «Petits», que ali permaneciam atéserem capazes de ler correctamente. No 2.º nívelensinava‑se uma Introdução à Gramática. No 3.ºaguardavam‑nos os textos clássicos, como, entreoutros,asFábulasdeEsopo,ospoemasdeVirgílio,asEpístolasdeTúlio,ouaindaexcertosdramáticosde Terêncio. Este nível compreendia o ensino daEscrita;emLatim,claro.Umdosexercíciosconsis‑tia na escrita de cartas, ainda que muito simples,tendo como modelos as de Cícero (Ad familiares)easdeErasmo(De conscribendis epistolis). Impor‑ta lembrar que o ensino epistolar permitia, alémdisso, a introdução naquela que, anos mais tarde,seriaumdosfeitosmaioresdeShakespeare:aartedo solilóquio. No 4.º nível os alunos eram inicia‑dos nas regras da prosódia, para além de fazeremexercícios repetidos de tradução e de retroversãoentre Latim e Inglês.

As aulas eram ensinadas em Latim nos doisúltimos níveis. Esperava‑se também que osmelhores alunos abordassem tópicos em Latim,tendo os outros colegas como destinatários.Concebiam‑se igualmente pequenas dramatiza‑ções, pelo que essa poderá ter sido a primeira

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experiênciadepalcodeShakespeare(Bate,pp.83,100e116).Porseuturno,asaulasdeRetóricaini‑ciavamosjovensnaartedarecitação,aqualdeviaser feita de pé, expressando a emoção desejada.Nestasaulas,oprofessordeviaensinarosalunosa elaborar argumentos a partir dos exemplosclássicos, a chamada «imitatio».

Poroutrolado,estesargumentosdeveriamserconcebidos a partir da reprodução. Para além deOvídio,tambémCícero,QuintilianoeErasmoeramfontesprimáriasdeensino.Nofinaldaescola,sur‑giamautorescomoVirgílioeHorácio,assimcomoCésar e Salústio, para introdução à História deRoma(Honan,p.56).AtravésdeobrascomoCró‑nicas de Inglaterra, Escócia e Irlanda, de RaphaelHolinshed, os alunos recebiam uma introdução àHistória de Inglaterra.

Contesta‑se, por vezes, a proficiência a níveldo Latim por parte do nosso dramaturgo. Ora,como lembra T. W. Baldwin, os conhecimentosadquiridos nestes níveis de aprendizagem faziamcom que os jovens de então, e Shakespeare emparticular, soubessem mais Latim do que umlicenciado nesta língua numa universidade con‑temporânea(Nuttall,p.57).Refira‑sequeestaeraigualmentealínguautilizadanauniversidade,emOxford e em Cambridge. Com efeito, entre os 7 eos 15 anos, William aprendeu Latim de memóriatodososdias:oestudodaGramáticasignificavaoestudo do Latim, o qual era apenas ensinado aosrapazes;asmeninassóoaprendiamsepertences‑sem à nobreza (Bate, p. 79).

Obviamenterelevantesnestesprimeirosanosforam os professores que então passaram por

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Stratford. Destaca‑se, desde logo, Simon Hunt,que chega à escola local em 1571, acabado dese licenciar em Oxford. Hunt partiria em 1575,tendoprovavelmentecomodestinoosacerdócionaCompanhiadeJesus.Outrosdoisprofessorespassaram então por Stratford, Thomas Jenkinse John Cottom. Ambos de convicções católicasou, pelo menos, no caso de Jenkins, próximodestes círculos, eram igualmente oriundos deOxford. Thomas Cottom, irmão de John, eraum sacerdote jesuíta que seria executado em1582, altura em que John abandona Stratford(Honan, p. 64). A Jenkins dever‑se‑á a iniciaçãodo jovem William nas Metamorfoses, de Ovídio.Igualmente de Ovídio eram estudadas epístolasem verso, enunciadas sob o ponto de vista femi‑nino (Bate, p. 117).

Podemos imaginar assim o jovem William apassartrintaaquarentahorasporsemanaamemo‑rizar, construir frases, estudar gramática, repetirprosa e verso em latim. Recorde‑se que esta nãoeraumaculturadapalavraimpressa,massimumacultura oral, uma cultura em que a voz predomi‑nava,equetinhanospregadores,nossacerdotesenosactoresosseusexpoentesmáximos(Ackroyd,pp. 57 e 59).

Amemóriadestesanosdeaprendizagemecoaráem Canseiras de Mor em Vão, onde Shakespearecria Holofernes, a personagem que é uma sátiraao professor e ao curriculum da sua juventude,baseado, por exemplo, em De Copia, de Erasmo,onde se ensinavam 150 formas de dizer «obriga‑do pela sua carta» em latim (Greenblatt, p. 24).Veja‑se este momento do acto iv, cena ii, em que

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Holofernes exibe a sua «erudição» (a tradução éde Rui Carvalho Homem):

«Ah, bárbaro comentário! E contudo é uma espécie de insinuatio, dir‑se‑ia qua medium, como meio, de explicação de facere, dir‑se‑ia replicação; ou antes de ostentare, mostrar, dir‑se‑ia a sua inclinação, no seu modo rude, não polido, inculto, sem formação, ou antes, iletrado, ou ainda mais, ininstruído,para reiterar o meu hauddreco quanto a um veado.» (P. 88.)

Aeducaçãopressupunhaigualmenteodecoro,aartedesaberescolherapalavracertaemfunçãodocontextoedodestinatárioetambémadesecom‑portar numa sociedade codificada (Honan, p. 21).Pressupunha, além disso, o exercício da virtude.

Durante a infância de William, Stratford seriavisitadaporcompanhiasdeteatroitinerantes,en‑tre as quais algumas das mais famosas do tempo.Comelasvinhamamúsicaeashistóriasdofolclorelocal, ou seja, toda a memória de um tempo quea cultura emergente do cisma henriquino ten‑taria apagar (Honan, p. 33). A par deste folcloredestacam‑seasmanifestaçõesteatraisdecarizre‑ligioso,osMistériosdoCorpodeCristodeorigemmedieval,aindarealizadasquandoWilliamestavana puberdade, apesar da hostilidade protestante.

Em 1569, quando William tinha apenas 5 anosde idade, o pai, então meirinho de Stratford, foiresponsável pelo pagamento a duas companhiasde actores, os Homens da Rainha e os Homens do Conde de Worcester,quealiforamactuar.Aprimei‑ra actuação, habitualmente de entrada livre, era

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conhecidacomoaPeça do Presidente.Pelaprimeiravez, ao colo do pai, William terá então assistido auma peça. Seguir‑se‑iam, quatro anos mais tarde,os Homens do Conde de Leicester. Em 1575 seriaa vez de os Homens do Conde de Warwick e de os Homens do Conde de WorcestervisitaremStratford(Greenblatt, pp. 28 e 30).

Ainda neste ano de 1575, mais precisamenteno Verão, tinha William 11 anos, a rainha visi‑tou o castelo de Kenilworth, que pertencia aoseu favorito Robert Dudley, conde de Leicester,e que ficava a menos de 20 km de Stratford. Aídecorreram inúmeras celebrações, marcadas poruma pompa rara naquelas paragens, e ouvidasa mais de 25 km de distância. O jovem Williamterá,certamente,assistidoaelasnacompanhiadasua família. Importa ter presente que as funçõesdesempenhadas pelo pai ter‑lhe‑iam asseguradoumapresença,aindaquedistante,nasfestividades(Duncan‑Jones, p. 11).

Apardestasrepresentaçõestinhamaindalugarasdosfestivaissazonais,acargodasguildasedasque levavam à cena peças do folclore tradicional(Greenblatt,p.36).Estasrepresentações,comoseucarácter diferenciado, persistirão na memória donosso protagonista, ecoando mais tarde nas suasobras. Peter Ackroyd defende, por exemplo, quea própria noção de ciclo, presente nas suas peçasiniciais, derivará dos dramas cíclicos da Paixão.Ecosmaisexplícitosserãoa«BocadaMorte»,umareferência ao portal do inferno que atemorizavao povo. Por seu turno, o «Porteiro do Inferno»,personagem relevante nos Mistérios, poderá dealguma forma ressurgir na personagem Porteiro

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emMacbeth. Háigualmentecríticosqueapontamecosdestesciclosem O Rei Lear, Otelo e Macbeth,assimcomodaflagelaçãodeCristoem Júlio César eem Coriolano. Poroutrolado,em Péricles,Shakes‑peare pode estar a recuperar a forma do cortejomedieval dos Mistérios (Ackroyd, p. 49). Por seuturno, Sonho de Uma Noite de Verão e O Conto de Inverno ecoam estas atmosferas ancoradas nacultura popular.

Algunsanosdepois,em1579,tinhaele15anos,poderá ter assistido a uma representação de Mi‑lagres em Coventry (Greenblatt, p. 37). ImportatersemprepresentequeShakespearetinharaízesprofundas no campo, que toda a sua família eradaí originária e que aí passou a sua infância e ju‑ventude. Como adiante veremos, a ligação a estesespaços, e a Stratford em particular, será umaconstante ao longo da sua vida.

Não deixa de ser curioso o facto de, em 1579,ser publicado o atlas de Saxton, no qual a Anglia(incluía Inglaterra e Gales; Irlanda surgia à mar‑gem e Escócia era ignorada) era representada emdetalhe,paraoqualcontribuíatambémaexistênciade34mapasregionais.Osentimentodepertençaaum local — a paróquia — coexiste então com a dasua integração num corpo mais global — a nação;comoespaçointermédiosurgeocondado.Daíquevultos deste tempo sejam identificados com osseuslocaisdeorigem:Shakespeareeraumhomemde Warwickshire, enquanto Sir Walter Raleigh eFrancisDrakeoeramdeDevonshire.Acorografia,forma de expressão intensamente desenvolvidapelos isabelinos, sinaliza esta tensão identitáriaentre o local e o nacional.

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Significativamente, Shakespeare seria o pri‑meiro autor dramático do seu tempo a localizarcenas de peças suas em Warwickshire e Glouces‑tershire:«OquediabofazestuemWarwickshire?»,pergunta o Príncipe Hal a Falstaff numa cena naestrada entre Coventry e Sutton Confield (Henri‑que VI, parte 3). Cenas idênticas ocorrem na 1.ª e2.ªpartes de Henrique IV. Será assim com justezaqueJonathanBateafirmaqueShakespearecomeçaainventaraInglaterraprofunda(Bate,pp.29‑31).

Foiigualmenteporvoltados15oudos16anosqueteráconhecidoAnneHathaway.OsHathaways,de Shottery, localidade próxima da floresta deArden, e região conhecida pelo elevado númerodenãoconformistasedefamíliascomsacerdotesjesuítas,tinhamumarelaçãodeproximidadecomos Shakespeare havia vários anos; atestam‑na osregistos de pagamentos de dívidas de RichardHathaway a outras pessoas, que terão tido Johncomo fiador. Ora, apesar de seguir os ritos daIgreja Anglicana, Richard Hathaway nomeou noseu testamento vários católicos, o que poderáser um sinal da sua proximidade destes círculos.

Anne, que tinha seis irmãos, um dos quaisvinte e três anos mais jovem do que ela, era filhade Joan, primeira esposa de Richard. Acerca delapouco mais se conhece, excepto o facto de tersidoelaprópriaaamamentarosfilhos,algoqueéreferidonoseuepitáfio,provavelmenteescritoem1623peloseugenro,oDoutorJohnHall(Duncan‑‑Jones, p. 26).

Erahabitualqueosjovenssaíssemdaescolaporvolta dos 15 anos, pelo que terá sido nessa alturaque William concluiu os seus estudos. O destino

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naturalseriaodeajudaropainoseuofício;comoacimareferi,odeluveiro.Outrodestinoigualmentepossívelterásidoodemestre‑escola,algoqueseriasugerido,jánoséculoxvii,porJohnAubrey,nasuaobra Breves Vidas. Aubrey refere ter obtido estainformaçãoatravésdo«Sr.Beeston».Ora,WilliamBeeston era um actor, filho de um outro actor,Christopher Beeston, que trabalhara na mesmacompanhiadeShakespeare.Trata‑se,portanto,deuma fonte algo fidedigna.

Já anteriormente, numa trilogia de peçaspublicada em 1606 sob o título de O Regresso ao Parnasso,umapersonagembaseadaemShakespe‑are, Studioso, era uma paródia do mestre‑escolaque ensina latim às crianças no campo. A diver‑sidade destas fontes de alguma forma consolidaa eventualidade deste rumo. Entre os locais ondeele poderá ter ensinado surgem Berkeley Castle,em Gloucestershire, Tichfield, em Hampshire, e,maisprovavelmente,oLancashire(Ackroyd,p.73).Neste último caso, é provável que William tenhatrabalhado na casa de Alexander de Hoghton, jáque um nome muito semelhante ao seu, WilliamShakeshafte, surge nos registos familiares coevos(Honan, p. 61). Entre 1570 e 1580, este poderá tersido, portanto, o seu destino provável.

A comprovar‑se a sua presença na casa deAlexander de Hoghton, um outro elo se insinua,o que o ligaria a Lady Hesketh, uma nobre deconvicçõescatólicaseamigadosHoghton,aquemumShakeshaftfoiporelesrecomendadoem1581.Após a morte deste nobre, Shakeshaft e Gillom, ooutronomequeaelesurgeassociadonosregistosfamiliares, poderão ter integrado o conjunto de

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actores que trabalhavam sob os auspícios de SirThomasHesketh,emRuffordHall,asuldorioLea.Comefeito,trêsdassuaspeças,a2.ªea3.ªpartesde Henrique VI e Tito Andrónico, evidenciam oseu conhecimento das paisagens do Norte de In‑glaterra(Honan,pp.68‑69).ASirThomaspoderáigualmentedever‑seasuaposteriorligaçãoaLordeStrange, um nobre católico ou criptocatólico degrandespossesedenãomenosinfluênciapolítica.Aelesedeveopatrocíniodacompanhiaconhecidacomoos Homens do Lorde Strange,àqualShakes‑peareteráestadoligadoenquantopermaneceuemHoghtonTower.Estacompanhiatinhaporhábitofazer digressões pelo campo, tendo igualmenteactuado em Londres.

É praticamente consensual que Shakespeareterá tido alguma experiência de palco antes dechegar a Londres onde foi mencionado devido à«excelente qualidade que manifesta». Esta expe‑riência poderá, assim, ter sido obtida junto dos Homens do Lorde Strange. Este argumento ganhamais força devido à descoberta de uma cópia dasacima mencionadas Crónicas de Inglaterra, Escó‑cia e Irlanda, de Raphael Holinshed, que seriamnucleares, em particular, para muitas das suas,peças históricas. A cópia estava profundamenteanotada pela mão de alguém que, segundo es‑tudos grafológicos, seria ainda jovem. Acresceo facto de existirem muitas semelhanças entreaquela caligrafia e a que é reconhecidamente daautoria de Shakespeare. Ora, esta cópia estava naposseconjuntadeThomasHoghtonedeThomasHesketh, o que poderá enfatizar toda uma teia deconexõesqueenvolvemumtempodasuavida,um

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círculo ligado ao catolicismo e, obviamente, umaexperiência teatral.

Tem sido igualmente aventada a hipótese deWilliam ter tido alguma prática como notário.Esta hipótese é fundamentada por paleógrafos,segundo os quais a sua caligrafia e, em particular,a sua assinatura denunciam um treino a nívelde escrita legal. Uma dessas assinaturas — «WmShakspere»—surgenumaobrajurídica,intituladaArchaionomia, com a tradução em latim de legis‑lação saxónica (Ackroyd, pp. 74‑81).

Todas estas hipóteses apontam para o factode, entre os 15 e os 16 anos, William ter passadoalgum tempo longe de Stratford. Ainda em 1581,poucoantesdoseu18.ºaniversárioenuncadepoisdeAgosto,numaalturaemqueSirThomasestavapreso sob acusação de ser incapaz de suprimirpráticas «papistas» nos seus domínios, WilliamteráregressadoaStratford.EmNovembrode1582erajádoconhecimentofamiliarasuarelaçãocomAnne Hathaway.

Segundosepodeconstataratravésdosregistosparoquiais de Stratford, entre 1570 e 1630, trêsquartos das pessoas casavam entre os 20 e os30anos,sendoaidademédia24anos.Noentanto,a diferença de idades entre eles e o facto de eleser muito mais jovem do que ela — William tinha18anos, enquanto Anne tinha 26 — era pouco co‑mum. Várias hipóteses são assim avançadas paraeste casamento pouco habitual e algo apressado.Ter‑se‑á este devido a uma paixão consumadademasiado cedo? Ou a um acordo envolvendointeresses familiares? À semelhança de muitosoutrosaspectosenvolvendoavidadeShakespeare,

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a resposta a estas questões ficará provavelmentepara sempre envolta em mistério.

A 27 de Novembro de 1582 surge o registode um casamento entre «Willelmum Shaxperee Annam Whateley de Temple Grafton». Apesarda polémica suscitada pela diferença de grafia doapelido, algo de bastante comum na altura e que,comovimos,sucedeucomopróprioShakespeare,parecem haver poucas dúvidas de que se tratada mesma pessoa. Já o facto de o casamento tersido registado na paróquia de Temple Grafton enão na da noiva, Shottery, que ficava a cerca de4 km dali, não obtém uma resposta concludente.MuitoprovavelmenteagravidezdeAnneaquandodo casamento terá estado na origem dessa opção(Duncan‑Jones, p. 22).

A proclamação de banhos estava proibidadurante o período do Advento, entre domingo,2 de Dezembro de 1582, e o 8.º domingo da Epi‑fania, 13 de Janeiro de 1583. Consequentemente,é provável que estes tenham sido proclamadosna igreja a 30 de Novembro, dia de St. Andrew.O casamento ter‑se‑á realizado no dia seguinte(Hanon, pp.83‑84), na tal pequena comunidadeque dava pelo nome de Temple Grafton.

PorqueopaideAnnetinhajáfalecido,estaterásidoacompanhadaporFulkeSandellsouporJohnRichardson.Anoiva,decabelossoltos,ficavaàes‑querdadonoivo,assimlembrandoaorigemdeEvanumacostelaesquerdadeAdão,demãosdadas,umsímbolo da sua união. O anel era abençoado comáguabenta,apósoqueonoivoocolocavanoquar‑to dedo da noiva, visto, segundo se cria, ser deleque fluía a veia que iria culminar no coração. Ao

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mesmotempo,osacerdoteproclamava«In nomine Patris, in nomine Filii, in nomine Spiritus Sancti, Amen.» Todo este cerimonial decorria à entradada igreja, só então o casal entrava, se ajoelhavae participava da missa nupcial. Por fim, o gruporegressavaàcasaondeteria lugaraboda.Haviaohábitodeoferecerluvasaosconvidados,oque,nocasodeWilliam,nãoteráconstituídoproblemademaior (Ackroyd, p. 89).

EmDezembro,ocasalestariajáavivernacasapaternaemHenleyStreet,comoera,aliás,habitualsuceder.Entretanto,persistiamastensõesreligio‑sas. No ano do seu casamento, Cottam, irmão doantigo professor de William, é enforcado. Igualdestino estava reservado a Robert Debdale, umsacerdote jesuíta originário de Shottery.

Em Maio, a companhia de David Jones, primoem 1.º grau de Anne, actua em Stratford duranteo Pentecostes, um período de celebrações e festi‑vidades que envolvia jogos vários, dança, músicae, naturalmente, representações dramáticas. Estaseria, contudo, apenas uma de entre muitas queali,então,actuaram.AmaisfamosaseriaaligadaaLorde Worcester que contava com um promissortragediógrafoquedavapelonomedeEdwardAlleyn.Um mês depois da sua actuação, nasce Susanna, aprimeira filha do jovem casal. Quando a meninafoibaptizada,a26deMaiode1583,essenomeeramuito popular, quer por conotações bíblicas querpelonúmerodepeçasenvolvendooseunome,maisde uma dúzia, a mais famosa das quais, Susanna,de Thomas Garter, havia sido publicada em 1578.

Importa recordar que as actividades teatraisnãoerambemaceitespelasociedade,sendomuitas

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vezesosactoresvistosoracomomerosvagabundosoracomoindivíduosdereputaçãoduvidosa,econ‑sequentementeobjectodeostracismoporpartedascomunidades que visitavam. No entanto, tambéma este nível, estes eram tempos de mudança. Em1559, poucos anos antes, portanto, de William ternascido,arainhaIsabelpromulgaraumdecretoau‑torizandoosgrupositinerantesaactuarmedianteuma autorização prévia do presidente da Câmaraou do Juiz de Paz locais.

Além disso, o patrocínio dos nobres funcionavatambém como forma de legitimar esses grupos.RobertDudley,condedeLeicester,patrocinavaumapequenacompanhiaquepercorriaopaísequeterápassado por Stratford na infância de Shakespeare.Em 1574 receberam uma autorização régia paraactuarem em Londres, sob a liderança de alguémque,tambémelepossivelmentenascidoemStratford,viria a desempenhar um papel importante na vidadeShakespeare,JamesBurbage(Bate,pp.20e23).

Duranteoanode1583,Williamterátrabalhadono negócio das luvas com o pai. A 2 de Fevereirode 1585 são baptizados os dois gémeos, Hamnet eJudith, muito provavelmente numa homenagemaos amigos do casal Hamnet e Judith Sadler,donos de uma padaria na esquina de High Streetcom Sheep Street. Quando, por seu turno, estecasal teve um filho, deu‑lhe o nome de William.Tendo em conta a data de nascimento dos gé‑meos, é provável que Shakespeare tenha ficadoem Stratford até, pelo menos, ao Verão de 1584.Depois terá partido para Londres. Seguem‑se oschamados«anosperdidos»,aquelesquedecorrementre 1585 e 1592.

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ApartidadeWilliamparaLondresterásurgidona sequência de contactos estabelecidos com ogrupodeactoresdeLordeStrange.Outrahipótesedecorre da passagem por Stratford, em 1587, dos Homens da Rainha,osquais,naaltura,precisavamde colaboradores, já que um dos actores, WilliamKnell, tinha sido assassinado a 13 de Junho emThame,umapovoaçãopertodeStratford,duranteumalutacomoutroactor,JohnTowne(Greenblatt,pp. 161‑162).

1587 terá sido o melhor ano a nível de repre‑sentaçõesteatrais,emStratford,duranteoreinadoda rainha Isabel, pois entre Dezembro de 1586 eDezembrode1587, pelo menoscinco companhiaspassaram por ali. Entre estas destacava‑se, natu‑ralmente, os Homens da Rainha. Com efeito, logoapósasuacriação,acompanhia entrouemdigres‑são, passando por Bristol, Norwich, Cambridge eLeicester.Asdigressõesdecorriamhabitualmentedurante o Verão e no Inverno dava‑se o regressoa Londres. Começavam, então, por actuar em lo‑cais públicos, ficando reservadas as actuações nacorte para o período entre finais de Dezembro eFevereiro.

Devido ao prestígio que lhes advinha do factode serem protegidos pela rainha, eram bem re‑cebidos em qualquer local por onde passassem,contrariamenteaoquesucediacomoutrosgruposde actores. Entre as peças por eles representadasencontravam‑seAs Famosas Vitórias de Henrique V,Rei Lear, O Difícil Reinado do Rei JoãoeA Verda‑deira Tragédia de Ricardo III.Otempoencarregar‑‑se‑ia,contudo,deimortalizarasqueShakespeareescreveu.Noentanto,importaassinalarqueobras

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comnomesidênticosjáexistiamantesdeelepoderter‑sejuntadoàcompanhiaquandoelapassouporStraftfordem1587.Shakespearetrabalharia,assim,sobrehistóriasjáexistentes;históriasqueele,como seu génio, reescreveria.

Alguns séculos mais tarde, corria o ano de1810quandoamulherdeumtrabalhadorruraldeStratford que estava a trabalhar no campo, pertodaigreja,encontrouumaneldeouronoqualsur‑giamasletras«WS»separadasporumlaço.Asuaorigemremontavaaoséculoxvi,eumantiquárioconcluiu que «nenhum outro habitante de Stra‑tford daquele tempo, à excepção de Shakespeare,poderia ter sido o dono daquele anel» (Ackroyd,pp. 86, 98‑99).

Deixemos, então, para trás os seus primeirosanos e os seus mistérios, e preparemo‑nos para oreencontrarnaazáfamadagrandeurbe.Prossiga‑mos, então, para Londres.

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À descoberta da urbe

Aludinocapítuloanterioraoschamados«anosperdidos», aqueles que decorreram entre 1585 e1592. Com efeito, não são conhecidos registos dachegadadeShakespeareaLondresnesseespaçodetempo. Existe, contudo, uma referência ao nossodramaturgo, datada de 9 de Outubro de 1589, noâmbitodeumprocessodetribunalemWestmins‑ter, no qual ele terá sido testemunha. Apesar deser uma referência apenas, ela tem a importânciade confirmar a sua presença em Londres no finalda década (Bate, p. 314).

No entanto, independentemente da data emque terá cruzado as muralhas da cidade pela pri‑meira vez, uma coisa é certa, nessa altura viu‑seconfrontadocomumaazáfamaurbanacomojamaispresenciara.Desdelogo,asmultidões,muitodife‑rentes, como é óbvio, dos pequenos aglomeradosno mercado em Stratford ou mesmo durante ascelebrações sazonais que ali tinham lugar. Nemmesmo a multidão que se reuniu para assistiràs festividades que tinham decorrido em 1575

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aquando da passagem da rainha pelo palácio doseu favorito, Robert Dudley, se poderia compararàquilo que agora presenciava.

Comumapopulaçãodecercade200000pessoas,apenas Nápoles e Paris suplantavam a Londres deentão.Paraalémdocentropolítico,administrativo,comercial e cultural do reino, este era também umimenso espaço de encontro multicultural. Em pe‑quenascomunidades,aliviviamjudeusportugueseseespanhóis,franceseseholandeses.Abundavamaslojasdosmaisvariadosartífices,ruasinteiraseramhabitadasporprofissõesespecíficas.Emborasitua‑dos no exterior das muralhas da cidade, não eramrarososbordéis,enquantoastavernasproliferavampor toda a malha urbana. Londres era, além disso,uma cidade particularmente violenta. Mais gentealimorriadoquenascia,enãonecessariamentedemorte natural.

O Tamisa e a ponte de Londres eram signosde toda essa azáfama. Por seu turno, a Torre deLondresrepresentavaumamemórianacional—emRicardo II Shakespeare referir‑se‑á ao mito, ensi‑nadonosbancosdaescola,segundooqualelateriasidoerguidaporJúlioCésar—eapresençadeumpoder político, para além da banal celebração decasamentos,oespaçodestinadoaoencarceramentode traidores. Também Westminster, pela ligaçãono imaginário popular dos monarcas ingleses aopríncipeBrutusquecombateunaguerradeTróia,participavadessadimensãomítica(Honan,p.98).

WilliamterácertamenteguardadonamemóriaaprimeiravezquepassoupelapontedeLondres.Alieramexibidasascabeçasdosmembrosdosgru‑pos sociais mais elevados, nomeadamente gentis‑

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‑homens e nobres, que haviam sido executadospor traição. Uma forma peculiar de dar crédito ànobreza,conceda‑se.Corriaoanode1592quandoum visitante estrangeiro ali contou 34; outro, em1598,contoumaisde30.Masnãoseriaapenasesteespectáculomacabroqueoterásurpreendido.Comefeito, entre essas dezenas de cabeças ele poderáterreconhecidoadeJohnSommervilleeadeum,ainda que afastado, parente seu, Edward Arden(Greenblatt, p. 173).

Aolongodotempo,Shakespearefamiliarizar‑se‑‑ia,porém,comacidade.Emdiferentesmomentosda sua vida viveria em Bishopsgate, Shoreditch,Southwark e em Blackfriars. Conhecido dos seusvizinhos e daqueles que ali moravam, e reconhe‑cidoportodososqueenchiamosteatrospúblicos,não seria, de modo algum, uma pessoa anónima.JohnAubreyterácolhidootestemunhodafamíliaBeeston,segundooqualeleeraespontaneamenteespirituoso e senhor de uma «bonita figura».

Apesar do elevado número de habitantes e dasua diversidade social, esta era uma sociedadeprofundamente codificada, cada indumentáriaexibindooestatutosocialeafortunadoseudono,ouasuaausência.Atravésdela,erapossíveliden‑tificar grupos sociais, dos puritanos à burguesiamercantil, dos diferentes ofícios e respectivosaprendizes, às prostitutas. Além disso, era difícila alguém tentar assumir um estatuto superior aoseu,poisquemnãopossuíaumtítulonobiliárquiconão podia usar a indumentária de um nobre.

Por seu turno, o Segundo Acto do Parlamentode1572,sobrea«puniçãodevagabundos»,esclare‑ciaqueentreestesestavam«actoresdeinterlúdios,

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&menestréis,nãopertencendoanenhumbarãodoreinoouaoutrapessoademaiorgrau».Noentanto,quando Shakespeare chegou a Londres, crescia aprocura do teatro, havendo vários espaços queacolhiaminúmerasrepresentaçõesteatrais:pátiosde estalagens, ou outros com galerias, poderãoter sido os primeiros teatros. Além destes locaisimprovisados havia ainda estruturas onde, inde‑pendentementedestesespectáculos,serealizavamcombates e as populares rinhas de ursos, às quaisa rainha Isabel tinha o hábito de levar os seusconvidados estrangeiros (Ackroyd, pp. 109, 114,116, 124‑125).

EsteimpressionantemicrocosmourbanoseriaamiúdeconvocadoporShakespearenassuaspeças.StephenGreenblattconsidera,aliás,quetalcomoÉfesoemComédia de EquívocosretratamaisaLon‑dresisabelinadoqueaquelacidadedaÁsiaMenor,de igual modo, a Inglaterra medieval, na 2.ª partedeHenrique VI,teriamenospresenteaalteridadedopassadodoqueasruaseoslugaresfamiliaresaShakespeare.Concluiassimestereputadoensaístaque, mesmo quando a sua cena é Roma, Éfeso,Viena ou Veneza, o ponto de referência urbanade Shakespeare era sempre Londres (Greenblatt,pp. 169‑170).

DevidoàimensadiversidadesocialdaLondrescoeva e à necessidade de replicar em palco per‑sonagens nobres, facilmente se compreende queuma boa parte do orçamento das companhiasteatrais fosse consagrada à aquisição do guarda‑‑roupa.Acidadeera,afinal,tambémelaumteatro.Aprópriarainhadeclarara:«Nós,príncipes,écomose estivéssemos em palco à vista do mundo.» Por

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seu turno, Maria, Rainha dos Escoceses, haviaconsideradoque«oteatrodomundoémaisamploque o reino de Inglaterra». Deste modo, quandoJacquesafirma,emComo Vos Aprouver,que«todoo mundo é um palco», ele estava a reproduzir umlugar‑comum do Renascimento (Ackroyd, pp. 110e 119).

DevidoàacçãodeJamesBurbage,umactorquemais tarde integraria o núcleo íntimo de Shakes‑peare e que pertenceu à companhia patrocinadapeloduquedeLeicester,surgiuoTeatro,umnovoespaçoderepresentaçãonazonanortedacidade.Doisanosapósasuacriação,haviarepresentaçõesregulares em cerca de oito espaços criados para oefeito. A designação, derivada do latim theatrum,traziaàmenteosanfiteatrosdaAntiguidadeClás‑sica. Ora, importa recordar que a noção de teatrocomo a temos hoje em dia não existia ainda naaltura;daíqueeletivessesidoatacadoapartirdopúlpitopelofactodese«assemelharaovelhoteatropagão de Roma» (Greenblatt, p. 183).

EisadescriçãodestesespaçosqueLuizCardimnos oferece em Os Problemas do «Hamlet»:

«Imitados dos pátios das estalagens, onde as companhias profissionais primeiro se apresentavam, eram como eles a céu aberto, e rodeados pelas ga‑lerias, também abertas, que nas estalagens davam acesso aos quartos, e aqui serviam para os especta‑dores de mais categoria.

Encostado a um dos lados erguia‑se um amplo estrado, sobre o qual deambulavam e declamavam os actores, rodeados por três lados pelo público; não havia assim arco de proscénio nem pano de boca;

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mas na galeria do fundo abria‑se um ‘palco interior’, com cortinas que se corriam quando era usado para representar uma sala, uma caverna, um túmulo, etc.; seria aí também que Polónio se escondia para espiar. E por cima deste havia um ‘palco superior’ onde se imaginavam, por exemplo, os muros duma cidade, uma torre, o balcão de Julieta, — e, possivelmente, a esplanada de Elsenor. No filme Henrique V […] de Olivier, vê‑se, ao princípio, o Teatro do Globo, onde a peça se apresentou em 1660, com todos estes pormenores.

Quanto a cenários pintados, se acaso existiam, eram muito rudimentares; mas havia certa riqueza de adereços, por vezes apenas simbólicos, e que eram colocados e removidos à vista de todos [...] Só na indumentária havia sumptuosidade.» (Cardim,pp. 13‑14.)

Paraalémdeumdivertimento,oteatroeratam‑bémumnegócioqueprosperava.Porumdinheiro,assistia‑seaoespectáculoempé,nopátio;pordoisdinheiros,tinha‑seacessoaumlugarsentadonasgalerias à volta do palco, protegido do sol ou dachuva; por três dinheiros, tinha‑se direito a umaalmofadanumcamarote,numnívelmaisbaixodasgalerias. O sistema de pagamento significava queo primeiro dinheiro era destinado aos actores e osegundo e o terceiro aos donos do espaço.

Umas centenas de metros mais a sul, em Mo‑orfields,surgiuem1577o Cortina,designaçãoquenão se devia ao facto de ele possuir uma cortina,mas sim à parede que protegia o palco do vento.A sua estrutura era idêntica à do Teatro. Nosanos 90 este espaço acolheria aquela que seria

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entãoacompanhiadeShakespeare, os Homens do Camareiro‑Mor.

Um destes espaços era o Rosa — palavra que,para além da conotação heráldica, era calão paraprostituta —, um teatro prefabricado. Este teatroera financiado e dirigido por um importante em‑presário da mais nova geração, Philip Henslowe.Os seus diários e registos de pagamento sobrevi‑veram,permitindo,assim,terumapercepçãoquerdo quotidiano quer do impacto cultural do teatrono seu tempo.

Escavações realizadas em finais da década de1980 revelaram a sua estrutura poligonal. Estadescoberta arqueológica permitiu identificar commais rigor a estrutura dos teatros isabelinos, atéentão conhecidos apenas através de relatos e deum desenho de duvidoso rigor do Cisne (Honan,p. 104). O Rosa tinha capacidade para acomodarcerca de 600 espectadores no pátio central e porvoltade1400nasgalerias,algumasdasquaisfica‑vamacercade10mdopalco,oquepermitiaumarelação de profunda proximidade com os actores.

QuandoShakespearechegouaLondres,aacti‑vidade teatral estava em franco crescimento. Em1587,porexemplo,o Rosaenchiacomasexibiçõesde Tamburlaine, uma peça de um dramaturgo emascensão,ChristopherMarlowe,levadaàcenapelacompanhia os Homens do Lorde do Almirantado.

George Peele, mestre de Artes em Oxford, eJohn Lyly, que alcançara o seu maior sucessoem 1588 com Endimião, eram, então, referênciasfundamentaisnacenateatralinglesa.Estaassistiaao aparecimento de dois jovens dramaturgos quedesde1587seencontravamaoserviçodos Homens

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do Lorde Strange, Thomas Kyd e o já mencionadoChristopher Marlowe, que, respectivamente, com A Tragédia Espanhola e Tamburlaine abriam no‑vosespaçosnoteatrocontemporâneo.Aprimeiradestas peças ecoará naquela que terá sido umaprimeira versão de Hamlet, da autoria do jovemShakespeare. Sabe‑se hoje, devido ao testemunhode Nashe, que ela continha a famosa expressão«ser ou não ser», assim como um fantasma queclamava por «vingança». Já a segunda terá sidodeterminanteparaocursoqueaspeçashistóricasiriam seguir, em particular os ciclos históricos deShakespeare.

Shakespeare seria devedor de Lyly em peçascomo Canseiras de Amor em Vão e Sonho de Uma Noite de Verão. Por seu turno, Peele, famosopela dimensão cerimonial e ritualística dos seusespectáculos, tornar‑se‑ia seu amigo logo apósa sua chegada a Londres. A sua influência eco‑ará no primeiro acto de Tito Andrónico, ondeShakespeare tenta emular a chamada «tragédiade vingança». A sua dimensão cénica inspirariao primeiro desenho conhecido de uma produçãoshakespeariana, da autoria de Henry Peachman.Ignora‑se,porém,seestaterásidofeitaapartirdeuma representação que efectivamente teve lugarou se será uma reconstrução apenas imaginada(Ackroyd, pp. 136, 139, 149 e 158).

Em finais da década de 1580 e nos primeirosanos da que se lhe seguiram, as companhias leva‑vamàcenaseispeçasporsemana,vistoactuaremaolongodeseisdiasedecadadiaserconsagradoa uma peça diferente. Os Homens do Lorde do Almirantado, por exemplo, que exibiram trinta e

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oito peças, chegaram a levar à cena vinte e umanuma só temporada. Por seu turno, os Homens da Rainha representaram em diferentes ocasiõese temporadas no Boi, em Bishopsgate Street, noBelsavage, em Ludgate Hill, e ainda no Teatro eno Cortina.

Os Homens do Lorde Strange actuavam emCrossKeys,emGracechurchStreet,etambémno Teatro e no Rosa. Os Homens da Rainha viram,entretanto,asuaposiçãodedestaqueserusurpadapelos Homens do Lorde do Almirantado e pelos Homens do Lorde Strange. Terá sido nesta alturaque Shakespeare se juntou a esta companhia. Embreve ela assumiria um papel predominante nacena teatral londrina, passando, inclusivamente,a contar com os serviços do mais reputado actorda altura, Edward Alleyn, que antes era o actorprincipal dos Homens do Lorde do Almirantado.Apardestascompanhias,haviaaindaaquelasqueeram formadas apenas por rapazes. As Crianças de São Paulo, por exemplo, actuavam no períme‑tro da catedral, enquanto As Crianças da Capela Real usavam as instalações do velho mosteiro deBlackfriars—Frades Negros,juntoaorio(Ackroyd,pp. 132‑133 e 141).

Shakespeareterácomeçadooseuenvolvimentoregularcomomundodoteatro,comocontratado,aos 23 ou 24 anos, pois não existem registos seusnas companhias de teatro antes de ele começara ser detentor de quotas, o que sucedia apenasquandooactorhaviaadquiridoumacertareputa‑ção profissional. Cada companhia tinha entre 8 e12actores,osquaispodiamsertambémaccionistas.A este número acrescentar‑se‑iam ainda alguns

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aprendizes jovens e outros contratados, os quaisauferiamdeumsalárioidênticoaodeumpedreirooudeumcarpinteiro.CadaaccionistadosHomens do Camareiro‑Mor,porexemplo,teriadedespenderde 50 libras pela sua parte, após o que passaria ateracessoaos lucrosobtidos,massódepoisdeosoutrosactoresteremrecebidooquelheseradevidoe de terem pago o aluguer do espaço. O estatutode accionista poderia estender‑se igualmenteao espaço, como viria a suceder mais tarde comShakespeare em relação ao Globo.

Cadaactor deveriamemorizar cercade30 pa‑péis,oumesmomais,casotivessemderepresentarpersonagenssecundárias.Calcula‑seque,enquantomerocontratado,Shakespearetenhasidoobrigadoa memorizar cerca de 100 papéis durante uma sótemporada (Honan, p. 110). Por seu turno, cadacompanhia levava à cena entre quinze e vinte pe‑ças,oquenaturalmentesuscitavabastanteprocurade escritores. Entre estes, assumiam particularrelevoaquelesquetinhamumaformaçãouniversi‑tária,comoosacimamencionadosNashe,Greene,Peele,Lodge,ThomasWatsoneJohnLyly,omaisimportante autor da década.

A peça era publicada num pequeno volume,conhecido como «quarto», devido ao facto de cor‑responder a uma folha dobrada em quatro. Umaediçãomaisvolumosa,ochamado«fólio»,sósetor‑noucomumaníveldeediçãodepeçasdeteatronoséculoseguintecomapublicaçãoem1616dasobrasde Ben Jonson. Sensivelmente metade das obrasde Shakespeare foi publicada no formato quarto.Apenas em 1623, sete anos após a sua morte, viriaa lume um fólio contendo trinta e seis obras suas.

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AssuasprimeirasobrasterãosidoastrêspartesdeHenrique VI,precedendodeimediatoRicardo IIIe Os Dois Cavalheiros de Verona, cuja primeiraversãosurgiuentre1588e1591.Tambémporestaaltura, mais precisamente em 1589, Shakespeareterá iniciado a escrita de uma das mais misterio‑sasvertentesdoseuuniversocriativo,ossonetos.Entretanto,actoresoriundosdosHomens do Lorde do Almirantadojuntaram‑seaosHomens do Lorde Strange, com eles trabalhando durante cerca dequatro anos. Será a estes que Shakespeare terávendido a sua primeira tragédia, Tito Andrónico.Nela, a par da presença dos clássicos — Ovídio,Séneca e historiadores romanos —, sentem‑se osecos de Marlowe e de Kyd, nomeadamente emAaron,evocadordosvilõesdeMarlowe,eemTito,evocador de Hieronimo, de Kyd. A diversidade defontes, todas elas incorporadas numa estruturaautónoma, é algo de original no teatro do seutempo. Igualmente inovadora será a exibição dosofrimentodoprotagonista,numaantecipaçãodeheróisseusposteriores,comoOtelo,TimãoeLear(Honan, pp. 131‑134).

Algo mais deverá, todavia, ser mencionado,os ecos políticos subliminares que podem serdetectados através do nome de uma personagem,Astrea.Comefeito,estafilhadeZeuseraassociadaà justiça, à semelhança, aliás, de sua mãe, Temis.Recorde‑se, porém, que este era também o epíte‑to ao qual a rainha Isabel I era associada, assimsimbolizando a algo transcendente prevalênciada justiça no reino. Ora, proclama‑se na cena iiido acto iv de Tito Andrónico que «Terras Astrae reliquit», ou seja, «Astrea abandona a terra».

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A justiça abandona a terra? Terá Isabel sentidoalguma insinuação nesta declaração?

Comefeito,Tito Andrónicoétambémumapeçasobre os efeitos na sociedade de um governo queagesobumimpulsoautocrático.EspelharáoreinodeSaturninoamonarquiaTudorque,apósosActosde Supremacia de 1534 e de 1559, age segundo opressupostodequeomonarcaé,elepróprio,oder‑radeiroresponsávelpelalei?Shakespearerevelariasempreaolongodavidaumacertacautelaperanteaformacomoassensibilidadespolíticasecoariamnas suas obras, mas isso não significaria que apolítica delas estivesse ausente. À semelhança demuitosoutrosaspectos,eledialogaconnoscosem,contudo,serevelar.Comoadianteveremos,Nuttalldirá que ele é esquivo; e com razão...

Será com os Homens do Lorde Strange que embreve irá actuar na presença da rainha. Entre osvinte e sete actores que integravam esta compa‑nhia, contavam‑se Augustine Phillips, Will Sly,Thomas Pope, George Bryan, Richard Cowley eJames Burbage. Porquê a referência a estes no‑mes?PorqueelescontinuariamaactuaraoladodeShakespeareaolongodetodaasuavida.Sãoestes,aliás,osnomesquesurgemnoacimamencionado fóliopublicadoem1623.Apósumabrevepassagempelos Homens do Lorde Pembroke, acompanhá‑lo‑‑iam, posteriormente, quando transitou para os Homens do Camareiro‑Morecomeleficariam.Umpequenomascoesogrupodecolegasetambémdeamigos (Ackroyd, p. 142).

As já mencionadas três partes de Henrique VIterão sido completadas durante a primeira me‑tade deste ano de 1589. Por esta altura poderá

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ter igualmente iniciado a escrita de Ricardo III,a quarta peça da tetralogia dedicada a esse mo‑mento particularmente relevante da História deInglaterraquefoiodachamadaGuerradasRosas.EstaseriaassimdesignadaporteropostoacasadeIorqueàdeLencastre,cujaheráldicaerafiguradapor uma rosa branca e por uma rosa vermelha,respectivamente. A sua fonte mais importantepara esta sequência histórica seria as Crónicas deHolinshed, originalmente publicadas em 1577, ereeditadasem1587numaediçãoampliada,comasquais,comoreferinocapítuloanterior,haviacon‑tactado na escola. Ao seu manancial informativorecorreria para, pelo menos, treze das suas peças(Honan, p. 138).

Shakespeare inspirar‑se‑ia, também, quer emfontesliterárias,comoArcadia,deSidney,ouFae‑rieQueene,deSpenser,quernoutrasprovenientesdo folclore popular. Como amiúde sucederia aolongo da sua carreira, o nosso dramaturgo soubeabsorvercontributosprovenientesdefontesdistin‑tas e assim criar obras absolutamente singulares.

O tema era polémico e politicamente sensí‑vel visto envolver toda a linha dinástica que iriaculminar no reinado de Isabel. Recorde‑se queRicardo III termina com a vitória e consequentesubida ao trono de Henrique VII. Ora, será comestemonarcaqueseiniciaadinastiaTudoràqualpertence... Isabel I. Além disso, esta disputa nãoestavamuitodistantenotempo,poishaviatermi‑nadoem1485,ouseja,sensivelmenteháumséculo.GualterCunha,quetraduziu,prefacioueanotouatraduçãodestapeçaparaoprojecto«Shakespeareparaoséculoxxi»,enfatizaesteaspecto:«[a]otem‑

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po de Shakespeare […] a dinastia Tudor apareciacomoumasalvaçãoprovidencial,traduzidanofimdaslutasfratricidasdoséculoxvenainstauraçãodeumtempodeunidadenacional,deprosperidadesocial e de afirmação internacional da Inglaterra,ao mesmo tempo que por sua vez o reinado deIsabel era concebido como o ponto culminantedeste movimento ascensional da nação inglesa.»(Cunha,p.9.)Inviamenteassensibilidadespolíti‑cas insinuam‑se no texto.

No entanto, em Ricardo III Shakespeare vaimais além da mera factualidade histórica, no‑meadamente ao criar uma personagem ondeconvergem a tradição e a modernidade, isto é, aabstracção alegórica predominante nas Morali‑dades da sua infância e juventude, e uma versãomoderna de Maquiavel. Além disso, manipula osacontecimentoshistóricos,aproximandonotempoeventos historicamente distantes (o funeral deHenriqueVI ocorre em 1471, a sedução de Annepor Ricardo no ano seguinte, o assassinato deClarence em 1478 e a morte de Eduardo IV em1483), de modo a intensificar o efeito dramáticoe a destacar a acção de Ricardo III.

Seriaexactamentenopapeldestapersonagemque Richard Burbage, filho de James Burbage,apenas com 21 anos terá tido o seu primeirogrande sucesso; um sucesso que, refira‑se, seriaainda lembrado durante os reinados de Jaime I ede Carlos I. Seria igualmente ele que daria corpoaoprimeiroHamleteaoprimeiroOtelo.Tambéma ele dever‑se‑iam as primeiras encarnações deRomeu,Macbeth,Coriolano,Próspero,HenriqueVe António. Richard terá sido provavelmente o

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amigo mais próximo de Shakespeare, o qual, noseu testamento, lhe deixaria uma soma destinadaà compra de um anel. Peter Ackroyd considera,porém,queomelhorsinaldessaamizadeseriamosnomesdadosporBurbageaosseusfilhos,Williame Anne (Ackroyd, p. 183).

Apeçaseriarepresentadano Rosaa3deMarço,tendo ido à cena mais 14 vezes até 19 de Junho.A sua atmosfera, onde se combinam mistério eprofecia, eleva a História de Inglaterra para umnívelnuncaantesvisto.Apeçatornar‑se‑iaassimimensamentepopularcom,factoinvulgarequaseúnico,oitoreimpressõesem quartos,trêsdasquaisapós a morte do autor. A famosa expressão «Umcavalo, um cavalo, o meu reino por um cavalo»,seria objecto de paráfrases irónicas, como a deJohnMarston,nofinaldoséculo,emThe Scourge of Villanie:«Umhomem!Umhomem!Omeureinopor um homem!» (Ackroyd, p. 184).

Não se deve, todavia, concluir que o sucessoobtido pela tetralogia se restringiu a esta peça.ThomasNashereferenoseudiárioque,porváriasvezes, 10000 espectadores choraram perante amorte «do bravo Talbot, o terror dos franceses»,na 1.ª parte de Henrique VI. Os números aquimencionados permitem‑nos inferir ter‑se tratadode uma peça bastante popular. Uma nota sobreelaexistentenoDiáriodeHenslowereferequeelaterárendidoasomaconsiderável,paraaaltura,detrês libras em cada um dos espectáculos iniciais(Duncan‑Jones, p. 65). O actor que representouaquela personagem, provavelmente Richard Bur‑bage, terá sido tão brilhante e eficiente que a au‑diênciaterásentidoasuamorteempalcocomose

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estafosseadopróprioTalbot,nocampodebatalha,duzentos anos antes (Bate, p. 269).

Através de Os Dois Cavalheiros de Verona,Shakespeare decide, entretanto, fazer uma in‑cursão noutro género, onde conciliaria a farsa ea comédia. Devedora de Lyly, a peça exibe umaestrutura sustentada por solilóquios, duólogos eapartes. Ao incorporar influências exóticas estáa ir ao encontro dos gostos do público da época,oquedemonstraaatençãoque,desdemuitocedo,Shakespearecomeçaaprestaraogostodominanteentre as suas audiências (Honan, p. 120). Factocurioso:HaroldBloomdetectanassuasperipécias,emparticularasqueenvolvemSirEglamour,essesentidodehumorquedealgumaformaantecipariao dos Monty Python (Bloom, p. 38 [2]).

Seguir‑se‑á uma peça que, já no século xx,inspirariaomúsicoColePorterparaoseumusicalKiss Me Kate. É ela O Amansar da Fera, prova‑velmente levada à cena na primeira metade de1592 pelos Homens do Lorde Strange. Nesta obraevidencia‑se,desdelogo,aquiloqueNunoRibeiroconsidera ser «a conhecida simbiose de factoresde proveniência diversa que torna especialmentefecundaeversátilaimaginaçãododramaturgoisa‑belino(opersistenteelementopopularemedieval,por um lado, a poderosa sugestão renascentista eerudita, por outro)» (Ribeiro, p. 11) a qual persis‑tiria,aliás,ao longo doseupercursocriativo numconstante processo de revisitação e de reescritade obras anteriores.

Shakespeare dá, assim, os primeiros passosna sua carreira como dramaturgo. SegundoHaroldBloom,«[e]m1592,quandoShakespeare

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tinha 28anos, ele tinha escrito as três partesde HenriqueVI e a sua sequela em Ricardo III,assim como A Comédia de Equívocos . Tito Andrónico, O Amansar da Fera e Os Dois Ca‑valheiros de Verona têm apenas mais um ano.OseuprimeirograndefeitoéoespantosoCan‑seiras de Amor em Vão, possivelmente escritoem1594.Marlowe,meioanomaisvelhodoqueShakespeare, foi assassinado numa taverna a30 de Maio de 1593, aos 29 anos. Nessa altura,tivesseShakespearemorrido,seriapobrementecomparadocomMarlowe…Cincoanosdepoisdamorte de Marlowe, Shakespeare ultrapassara oseuprecursorerivalcomagrandesequênciade Um Sonho de Uma Noite de Verão, O Mercador de Veneza e as duas partes de Henrique VI»(Bloom, pp. 46‑47 [1]).

Embora Shakespeare não tivesse ainda criadoas obras que o imortalizariam, o trabalho que járealizara fazia com que fosse reconhecido entreos seus contemporâneos, nomeadamente entreaqueles que partilhavam o mesmo ofício e, muitoimportante, entre o público.

Entretanto,emfinaisdoVerãode1592apesteassola Londres, dizimando 14% da população eprovocando o encerramento dos teatros. Este en‑cerramentoterásido,todavia,antecipadodevidoaummotimqueterácomeçadojuntoaoRosa.Adatapara o fim das restrições estava inicialmente pre‑vistaparaaFestadoArcanjoSãoMiguel,queterialugara29deSetembro.Noentanto,oaparecimen‑to deste flagelo obrigaria ao seu prolongamentodurante um período de cerca de 20 meses. Umazona que sofreu em particular com a peste foi a

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deShoreditch, ondeShakespeareemuitos outrosactores, como Burbage, residiam.

Mais de 1000 pessoas chegaram a morrernumasósemanaemLondres.AfamíliadeRobertBrowne,porexemplo,umactorqueseencontravaemdigressãopelaAlemanhacomacompanhiadeLorde Worcester, foi dizimada, tendo morrido asuamulher,osseusfilhosetodososseuscriados.

A partir deste surto, as portas das casas ondehaviamsidodetectadoscasospassaramaexibirumcartazcomumgrandecírculovermelhonoseiodoqualselia«Deustenhapiedadedenós».Foiexac‑tamenteestafrasequeNasheusoucomorefrãodoseu poema mais famoso, escrito, aliás, durante osanos da peste (Duncan‑Jones, p. 63).

Apósumbreveperíododereabertura,nofinaldo ano, os teatros voltariam a ser encerrados a28 de Janeiro, devido a uma nova epidemia.

Empartedevidoaestasinterrupçõesforçadas,as digressões pelo país eram algo de habitual noquotidianodascompanhiasteatrais.Duranteestasdigressões, os actores podiam chegar a percorrer40kmpordiaemcarroçasondetransportavamoguarda‑roupaealgunsartifícioscénicos.Asestala‑gensonderepresentavamatrocodeumarefeiçãoe de uma cama, eram, então, o seu abrigo natural(Ackroyd, p. 175).

Os Homens do Lorde Strange, por exemplo,tinham estado em digressão desde 13 de Julho.Destemodo,ainterdiçãoobrigá‑los‑iaaprolongá‑‑la por mais algum tempo. Refira‑se que a vidaem digressão não era fácil, não só devido à re‑lutância com que as trupes eram recebidas nascomunidades por onde passavam, mas também,

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emtemposdepeste,devidoaoreceiodequeestesgrupositinerantesfossemportadoresdaepidemia.Por isso não raro lhes era vedada a entrada naspovoações que encontravam pelo caminho. Comefeito, uma destas companhias chegou mesmo adesaparecerduranteumadigressão,delanãotendosido encontrado qualquer rasto. Entretanto, os Homens do Lorde Strange veriam a sua digressãoprolongar‑sepraticamentedurantetodaasegundametade do ano.

Ocorre, então, a sua breve passagem pelosHomens do Lorde Pembroke, que, por esta altura,partiram em digressão. Embora não se saiba aocerto qual o rumo que tomaram, existe registode uma actuação em Leicester, a qual faria partede uma digressão que abarcaria Coventry. É,assim, legítimo pensar que Shakespeare teriareencontradoasuafamíliaemStratford,nofinaldo Verão.

Que esta companhia começava a gozar de umestatuto especial poderá ser comprovado pelofactodeteremactuadonacorte,perantearainha.O prestígio como actor de Richard Burbage e oeventual sucesso de peças como O Amansar da Fera, Tito Andrónico e das duas peças sobre oreinado de Henrique VI, terá igualmente contri‑buído para o reconhecimento de que começavama ser objecto (Ackroyd, p. 176).

AindaemLondresThomasNashepublicou,emfinaisdeSetembro,umasátiranaqualnãodeixoude elogiar Alleyn, o actor principal da companhiadeLordeStrange,assimcomooactorquedeuvidaaHenriqueVIna1.ªpartedestapeça.Emboranãonomeando directamente Shakespeare, este elogio

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era‑lhe destinado (Honan, p. 153). Como se deum contraponto a estes elogios se tratasse, aindanestemêsdeSetembroShakespeareseriaobjectode um ataque feroz por parte de Robert Greene.Sobaformadeumaparábola,Greenequestionaaqualidade do trabalho do jovem dramaturgo, queacusadeserumcorvoarrivistaevaidoso.Serápro‑vavelmentesobreesteescândaloqueShakespeareescreve nos sonetos 110, 111 e 112. Esta eventualreferênciaassumeparticularrelevovistopermitir‑‑nos deduzir que o autor vai concebendo os seussonetosaolongodeumespaçodilatadonotempo.Do silêncio que envolve a sua vida, este será umsilêncio algo ruidoso que emerge.

Ainda antes do mês de Setembro, inspirando‑‑se na peça de Plauto, Os Menecmos, terá escrito A Comédia de Equívocos. Esta é, todavia, umadatação provável, visto serem várias as hipótesesigualmentedefensáveisparaasuaconcepção(Za‑mith, pp. 8‑9). Park Honan (p. 165) considera queShakespearereescreveotextoclássicoapartirdasuaexperiênciadeStratford,associandoafiguradeEgeu,comosseusproblemasfinanceiros,àdeJohnShakespeare. Nela exorcizará também os ataquesde que foi alvo por parte de Greene.

Igualmente nesta altura terá escrito Canseiras de Amor em Vão que teria como destinatário umaaudiência constituída maioritariamente por estu‑dantes e advogados. À semelhança do que sucedecom as suas peças iniciais, esta é uma dataçãoprovável. Harold Bloom, por exemplo, situa‑aentre os anos de 1594 e 1595 (Bloom, XVI [1]). JáRui Carvalho Homem, apoiando‑se em estudosrecentes, sugere um arco temporal entre 1595

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e 1597, sendo esta última a data imediatamenteanterior à sua primeira publicação em quarto(Homem, p. 7 [2]).

Durante este interregno forçado a nível darepresentação teatral, Shakespeare terá tentadoalargar os seus círculos de amizade e influência(Honan,p.168).Faz,então,asuaprimeiraincursãosistemáticanapoesiaatravésdedoispoemaseróti‑cos,destinadosaleitoresdeambosossexos:Vénus e Adónis e O Estupro de Lucrécia. Vénus e Adónis terásidopublicadonoprincípiodaPrimavera,comobeneplácitodeHenryWriothesley,ojovemcondede Southampton, filho de um católico que haviasido preso três vezes sob acusação de traição. Erapróximo de Essex, favorito da rainha, que algunsanos mais tarde, a 25 de Fevereiro de 1601, seriadecapitado sob acusação de traição.

Shakespeare tê‑lo‑á contactado inicialmentedurante o Verão de 1592, quando o conde tinha18anos.Apesardoseutomcomedido,adedicató‑riasugerequenessaalturaelesjáhaviamtravadoconhecimento.KatherineDuncan‑Jonesconsideraque, durante esse período da peste, Shakespeareterá passado algum tempo em Titchfield, a pro‑priedade de Southampton em Hampshire. Teriasidoassimduranteesteperíodo,istoé,entreJunhode1582,datadeencerramentodosteatros,e18deAbril de 1583, data em que o poema foi registado,que Shakespeare completaria Vénus e Adónis.

As situações narradas em Vénus e Adónis e aspróprias circunstâncias envolvendo as persona‑gensapresentavamváriospontosdecontactocomfactosbiográficosdojovemSouthampton.Nãolheseria,destemodo,difícilreconhecer‑senoretrato

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que Shakespeare fez de Adónis, «a mais bela flordaquelecampo».Embreveestepoematornar‑se‑‑ia o trabalho mais citado do nosso autor. Paramuitosdosseusleitoresteráfuncionadocomoummanualdeseduçãocortesã.Noentanto,umaoutradimensãoseinsinuaaqui,jáqueasuaambivalênciapermite‑nosnelereconhecerumdiscursohomoe‑rótico(Duncan‑Jones,pp.67,72e74‑75).Eassimmaisumapolémicaemergeemtornododramatur‑go, a referente à sua orientação sexual. Seria eleheterossexual, homossexual ou bissexual? Bloomconcluiporestaterceirahipótese;nósdeixamosapolémica em aberto e prosseguimos.

Independentemente destes aspectos, importaacentuar que a existência de um patrono seria uminstrumentofulcralparaasobrevivênciaeconómica,nomeadamente durante os dilatados espaços detempoemqueosteatroscessavamasuaactividadedevido à peste ou a eventuais tensões sociais oumesmopolíticas.Comefeito,Southamptonpoderátê‑lo recompensado monetariamente pelo poema.Segundo Katherine Duncan‑Jones (p. 75), estenobrepoderáter‑lhepagoporeleentre5e10libras.

Para além da sua dimensão como manual de«boas maneiras» na arte da sedução, a sua at‑mosfera algo fantástica que leva alguns autores areconhecerneleumaantecipaçãodogéneroficçãocientífica—olequedetempoenvolvidoestende‑sedesdeadatadenascimentodoautoratéaoanode4609, e a sua vertente erótica, terão certamentecontribuído para o seu sucesso junto do públicode ambos os sexos. Dois anos apenas após a suapublicação inicial, seria citado em poemas deThomas Edwards, Michael Drayton e Thomas

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Heywood (Honan, p. 175) e até ao final do séculoseria objecto de seis reedições, o que confirma obom acolhimento que terá tido.

Já O Estupro de Lucrécia, inicialmente pu‑blicado em 1594 sob o título mais lacónico deLucrécia, exibe uma dedicatória algo efusiva aoLorde Southampton, «O amor que dedico a VossaSenhoria não tem fim», começa por escrever opoeta. Coloca‑se inevitavelmente a questão desaber o que terá acontecido no espaço de tempoque medeia a publicação das duas obras e queterá levado a uma mudança de tom tão profundana dedicatória?

Símbolodacastidadeedavirtudequeocristia‑nismo medievo revisitou, esta narrativa é colhidanasVidas,dePlutarco.AolongodavidadeShakes‑peareseráobjectodeseisedições,oque,umavezmais,comprovaqueopoetafoiconsolidandoumaaudiência própria. Poderá, todavia, questionar‑seoverdadeiroimpactoqueterátidojuntodoleitor,jáque,contrariamenteaoquesucedeucomVénus e Adónis,existemaindahojeemdiamuitascópiasdo poema... por abrir.

KatherineDuncan‑Jones(pp.83e90)considera‑‑o, simultaneamente, uma sequela de Vénus e Adónis e uma contraposição sua, pois, tal comoestepoema,tambémele ébaseadonumaconhecidafonte clássica, e, durante uma boa parte, assumeo ponto de vista feminino. Isto era algo de difícilexecuçãonoteatro,emboraojovemquedeucorpoà personagem da Rainha Margarida, na trilogiade Henrique VI, tenha sido confrontado com anecessidadedecorporizarumasensibilidadepro‑fundamente feminina.

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Tendo em conta o facto de esta ser uma obradedicadaaSouthampton,poder‑se‑ádetectarnelauma dupla vertente: de elogio e de chamada deatenção.Porumlado,Shakespeareelogia‑oatravésdaquele que pode ser o interesse do jovem nobrerelativamente à História de Roma, assim comoao género do «lamento», iniciado em 1592 com«O Lamento de Rosamond», de Samuel Daniel,que estava então em moda. Por outro lado, con‑siderando que o herói é um jovem responsávelpela ruína da sua família e por conflitos a níveldoEstado,podemosvislumbrarneleumalertaaoconde relativamente aos perigos decorrentes daperda do autocontrolo.

À semelhança de outros autores seus contem‑porâneosedaquiloqueeleprópriofariaempeçassuas, Shakespeare recorreu aqui a um cenário ro‑manoatravésdoqualpodiaevocarindirectamenteopresente:O Estupro de Lucréciasitua‑seduranteatransiçãodaMonarquiaparaaRepública; Coro‑lianoduranteaRepública;Júlio Césarnumtempode ruptura política; António e Cleópatra terminacom o início do império; e Tito Andrónico na de‑cadência do império romano (Bate, pp. 335‑336).Recorde‑se que Tácito era então lido e debatidopelaformacomooseumétodohistóricoabordavaadimensãomoralnoquotidianodaacçãopolítica.Ora, importalembrarqueonomedodestinatárioestaria associado ao círculo de Essex.

Após ter liderado uma campanha falhada naIrlanda,comoobjectivodepôrumtermoàrevoltachefiadaporLordTyrone,RobertDevereux,segun‑docondedeEssex,regressariaaLondres.Fá‑lo‑ia,porém,contraasordensdarainha,peloquecairia

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em desgraça. A sua pretensão de voltar a ganharinfluência na corte, levá‑lo‑ia a reunir um grupode nobres com o intuito de afastar Robert Cecil,conselheiroprivilegiadodeIsabelI.Nasequênciada sua tentativa de levantamento popular, seriapreso e, posteriormente, executado. Idênticodestino estaria reservado a outros conspiradores.

Sensivelmentenamesmaalturaemqueescre‑via os seus poemas, Shakespeare terá trabalhadoem Eduardo III, uma peça que não é inscrita noseu cânone, mas que alguns autores considerampoderserdesuaautoria,nomeadamentedevidoàtranscrição literal de um verso seu no soneto 94.Umavezmaisaescritadossonetosvaiemergindonosilênciodotempo.Paraalémdestatranscrição,outras semelhanças podem igualmente ser de‑tectadas com outros instantes dos seus sonetos.Suscitandoidênticasreservassurgeasuaeventualcolaboração na peça O Livro de Sir Thomas More,em cujo manuscrito foram identificadas profun‑das analogias com a caligrafia do autor (Honan,pp.170‑171).

Duranteesteperíodo,evidencia‑se,entretanto,a escrita dos sonetos, um género então em voga equeseráobjectodepolémicaedebateentreoses‑pecialistasaolongodostempos.Osonetotemumaestrutura de argumento que exige uma constantearticulaçãoaníveldotópicotratado:acristalizaçãodaemoçãodeuminstante(Bate,p.201).Permite,deste modo, elaborar intelectualmente uma emo‑çãodeumaformamuitosintética.Masapolémicasurgirá, fundamentalmente, na sequência da suapublicação anos mais tarde, nomeadamente emtorno da identidade do objecto da dedicatória, o

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misterioso HD. Seria ele Henry Wriothesley ou oigualmente jovem William Herbert, futuro condede Pembroke?

Comoadianteveremos,questionar‑se‑áapos‑sibilidadedeummembrodaaltanobrezapermitira publicação de um livro que lhe é dedicado comtanta intimidade, sendo o autor um membro deumaclassemuitoinferioràsua.Porfim,coloca‑seaquestãodoanonimatoquandoéumpatronoqueestáemcausa.Batesugere,porisso,queWHéumagralha que surge em vez de WS, o que, então, sejustificaria como homenagem do editor, ThomasThorpe, ao autor (Bate, p. 222).

Além disso, surge a identidade das figuras aliconvocadas, nomeadamente a da famosa DarkLady,ligadaàsequência127a152,eadojovem—o«fair youth» («belojovem»),emparticulardevidoà sua dimensão erótica, implícita e explícita; porexemplo,ojogocomWill,nomedoautoredoes‑posodaDark Lady,masqueeratambémcalãoparapénis e vagina — cf. sonetos 135 e 136. Há quemdefenda(Honan,p.189)seraquelaumafiguracom‑pósitainspirada,nomeadamente,nosétimosonetodeSirPhilipSidneyaStella.Porseuturno,o«fair youth»poderánãocorrespondernecessariamentea uma pessoa realmente existente, podendo sera figuração de um patrono real ou ideal, ou umaimitaçãodeAlexis,deVirgílio(Bate,pp.209e214).A estes aspectos regressaremos adiante.

Noiníciode1593os Homens do Lorde PembrokeretomaramasactuaçõesnoTeatro.EntreaspeçasdoseurepertórioconstavamTito Andrónico, A Ver‑dadeira Tragédia do Duque de Iorquee O Amansar da Fera. As actuações terão sido, contudo, uma

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vez mais interrompidas devido a um novo surtoepidémico. Assim, a 21 de Janeiro o ConselhoPrivado da Rainha ordenou ao Lorde‑Maior deLondres que interditasse «todas as peças, rinhasde ursos, touros e outras afins onde se reúnamnúmeros consideráveis de pessoas.» E foi assimque,umavezmais,os Homens do Lorde Pembrokeregressaram à estrada, desta feita viajando paraoeste em direcção a Ludlow, parte dos domíniosdo seu patrono, passando por Bath e Bewdley.Durante esta digressão, Shakespeare terá tomadoconhecimento da morte do seu rival Marlowe.

Christopher Marlowe celebrizara‑se, en‑tretanto, devido a obras como Doutor Fausto, O Judeu de Malta e O Massacre de Paris. O factode se ter formado em Cambridge atribuía‑lhe umestatuto superior ao dos outros autores dramáti‑cos que, como Thomas Kyd ou Shakespeare, nãotinham passado pela universidade. Shakespearehomenageá‑lo‑ia de uma forma singela, ao citarum verso seu em Como vos Aprouver. Tal comoMarlowe, também Kyd estava ligado ao Rosa. Porvolta de 1587, Kyd terá escrito Hamlet, uma peçacujo rasto se perdeu, e que terá sido a fonte paraa tragédia homónima de Shakespeare.

Quando, em pleno Verão, regressaram a Lon‑dres, voltaram a encontrar os teatros encerradosdevido à epidemia. Mais de 15 000 pessoas, cercade 1/10 da população londrina, havia sido porela vitimada. Não será difícil de imaginar o queestes surtos epidémicos podiam significar para oquotidiano dos actores que deviam estar sempredisponíveisparapartiremviagensparticularmentedifíceis,duranteasquaiscorriamoriscodeserem

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ostracizados,esemprecomreceiodoquepoderiaestar a acontecer às suas famílias que haviamficado para trás. Durante a sua estadia em Bath,por exemplo, Edward Alleyn escreveu à mulherinstruindo‑anosentidode«todasasnoitesdeitarágua junto à porta de entrada e na das traseiras»(Ackroyd, p. 188).

Entretanto,apardaepidemia,algodeigualmenteperigoso alastrava em Londres, um surto de xeno‑fobia, nomeadamente contra imigrantes franceses,holandeses e belgas. A 5 de Maio um poema com53versosfoiafixadonaparededocemitérioholan‑dês,tendocomoassinatura«Tamburlaine».Devidoàmestriadessestextos,assuspeitasrecaíramsobreescritores que eram já figuras públicas. Um deles,Thomas Kyd, após ter sido preso e torturado atri‑buiria a autoria do texto a Christopher Marlowe.Esteseriaposteriormentepresoedurantedoisdiassujeito a um interrogatório por parte do ConselhoPrivadodaRainha.Acabariaporserlibertadocomaindicaçãodequedeveriaapresentar‑sediariamenteperante esta autoridade (Ackroyd, p. 189).

A 30 de Maio de 1593 Marlowe deslocara‑se aDeptford, onde se encontrara com três homens,Ingram Frizer, Nicholas Skeres e Robert Poley.Passaram o dia a comer e a beber na Taverna deEleanor Bull, viúva de um oficial de justiça. Nofinal do dia houve uma desavença, que, segundose cria, teria sido provocada pela conta que deve‑riampagar.Nasequênciadestarixa,Marloweseriaassassinado:alâminadopunhaldeIngramFrizerperfurara‑lheoolhodireito.Frizerseriaabsolvidopela rainha um mês depois, com a justificação deque agira em legítima defesa.

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Investigação recente revelou, contudo, queaquela Taverna era um ponto de encontro deespiões ligados ao governo. De igual modo se temcolocadoahipótesedeMarlowetersidorecrutadocomo espião ainda enquanto estudante em Cam‑bridge,estandoassimaoserviçodeSirFrancisWal‑singham.TeriasidonessaqualidadequeMarloweconviveriacomsectorescatólicosemFrança,antesderegressaraLondres,ondeentrarianoscírculosteatrais (Greenblatt, pp. 267‑268). A sua mortepoderáganhar,assim,outroscontornos.Terásidoesteumassassinatopremeditadodeumespiãoquemantinha ligações com os papistas?

Entre 1593 e 1594, ou mesmo até, provavel‑mente, um pouco mais tarde (Honan, p. 193),Shakespeare escreve Rei João. A peça retoma umepisódioocorridonoséculoxiii:oreiquedesafiaopapaeque,porissomesmo,emergecomoumheróipara a cultura protestante dominante. Tanto Rei JoãocomoRicardo IIIerampeçasquepertenciamjáaorepertóriodacompanhia.Noentanto,foramobjecto de reescrita por parte de Shakespeare, àsemelhança do que, como referi, sucederia commuitasoutraspeçassuas.Essasuacapacidade,fariacom que passasse a ser conhecido como «SenhorFaz‑Tudo» (Duncan‑Jones, p. 48).

Shakespeare permaneceu em Londres pelomenos durante parte de 1594. Nesse ano, a epi‑demia que obrigara ao encerramento dos teatrosdurante amaiorpartedatemporada,tornar‑se‑iagradualmentemenosagressivaatéseextinguirnaPrimavera,oquepermitiuaosactoresregressaremaotrabalhonacidade. Masostemposdifíceisnãohaviam chegado ao fim. Os Homens da Rainha

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estavam em dificuldades; os Homens do Conde de Hertforddesagregaram‑se;os Homens do Conde de Pembroke foramàfalênciaeviram‑seobrigadosavenderalgodemuitovaliosoparaumacompanhia,oseuguarda‑roupa;os Homens do Conde de Sussexdesagregaram‑se após a morte do seu patrono; omesmo aconteceu com os Homens do Conde de Derby após a morte misteriosa do seu patrono,Ferdinando, Lorde Strange.

Peranteestecenáriodedesagregaçãogenerali‑zada, assiste‑se à afirmação de duas companhias,a dos Homens do Lorde do Almirantado, sob aprotecção de Charles Howard, Lorde Howard deEffingham, e a dos Homens do Camareiro‑Mor,sob a protecção de Henry Carey, Lorde Hundson,genro de Howard.

Os Homens do Lorde do Almirantado eramdirigidos por um empresário de renome, PhilipHenslowe, e contavam nas suas fileiras com océlebre actor Edward Alleyn. Actuavam no ladosul do rio, no Rosa. Por seu turno, os Homens do Camareiro‑MoractuavamemShoreditch,noteatrodeBurbage.RichardBurbageeraoactorprincipalda companhia. O célebre histriónico Will KempevieradoextintoHomens do Conde de Derby,assimcomo John Heminges, Augustine Phillips, GeorgeBryaneThomasPope.Todoseleseramaccionistasda companhia (Greenblatt, pp. 272‑273). Entreestes contava‑se também... William Shakespeare.

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Ao serviço do lorde camareiro‑mor

NaPrimaverade1594,Londresviufinalmenteapestechegaraofim.Algumasdascompanhiasquetinhamandadoemdigressãopelopaísregressaram,enquanto outras se dissolveram. Por seu turno, acompanhia da rainha, que havia sido fundada em1583, seria objecto de uma divisão neste mesmoano de 1594. Também esta estava, afinal, emdeclínio. Além disso, as mortes de Lorde Strangee do conde de Sussex fizeram com que o teatroperdessedoisdosseusmaisimportantespatronos(Honan, p. 196).

É neste cenário de profundas transformações,descrito no final do capítulo anterior, que vemosemergirapresençadonossodramaturgo.Atravésdos registos existentes sobre as peças levadasà cena pelas diferentes companhias, coloca‑sea hipótese de, ainda que por um breve período,Shakespeare ter passado pelos Homens do Conde de Sussex. Nesse caso teria andado em digressãodurante o Outono e o Inverno de 1593, num per‑curso que o teria levado a Iorque, Newcastle e

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Winchester.Oregressoocorreunoiníciodonovoanoquandoosteatrosforamautorizadosareabrirdevidoaoperíodonatalício.Nessaaltura,umapeçasua, Tito Andrónico, foi levada três vezes à cenapelos Homens do Conde de Sussex, no Rosa, antesde os teatros voltarem a ser encerrados, uma vezmais devido à peste (Ackroyd, p. 205).

Na Páscoa de 1594 os Homens do Lorde Sussexjuntaram‑se aos Homens da Rainha para fazeremoito actuações no Rosa. Na primeira semana domêsdeAbril, O Rei Lear foilevadoàcenaporduasvezes. Shakespeare actuou nesta peça que, anosmais tarde, reescreveria radicalmente, elevando‑‑a à sua dimensão singular que hoje conhecemos.ÉaindaporestaalturaqueabandonaaresidênciaemShoreditch.Passa,então,ahabitaremBishops‑gate,ondedispunhadeumarespeitávelvizinhançana qual predominavam abastados comerciantes;umavizinhançabemdiferente,portanto,daante‑rior com os seus inúmeros bordéis e tavernas. Alivivia também uma das figuras mais prestigiadasdaurbelondrina,olorde‑maior,umcargoapenasexistente em cidades mais relevantes como Lon‑dres ou Iorque. Aqui Shakespeare viria a habitaranos depois com uma família de huguenotes.

Ao mudar‑se para Bishopsgate, Shakespearepassou a pertencer à paróquia de Santa Helena.Aí passaria obrigatoriamente a frequentar a igre‑ja que se dizia ter sido fundada pelo imperadorConstantino. Também aí deixaria uma moedacomo sinal da sua presença no serviço religioso(Ackroyd, p. 206). Não esqueçamos quão poli‑ticamente susceptíveis podiam ser as questõesenvolvendo a Igreja...

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Duranteesteano,onomedonossoentãojovemactor e dramaturgo surge, juntamente com o deWilliam Kemp e com o de Richard Burbage, liga‑do ao pagamento de 20 libras, por terem levado àcena em Greenwich «duas comédias perante SuaMajestade no Natal passado.» A 28 de Dezembro,ainda em Greenwich, os Homens do Camareiro‑‑Mor fariam uma representação pública de umapeça de Shakespeare; intitulava‑se esta Comédia de Equívocos (Ackroyd, p. 231).

Algo que iria marcar uma nova fase no teatroinglêsestava,todavia,prestesaacontecerquandoCharles Howard, Lorde do Almirantado, e seusogro, Lorde Hunsdon, camareiro‑mor da rainha,decidiram patrocinar duas companhias.

Uma, a dos Homens do Almirantado, situadaem Bankside, a sul do Tamisa, tinha como estrelade cartaz Philip Henslowe, e contava tambémcom Edward Alleyn e sua mulher, Joan. Estacompanhiareunia,assim,oempresáriomaisbemsucedido, Henslow, o actor então mais famoso,Alleyn, o teatro mais moderno, o Rosa, e aindaas peças do dramaturgo mais consagrado, PhilipMarlowe,paraalémdoespólioqueestavanapossede Henslowe.

Aoutra,adosHomens doCamareiro‑Mor,situ‑adaanortedacidade,emShoreditch,contavacoma participação de Burbage e dos seus dois filhos eainda de Shakespeare, o qual terá levado consigoaspeçasdesuaautoria.Comojáreferi,estegrupode actores, aquele que emergiu em torno dos Ho‑mens do Camareiro‑Mor,formariaonúcleodavidade Shakespeare; com eles trabalharia até ao fim eapenas para eles escreveria as suas peças.

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No início, esta companhia tinha sete ou oitodetentores de partes do seu valor, equivalentesdosactuaisaccionistas,osquaiseram,simultane‑amente, os seus actores mais importantes. Entreestes, contavam‑se, portanto, Richard Burbage,que em breve se tornaria o actor mais famoso deLondres, e Shakespeare. Ambos terão entrado nacompanhiaaindaantesdoVerão.Umdosaccionis‑tas era Will Kempe, o mais famoso actor cómicoinglês, para o qual Shakespeare escreveria papéisespecíficos:Fundos1, em Sonho de Uma Noite de Verão, Corniso, em Muito Barulho por Nada,e Falstaff, nas duas partes de Henrique IV. Nasegundapeçadestecicloexisteaseguinteanotaçãocénica,«EntraWill»,algunsversosantesdeFalstaffcomeçar a cantar uma balada. Esta entrada antesdotempoteriacertamenteumefeitodeantecipa‑çãocómica,jáqueaaudiênciaestavafamiliarizadacom o actor e desde logo disponível para aquelaque seria a sua intervenção posterior.

Queesteseramtemposdeprofundasmudançasnasociedadeinglesaéalgoquepodeserigualmenteconstatadopelaaceitaçãoqueosactores,antesos‑tracizados,começavamateranívelsocial.Esteseuestatutoemergenteerasinalizadopelainsígniaquepodia ser usada através de uma faixa no braço oudeumalfinetecolocadonochapéu,comumapenadecisneprateada.Apardoreconhecimentosocialsurgia também o económico, particularmente

____________1 EstaéadesignaçãoqueMariaCândidaZamithatribuiàperso‑

nagemBottomequedivergedadeoutrostradutoresdestapeça.Sendo,todavia,estaediçãoaqueutilizonestelivro,opto,por‑tanto,porela.

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relevante para aqueles que detinham partes, po‑deremos chamar‑lhes acções, das companhias.Para entrar como accionista, Shakespeare terásido obrigado a pagar uma soma de 50 libras ou,então,concordadoemescreverduaspeçasporano(Honan, pp. 199‑200).

A companhia conhecida como os Homens do Camareiro‑Mor era composta por cerca de 16 ac‑tores,incluindocincoouseisrapazesqueestavamnuma fase de aprendizagem. Num tempo em queos palcos eram vedados às mulheres, competiahabitualmente aos mais jovens, em particularaos aprendizes, a assunção dos papéis femininos.Operíodo de aprendizagem poderia oscilar entreos 3 e os 12 anos, durante os quais o jovem eraacompanhadoporumactormaisvelho,comquemvivia e aprendia. Os accionistas que, como referi,eram igualmente actores e que participavam emtodas as peças, não raro davam corpo a váriaspersonagens,nomeadamentesecundárias,podendopara tal chegar a memorizar 300 versos por cadaactuação.

Arepresentaçãoera,então,umaarteprofunda‑mentecodificada.Havia,porexemplo,umaexpres‑são para revelar a raiva e outra para o amor. Já atristezaeraindicadaatravésdogestodecobrirosolhoscomochapéu.Haviacinquentaenovegestosdiferentes com as mãos para ilustrar diferentesestadosdeespírito.Shylock,porexemplo,deveriasurgirquasesemprecomospunhoscerrados.Porseuturno,amãodeviamovimentar‑sedaesquerdaparaadireita.Nocasoconcretodofamososoliló‑quio de Hamlet, «ser ou não ser», o actor deveriacomeçarporestenderamãodireitaaodizer«ser»,

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e a esquerda ao dizer «não ser», juntando‑as emseguida para «eis a questão».

O guarda‑roupa, elemento que, como vimos,exigiaumgrandeinvestimentoporpartedascom‑panhias, era igualmente relevante neste universocodificado,participandoassimdacaracterizaçãodapersonagem.Haviaumtrajequepermitiaidentifi‑carojudeu,oudeterminadasnacionalidades,comoaitaliana,ouaindaprofissões,comoadomercador.Porseuturno,avirgemvestir‑se‑iaobviamentedebranco, enquanto os médicos eram identificadospelas suas togas escarlates. As personagens fe‑mininas usavam por vezes máscaras como formaexplícitadedisfarçaraidentidadedosactoresquelhes davam corpo. Neste sentido, e neste sentidoapenas,poder‑se‑ádetectarumasemelhançaentreo teatro isabelino e o japonês. Os cenários, comorefere Luiz Cardim na descrição acima citada,estavam muito longe de serem naturalistas. Tam‑bémelesespaçosprofundamentecodificados,nãodescreviam atmosferas, limitando‑se a sugeri‑las,assim como locais ou temas, através de determi‑nados signos ou cores.

A música desempenhava igualmente umafunção dramática importante, quer pelo facto deajudar a acentuar determinadas atmosferas querpela sua inevitável presença no final da peça.Contemporâneo de dois dos maiores composi‑tores ingleses, William Byrd e Orlando Gibbons,Shakespeare seria o primeiro dramaturgo a fazerda música parte integrante da dinâmica dramáti‑ca. Recorde‑se que, nos mistérios medievais, quepoderáterpresenciadonainfânciaenajuventude,a música tinha também um papel de destaque.

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Seria esta sua utilização por parte de Shakespe‑are uma forma de recuperar as suas memóriasdo passado, integrando‑as numa nova dinâmicadramática,comosucederiacomofolclore,comosclássicosaprendidosnaescolaoucomasCrónicasde Holinshed? Eis uma questão que, para já, ficapor responder.

Doquefoireferido,dadimensãoalgosimbólicaoumeramentesugestivaqueoselementoscénicosassumiam, deduz‑se a importância que a palavratinha em palco. Poderá, assim, inferir‑se que opúblicoestariaparticularmenteatentoaodiscurso,aos jogos de palavras, aos trocadilhos, às insinua‑ções. Mais do que na acção, era, afinal, na palavraque então assentava a dimensão dramática.

Quanto às qualidades de Shakespeare comoactor, as opiniões divergem, oscilando entre a deJohn Aubrey, segundo o qual «ele actuava muitobem»,ouaalgocoincidentedeHenryChettle,quedeclarariaserele«excelente»,eamuitomaislacó‑nicaopiniãodeNicholasRowe,paraquem«oseumelhor desempenho foi no Fantasma de Hamlet»(Ackroyd, pp. 218, 221 e 335).

Se as opiniões relativamente às suas virtudescomoactordivergem,jáquantoàregularidadedasua presença em cena existem registos que nospermitemsermosmuitomaisassertivos.SabemosqueShakespeareterádesempenhadoospapéisdeArão, em Tito Andrónico, António, em Noite de Reis, Ulisses, em Tróilo e Créssida, Frei Lourençoe o Coro, em Romeu e Julieta — peça que contouigualmente com Richard Burbage no papel deRomeu e de Will Kempe no de Peter, o criadodos Capuletos —, Teseu, em Sonho de Uma Noite

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de Verão, Duncan, em Macbeth, e Fantasma, emHamlet, entre muitos outros.

Orepertóriodos Homens do Camareiro‑Mor erabastante extenso e diversificado, possuindo, paraalémdasobrasdeShakespeare,umnúmeroconsi‑derável de outras de outros autores, rondando, nasuatotalidade,acentena.Cadaanoeramlevadasàcena cerca de quinze peças. De acordo com regis‑tos que sobreviveram do Rosa, durante uma únicatemporada de Inverno houve 150 representaçõesde trinta peças distintas. Aliás, como acima referi,todososdiaserarepresentadaumapeçadiferente.

Cada actor recebia apenas o seu papel, o qualvinhasobaformadeumrolo;daíaligaçãoexisten‑te em inglês entre a palavra «role» (rolo) e papel.Sobreviveu um destes rolos, o de Edward Alleyn,como Orlando, na peça de Robert Greene, Orlan‑do Furioso, composto por 14 folhas coladas umasàs outras, o que formava um rolo contínuo. Cadafala era precedida de uma «deixa» do actor ante‑rior, assim como de algumas indicações cénicas.Omanuscritooriginaleraconhecidocomoo«livroda peça», ou simplesmente «o livro» (Ackroyd,p.341).Antesdeserlevadaàcena,apeçadeviasersubmetidaàaprovaçãodo Master of Revels,literal‑menteMestre dos Divertimentos,aquemcompetiadetectar e, consequentemente, impedir eventuaisreferênciasaaspectospolíticosoureligiososmaissensíveis. Um censor, portanto.

Oiníciodapeçaeraanunciadoporumatrom‑betaqueacompanhavaumabandeiraqueentãoeradesfraldada no teatro. As representações, habitu‑almente com cerca de duas horas, começavam às14 horas no Inverno, e às 15 no Verão.

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No Verão de 1595, houve vários motins emLondresmotivadospelosaumentosdospreçosdopeixe e da manteiga. Na sequência destes motins,foi decretado o recolher obrigatório e os teatrosforam encerrados. No final do Verão, quando aproibiçãochegouaofim,osactoresseriam,todavia,confrontados com uma determinação, por partedo lorde‑maior, no sentido de serem destruídos oTeatro e o Rosa.

ÉnestecontextoqueShakespeareescreveu Ro‑meu e Julieta,umadassuasseistragédiasquetêmaItáliacomopanodefundo.Curiosamente,nestapeçaeramevocadoscenáriosdeconflitoidênticosàquelesqueLondresacabaradeviver.Jáaintrigapropriamenteditafoiporelecolhidanumpoemade Arthur Brooke, intitulado A Trágica História de Romeu e Julieta. Contrariamente ao texto quelhe serviu de fonte, cuja acção se prolongava aolongo de nove meses, na peça de Shakespeare aacção decorre no breve espaço de cinco dias. Odramaturgosoubetransformar,assim,otextoquelhe serviu de fonte, condensando‑o radicalmente,demodoaacentuaroefeitodramáticopretendido.Maisimportantedoqueessadimensãoformal,terásidoofactodeeleteroptadopordemonstrarumaóbvia simpatia face aos dois amantes.

Mas não foi apenas por aqui que se ficaramas mudanças levadas a cabo pelo nosso autor. Defacto, aspecto sensível nos tempos que correm,ShakespearealterouaidadedeJulieta,dos16anos,no poema de Brooke, para 13, o que acentuariauma certa licenciosidade à trama. De igual modo,a cena de luta iria ao encontro do gosto do pú‑blico. Deduz‑se que, para Shakespeare, a empatia

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das audiências era uma dimensão que ele nãodesejava ignorar. O sucesso que a peça teve juntodestas, seria reconhecido na sua primeira ediçãoimpressa,ondeseafirmaqueela«foimuitasvezes(com grande aplauso) representada em público».Ainda antes da edição do fólio de 1623, a peçaseria objecto de duas edições em vida do autor(Ackroyd, p. 237).

Embora tendo em mente que, como recordaMaria Cândida Zamith, a «data da escrita atribu‑ída a Sonho de Uma Noite de Verão é meramenteespeculativa»(Zamith,p.11[1]),éprovávelqueelatenha surgido logo após Romeu e Julieta.

Convocando um diversificado número de fon‑tes, desde as Vidas de Plutarco às narrativas dofolclore inglês, passando por Chaucer e mesmopor obras do seu contemporâneo Lyly, esta peçaterá sido representada em privado para a rainhaaquando do casamento do conde de Derby no dia26 de Janeiro de 1595, ou ainda aquando do ca‑samento da neta de Lorde Hunsdon no dia 19 deFevereiro deste mesmo ano. Igualmente sugeridacomoopçãopossívelparaasuarepresentaçãoéadata do casamento da condessa de Southamptonque teve lugar no ano seguinte, a 2 de Maio. UmavezmaisShakespearedemonstraumacapacidadenotável de colher elementos nas mais variadasfontes,demodoacriarumobjectoabsolutamentesingular.

No final da Primavera de 1595, os Homens do Camareiro‑Mor partiram, de novo, em digressão.A razão da sua saída de Londres seria, uma vezmais, os motins acima mencionados, motivadospelos aumentos de preços dos produtos alimen‑

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tares. Só no mês de Junho, registaram‑se dozesituaçõesdeconflito.Umdossectoresprofissionaisenvolvidos nestes distúrbios foi o dos aprendizesde tecelagem. Curiosamente, Fundos, uma daspersonagens de Sonho de Uma Noite de Verão, éum tecelão. Coloca‑se, assim, a possibilidade deShakespeareterevocadosubliminarmenteaqueleseventos, ao mesmo tempo que transformava umasituação de violência numa comédia.

Em Junho encontramo‑los em Ipswich e, as‑pecto relevante, em Cambridge, tendo recebido,em cada um deste locais, a considerável somade 40 xelins. Com efeito, em tempos não muitoremotos, Cambridge teria depreciado a presençadeumacompanhiateatral.Noentanto,os Homens do Camareiro‑Mor gozavam agoradeumprestígioassinalável, ao qual se juntava o prestígio do pró‑prioautor,quecomeçavatambémaserobjectodeuma óbvia empatia junto de um público educadoe mais jovem.

Shakespearepoderáteraproveitadoestadigres‑sãoparafazerumavisitaaStratford,nomeadamen‑teparatratardenegócios queali teria,ou apenascomointuitodevisitarafamília.Comefeito,existeum registo segundo o qual, em finais de Agosto,um «Sr. Shaxpere» terá comprado um livro, emStratford, a um tal Jone Perat. Esta possibilidadeganhariamaisforçadevidoàafirmaçãodeAubreysegundoaqualShakespearesedeslocariaumavezpor ano à sua terra natal (Ackroyd, p. 265).

TrêssemanasapósteremrepresentadoemcasadeSirEdwardHoby,emCanonRow,os Homens do Camareiro‑Mor regressariamàcorteparaatempo‑rada do Natal de 1595. Ignora‑se, porém, se nessa

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altura terão levado à cena aquela que FilomenaVasconcelosconsidera«amaisformalecerimonialdaspeçasshakespearianas»(Vasconcelos,p.9[1]),Ricardo II.

Com esta obra, Shakespeare regressaria àspeças históricas. Com ela iniciaria uma nova te‑tralogia,destafeitasobreadinastiadeLencastre.Ricardo II precede, portanto, cronologicamente,a tetralogia dedicada à Guerra das Rosas. Shakes‑peare terá assumido em palco a personagem dorei, enquanto o seu opositor, Bolingbroke, seriaencarnado por Burbage.

Escrita e levada à cena em 1595 ou em 1596, apeçaseriapublicadaemformatodequartoem1597e duas vezes reeditada no ano seguinte. Aversãopublicada exclui, porém, a sequência de 160 ver‑sos na qual o rei Ricardo entrega formalmente otrono, invertendo assim a ordem política natural.Estasequênciaincluiocélebreepisódiodacenaido acto iv, em que ele se olha ao espelho, profereum solilóquio sobre a sua identidade, agora quefoi forçado a abdicar, e, em seguida, o despedaça.Semelhanteausênciadever‑se‑á,porcerto,aofactode este ser um passo particularmente polémico esensível no plano político (Bate, p. 257).

Nãoé,todavia,apenasaestenívelqueoepisódioreferidopoderiaserconsideradosensível.AotomarcomotópicoadeposiçãodeRicardoIIporpartedeHenryBolingbrokeeoseuposteriorassassinato,estapeçasuscitava,porsisó,óbviosproblemaspolíticos.Comefeito,àsemelhançadeRicardo,tambémIsabelnãotinhaumherdeiro,e,talcomoele,tambémelaestava a ser objecto de tentativas de deposição porparte de grupos de nobres que giravam em torno

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de Essex e de Southampton. Reza aquela que será,eventualmente,umahistóriaapócrifaque,em1601,a rainha terá interpelado da seguinte forma o anti‑quárioWilliamLambarde:«EusouoRicardoII,nãoo sabeis?» (Bate, pp. 257 e 282).

Comefeito,apeçaseriarepostapelosHomens do Camareiro‑Mornavésperadatentativafalhadade golpe de estado por parte de Essex. A ideia delevar à cena a peça ter‑se‑á devido a Sir CharlesPercyque,nosprimeirosdiasdeFevereirode1601,juntamente com o seu irmão, Sir Joscelyn Percy,LordeMonteagleetrêsoutrosnobres,sedirigiramao Globo onde falaram do projecto com algunsactores, embora não haja registo de quais (Bate,p.256).Apesardeacompanhiatersidochamadaatestemunharnodia18deFevereiroparadefenderoseunãoenvolvimentodaconspiração,defesaqueesteve a cargo de Augustine Phillips, ela não viriaaserobjectodequalquersanção.Menossortete‑ria Essex que, menos de duas semanas após essarepresentação especial, seria decapitado.

A. D. Nuttall recorda um aspecto importante,o facto de este monarca ter sido o primeiro a exi‑gir que se lhe dirigissem através do epíteto «SuaMajestade». Deste modo, ao situar o Absolutismonumcontextomedieval,Shakespearecontextualizahistoricamente este conceito retirando‑lhe a suadimensãoalgotranscendente(Nuttall,p.142).Deigual forma, com Ricardo II Shakespeare abre ca‑minhoparaassuastragédiasposteriores,nasquaiso acaso, a responsabilidade e o empenhamentopessoal são factores que determinam o percursotrágicodosseusprotagonistas,comosucederácomMacbethecomLear,porexemplo.Amodernidade

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emergeassimnosseustextos.Oumelhor,Shakes‑peare constrói, ele próprio, a modernidade...

Seguir‑se‑ão as duas partes de Henrique IV,comaquelaque,paramuitos,éasuapersonagemmaisfascinante,Falstaff.EmAs Alegres Comadres de Windsoréaindaestapersonagemqueprevalece.Estapeça seriaobjectoderepresentaçãonacorteaquandodaFestadaOrdemdaJarreteiraquetevelugar em Whitehall a 23 de Abril de 1596, aquan‑do do dia de São Jorge, a 23 de Abril de 1597, ouapenasmesesdepois,noInvernodessemesmoano(Honan, pp. 219 e 223).

Enquanto a 1.ª parte de Henrique IV se centrana personagem do príncipe Hal, no seu desenvol‑vimento enquanto soldado e cavaleiro, no códigoético que lhe dá corpo e na exibição das suasvirtudes, já a 2.ª parte presta mais atenção àsvirtudescívicas,transmitindoumpanoramamaisgeral da sociedade, nomeadamente da sociedaderural.ShakespeareatribuiigualmenteimportânciaaBlunt,presidentedoTribunaldeJustiça,topodahierarquia do sistema legal a nível local, e ao juizShallow. Através destas personagens, são, afinal,as tensões entre diferentes estratos sociais dessesistema que emergem (Bate, pp. 315‑316).

EmboraShakespearetenhaescolhidoumcená‑riomedieval,deumaformaindirectasãoastensõesdaépocaisabelinaqueelerevela.Contrariamenteaoutrosautoresseuscontemporâneos,Shakespearedemonstraassimumcuidadoparticularnaformacomo dialoga com os problemas mais sensíveisdo seu tempo. Talvez na sua memória persistisseainda a imagem das cabeças que vira na Ponte deLondresquandopelaprimeiravezacruzou;essas

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cabeças que lembravam ao mundo quão perigosopodia ser o desafio da ordem dominante.

JácomHenrique V,Shakespeareterápretendidodarrespostaaumaprementenecessidadedefundosporpartedasuacompanhia.EsclareceM.GomesdaTorreque,«[a]ocontráriodoquesetemverificadoemrelaçãoàgeneralidadedasobrasdeShakespeare,os estudiosos encontraram referências no interiorde Henrique V que lhes permitiram concluir comumaprecisãopoucocomumqueoAutoracaboudeescrever a versão que haveria de constituir o textopublicado no primeiro fólio (1623) em 1599, muitoprovavelmente entre Março e Setembro» (Torre,p.9[2]).Aindanesteanoapeçaserialevadaàcenano Globo pelos Homens do Camareiro‑Mor.

Não deixa de ser curiosa a alusão nesta peçaa um tópico particularmente sensível, o do cato‑licismo. Com efeito, o rei menciona o dia de SãoCrispim, o qual deixara de ser evocado em Ingla‑terra na sequência da reforma protestante (Bate,p. 239). Eis um passo do seu célebre discurso quereproduzo, na tradução de M. Gomes da Torre:

Hoje é dia de festa de S. Crispiniano.Quem hoje sobreviver e for para casa salvoHá‑de empertigar‑se com brio à menção deste diaE excitar‑se ao ouvir o nome de S. Crispiniano.Quem vir este dia e viver até ser velhoHá‑de todos os anos, na véspera, banquetearOs amigos e exclamar «Amanhã é S. Crispiniano».Depois há‑de puxar a manga e mostrar cicatrizesE dizer «Estas feridas são do dia de S. Crispim».

[Torre, p. 123.]

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Estediscursoseriaamiúdeconvocadodurantea II Guerra Mundial, em particular quandoInglaterra persistia na sua luta isolada contra onazismo. Um outro discurso, melhor seria dizer,solilóquio, acompanhá‑lo‑ia nesses tempos,aquele que João de Gande pronunciara no leitode morte na cena ii do actoiii de Ricardo II eque Filomena Vasconcelos assim verteu para anossalíngua:«Estaterrademajestade/[...]EstafortalezaqueparasiprópriaaNaturezaconstruiu/[...]Estetorrãoabençoado,estepaís,estereinode Inglaterra.» (P. 58.)

Para além de um discurso de exaltação patri‑ótica, ao convocar a memória de uma tradiçãodenegadapelopresente,estariaele,umavezmais,aindiciarumseumétodoalusivoeeventuaissim‑patias com a «fé do passado»?

Esta é, afinal, uma peça sobre um tópico rele‑vanteeproblemáticoque,comoadianteveremos,viria a acentuar‑se no reinado seguinte, o daidentidade nacional. Já Ricardo II, à semelhançadas peças da primeira tetralogia, apresenta umaabordagemdiferentedaHistóriadeInglaterra,naqual a Irlanda é um espaço exótico e distante: opróprioRicardoserefereàsuaexpediçãoàIrlan‑da como um «vaguear pelos antípodas» (acto iii,cenaii,linha49)(Hadfield,pp.222‑223).Umavezmais um tópico candente no seu tempo sinuosa esubliminarmente emerge nas suas peças.

Devido à intensa actividade que desenvolvianessa altura, envolvendo não só a escrita mastambém a representação, não é provável queShakespearetenhasaídomuitasvezesdeLondres.Sabe‑se que o seu rendimento era já substancial

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no ano de 1596. Embora não haja registo de quetenha adquirido propriedades em Londres, exis‑tem, contudo, sinais de que ele planeava fazê‑loem Stratford. Recorde‑se que ali continuavam aviverasuamulhereosseusfilhos(Honan,p.225).

ComamortedeLordeHunsdon,a23deJulho,acompanhiaperdeuoseupatrono.Caberiaaofilhodeste reactivá‑la, desta feita com a designação de Servos do Lorde Hunsdon. Será já esta companhiaque parte em digressão por Kent durante o mêsde Julho, altura em que Shakespeare poderá tervisitado Stratford.

William consegue então que seu pai, John,tenha o direito de usar brasão, o qual, três anosdepois, verá acrescido das armas dos Arden, a fa‑mília da sua mulher (Honan, p. 228). Ao escolherum motivo abundantemente decorado a ouro eprata, Shakespeareestavaaassumir custos muitomais substanciais do que se tivesse optado porcores mais comuns. O seu desenho final seria daautoria de Richard Burbage. O destaque atribuí‑do à espada sinaliza a dimensão simbólica que odramaturgo pretendia atribuir‑lhe, algo que seriaacentuadopelaescolhadofalcãoprateado,atravésdoqualindiciariaumaligaçãocomoseupatrono,Southampton. O mote que escolheu, «Non sanz droict» («Não sem direito»), era uma forma dejustificarodireitodeusarestainsígniaatravésdofacto de pertencer a uma linhagem de cavalariaque remontaria aos tempos medievais.

Aooptarporconsagrarobrasãoaopai,emvezde o assumir como seu, William não se limitava ahomenageá‑lo e a permitir que um remoto sonhoseu pudesse finalmente ser realizado. Com efeito,

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como sugere Katherine Duncan‑Jones o nossodramaturgo poderia estar a evitar ser objecto doescárnio e da sátira do complexo microcosmo te‑atralnoseiodoqualsemovimentavaemLondres(Duncan‑Jones,pp.106‑107).Mesmoassimnãoselivraria da ironia de Ben Jonson. Anos mais tar‑de, em 1599, este dramaturgo põe Sogliardo, umapersonagem de Every Man Out of His Humor, apagar 30 libras por um escudo de armas que tempor mote «Não sem mostarda».

A eventual legitimidade relativamente ao usode brasão seria reavivada em 1602 quando RalphBrooke, oficial de armas de Iorque, denunciou aconcessão deste estatuto a quem não teria a eledireito. Brooke apresentou, então, uma lista com23casos,naqualonomedeShakespearesurgeem4.º lugar (Greenblatt, p. 80). Como se depreende,esta não seria uma questão isenta de polémicas.

Segundo informação constante de registosmunicipais, sabemos que em Outubro de 1596ele está a viver na paróquia de Santa Helena, emBishopsgate,apoucomaisde1kmdedistânciadosteatros situados na zona norte da cidade.

Em finais de 1595, Stratford foi assolada porumsurtodetifoedisenteria,queiriaprovocarumelevado número de mortos. Na Primavera ou noVerãode1596,Shakespeareterátidonotíciadequeo seu filho Hamnet, então com 11 anos de idade,estava doente. Não se sabe se terá regressado deimediatoaStratfordouseterásidoforçadoaficarem Londres por razões profissionais. Por outrolado, a 22 de Julho, Henry Carey, camareiro‑mor,primodarainhaepatronodacompanhia,morreu.O cargo deixado vago seria, então, atribuído a

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Lorde Cobham, embora os actores tivessem con‑tinuado sob a protecção do filho de Carey, LordeHundson.Noentanto,Cobhammorreumenosdeum ano depois, tendo o seu cargo sido atribuídoaGeorgeCarey.Destemodo,apósumbrevehiatosob a designação de Homens do Lorde Hunsdon, acompanhiavoltariaaserconhecidapeladesignaçãode Homens do Camareiro‑Mor.

Entretanto,aactividadeteatral iriapassarpormaisumperíododeprovação.Destafeitanãofica‑riaadever‑seàpesteouaagitaçãosocialmassimàs pressões de ordem moral oriundas de sectorespuritanosoudeoutrosmaispermeáveisaosargu‑mentosdaqueles.Nasequênciadessaspressões,asrepresentações seriam banidas das estalagens deLondres.Ainterdiçãoter‑se‑áentretantoestendidoàsrestantescasasdeespectáculoduranteoVerãode 1596. Explicar‑se‑ia assim a razão pela qualalgunsdoshomensdacompanhiadeShakespeareandaramemdigressãonessaaltura,representandonomeadamenteemKent.Onossodramaturgopo‑derá tê‑los acompanhado. É, todavia, igualmentepossível que tenha permanecido em Londres atrabalharnaspeçasqueestariaaescrevernaaltura:Rei João,a1.ªpartedeHenrique IVouO Mercador de Veneza.

A 11 de Agosto, «Hamnet filius William Shaks‑pere»seriaenterradonaIgrejadaSantaTrindade(Greenblatt,pp.288‑289).UmavezmaisStratfordterá ouvido o sacerdote pronunciar as fatídicaspalavras:«PorquequisoSenhorTodoPoderoso,nasua imensa misericórdia, levar para junto de Si aalmadonossoqueridoirmãoqueagorapartiu,nósentregamos o seu corpo a este solo, terra à terra,

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cinzasàscinzas,póaopó,naesperançaenacertezadaRessurreiçãoparaavidaeterna.»Judith,airmãgémea de Hamnet, passaria, contudo, incólume amaisestaepidemia.Asualongevidadeseria,aliás,assinalável, visto ter vivido até aos 70 anos.

A morte de Hamnet, com 11 anos de idade,numa altura em deveria ter terminado o cicloescolar inicial, terá tido um impacto profundo noautor. Num tempo em que a linha consanguíneaera particularmente importante, Shakespeareperdia, assim, aquele que seria o seu herdeironatural. Como adiante veremos, a preocupaçãono sentido de preservar essa linha consanguíneamanifestar‑se‑ia no cuidado que mais tarde pres‑taria à elaboração do seu testamento. Embora elenão exibisse o que sentiu, explicitamente, na suaescrita,comoofez,porexemplo,BenJonson,será,todavia,apartirdestaalturaqueemergemassuaspersonagens mais marcadas por um profundo so‑frimentointerior.Significativamente,emRei João,provavelmenteconcluídoapósamortedeHamnet,uma mãe lamenta a morte do filho: «A dor pelamorte de meu filho enche este quarto / Deita‑seneste leito, caminha para lá e para cá comigo.»

Apesar da profunda tristeza que terá sidocausada pela morte do filho, e das provaçõeseconómicas devido às dificuldades colocadas àactividade teatral, este ano de 1596 traria umatransformaçãosignificativanavidadacompanhiae,consequentemente,deShakespeare.Comefeito,foinesteanoqueJamesBurbagepagou600libraspor um conjunto de edifícios, perto de São Paulo,que,atéaoencerramentodosmosteiros,haviasidopartedeumgrandemosteiropertencenteàordem

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dominicanaconhecidacomo«FradesPregadores»ou «Frades Negros»; daí a designação pela qualesteespaçoseriacelebrizado,Frades Negros.Asualocalizaçãoera,desdelogo,apelativa,poisemboraficasse dentro das muralhas da cidade, escapavaà jurisdição dos «pais da cidade». Além disso,albergara já um teatro onde várias companhiasde crianças tinham actuado. O teatro tinha sidoconstruído no local do antigo refeitório.

Burbage havia já sido responsável pela cons‑trução do Teatro. Desta feita iria abrir o primeiroteatrodentrodeportasdestinadoaactoresadultos.Apesardesermaispequenodoque o Globo,tinhaa vantagem de estar mesmo no centro da cidade,de ser um espaço fechado e de possuir um tecto.Devido a uma petição feita pelos moradores dazona,oteatroveria,contudo,adiadaasuaabertura(Greenblatt, pp. 366 e 367).

Ainda em meados de 1596, Shakespeare teráescrito O Mercador de Veneza. Eventos vários co‑evos e fontes literárias diversas podem ter estadona origem desta peça. Desde logo, a chegada aLondres das notícias relativas ao ataque inglês aoporto de Cadiz, que resultou na captura de doisgaleõesespanhóis.Apeçaaludetambémaumepi‑sódio igualmente ocorrido neste ano, envolvendoRoderigo Lopez, um médico judeu acusado de tertentado envenenar a rainha, que foi preso, tortu‑rado e, finalmente, executado. Importa recordarqueafiguradojudeueraumapresençaconstanteedisfóricanosmistériosmedievais,nosquaissur‑gia associada à morte de Cristo (Ackroyd, p. 273).

No entanto, independentemente destes ecosde eventos contemporâneos, a peça denuncia

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uma inspiração óbvia. Com efeito, Shakespeareterá lido Il Pecarone, uma história italiana sobreum usurário judeu, Ser Giovanni. Nesta história,o mercador de Veneza pede dinheiro emprestadoa um usurário judeu para ajudar alguém (nestecaso não um amigo mas um afilhado); o créditoserá um pedaço de carne do mercador; a iniciati‑va de uma dama de Belmonte que vem a Venezadisfarçadadeadvogado;asoluçãoengenhosalegaldesta dama (Greenblatt, p. 270). As analogias sãopor demais evidentes.

A esta fonte uma outra deverá ser acrescenta‑da, aquela que terá directamente inspirado esseestereótipodojudeucomousurárioqueéShylock.Refiro‑me a Barrabás, herói de Judeu de Malta,de Marlowe; Marlowe que, recorde‑se, havia jáfalecido quando Shakespeare começou a escreverasuapeça.Asuaversãofinalterásidofeitaantesde 22 de Julho de 1598, data em que foi registada(Honan, pp. 257 e 259).

No final do ano Shakespeare estava uma vezmais na corte, juntamente com os Homens do Camareiro‑Mor, para representar esta peça eainda Rei João. Curiosamente, esta seria umaobra politicamente sensível, visto exibir algumasanalogias entre os contextos que envolviam o seuprotagonista e a rainha Isabel: a excomunhão pa‑pal,oataqueaInglaterraporpartedeumaarmadaestrangeira,nocasodeIsabelaInvencível Armada,as conspirações por parte de nobres ingleses como objectivo de os depor, contando com o apoio depotências estrangeiras (Bloom, p. 57 [2]).

Étambémprovávelquetenhamentãolevadoàcenaa1.ªpartedeHenrique IV.Estapossibilidade

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ésustentadaporumahistória,nãocomprovada,se‑gundoaqualarainhateriasentidoumaempatiatalporFalstaffqueteriasolicitadoaShakespearequeescrevesseumapeçaemqueeleseapaixonasse.As Alegres Comadres de Windsor seria a resposta aopedido régio (Ackroyd, p. 279).

EmJaneirode1597,JamesBurbagefaleceu.Notestamento, deixaria o Teatro ao filho Cuthbert,que, apesar de accionista, não era actor. Já a pro‑priedade dos Frades Negros estaria destinada aRichard. A herança trazia consigo, porém, algunsproblemas, devido ao facto de persistir uma dis‑putarelativamenteàrendacomoproprietáriodolocal onde estava instalado o Teatro, e de o con‑trato de arrendamento dever ser renovado antesde Abril desse ano, data em que este chegava aofim. Por essa razão na Primavera ou no Verão de1597 a companhia terá deixado deserto o Teatroe continuado a representar no Cortina, onde asduaspartesde Henrique IVseriamlevadasàcena.

Shakespeare concentrava‑se, entretanto, naescritadeumapeçaacimamencionada,As Alegres Comadres de Windsor.CasoelatenhasidocompostaparaaFestadaOrdemdaJarreteira,hipótesequeacimareferi,entãoissosignificariaquesurgirianoâmbitodeumacelebraçãoalgoespecial,vistoestatersidoorganizadaemhonradaeleiçãodeGeorgeCarey, Lorde Hundson, como cavaleiro desta Or‑dem. Após ter sido nomeado camareiro‑mor e dese ter tornado patrono da companhia que na suadesignação exibia aquele cargo, Carey recebia, as‑sim,maisumaimportantedistinção.Escusadoserádizerqueestadistinçãoseriamotivodehonraparaaqueles que viviam sob o seu patronato.

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No princípio de Maio de 1597, um ano apósa morte de Hamnet, Shakespeare adquire, por60librasdeprata, Novo Lugar,umadascasasmaisimponentesdeStratford,naruaprincipal,juntoàcapela da Velha Guilda. Construída em finais doséculo xv, com tijolo e fundações em pedra, porSir Hugh Clopton, um dos mais reputados habi‑tantesdeStratford,eraconhecidacomoA Grande Casa.AsegundamaiordeStratford,tinha10salasaquecidas com lareira, o que era, então, um sinalde riqueza. A casa encontrava‑se, contudo, algodegradada o que terá contribuído para que ele apudesse ter adquirido por um preço mais baixodo que seria expectável.

Entreosfinaisde1597eoiníciode1598,AnneeasfilhasSusannaeJudith,entãocom14e12anosde idade, respectivamente, mudam‑se para a casanova(Honan,p.257).Shakespearecimentava,as‑sim,asuarelaçãocomasuaterranatal,aomesmotempo que exibia o seu estatuto e o seu sucessoperanteosseusconterrâneos.Estaaquisiçãodeve,também, ser entendida no âmbito da tentativa deaquisiçãodobrasãoparaoseupai.Ofactodeesteseromaiorinvestimentoporelefeitoaolongodavida,comprovaaimportânciaqueparaeletinhaasua ligação à terra e às gentes que o tinham vistonascer.Emcontrapartida,osseuscolegasdoteatroadquiriampropriedadesemLondresparasieparaassuasfamílias.Recorde‑sequeShakespearetinhaentão apenas 33 anos de idade.

Tendo em conta as suas diferentes fontes derendimento, estima‑se que o nosso dramaturgorecebessecercade250librasporano,numaalturaem que um mestre‑escola receberia cerca de 20.

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No seu testamento Shakespeare deixou legadosno valor de 350 libras e bens no valor de 1200, oquesignificaque,nãosendopropriamenterico,eraalguémquelevavaumavidadesafogada(Ackroyd,p. 352).

No Verão de 1597, mais precisamente no mêsde Julho, um escândalo perturbou a actividadeteatralemLondres.Os Homens do Lorde PembrokelevaramentãoàcenanoCisneumapeçaintituladaA Ilha de Cães, na qual alguns membros proemi‑nentesdasociedadelondrinaeramsatirizados.Nasequênciadestapolémica,umdosautoreseváriosactoresforamobrigadosapassartrêsmesesnapri‑são.Oco‑autoreraumjovemde25anosque,pelaprimeiravez,participaranacriaçãodeumapeçaequedavapelonomede...BenJonson.Consequen‑temente, o Conselho Privado da Rainha ordenouqueduranteoperíodoestivalfosseminterditadasas representações teatrais em Londres.

Os Homens do Camareiro‑Mor partiram, en‑tretanto, uma vez mais, em digressão. Em Agosto,encontramo‑losnoportopesqueirodeRye,aoqualseseguiuumaestadaemDover.EmSetembroestãoemMarlborough,aoqueseseguirãopassagensporFaversham,BatheBristol.ComOutubrochegariao fim da interdição, pelo que a companhia pôderegressar, de novo, a Londres. Não há razão paracrer que Shakespeare, enquanto membro activo edeterminantedogrupo,nãotenhaestado,tambémele, nestes locais. Outubro significa, portanto, umregresso ao Cortina, onde Romeu e Julieta serialevada à cena.

Comoacimareferi,paraalémderepresentada,a peça seria, também, publicada. Este era, com

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efeito, um mercado emergente, o que atesta o su‑cesso e a relevância que o teatro ia assumindo noquotidianolondrino;ummercadoqueShakespeareiriaigualmenteexplorar,equeoutrosexplorariamemseunome,vistonãoseremrarasasediçõespi‑rata,menosfidedignas,portanto,asquaisficaramconhecidas como «bad quartos», «maus quartos».Com efeito, para além de Romeu e Julieta, publi‑cada em Novembro, foram igualmente publicadasA Tragédia do Rei Ricardo II, em Agosto, e, emOutubro, A Tragédia do Rei Ricardo III. Estaúltima seria reeditada quatro vezes em vida deShakespeare. Em 1599 surgiria uma reedição deRomeu e Julieta,«corrigida,aumentadaealterada»,agorasobotítuloalgoextensodeA Mui Excelente e Lamentável Tragédia de Romeu e Julieta.

UmviajantequepassouporLondresnaalturadeixaria este significativo testemunho: «Há, naminhaopinião,maispeçasemLondresdoqueemqualquer outra parte do mundo que eu conheço.»Estima‑se, com efeito, que entre 1538 e 1642 te‑nham sido levadas à cena em Londres cerca detrês mil peças (Ackroyd, pp. 308‑309).

Toda esta dinâmica criativa irá permitir aemergência de uma nova realidade, a do estatutoprofissionaldoescritor.AutorescomoShakespeare,ChettleouNashseriamosprimeirosaadquiriresseestatuto.Nunca antesum escritor estivera depen‑dentedeummercado,deumpúblico,quepoderiaditar o seu sucesso ou a sua queda. Estivessem ounãoconscientesdessefacto,eleseram,narealidade,epítomes de uma nova cultura literária.

Umdosaspectosdeterminantesparaoseusu‑cessoseriaasuacapacidadeparaseadaptaremaos

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gostosdominantes,osquaisestavam,tambémeles,em constante mutação. Com efeito, durante maisde uma década, a preferência do público recaírasobre as peças históricas, as chamadas tragédiasdevingança,eascomédiaspastorais.Estasseriamposteriormentesuplantadaspelaschamadascomé‑diasde «humores» epelascomédias dacidade, asquaisatribuíramumaênfasecrescenteàdimensãosexual. Seguiu‑se a moda das peças romanas, ouainda a das mascaradas.

A escrita de peças era assim considerada otrabalho mais lucrativo para um escritor coevo.Considerandoqueporcadapeçaoescritorrecebia,em média, 6 libras, e que os dramaturgos maispopulares escreviam pelo menos cinco peças porano,oseurendimentoanualseriajáconsiderável.

Nasequênciadestasmudançasimportareferirumaoutra,particularmentesignificativa.Temestalugar,a10deMarçode1598,quandofoidadaàes‑tampa A Agradável e Conceituada Comédia Chama‑da Canseiras de Amor em Vão.Aliseafirmaquefoi«corrigidaeaumentada»por«W.Shakspere».Estaé,comefeito,aprimeiravezqueoseunomesurgecomo autor na publicação de uma peça sua.

Ainda este ano surgiram novas versões de Ri‑cardo II e de Ricardo III, nas quais uma vez maisoanonimatoanterioréquebrado.Nelasseafirmaqueforamcompostaspor«WilliamShake‑speare».Apartirdesteanoonomedepeçasexibindooseunome aumenta substancialmente, denunciando asua importância no meio literário inglês. Signifi‑cativamente, no Outono ocorre o primeiro elogiopúblico,comodramaturgo,aShakespeare.EscreveFrancis Meres, em Palladis Tamia, que «tal como

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Plauto e Séneca são considerados os melhorespara a comédia e para a tragédia entre os latinos,tambémShakespeareentreosingleseséomelhornosdoisgénerosnopalco».Entreassuascomédias,Meres menciona Sonho de Uma Noite de Verão eO Mercador de Veneza, e, entre as tragédias, Rei João e Romeu e Julieta (Ackroyd, p. 313).

A actividade de Shakespeare como actor pros‑seguecomalgumdestaqueem1598,comosepodeinferir pelo facto de o seu nome ser o primeirona lista de actores que, nesse ano, participaramna peça de Ben Jonson, Every Man In. Tendo emcontaqueRichardBurbageéumdosmembrosdoelenco,semelhantereferênciaadquireumsignifi‑cadoparticularmenterelevante.Idênticodestaqueser‑lhe‑ia de novo atribuído em 1602, uma vezmais numa peça de Jonson, Sejanus — His Fall(Duncan‑Jones, p. 137).

Começam,entretanto,asurgirregistosderela‑ções sociais muito concretas entre Shakespeare eoutrosmembrosdoscírculosliterárioseartísticoslondrinos,nomeadamentedeconversasnaTavernada Sereia com Ben Jonson, que vinha adquirindoumgradualreconhecimentoporpartedoscírculosliterários. Sir Walter Raleigh tinha então criadoo Clube da Sereia que se encontrava naquelelocal na primeira sexta‑feira de cada mês. ParaalémdosjácitadosShakespeareeJonson,faziamigualmente parte do Clube Beaumont, Fletcher,Donne e Edward Blount que, anos depois, seriaumdosresponsáveispeloprimeirofóliodasobrasde Shakespeare.

Asegundametadedadécadade1590seria,paraele,extremamenteprodutiva,comumasucessãode

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peçasnotáveis,erepresentaçõesfrequentestantona corte como em teatros públicos. Enquanto ac‑cionistadasuacompanhia,Shakespeareterá,alémdisso, estado envolvido na sua gestão quotidiana.

Queestagestãonãoeraumaactividadesimplese displicente, é algo que poderá ser constatadoatravés dos já mencionados conflitos com GilesAllen, proprietário dos terrenos onde o Teatrotinha sido erguido. Recorde‑se que este era oespaço privilegiado de representação dos Homens do Camareiro‑Mor. A licença de ocupação queJames Burbagetinha obtido em1576estavapres‑tes a chegar ao fim e Allen mostrava‑se relutanteem renegociá‑la. Como referi, as conversaçõesacabaramporserompereoTeatro foiencerrado.AcompanhiacomeçouentãoarepresentarnoCor‑tina, mas as dificuldades económicas começaramasurgir.Paraassuperarrecorreramaalgoqueascompanhias mostravam uma natural relutânciaa fazer, a venda dos quartos de quatro das suaspeças mais populares: Ricardo III, Ricardo II, a1.ª parte de Henrique IV e Canseiras de Amor em Vão (Greenblatt, p. 291).

Na fria noite de 28 de Dezembro de 1598, tãofriaqueoTamisagelara,osactoresdacompanhiajuntaram‑seemShoreditch.Traziamconsigolan‑ternas,machados,punhaiseoutrosinstrumentos;montaram guarda em torno do Teatro e, com aajuda de 12 homens, começaram a desmontá‑lo.Na manhã do dia seguinte colocaram as tábuasem carroças e transportaram‑nas para um lugara sul do rio que tinham arranjado não muitolonge do Rosa, em Southwark. Nos meses que seseguiram,contaramcomoapoiodePeterStreete,

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umcarpinteiro,que,eventualmenteinspiradoemVitrúvio, reutilizou o material, de forma a erguerumnovoteatrodeformapoligonalque,comcercadetrintametrosdediâmetro,comumpalcogrande,trêsgalerias,podiaalbergartrêsmilespectadores.

EsteteatroqueemergiudosdespojosdoTeatroteráficadoconcluídonoVerãoereceberiaonomede... Globo.

O Globo tinha duas entradas e saídas, uma decadalado;porcimadopalcohaviaumacoberturasustentadapordoispilaresemmadeira;decoradacom estrelas e planetas pintados sobre um fundoazul, era conhecida como «os céus»; os pilaresserviamigualmenteparadelimitarabocadecenaeosfundosdopalco.Aestruturaeramuitosimplesdando assim ênfase à presença física do actor.

Shakespeare era accionista do novo teatro e, àsemelhança dos actores John Heminges, ThomasPope,AugustinePhillipseWillKempe,eradeten‑tordepoucomaisde10%dovalortotal,cabendoaos irmãos Burbage, Richard e Cuthbert, cotasno valor de 25% cada. Em breve, por razões quepodem apenas ser hoje em dia aventadas, como ofacto de a sua forma de actuar não corresponderà sensibilidade estética de Shakespeare, Kempabandonaria a companhia.

O novo teatro foi inaugurado a 12 de Junho de1599comumapeçadeShakespeareintituladaJúlio César.Estadatafoidefinidaapósaconsultadeumhoróscopo: este era o dia do solstício do Verão, oqualcoincidiacomoaparecimentodeumaluanova,consideradaamaisauspiciosapara«abrirumanovacasa». Após o pôr‑do‑sol, Vénus e Júpiter aparece‑ram nos céus, algo que para nós, hoje em dia, não

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será particularmente significativo, mas que, paraaqueles que viviam no século xvi, para quem a as‑trologiaparticipavaprofundamentedoquotidiano,o era certamente (Ackroyd, pp. 333 e 353).

Um viajante suíço que dava pelo nome de To‑masPlatterassistiuàrepresentaçãodeJúlio César eregistoudaseguinteformaoevento:«depoisdoalmoço, por volta das duas horas, atravessei o riocom o meu grupo e vi a tragédia do primeiro im‑peradorJúlioCésarmuitobemrepresentadanumacasa com o telhado coberto de colmo, com cercadequinzepersonagens[...][nofinaldapeça]comoera hábito, dançaram com extrema elegância emconjunto, em pares, vestidos de homens e de mu‑lheres.»(Greenblatt,p.293.)Osucessoterásidotalque,seismesesmaistarde,acompanhiainstaladano Rosadecidiupartirparaaoutramargemdorio,onde ergueram um novo teatro, o Fortuna.

Independentemente dos eventuais bons au‑gúrios ditados pelas conjugações astrais, a peçanão deixava de ser sensível no plano político.Como recorda Harold Bloom, na altura em queShakespeare estava a trabalhar nesta peça, Isabeljá tinha sido excomungada por Roma e os pró‑prios católicos tinham conspirado no sentido dea assassinar. Uma peça centrada em torno de umgolpe de estado e das consequências nefastas quese lhe sucederam colocava, por isso, problemasparticularmente delicados. Considera Bloom que,ao descrever as rupturas que se seguiram e, emparticular,aformacomoapopulaçaoscilaperanteos argumentos mais persuasivos, Shakespeare es‑taria, afinal, a apoiar o pragmatismo da monarca(Bloom, p. 115 [2]).

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Igualmente por esta altura, Shakespeare criaduas comédias, Muito Barulho por Nada e Como Vos Aprouver, provavelmente nesta sequência.Considera Maria João Pires que Muito Barulho por Nada terá sido escrita entre o final de 1598 eoprincípiodoanoseguinte(Pires,p.7),tendosidolevadaàcenanoCortina,aindaantesdeos Homens do Camareiro‑Mor seteremmudadoparao Globo.Esta peça, com os seus muitos jogos de palavrasindiciandosubtilezassexuais(«nada»,porexemplo,eracalãoparaosórgãosgenitaisfemininos),seriauma das mais populares de Shakespeare no seutempo (Ackroyd, p. 359).

Como Vos Aprouver terásidoescritanasegun‑da metade de 1599, datando o seu registo de 4 deAgosto de 1600. Nela surge a famosa expressãode Jacques, «todo o mundo é um palco», que seráprovavelmente uma evocação do lema do Globo,«o mundo é um actor». Nesta peça, Shakespeareparece prestar um tributo subliminar a Marlowe,aocitaralgunsdosseusversosmaisconhecidosdeHero and Leander,atravésdapersonagemFebe,nacena v do acto iii, aqui reproduzidos na traduçãodeFátimaVieira:«Pastor,reconheçoagoraopoderdo teu dito. Só ama quem ama à primeira vista.»Esta foi igualmente a peça em que, no papel deBitolas2, pela primeira vez actuou Robert Armin,comediante e músico que substituiria o famosoKemp. A ele Shakespeare concederia a 3.ª partemaisextensadapeçacom320versos.ComArminserá, também, uma diferente forma de humor,

____________2 É desta forma que Fátima Vieira traduz Touchstone, o bobo.

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menos histriónica e mais intelectualizada, prova‑velmente mais ao gosto de Shakespeare, que seimpõe na companhia.

Entretanto, no Verão de 1600, Londres recebeMuleyHamet,embaixadordoreidaBarbárie,umreino no Norte de África que abarcava o actualreino de Marrocos, estendendo‑se para alémdele. A sua presença em Londres devia‑se ao seuprojectodereconquistarEspanha,comaajudadeInglaterra. Um dos maiores receios de Filipe IIseria o de poder ocorrer uma acção conjunta porpartedosmourosqueaindapersistiamemGranadacomumataqueturco.Apósváriasconversações,oentendimento não surgiria, mas a imagem destenobremouropersistirianoimaginárioinglêscoevo,tendopodidocontribuirparaaconcepçãodeOtelo(Bate, pp. 287 e 289).

NapeçahomónimaétodoumimaginárioligadoaoMediterrâneoqueimpera.RefereJonathanBateque o termo «mouro» pressupunha, então, umaidentificação religiosa e não racial, significandomaometano, ou seja, muçulmano. Era frequente‑menteusadoparadesignarum«nãocristão».Destemodo,oquemaiorestranhezacausariaàsaudiên‑ciascoevas,seriaofactodeOtelosercristão.Umavez mais eventos facilmente reconhecíveis pelasaudiências ecoariam numa peça de Shakespeare.Mas estes factos, e a eventual recordação de teractuado perante o embaixador, ficarão para já namemóriadodramaturgo.Faltamaindaalgunsanosaté que a sua pena a eles regressasse.

Sempre atento tanto a esses e outros eventosquotidianos como a textos de outros autores quepudessem ser por ele apropriados, Shakespeare

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iria, entretanto, conjugar essas duas dimensõesnaquela que será uma das suas obras maiores,Hamlet.

Opúblicolondrinotiverajáaoportunidadedeassistiraumapeçasobreumpríncipedinamarquêsquevingaoassassinatodopai,daautoriadeTho‑masKyd.Comoénatural,Shakespeareconhecia‑a,sendo até possível que nela tenha representado.Comojáreferi,naalturaosactorestinhamacessoapenas ao seu papel, e não ao conjunto da peça.Isso não significaria, porém, como é óbvio, quedesconhecessem o conjunto da peça. Além disso,a reescrita de peças preexistentes não constituíaentão um problema de maior, não sendo o plágio,comohojeoentendemos,algodeilegal.Poroutrolado,Kydjánãopoderialevantareventuaisobjec‑ções,vistotermorridoem1596,provavelmentenasequênciadatorturaqueforaobjectoporcausadoseu companheiro Marlowe (Greenblatt, p. 294).

Umepisódiopoderáigualmentetersidoapro‑priado por Shakespeare para a sua peça. A 17 deDezembrode1579,umajovemchamadaKatherineHamlett afogou‑se no rio Avon, em Tiddington,quandotentavaencherumbaldecomágua.Seguiu‑‑seuminquéritoparaapurarseasuamorteteriasidoacidentalouseseteriatratadodeumsuicídio,o que, a confirmar‑se, impediria que ela fosse se‑pultadaemsoloconsagrado(Duncan‑Jones,p.176).AmortedeOféliapoderá,assim,tersidoinspiradaneste episódio.

Outroaspectoigualmentesensívelnostemposque corriam pode ser detectado através de umapresença, a do fantasma, visto este ser uma remi‑niscênciadaculturacatólica,istoé,doPurgatório.

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Importa ter presente que a doutrina protestanteoficial negava a sua existência, assim como a defantasmas; as aparições seriam, quanto muito,entidadesdiabólicasdisfarçadas.Éaessa«prisão»,na qual, segundo se cria, se poderia passar mil adoismilanos,queofantasmadopaideHamletsereferenaquintacenadoprimeiroacto;ofantasmaque,curiosamente,maisadiante,irájurarporSãoPatrício...osantopatronodoPurgatório.Ora,haviaquem pensasse que a entrada para o Purgatórioera na Irlanda, no condado de Donegal, numagruta que havia sido descoberta por São Patrício(Greenblatt, p. 319).

A escrita de Hamlet surge muitas vezes asso‑ciada à morte do pai de Shakespeare. Com efeito,apesar de ter ainda apenas 36 anos de idade, esteatingirajáumsucessoconsideráveltantoaníveldepeçashistóricascomodecomédiasoudetragédias.No entanto, esse sucesso seria marcado por umeventoparticularmentedoloroso.A8deSetembrode1601encontramo‑lo,denovo,emStratford,des‑tafeitaparaofuneraldoseupai.JohnShakespeareandava pelos 70 anos e falecera sem ter deixadotestamento. No entanto, de acordo com o direitonatural, William terá herdado a casa em HenleyStreet assim como as propriedades agrícolas pos‑suídas pelo pai. No ano seguinte, prosseguirá osseus investimentos, agora envolvendo montantessubstancialmente superiores, 500 libras.

Hamlet ficaria,contudo,namemóriadopúbli‑co isabelino. Para tal contribuiria, em particular,o desempenho de Richard Burbage no papel dopróprio protagonista. Esse seu desempenho seriacelebrado num poema escrito em 1604, onde se

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fazreferênciaaofactodeBurbageterfiguradodetal forma a loucura de Hamlet ao ponto de beberdum tinteiro como se estivesse a beber cerveja.Esta seria a sua primeira peça a ser levada à cenaem Oxford e em Cambridge, uma distinção quedenunciaamudançaqueentretantoseoperaraemtermosculturaisporpartedouniversoacadémicoface ao drama contemporâneo.

Oxford seria, aliás, um destino habitual deShakespearesemprequesedeslocavaaStratford.Existem vários registos apontando para o factodeelefrequentaraíaCoroa,umatavernaqueerapropriedade do casal Davenant, John e Jennet.O filho primogénito do casal, Robert, recordavaqueShakespearelhedava«umacentenadebeijos».Deve‑se, todavia, a William, o segundo filho docasal,provavelmentenomeadoemhomenagemaodramaturgo,umahistóriamaispolémica.WilliamDavenant, que viria também a seguir carreirateatral, sendo em parte responsável pelo reavivardo drama shakespeariano após a Restauração, eque assumiria a função de revisor de Macbethe de Hamlet com a ajuda de John Dryden, seriaprovavelmente a fonte do boato segundo o qualele próprio era filho ilegítimo do bardo.

AcarreiradesucessodeShakespeareprosseguia,entretanto,comNoite de Reis,quefoilevadaàcenaem Londres pelos Homens do Camareiro‑Mor nosprimeiros dias de Fevereiro. Shakespeare poderáterassumidoempalcoMalvolio,apersonagemquerepresentaasensibilidadepuritanaprofundamenteavessaaestetipodeespectáculosequeencontraoseuopositornaturalemFeste,que,emcontraparti‑da,celebraoespíritodafesta.Arminencarnoueste

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último,oque,tendoemcontaosseusdotesvocais,justificará a importância que a música assume napeça (Ackroyd, pp. 373‑375, 379 e 384).

Outrotipodehumor,nestecasomaispolítico,seria por ele abordado em Tróilo e Créssida. Em‑boraescolhendoumcenárioremoto,Shakespearenão deixaria aqui de exibir os sinuosos meandrosdo mundo da corte. Entre estes, podem ainda serinsinuadas analogias entre a figura de Aquilese a do conde de Essex, assim como com outraspersonagens influentes na corte isabelina, comoWalsingham. A dimensão mítica, eventualmentenostálgica, face a um passado que seria caracteri‑zadopelassuasvirtudeséticas,nãotemlugaraqui.Estamos,portanto,muitolongedotextohomóni‑modeChaucer,queteráservidodeimpulsoaodobardo. Apesar de levada à cena no Globo, não é,todavia,provávelqueTróilo e Créssida tenhasidorepresentada na corte.

Shakespeare continuava em palco, com os Homens do Camareiro‑Mor,quandoestesactuaramperante Isabel I em Whitehall, a 26 de Dezembrode 1602, e em Richmond, a 7 de Fevereiro de1603. Estas seriam, porém, as últimas vezes quea companhia teria essa honra, pois, pouco maisde um mês passaria até os teatros voltarem a serencerrados.Destafeita,devidoaofactodearainhaestar às portas da morte.

Pelas2damanhãdodia24deMarçode1603,seis semanas após a representação dos Homens do Camareiro‑Mor, em Richmond, chegava ao fimo longo reinado de Isabel I. Uma nova página seabria em Inglaterra... e na carreira do nosso dra‑maturgo.

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Ao serviço do rei

EnquantoInglaterrasepreparavaparaacolherum novo monarca, Shakespeare prosseguia a suaactividade profissional e criativa. Fazia‑o, porém,sem descurar os seus investimentos e tendo sem‑pre em mente as suas raízes. Em Maio de 1602,voltouaadquirirterrasemStratford,algoqueiriafazer de novo três anos mais tarde, mais precisa‑mente em Julho de 1605.

Londres continuava assim fora dos seus inte‑ressesaestenível.Agrandeurbeseriaainda,paraele, um espaço de trabalho e também de convíviocom os amigos; mas não mais do que isso. Nãose vislumbram sinais de para ali ter alguma vezquerido levar a sua família, nem de ali ter deseja‑doadquirirumacasaparaviverempermanência.Aolongodosanos,Shakespeareoptariaporarren‑dar ora um espaço ora outro, levando consigo umreduzido número de pertences. Como os actoresque durante as digressões consigo transportavamapenas o essencial, também ele parecia estar emLondres... em trânsito, apenas com o essencial.

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Contrariamente a Jonson, que reuniria uma vo‑lumosa biblioteca, ele deixaria somente um redu‑zido número de livros após a sua morte. Os seusinvestimentos,comovimos,centrar‑se‑iamfunda‑mentalmenteemStratford;aliadquiririaterras,eoutrosbens,comoceleiros,paraalémdacasaondeagora vivia a sua família.

Em 1604, vemo‑lo mudar‑se para um andarpor cima de uma loja de perucas, propriedade deumartíficefrancês,ChristopherMountjoy,naes‑quina de Mugwell Street com Silver Street. Estesnovos aposentos ficavam algures a noroeste dasmuralhas da cidade, numa zona conhecida porser um refúgio de artistas. Shakespeare escolhia,assim, permanecer entre os seus companheirosde profissão. Entretanto, Stratford continuava aocuparumlugarfundamentalnasuamente.Destafeita,osseusinteressesvoltaram‑separaacomprade malte, que armazenaria no seu celeiro, na suaterra natal, muito além daquelas que seriam assuasnecessidades(Greenblatt,pp.330e362).Nãonos adiantemos, porém, pois outros eventos maisrelevantes haviam precedido estes investimentosdo nosso dramaturgo.

Devemos para já regressar ao final da Prima‑vera, início do Verão, de 1603, uma altura em quea chegada do rei Jaime provocava uma naturalexpectativa junto da população londrina. Jaimedemonstrara alguma cautela na sua viagem rumoà capital, não se apressando de modo a permitirquedecorresseotempodevidoaolutopelarainharecentemente desaparecida.

Amante das artes, ele próprio poeta, ensaísta efilósofo,Jaimetinhajádoisfilhos,oquegarantiaa

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tão desejada estabilidade a nível da sucessão. Nãosãorarososregistosdeencómiosescritosaquandodasuachegada,tantoporpartedenomesconsagra‑dos,comodeoutrosmaisobscuros;encómiosestesquehaviamsucedido,aliás,aoutrograndenúmerode encómios, aqueles que tinham celebrado a me‑móriadarainha.Significativamente,entreestesnãosurgeonomedeShakespeare.Umsinal,talvez,doseu respeito pela memória de Lorde Essex...

Ainda antes de ter chegado a Londres, JaimeIhavia proclamado uma ordem de libertação doconde de Southampton, que permanecia presona Torre de Londres, na sequência da tentativade revolta de Essex. Imediatamente após a sualibertação, Southampton dirigir‑se‑ia para norteaoencontrodacortequeseencontrava,então,emHuntingdon. Aí receberia a incumbência e a hon‑ra de transportar a espada cerimonial do estado.KatherineDuncan‑JonesdefendequeShakespearealudeaesteseuanteriorpatrononosversos3e4do soneto 107, podendo igualmente o último ver‑so encerrar uma alusão à linhagem Tudor, agoraextinta, e aí denominada «traidora». A reputadashakespeariana acrescenta ainda que estudos cri‑teriosos sobre a rima e a dicção dos sonetos 104a 126, do quarto de 1609, atestam que eles foramescritos muito mais tarde do que os restantes(Duncan‑Jones, p. 194).

Na evidente ausência de um diário e no con‑sequente silêncio com que a sua biografia vaiemergindo das brumas do tempo, depreende‑seumoutrosilênciomuitoconcreto,odeumaescritadilatadanotempo,adosseussonetosondepontu‑almente se indiciam rostos, eventos, paixões.

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Passados dez dias da sua chegada a Londres,a 17 de Maio, Jaime I deu instruções a RobertCecil no sentido de colocar sob sua protecção acompanhia que até então havia sido conhecidacomo os Homens do Camareiro‑Mor. Nasce assimacompanhiaquepassariaasercelebradacomoosHomens do Rei.

A sua patente data de 19 de Maio, surgindo onomedeShakespeareemsegundolugarlogoapóso de Lawrence Fletcher, «pro Laurentio Fletcher et Willielmo Shakespeare».EmboraFletcherfosseum recém‑chegado a Londres, tinha, todavia, oprivilégio de já haver actuado duas vezes peranteo rei na Escócia. Quanto ao nosso dramaturgo,constata‑sequeeleparticipavaagoradoscírculosmais próximos da coroa.

Recorde‑se que os convites para representarjunto do rei não eram apenas um mero motivode honra, visto implicarem igualmente generosasremunerações. Importa referir que a companhiarecebia10librasporcadarepresentação,umasomadeverassignificativa.Acresceaestefactoomanifes‑toapoiodomonarcaàsartes.Comefeito,antesdeJaimeIascenderaotorno,ogrupodeShakespeareactuaranacorteumamédiadetrêsvezesporano.Noentanto,nosprimeirosdezanosdoreinadodeJaimeessenúmeroaumentariaparacatorzevezespor ano. Muitas destas actuações seriam de novasadaptações de peças como Comédia de Equívocos,Hamlet,As Alegras Comadres de Windsor,Canseiras de Amor em Vão, Henrique V ou O Mercador de Veneza. Esta última terá sido do agrado particulardomonarca,oqualsolicitaraqueelafossedenovolevada à cena. Dever‑se‑á assinalar algo de parti‑

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cularmentereveladordoprestígioqueacompanhia,eShakespeareemparticular,entãogozavam:todasas peças de Shakespeare escritas após 1603 foramrepresentadasperanteorei,algumasdelasmaisdoque uma vez (Ackroyd, p. 394).

Mas este evidente sucesso não significa que acompanhianãosetivesseconfrontadocomgrandesdificuldades decorrentes de vários e dilatados pe‑ríodosdeencerramentodosteatros.Defacto,du‑ranteosseisprimeirosanosdoreinadodeJaimeI,ou seja, durante aquele que seria naturalmente operíodo de maior produtividade de Shakespeare,osteatrosestiveramfechadosdevidoàpestenumespaço de tempo de, sensivelmente, quatro anos:entreMaiode1603eAbrilde1604;apósumabre‑víssimareaberturadeummês,voltariamafecharemMaiode1604atéSetembrodessemesmoano;de Outubro a Dezembro de 1605; e depois, entreJulho de 1606 e Fevereiro de 1610, com um hiatode quatro meses entre Abril e Julho de 1608.

O ano de 1603 começara por ser particular‑mentedifícilparaShakespeare,queentãoignoravaquando é que as peças que acabara de escreverpoderiamviraserlevadasàcena;desdelogodevi‑doàsrestriçõesmotivadaspelapeste—estima‑seque,numapopulaçãodecercade200000pessoas,38000tenham,então,morrido,àsquaissesegui‑ramasrestriçõesprovocadaspeladoençadarainhae, posteriormente, pelo luto.

Estas reiteradas e, não raro, demoradas inter‑rupções fizeram com que ele voltasse a sua aten‑ção para outras actividades. Devemos ter semprepresente que, nesta altura, Shakespeare fizera jáconsideráveisinvestimentosemStratford.Signifi‑

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cariaissoumafastamentoseudoteatro?SegundoJonathan Bate, existem alguns indícios que noslevamaponderarahipótesedeeleterabandona‑doospalcosparasededicarexclusivamenteàsuaactividade criativa como dramaturgo. Um destesindícios será o facto de o seu nome constar noselencosdepeçasdeBenJonsonlevadasàcenaem1598eem1603,edeestarausentedepeçasdesteautor, como Volpone, de 1605, e O Alquimista, de1610, nas quais surgem, contudo, nomes dos seuscolegasdos Homens do Rei.Deigualmodo,umalis‑tadeActores de Interlúdios,de1607,recentementedescobertanosarquivosreais,indicanomescomoos de Burbage, Armin e Hemings, sem todaviareferenciar o seu (Bate, pp. 355‑336).

Poder‑se‑ia objectar que a importância deShakespeare, no seio da companhia, enquantoactor, não seria particularmente relevante. Esteargumento é contrariado pelo destaque que lhe éconferidoem1598,aquandodeumarepresentaçãodacomédiadeBenJonson,Every Man Out of His Humor.Alistadosprincipaisactoresqueintegra‑ramesteelencoéformadaporduascolunas,umadasquaisencimadaporRichardBurbageeaoutrapor...Shakespeare.Estedestaqueéparticularmentesignificativo devido ao facto de, entre os nomesaíapresentados,algunsseremdeactoresfamososcomo Augustine Phillips; o mesmo Phillips que,recorde‑se,juntamentecomJohnHemingseWillKempe, tivera a responsabilidade de defender acompanhia em tribunal aquando do processo emqueestaseviuenvolvidaapósteremlevadoàcenaRicardo II. Outros nomes são, todavia, de figurasmenos conhecidas como Christopher Beeston.

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A título de curiosidade devo acrescentar queBeestonéumafonteimportanteparaumeventualpreenchimento, ainda que parcial, dos tais «anosperdidos»,vistoserelequemafirmouqueonossodramaturgoteriasidomestre‑escolanajuventude.Devido à sua proximidade de Shakespeare, este é,portanto, uma fonte algo fidedigna (Bate, p. 267).

A par desta actividade, manter‑se‑á a relaçãocontinuada com Stratford. Embora não haja re‑ferências escritas que comprovem o seu envolvi‑mento na vida comunitária desta cidade, existemregistos de negócios e de processos em tribunalqueprovamasuapresençaaíduranteessesanos.

Entretanto, a peste tornar‑se‑ia mais intensadurante os meses de Maio e de Junho, pelo que acoroação, que teve lugar a 24 de Julho, foi objec‑to de um controle profundo. Todas as portas deentrada em Londres estavam severamente guar‑dadas,àsemelhançadasmargensdorio.Devidoàimpossibilidadedesefazeremactuaçõespúblicas,os Homens do Rei partiram em digressão. Destemodo,enquantooreisedirigiaparasul,osactorespartiam para norte.

Esta separação terá sido antecedida de umarepresentaçãojuntodacorte,pelaqualreceberam20 xelins, quando esta esteve sediada em Oxford.Duranteorestodoano,receberampagamentosemCoventry, Bridgnorth e Bath, o que nos permitetraçaropercursoqueentãoterãoseguido.UmdoslocaisporelesvisitadosfoiMortlake,ondeviviaofamoso astrólogo e alquimista John Dee, no qualShakespearesepoderáterparcialmenteinspiradopara a sua concepção da personagem Prosperode A Tempestade (Ackroyd, p. 399). Além disso, o

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dramaturgo terá tido, nessa altura, oportunidadedeseinteirardosseusnegóciosemStratford,no‑meadamente para receber rendas e o pagamentode dívidas (Duncan‑Jones, pp. 198‑201).

Igualmente por esta altura Shakespeare con‑cebeTudo Está Bem O Que Acaba Em Bem.Nestacomédia, o reputado shakespeariano Fernandode Mello Moser detecta alusões subliminares auma cultura católica na caracterização de umapersonagem, Helena. As eventuais alusões ocor‑rem entre os versos 25 e 29 da quarta cena dosegundoacto.EscreveMelloMoser:«Areferênciaé à personagem Helena [...] mas as conotaçõesevocadas[…] são as que a tradição associou àSenhora.» (Moser, p. 238.) Aliás, como refereA.D.Nuttall:«Ascomédiasestãorepletasdefigurasmenores do clero católico: o frade que encontraSílvianaflorestaemOs dois cavalheiros de Verona;Frei Patrício, na mesma peça; Frei Francisco emMuito barulho por nada;opadreemNoite de Reis;o‘velhoreligioso’emComo vos aprouver.»(Nuttall,p. 17.) Por seu turno, Chesterton seria um radicaldefensor do argumento a favor do catolicismo dodramaturgo.

Esteserá,todavia,umtópicoemrelaçãoaoqualShakespeare se revela particularmente esquivo, esobre o qual o autor continua a iludir‑nos; aquiloqueohomempensava,muitoprovavelmente,parasemprepersistiráparaalémdonossoconhecimento.

Mesmoaperspectivaexpressanasuaobraestálongedeserexplícita.Veja‑seoexemplodeHamlet.DoverWilsonsintetizaessafluidezecomplexida‑de nesta peça ao considerar que a escatologia deHorácio e de Hamlet é protestante, enquanto o

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fantasma é católico, e que tanto Bernardo comoMarcelo são isabelinos sem convicções religiosasconcretas (Kitto, p. 152). Esta é, portanto, umareflexão complexa e polémica que deverá sercontinuadanoutroespaço.Prossigamos,portanto.

No Natal, os Homens do Rei actuaram cincovezes em Hampton Court; uma das peças terásido Sonho de Uma Noite de Verão. A companhiarepresentariaoitopeçasnacorteduranteoInvernode 1603‑1604. Na temporada seguinte levariam àcena onze peças na corte, incluindo duas de BenJonson e sete de Shakespeare: Otelo, As Alegres Comadres de Windsor, Medida por Medida, Comé‑dia de Equívocos, Henrique V, Canseiras de Amor em VãoeO Mercador de Veneza.Umavezmaissemanifestaramosfavoresdomonarca.Comefeito,oreificoutãoagradadocomestaúltimapeçaqueosinstruiu no sentido de que ela fosse representadaduas vezes no espaço de três dias.

Um outro sinal evidente da simpatia do mo‑narca surgiria em Fevereiro de 1604, quando eleofereceuaRichardBurbage30librasparaqueestedistribuísse pelos membros da companhia. Estepagamento extraordinário tinha como objectivorecompensá‑los pelo facto de não terem podidoactuar durante um novo período de restrições.

No mês seguinte, mais precisamente a 15 deMarço, o rei, a rainha e o príncipe Henrique en‑cabeçariam um desfile que partiria da Torre deLondres, atravessaria a City e culminaria emWhitehallparaaaberturadoParlamento.Shakes‑peare não participaria nas festividades seguintes,provavelmente por considerar que o seu estatutoestaria acima desse tipo de iniciativas, embora

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tivesse integrado o cortejo enquanto «homem dorei» (Duncan‑Jones, pp. 198‑201).

Étambémporestaalturaqueocorreajámen‑cionadamudançadeaposentos.ShakespearetrocaentãoacasaondehabitavaemSouthgateporumaoutra de três andares na esquina de Silver StreetcomMuggleStreet,umazonamaisnamoda,ondepassaria a viver com os Mountjoy, uma famíliade huguenotes. Como acima referi, ChristopherMountjoy dedicava‑se ao fabrico de perucas e deornamentos afins, o que indiciará uma eventualligação à actividade teatral e, provavelmente, àcompanhia de Shakespeare (Ackroyd, p. 396).

Shakespeare completara entãoOtelo eMedida por Medida. As duas peças seriam representadasna corte no final do ano, respectivamente emNovembro e Dezembro. Tendo em conta que osteatros foram reabertos em Abril, é possível queambas tenham sido previamente levadas à cenano Globo. Estas seriam, assim, as primeiras pro‑duções dos Homens do Rei após o seu regressode Hampton Court (Ackroyd, p. 402). Tal comoMedida por Medida, levada à cena em Whitehallna noite de Santo Estêvão, a 26 de Dezembro, aqual menciona acontecimentos ocorridos no anoanterior,tambémemOtelo Shakespearerevisitaamemória colectiva mais recente.

Como escrevi no capítulo anterior, Londresacolhera no ano de 1600 o embaixador do rei daBarbárie, perante o qual o próprio Shakespearehavia representado. A sua presença terá exercidoumfascínioparticularjuntodoslondrinos,aoquenão terá sido alheia a sua imortalização atravésde um quadro para o qual posou. Segundo Peter

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Ackroyd,será,destemodo,maisumatezárabedoque negra que definirá a personagem fisicamentenele inspirado.

Outrofactorecentepoderáterecoadoalgoin‑viamentenapeçadeShakespeare.Corriam,então,pelaEuropahistóriassobreosciúmesdeFilipeIIde Espanha, país pelo qual o rei nutria uma sim‑patiaparticular.Rezavaumadessashistóriasqueoreiestrangularaamulhernoseuleito.Factomaisrelevante: esses ciúmes teriam sido despoletadosquandoeladeixaracairumlençonapresençada‑quelequeomonarcadesconfiavaseroseuamante.As analogias são, assim, por demais evidentes. Énesta linha que Ackroyd explica que Shakespearetenha escolhido Chipre, outrora protectorado deVeneza, como palco da acção, pois esta estavaocupadaporforçasturcas,oqueconstituiriaumaameaçaparaEspanha.Opróprioreiescreveraumpoemasobreestetópico.Destemodo,Shakespeareestariaairaoencontrodosinteressespolíticosdomonarca (Ackroyd, p. 403).

À semelhança do que sucedeu noutras ocasi‑ões, Shakespeare integrará, num todo harmónico,eventos históricos com fontes literárias. Aquelaqueterásidoasuafontedeinspiraçãoinicial,umcontoinseridonacolectâneaGli Hecatommithi,deGiovanbattista Giraldi Cinthio, seria assim objec‑to de contaminações várias com ressonâncias deepisódios facilmente reconhecíveis por parte deaudiência. Àquela fonte riquíssima, Shakespeareregressaria em Medida por Medida.

Apósváriasrepresentaçõesno Globoenoutroslocais, aquando das digressões da companhia, apeça intitulada O Moro de Venis, por «Shaxberd»,

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foi levada à cena a 1 de Novembro de 1604, nacorte,emWhitehall,peranteorei.Opapeldopro‑tagonistaestariaacargodeRichardBurbage,que,para tal, escureceria a tez. Curiosamente, Iago, ovilão, seria encarnado por Robert Armin, a quem,recorde‑se, estavam habitualmente destinados ospapéis mais cómicos.

Trêsdiasmaistarde,nomesmolocal,eumavezmais na presença do monarca, os Homens do Reirepresentariam As Alegres Comadres de Windsor.Emboranãoexistamregistosdaactuaçãoemsi,jáaentradadeJaimeIseriadescritaemdetalhe:«entrequinze e vinte cornetas e trombetas começaram atocarmuitobemumaespéciederecitativo,edepoisde Sua Majestade se ter sentado sozinho sob umdossel […] fez sinal aos embaixadores para se sen‑tarem mais abaixo em dois tamboretes, enquantoos oficiais superiores da coroa e dos tribunais sesentavam em bancos» (Ackroyd, p. 409).

Não são apenas factos históricos ou episódiosmais ou menos burlescos que Shakespeare inte‑gra nas suas peças. Também as mudanças que seoperavam em termos de uma nova sensibilidadenacional, sob o reinado de Jaime I, de algumaforma ecoavam nas obras que ia produzindo; porexemplo,nassuaspeçashistóricasquehaviamsidoescritasaindanadécadade1590,duranteoreina‑do de Isabel I, portanto, Shakespeare referira‑sesempre ao seu país como Inglaterra. Aliás, de umtotalde143ocorrênciasdoadjectivo«inglês»,126têm lugar nas peças isabelinas, e somente 17 nasjacobinas, as quais surgem basicamente em Mac‑beth eem Henrique VIII — naprimeira,Inglaterrasurge em confronto com a Escócia, enquanto a

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segunda é, ela própria, uma peça nostálgica faceà época Tudor.

Podemos considerar que o Shakespeare desta«últimafase»subscreveoprojectodomonarcadereconstruçãodeumreinobritânico:emCimbelino,concebido para a corte de Jaime I, Shakespeareutiliza Britânia e bretões, para representar o seupovo,quase50vezes(Bate,p.340).FrankKermodedefendequeestapodeser,emcertamedida,enten‑dida como uma peça histórica, pois, por um lado,CimbelinoteriagovernadoaBritâniaaquandodonascimentodeCristoe,poroutro,apeçaretratavaalutadosseushabitantescontraoimpérioromano(Kermode, pp. 169‑170).

Porseuturno,astragédiashistóricasO Rei LeareMacbethexibemcontextos«britânicos»remotos.Ora, a Britânia era agora um reino único, ao queacresce o manifesto interesse do monarca pelahistóriaantigadoreino.Aescritadastragédiashis‑tóricascomcontextosgregoseromanos—Timão,Coriolano, António e Cleópatra — justificar‑se‑áquer pelo facto de a sua fonte, as já mencionadasVidas, de Plutarco, ser praticamente inesgotávelquer pela sua reiterada opção no sentido de ir aoencontro do gosto do público por estes universos(Duncan‑Jones, p. 209). No entanto, embora ocontexto seja remoto, os ecos de eventos coevospodemserpercepcionados;porexemplo,aquandoda entrada de Coriolano em Roma será identi‑ficável uma atmosfera idêntica à da entrada deJaimeIemLondres(Wilson,p.114).Porseuturno,o temperamento de Coriolano de alguma formapoderá trazer à mente o intemperado e quiçáarrogante Essex.

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Para além do género e das suas ressonânciasremotas, algo mais une Timão, Coriolano, Lear eCleópatra:todasestastragédiasexploramasmisériasdecorrentesdevidasdemasiadolongas.InspiradaemPlutarco, e provavelmente escrita em colaboraçãocom um dramaturgo mais jovem, Thomas Midd‑leton, que nascera em 1580, de Timão não existemregistos de ter sido representada, razão pela qualKatherine Duncan‑Jones considera que ela podeter ficado por acabar (Duncan‑Jones, pp. 210‑211).

Por seu turno, Macbeth foi concebido nos pri‑meirostemposdoreinadodeJaimeI,numaalturaemque,comovimos,osHomensdo Camareiro‑Morderam lugar aos Homens do Rei, poucas semanasdepois de Jaime I ter subido ao trono. Com estapassagemvieramtambémosjámencionadossinaisde reconhecimento público, identificáveis desdelogonoestatutoquelhesfoiatribuídode«gentis‑‑homens da Câmara Real».

Macbeth seria levado à cena em 1606 na pre‑sençadoprópriorei.Nelaestepoderiareconhecervários ecos da sua experiência pessoal, desde asintrigasconspirativasemtornodafigurarégia,atéà atmosfera algo sobrenatural, envolvendo perso‑nagens como as bruxas. Com efeito, Jaime I eraparticularmentesensívelaostemasqueenvolviamo sobrenatural, algo que não só o afligia, comoo levara, inclusivamente, a escrever um tratadosobre bruxaria.

Mas não havia sido apenas do sobrenaturalque o monarca tinha sentido ameaças, vistodesde muito cedo ter convivido com outras bemmais palpáveis e reais. Filho de Maria, rainhados Escoceses, Jaime I ascendera ao trono muito

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jovem,comapenas13mesesdeidade,apóssuamãeter sido deposta na sequência de um casamentoalgo apressado com o conde de Bothwell; o mes‑mo conde Bothwell sobre o qual caíam suspeitasde ter assassinado Lorde Darnley, pai de Jaime.Pouco tempo depois da sua subida ao trono deInglaterra, Jaime tinha sido, ele próprio, objectodeumaconspiraçãoenvolvendoasuaprimaLadyArbella, que em tempos havia sido vista comoprovável sucessora de Isabel I. São evidentes assemelhançascomMacbethqueéprimodeDuncane, como tal, pretendente também ao trono.

Poder‑se‑á considerar que Shakespeare con‑cebeu esta peça sobre os perigos decorrentes dasubversão da ordem política como uma espéciede elogio indirecto de Jaime, já que ele era vistocomo descendente de uma linhagem nobre quese perdia na noite dos tempos. Nas Crónicas deHolinshed, Shakespeare colheu uma vez maisinformação para a sua criação; desta feita na sec‑ção dedicada à Escócia. No entanto, enquanto emHolinshedBanquosurgedescritocomoumtraidor,em Macbeth ele é transfigurado por Shakespearenummodeloético.Greenblattconsideraqueteriasido agradável para Jaime, cujo passado próximoestava repleto de histórias de traição, ver a sualinhagem descender de um pilar de integridade(Greenblatt, p. 336). Além disso, como acimareferi, as histórias de traição não se ficavam pelopassado remoto. Com efeito, meses antes da peçater sido representada, ocorrera uma tentativa deassassinato do rei.

Um ano depois deste episódio, os Homens do ReilevariamàcenaumapeçaintituladaA Tragédia

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de Gowrie,naqualrevisitavamatentativaderaptode Jaime I levada a cabo em 1600 pelo conde deGowrie. Após ter sido exibida duas vezes apenas,perante grandes audiências, a peça seria retiradacom o argumento de não ser adequada a repre‑sentação em palco de uma figura real ainda viva.

A par da escrita de obras que viriam a entrarnoimaginárioocidental,Shakespearecontinuavaafortaleceroslaçosqueoligavamàsuaterranatal.Tal como o génio artístico que estava mais vivo eactivo do que nunca, também o homem prático,atentoaosassuntosdodia‑a‑dia,nãodeixavapas‑saraoladoasoportunidadesdeaumentarosbensfamiliares.A24deJulhode1605,Shakespearefezmais um avultado investimento — 440 libras, emdízimos,juntodaCorporaçãodeStratford,relativoarendasdeterras:odízimo,outrorapagoàIgreja,havia sido transferido para as Corporações.

Através deste investimento, o dramaturgoesperava obter o razoável rendimento anual decercade60librasduranteumperíodoaproximadode trinta anos. Assim, após ter comprado o Novo Lugar, continuava a assegurar o bem‑estar da fa‑míliaapósasuamorte.Aomesmotempo,adquiriaumestatutoespecialquesereflectirianolugarquelhe seria reservado na Igreja, e ainda o direito devir a ser enterrado no seu perímetro.

Alguns meses depois, o país seria abaladopor um acontecimento que viria a integrar o seuimaginário colectivo. A 4 de Novembro de 1605,nas vésperas de Jaime se dirigir ao Parlamento,foi descoberta uma tentativa para fazer explodiro edifício por parte de um grupo de fanáticos ca‑tólicos. A «Conspiração da Pólvora», como ficaria

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conhecida, havia sido liderada por Guy Fawkes.Uma carta anónima denunciá‑la‑ia, levando àprisão dos intervenientes e assim evitando ummassacrequedeixariaInglaterrasemoseucorpopolítico. De imediato encarcerado nos subterrâ‑neos das Casas do Parlamento, Guy Fawkes seriaexecutado mais tarde. Uma vez mais Inglaterraestava a ser assolada pelas tensões religiosas quepareciam não se diluir.

A15deDezembro,o Globoabriadenovoassuasportas.ImediatamenteapósoNatal,os Homens do Rei estavam, uma vez mais, a actuar na corte napresença do monarca. Uma produção de MacbethpelasCrianças de São Paulo émencionadanoiníciode Julho, o que leva Peter Ackroyd a sugerir que,tendoemlinhadecontaoperíododeencerramen‑to dos teatros, ela terá sido previamente levada àcena,no Globo,alguresentre21deAbrilemeadosde Julho (Ackroyd, p. 418).

Seguir‑se‑ia uma nova digressão, abarcandoagoracidadescomoDover,Maidstone,Faversham,SaffronWalden,Leicester,OxfordeMarlborough.CasoShakespearetenhaacompanhadoos Homens do Rei nesta viagem, então também terá passadoem Outubro por Dover, uma cidade que seria re‑levante para a sua obra seguinte. Com efeito, nofinaldoano,acabariadeescreverumapeçaonde,à semelhança de Macbeth, abordaria o problemada soberania e do passado algo mítico da históriade Inglaterra, O Rei Lear.

De Stratford chegavam‑lhe entretanto sinaispreocupantesnoplanofamiliar.Doismesesantes,emMaiode1606,onomedeSusannasurgiraentreosdevinteedoisnomesdecidadãosdeStratford

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acusados de terem faltado à Comunhão durantea Páscoa. Entre estes contavam‑se conhecidosadeptosdocatolicismoetambémosdosamigosdeShakespeare,HamneteJudithSadler.Desconhece‑‑searazãopelaqualelateráincorridonaquelaqueseria uma falha particularmente perigosa, já quese vivia o rescaldo da «Conspiração da Pólvora».Irreverência da juventude? Mero desinteresse?Uma tomada de posição «política»? Na ausênciade argumentos firmes, apenas hipóteses podemser aventadas. No entanto, é certo que, um anodepois,devidoaoseucasamentocomorespeitávelDoutorJohnHall,Susannaconseguiriaredimir‑sedas eventuais faltas do passado (Duncan‑Jones,p. 298).

A26deDezembro,os Homens do Rei levariamà cena uma peça que, uma vez mais, abordava oproblema da soberania, a já mencionada O Rei Lear. Na página inicial do primeiro quarto destapeça, é referido não só o local e a data em que foirepresentada perante o monarca — Whitehall, nanoitedeSãoEstêvão—mastambém,emlugardedestaque, o nome do «Sr. William Shak‑speare».Assimsedistinguiaestaversãodaquelaquehaviasido publicada no ano anterior.

Alguns acontecimentos ocorridos alguns anosantes em Londres poderão ter estado na origemda profunda reescrita por parte de Shakespearedaquelaqueforaumatragicomédiados Homens da Rainha,A Verdadeira Crónica Histórica de Rei Lear.

RemontamestesacontecimentosaoOutonode1603, quando, após a morte da rainha, Sir BrianAnnesley,umdosseusmaisantigosservos,come‑çara a exibir sinais óbvios de senilidade. Poderão

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ser reconhecidos sintomas premonitórios da suadoençanotestamentodatadode1deAbrilde1600,vistoneleSirBrianterdeixadotodaasuaherançaàfilhamaisnova.Refira‑sequeestaeraumafamí‑lia abastada que estava ao serviço da corte desdeHenrique VIII, e que Sir Brian tinha três filhas.Aestashaviamsidodadosnomesdeóbviasresso‑nânciascristãs,Graça,CristianaeCordill:enquantoos nomes das duas filhas mais velhas evocam apiedade protestante, já o da mais jovem, Cordillou Cordilla, corresponde ao de Cordelia, a filhado velho rei britânico Leir, segundo o que reza anarrativa de Geoffrey de Monmouth.

Nasequênciadoinesperadotestamento,asduasfilhas mais velhas tentaram que o seu pai fosseconsiderado legalmente louco. Por seu turno, afilhamaisnovaopor‑se‑iaaosintentosdasirmãs.Após a morte do pai, a rainha Cordilla teria sidolevadaaosuicídiodevidoàacçãodosseuspérfidossobrinhos. Era ela, portanto, a verdadeira figuratrágica. Inevitavelmente, Richard Burbage encar‑naria Lear, enquanto Robert Armin assumiria apersonagem do Bobo e talvez a de Cordelia.

Teria sido esta a história que Shakespeare co‑nhecia, pois com ela contactara durante o breveperíodo em que estivera ao serviço, como actor,dos Homens da Rainha. Uma vez mais Shakes‑peare toma as suas fontes para logo as superar.Contrariando a narrativa histórica, visto Leir terexistido 800 anos antes de Cristo, Shakespearelocaliza a acção algures num passado medieval,ondeopaganismoeocristianismodealgummodocoexistiam (Greenblatt, p. 337, e Duncan‑Jones,pp. 213‑214).

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A par destas ressonâncias históricas, remotasoupróximas,outras,maisquotidianas,igualmentepassíveis de serem identificadas pelas audiências,emergem no texto. M. Gomes da Torre aponta,entre estas, «a referência que Edmundo faz aoseclipses como presságios de desgraças («estes re‑centeseclipsesdoSoledaLuanãosãoprenúnciode boa coisa para nós» [acto I, cena II, linha ll,pp. 103‑104]), «uma referência que pode ter a vercomaocorrênciadeeclipsesreaisemSetembroeOutubro do mesmo ano de 1605». Ainda segundoesteensaísta,«[s]eestashipótesescorresponderemà realidade […] O Rei Lear não poderia ter sidoescritoantesdeMaiodoreferido(datadoregisto),massim,eforçosamente,depoisdeOutubro(datados eclipses)» (Torre, p. 9 [2]).

Menosominosaseram,porém,asnotíciasque,entretanto, chegavam de Stratford. Como acimaescrevi, aos 23 anos de idade, Susanna havia sidosancionada por não ter recebido o sacramentoanglicano na Páscoa. No entanto, eventuais pro‑blemasdecorrentesdanãoobediênciaaoscânonespolítico‑religiososdominantesporpartedajovemrebelde seriam em breve superados. Com efeito,comoigualmenteafirmei,umanoapósaquelasan‑ção,a5deJunhode1607,SusannacasoucomJohnHall,ummédicodefirmesconvicçõesprotestantese um membro respeitado da comunidade.

Shakespeare conhecia há muito o noivo deSusanna. No entanto, a sua relação com o genronãoseconfinariaaopassado.Sabemo‑lodevidoauma anotação de Thomas Greene no seu diário,na qual ele menciona a presença de ambos emLondres. A proximidade entre eles persistiria

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assimapósoenlacedeHallcomSusanna(Honan,p.356).Já no final davidadeShakespeare,surgea seu lado aquando da redacção do testamentodeste.

No Verão de 1607, Shakespeare regressa, as‑sim, a Stratford para o casamento da sua filhamais velha. A 5 de Junho, encontramo‑lo ao ladoda família, na igreja local, para, de acordo coma tradição, levar a jovem ao altar. Do outro ladoaguardava‑os o noivo.

John Hall estudara em Queen’s College, emCambridge, onde obtivera os graus de bacharel emestre. A diferença de idades, apesar de signifi‑cativa — o noivo era apenas onze anos mais novodo que o futuro sogro, não terá sido motivo deimpedimento.Aliás,oseuestatutoeaestabilidadea ele associada devido às suas opções religiosasassegurariamàfamíliadeShakespeareadesejadatranquilidade naqueles tempos conturbados.

Através do diário do Doutor Hall, onde estemantinhaumregistodoscasosclínicosqueacom‑panhava, nomeadamente os dos seus familiares,podemos deduzir que não seria um radical reli‑gioso,jáque,numadasreferênciasatratamentos,menciona que «contra todas as expectativas ocatólico curou‑se», ao que acrescentou «Deo gra‑tias». Não existem, todavia, registos referentes aShakespeare,emborasejaprevisívelqueeleotenhaacompanhado mais tarde. Curiosamente, a partirdomomentoemqueoDoutorHallentranavidadeShakespeare,estecomeçaaintroduzirreferênciasamedicamentoseatratamentos,comosucedeemTudo Está Bem o Que Acaba em Bem, Péricles eTróilo e Créssida (Ackroyd, pp. 425‑426).

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12 de Julho de 1607 seria, entretanto, aparen‑temente, mais um dia de júbilo para a família,pois nele nasceu Eduardo Shakespeare, filho doirmão mais novo do autor. No entanto, algo deominoso ocorreu, pois nesse mesmo dia o bebéseriabaptizado,oquepoderiaindiciarumasaúdedébil. De facto, precisamente um mês mais tardeo menino falecia. No final do ano, seria a vez defaleceroseupai,Edmund,ooutroactordafamíliaShakespeare,provavelmentevítimadapeste.1607terminava,assim,sobosignodadorparaafamíliade Stratford.

Masestenefastoeventonãopoderáterpertur‑badomuitoagestãodoquotidianodonossodrama‑turgoqueestariaparticularmenteocupadodurantea temporada de Inverno deste ano, o qual seria,aliás,bastanterigoroso.EmmeadosdeDezembroo Tamisa congelou uma vez mais permitindo queem determinados locais fosse possível atravessara pé para a outra margem.

O mau tempo não impediria contudo que, sónestatemporada,os Homens do Reitivessemleva‑do à cena treze peças na corte. Embora não hajaregisto relativamente a quais as peças que entãoforam representadas, é provável que uma delastenhasidoA Tragédia de António e Cleópatra.RuiCarvalho Homem defende esta datação após con‑vocar os estudos recentes que, através do «cotejocomtextoscoevos»,desvendou«possíveisvínculosintertextuais» (Homem, p.12 [1]).

Ainda este ano, encontramos Shakespeare emStratford, onde foi padrinho de baptismo de ummeninoquereceberiaoseunome.WilliamGreenera filho de um advogado, Thomas Greene, que

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residiaemStratforddesde1601.AligaçãodesteaopoetapoderiatertidoorigememMiddleTemple,instituição conhecida de Shakespeare, na qual oadvogadoestudara.Durantealgumtempo,Greeneesuamulher,Laetitia,viveramno Novo Lugarcoma família do nosso autor (Ackroyd, p. 448).

A mãe de Shakespeare morreu alguns mesesapósonascimentodeElizabete,filhaprimogénitadeSusanna,queseriabaptizadaa21deFevereirode 1608. O nome da menina poderá ter sido umaforma de este «homem do rei» homenagear afilha mais velha do monarca. A 9 de Setembro de1608, a mãe do dramaturgo era sepultada. Desdea aquisição da casa em Henley Street que MaryArden ali vivera, assim como Joan, a irmã deShakespeare, que ali continuaria a residir aindaapós a morte deste.

A presença do dramaturgo poderá ter‑se pro‑longado então em Stratford. Há, aliás, quem con‑sidere que Shakespeare terá ali escrito Coriolano. Estasugestãodeve‑seaofactode,contrariamenteao habitual, esta peça conter um elevado númerodeindicaçõescénicas,oquepoderiaconstituirumaformadesuperarasuaausênciaduranteosensaios.Deigualmodo,háquemdefendaqueVolumnia,amãedoprotagonista,teriasidoinspiradaemMaryArden (Ackroyd, p. 445).

Na Primavera de 1608 é, entretanto, regis‑tada uma peça que viria a ser um grande êxitode audiências, Péricles. Esta obra seria frutoda colaboração de Shakespeare com GeorgeWilkins, também ele dramaturgo e autor dopanfleto As Três Misérias da Barbárie. Refira‑seque a reputação posterior de Wilkins se ficaria

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sobretudo a dever a esta parceria com o nossopoeta. Defende Katherine Duncan‑Jones queGeorge Wilkins terá escrito os dois primeirosactos, tendo Shakespeare redigido o restante(Duncan‑Jones, p. 245). Este trabalho conjuntoterá, contudo, terminado aqui.

Shakespeare inicia então uma nova colabora‑ção, agora com John Fletcher, que, em 1612, setornaráactorprincipaldos Homens do Rei.Desta,resultarãoHenrique VIII, aindanesseanode1612,e Os Dois Nobres Parentes, no ano seguinte.

Na edição de Péricles vinda a lume no ano se‑guinte,éditoqueelafoirepresentadaváriasvezesnoGlobopelos«ServosdeSuaMajestade».Tendoem conta que os teatros estiveram encerradosdurante 18 meses devido à peste, somos levadosa deduzir que terá sido aí representada durantea Primavera. O embaixador de Veneza acompa‑nhou o embaixador francês durante uma récita,confirmando um registo contemporâneo segundoo qual «todos os embaixadores que passaram porInglaterra foram ver a peça» (Ackroyd, p. 431).

Nesse mesmo ano de 1608, Richard Burbageconseguiu, finalmente, realizar o sonho do pai: acompanhia actuaria, por fim, no Frades Negros.Ofactodenãoterhavidograndeoposiçãoàreac‑tivação do teatro demonstra a importância que acompanhia entretanto adquirira. Por outro lado,paraalémdeumreputadoactorecriadordemui‑taspersonagensshakespearianas,RichardBurbagerevelar‑se‑iaumgestoreficiente.AoFrades Negrosaplicou um modelo idêntico ao do Globo: sete ac‑cionistas detinham um sétimo do teatro duranteum período de vinte e um anos.

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Shakespeare, que fora já accionista do Globo,tornava‑se um dos sete accionistas do novo tea‑tro. Os Homens do Rei eram agora a companhiafavorita do monarca, gozando de especial favorjuntodacorteeostentandooseloreal.Alémdisso,atraíammultidõesao Globo,aomesmotempoquedispunhamdeumaclientelamaisselectanoFrades Negros (Greenblatt, p. 368).

A aquisição deste espaço é um sinal da supre‑macia da companhia no meio teatral londrino,pois nenhuma tinha, até então, sido proprietáriade dois teatros. O investimento revelar‑se‑iaparticularmente significativo, já que os lucrosaí obtidos seriam quase o dobro dos obtidos no Globo. Há quem sugira que o teatro de Shakespe‑are sofre, então, algumas alterações quer a nívelde uma maior espectacularidade, motivada pelasmelhores condições cénicas oferecidas por esteespaço,queratravésdadivisãoexplícitadaspeçasemactos;Sonho de uma Noite de VerãoeRei Lear,por exemplo, seriam por ele revistas a este nível(Ackroyd, pp. 439 e 441). Anos depois o nomeda companhia passaria a estar associado a esteespaço. Com efeito, a partir desta altura as peçasdosHomens do Reipassariamaserlevadasàcenatanto no Globo como no Frades Negros.

Apesar do sucesso que esta aquisição signi‑ficou, os Homens do Rei passaram por algumasprivações, nomeadamente no plano material,devidoàscontínuasinterrupçõesmotivadaspelossurtos de peste que tiveram lugar entre 1608 e1610. Aquando da primeira destas interrupções,duranteaPrimaveraeoVerãode1608,os Homens do Rei partiram em digressão, tendo passado por

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Coventry,nosúltimosdiasdeOutubro,eposterior‑mente por Malborough. No final do ano, estavamde regresso à corte, em Londres, onde levariam àcena doze peças. As duas peças mais recentes deShakespeare,PéricleseCoriolano,terão,porcerto,sidorepresentadasnaaltura.ÉprovávelqueTimão de Atenas,fruto,comoreferi,dacolaboraçãocomojovemdramaturgoThomasMiddleton,tenhasidoigualmente levada à cena nesta altura, embora secoloquem vários problemas relativamente à suadatação (Ackroyd, pp. 448‑449).

A peste assolou Londres durante todo o anode 1609 forçando os Homens do Rei a mais umadigressão. Durante esta sua itinerância, passarampor Ipswich, New Romney e Hythe, tendo partedo percurso sido feita por barco. Peter Ackroydavançacomahipótesedeodramaturgoter,então,ponderadoseriamenteahipótesederegressardefi‑nitivamente a Stratford. Esta hipótese dever‑se‑iaao facto de o seu compadre Thomas Greene, que,recorde‑se, era também seu inquilino no Novo Lugar,terinquiridojuntodeleseteriaumacasaàsua disposição na Primavera do ano seguinte. Se‑melhantepretensãoseriaumsinaldequeumadatapara a mudança teria sido acordada entre ambos.

O seu envolvimento em negócios em Stra‑tford não dava, entretanto, sinais de diminuir.Aconfirmá‑lo,surgeumacordofirmadoemJunhopara a execução de uma dívida por parte de JohnAddenbroke. Curiosamente, o documento ondeesta disputa foi saldada é um excelente exemplodo estatuto que Shakespeare adquirira junto dacomunidade local. Com efeito, no documento eleé mencionado como «generosus, nuper in curia

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domini Jacobi, nunc Regis Anglie», ou seja, al‑guém que naquela altura tinha acesso à «corte deJaime, agora rei de Inglaterra». Ainda neste ano,vemo‑lo como co‑signatário de um apelo enviadoao Supremo Magistrado relativamente a títulosde rendas dos quais era depositário. Shakespearecontinuava a adquirir terras na região, juntando20 acres aos 127 que adquirira havia oito anos(Ackroyd, p. 451).

QueoprofundoenvolvimentoemnegóciosnãosignificavaqueShakespeareestivessearelegarparasegundoplanoasuaactividadecriativa,éalgoqueseiriaprovarcomumaimportantepublicaçãoqueiria ter lugar neste ano de 1609.

Thomas Thorpe, conhecido pelas suas ediçõesdeJonsoneChapman,entreoutros,publicaentãoossonetossobotítulodeSonetos de Shake‑speare nunca antes impressos. George Eld seria respon‑sável pela impressão e John Wright pela vendado livro na sua loja em Newgate Street. A parde uma carreira consagrada como dramaturgo, éagora o sucesso alcançado como poeta, autor deVénus e Adónis,queregressa;agoraopoetavoltavaa emergir através de um género particularmenteem voga, o soneto.

Noentanto,osucessoqueaposteridadelheha‑veriadeassegurar,estariatambéminevitavelmenteenvolvidoemmistério,ounãoestivéssemosnósafalardeShakespeare.Desdelogo,comoacimarefe‑ri, o mistério ligado à polémica em torno daqueleque será o eventual objecto da dedicatória.

A dedicatória do editor na 1.ª edição começapor rezar o seguinte: «Ao único criador dos so‑netos seguintes, Mestre W.H.», concluindo com a

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assinatura«T.T.»Nãoéclaroqueestadedicatóriarevele algo acerca do poeta ou do próprio editor,Thomas Thorpe, cujas iniciais no final parecemafiançar ser sua a dedicatória.

Serão as iniciais W.H., apesar de invertidas,referentes a Henry Wriothesley, conde de Sou‑thampton, a quem Shakespeare dedicara Vénus e AdóniseO Estupro de Lucrécianadécadade1590?OuaoutrapessoacomoWilliamHerbert,condedePembroke,queviriaafavoreceropoeta,eaquem,juntamentecomseuirmãoPhilip,aediçãodofóliode1623édedicada?Estahipótesepoderá,todavia,serrefutadadevidoaofactodeapalavra«mestre»não ser uma designação aplicável a um nobre.

Tambémaresponsabilidadedaediçãoéobjectode polémica, tendo sido colocada a hipótese deestaserobraapenasdeThomasThorpe,queteriacompiladoossonetossemautorizaçãodeShakes‑peare. Esta hipótese revela, contudo, algumasfragilidades. Desde logo devido à respeitabilidadequeThorpegozavanomeioliteráriolondrino—aele se deve, por exemplo, a edição de Volpone, deBen Jonson. Além disso, para além de não serconhecida disputa alguma em torno da edição, ossonetosexibemumaevidentecoerênciaestrutural.Porfim,existemtestemunhos,próximosnotempo,que apontam para a confirmação da sua autoria.Trêsanosapósestapublicação,ThomasHeywooddeclara ter Shakespeare publicado os sonetos em«seu próprio nome». Segue‑se o testemunho deWilliamDrummondque,em1614,afirmateronos‑sopoeta«publicadorecentemente»oseutrabalhosobre o «tema do amor» (Ackroyd, pp. 452‑453, eGreenblat, p. 232).

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Apardestemistériopersistemoutros,comoodafonteinspiradoradaenigmáticafigurada«DarkLady» que percorre a sequência dos sonetos 127a 152. Quem seria ela? A mulher de John Florio,inicialmentetutoreposteriormentesecretáriodocondedeSouthampton,igualmenteconhecidopelasuatraduçãodeMontaigne?OuumaprostitutadeClerkenwell,detezmorena?Ouaindaumafiguracompósitaque,comoacimaescrevi,seriadevedorado sétimo soneto de Sir Philip Sidney a Stella?

Por fim, outro mistério persiste: quem seráo destinatário dos primeiros 17 sonetos, peloqual o poeta parece estar apaixonado? Será estea figuração de um patrono real ou ideal ou umaimitação de Alexis, de Virgílio ? (Bate, pp. 209 e214). E com este mistério outro se insinua, o jámencionado mistério envolvendo a orientaçãosexual do poeta...

Escritos ao longo dos anos, estes sonetosconsagrá‑lo‑iam enquanto poeta maior da línguainglesa ao mesmo tempo que contribuiriam paraacentuaromistério,oumistérios,queoenvolvem.Deixando‑osemsuspenso,partamosembuscadosderradeiros anos.

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Os derradeiros anos

Independentemente do tempo que tenha pas‑sado em Stratford, é certo que, no final do anode1609, Shakespearehaviaregressado aLondres.Embora o seu nome não figure já na lista dosactores dos Homens do Rei, competir‑lhe‑ia asse‑gurar tarefas de coordenação e supervisão a nívelda companhia.

Na temporada do Natal, os Homens do Reivoltavamaactuarnacorte.Fizeram‑noagoraportrezevezes,umadasquais,pelomenos,comapeçamaisrecentedeShakespeare,Cimbelino.Éprovávelqueestaobratenhasidoexpressamenteconcebidapara o teatro dos Frades Negros, devido aos seusefeitosespeciaiseàssuas«extravagâncias»cénicas.Ben Jonson não apreciaria «a loucura da ficção, aconduta absurda, a confusão de nomes e modosdeestardetemposdiferentes,eaimpossibilidadedosacontecimentosemqualquersistemadevida»(Ackroyd, p. 455).

Shakespearecontinuavaaseraprincipalfontedepeçasparaacompanhia.Alémdisso,oprestígio

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quegranjearajuntodasaudiênciaslondrinasfaziacom que o aparecimento do seu nome no cartazcomo autor fosse de imediato uma garantia desucesso. Refira‑se, a título de exemplo, que umarepresentação de Otelo no Globo, que teve lugarno dia 30 de Abril de 1610, contou com a honrosapresença,entreanumerosaassistência,dopríncipeLuís Frederico de Würtenberg.

A existência de dignitários estrangeiros entreo público não era, aliás, uma novidade para ele.Como referi no capítulo anterior, Péricles, igual‑mente levado várias vezes à cena no Globo, nãosóforaumgrandesucesso,tendosidoapeçamaisprocuradadeShakespearelogoapósHamlet,comocontaracomapresença,entreassuasaudiências,dediplomatasdeFrança,VenezaeFlorença.Comefeito, os diplomatas estrangeiros passaram a serumaconstantenasrécitasteatraislondrinasdesdea subida ao trono de Jaime I. A esta nova reali‑dade tentaria Shakespeare responder adaptandoas peças a públicos cada vez mais diversificados etambém... poliglotas.

A afluência de grandes audiências e o acolhi‑mentorégionãosignificava,porém,queosautorestivessemdeprestarmenosatençãoaeventuaisecospolíticosqueassuaspeçaspudessemterjuntodedestinatários mais susceptíveis. Um exemplo dosperigosdecorrentesdessassusceptibilidadesseriaa proibição de que foi alvo uma peça de GeorgeChapman,atragédiaemduaspartes,Conspiraçãoe Tragédia de Carlos, Duque de Byron.

Nestecaso,aproibiçãodeveu‑seàintervençãodo embaixador francês, De la Boderie, que ficaraindignadocomaexibiçãodeepisódiosquehaviam

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ocorrido recentemente na corte francesa. Na ver‑dade,assançõesnãoselimitaramàproibiçãodasduas peças, pois não só alguns dos actores foramforçados a passar algum tempo no cárcere, comotodos os teatros de Londres foram encerradosdurante alguns dias como forma de punição poraquilo que se havia passado. Assim se dava umsinalclaroaomundodoteatrodequehaviaqueteratenção a tópicos mais sensíveis. Episódios sobrea história recente, ainda que envolvendo outrospaíses, tornaram‑se, deste modo, algo a evitar;uma precaução, portanto, face às sensibilidadesmais susceptíveis.

Timão de Atenas e Tróilo e Créssida,comassuasatmosferas negras e satíricas, passaram, assim, aser peças menos solicitadas, à semelhança do quesucederiacomCoriolano.Comefeito,apesardeserlocalizadanumcenárioromano,Coriolano nãodeixa‑vadeexibiraspectospoliticamentecomplexoscomoos motins e o seu herói transformado em invasor.Significativamente, a partir desta altura, Shakes‑peare começaria a situar as suas peças em temposalgo remotos, com localizações igualmente vagas.

KatherineDuncan‑Jonesconsideraque,apartirdePéricles,aspeçasdeShakespearepodemsercon‑sideradas retrospectivas: Péricles, «a primeira daspeçastardias»,dialogaexplicitamentecomConfessio Amantis,deGower;Os Dois Nobres ParentescomOs Contos de Cantuária,deChaucer,oqualhaviasidojá revisitado em Tróilo e Créssida; Cimbelino, comaqueletemporemotamentemedievaldasCrónicasde Holinshed, onde, como referi, o dramaturgocolherainspiraçãoparaO ReiLear(Duncan‑Jones,pp.234‑236e257).Àsemelhançadoquesucedera

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com Péricles e com Cimbelino, as duas peças quese seguiriam, O Conto de Inverno e A Tempestade, retomamtempospassados;destafeita,aatmosferados dramas da época Tudor da sua juventude e ados Milagres medievais (Honan, p. 364).

Na Primavera de 1611, Simon Forman, aquelequeeraomaisfamosoastrólogoeocultistacoevo,escreveu alguns apontamentos sobre peças quena altura vira no Globo. Entre estas, contavam‑seMacbeth,CimbelinoearecenteO Conto de Inverno.Com esta última, a cuja récita Forman assistiu a15deMaiode1611,Shakespeareentranodomíniodaquiloquepoderíamosdesignarcomédiamusical,com seis canções, cinco das quais cantadas porRobert Armin (Honan, p. 369, e Ackroyd, pp. 457e 458). Escreve Filomena Vasconcelos que, aindaeste ano, esta peça seria levada à cena perante orei Jaime I e que «[d]ois anos mais tarde, no anoseguinteàmortealgomisteriosadopríncipeHen‑rique, em Novembro de 1612, a peça faz parte deum elenco de catorze, destinadas a ser represen‑tadas para celebrar os dois meses de festividadesque antecederam o casamento da princesa IsabelcomoEleitorPalatino,opríncipeFrederico,futurorei da Boémia. A par da popularidade que entre opúblico gozava, unicamente na corte, e até 1640,dataemquesefecharamosteatrosemInglaterra, O Conto de Inverno registou sete representações,interpretadas até 1633» (Vasconcelos, p. 9) pelos Homens do Rei.

Estas referências à Boémia, e ao Eleitor Pala‑tino em particular, afiguram‑se particularmenterelevantes devido às convocações feitas pela peçaaestemicrocosmo.Àsemelhançadoquesucedera

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emmuitasoutrasocasiões,tambémem O Conto de Inverno Shakespearerecorreaumafonteliteráriaque reescreve e «contamina» com ressonâncias aeventos recentes, passíveis de serem facilmenteidentificados pelo público. Neste caso, o drama‑turgo retoma uma narrativa de Robert Green,intitulada Pandosto, na qual o rei da Boémia élevado a crer que a sua esposa o atraiçoara comum seu velho amigo, o rei da Sicília, de quem fi‑caragrávida.Onossoautornãosóalteraarelaçãodramática como inverte o estatuto dos reinos, fa‑zendodaSicíliaoobjectodoengano.Estaescolhatinhaimplicaçõespolíticas,poisoreinodaBoémiapertencia ao império Habsburgo e FilipeIII deEspanhaerareidaSicília.Alémdestasimplicaçõespolíticashaviaaindaimplicaçõesdofororeligioso,já que a Sicília era católica, enquanto a Boémiaera protestante. Ora, os laços entre Rudolfo II,rei da Boémia, e Jaime I eram bastante fortes,passando por afinidades entre os monarcas comoointeressepeloocultoporambospartilhado(Bate,pp. 301‑303).

Apesardosucessoquecontinuavaaobter,orit‑mocriativodeShakespeareterádiminuídodeduasou três peças por ano para apenas uma ou duas.Simultaneamente, acentuava‑se o seu trabalhoemco‑autoria.Comoescrevinocapítuloanterior,PériclestinhasidoconcebidoemcolaboraçãocomGeorgeWilkinseHenrique VIIIeOs Dois Nobres ParentesterãoresultadodotrabalhoposteriorcomumoutroactordosHomens do Rei,JohnFletcher.Esteritmocriativomenosintensonãosignificaria,porém,umadiminuiçãonoreconhecimentodoseutrabalho, pois, para além das audiências que não

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cessavamdeaumentaredapresençadedignitáriosestrangeiros, as publicações de quartos das suasobras prosseguiam. Com efeito, só em 1611 surgi‑ram terceiras edições de três peças de diferentesmomentosdasuacarreira, Títo Andrónico,Hamlete Péricles.

Estemesmoanotestemunharáoaparecimentodaquela que seria a sua derradeira e, porventura,mais misteriosa obra, A Tempestade.

Ambasmarcadasporumaatmosferaretrospec‑tivaecrepuscular,comoserevelassemumaintros‑pecçãosobreasuavidaeumadespedidaàmagiadoteatro,O Conto de Inverno eA Tempestade seriamlevadas à cena em Whitehall no Dia de Todos osSantos(Greenblatt,p.370).Comoigualmenterefe‑ri,voltariamaserrepresentadasem1613,aquandodocasamentodaprincesaElizabetecomoEleitorPalatino.Estanãoseriacontudoaúnicapeçaentãoexibida.Alémdela,acorteassistiriaaOteloeMuito Barulho por Nada, de Shakespeare, e ainda adezpeças de outros autores, todas elas represen‑tadaspelosHomens do Rei.Opagamentosuperiora153librasseriaomaiselevadoqueacompanhiaalguma vez auferira (Duncan‑Jones, p. 276).

Arécitaparaomonarcaterá,todavia,sidopre‑cedidadeumaoutranoteatrodosFrades Negros.Apoiando‑senosestudosmaisrecentessobreestapeça, Fátima Vieira esclarece: «[o]s argumentosque sustentam esta posição remetem‑nos para osmecanismos que a representação da peça pressu‑põe em várias cenas — como a do surgimento deÁriel‑harpia, voandoe levandoconsigo amesa dobanquete,bemcomoacenadamascaradaetodososartifíciosqueelaimplica.»(Vieira,p.12.)Ora,o

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teatrodosFrades Negrosdisporiadosmeiosparaarealizaçãodestesefeitos,oque,comoéóbvio,nãosucederia na corte.

A Tempestade é, com efeito, uma peça crepus‑cular, na qual Shakespeare sintetiza as preo‑cupações das suas peças anteriores: a históriado irmão que trai o irmão; o poder corrosivo dainveja; o afastamento de um governante legítimo;apassagemperigosadacivilidadeparaaselvajaria;a estratégia de manipulação através da arte, emparticular a peça dentro da peça; a utilização depoderesmágicos;atensãoentrenaturezaeeduca‑ção;colapsodaidentidade...Acimadetudo,comorefere Stephen Greenblatt, esta não é tanto umapeça sobre alguém que detém o poder absolutomassimsobrealguémquedeleabdica(Greenblatt,pp.374e378);alguémquesepreparaparasairdecena e deixar o mundo das ilusões e da fantasia,e este globo, o seu Globo, para trás... Rever‑se‑iaShakespeare nas célebres palavras de Próspero(actoiv,cenai)?Cito‑as,recorrendoumavezmaisà tradução de Fátima Vieira:

Estes actores,Como já te tinha dito, são todos espíritos,Esvaíram‑se no ar como finos vapores;E, tal como é ilusória esta visão,Também as altas torres, os palácios soberbos,Os templos solenes e mesmo este grande globo,E todos os que o ocupam, se desvanecerão,Sem deixar um só rasto, tal como esta funçãoSe dissolveu no ar.

(P. 109.)

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RalphCrane,copistadosHomens do Rei,fixá‑la‑ia(Vieira,p.9)eHemingeeCondellatribuir‑lhe‑iamumlugardedestaquenofólioporeleselaboradoem1623. A Tempestade surge aqui em primeiro plano,provavelmente por ter sido a última peça do seuantigo colega, mas também por continuar a ter tó‑picosdeinteressepúblicoem1623,nomeadamenteaqueles que envolviam o Novo Mundo, que entãocomeçava a despontar do outro lado do oceano.Com efeito, muitos dos patronos da corte estavamenvolvidosnaexploraçãodeplantaçõesnaVirgínia,neste Novo Mundo, como o Conde de Pembrokeque, tendo aderido à Companhia da Virgínia emMaio de 1609, quando os sonetos de Shakespeareforampublicados,setornariaoseumaioraccionistaa partir de 1618.

De novo, Shakespeare fazia convergir no mes‑motextoreferênciasdeorigensdistintas.Emboraa ilha de Prospero esteja localizada algures noMediterrâneo Sul, as fontes onde ele se terá ins‑pirado estavam relacionadas com as ilhas atlânti‑cas, nomeadamente as Bermudas. Por seu turno,Prosperoecoará,porventura,ofamosoalquimistaJohnDee,que,recorde‑se,Shakespearepoderáterconhecido em Mortlake e que afirmava ter quei‑madoosseuslivrossobremagia(Ackroyd,p.461).Porseuturno,Calibanserádevedordeumafonteliterária coeva, o ensaio de Montaigne sobre os«canibais» do Brasil.

Dois tipos de referências podem ainda ser de‑tectadoscomoimpulsoparaapeça:omotimdequefoi alvo a expedição de Henry Hudson em Junhode 1611, e que levou ao seu desaparecimento, jun‑tamente com o seu filho e outros sete marinhei‑

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ros; e as fontes teatrais, o nome do protagonistainspirado em Every Man Out of His Humor, deBen Jonson, e o mago de Doutor Fausto, de Mar‑lowe. Esta última peça fora novamente publicadaem 1609, e uma vez mais impressa por GeorgeEld. Por seu turno, a sua venda estava a cargo dalivraria de John Wright. Ora, tal como Eld haviasido igualmente responsável pela impressão dosSonetos de Shakespeare, também Wright o haviasidopelasuavenda.EstaligaçãodeShakespeareaamboslevaKatherineDuncn‑Jonesatomarcomocerto o conhecimento que ele terá tido de Doutor Fausto(Duncan‑Jones,p.273).Aliás,noapesardetudorelativamenterestritomeioteatrallondrino,era por demais evidente que Shakespeare teriatomado contacto com a obra de Marlowe.

Aventa‑seahipótesedeShakespeareterregres‑sadoaStratfordaindaem1611,apósterconcluídoA Tempestade. Se esta é uma hipótese que carecede confirmação, já o mesmo não sucede com asua efectiva presença aí, no início de 1612, paraassistir ao funeral do seu irmão Gilbert. Celiba‑tário, com apenas 45 anos de idade, Gilbert viviacomairmãeocunhadonacasadeHenleyStreet,provavelmente seguindo a profissão paterna. Noano seguinte, um novo evento funesto assolaria afamília Shakespeare, desta feita a morte do outroirmão, Richard, aos 40 anos; dos oito filhos docasal, apenas dois estavam ainda vivos, William ea sua irmã mais nova Joan.

Algunsmesesmaistardevoltamosaencontrá‑loem Londres onde será testemunha num processojudicialenvolvendoafamíliaMountjoy,comaqualcontinuavaavivernaesquinadeSilverStreetcom

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MuggleStreet.A19deJunho,aindanasequênciadeste caso, deveria ter voltado a comparecer notribunal para testemunhar, mas não o fez.

Curiosamente, neste mesmo mês surge a re‑ferência à representação levada a cabo peranteo embaixador do duque de Sabóia. IntituladaCardénio, a peça seria mais tarde registada sob otítulode«A História de Cardénio, pelo Sr. Fletcher & Shakespeare». Provavelmente inspirada numapersonagem homónima de Dom Quixote, delanãosobreviveramexemplares.Assimprosseguiaacolaboração iniciada anteriormente. Significativoserá, porém, o facto de esta ter sido a única peçaem cuja autoria Shakespeare pode ter estado en‑volvido nesse ano de 1612. A sua actividade comodramaturgoconhecia,destemodo,umadiminuiçãoassinalável (Ackroyd, p. 465).

Tal não significaria, contudo, que a actividadedos Homens do Reitivesse,tambémela,diminuído.EntreatemporadadeNatalde1612e20deMaiode1623,acompanhiacontinuouaactuarnãosónacortecomono Globoenoteatrodos Frades Negros. Entreaspeçaslevadasàcenanacortecontavam‑seMuito Barulho por Nada, A Tempestade, O Conto de Inverno, Otelo e Cardénio.

EmMarçode1613Shakespearefezoseuúltimoinvestimento a nível imobiliário. Contrariamenteao que sucedera até então, o investimento decor‑rerá agora em Londres e não em Stratford. Pelaconsiderável soma de 140 libras, comprou umacasa, a portaria do priorado dos Frades Negros.Esteeraotipodecasaqueeleteriacompradoparanela viver com a família, caso tivesse pretendido,duranteosmuitosanosemquetrabalhounotea‑

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tro. No entanto, não abandonou a residência dosseus amigos huguenotes, e em breve alugou a suanova propriedade a um tal John Robinson.

Terá sido provavelmente neste local que nofinal da Primavera, juntamente com Fletcher, es‑creveuHenrique VIII,comoassimédesignadaestapeçanoprimeirofólio.Atravésdereferênciascoe‑vas, sabe‑se que terá sido levada à cena no Globo,no mês de Junho, sob o título de Tudo é Verdade.Katherine Duncan‑Jones considera que o tema— a ruptura de Inglaterra face a Roma — seria doagradodeFletcher,vistoesteserfilhodeumdes‑tacadobispodaIgrejaAnglicana.CaberiaaShakes‑peare introduzir na peça a dimensão emocional eacomplexidadedramáticaqueevitariamqueestasetransformassenumaapologiadoprotestantismodominante (Duncan‑Jones, p. 288).

Alguns meses mais tarde, já em pleno Verão,um funesto evento iria perturbar profundamentea vida da companhia. A 13 de Julho, um incêndioprovocado acidentalmente durante uma récita deTudo é Verdade destruiu por completo o Globo, aquando da cena do acto i na qual Ana Bolenaé apresentada ao rei. À chegada deste deveriamser ouvidos, não só «tambores e trombetas» mastambém «descargas de canhão». Foi, portanto,exactamentenessemomento,devidoàsdescargas,que o acidente ocorreu. Apesar da destruição doteatro,ninguémterásofridoferimentosgraves.Noentanto, embora os actores tivessem conseguidosalvarmuitasdassuaspeças,muitasoutraster‑se‑‑ão definitivamente perdido nessa ocasião.

O Globo seria de novo construído no mesmolocalmenosdeumanodepois.Asuareconstrução

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acarretaria um substancial investimento, tendocadaumdosaccionistassidoforçadoacontribuircomsomasquepoderãoterosciladoentreas50eas 100 libras. É provável que Shakespeare tenhavendido a sua parte nesta altura. De igual modo,após ter, pela última vez, contribuído como autorpara os Homens do Rei, poderá igualmente tervendido a sua parte no teatro dos Frades Negros.Estahipóteseésustentadapelofactodenenhumadaspartesdequeeraaccionistanestesteatrossermencionada no seu testamento (Duncan‑Jones,p. 292).

O incêndio que destruiu o Globo terá estadona origem da digressão que durante o Outonolevaria os Homens do Rei a Oxford, Stratford eShrewsbury. No Inverno regressariam de novo aLondres para actuarem no teatro dos Frades Ne‑gros. Para além dos espectáculos levados a caboneste espaço, a companhia representaria na cortenomêsdeNovembroeaindanosmesesdeJaneiroe de Fevereiro de 1614. Entre as peças encenadascontavam‑seasjámencionadasduascolaboraçõescom Fletcher, Tudo é Verdade e Os Dois Nobres Parentes,queseriam,também,assuasderradeirascolaborações com os Homens do Rei.

Nacapada1.ªediçãodeOs Dois Nobres Paren‑tes, vinda a lume em 1634, assinala‑se que ela foi«apresentada nos Frades Negros pelos servos deSua Majestade, com grande aplauso: escrita pelosmemoráveis notáveis do seu tempo: Sr. John Fle‑tcher e Sr. William Shakespeare, gentil‑homem».Curiosamentee,quemsabe,significativamente,onome de Fletcher surge aqui em primeiro lugar(Ackroyd, p. 474). Igualmente significativo será

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o facto de os colegas de Shakespeare não teremincluído este peça no Primeiro Fólio, o que po‑derá ter sido uma forma de reconhecer a autoriade Fletcher que era já, então, o dramaturgo dosHomens do Rei.

Durante o Verão de 1614, um grande incêndioassolou Stratford, destruindo 54 casas e aindaumgrandenúmerodeceleirosedearmazéns.Noentanto, nem a casa de Shakespeare nem as suaspropriedadesseriamafectadas.Vemo‑lo,contudo,porduasvezesenvolvidoemdisputaslocais,ambasrelativasapagamentosdealuguerdepropriedades,o que significa que Stratford continuava a ser umdestino regular seu ou quiçá lugar da sua estadiapermanente.

Já perto do final do ano, mais precisamenteemNovembro,temosnotíciadequeseencontravade novo em Londres. Devemos esta informaçãoa Thomas Greene, que no seu diário assinalou ofactodetervisitadooseu«primoShakespeare»naquarta‑feira,17dessemês,poiseste«tinhaacabadode chegar à cidade» e ele tinha ido ver «como eletinha passado» (Duncan‑Jones, p. 295).

O último registo da sua presença em Londresdata da Primavera de 1615, envolvendo uma dis‑puta sobre rendas no espaço dos Frades Negros (Ackroyd, p. 481). Entretanto, novidades, menoseufóricas,envolvendoJudith,asuafilhamaisnova,chegavam‑lhe de Stratford. Ao contrário do quesucedeu com John Hall, o noivo da sua filha maisvelha,ThomasQuiney,onoivodeJudith,suscitar‑‑lhe‑ia algumas apreensões. As famílias de ambosconheciam‑se há bastante tempo. Aliás, o pai dojovem tinha há muito pedido um empréstimo a

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Shakespeare.Corriaoanode1616eThomastinha27 anos e Judith 31.

Se a diferença de idades não constituía pro‑blema de maior, já o mesmo não se pode dizer dasua pretensão no sentido de contraírem matri‑mónio durante a Quaresma, um período em queas celebrações de casamentos estavam proibidas.A interdição poderia, contudo, ser levantada me‑diante uma autorização especial. Apesar de não ateremobtido,JuditheThomascasaram‑se,tendo,por isso, sido multados.

O mais grave estava, todavia, para acontecer.Um mês após o casamento de Thomas e Judith,umamulherdeStratford,MargaretWheeler,mor‑reuduranteparto.OfactodeMargaretsersolteirae de se desconhecer quem era o pai da criançadeu origem a uma série de investigações com oobjectivodeoidentificar.Importaterpresentequenaquelestempossemelhantessituaçõesnãoeramapenas motivo de repulsa social mas também desançãolegal.Nasequênciadessasdiligênciaslegais,a26deMarçodessemesmoanode1616,Thomasadmitiu ser o pai da criança, tendo sido senten‑ciado a uma penitência pública, a qual conseguiuevitar através de um donativo de 5 xelins para ospobres(Greenblatt,p.384).Queonoivoeaprópriafilhamaisnovanãoseriamobjectodasuaescolhaparafazeremperduraralinhagemfamiliar,éalgoque viria a ser evidenciado aquando da redacçãodo seu testamento.

É possível que Shakespeare tenha tido pro‑blemas de saúde desde finais de 1615, já que a18 de Janeiro de 1616, altura em que soube queo casamento de Judith se avizinhava, pedira ao

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seuadvogado,FrancisCollins,queredigisseoseutestamento. Por razões que se desconhecem, odocumentosóviriaaserconcluídoa25deMarço,nas vésperas da sentença de Thomas.

Asinstruçõesdadasnotestamentoseriamalgopeculiares, visto praticamente ignorarem Anne, asuamulher.AelaShakespearedeixariaapenas...asegundamelhorcama.Comoénatural,aestranhaindicação deste legado tem gerado muita espe‑culaçãoenãomenoshipótesestêmsidoaventadasparaajustificarem.Entreestasémaisverosímilaque vê nesta escolha um sinal do esfriamento darelação entre o casal.

Com efeito, mesmo Judith, que algumas preo‑cupaçõesrecenteslhecausara,seriaobjectodemaioratenção.Aelaestavadestinadaasomarazoávelde100 libras, podendo, todavia, sob certas condições,virarecebermaisalgumdinheiro,150librasanuais,para ela apenas, e mais 50 libras para filhos seus,caso entretanto nascessem. Significativamente, aexpressão «meu genro», referente a Thomas, foirasurada e substituída por «filha Judith».

A maior parte da herança seria, deste modo,atribuída à filha mais velha, Susanna, e ao genro,assimcomoaseusfilhoseaosdescendentesdestes.AelesestavamdestinadosacasadoNovo Lugar,oespaçonosFrades Negros,e«todososmeuscelei‑ros,estábulos,jardins,terras,arrendamentos[...]»,assimcomoorestantedinheiro.Peranteainexis‑tência de um herdeiro masculino, Shakespeareelegia, assim, Susanna e seus descendentes comolegatários do seu nome.

Stephen Greenblatt recorda que, para além dafamília,e,nestecaso,comdestaqueespecialparaa

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filhamaisvelha,edeumrestritocírculodeamigos,estehomem,quetantosbenstinha,praticamenteignorouorestodomundo:aospobresdeStratforddeixouamaisdoquemodestaquantiade10libras;à Igreja, nada; à escola local, nada; nada a servosouaaprendizes.Tudoestaria,assim,praticamentedestinadoeconfinadoàlinhadedescendênciaqueeleelegeu(Greenblatt,p.386).Asuaespadaseriaentregue a Thomas Combe, 5 libras a ThomasRussell e uma quantia destinada a comprar anéispara os colegas John Heminges, Richard Burbagee Henry Condell.

John Ward, médico e homem do clero quevisitou Stratford em 1662, registou no seu diárioaquelaqueseriaentãoavozcorrenterelativamenteà morte de Shakespeare: «Shakespeare, Draytone Ben Jonson tiveram um agradável encontro eparecequebeberamdemasiado,poisShakespearemorreu de uma febre então contraída.» Por seuturno, Katherine Duncan‑Jones avança com ahipótese de a sua morte ter sido originada porproblemas cardíacos eventualmente associados adeficiências circulatórias e a complicações origi‑nadas por uma sífilis latente, às quais se poderiaassociarumadepressãomotivadapeloincêndiono Globo (Duncan‑Jones, pp. 302 e 304).

Outra hipótese pode ser avançada a partir deumtestemunhodeummédicodaaltura,segundooqual,apartirdoInvernode1615edurantetodoo ano de 1616, uma «febre» assolou Stratford emparticular. A possibilidade de ele ter sido vítimade uma doença contagiosa, nomeadamente febretifóide,seriajustificadapelaceleridadecomqueseprocedeu ao funeral (Ackroyd, p. 482). Ignora‑se

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seoseugenro,JohnHall,oteráacompanhadonadoença,poisemboraexistamregistosseusdetra‑tamentosaplicadosaDraytonnadaexisterelativoa Shakespeare, como acima referi.

A 23 de Abril, dia eventualmente coincidentecom o do seu nascimento, Shakespeare faleciaaos 53 anos de idade. Assim se cumpria o círculoperfeito desenhado pela Roda da Fortuna. O cor‑po seria embalsamado e depositado no seu leito,rodeado de flores e ervas, na casa do Novo Lugar.Aí receberia, pela última vez, a visita dos amigose dos habitantes de Stratford, antes de ser levadopara a igreja onde seria enterrado num lugar dedestaque que lhe era conferido pelo seu estatutona comunidade.

O epitáfio, provavelmente escrito por ele pró‑prio, rezava o seguinte:

Bom amigo, por amor de Jesus, abstém‑teDe escavar o pó aqui depositado!Abençoado seja o homem que poupe estas pedrasE amaldiçoado aquele que mexer nestes ossos.

(Ackroyd, p. 486.)

Durante os últimos anos de vida de Shakes‑pearenãotinhamvindoalumeediçõesdeobrassuas. Curiosamente, a partir do final da décadade 1590, o seu nome começara a surgir em des‑taque nas capas dos quartos, o que significa queeleprópriosehaviatransformadonumafontedepublicitação da obra. Importa ter presente quea capa dos quartos funcionava como forma deevidenciar o seu conteúdo, fosse este um evento

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histórico ou uma personalidade facilmente re‑conhecível.

SegundoJonathanBate,podemser identifica‑dos períodos áureos de procura e venda das suasobras: 1594‑1595, 1597‑1600, 1602‑1604/1605 e1608‑1609. Independentemente de muitas destasedições não terem sido feitas sem envolvimentopessoal do autor, os chamados «maus quartos»,e de, por isso mesmo, não serem fidedignos, nãodeixam,contudo,deserrelevantesparapodermosterumanoçãodointeressequeaobradeShakes‑pearetinhajuntodopúblicolondrino.Comefeito,maisde70ediçõesdeobrassuasforampublicadasao longo da sua vida.

Finalmente, em 1623, por iniciativa dos seusantigos colegas e amigos John Hemings e HenryCondell,foipublicadoaquelequeficouconhecidocomo Primeiro Fólio, contendo várias obras suas.

Até então tinham vindo a lume sete peçashistóricas, seis comédias e cinco tragédias. A im‑portância da iniciativa dos colegas e amigos deShakespeareaopublicaremoPrimeiroFólioatesta‑‑sepelofactode,graçasaela,nãoseteremperdidodezoito peças suas: A Tempestade, Os Dois Cava‑lheiros de Verona, Medida por Medida, A Comédia de Equívocos, Como Vos Aprouver, O Amansar da Fera, Tudo Está Bem o Que Acaba Em Bem, Noite de Reis,O Conto de Inverno,Rei João,a1.ªpartedeHenrique VI, Henrique VIII, Coriolano, Timão de Atenas,JúlioCésar, Macbeth, António e Cleópatrae Cimbelino.

A abrir este fólio surge o significativo tributodeBenJonson,dedicadoà«memóriadoamigo»e«daquilo que ele nos deixou», ou seja, a sua obra.

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Do«docecisnedeAvon»,aídeclarariaJonsontersuplantado Lyly, Kyd e Marlowe. Afinal, ele seria«a alma daquele tempo.»

É um lugar‑comum dizer‑se que morre o ho‑mem mas fica a obra. Com efeito, a impressãodo Primeiro Fólio seria o início de um longo ediversificado percurso a nível da edição que con‑sagraria Shakespeare como vulto maior de todaumatradiçãoliterária.Em1660,dezanovedassuaspeçastinhamsidopublicadas,evinteanosdepoishavia já três edições das suas obras completas.Segundo informação colhida em relatos coevos, épossível que os Homens do Rei tenham sobrevivi‑do durante bastante tempo graças às suas peças(Ackroyd, p. 487).

E, todavia, não nos chegaram diários ou car‑tas onde o bardo desvendasse, explicitamente,as suas opiniões ou impressões face às inúmeraspolémicas e conflitos que marcaram o seu tem‑po, das tensões religiosas às agitações políticas,dos problemas envolvendo a sucessão dinásticaàs sensíveis relações familiares; ou seja, não noschegaram documentos passíveis de revelar o seuperfil.ComoescreveA.D.Nuttall:«SabemosoqueMiltonpensavasobremuitascoisas.Nãoacreditavana doutrina da Trindade; achava que a execuçãode Carlos I era moralmente correcta; achava queas pessoas casadas que não se entendiam deviampoder divorciar‑se. Mas não temos ideia algumadaquiloqueShakespearepensava,nofimdecontas,sobrequalquerassuntorelevante.Ohomemées‑quivo—podemosquasedizer,sistematicamentees‑quivo.Háalgodemisteriosonumafiguraquepodeescrevertantoerevelartãopouco.»(Nuttall,p.1.)

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Este seu perfil, ainda que físico, emergirá, po‑rém, com um possível rigor numa gravura que osseus colegas e amigos escolheram para inserir noPrimeiroFólio.Agravurapassariaaserconhecidaatravés do nome do seu autor, Martin Droeshout,umartistaquepertenciaaumafamíliadeorigemflamenga ligada às artes que há muito vivia emLondres: seu pai, Michael, era gravador, e seu tio,Martin,pintor.Comelesterásidoiniciadonestasartes.Martintinhaapenas14anosàdatadamortedopoeta,peloquenãoémuitoprovávelquetenhafeitoagravuranapresençadomodelo.Noentanto,o facto de os editores a terem incluído no fólioatestaqueelanãotrairiaaimagemdodramaturgo.Alémdisso,agravuraémuitosemelhanteaobustoque a família encomendou a um artista holandês,Gerard Johnson, para encimar o seu túmulo, eque terá sido concebido a partir da sua máscaramortuária. A única diferença entre ambas será adeumrostoumpoucomaischeioeapresençadeumapequenapêranesteúltimo.TeriaShakespeareo hábito de ora deixar crescer uma pêra ora de arapar? É perfeitamente possível.

Ambosapresentamsemelhançascomumquadroqueterásidoconcebidoalguresnaprimeiradécadado século xvii, e que ficou conhecido como o «re‑tratodeChandos»,nãoporqueestesejaonomedoartista que o pintou mas sim porque ele pertenciaà colecção de James Brydges, terceiro duque deChandos. Neste retrato é um Shakespeare na casados40anosqueemerge,exibindoumpormenorqueaeleficariaassociado,umpequenobrinco.Aventa‑‑seahipótesedeeleestarvestidopararepresentara personagem de Shylock. Uma hipótese apenas...

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Por seu turno, um outro retrato, pintado em1588, que ficaria conhecido como «retrato deGrafton», exibe um jovem dos seus 20 e poucosanos.Existem,defacto,bastantessemelhançasen‑treeste«Shakespearejovem»easrepresentaçõesquesabemosestaremmaispróximasdaquelasqueterão sido as suas feições, a gravura do PrimeiroFólioeobusto.Noentanto,emrigor,nãopodemosafiançar se esta corresponde ou não à imagem dodramaturgo que então teria 24 anos.

EscreveHaroldBloom,emO Cânone Ocidental,que «[n]ão sabemos quase nada de factual sobrea vida interior de Shakespeare, mas se passarmosmuitos anos a lê‑lo incessantemente começamosa saber aquilo que ele não é» (Bloom, p. 51 [1]).

TendocumpridooapelodoBardo,etendo‑me«abstidodeescavaropódepositado»,chegoaofimdestepercursopelotempo,pelasmáscarasepelosmistériosquenelesseencerra.Chegoaofim,con‑vidandoàleituradasuaobrae,consequentemente,àdescoberta«daquiloqueelenãoé».Afinal,comodeclarou Leontes, em O Conto de Inverno (acto i,cena ii, vv. 293‑296):

E não é nada ? Então o mundo e tudo o que nele háÉ nada, e nada é o céu sobre nós, a BoémiaÉ nada, a minha mulher é nada e nada sãoTodos os nadas, se tudo é nada.

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Bibliografia seleccionada 1

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BATE, Jonathan, Soul of the Age — The Life, Mind and World of William Shakespeare (London: Penguin, 2008).

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____, Shakespeare’s Ideas — More Things in Heaven and Earth(Hoboken: Wiley‑Blackwell, 2008).

____, Shakespeare and Biography(NewYork:OxfordUniversityPress, 2010).

BLOOM,Harold,The Western Canon — The Books and Schools of the Ages (NewYork:HartcourtBrace&Company,1994).

____, Shakespeare — The Invention of The Human (New York:Riverhead Books, 1998).

BRYSON, Bill, Shakespeare — The World as Stage (New York:Harper Press, 2007).

CARDIM, Luiz, Os Problemas do «Hamlet» e As Suas Dificul‑dades Cénicas (Lisboa: Seara Nova, 1949).

COOPER,Helen,Shakespeare and The Medieval World(Arden,2011)

COOPER, Tanya, ed., Searching for Shakespeare (London: Na‑tional Portrait Gallery, 2006).

CORREIA, Maria Helena de Paiva, «Shakespeare e o aprovei‑tamento paradoxal da tradição», Revista da Faculdade de Letras (5.ª série, n.º3: Lisboa, 1985), pp.129‑143.

DORAN,Gregory,The Shakespeare Almanac(Hutchinson:TheHutchinson Publishing Company, 2009).

DUNCAN‑JONES,Katherine, Shakespeare — An Ungentle Life(London: Methuen, 2001).

____________1 Abibliografiaaquiapresentadarestringe‑seaobrasqueversam

Shakespeare e o seu mundo. O facto de esta escolha ter recaí‑dosobreensaiosrecentesevidenciaavitalidadequeosestudosshakespearianostêmnoespaçoanglo‑saxónico.Sãoigualmentemencionadasfontessobreobrasespecíficasqueciteiaolongodolivro.

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HACKETT,Helen,Shakespeare and Elizabeth — The Meeting of Two Myths (Princeton: Princeton University Press, 2009).

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HERDER, Jan Gottfried, Shakespeare (Princeton: PrincetonUniversity Press, 2008), trad. Gregory Moore.

HOLLBROOK,Peter,Shakespeare’s Individualism (Cambridge:Cambridge University Press, 2010).

HONAN, Park, Shakespeare — A Life (New York: Oxford Uni‑versity Press, 1999).

JACKSON, Ken and Arthur F. Marotti, eds., Shakespeare and Religion (University of Notre Dame Press, 2011).

JENSEN, Phebe, Religion and Revelry in Shakespeare’s World(Cambridge: Cambridge University Press, 2009).

KERMODE, Frank, A Época de Shakespeare — Breve História, Grandes Temas (Lisboa:CírculodeLeitores,2004),tradu‑ção de José Pedrome.

KITTO, H.D.F., «Hamlet», in Anne Ridler ed. Shakespeare Criticism — 1935‑1960(NewYork:OxfordUniversityPress,1970), pp.142‑166.

LANGLEY, Eric, Narcisism and Suicide in Shakespeare and His Contemporaries (New York: Oxford University Press, 2009).

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NUTTALL, A. D., Shakespeare — The Thinker (New Haven &London, Yale University Press, 2007).

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SERÔDIO, Maria Helena, William Shakespeare — A Sedução dos Sentidos (Lisboa: Cosmos, 1996).

SHAPIRO, James, 1599: A Year in the Life of William Shakes‑peare (London: Faber, 2005).

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Cambridge University Press, 2005).WELLS,Stanley,Shakespeare, Sex and Love(NewYork:Oxford

University Press, 2010).

Projecto «Shakespeare para o século xxi»2

Medida por Medida (Porto:CampodasLetras,2001), introdu‑ção, tradução e notas por M. Gomes da Torre.

António e Cleópatra (Porto:CampodasLetras,2001),introdu‑ção, tradução e notas por Rui Carvalho Homem.

____________2 Recordoqueindicoestasobraspelofactodemetersocorrido

dosseusestudosintrodutórios.Aselecçãonãopretendeassim,comoéóbvio,serexaustivarelativamenteàstraduçõesdetex‑tosdramáticosdoautor.

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A Tempestade (Porto: Campo das Letras, 2001), introdução,tradução e notas por Fátima Vieira.

Ricardo II (Porto: Campo das Letras, 2002), introdução, tra‑dução e notas por Filomena Vasconcelos.

Sonho de Uma Noite de Verão (Porto:CampodasLetras,2002),introdução, tradução e notas por Maria Cândida Zamith.

O Amansar da Fera (Porto:CampodasLetras,2003),introdu‑ção, tradução e notas por Nuno Ribeiro.

Muito Barulho por Nada (Porto: Campo das Letras, 2003),introdução, tradução e notas por Maria João Pires.

Henrique IV, Parte I (Porto: Campo das Letras, 2003), intro‑dução, tradução e notas por Gualter Cunha.

Henrique V (Porto: Campo das Letras, 2004), introdução, tra‑dução e notas por M. Gomes da Torre.

Comédia de Equívocos (Porto:CampodasLetras,2004),intro‑dução, tradução e notas por Maria Cândida Zamith.

O Rei Lear (Porto: Campo das Letras, 2005), introdução, tra‑dução e notas por M. Gomes da Torre.

O Conto de Inverno (Porto:CampodasLetras,2006),introdução,tradução e notas por Filomena Vaconcelos.

Canseiras de Amor em Vão (Porto: Campo das Letras, 2007),introdução, tradução e notas por Rui Carvalho Homem.

Como Vos Aprouver (Porto:CampodasLetras,2008),introdu‑ção, tradução e notas por Fátima Vieira.

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O Essencial sobre

1 Irene Lisboa Paula Morão

2 Antero de Quental Ana Maria A. Martins

3 A Formação da Nacionalidade

Ana Maria A. Martins

4 A Condição Feminina Maria Antónia Palla

5 A Cultura Medieval Portuguesa (Sécs. XI e XIV) Maria Antónia Palla

6 Os Elementos Fundamentais da Cultura

Jorge Dias

7 Josefa D’Óbidos Vítor Serrão

8 Mário de Sá Carneiro Clara Rocha

9 Fernando Pessoa Maria José de Lancastre

10 Gil Vicente Stephen Reckert

11 O Corso e a Pirataria Ana Maria P. Ferreira

12 Os «Bebés‑proveta» Clara Pinto Correia

13 Carolina Michaëlis de Vasconcelos Maria Assunção Pinto Correia

14 O Cancro José Conde

15 A Constituição Portuguesa Jorge Miranda

16 O Coração Fernando de Pádua

17 Cesário Verde Joel Serrão

18 Alceu e Safo Albano Martins

19 O Romanceiro Tradicional J. David Pinto‑Correia

20 O Tratado de Windsor Luís Adão da Fonseca

21 Os Doze de Inglaterra A. de Magalhães Basto

22 Vitorino Nemésio David‑Mourão Ferreira

23 O Litoral Português Ilídio Alves de Araújo

24 Os Provérbios Medievais Portugueses

José Mattoso

25 A Arquitectura Barroca em Portugal Paulo Varela Gomes

26 Eugénio de Andrade Luís Miguel Nava

27 Nuno Gonçalves Dagoberto Markl

28 Metafísica António Marques

29 Cristóvão Colombo e os Portugueses

Avelino Teixeira da Mota

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30 Jorge de Sena Jorge Fazenda Lourenço

31 Bartolomeu Dias Luís Adão da Fonseca

32 Jaime Cortesão José Manuel Garcia

33 José Saramago Maria Alzira Seixo

34 André Falcão de Resende Américo da Costa Ramalho

35 Drogas e Drogados Aureliano da Fonseca

36 Portugal e a Liberdade dos Mares

Ana Maria Pereira Ferreira

37 A Teoria da Relatividade António Brotas

38 Fernando Lopes Graça Mário Vieira de Carvalho

39 Ramalho Ortigão Maria João L. Ortigão

de Oliveira

40 Fidelino de Figueiredo A. Soares Amora

41 A História das Matemáticas em Portugal

J. Tiago de Oliveira

42 Camilo João Bigotte Chorão

43 Jaime Batalha Reis Maria José Marinho

44 Francisco de Lacerda J. Bettencourt da Câmara

45 A Imprensa em Portugal João L. de Moraes Rocha

46 Raul Brandão A. M. B. Machado Pires

47 Teixeira de Pascoaes Maria das Graças Moreira de Sá

48 A Música Portuguesa para Canto e Piano

José Bettencourt da Câmara

49 Santo António de Lisboa Maria de Lourdes Sirgado

Ganho

50 Tomaz de Figueiredo João Bigotte Chorão

51/ Eça de Queirós52 Carlos Reis

53 Guerra Junqueiro António Cândido Franco

54 José Régio Eugénio Lisboa

55 António Nobre José Carlos Seabra Pereira

56 Almeida Garrett Ofélia Paiva Monteiro

57 A Música Tradicional Portuguesa

José Bettencourt da Câmara

58 Saúl Dias/Júlio Isabel Vaz Ponce de Leão

59 Delfim Santos Maria de Lourdes Sirgado

Ganho

60 Fialho de Almeida António Cândido Franco

61 Sampaio (Bruno) Joaquim Domingues

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62 O Cancioneiro Narrativo Tradicional

Carlos Nogueira

63 Martinho de Mendonça Luís Manuel A. V. Bernardo

64 Oliveira Martins Guilhermed’OliveiraMartins

65 O Teatro Luso‑Brasileiro Duarte Ivo Cruz

66 Almada Negreiros José‑Augusto França

67 Eduardo Lourenço Miguel Real

68 D. António Ferreira Gomes Arnaldo de Pinho

69 O Mouzinho da Silveira A. do Carmo Reis

70 O Teatro Luso‑Brasileiro Duarte Ivo Cruz

71 A Literatura de Cordel Portuguesa

Carlos Nogueira

72 Sílvio Lima Carlos Leone

73 Wenceslau de Moraes Ana Paula Laborinho

74 Amadeo de Souza‑Cardoso José‑Augusto França

75 Adolfo Casais Monteiro Carlos Leone

76 Jaime Salazar Sampaio Duarte Ivo Cruz

77 Estrangeirados no Século XX

Ana Paula Laborinho

78 Filosofia Política Medieval Paulo Ferreira da Cunha

79 Rafael Bordalo Pinheiro José‑Augusto França

80 D. João da Câmara Luiz Francisco Rebello

81 Francisco de Holanda Maria de Lourdes Sirgado

Ganho

82 Filosofia Política Moderna Paulo Ferreira da Cunha

83 Agostinho da Silva Romana Valente Pinho

84 Filosofia Política da Antiguidade Clássica Paulo Ferreira da Cunha

85 O Romance Histórico Rogério Miguel Puga

86 Filosofia Política Liberal e Social

Paulo Ferreira da Cunha

87 Filosofia Política Romântica

Paulo Ferreira da Cunha

88 Fernando Gil Paulo Tunhas

89 António de Navarro Martim de Gouveia e Sousa

90 Eudoro de Sousa Luís Lóia

91 Bernardim Ribeiro António Cândido Franco

92 Columbano Bordalo Pinheiro

José‑Augusto França

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93 Averróis Catarina Belo

94 António Pedro José‑Augusto França

95 Sottomayor Cardia Carlos Leone

96 Camilo Pessanha Paulo Franchetti

97 António José Brandão AnaPaulaLoureirodeSousa

98 Democracia Carlos Leone

99 A Ópera em Portugal Manuel Ivo Cruz

100 A Filosofia Portuguesa (séculos xix e xx)

António Braz Teixeira

101/ O Padre António Vieira102 Aníbal Pinto de Castro

103 A História da Universidade Guilherme Braga da Cruz

104 José Malhoa José‑Augusto França

105 Silvestre Pinheiro Ferreira José Esteves Pereira

106 António Sérgio Carlos Leone

107 Vieira de Almeida Luís Manuel A. V. Bernardo

108 Crítica Literária Portuguesa (até 1940)

Carlos Leone

109 Filosofia Política Contemporânea (1887‑1939) Paulo Ferreira da Cunha

110 Filosofia Política Contemporânea (desde 1940) Paulo Ferreira da Cunha

111 O Cancioneiro Infantil e Juvenil de Transmissão Oral

Carlos Nogueira

112 Ritmanálise Rodrigo Sobral Cunha

113 Política de Língua Paulo Feytor Pinto

114 O Tema da Índia no Teatro Português

Duarte Ivo Cruz

115 A I República e a Constituição de 1911

Paulo Ferreira da Cunha

116 O Capital Social Jorge Almeida

117 O Fim do Império Soviético José Milhazes

118 Álvaro Siza Vieira Margarida da Cunha Belém

119 Eduardo Souto Moura Margarida da Cunha Belém

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