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1049 Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 19(4):1049-1061, jul-ago, 2003 ARTIGO ARTICLE Distribuição dos casos de AIDS em mulheres no Rio de Janeiro, de 1982 a 1997: uma análise espacial Distribution of AIDS cases in women in Rio de Janeiro, Brazil, 1982-1997: a spatial analysis 1 Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro. Rua México 128, 3 o andar, Rio de Janeiro, RJ 20031-142, Brasil. [email protected] 2 Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. Av. Leopoldo Bulhões 1480, Rio de Janeiro, RJ 21041-010, Brasil. [email protected] 3 Departamento de Informações em Saúde, Centro de Informação Científica e Tecnológica, Fundação Oswaldo Cruz. Av. Brasil 4365, Rio de Janeiro, RJ 21045-900, Brasil. [email protected] Jeane Tomazelli 1 Dina Czeresnia 2 Christovam Barcellos 3 Abstract The AIDS epidemic has spread and reached various population groups differently. The epidemic’s dynamics have also differed according to the characteristics of different areas within cities, related to the principal modes of spread. This study analyzes the AIDS epidemic in women in the city of Rio de Janeiro using the space referential. The epidemic is on the rise among women, particularly in the Northern and Western Zones of the city. In this group it constitutes a “sub-epidemic”,to the extent that it displays different characteristics in terms of clinical presen- tation, access to health services, and knowledge of risks. There was a high proportion of un- known transmission category among the women, thus revealing ignorance of their own risk situ- ation. In addition, the high proportion of unknown level of schooling emphasizes the implica- tions of the investigative system on quality of data recorded for women. Key words HIV; Acquired Immunodeficiency Syndrome; Spatial Analysis Resumo A epidemia de AIDS vem crescendo e atingindo de forma diferenciada os diversos gru- pos populacionais. Sua dinâmica dentro das cidades também vem mostrando-se distinta segun- do as características de cada região. Diferenciais internos das cidades vêm sendo relacionados a modos principais de propagação. Este trabalho analisa a epidemia de AIDS em mulheres no Mu- nicípio do Rio de Janeiro, usando o referencial espacial. Observa-se o crescimento da epidemia da AIDS entre mulheres atingindo mais intensamente regiões das Zonas Norte e Oeste. A epide- mia neste grupo compõe uma “subepidemia” na medida em que possui características clínicas, de acesso ao serviço e de conhecimento de riscos diferentes. Destaca-se a elevada proporção na categoria de transmissão ignorada dentre as mulheres, evidenciando um desconhecimento de sua situação de risco. Alta proporção de escolaridade ignorada, reforça a implicação do sistema de investigação sobre a qualidade da informação em mulheres. Palavras-chave HIV; Síndrome de Imunodeficiência Adquirida; Análise Espacial

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Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 19(4):1049-1061, jul-ago, 2003

ARTIGO ARTICLE

Distribuição dos casos de AIDS em mulheres no Rio de Janeiro, de 1982 a 1997: uma análise espacial

Distribution of AIDS cases in women in Rio de Janeiro, Brazil, 1982-1997: a spatial analysis

1 Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro.Rua México 128, 3o andar,Rio de Janeiro, RJ 20031-142, [email protected] Departamento deEpidemiologia e MétodosQuantitativos em Saúde,Escola Nacional de SaúdePública, Fundação OswaldoCruz. Av. Leopoldo Bulhões1480, Rio de Janeiro, RJ21041-010, [email protected] Departamento deInformações em Saúde,Centro de InformaçãoCientífica e Tecnológica,Fundação Oswaldo Cruz.Av. Brasil 4365,Rio de Janeiro, RJ 21045-900, [email protected]

Jeane Tomazelli 1

Dina Czeresnia 2

Christovam Barcellos 3

Abstract The AIDS epidemic has spread and reached various population groups differently. Theepidemic’s dynamics have also differed according to the characteristics of different areas withincities, related to the principal modes of spread. This study analyzes the AIDS epidemic in womenin the city of Rio de Janeiro using the space referential. The epidemic is on the rise amongwomen, particularly in the Northern and Western Zones of the city. In this group it constitutes a“sub-epidemic”, to the extent that it displays different characteristics in terms of clinical presen-tation, access to health services, and knowledge of risks. There was a high proportion of un-known transmission category among the women, thus revealing ignorance of their own risk situ-ation. In addition, the high proportion of unknown level of schooling emphasizes the implica-tions of the investigative system on quality of data recorded for women.Key words HIV; Acquired Immunodeficiency Syndrome; Spatial Analysis

Resumo A epidemia de AIDS vem crescendo e atingindo de forma diferenciada os diversos gru-pos populacionais. Sua dinâmica dentro das cidades também vem mostrando-se distinta segun-do as características de cada região. Diferenciais internos das cidades vêm sendo relacionados amodos principais de propagação. Este trabalho analisa a epidemia de AIDS em mulheres no Mu-nicípio do Rio de Janeiro, usando o referencial espacial. Observa-se o crescimento da epidemiada AIDS entre mulheres atingindo mais intensamente regiões das Zonas Norte e Oeste. A epide-mia neste grupo compõe uma “subepidemia” na medida em que possui características clínicas,de acesso ao serviço e de conhecimento de riscos diferentes. Destaca-se a elevada proporção nacategoria de transmissão ignorada dentre as mulheres, evidenciando um desconhecimento desua situação de risco. Alta proporção de escolaridade ignorada, reforça a implicação do sistemade investigação sobre a qualidade da informação em mulheres.Palavras-chave HIV; Síndrome de Imunodeficiência Adquirida; Análise Espacial

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TOMAZELLI, J.; CZERESNIA, D. & BARCELLOS, C.1050

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 19(4):1049-1061, jul-ago, 2003

Introdução

A epidemia de AIDS vem mostrando um perfildinâmico desde seu surgimento. A infecção pe-lo HIV, inicialmente vinculada a homossexuaismasculinos, disseminou-se atingindo pessoasde diferentes idades, sexos, opções sexuais, ra-ças, comunidades e países.

No Brasil, a AIDS também se manifestoude forma distinta em segmentos populacionais(Szwarcwald & Bastos, 2000). A compreensão eanálise da transmissão da doença necessitaramprogressivamente do reconhecimento de inte-rações sociais cada vez mais complexas (Bastoset al., 1995). Nesse processo, destaca-se o cres-cimento da AIDS entre as mulheres.

O conhecimento acerca da AIDS em mulhe-res e as campanhas preventivas específicas pa-ra elas, desenvolveram-se preferencialmentecom base nas mulheres em fase de reprodução.A soropositividade é detectada, na maioria dasvezes, na gravidez ou após a morte ou adoeci-mento de filhos ou companheiros. As mulheresgeralmente são informadas de seu diagnóstico,freqüentemente tardio, e recebem tratamentoquando adoecem (Barbosa, 1996; Diniz & Ville-la, 1999; Vermelho, 1999).

O aumento do número de casos de AIDS emmulheres já podia ser observado desde o anode 1986. Em 1989, o crescimento da AIDS femi-nina foi paralelo ao aumento do número de ca-sos em usuários de drogas injetáveis, ocasio-nando uma tendência de identificar as mulhe-res infectadas com este segmento. Atualmente,a transmissão sexual apresenta-se como o prin-cipal modo de transmissão da AIDS (Castilho &Szwarcwald, 1988; MS, 2000).

Junto a esta nova dinâmica, destaca-se asubnotificação de casos femininos, devido àcaptação tardia da soropositividade. Além dis-so, a operacionalização das estratégias preven-tivas baseadas no conceito de grupo de risco,exclui as mulheres que destoam desse estereó-tipo fazendo com que algumas suspeitas sejamdescartadas (Diniz & Villela, 1999).

O processo de feminização da epidemia éconcomitante ao de pauperização, ou seja, o au-mento de casos em mulheres acompanha a ex-pansão da epidemia para grupos sociais maispobres (Szwarcwald & Bastos, 2000). Todavia, amagnitude do processo de pauperização da in-fecção pode estar superestimada. As pessoasque acorrem mais aos serviços públicos sãopertencentes a grupos mais pobres, com aces-so diferenciado aos anti-retrovirais. Esse grupa-mento comparado com outros segmentos so-ciais pode apresentar tempo menor entre a in-fecção e o adoecimento (Szwarcwald & Bastos,

2000). Destaca-se ainda a captação diferencia-da de casos pela rede de saúde, em função daestruturação do próprio serviço, produzindovariações de forma enviesada na notificaçãopor fatores sociais e econômicos (Parker, 1994;Parker & Camargo, 2000).

De qualquer forma, a análise de dados denotificação tem demonstrado que a epidemiade AIDS no Brasil está crescendo entre as mu-lheres, disseminando-se para segmentos demenor escolaridade do que os registrados noinício da epidemia. Os municípios mais po-bres têm apresentado maior incremento dastaxas de incidência ao longo da última década(Szwarcwald & Bastos, 2000).

A forma de se construir o conhecimentoacerca da AIDS em mulheres, pode estar subes-timando nuanças importantes devido ao des-conhecimento da história de infecção, visto quemuitas dessas mulheres não suspeitavam desua condição de infecção pelo HIV. A omissãode informações é outro aspecto relevante devi-do ao fato da epidemia AIDS envolver a intimi-dade das pessoas. Pode ocorrer também super-posição de categorias de transmissão. Soma-se a tudo isso os limites dos sistemas de infor-mação, que muitas vezes operacionalizados deforma insatisfatória causam distorções.

Evidencia-se a necessidade de discrimi-nar melhor quem são essas mulheres em suascaracterísticas culturais, sociais, econômicas,comportamentais e intersubjetivas no sentidode buscar apreender como estas dimensões searticulam e propiciam o crescimento da epide-mia entre as mulheres.

A dinâmica da epidemia tem apontado pa-ra o seu caráter global e simultaneamente lo-cal, referindo-se a comunidades específicas. AAIDS é uma epidemia mundial que assume ca-racterísticas peculiares aos diversos grupos cul-turais na qual emerge (Gould, 1993). Deve, por-tanto, ser compreendida como produto de di-ferentes culturas, dos diversos comportamen-tos e do agente infeccioso (Bastos & Coutinho,1999). Os processos globais não atingem dire-tamente os indivíduos, mas são mediados porfatores que ocorrem em “meso-escalas”, rela-tivas às comunidades, onde pessoas vivem emoldam seu comportamento (Wallace & Wal-lace, 1997).

As formas de exposição e adoecimento porAIDS são já bem conhecidas. Alguns fatores derisco, no entanto, envolvem componentes deescala maior que o indivíduo, e só podem sercompreendidos por meio de uma visão estru-tural e social da epidemia (Parker et al., 2000).Uma das maneiras de se alargar a visão sobre oproblema é a sistematização de dados em agre-

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gados que melhor retratem as profundas desi-gualdades sociais da epidemia no mundo. Aproposta deste trabalho, de produzir um diag-nóstico da AIDS com foco no território e na po-pulação, é uma contribuição para o entendi-mento do contexto em que a epidemia de AIDSvem se difundindo no meio urbano. Dessa ma-neira, permite caracterizar a situação de saúde,bem como estabelecer estratégias para a pre-venção, voltadas para grupos vulneráveis den-tro de um contexto global.

Este artigo se propõe a analisar a dinâmicada epidemia de AIDS em mulheres no Municí-pio do Rio de Janeiro, entre 1982 e 1987, utili-zando uma abordagem espacial.

Estudos epidemiológicos que analisam aepidemia segundo a organização do espaço,compreendem a transmissão da AIDS por meiodo conceito de interação. Esse conceito per-mite estudar a difusão das epidemias de formamais complexa que o conceito de risco. Dife-rentes indivíduos e grupos sociais participamde forma diferenciada de redes de interaçãosocial que determinam dinâmicas peculiares econfigurações espaciais específicas (Barcellos& Bastos, 1996).

Trabalhos como os de Grangeiro (1994) eCruz (1999), revelam um comportamento epi-dêmico da AIDS vinculado a condições de vidadas regiões. Assim, áreas com piores condiçõesde vida apresentaram aumento no número decasos, mostrando um deslocamento espacialda epidemia. O tamanho da região e a sua in-serção econômica e social também são apon-tados como aspectos importantes na difusãoda epidemia (Barcellos & Bastos, 1996).

Estabelecendo-se as características da po-pulação e a sua localização, é possível median-te a visualização das informações nos mapas,criar hipóteses e questionamentos sobre agra-vos à saúde, reconhecendo-se áreas mais vul-neráveis (Santos et al., 2000).

Metodologia

Foi realizado um estudo ecológico para anali-sar a distribuição espacial da incidência doscasos notificados de AIDS em mulheres, de 15a 59 anos de idade, no Município do Rio de Ja-neiro, ocorridos no período entre 1982 e 1997.Utilizou-se análise espacial como técnica detratamento de dados e o bairro como unidadede análise.

Análise espacial é um conjunto de técnicasde tratamento de dados, envolve a manipula-ção de dados com base na integração de infor-mações com referências espaciais, com o obje-

DISTRIBUIÇÃO DOS CASOS DE AIDS EM MULHERES 1051

tivo de compreender as relações entre as variá-veis espacialmente localizadas.

Foram utilizados como fontes de dados oSistema de Informação de Agravos de Notifica-ção (SINAN-AIDS) e os censos demográficos de1991 e 2000. Os dados foram disponibilizadospelo Programa de DST/AIDS da Secretaria Mu-nicipal de Saúde, com todos os casos de AIDSnotificados no Município do Rio de Janeiro,relativos ao período de 1982 a 1999. Devido aoatraso das notificações nesse sistema (Barbosa& Struchiner, 1997), foram considerados ape-nas os casos notificados até 1997. Os casos deAIDS notificados foram divididos segundo pe-ríodos, de acordo com o sexo e a categoria deexposição ao HIV.

As variáveis abordadas neste estudo foram:bairro (unidade do município onde reside o ca-so notificado), escolaridade (grau de instrução:analfabeto, 1a a 4a série, 5a a 8a série, 2o grau, su-perior e ignorado), idade, ano epidemiológico(classificado segundo períodos de 1982-1988,1989-1993 e 1994-1997), sexo, faixa etária (clas-sificadas por grupos 15-24 anos, 25-34, 35-44 e45-59 anos) e período (intervalo de tempo co-mum a um grupo e categoria de transmissão).

A delimitação dos períodos foi realizadaapós análise exploratória da freqüência da epi-demia nas mulheres. O início e fim de cada pe-ríodo foram definidos segundo mudanças maismarcantes no incremento da notificação de ca-sos em mulheres.

Foram criados os seguintes indicadores: • Taxa de incidência: casos de AIDS ocorridosentre 15-59 anos no período, por sexo, ocorri-dos nos bairros do Município do Rio de Janei-ro, em relação à população estimada para o pe-ríodo, por sexo nos bairros. • Percentual de casos de AIDS com categoriade exposição ignorada: casos de AIDS com ca-tegoria de exposição ignorada ocorridos entre15-59 anos, no período 1982-1997, nos bairrosdo Município do Rio de Janeiro, por sexo, emrelação ao total de casos ocorridos no mesmoperíodo, por sexo nos bairros.• Razão de sexo: todos os casos de AIDS emhomens ocorridos entre 15-59 anos nos bair-ros do Município do Rio de Janeiro, por perío-do, em relação a todos os casos de AIDS em mu-lheres 15-59 anos, por período nos bairros.• Percentual de escolaridade até 4a série: nú-mero de chefes de família com escolaridade até4a série, por bairro, em relação ao número totalde chefes de família, por bairro, utilizando ocenso de 1991.• Percentual de mulheres com AIDS com es-colaridade até 4a série: casos de mulheres comAIDS com escolaridade até 4a série, por bairro,

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em relação ao total de mulheres com AIDS porbairro.• Percentual de homens com AIDS com es-colaridade até 4a série: casos de homens comAIDS com escolaridade até 4a série, por bairro,em relação ao total de homens com AIDS porbairro.• Proporção de chefes de domicílio com ren-da superior a 10 salários mínimos: números dechefes de domicílios com renda superior a 10salários mínimos em relação ao total de chefesde domicílios

Para análise dos dados foram utilizados osprogramas SPSS for Windows, Excel e o MapInfo.

Resultados

No primeiro período (1982-1988), o número decasos em mulheres, apesar de crescente, é ain-da incipiente. De 1988 a 1993, o número torna-se mais expressivo e, entre 1994 a 1997, acen-tua-se a tendência de crescimento dos casosfemininos. A análise da distribuição dos casosem mulheres, notificados por faixa etária e anoepidemiológico, mostrou uma concentraçãode casos nas faixas 25-34 e 35-44 anos.

O mapa de incidência dos casos notifica-dos de AIDS em mulheres segundo os períodospreviamente delimitados (Figura 1), mostrouo aumento da incidência e a sua dinâmica pe-lo município: no primeiro período, 1982-1988,evidenciou-se maiores taxas em bairros dasregiões centrais da cidade, provável “epicentro”da epidemia (Wallace & Wallace, 1995). Outrosbairros apresentam baixas taxas de incidênciamostrando um aspecto difuso de casos. No se-gundo e terceiro períodos, 1989-1993 e 1994-1997, pode-se observar o aumento da incidên-cia e a disseminação da epidemia por todo mu-nicípio, com uma tendência de crescimento decasos notificados no sentido Leste-Oeste. Estesbairros vão tendendo a apresentar uma inci-dência cada vez mais acentuada. Os bairros daZona Oeste, assim como da Zona Norte, apre-sentam condições materiais de vida mais pre-cária (Cruz, 1999), como pode ser evidenciadopela comparação com o mapa de renda de che-fes de família (Figura 2). No último período, énotável o aumento do número de casos ao lon-go da Baía de Guanabara, na chamada Zona daLeopoldina, onde se concentra a maior partedas favelas do Rio de Janeiro. O crescimento daepidemia nestas regiões pode estar tambémvinculado ao processo de pauperização, comorefere a literatura. Todavia, existem tambémbairros na chamada Zona Sul, como Botafogo,

com aumento da incidência nos dois últimosperíodos.

A Figura 3 estabelece a razão de casos deAIDS entre homens e mulheres (H/M) nos trêsperíodos. As áreas em branco no mapa repre-sentam bairros que não tiveram registro de ca-sos masculinos ou femininos em cada período.

Pode-se observar a redução da razão H/Mao longo dos três períodos. No início da epide-mia, a maior parte dos bairros apresentava ra-zão acima de quatro. Bairros da Zona Sul comgrande incidência de casos apresentavam ra-zão H/M superior a 10. No último período ob-serva-se a tendência de diminuição da razãoH/M: os bairros das Zonas Norte e Oeste, compoucas exceções, apresentaram razão menorque quatro. Bairros da Zona Sul e o Centro per-maneceram com razões de casos por sexo al-ta – entre quatro e dez – corroborando o pre-domínio de casos masculinos nestes bairros aolongo de todos os períodos. Nas Zonas Centroe Sul, o perfil da epidemia ainda está mais pró-ximo ao da década de 80.

Esses dados reforçam a hipótese de que oprocesso de feminização acompanha o de pau-perização. Por outro lado, mostra uma estranhaseparação entre epidemias masculina, atingin-do a Zona Sul da cidade, e feminina, nas ZonasNorte e Oeste. Essa tendência pode ser conse-qüência da predominância de formas de expo-sição diferenciadas que se refletem na divisãode bairros da cidade.

Isso se confirma com a análise da informa-ção de escolaridade dos casos. Como demons-tra a Tabela 1, a escolaridade de todos os casostendeu a diminuir no decorrer dos três perío-dos. Porém, a escolaridade dos casos masculi-nos é proporcionalmente mais alta que a dosfemininos: 15,2% de casos masculinos têm es-colaridade acima de segundo grau, enquantosomente 5,9% dos femininos têm esse nível deescolaridade. A qualidade da informação acer-ca da escolaridade é apenas um pouco melhorpara os homens do que para as mulheres: 23,5%e 26,5% de casos com informação ignorada,respectivamente, no último período. Nota-se atendência de melhoria do preenchimento des-ta informação no decorrer dos três períodos.

A Figura 4 mostra a distribuição e o porcen-tual do nível de escolaridade até 4a série na po-pulação em geral (segundo dados do censo),homens e mulheres com AIDS.

Assim como o padrão de renda, observa-seque na população em geral (dados do CensoDemográfico de 1991 – IBGE, 1991), as melho-res condições de escolaridade concentram-sena Zona Sul da cidade, sendo menores na Zo-na Oeste. O Centro e os bairros da Zona Norte

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DISTRIBUIÇÃO DOS CASOS DE AIDS EM MULHERES 1053

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 19(4):1049-1061, jul-ago, 2003

Figura 1

Taxa de incidência dos casos notificados de AIDS em mulheres ao longo dos períodos.

Município do Rio de Janeiro, Brasil.

0 5 10 Km

Baía de Guanabara

Baía de Sepetiba

1982-1988

0 5 10 Km

Oceano Atlântico

Oceano Atlântico

Baía de Guanabara

Baía de Sepetiba

1989-1993

0 5 10 Km

Oceano Atlântico

Baía de Guanabara

Baía de Sepetiba

1994-1997

N

N

N

99,1 a 500

49,1 a 99

19,1 a 49

9,1 a 19

3 a 9

Taxa de incidência de AIDS em mulheres (por 100.000 habitantes)

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Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 19(4):1049-1061, jul-ago, 2003

apresentam níveis intermediários de escolari-dade.

O nível de escolaridade dos casos notifica-dos de AIDS em mulheres apresentou-se muitobaixo, com um percentual de escolaridade atéa 4a série acima de 60% em vários bairros. Des-taca-se um núcleo formado pelos bairros Man-guinhos, Bonsucesso, Higienópolis e Jacaré ealguns da Zona Norte com porcentual superiora 80%.

Pode-se observar que as pessoas com AIDSpossuem, proporcionalmente, uma escolarida-de menor do que a população em geral. Alémdisso, a escolaridade dos casos de AIDS em mu-lheres é, geralmente, menor do que a dos casosmasculinos.

O preenchimento da informação sobre omodo de transmissão da AIDS entre os casosnotificados, apresenta característica bem dife-rente da informação sobre escolaridade e mere-ce ser analisada em destaque. Certamente, pordizer respeito a uma dimensão mais complexada realidade dos sujeitos, portanto, mais difícil

de ser relatada, o preenchimento do modo detransmissão nas fichas de notificação é de piorqualidade. Como se pode observar na Tabela 2,a categoria de exposição, além de ser uma va-riável que apresenta proporcionalmente maiorquantidade de informação ignorada do que ade escolaridade, tendeu, ao contrário desta, apiorar a qualidade do preenchimento no de-correr dos três períodos, tanto para homenscomo para mulheres. A dimensão da informa-ção ignorada a respeito do modo de transmis-são, também ao contrário da informação sobreescolaridade, é expressivamente maior entre asmulheres do que entre os homens: 49,8% e36,8%, respectivamente, no último período.

A tendência de piora da qualidade da infor-mação sobre categoria de exposição no decor-rer do tempo, pode sugerir a hipótese de queesta qualidade piora na medida em que a AIDSatinge proporcionalmente grupos mais empo-brecidos da população do município.

A Figura 5 mostra a distribuição do porcen-tual de casos de AIDS nos bairros, com catego-

Figura 2

Proporção de chefes de domicílio com renda superior a 10 salários mínimos. Município do Rio de Janeiro, Brasil.

0 5 10 Km

Oceano Atlântico

Baía de Guanabara

Município doRio de Janeiro

Rio de Janeiro

N

Baía de Sepetiba

51,6 e mais

Proporção de chefes com rendasuperior a 10 salários mínimos

34,4 a 51,5

17,2 a 34,3

0 a 17,1

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DISTRIBUIÇÃO DOS CASOS DE AIDS EM MULHERES 1055

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Figura 3

Razão de casos de AIDS entre homens e mulheres. Município do Rio de Janeiro, Brasil.

0 5 10 Km

Baía de Guanabara

Baía de Sepetiba

1982-1988

0 5 10 Km

Oceano Atlântico

Oceano Atlântico

Baía de Guanabara

Baía de Sepetiba

1989-1993

0 5 10 Km

Oceano Atlântico

Baía de Guanabara

Baía de Sepetiba

1994-1997

N

N

N

10,1 a 32

4,1 a 10

2,1 a 4

0,1 a 2

Razão homem/mulher

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ria de exposição ignorada, segundo o sexo, de1982-1997. A proporção de mulheres com cate-goria de exposição ignorada é, em geral, maiordo que a dos homens. Esta diferença de por-centual é maior nas áreas Norte e Oeste do mu-nicípio. Casos de homens com categoria de ex-posição ignorada apresentaram-se menos fre-qüentes e com um caráter mais difuso.

Vargem Grande e a Vila Militar foram bair-ros que apresentaram elevado percentual decategoria de transmissão ignorada, tanto parahomens como para mulheres. Contudo, forambairros com poucos casos notificados.

Discussão

O trabalho confirma que a AIDS está se disse-minando em direção a bairros mais empobre-cidos do município, localizados em sua maio-ria nas Zonas Norte e Oeste. O crescimento daepidemia nos bairros mais pobres é mais in-tenso entre as mulheres, especialmente as debaixa escolaridade e renda.

A distribuição espacial da AIDS no Municí-pio do Rio de Janeiro, sugere a existência de umcomplexo mecanismo de difusão do HIV entreáreas e grupos sociais. Três tipos de difusão es-pacial de epidemias foram destacados por Wal-lace & Wallace (1997). A difusão hierárquica deagentes infecciosos envolve a transmissão “emcascatas” de locais dominantes para outros, deposição social inferior. Outra possibilidade dedifusão é por meio de contiguidade, permitin-do o contágio entre áreas adjacentes devido àfreqüência de interações entre vizinhos. Final-mente, a difusão por redes permite a transmis-são dentro de comunidades, entre pessoas par-ticipantes de redes sociais. Neste trabalho éevidenciada uma separação entre diferentes

epidemias na cidade, uma predominantemen-te masculina, situada na zona sul, e outra, comequilíbrio entre casos femininos e masculinos,afetando bairros e pessoas de baixa renda. Essepadrão sócioespacial é raramente observadonos estudos nacionais, tendo os municípios ouestados como unidade de análise (Gould, 1993;Szwarcwald, et al., 2000a), o que pode eviden-ciar a existência de um fenômeno específico daescala intra-urbana. Os mecanismos de difu-são por redes ou contiguidade reproduzem, emgeral, a estrutura sócioespacial da cidade, jáque pressupõem a interação entre semelhan-tes. No caso em estudo, ao contrário, o proces-so de difusão do HIV vem alterando o perfil daepidemia nos locais onde o vírus é introduzi-do. Devido a limitações metodológicas, não sepode afirmar se a pauperização da epidemia écausa ou conseqüência da sua difusão. A pre-dominância de grupos vulneráveis, marcada-mente mulheres de baixa renda, nas Zonas Nor-te e Oeste da cidade, pode estar facilitando orápido espalhamento do HIV nessas áreas. Poroutro lado, essas áreas se caracterizam pela in-trodução recente do HIV e no estágio atual daepidemia no Brasil, as mulheres de baixa rendaconstituem grupos mais vulneráveis na hierar-quia da difusão. Esses resultados revelam a in-teração entre os grupos locais suscetíveis, con-figurando redes sociais que ultrapassam os li-mites dos bairros de residência.

Assim, a difusão do HIV nas cidades tem si-do promovida pela proximidade de comuni-dades periféricas com áreas e grupos de maiorprevalência, e pela desestruturação social in-terna dessas comunidades (Wallace et al., 1997).Nesse sentido, o autor tem destacado a “deser-tificação urbana” e o abandono por parte dosserviços públicos como determinantes não sódo recrudescimento da epidemia de AIDS, mas

Tabela 1

Distribuição dos casos de AIDS em mulheres e homens de 15-59 anos, segundo período e escolaridade.

Escolaridade Mulher Homem1982-1988 1989-1993 1994-1997 1982-1988 1989-1993 1994-1997

Analfabeto 4 (2,3%) 34 (3,4%) 112 (5,4%) 12 (0,8%) 69 (1,3%) 150 (2,5%)

1a-4a série 54 (30,9%) 355 (35,5%) 958 (46,1%) 313 (21,4%) 1.244 (23,7%) 2.147 (35,5%)

5a-8a série 22 (12,6%) 154 (15,4%) 336 (16,2%) 240 (16,4%) 991 (18,9%) 1.412 (23,3%)

2o grau 23 (13,1%) 113 (11,3%) 123 (5,9%) 306 (21,0%) 1.034 (19,7%) 923 (15,2%)

Superior 7 (4,0%) 32 (3,2%) – 130 (8,9%) 532 (10,1%) 1 (0,1%)

Ignorado 65 (37,1%) 311 (31,1%) 550 (26,5%) 459 (31,4%) 1.374 (26,2%) 1.423 (23,5%)

Total 175 (100,0%) 999 (100,0%) 2.079 (100,0%) 1.460 (100,0%) 5.244 (100,0%) 6.056 (100,0%)

Fonte: Sistema Informação de Agravos de Notificação.

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DISTRIBUIÇÃO DOS CASOS DE AIDS EM MULHERES 1057

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 19(4):1049-1061, jul-ago, 2003

Figura 4

Percentual de pessoas com escolaridade até a 4a série. Município do Rio de Janeiro, Brasil.

0 5 10 Km

Baía de Guanabara

Baía de Sepetiba

População geral (censo 1991)

0 5 10 Km

Oceano Atlântico

Oceano Atlântico

Oceano Atlântico

Baía de Guanabara

Baía de Sepetiba

Mulheres com AIDS1982-1997

0 5 10 Km

Baía de Guanabara

Baía de Sepetiba

Homens com AIDS1982-1997

80,1 a 100

60,1 a 8 0

40,1 a 60

20,1 a 40

0 a 20

Bairros excluídos(> 8 casos)

Percentual de pessoas com escolaridade até a 4a série

N

N

N

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TOMAZELLI, J.; CZERESNIA, D. & BARCELLOS, C.1058

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 19(4):1049-1061, jul-ago, 2003

Tabela 2

Categoria de transmissão ignorada por sexo, segundo o período.

Sexo Período1982-1988 1989-1993 1994-1997

Feminino

Categoria ignorada 35 20,0% 314 31,4% 1.035 49,8%

Outras categorias 140 80,0% 685 68,6% 1.044 50,2%

Total 175 100,0% 999 100,0% 2.079 100,0%

Masculino

Categoria ignorada 275 18,8% 1.294 24,7% 2.227 36,8%

Outras categorias 1.185 81,2% 3.950 75,3% 3.829 63,2%

Total 1.460 100,0% 5.244 100,0% 6.056 100,0%

Fonte: Sistema Informação de Agravos de Notificação.

também da violência, tuberculose e outros in-dicadores de qualidade de vida. Na mesma Zo-na Norte do Rio de Janeiro, foi observada umaredução significativa da expectativa de vida emáreas pobres com grande concentração de fa-velas (Szwarcwald et al., 2000b).

Pode-se observar que a escolaridade doscasos notificados de AIDS foi menor do que ada população em geral. O nível de escolaridadedos casos notificados femininos é menor doque o dos homens. A escolaridade é um indica-dor utilizado na análise de dados epidemioló-gicos para aferir a condição sócio-econômicada população, onde baixos níveis educacionaisestão relacionados com estratos sociais maispobres. Contudo, a avaliação da dinâmica datransmissão da AIDS em indivíduos com baixaescolaridade pode estar superestimada. Os ca-sos de soropositividade à AIDS que adoecemsão notificados logo que iniciam o tratamento.Assim sendo, o indicador estará fornecendo in-formações sobre a escolaridade daqueles queevoluem mais rapidamente para doença, mas-carando a informação sobre a real dinâmica detransmissão da epidemia (Szwarcwald & Bas-tos, 2000).

A maior velocidade de adoecimento podeestar acontecendo com mais freqüência nasmulheres, pois estas tendem a apresentar umdiagnóstico de infecção pelo HIV mais tardioque o dos homens (Diniz & Villela, 1999; Ver-melho, 1999). O diagnóstico ocorrendo numprocesso mais avançado da infecção conduzi-ria também a uma evolução mais rápida para aAIDS.

A qualidade da informação é um indicadorda qualidade de assistência e indiretamente dacondição sócio-econômica dos casos. A desin-

formação sobre a escolaridade é proporcional-mente mais alta entre as mulheres do que entreos homens. Porém, o que chama mais a aten-ção é a diferença proporcional de informaçãonão preenchida, entre homens e mulheres, noque diz respeito ao modo de transmissão. Essadesinformação vem crescendo relativamenteao longo dos períodos estudados, tanto parahomens como para mulheres, mas, no caso dasmulheres é expressivamente maior, apresen-tando-se espacialmente mais intensa nas Zo-nas Norte e Oeste.

Se o diagnóstico da soropositividade é maistardio nas mulheres (Diniz & Villela 1999; Ver-melho, 1999), a defasagem de tempo entre a ex-posição e a notificação pode prejudicar a qua-lidade da informação sobre a forma de infec-ção, o que pode ser agravado em áreas pobresda cidade, sem serviços de saúde ou acesso àinformação.

Sem dúvida, o processo de feminização es-tá vinculado ao de pauperização da AIDS. Maso maior diferencial da desinformação sobre aforma de infecção nas mulheres, além da maiorproporção de casos femininos oriundos dosgrupos mais pobres, e do diagnóstico tardio,provavelmente está relacionado a aspectos cul-turais de gênero. Para além da pior qualidadeda assistência, em que medida as mulheres, emmaior proporção, desconhecem, elas próprias,a forma como se contaminaram?

Conclusão

A adoção de bairro como unidade de análise,ressaltou os diferenciais internos da cidade, evi-denciando processos sociais e epidemiológicos

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DISTRIBUIÇÃO DOS CASOS DE AIDS EM MULHERES 1059

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 19(4):1049-1061, jul-ago, 2003

Figura 5

Percentual de casos de AIDS em homens e mulheres com categoria de exposição ignorada.

0 5 10 Km

Oceano Atlântico

Baía de Guanabara

Município doRio de Janeiro

Rio de Janeiro

N

Baía de Sepetiba

71 a 100

Percentual de ignorados

51 a 70

31 a 50

11 a 30

5 a 10

0 5 10 Km

Oceano Atlântico

Baía de Guanabara

N

Baía de Sepetiba

Mulheres

Homens

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TOMAZELLI, J.; CZERESNIA, D. & BARCELLOS, C.1060

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 19(4):1049-1061, jul-ago, 2003

que ocorrem no seu interior. Outro aspecto im-portante que emergiu dessa escala foi o refle-xo das desigualdades sociais sobre o acesso aosserviços, infra-estrutura urbana, perfis de ren-da. O reconhecimento desses contrastes intra-urbanos permitiu que se ressaltasse o perfil so-cial do município e seus possíveis reflexos so-bre as condições de saúde da população.

Destaca-se que os mapas foram produzi-dos com base no local de residência dos casos enão necessariamente representam o local ondeocorreu a infecção. Apesar disso, as informa-ções observadas espacialmente foram conside-radas importantes na medida em que traduzi-ram, de qualquer forma, informações sobre operfil dos casos notificados residentes na uni-dade de análise.

A epidemia de AIDS adquire um perfil on-de segmentos cada vez mais jovens são atingi-dos pela doença. A notificação dos casos na fai-xa etária anterior indica uma contaminaçãoem faixas menores, englobando populações deadolescentes. Faz-se necessário desenvolverestratégias de prevenção mais eficazes para es-te grupamento populacional.

O estudo mostrou que a difusão da AIDSapresenta uma realidade distinta entre homense mulheres. A tendência de crescimento da epi-demia em mulheres está ocorrendo predomi-nantemente nos bairros mais pobres e a quali-dade da informação dos casos femininos é pior.Ainda que se constate o processo de feminiza-ção, os homens continuam sendo, em termosabsolutos, o segmento predominante e pro-vavelmente o “pólo difusor” da epidemia. Ob-servou-se que as mulheres apresentaram des-vantagens na qualidade dos dados registrados.Além do diferencial sócio-econômico, outrosaspectos devem estar influindo na pior quali-dade de informação dos casos femininos.

Valendo-se dos resultados da análise espa-cial realizada neste trabalho, pode-se esboçarum modelo do processo de difusão da AIDS pa-ra a cidade do Rio de Janeiro, que pode estar serepetindo em outras metrópoles do país. A in-trodução do HIV na cidade, como em quase to-do o Brasil, foi caracterizada pela grande pro-porção de casos masculinos, de alta escolari-dade, com transmissão homossexual do vírus.Na última década, esse perfil foi profundamen-te alterado com o aumento da importância datransmissão heterossexual com a diminuiçãoda razão de casos entre homens e mulheres. Noentanto, esse processo não é homogêneo nointerior das cidades. No Rio de Janeiro, as áreascentral e sul permanecem com perfis da epide-mia semelhantes aos da década de 80, enquan-to nas áreas mais pobres, o HIV se difunde pre-ferencialmente entre mulheres de baixa ren-da e pouca escolaridade. As redes de interaçãosocial atuantes no meio urbano devem ser in-vestigadas para se buscar explicações para esseprocesso. Pode-se levantar a hipótese de quemulheres residentes nessas áreas participemde interações com grupos sociais com alta pre-valência de HIV/AIDS, fora de sua área de resi-dência.

A análise espacial permite um nível de in-vestigação até determinado limite, apontan-do para a necessidade de estudos com outrasabordagens. Os resultados deste trabalho apon-tam a necessidade de estudos qualitativos, on-de a questão de gênero pode explicar dimen-sões importantes da epidemia da AIDS em mu-lheres. Cabe ressaltar a necessidade de se in-vestigar com mais profundidade os condicio-nantes da maior proporção de desinformaçãoacerca do modo de transmissão nas mulheres.

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DISTRIBUIÇÃO DOS CASOS DE AIDS EM MULHERES 1061

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 19(4):1049-1061, jul-ago, 2003

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Recebido em 3 de setembro de 2002Versão final reapresentada em 19 de novembro de 2002Aprovado em 14 de março de 2003

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