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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Direito Daniel Guimarães Medrado de Castro DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para além da ontologia. Belo Horizonte 2015

DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

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Page 1: DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Direito

Daniel Guimarães Medrado de Castro

DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para além da ontologia.

Belo Horizonte 2015

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Daniel Guimarães Medrado de Castro

DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para além da ontologia.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito Público, financiado com concessão de bolsa de pesquisa ofertada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais – FAPEMIG. Orientador: Álvaro Ricardo de Souza Cruz

Belo Horizonte 2015

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Daniel Guimarães Medrado de Castro

DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para além da ontologia.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito Público, financiado com concessão de bolsa de pesquisa ofertada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais – FAPEMIG.

__________________________________________ Álvaro Ricardo de Souza Cruz – orientador – PUCMG

__________________________________________ Marciano Seabra de Godói – PUCMG

__________________________________________ Misabel de Abreu Machado Derzi – UFMG

___________________________________________ Marinella Machado Araújo - PUCMG

Belo Horizonte, 07 de abril de 2015.

Page 4: DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

Aos meus pais e à Luana.

Page 5: DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

AGRADECIMENTOS Agradeço à Deus por caminhar ao meu lado e se fazer presente em

cada trecho da estrada.

Aos meus pais, Márcio e Zuleide, aos meus irmãos Guilherme, Henrique

e Thiago e ao meu padrinho Ari pelo carinho e por me permitirem sentir seguro,

sabedor que não importa para onde eu vá, serei sempre recepcionado no

retorno. Família! Palavra incapaz de espelhar as in-finitas sensações!

À Luana, pelo companheirismo e inúmeras demonstrações de amor e

carinho. Mulher sem igual que aprisionei na minha existência. Menina linda que

me deu o seu melhor sorriso e que experimenta comigo as ambiguidades e

insuficiências do amor. Amor para vida toda!

Ao mestre dos mestres Álvaro Ricardo de Souza Cruz, com quem passei

a manter um diálogo que transborda os portões da academia. Mais do que

orientador, revelou-se um amigo, um pai, um avô, um in-finito, uma relação que

não se fecha nem se ontologiza nas suas múltiplas faces.

Àquele com quem dei os primeiros passos na filosofia, meu dileto amigo

Gustavo Nassif, que me mostrou os bons caminhos da justiça!

Aos amigos do mestrado com quem dividi as inquietantes indagações

surgidas durante uma pesquisa. Amigos que pularam o muro do simples

coleguismo e que se fizeram suporte para as incertezas da vida. Amigos para

sempre! Muito obrigado: Bárbara, Bernardo´s, Boninho, Éder, Guilherme

Ferreira, Guilherme Jeangregório, Gustavo Hermont, Walkiria e Wykrota.

Às “loucas do mestrado”, Ana Carolina Caram, Flávia Siqueira e Roberta

Parreira (em ordem de insanidade) que, na grandeza de uma amizade sem

contornos, suavizaram sobremaneira o sinuoso percurso do mestrado.

Aos grandes mestres da minha vida, em especial aos que mudaram os

rumos dessa pesquisa: Marinella Araújo, Flávio Bernardes, José Alfredo de

Oliveira Baracho Júnior e Lucas Gontijo.

Aos amigos (que não cometerei o impropério de nomeá-los) que são

pilastras na minha vida e que, no mesmo trilhar de Vinícius de Moraes, deixar-

me-iam enlouquecido pelas suas ausências.

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais –

FAPEMIG, pelo financiamento da pesquisa e suporte conferido, sem o qual

seria impossível a caminhada.

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“O que me tranquiliza é que tudo o que existe, existe com uma precisão absoluta. O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete não transborda nem uma fração de milímetro além do tamanho de uma cabeça de alfinete. Tudo o que existe é de uma grande exatidão. Pena é que a maior parte do que existe com essa exatidão nos é tecnicamente invisível. Apesar da verdade ser exata e clara em si própria, quando chega até nós se torna vaga, pois é tecnicamente invisível. O bom é que a verdade chega a nós como um sentido secreto das coisas. Nós terminamos adivinhando, confusos, a perfeição.” (A Perfeição – Clarice Lispector).

“Não sei quantas almas tenho. Cada momento mudei.

Continuamente me estranho. Nunca me vi nem acabei.

De tanto ser, só tenho alma. Quem tem alma não tem calma.

Quem vê é só o que vê, Quem sente não é quem é, Atento ao que sou e vejo, Torno-me eles e não eu.

Cada meu sonho ou desejo É do que nasce e não meu.

Sou minha própria paisagem; Assisto à minha passagem,

Diverso, móbil e só, Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo Como páginas, meu ser.

O que sogue não prevendo, O que passou a esquecer. Noto à margem do que li O que julguei que senti. Releio e digo: "Fui eu?"

Deus sabe, porque o escreveu.”

(Não sei quantas almas tenho - Fernando Pessoa).

Page 7: DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

Resumo

O presente trabalho tem por finalidade investigar e criticar as bases científico-

filosóficas que alicerçam o pensamento tipológico e a teoria dos conceitos,

buscando uma (re)leitura desses institutos a partir da reviravolta linguístico

pragmática e da fenomenologia heideggeriana. Inicialmente, apresentamos as

diversas concepções sobre a tipicidade, apontando o seu uso tradicional no

direito brasileiro - como descrição completa e fechada dos elementos

percebidos na realidade - e fizemos um contraponto com os estudos

desenvolvidos na Alemanha e trazidos ao Brasil por Misabel de Abreu

Machado Derzi, concebendo a tipicidade como descrição não exaustiva do

mundo real, pressupondo uma abertura para a fluidez dos fatos sociais. A partir

dessa perspectiva e pautado na obra de Karl Larenz, apresentamos a

diferenciação entre a tipicidade e o conceito abstrato classificatório. Ambos os

institutos nos conduziu a investigação sobre a existência de uma linguagem

lógica perfeita que viabilizaria a sua distinção ontológica. Nesse diapasão,

perpassamos pela Filosofia Analítica, mais precisamente pelas obras de Frege,

de Russell e do primeiro Wittgenstein. Considerando precárias e insuficientes

as respostas dadas pelos autores, visitamos a obra Investigações Filosóficas

do segundo Wittgenstein, que nos apontou que o locus de significação da

linguagem é o seu uso, isto é, a pragmática. Com efeito, não se mostrou

palatável o fechamento ou abertura da linguagem em si mesma, ou seja,

isolado do caso concreto e do jogo de linguagem em que se está inserido. Em

seguida, intentando criticar a noção de objetividade e perceptibilidade total dos

fatos descritos no tipo e no conceito, imiscuímos na fenomenologia de Martin

Heidegger. Finalizando com um estudo empírico, concluímos a obra atestando

a impossibilidade de fechamento conceitual fora do seu uso e do seu contexto,

bem como a incapacidade do legislador e do aplicador de visualizarem a

totalidade dos fatos e transcrevê-los objetivamente em uma norma ou em uma

sentença judicial, o que desvelaria a fragilidade das concepções atuais sobre a

tipicidade e os conceitos abstratos.

Palavras-chave: Tipicidade. Conceitos. Reviravolta Linguístico-pragmática.

Fenomenologia. Heidegger.

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ABSTRACT

This study aims to investigate and criticize the scientific and philosophical

foundations that underpin the typological thinking and the theory of concepts,

searching a (re) reading of these institutes from the pragmatic linguistic turn and

Heidegger's phenomenology. Firstly, we indicated the different concepts of

typicality as it is usually applied in Brazilian law - as completed description of

the reality - and distinguished it to the studies developed in Germany and

brought to Brazil by Misabel de Abreu Machado Derzi, that has conceptualized

typicality as non-exhaustive description of the real world, requiring necessarily

an open to the flow resultant from the social dynamics. From this perspective

and guided by the work of Karl Larenz, we introduced the differentiation

between typicality and the abstract concepts. Both institutes in the way shown

conducted us to research on the existence of a perfect logical language that

would allow its ontological distinction. Therefore, we analyzed the Analytic

Philosophy, more precisely the works of Frege, Russell and the “first”

Wittgenstein. Whereas insufficient responses by authors, we analyzed the book

“Philosophical Investigations” of “second” Wittgenstein, who pointed out that the

local of meaning of language is its use, in the other words, the pragmatic.

Indeed, the conceptual of opening or closing of the language is not in itself, in

other words, it is not possible verify the content of a proposition isolated from

the case and the game of the language that it is inserted. Then, we attempted to

criticize the notion of objectivity and full intelligibility of the facts described in

type and concept analyzing the “phenomenology” of Martin Heidegger. Finally,

we did an empirical study that we concluded the work stating the impossibility of

conceptual closure out of its use and its context as well as the inability of the

lawmaker and the judges visualize all the facts and describe them objectively in

a law or a court judgment, that shows the fragility of current conceptions of

typicality and abstract concepts.

Keywords: Typicality. Abstract Conceps. Pragmatic Linguistic Turn.

Phenomenology. Heidegger.

Page 9: DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................ 9

CAPÍTULO I – O DESVELAR DO PENSAMENTO TIPOLÓGICO E DOS CONCEITOS

ABSTRATOS CLASSIFICATÓRIOS ..................................................................................... 14

CAPÍTULO II – EM BUSCA DE UMA LINGUAGEM LÓGICA PERFEITA ...................... 35

1.1 – Frege e a sua Conceitografia ................................................................................... 35

1.2 Bertrand Russell e a sua Teoria da Denotação ........................................................ 55

1.3 – Wittgenstein e o Tractatus Logico Philosophicus .................................................. 64

CAPÍTULO III – A REVIRAVOLTA LINGUÍSTICO PRAGMÁTICA – A LINGUAGEM

PARA ALÉM DA SEMÂNTICA ............................................................................................... 77

CAPÍTULO IV – A ANALÍTICA EXISTENCIAL E A FENOMENOLOGIA DE

HEIDEGGER ............................................................................................................................. 97

CAPÍTULO V – TEORIA OU PRÁTICA? ............................................................................ 133

CONCLUSÃO ......................................................................................................................... 145

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................... 150

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INTRODUÇÃO

Introduzir. Intro ducere. Ato de levar para dentro. Dentro de onde?

Os primeiros rascunhos de uma obra intentam convidar o leitor para a imersão

nas ideias propaladas por um conjunto de proposições que só fazem sentido

quando compartilhadas. Introduzir é pedir ao Outro que entre em sua morada e

que assente em seu sofá, ofertando-lhe o seu melhor vinho com o queijo mais

fresco. Assim, convidamos o leitor a entrar e permanecer o quanto quiser como

quiser, enquanto a hospitalidade existir. Arrumamos a casa para a visita, mas

não podemos definir como será a visitação.

O nosso olhar não permite ver a introdução como um mapeamento,

como a pavimentação da estrada a ser seguida. Não exigimos que o seu rumar

se dê dessa ou daquela forma, pois não é de bom tom condicionar o

pensamento alheio. Queremos, apenas, dar-lhe conforto na caminhada,

oferecendo-lhe o que temos de melhor, inclusive o nosso mapa do tesouro, que

possui apenas traços, não caminhos.

Com receptividade, dizemos que jamais estará só, pois há o

assombro que lhe recorda da nossa presença, sempre com o retoante eis-me-

aqui. Se em outra oportunidade expusemos que a leitura pode ser solitária,

mas nunca solipsista1, o nosso intróito pretende funcionar como um Lírio de

Calla que convida o leitor a vir com a gente nessa caminhada, sem ponto de

chegada ou beijo de namorada2.

Caminhada na qual o roteiro se (re)faz em cada passo, como nos

filmes surpreendentes (e sangrentos) de Quentin Tarantino. Por mais que haja

um script inicial, não é possível antever o resultado, que se perfaz em cada

cena, alterando o sentido em cada novo “take”. Assim se a-presenta a nossa

obra, como traços que serão completados e desfeitos no olhar do Outro

durante o caminhar, não cabendo a nós realizar uma descrição tola e ilusória

1 Aproveitamos para fazer o convite ao leitor para a visitação da obra (O) Outro (e) (o) Direito, na qual apresentamos dois artigos em conjunto com o grande mestre Álvaro Ricardo de Souza Cruz: “Clareira de Clarice – assinatura” e “Clareira de Clarice – contra-assinatura”. 2 Viva Cazuza!

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de qual será o percurso. Afinal, o eco que se faz presente é o de Macbeth, nos

recordando a todo instante que “(life) is a tale, told by an idiot, full of sound and

fury, signifying nothing.”3.

Se de um lado nos defrontamos com a im-possibilidade de descrever

a nossa trajetória, por outro há o Rosto que nos interpela e nos exige o

cumprimento da promessa de dar o nosso melhor. A alteridade nos impõe a

narrativa, ainda que precária, do por que se deve continuar a leitura.

Questionamento este que vem no formato original das indagações

metodológicas sobre a finalidade, a justificativa, os objetivos, o problema, as

hipóteses e o marco teórico. Devemos, então, nos esforçar para responder a

essas inquirições.

A-presentamos o texto, de uma forma geral, como um

questionamento dos postulados científicos do pensamento tipológico e da ideia

de conceito abstrato classificatório. A nossa bússola aponta para o norte, onde

começará a nossa investigação sobre o uso do termo “tipicidade” no direito

brasileiro, quase sempre concebido como uma proposição descritiva da

realidade que possui a totalidade dos fatos observados e que cria uma

obrigação comportamental clara e inequívoca para os jurisdicionados. Estamos

diante da ideia de um fechamento linguístico por meio do qual a previsibilidade

e a segurança jurídica se perfazem pela utilização de termos com significação

unívoca, que garantem uma única interpretação. Parte da doutrina chama essa

percepção de “tipicidade cerrada”, justamente em razão do seu fechamento

para possibilidades axiológicas, mostrando-se como uma proposição normativa

completa.

Mas será essa a concepção de tipicidade? Não tenho certeza, mas

ouvi dizer que por aquelas bandas há uma mente brilhante, que carrega no

nome a somatória de um “M”istério e a beleza da condessa de Angoulême, que

desvelou a tipicidade nos estudos germânicos de Karl Larenz, Karl Engisch,

Winfried Hassemer e Arthur Kauffmann. O tipo seria necessariamente aberto,

pendente de complementos valorativos e que torna factível o acompanhamento

da fluidez dos fatos sociais. Seria a descrição não exaustiva dos elementos da

realidade observada, mostrando-se possível que hipóteses fáticas semelhantes

3 Eco que se deu faticamente no diálogo com meu amigo José Bonifácio Suppes de Andrada.

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se amoldem àquela expressão normativa. Fechados só os conceitos abstratos,

que prescindiriam de carga valorativa, principalmente no campo de aplicação.

A norma jurídica que venha a ser constituída por conceitos abstratos nos

promete maior segurança jurídica e previsibilidade, haja vista a sua

composição repleta de termos com significação determinada.

Caso encontremos naquelas terras essas edificações, pretendemos

perfurar o solo em busca das bases que sustentam tais pensamentos. A nossa

problematização se encontra na planta baixa, que nos preanuncia a percepção

de que está na própria linguagem a possibilidade de significação proposicional,

mostrando-se possível a escolha de termos sintáxicos e semânticos que

conduzam a um fechamento a priori do sentido da expressão linguística. Além

disso, a capacidade de descrever a realidade percebida parece pressupor a

existência de objetividade e neutralidade que permitem ao legislador e ao

intérprete reconhecerem a totalidade dos acontecimentos fáticos e narrá-los

com precisão. Tudo é observado pela minha racionalidade que depura e

percebe a completude do fenômeno. Por mais sólido e vultoso que esse

edifício possa parecer algo não me convence.

Com a finalidade de atestar a rigidez dos pilares, embrenharemos na

Filosofia Analítica e a sua pretensão de criar uma linguagem lógica perfeita. A

Conceitografia de Frege será a nossa primeira parada. O lógico alemão inovou

na forma de pensar as bases linguísticas, sugerindo a adoção de uma

linguagem formular que se diferenciasse da natural. Pautado nos fundamentos

matemáticos da função e argumento de função, Frege contempla um

isomorfismo entre linguagem e realidade identificável pela lógica extensional.

Não obstante haja diversos meios de representar um objeto, o importante é que

todos os sentidos empregados reflitam o mesmo referencial, dando uma

significação unívoca para a proposição.

Com o receio de que Frege não nos dê uma resposta satisfatória,

visualizamos a possibilidade de visitar Bertrand Russell. Em sua teoria

denotativa, o filósofo inglês tenta constituir uma metalinguagem suscetível de

identificar as significações linguísticas, permitindo a aplicação da lógica do

terceiro excluído, valendo-se da matemática para extrair critérios que

identifiquem uma proposição como sendo logicamente verdadeira ou falsa.

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A busca por essa linguagem lógica perfeita possivelmente nos

guiará até o “primeiro” Wittgenstein. Em sua obra Tractatus Logico Philosoficus,

acreditou o autor ter desvendado os fundamentos da linguagem, o que lhe

permitiria a criação de um método lógico que retirasse da realidade a sua

correlação linguística. Sob o manto da máxima de que devo me calar quando

não posso conferir referenciabilidade a minha fala, o austríaco supôs ser

palatável a fixação de um isomorfismo entre signo/significante/significado, de

modo que a realidade deveria ser descrita por uma proposição que contivesse

elementos sintáxicos e semânticos que traduzissem para a linguagem o

acontecimento do mundo real.

O demorado diálogo com Wittgenstein, contudo, poderá nos causar

certa perturbação. Isso porque ele provavelmente nos apresentará a sua outra

face que desdiz todo o seu dito. Em seu sentir, a linguagem não mais possui

uma definição, mas um sentido que se concretiza em cada utilização e que se

dissolve ao serem mudadas as suas regras de uso. Tudo muda diante de um

novo jogo de linguagem. Essa é a perspectiva do livro Investigações

Filosóficas, que pode nos mostrar a existência da pragmática como elemento

fiador da significação. Uma proposição só tem sentido no seu utilizar.

Os dizeres do “segundo” Wittgenstein nos prometem o apontamento

de rachaduras graves no alicerce científico da tipicidade e do conceito abstrato.

Afirmamos aqui a nossa primeira hipótese, contestando a plausibilidade de

fechamento ou abertura linguística pelo correto uso da sintaxe e da semântica.

Impossível encontrar um sentido significativo fora do seu uso, desvelando que

o locus de significação é a pragmática.

Suspeito que nossa investigação, nessa etapa, encontre o tal marco

teórico. Marco e teórico. Mais parece nome de dupla sertaneja! A virada

linguístico pragmática pode simbolizar um dos cantores, mas e o Outro? Onde

encontrá-lo? Nesse sentido, sugiro caminharmos mais adiante e batermos à

porta do nada simpático Martin Heidegger. A fenomenologia e o existencialismo

analítico devem formar a segunda vertente teórica da obra4. Teimo em arriscar

4 Não posso omitir o constrangimento e o desconforto que tomam conta de mim ao narrar sobre o marco teórico. Mesmo que as minhas reflexões partam das correntes de pensamento indicadas, existem várias outras obras e pensadores que irão influenciar na forma como compreendi os ensinamentos de Wittgenstein e Heidegger. É uma injustiça dizer que o meu

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que as noções do Dasein como existente em-um-mundo nos permitirá

escancarar as fissuras presentes nos pilares científicos que sustentam o

pensamento tipológico e os conceitos abstratos classificatórios.

Outros passos ainda precisam ser dados. A atestação prática pode

vir como uma exigência do leitor. Fugir dos apontamentos empíricos se revela

como permissivo para a descrença sobre a validade da nossa caminhada.

Misturar filosofia e direito não é sinônimo de descompromisso com a realidade,

mas, ao revés, um refletir que vai além da repetição mecânica do dito. Ao

contrário do que se propaga aos quatro cantos, direito e filosofia não se

dissociam quando há o compromisso de responsabilidade com o Outro,

compromisso com uma prática discernida, que não recaia em um tecnicismo

imprudente.

A boa prosa não acabou, mas o vinho sim. Feito incisivamente o

convite para pernadas em direção ao estudo crítico sobre as bases científicas

da tipicidade e do conceito abstrato, cabe-nos, com a pressuposição do aceite

do leitor, “sair de dentro”5 da nossa morada e começar os primeiros passos.

Como bom mineiro, ofereço-lhe o último pão de queijo com a indagação:

“Vambora”?

marco teórico gira em torno das teorias desenvolvidas por esses autores, pois a minha compreensão não se mostra como objetiva e total. A leitura, que é só minha, vai muito além do que está escrito. 5 Eu sei que há um vício de linguagem denominado gramaticalmente de pleonasmo, por isso a expressão está entre parênteses. Talvez por excesso de zelo, acredito ser necessário explicar que utilizamos o termo em contraposição ao “levar para dentro”, que remetemos no início como sentido da palavra “introdução”. O momento é de saída na direção prometida.

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CAPÍTULO I – O DESVELAR DO PENSAMENTO TIPOLÓGICO E

DOS CONCEITOS ABSTRATOS CLASSIFICATÓRIOS

Os primeiros passos dessa jornada têm por pretensão o desvelar da

estrutura de significância da tipicidade. Compreender como esse instituto vem

ao nosso encontro na sua construção significativa é base fundamental para o

desenvolvimento dessa obra. Para tanto, a nossa racionalidade nos conduz

inicialmente a uma investigação sobre o utilizar do termo tipo na Ciência do

Direito, expondo os modos de ser como esta expressão se apresenta

usualmente. O nosso rumar inicial visa o desvelamento dos postulados

científicos que balizam a elaboração das teorias sobre o tipo, podendo, assim,

visualizar se há solidez na edificação desse instituto jurídico. Traçada a rota6, o

momento é de calçar o tênis e seguir em frente!

Refazendo o traçado da professora Misabel de Abreu Machado

Derzi (1988) em sua tese de doutoramento, vamos à busca da reconstrução

etimológica da palavra tipo. Em alusão aos estudos de Erich Heyde, a autora

expressa que a historiografia do termo remete à expressão latina typus que

derivou do signo τύπος do grego e que era empregado no sentido de “forma,

forma oca, relevo, impressão, batida, cunhagem”7.

A terminologia grega era utilizada em dois sentidos basilares, sendo

o primeiro de uma modelagem da realidade, como cópia ou espelhamento de

algo, um contorno que daria traços determinantes a um objeto; a segunda

acepção seria de modelo, um parâmetro a ser utilizado como uma espécie de

protótipo, algo que dá uma definição básica, mas que não encerra a

possibilidade significativa.

Platão e Aristóteles ainda teriam utilizado o termo para significar

uma ideia de representação esquemática ou ontológica das coisas. Ao que

parece, os filósofos gregos valiam do termo τύπος para remeter a essência de

6 Fixar uma rota ou um caminho a ser traçado já é um caminhar. A caminhada começa antes mesmo do começo, antes mesmo de firmar o primeiro pé no chão. 7 DERZI, 1988, pg.21.

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uma coisa, de como um objeto se constitui no mundo, como ele se revela

essencialmente.

Essa visão do tipo permite visualizar, ainda que bem vagamente, a

utilização inicial do termo como uma expressão que aproxima a realidade, que

visa enfocar no real, numa correspondência do signo com a referência fática. O

tipo pretendia evidenciar não a abstração conceitual de algo, mas um padrão

existente no mundo real, na cotidianidade fática do homem.

Seguindo ainda os estudos da professora mineira, aduz-se que a

recepção do termo na sociedade romana (trabalhada por Cícero e Plinius) se

deu no sentido de formação de uma imagem, um signo que traz uma moldura

figurativa da realidade. Muito próximo também é o sentido encontrado nos

dicionários franceses do século XVIII, que traziam o termo type como “modelo,

totalidade da forma, modelo para coisas, totalidade da forma básica, natureza,

espécie nas coisas, etc”8. A expressão teria sido amplamente utilizada nas

ciências humanas, principalmente na medicina-psicológica, trazendo a ideia de

uma “forma básica”. O termo teria chegado às ciências sociais por John Stuart

Mill, que teria criticado casualmente o novo conceito de tipo em sua obra

“Sistema de lógica dedutiva e indutiva”.

Nas ciências humanas e sociais de uma forma geral, “tipo” teria

alcançado hodiernamente a concepção de forma básica (Grundform), que

traduziria uma ideia de modelo captado da realidade, estabelecendo um padrão

geral observado em que as coisas do mundo se dão. Em termos genéricos,

podemos afirmar que a expressão visa estabelecer um nexo com a realidade,

formando uma modelagem que parametriza a concretude fática, identificando

os elementos da realidade e como ela geralmente se dá.

Antes de adentrarmos a noção conceitual do tipo, já podemos

visualizar que, a princípio, pretende-se estabelecer uma hipótese universal a

partir da análise dos particulares, de modo a tornar possível a categorização da

realidade sem deixar de lado a fluidez que a dinamicidade social exige. Tipo

seria bem a percepção juvenil do “tipo assim”, algo que se parece, mas não é

totalmente, pois a particularidade fática impede que haja a absorção integral do

acontecimento fático pela descrição tipológica.

8 DERZI, 1988, pg.21.

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Separamos, assim, dois aspectos que se mostram imprescindíveis

para a compreensão do tipo: sua proximidade com o real, não se tratando,

pois, de uma abstração pura da realidade; e a fluidez condizente com a

mobilidade dos fatos sociais, de forma que o tipo seria uma descrição dos

elementos gerais da realidade, sem se fechar conceitualmente.

Nesse mister, tentando evidenciar a utilização imprópria do termo

tipo por parte da doutrina, Derzi tenta fazer uma diferenciação ontológica do

tipo com o conceito classificatório, asseverando que a segunda expressão traz

a abstração racional e objetiva das coisas, analisando cada objeto e

circunstância de forma cotejada, isolando cada um dos elementos e os

rotulando individualmente para, em seguida, formular um conceito pela junção

do significado de cada objeto ou circunstância. O conceito traria objetivamente

os elementos componentes de cada coisa, tratando-se de uma construção

conceitual lógico-formal, que prescindiria da verificação empírica.

O conceito revelaria a definição ontológica das coisas, trazendo a

única possibilidade de sentido na utilização daquele termo. Seria o fechamento

das possibilidades significativas por meio da adoção de um conjunto de signos

linguísticos com o sentido semântico unívoco e previamente estabelecido. Há

uma perfeição sintático-semântica, fazendo com que a expressão não ganhe

mais de um sentido. Estaríamos diante de uma espécie de “quebra-cabeça”,

uma vez que a peça só se encaixa no seu local exato, ainda que haja outras

possibilidades aparentes. Não adianta forçar, pois o encaixe perfeito só se dá

em uma única localidade, existindo um único modo de ser.

Por outro lado, o tipo seria necessariamente aberto a outras

possibilidades significativas, detendo a natureza de descrição dos fatos

observados objetivamente. O cientista aprecia o que acontece no mundo fático

e faz a descrição dos elementos da realidade percebida. Ocorre uma descrição

de todo o conjunto identificado, ao invés de um isolamento abstrato e

apreensão dos elementos gerais presentes em todas as situações, como quer

o conceito classificatório.

No processo descritivo, no qual parte-se da análise das

circunstâncias particulares para estabelecer um padrão básico universal, seria

necessária a utilização de signos com conteúdos sintático e semântico que

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permitissem uma maior extensão interpretativa, sendo a modelagem mais

flexível. Como teria uma função descritiva da natureza, o tipo é construído por

um olhar que observou a totalidade dos elementos fáticos e estruturou

linguisticamente um modelo geral básico, que não se encerra em si mesmo.

Com isso, acredita-se que o tipo possui a característica de fluidez, podendo ter

uma constante resignificação em razão de novos acontecimentos fáticos,

adequando-se as contínuas mudanças sociais.

Ricardo Lobo Torres (2006), caminha na mesma pretensão

diferenciadora, dissertando que o conceito tem o caráter representacional

abstrato da realidade, podendo, inclusive, violentar o real para construir os

seus preceitos. A abstração presente no conceito poderia interromper as

conexões de sentido, de modo a não refletir o que realmente acontece, mas o

que racionalmente representaria a realidade. Valendo-se do exemplo de Karl

Larenz (1997), a conceituação de cachorro no mundo jurídico, por exemplo,

não o considera como animal mamífero da espécie canina e da raça x, mas sim

como um bem móvel pertencente ao homem. Ocorre aqui uma abstração

racional para permitir que o conceito “cachorro” se adéque às necessidades do

direito.

O conceito abstrato ou classificatório pode criar uma realidade

apenas racionalmente verificável, não detendo uma correlação empírica.

LARENZ (1997) afirma que o conceito traz uma definição de acordo com os

objetivos buscados por determinada ciência, podendo desconsiderar o sentido

das expressões trabalhadas em outras áreas do conhecimento ou da sua

utilização corriqueira. No conceito não há uma necessidade de

correspondência com o real.

Como o conceito se firma a partir do isolamento de notas distintivas,

que diferenciam aquele objeto de qualquer outro, o critério subsuntivo se torna

factível, pois a clareza e a certeza sobre o pertencimento àquele conceito

viabilizam uma lógica interpretativa de sua aplicação ou não aplicação

imediata, mostrando-se prescindível e imprópria toda e qualquer valoração no

momento de aplicação conceitual. Afinal, ou é ou não é, não existe um

“depende”. O objeto pode ou não se encaixar naquele modelo significativo,

Page 19: DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

18

subsumindo ou não ao conceito. Aplica-se a teoria do terceiro excluído,

impondo que uma expressão seja necessariamente falsa ou verdadeira.

Yonne Dolácio de Oliveira (1980) anota que no processo de

formação do conceito há dois momentos de abstração, um negativo “o

prescindir da profusão especial” e outro positivo “o separar e reter um

determinado geral”9. Quando, por exemplo, tentamos compreender o

significado da cor amarelo, certamente excluímos do seu campo de

significação as cores azul, vermelho e verde. Para reter seu significado,

dizemos que é uma das cores primárias do nosso espectro visual e, para

“separar”, apontamos objetos identificados com ela: o sol, a manteiga, a

gordura, etc. O conceito ainda teria uma escala de abstração, do mais abstrato

ao mais concreto, de modo que o distanciamento da realidade permitiria uma

maior abrangência do conceito, que poderia cair sob um número maior de

hipóteses. A descida na escala abstrativista dar-se-ia pela inclusão de novas

notas distintivas ao conceito, permitindo uma maior aproximação com o mundo

real. Ao aumentar o número de elementos necessários para a adequação a um

conceito eu o aproximo a concretude fática, diminuindo, contudo, a amplitude

de sua aplicação. Por exemplo, “bege” deixaria de ser enquadrado no conceito

de amarelo.

Essa escala de abstração, porém, ainda que chegasse a níveis

baixíssimos, aproximando ao máximo da individualização concreta, não

perderia a sua taxionomia de “conceito abstrato”, uma vez que a sua formação

ainda se daria pelo método de isolamento das notas distintivas, fazendo com

que o produto final não decorresse da totalidade de elementos constatados de

um caso concreto.

O conceito traz uma ideia de distinção clara e inequívoca, que

permite uma imediata análise de adequação ou não a ele. Com efeito, o

conceito traz insitamente uma ideia de definição, ocorrendo um afastamento

dos aspectos valorativos na sua aplicação. Diante de um conceito eu teria a

condição cognitiva imediata e racional de dizer se aquele objeto se encaixa ou

não a ele. Trata-se de pretensão de conferir certeza significativa, encerrando

9 OLIVEIRA, 1980, pg.04

Page 20: DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

19

toda e qualquer margem interpretativa na clareza de sentido, não comportando

mais de uma interpretação.

O direito foi amplamente seduzido pela ideia de estruturação lógico-

formal da realidade captada pela mente e reproduzida no conceito abstrato, o

que supostamente daria à norma jurídica a previsibilidade exigida pela

segurança jurídica. Como seria possível apenas uma única interpretação

lógica, o afastamento dessa hipótese seria um tergiversar ilegítimo, pois o

intérprete estaria desvirtuando o sentido da norma e pessoalizando a aplicação

do direito.

Esse canto da sereia parece ter maravilhado DERZI (1988), que

assevera que “a legalidade estrita, a segurança jurídica, a uniformidade e a

praticabilidade determinam a tendência conceitual prevalente no Direito

Tributário”10. A eminente professora assevera que a necessidade de uma maior

previsibilidade no Direito Tributário ensejaria a adoção de conceitos

classificatórios com conteúdo fechado, não se admitindo “ordens de estrutura

flexível, graduável e de características renunciáveis que são os tipos”11. Com

isso, constatamos que há a encampação da ideia de existência de uma

linguagem lógica capaz de fechar todas as hipóteses normativas.12

Ainda segundo Misabel Derzi, o conceito fechado é corriqueiramente

utilizado por nossa doutrina como sinônimo de tipicidade, principalmente

quando se trata de ramos do direito em que se necessita de uma maior

proteção do jurisdicionado, como é o caso do Direito Penal e do Direito

Tributário. Trata-se de mera impropriedade terminológica, mas que enseja uma

investigação mais criteriosa sobre o que seria o tipo.

De uma forma geral, podemos afirmar que a diferenciação proposta

para o conceito e o tipo seria que, enquanto no primeiro o processo de

universalização da hipótese normativa se dá com base no isolamento das

notas distintivas de cada objeto e a sua análise em separado, formando

abstratamente uma expressão linguística clara e inequívoca, que permite

identificar pela lógica formal subsuntiva se o fato concreto se adéqua ou não ao

10 DERZI, 1988, pg. 248. 11 DERZI, 1988, pg. 248. 12 Durante o trilhar dessa obra, mostraremos a impossibilidade do alcance de expressões com sentido unívoco e que sejam sintática e semanticamente perfeitas.

Page 21: DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

20

conceito; na construção do tipo, a universalização se dá no movimento dialético

que sai do particular ao universal, tomando como parâmetro a descrição da

realidade sensorialmente apurada, possuindo, assim, uma maior proximidade

com a concretude fática. O tipo descreve a realidade, não lhe sendo permitida

a alteração das conexões de sentido, que aproxima o real da expressão

linguística.

Segundo LARENZ (1997), o pensamento tipológico se faz

necessário quando os conceitos abstratos não são suficientes para a captação

do fenômeno, mostrando-se imperiosa uma aproximação com o real, com o

que faticamente acontece. Apenas recordando que na abstração designada

pelo autor como “suprema”, ou seja, que está no ápice da cadeia de abstração,

embora permita a subsunção de um maior número de hipóteses, o seu

conteúdo é empobrecido em razão do distanciamento da realidade. Além disso,

o fechamento conceitual não viabiliza a solução de controvérsias decorrentes

das lacunas existentes no sistema em razão da dinamicidade social e das

múltiplas hipóteses de acontecimentos fáticos. Para solucionar esses

problemas é que o tipo deveria fazer-se presente na Ciência do Direito.

O tipo permitiria a solução das lacunas, pois a sua constituição

pressupõe a abertura significativa, dando fluidez aos seus termos e permitindo

que haja uma maior adequação com o caso concreto por meio da utilização de

elementos valorativos. Não se aplica a ele a lógica da exclusão do contrário,

por meio da qual um fato concreto se encaixa totalmente ou não na hipótese

normativa. É perfeitamente possível que a ausência de um elemento descrito

no tipo não prejudique a adequação do fato à hipótese tipificadora.

Em razão da sua natureza descritiva, o tipo forma um modelo básico

apreendido da análise dos fenômenos, de modo que a ausência de um ou

outro elemento não lhe descaracteriza. Ele funciona como uma espécie de

standard fluido que se move na faticidade para se concretizar, devendo haver

um processo inferencial valorativo para identificar se aquele fato é típico.

Ao tipo não se aplica o método subsuntivo, pois o meio de

observação da realidade é o inferencial indutivo, de modo que o parâmetro

modular que forma o tipo é alcançado pela identificação dos elementos

significativos extraídos dos casos particulares. O tipo se abre à realidade e

Page 22: DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

21

permite uma multiplicidade de fatos aplicáveis à mesma hipótese. Ele não traz

definições, mas descrições que parametrizam o agir investigativo, dando ao

intérprete uma margem valorativa para poder identificar a correlação do fato

com a descrição típica.

VELÁSQUEZ (2011) expressa que, no direito, a integração do fato

com a hipótese típica não se dá abstratamente como no conceito, mas é

exigida uma valoração por parte do intérprete, que valeria das pré-

compreensões formadoras do seu juízo (obtidas direta e indiretamente na

vivência jurídica) para identificar a possível adequação do fato ao previsto na

norma tipificadora. Esses juízos não seriam, contudo, aleatórios ou

subjetivistas, mas decorreriam das percepções obtidas da experiência jurídica,

seja do próprio intérprete ou pelo manuseio da jurisprudência13.

Vale frisar, contudo, que o pensamento tipológico não apresenta

uma unidade significativa, existindo várias formas de abordagem e estruturação

científica. Passamos então a discorrer sobre alguns dos modos de

apresentação do tipo.

Iniciamos pela ideia trabalhada por Karl Engisch relativa ao

denominado “tipo médio ou de frequência”. Esse modelo absorve a ideia de

descrição dos elementos normalmente visualizáveis na sociedade, tratando-se

daquele parâmetro básico extraído da realidade frequente de uma determinada

organização social. Na construção tipológica, o cientista não adota aqueles

elementos extremos, de verificação extraordinária, pautando-se por uma

descrição do que é usual.

Os exemplos trabalhados por Larenz são bem esclarecedores.

Quando dizemos “certa situação atmosférica é típica desta região e época do

ano” estamos a trabalhar com a noção do tipo médio. A imagem mental que

teríamos ao nos defrontar com tais expressões seriam àquelas

correspondentes ao que se mostrou faticamente usual.

13 Apenas para fins de registro, ao que nos parece, a teoria do pensamento tipológico se adéqua ao expresso por NINO (2010) como teoria descritivista naturalista objetivista, sendo que os juízos de valor integrantes do tipo são “empiricamente verificáveis” e extraíveis objetivamente de uma dada sociedade. Essa perspectiva se mostra ainda mais forte quando Larenz assevera que o tipo real é “ao mesmo tempo, sempre um tipo ideológico” (LARENZ, 1997, pg. 661)

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22

O tipo médio descreve àquela situação mais comum, deixando de

penetrar nas características mais específicas, podendo ter graus de

intensidade diversos, bem como uma variedade de matizes e combinações. O

tempo pode estar mais frio ou mais quente, com maior ou menor umidade.

Contudo, nada disto retira a condição típica narrada, de situação atmosférica

normalmente verificada naquela época do ano. O verão brasileiro pode ser

mais ou menos chuvoso, com temperaturas mais ou menos altas do que o

normal, mas a expectativa é que nesta época tenhamos mais chuvas do que no

resto do ano, bem como temperaturas mais elevadas. Trata-se de uma

expectativa de repetição de caracteres assemelhados.

No direito, a figura do tipo médio se mostra bem presente. O

denominado homem médio ainda figura como parâmetro valorativo de

comportamento que subsidia a hermenêutica jurídica, exigindo que o intérprete

visualize no caso concreto se houve a adoção das medidas preventivas típicas

de um “bom sujeito”, que se concatena aos padrões médios observados. No

âmbito do Direito Penal isso se mostra em evidência nas figuras

caracterizadoras da culpa (imprudência, negligência e imperícia). Ser

imprudente nada mais é do que agir fora do padrão médio desenhado pela

sociedade. Em uma via cuja velocidade máxima permitida é de 60km/h, ser

imprudente não é simplesmente ultrapassar esse limite, mas transbordá-lo para

além do que o homem médio faria. O mesmo acontece com a negligência, que

é a omissão lesiva daquele que tinha o poder/dever de agir. Esse poder/dever

delineia uma ideia de comportamento esperado no modelo básico de

sociedade. O imperito é o sujeito que transgride barbaramente as regras de

atuação profissional, não lhe sendo exigida uma habilidade estrondosa, mas ao

menos aquela que se constata na prática mediana da profissão. Outro exemplo

do tipo médio seria a famigerada “mulher honesta” presente até 2005 na

conduta tipificada no artigo 215 do Código Penal, na qual pressupunha o

comportamento usualmente visto pela sociedade como condizente com os

bons costumes.

Mas afinal, quem é o homem médio? O personagem Lineu Silva da

Grande Família? E a mulher honesta? A Dona Nenê? As luzes que jogamos

para tentar enxergar o real escondem aquilo que não pode ser percebido,

Page 24: DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

23

aquilo que a nossa racionalidade não pode captar. O tipo médio ou frequente

nada mais é do que uma fajuta idealização do real, que não existe senão na

nossa ilusão de termos encontrado um padrão básico a partir da observação

empírica. O nosso olhar nos ludibria, pois vemos aquilo que queríamos ver.

Note-se que a nossa crítica não gira em torno da indeterminação

conceitual – até mesmo porque não acreditamos na determinação conceitual -,

mas em relação ao pensamento de que é possível captar objetivamente da

realidade o conjunto de elementos que formam um padrão comum de

comportamento. A nossa percepção não objetiva e nem tampouco consegue

alcançar a totalidade dos fatos, permitindo a descrição apenas daquilo que

“mais vezes” foi observado. Essa teoria narra, então, aquilo que queríamos ver,

que o nosso olhar foi direcionado pela nossa com-pre-ensão14. Suspeitamos

que o comportamento padrão e desejado de uma mulher possivelmente esteja

identificado na figura materna, simbolizando uma mulher que certamente

ascenderá aos céus pela demonstração de tantas virtudes15. Esse

comportamento exemplar, contudo, não se dá pela contemplação imparcial do

mundo. As mães são santas, porque o nosso olhar as enxergam assim, como

as verdadeiras mulheres honestas.

Outro modo de apresentação do pensamento tipológico na

modalidade empírica seria o de totalidade ou configuração. Nesta, o tipo total

é constituído a partir da análise comparativa, por meio da qual são identificadas

notas distintivas que serão consideradas no seu todo. Tomando o exemplo de

Heyde trabalhado por Larenz, esse modelo típico estaria presente na

expressão “a típica casa rústica da Baixa Saxônia”.

Para se chegar a esta descrição típica, observamos os elementos

que distinguem a casa rústica da Baixa Saxônia das demais casas,

14 Com-pre-ensão? Assim, separado? Nunca vi! Prometemos ao leitor ofertar o nosso melhor, o que justifica lhe dar a mão nessa travessia. Com traduz a relação de alteridade. A minha cognição não é solipsista, pois passa necessariamente pela alteridade. A compreensão será sempre com o Outro. Pre simboliza a noção de espacialidade e temporalidade do compreender. Há uma antecedência compreensiva que só se revela na compreensão. Em me remete ao tempo e ao espaço. O compreender se dá “em” algum lugar e ”em” algum tempo, que serão essenciais para a construção compreensiva. São me recorda do ser que reflete sobre sua própria existência e só é no sendo. Compreender só é possível no ser do homem. 15 Não que interesse ao leitor, mas à minha mãe faltam apenas as vestes de Santa. Como não há uma vestimenta típica, então, nada lhe falta para ocupação de tal cargo. Essa sim é uma verdade clara, inequívoca e absoluta. Único assunto que não aceito discussão.

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24

identificamos quais são as notas distintivas e criamos um modelo básico que

permita a fluidez de sentido. As casas podem alterar alguns dos elementos,

como a quantidade de janelas, a cor, o tamanho, etc., mas isso não lhes retira

a característica marcante da casa rústica da Baixa Saxônia.

Esse modo de apresentação típica prima pela construção de um

mapa mental correlativo, no qual o tipo é a descrição do modelo básico

compreendido na sua totalidade, mas aberto significativamente, permitindo que

a ausência de alguns elementos não o descaracterize. Em outras palavras,

“casa rústica da Baixa Saxônia”, embora não possua um fechamento

conceitual, permite-me uma apreensão genérica daquelas simpáticas moradias

do interior da Alemanha. Não há uma definição do que é, mas permite-me fazer

uma imagem mental do tipo de edificação.

O problema dessa imagem mental já foi apontado por Leonard

Mlidinow em seu livro “O andar do bêbado”. Ao tentar extrair o modelo básico,

focamos a nossa racionalidade naquilo que nos é mais latente. Ora, quando

falamos no típico homem solteiro, é bem possível que venha a mente a figura

de um sujeito mulherengo, adepto ao chopp diário com os amigos e que vive

em uma casa um tanto desarrumada. Pode haver ausência desses elementos,

mas a imagem é costumeiramente essa. Ou será que o leitor visualizou o

Papa? A típica casa rústica da Baixa Saxônia pode não corresponder

exatamente com aquela imagem mental que fizemos ao nos deparar com o

modelo típico, mas ela será uma casa rústica da Baixa Saxônia.

Claro que o leitor pode dizer “não, você está confundindo. A casa

será rústica da Baixa Saxônia se detiver alguns elementos básicos, como a

estrutura do telhado, as janelas de vidro, etc. E, ainda, o típico solteiro é aquele

que não é casado, ponto final!”. Evidente que muitas outras críticas poderiam

surgir, mas a minha defesa sobre esta seria com o questionamento acerca de

qual seria a diferença do tipo para o conceito, se a pressuposição é de

necessidade do fato conter elementos específicos que se adéquem ao modelo

típico? Não seria, dentro da própria teoria do conceito, um menor grau de

abstração conceitual ao invés de tipicidade?

Em síntese, o que estamos apontando é que a imagem que vem a

nossa mente é turva e não decorre de percepções empíricas puras, existindo

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25

sempre algo que nossa racionalidade não conseguiu alcançar. Não é possível

visualizar a totalidade de um objeto, o que impede a caracterização típica total.

Larenz ainda faz menção ao denominado tipo ideal normativo, que

seria construído por meio de uma abstração valorativa do que seria a realidade

ideal. O exemplo trazido pelo autor alemão seria a sociedade ideal platônica.

Apenas para recordar, de forma bem sintética, Platão idealiza o modelo de

governo perfeito, apresentando uma sociedade organicista governada pelos

filósofos, que aplicariam ao caso concreto os conceitos puros absorvidos no

mundo das ideias. Aplica-se também a esse modelo o tipo idealizado de

profissional, como o tipo de “juiz justo”. Seria um tipo de perfectibilidade, de

ideal a ser alcançado que norteia o agir humano. Logo, o tipo ideal normativo

pressupõe um lugar inalcançável em um tempo impossível. Pressupõe um

desejo pessoal/social de progresso ou de melhoria sempre inatingível, o que

acarreta outro problema: a impossibilidade de definir o que seria perfeito!!!

Perfeito para quem? Quais são os valores que norteiam essa perfeição? Quem

dita o padrão básico da conduta perfeita?

Avançamos agora para o que foi denominado por OLIVEIRA (1980)

de tipo ordem. Esse modo de ser do tipo revela a pretensão de descrever a

vida como ela é, sem definir os seus contornos, permitindo a fluidez, que é

traço marcante do comportamento humano. As experiências reais da vida

humana não possuem uma fragmentação, de modo que o processo descritivo

da realidade não poderia cindir o objeto ou o fato em notas distintivas. A

realidade é “como ela é”, e não pela individualização de cada um dos

elementos que a compõe. O tipo ordena as conexões da realidade ao invés de

isolá-las.

Afirmam Hempel/Oppenheim que, ao contrário, o tipo é uma ordem que esclarece sobre a disposição dos objetos em uma série uni ou pluridimensional, uma relação de objetos individuais entre si dentro do tipo. Este, como ordem, permite concluir que um objeto ou uma ou várias qualidades de um objeto estão em paridade com outros, ou sucedendo ou precedendo a outros. E verificam-se, ainda, transições fluidas entre objetos e grupos de objetos que possuem uma propriedade em mais alto grau e outros que a possuem em menor grau, o que possibilita perceber as graduações e transições flutuantes dentro do âmbito da nossa experiência. (OLIVEIRA, 1980, pgs. 08/09)

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26

Como anota DERZI (1988, pg.38), o tipo ordem é caracterizado

pela graduação da realidade, fluidez, indeterminabilidade, indefinibilidade, certa

temporariedade, abertura ao mundo real para readequações de sentido e a

existência de uma imagem total que permita o reconhecimento do fato como

típico. Não há um modelo lógico formal unívoco, mas um molde ajustável à

própria concretude fática, que tenha mobilidade para se desenhar de acordo

com o movimento da própria sociedade. O pensamento tipológico nesse

formato traria para o direito uma atualização constante das normas com os

fatos sociais, uma vez que a renovação significativa dar-se-ia

instantaneamente à mudança da perspectiva social.

Importante notar que, mesmo nessa visão sobre o tipo, com uma

proximidade com os acontecimentos fáticos, a realidade é observada

objetivamente, por um olhar cientista que descreve como a realidade é em si,

ou seja, como ela efetivamente acontece. O processo de universalização do

real pressupõe uma realidade objetivamente enxergável pelo jurista e pelo

legislador, que teria o papel de descrever aquilo que racionalmente ele

percebeu. Há notoriamente um tom da racionalidade moderna que pressupõe a

capacidade do homem de, pelo cogito, identificar as coisas, classificá-las e,

consequentemente, dominá-las. Está, portanto, em uma dimensão do “eu

penso” cartesiano, capaz de captar racionalmente a realidade e descrevê-la

com perfeição de detalhes.

Com efeito, vale frisar dois pontos relevantes para o desdobrar

dessa obra. Em primeiro lugar, não obstante a apresentação do tipo como uma

abertura ao real tenha o nobre objetivo de permitir uma fissura interpretativa no

direito, de modo que as decisões judiciais acompanhem a fluidez das

mudanças sociais, ela ainda parte de uma lógica moderna que vislumbra a

possibilidade de extrair objetivamente os elementos do mundo físico, fazendo

do cientista jurídico aquele que sai do seu mundo para observar o que

acontece. Na própria dualização de conceito/tipo, apresentando a viabilidade

de desconexão do compreender com o mundo que circunda o intérprete,

reforça essa perspectiva, pois se acredita que está nas mãos do legislador

fazer uma abstração do cotidiano ou descrever o comportamento, expondo o

que fora observado na contemplação dos acontecimentos fáticos.

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27

Ao contrário disso, pressupomos a indissociação do homem com o

mundo, o que torna a ideia de abstração uma impropriedade lógica. Dizer que

as expressões científicas podem ser classificadas como conceito ou tipo não

faz o menor sentido, pois não é possível o desligamento do homem com a

realidade fática. A sua narrativa terá inexoravelmente influxos decorrentes da

sua relação com o mundo que o circunda.

Como abordaremos mais a frente, a condição de ser-no-mundo

impede que haja essa fuga da realidade para compreender o que está a sua

volta. O homem não consegue extrair abstratamente os elementos do mundo,

pois esse ato já estaria eivado pela sua percepção real de desde sempre

compor o mundo. Além disso, as mudanças interpretativas não se darão

somente pela fluidez da sociedade, que modifica os seus valores a todo

instante, mas também na alternância do intérprete, que possui uma visão

interpretativa que é só sua, em razão da existência que lhe é própria.

Outro ponto que precisa ser frisado é a nossa contrariedade em

relação ao fechamento ou abertura significativa. Ao que nos parece, a miragem

doutrinária é no sentido de que se dá na linguagem o fechamento linguístico,

cabendo ao legislador realizar a escolha na adoção de conceitos - que trariam

uma semântica definida - ou do tipo - que teria como elemento central a

abertura significativa. Essa abertura seria fixada a partir da utilização de termos

semanticamente abertos, dando ao intérprete uma maior possibilidade

interpretativa, integrando o texto ao caso concreto por meio de juízos

valorativos existentes na sociedade e captados pelas experiências jurídicas

vividas direta ou indiretamente.

Ora, o nosso horizonte é que esse fechamento não pode se dar na

dimensão semântica da linguagem, mas apenas na pragmática, momento em

que a aplicação terminológica será provisória e precariamente “de-finida” pelos

interlocutores. Ainda que o legislador se esforçasse bastante, ele jamais

estruturaria uma sentença completa e com univocidade de sentido. Não há

significação fora do caso concreto, destoada do jogo de linguagem. O

fechamento conceitual é uma “im-possibilidade” lógica, pois a norma sempre

estará sujeita a (re)significações decorrentes da mutabilidade dos jogos de

linguagem e das influências pré-compreensivas do intérprete. Pré-

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28

compreensão que não está relacionada à historicidade pura, isto é, das

vivências que teve, mas também da sua mundanidade, da sua condição

compreensiva decorrente da existência como ser-lançado. A mudança na

significação não se dá só pela alteração fática, mas também pela modificação

daquele que enxerga aquela realidade, pois o seu enxergar não é objetivo, ao

revés, expõe uma compreensão que é só sua.

Ainda há outros modos de apresentação da tipicidade, como a

estrutural de Karl Larenz16, o tipológico-analógico de Arthur Kaufmann17, a

tipicidade da imposição de Klaus Tipke18 e outras que fugiram da nossa

percepção. Entretanto, em cada uma dessas19 se impõe, em alguma medida,

as críticas que aqui já foram apontadas20, de forma que, para os objetivos do

presente trabalho, mostra-se desnecessária a abordagem de todas elas. Há,

porém, uma que é muito criticada no campo teórico, mas que tem subsidiado a

doutrina e a jurisprudência pátria, mormente em matérias de caráter

sancionador. Estamos a falar da tipicidade cerrada ou tipicidade fechada.

A tipicidade cerrada é configurada pela descrição exaustiva da

realidade e a indicação de todos os elementos concretos e valorativos que um

fato precisa ter para se concatenar àquela hipótese típica. Ocorre a definição

16 V. LARENZ, 1991, pgs. 655/701 – pgs. 391/439 17 V. KAUFMANN, 1997, pgs.161/191 -142/150 18 V. TIPKE, 2008, pgs. 235/260. 19 Obviamente que entre as que foram identificadas por nós. 20 Evidente que não estamos colocando todas essas teorias em uma sacola comum. Elas não são idênticas e nem possuem uma direção única. A nossa escolha em não minudenciá-las gira em torno da nossa percepção que, não obstante haja um esforço individualizado, elas acabam por recair nos mesmos problemas apontados nas outras teorias. A ideia de determinabilidade do tipo e da consequência jurídica na teoria da imposição de Klaus Tipke, em nosso sentir, aborda a linguagem como suficiente em si mesma, capaz de ser manuseada sintaxe e semanticamente de modo a ofertar a determinação conceitual da realidade. Por sua vez, tanto o tipo estrutural de Karl Larenz como o tipo-analógico de Arthur Kaufmann sustentam, na nossa ótica, que a abertura existente no tipo e a mutabilidade significativa se dão no campo dos elementos sintáxicos e semânticos. Kaufmann, aliás, por mais que tenha bebido em Wittgenstein e assevere que o homem não possui uma racionalidade pura, entendemos que ele não deu o salto necessário. Ele apresenta que a significação pode ser alterada em cada ramo do direito (uma abordagem sobre o jogo de linguagem), mas, ao mesmo tempo, petrifica o significado nesses ramos. Ao que parece, ele acredita em uma significação reconhecível e definível antes do seu uso, com base apenas na identificação do jogo de linguagem em que a proposição está inserida. Assim, mesmo com a sofisticação das suas teorias, entendemos que esses autores não ultrapassam os limites que aqui já foram criticados. Repisamos que não se trata de desconsideração das investigações desses autores ou conferir desimportância aos seus escritos. Em absoluto! Ao revés, recomendamos ao leitor a visitação dessas primorosas obras. Dessa maneira, se houver uma justificação para a nossa escolha, poderíamos indicar que a não a-presentação mais densa dessas teorias se faz pelo receio de se parecer repetitivo. De todo modo, ofertamos nossas escusas ao leitor.

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29

do mundo real, exigindo a convergência de todos os elementos para a sua

caracterização. Não há fluidez ou espaços interpretativos que ajustem o tipo a

uma realidade análoga, devendo haver correspondência direta do modelo

tipificado com a concretude fática.

Os juízos valorativos, que justificariam a distinção com o conceito,

devem estar presentes no próprio enunciado típico, de modo que o cientista já

possua previamente o conjunto de valores a serem aplicados no caso concreto.

A narrativa típica do crime de “perigo de contágio venéreo” já possui na sua

descrição a reprovabilidade social da conduta e os valores normativos que

devem ser observados pelo intérprete.

O fechamento tipológico se justificaria pela necessidade de alcançar

maiores níveis de segurança jurídica, dando ao jurisdicionado a previsibilidade

nas relações jurídicas e, principalmente, nas decisões tomadas pelo judiciário.

Com elementos identificativos claros e inequívocos, não corro o risco de

interpretações esdrúxulas, distantes daquilo que foi normatizado pelo

legislador.21

Mas, o que diferenciaria o tipo cerrado do conceito abstrato?

OLIVEIRA (1980) sustenta que o tipo estaria mais próximo da realidade fática,

expondo elementos que exigiriam um acesso ao mundo real para verificar a

sua concretização. Em um caso homicídio com elementos caracterizadores da

crueldade, da cobiça, dos motivos vis fica patente as idas ao mundo real para

fazer o comparativo comportamental com os elementos descritos no tipo.

Ainda no trilhar da festejada autora, o tipo cerrado teria os

elementos básicos necessários para sua configuração alcançados em dois

momentos complementares. O primeiro comporia o tipo “partindo-se da

estrutura social, da tensão fático-axiológica existente que se busca captar na

sua proximidade da vida quanto possível; portanto, pensamento abstrativo e

tipológico rege a sua formação.”22. Em seguida, o legislador expressa a

realidade captada por meio de uma estrutura linguística determinada,

trabalhando com exaustão todos os elementos necessários para a

configuração do tipo. Haveria um agir investigativo prévio que se pautaria na

21 - Ah, como é doce a ilusão! 22 OLIVEIRA, 1980, pg. 26/27.

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30

contemplação da realidade e um agir descritivo total que, valendo-se de termos

com conteúdo determinado, apresenta-se a realidade com todas as suas

minúcias necessárias, inclusive com os valores norteadores.

Conforme menção anterior, DERZI (1988) esposa que a tipicidade

cerrada seria a intelecção imprópria da ideia de tipo, que pressupõe

necessariamente a abertura significativa ao real. Alega, ainda, que tal equívoco

decorre da leitura apressada feita da obra do alemão Karl Larenz, que na

primeira edição de seu livro teria abordado a distinção entre tipo aberto e tipo

fechado, mas que teria reparado esse equívoco na terceira edição de sua obra.

Além disso, o uso impróprio da terminologia tipo para expressar uma linguagem

fechada teria sido o reflexo da tradução e utilização dos penalistas do termo

Tatbestand como referencial de tipo.

TORRES (2006) expõe que o equívoco interpretativo acerca do

pensamento renovado de Larenz também afetou a obra de Alberto Xavier, que

teria se alicerçado nas considerações de Castanheira Neves23 que, por sua

vez, teria se pautado na 1ª edição da obra do autor alemão. O efeito cascata

mostrou-se inevitável, sendo que diversos outros autores, como José Fernando

Cedeño de Barros e, em alguma medida, a professora Yonne Dolacio de

Oliveira, foram influenciados pela obra do professor português, avalizando o

erro metodológico cometido.

Nada obstante o indigitado lapso cometido pelo catedrático da

Universidade de Lisboa, a influência do seu trabalho e a constante utilização do

termo tipicidade cerrada no direito brasileiro a partir de tais fundamentos,

imperioso se torna o nosso imiscuir em sua obra.

Fazendo uma remissão aos estudos de Albert Hensel na Alemanha,

XAVIER (1978) expõe que o direito germânico possui, em matéria tributária, a

aplicação do Tatbestandsmässigkeit, que seria um atributo da vida real de se

adequar ao modelo abstrato descrito pela norma e que seria fundamental para

o alcance da eficácia normativa. Esse postulado estaria positivado no § 3º da

Lei de Ajuste Fiscal da Alemanha (Steueranpassungsgesetz), que previa que

uma dívida somente passaria a ser devida se houvesse inteira adequação com

23 Como realmente se observa da nota de rodapé nº 16, do capítulo VI, página 92, na qual aduz-se que “adota-se assim o conceito de tipicidade fechada de Larens. V. Castanheira Neves, Questão de fato – Questão de direito, p. 257, nota 7.”

Page 32: DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

31

o fato descrito precisamente no dispositivo legal24. Ocorreu ali a inauguração

da ideia de adequação típica, que exige uma conformação perfeita da hipótese

normativa com a ocorrência fática.

Ainda, o autor irá trabalhar com quatro princípios que figurariam

como corolário básico para a ocorrência da tipicidade: (I) Princípio da Seleção;

(II) Princípio do “numerus clausus”; (III) Princípio do Exclusivismo; e (IV)

Princípio da Determinação.

O Princípio da Seleção se divide em dois pontos, estando na

primeira ponta à perspectiva de seleção e tipologia, segundo a qual o legislador

primariamente deveria selecionar no mundo real as hipóteses fáticas que

cumpririam com o objetivo social e jurídico para, então, transformá-las em

descrições normativas. O exemplo dado pelo autor seria a identificação das

situações reveladoras de manifestação econômica e, fazendo um correlato com

o objetivo jurídico imposto pelo princípio da capacidade contributiva, far-se-ia

uma descrição típica com elementos semanticamente fechados. Isso impediria

que a tributação fosse aplicada com base em conceitos puramente abstratos,

que não revelassem uma correspondência com o concreto.

O Princípio da Seleção, outrossim, também deveria observar o

método casuístico, consignando na hipótese normativa a cláusula geral, mas

delimitando as circunstâncias e os grupos atingidos. Não poderia deixar uma

abertura interpretativa, ao mesmo tempo em que teria que abarcar a totalidade

de circunstâncias pretendidas.

No que concerne ao Princípio do “Numerus Clausus”, o lusitano

afirma que seria necessária a observância de uma tipologia taxativa, de modo

que as hipóteses normativas não poderiam sofrer inclusões interpretativas,

sendo vedada a utilização de rol exemplificativo. Ademais, o método analógico

seria amplamente vedado, limitando a capacidade valorativa do intérprete, que

não poderia aplicar aquela norma se não houvesse uma subsunção perfeita do

caso concreto com a descrição legal.

O Princípio do Exclusivismo fixa a concepção de que o tipo deve

conter a totalidade de elementos necessários para a sua configuração,

24 Die Steuerschuld entsteht, sobald der Tatbestand verwirklicht ist, an den das Gesetz die Steur knüpft. “A dívida fiscal nasce assim que o tipo é concretizado, momento em que a hipótese legal se adéqua ao fato gerador” (Tradução nossa)

Page 33: DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

32

encerrando a sua significação em si mesmo. Em outras palavras, o conteúdo

descritivo não poderia ser complementado por métodos interpretativos,

devendo haver uma adstrição absoluta ao que está descrito na norma. Nem

mais nem menos. A tipologia, igualmente, deveria pressupor a implicação

intensiva, que consubstancia na ideia de que a totalidade de valoração fática

possível está contida na descrição típica, inexistindo a possibilidade de

descoberta de um elemento ou valor acessório.

Por derradeiro, o Princípio da Determinação pressupõe que todas

as possibilidades de aplicação já estão previamente explicitadas na descrição

típica. A lei deveria conter os critérios de justificação e os de aplicação da

norma, devendo o intérprete figurar apenas como concretizador do método

subsuntivo.

Busca-se a retirada de qualquer subjetivismo no momento de

aplicação da norma, cabendo ao magistrado a tarefa de deduzir a conclusão a

partir das premissas claramente apresentadas. Aqui, Xavier faz uma

congregação da tipicidade com o Princípio da Determinação do Direito Alemão

(Grundsatz der Bestimmtheit), que vai ocasionar inclusive a crítica de Ricardo

Lobo Torres sobre a correção da teoria do professor ibérico25.

O grau de determinação semântica do tipo não admitiria as

denominadas normas elásticas ou incompletas, que seriam àquelas suscetíveis

a complementação interpretativa. A tipicidade expurgaria da descrição

normativa todo e qualquer conceito indeterminado, que seriam aqueles

carentes de um conteúdo lógico e conceitualmente unívoco. A determinação

conceitual ainda deveria estar presente nos parâmetros quantitativos do tipo,

ou seja, definindo clara e inequivocamente o valor a ser pago em caso de

tributo ou a penalidade exata a ser cumprida em caso de sanção. Não há

margem sequer na fixação do resultado jurídico, devendo o intérprete se ater

ao padrão fixado pelo órgão legislativo.

25 “Esse princípio da determinação se expressou, na tradição ibérica, com especial ressonância no Brasil, como princípio da tipicidade, pela confusão feita entre tipo e o fato gerador abstrato (Tatbestand), que o agasalha. Misabel Derzi, no Brasil, e José de Oliveira Ascensão, em Portugal, denunciaram o equívoco. O melhor exemplo dessa orientação no direito tributário se encontra na obra de Alberto Xavier.” (TORRES, 2006, pg. 12)

Page 34: DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

33

Nesse panorama geral explicitado por Alberto Xavier, por mais que

tenha sido direcionado ao Direito Tributário, conseguimos visualizar a adoção

nos outros ramos do direito que trabalham com a ideia de uma descrição da

totalidade dos elementos da realidade e, ao mesmo tempo, exige a imediata e

absoluta correlação do fato com o expresso na norma para a produção dos

efeitos. A essa perspectiva pouco nos importa se é chamada de Tatbestand,

conceito abstrato, Grundsatz der Bestimmtheit (Princípio da Descrição) ou

Tatbestandestimmtheit (determinação do fato gerador), até mesmo porque,

como já aludimos, a distinção ontológica feita com base na abstratividade será

um dos pontos a ser questionado nesse trabalho.

Ainda, vale mencionar que a evolução distintiva do tipo no Direito

Penal, de Tatbestand para a separação do tipo e a antijuridicidade promovida

por Beling, a Teoria Finalista de Welzel ou a Teoria da Imputação Objetiva de

Claus Roxin, apesar de terem a sua relevância revolucionária naquele ramo do

direito, acreditamos que recai sobre todas elas a caracterização de uma

pretensa linguagem lógica perfeita capaz de delimitar a conduta a ser punida,

de forma que ao intérprete é dado, no máximo, um norte lógico e objetivo que

deve ser observado no momento da aplicação da lei. Dessa maneira, a nossa

escolha em não descortinar o tipo como matéria penal se justifica pelo fato da

estrutura básica científica dessas teorias não se diferenciar das demais.

Com efeito, a nossa percepção é que as doutrinas sobre o

pensamento tipológico se alicerçam nos postulados científicos da modernidade,

tomando como parâmetro os seguintes pressupostos: (I) a existência de uma

linguagem lógica perfeita, capaz de encerrar em si mesma toda possibilidade

de significação. Mesmo na abertura do tipo, essa fissura é promovida pela

escolha certa dos signos linguísticos que possuam uma polissemia encontrada

na sua estrutura semântica e sintáxica. (II) A capacidade de descrição perfeita

da linguagem, que funciona como espelhamento de uma realidade

objetivamente percebida. Acredita-se que, pela razão, seria possível enxergar a

totalidade do acontecimento ou ao menos pensá-lo abstratamente. (III) A

existência de uma percepção objetiva da realidade, destituída de toda e

qualquer valoração e que tenha sido alcançada por meio da reflexão científico-

racional. (IV) A crença na cisão da capacidade cognitiva do homem com o

Page 35: DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

34

mundo que o circunda e a sua mundanidade, vislumbrando a viabilidade de um

pensar abstrato separado do fenômeno. (V) A suposição de que a interpretação

é neutra e objetiva, de modo que o intérprete seria capaz de sair da realidade

fática para observar o mundo como ele é.

Destarte, com essas asserções propedêuticas, aprumamos a nossa

caminhada em busca da desconstrução desses postulados científicos, tentando

evidenciar que a doutrina do tipo desenvolvida até a contemporaneidade fez a

sua fundação em terreno argiloso, incapaz de sustentar as ideias desse

instituto tão relevante para o direito. No próximo capítulo caminharemos na

busca pela linguagem lógica perfeita pressuposta pela teoria tipológica e pelo

conceito abstrato, que se fundam na ideia de plausibilidade de alcance de

expressões linguísticas com sentido unívoco ou, no caso do tipo “propriamente

dito”, com sentidos definíveis a priori no campo da sintaxe e da semântica. O

nosso trilhar segue em direção a Filosofia Analítica, mais precisamente as

teorias desenvolvidas por Frege, Russell e o primeiro Wittgenstein.

Page 36: DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

35

CAPÍTULO II – EM BUSCA DE UMA LINGUAGEM LÓGICA

PERFEITA

A nossa caminhada em busca de uma com-pre-ensão acerca da

tipicidade e dos conceitos abstratos, com a pretensão de revelar um

testemunho crítico para além da ontologia, segue em direção ao imiscuir nos

postulados científico-filosóficos estruturantes desses institutos. A ideia de

definibilidade significativa a partir dos elementos sintáxicos e semânticos dos

seus termos, pressuposta por ambos institutos, merece um estudo que vá além

da reprodução do dito. É preciso refletir sobre a sua base, sobre as

concepções sob as quais foram edificados. Acreditar em uma norma

interpretável de forma unívoca ou em um texto normativo possuidor de um

sentido exprimível a priori, exige uma navegação pelas teorias que buscaram

apresentar uma linguagem lógica perfeita.

Com efeito, os próximos passos dessa dissertação terão por destino

o movimento lógico-filosófico iniciado no final do século XIX e que fora

nominado como o Giro Linguístico promovido pelos adeptos da Filosofia

Analítica. Essa corrente de pensamento girou o enfoque das preocupações

filosóficas para a linguagem, dando a esta a atribuição de aferir o valor de

verdade de uma proposição. Considerando Gottlob Frege como precursor da

Filosofia da Linguagem, partimos em direção ao seu pensamento.

1.1 – Frege e a sua Conceitografia

Friedrich Ludwig Gottlob Frege (1848-1925), não obstante tenha sido

um desconhecido por quase toda a sua vida26, é ponto de partida basilar de

todo e qualquer estudo em que se pretenda imergir nas tormentosas águas da

26 V. FREGE, 2009, pg. 10.

Page 37: DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

36

filosofia analítica27. Conhecido como o pai da lógica moderna, Frege vale-se da

análise dos enunciados linguísticos enquanto método de obtenção da verdade,

buscando, a partir da lógica aritmética, construir uma linguagem que traduza a

hipercerteza exigida do conteúdo científico da modernidade.28

O seu inferencialismo busca romper com a lógica aristotélica29

firmada a partir da estrutura sujeito/predicado, construindo enunciados que

estejam despidos de toda ambiguidade e axiomas capazes de desvirtuar a sua

univocidade de sentido.

Na visão do autor, a linguagem cotidiana (natural) 30, edificada por

um conteúdo proposicional em que há um termo sujeito (referência da

proposição) e um termo predicado (conteúdo referido do termo sujeito) não tem

o condão de garantir uma correção formal do curso do pensamento. As

informações obtidas por meio da linguagem natural nos conduzem a uma

amplitude sem fim de significações produzidas subjetivamente em nosso

intelecto.

A linguagem natural, por não ser governada por leis lógicas, permite

a captação de uma multiplicidade de sentidos, mostrando-se incapaz de, em

uma cadeia de inferência sequencial, sustentar um conteúdo objetivo. As leis

lógicas seriam externas a estrutura linguística, oferecendo pouca proteção ao

cientista.

Para Frege, o silogismo aristotélico, cuja análise é realizada tão

somente a partir de elementos sintáxicos, não seria capaz de solucionar de

27 V. DUMMETT, 1994, pg 06. 28 Antes de apresentar a teoria fregeana, vale alertar o leitor que o lógico alemão, ao longo dos seus escritos, realiza mudanças sensíveis no seu modo de ver a linguagem. A noção de univocidade de sentido para cada referente, ponto presente na sua obra “Begriffsschritt, eine der arithmetischen nachgebildete Formelsprache des reinen”, é alterada visivelmente no artigo “Sentido e Referente”, quando Frege admite a possibilidade de denotação de um objeto por meio de uma multiplicidade de sentidos.Além disso, ele descarta a compreensão de conteúdo conceitual para trabalhar a concepção de objeto referido. Assim, para visualizar essas e outras reformas na teoria analítica de Frege, é preciso que a leitura esteja atenta às fases do seu pensamento. 29 Vale destacar que Frege não descarta a importância lógica da divisão dos enunciados em sujeito/predicado, apenas compreende que esta divisão não é suficiente para a obtenção da certeza científica. 30 Aquela expressa no cotidiano das pessoas.

Page 38: DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

37

forma intrassistêmica31 algumas proposições lógicas, desvelando-se

imprescindível a adoção de um método semântico hábil a verificar logicamente

a veracidade das sentenças.

Nesse sentido, será desenvolvida a “conceitografia” (Begriffsschrift)

como método lógico de análise das proposições linguísticas no intuito de se

alcançar o conteúdo conceitual (Begrifflichen Inhalt), analisando as expressões

não em uma divisão sujeito/predicado, mas pelo uso dos símbolos “função” e

“argumento da função.”

Com o objetivo de justificar a construção de uma linguagem

formular, edificada a partir de fórmulas matemáticas32, Frege, em artigo

publicado em 1882 (Sobre a Justificação Científica de uma Conceitografia)33,

compara a linguagem natural a mão humana que, não obstante possua uma

relevância na realização das mais diversas tarefas, não é suficiente para a

prática de todos os atos, sendo importante a criação de mãos artificiais ou

instrumentos que dessem a rigidez, a precisão e a inflexibilidade necessárias

para a prática de determinadas ações. O mesmo ocorreria com a linguagem.

A língua natural, assim, detém substancial importância nos atos

comunicacionais do cotidiano, sendo, inclusive, como assevera Mark Textor

(2011, pg. 53), gramaticalmente mais rica que a linguagem formular, detendo a

capacidade de expressar inúmeras distinções inalcançáveis nesta. A

multiplicidade de sentidos, a ambiguidade sempre presente e a existência de

um conteúdo implícito, contudo, faz com que os postulados necessários para

uma conclusão válida sejam omitidos, exigindo-se a adoção da Begriffsschrift.

No artigo retromencionado, Frege ((1882), 2009), enfatizando esse

aspecto, expõe que:

31 A terminologia aqui adotada em nada se confunde com o pensamento de Niklas Luhman. Quando dizemos “intrassistêmico”, a pretensão é de demonstrar a ausência de solução dentro da própria linguagem. 32 “Para a implementação de tal programa, cumpre descartar como imprestáveis, seja a linguagem corrente, seja a lógica tradicional aristotélica, seja ainda a lógica algébrica de Boole (ou Schöreder). Seu ponto de partida consiste em construir um sistema formal cujas noções básicas sejam fixadas com exatidão e clareza, e a seguir sejam estabelecidos enunciados primitivos e regras de inferências que tornam possível desenvolver sem qualquer lacuna uma demonstração nesse sistema.” (destaque nosso) (FREGE, 2009, p. 12). 33 (FREGE (1882), 2009, p. 62)

Page 39: DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

38

“Mesmo um autor tão consciencioso e rigoroso como Euclides faz com frequência uso, de modo tácito, de pressupostos que não são enumerados nem nos axiomas [e postulados] nem nas premissas dos teoremas particulares. Assim, na demonstração do teorema 19 do livro primeiro dos Elementos (“Em todo triângulo o lado maior opõe-se ao ângulo maior”), ele se utilizou de forma tácita das seguintes proposições: 1) se um segmento não é maior que outro, então ele é igual ou menor que este outro. 2) Se um ângulo é igual a outro, então não é maior que este outro. 3) Se um ângulo é menor que outro, então ele não é maior que este outro.” (FREGE (1882), 2009, p. 61)

Nesse espectro, o encobrimento de pressupostos não trabalhados

na proposição linguística poderia conduzir o leitor a conclusões extensivas ou

diversas da expressa, deturpando o conteúdo conceitual pretendido. A

descrição científica, portanto, estaria prejudicada por não conseguir denotar

com precisão o objeto estudado.

Outra razão que justificaria a conceitografia seria o fato de um único

símbolo gráfico cumprir papéis diferentes nas proposições linguísticas,

podendo servir como nome próprio ou como conceito que cai sob um nome

próprio. Frege exemplifica com o símbolo “cavalo”, que hora pode dar a

significação quanto a espécie, como na expressão “cavalo é um animal

herbívoro”; quanto um conceito que cai sob um individual, como em “Isto é um

cavalo” (Frege (1882), 2009, p. 61). Essas variações semânticas impediriam a

isomorfia do signo com significado, incorrendo em abertura para múltiplas

significações dadas a uma mesma palavra. Pretendeu evidenciar, assim, que

os elementos sintáxicos não conseguem representar com exatidão aquilo que

foi pensado.

Diante disso, o filósofo alemão desloca o seu olhar da lógica de

predicação a um sujeito34 e passa a desenvolver um método capaz de

encontrar o conteúdo conceitual transmitido em uma proposição, desvendando

as informações relevantes para o processo inferencial (Sclussfolge) com vista a

encontrar o pensamento puro35.

34 “[...] deparei-me com o obstáculo da insuficiência da linguagem (corrente): além de todas as dificuldades inerentes ao manuseio das expressões, à medida que as relações se tornavam mais complexas, tanto menos apto me encontrava para atingir a exatidão exigida.” (FREGE (1879), 2009, P. 45). 35 “[...] devo de início investigar até que ponto se procede em aritmética, apenas por inferências [formais], pelo uso tão somente das leis do pensamento que transcendem a todas as particularidades. A via que de sucessão em uma sequência (Anordnung in eine Reihe) à noção da consequência lógica (logishe Folge), para daí poder estabelecer o conceito de número. Para

Page 40: DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

39

O conteúdo conceitual trata-se do aspecto puramente informacional

da sentença; aquilo que pode ser transmitido, desconsiderando-se, portanto, o

aspecto que detém a retórica e demais ornamentações linguísticas. Para

melhor elucidação, tomemos como as seguintes sentenças trabalhadas por

Frege:

A – Os Gregos derrotaram os Persas em Plataea

B – Os Persas foram derrotados pelos Gregos em Plataea.

Na analítica aristotélica, visualizaríamos que as sentenças acima

formam proposições distintas, estruturáveis da seguinte maneira: A – Sujeito

(Os Gregos) – Predicado (derrotaram os Persas em Plataea); B – Sujeito (Os

Persas) – Predicado (derrotados pelos Gregos em Plataea). A mudança

provocada pela alteração da voz ativa para a voz passiva seria a condução do

ouvinte a uma determinada ênfase pretendida pelo locutor. Como exposto

acima, o conteúdo apreendido dependeria da forma de recepção do ouvinte, ou

seja, de um elemento fora da composição linguística, com a atribuição de

captar o conteúdo expresso, passando, portanto, por prováveis distorções

subjetivas.36

Ao revés, Frege, ao analisar as expressões supra, aduz que o

conteúdo preservado em ambas as sentenças constitui o conteúdo

conceitual, que traz toda carga informacional relevante e que possui um

mesmo valor de verdade. A mudança da voz ativa para a passiva não altera o

conteúdo semântico expresso e, portanto, após um processo inferencial, não

poderia haver conclusões diversas. Em ambas as expressões há uma única

denotação e, consequentemente, um mesmo conteúdo conceitual.

O alcance desse conteúdo conceitual, conforme apresentado, não

seria factível por meio da linguagem natural, o que leva Frege a desenvolver

uma linguagem formular, que consubstanciaria em um método científico de

análise proposicional em que se busca averiguar o conteúdo conceitual da

evitar que nessa tentativa se intrometesse inadvertidamente algo de intuitivo, cabia tudo reduzir a uma cadeia inferencial (Schlusskette) carente de qualquer lacuna.” (FREGE (1879), 2009, pg. 44). 36 Frege antecipa aqui a percepção dos elementos ilocucionários da linguagem, que só viriam a ser desenvolvidos cinquenta anos depois pela Escola de Oxford nos trabalhos de Searle e Austin.

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40

sentença inferível, dividindo a estrutura do enunciado em função e argumento

de função.

BEANEY (2011, pg. 02) assevera que a chave para conhecer todo o

trabalho de Frege é compreender a análise realizada a partir da ideia de

função-argumento. Para tanto, ele expõe inicialmente a estrutura do

pensamento fregeano apontando a seguinte fórmula:

Y= ax+b

Podemos visualizar, assim, que “Y” é a função de “X” (termos

variáveis) e “a” e “b” são as constantes. Caso consideremos que as constantes

sejam expressas pelos números 2 e 3, respectivamente, teremos y = 2(x) +3.

Nesta expressão x é o argumento de y, sendo que o valor presente em y varia

de acordo com x. Portanto, se x fosse igual a 4, poderíamos dizer que 11 é o

valor da função 2x+3 para o argumento 4.37.

Da mesma forma se sustentaria a análise proposicional, sendo que a

sentença possui um determinado valor como resultado de uma função para

cada argumento. Vejamos a expressão “Álvaro é cruzeirense”. A analítica de

Frege traduziria essa expressão em “F(x) = x é cruzeirense”, sendo que, a

proposição “Álvaro é cruzeirense” é percebida como o valor da função “x é

cruzeirense” para o argumento “Álvaro”.38 Ao termo “x é cruzeirense” pode ser

atribuída à condição de elemento proposicional invariável, que permite a

denotação do elemento “x”, sendo nomeado por Frege como função. Por sua

vez, o termo “Álvaro”, que poderia ser substituído por outro termo sem que

houvesse prejuízo com o expresso em “x é cruzeirense”, vai ser denominado

de argumento da função39.

37 “We call x and y the variables here: as x varies, so too does y, in the systematic way reflected in the function. By taking different numerical values for x, we get different numerical values for y, enabling us to draw the relevant line on a graph.<< nominamos x e y como variáveis: considerando a variação de x, o mesmo acontece com y, no caminho sistemático refletido na função. Ao tomarmos diferentes valores numéricos para x, obtemos diferentes valores numéricos para y, o que nos permite traçar a linha relevante no gráfico (tradução nossa)” (BEANEY, 2011, pg. 02) 38 BEANEY, 2011, pg. 03. 39“ If we imagine that an expression can thus be altered, it decomposes into a stable component representing the totality of relations, and the sign, regarded as replaceable by others, that denotes the object standing in these relations. The former component I call a function, the latter its argument. The distinction nothing to do with the conceptual content <<Se imaginarmos que uma expressão pode ser estruturada pela decomposição em um elemento estável que representa a totalidade das relações, e pelo signo, considerado como passível de substituição por outros (signos), que denota o objeto utilizado nessas relações. O primeiro elemento eu

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41

Em um primeiro contato o leitor poderia identificar a total ausência

de distinção prática desta com a lógica aristotélica, sendo que o método S/P

apenas não conteria o elemento copular (é) na sua análise, mas, ao final, o

resultado seria idêntico. Foi justamente nesta perspectiva que BEANEY (2011,

pg. 03) expõe que a relevância do método de análise função-argumento

começa a ser melhor identificada em proposições relacionais onde há mais de

um argumento para cada função. Tomemos o exemplo trabalhado por Frege

em Begriffsschrift (1967,pg. 22): “o hidrogênio é mais brilhante que o dióxido de

carbono”. Nesta expressão a função poderia ser identificada como “x é mais

brilhante que y” e os argumentos como hidrogênio e dióxido de carbono,

formando uma função Rxy.

O professor da universidade de York ainda assevera que o modelo

lógico de função-argumento apresenta uma melhor funcionalidade quando

estamos diante de proposições com elemento quantificacional, como, por

exemplo, a expressão “Todos os lógicos são humanos”. Para ele, enquanto na

lógica tradicional a análise dar-se-ia como “todos os lógicos” (sujeito) e

“humanos” (predicado), ligados por um elemento copular “são”, na lógica

fregeana essa expressão deveria ser visualizada como “para todo x, se x for

um lógico, então x é humano”, expresso pela fórmula ‘(∀x) (Lx → Hx)’. Essa

análise funcional permitira esgotar o conteúdo relevante expresso na

proposição.

Nas sentenças nas quais há mais de um quantificador, ainda

segundo BEANEY, ficaria mais latente a necessidade de uma linguagem

formular, como no exemplo “Todo número natural tem um sucessor”. Esta

poderia ser concebida, de acordo com a conceitografia, como Nx significando

“x é um número natural” e Syx como “y é um sucessor de x”, que

desencadearia na fórmula (S) (∀x) (Nx → (∃y) (Ny & Syx)). A leitura dessa

fórmula seria “para todo x, se x é um número natural, então há algum número

natural que é o seu sucessor”.

chamarei de função e este último de “argumento”. Essa distinção não interfere no conteúdo conceitual. >> (tradução nossa).” (Frege, 1967, pg. 22)

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42

Ao revés da crítica exposta por CHATEUBRIAND (2001, pg 261), o

projeto de Frege, em busca de uma linguagem lógica perfeita40, vai além de um

aprofundamento da sistemática S/P, permitindo explorar a noção de que a

forma gramatical não coincide com a forma lógica, sendo que esta deve ser o

guia para a formação da sequência inferencial.

Isso fica bem claro quando Frege (1967, pg. 22/23) chama a atenção

para as sentenças “O número 20 pode ser representado como a soma de

quatro quadrados” e “Todo inteiro positivo pode ser representado como a soma

de quatro quadrados”. Ele assevera que se tomarmos a conceitografia da

mesma forma que a linguagem natural, ao apreciarmos essas sentenças cairia

no erro conceitual de que “todo número inteiro positivo” e “O número 20” são

argumentos diferentes para a mesma função “pode ser representável como

soma de quatro quadrados”.

Segundo o autor, “o número 20” e “todo número inteiro” não

pertencem ao mesmo grupo categorial (Gleichen Ranges) e o que é

asseverado do número 20 não pode ser dito no mesmo sentido sobre “todo

número inteiro”. Diferentemente do número 20, “todo número inteiro” não

possui uma ideia independente por si só, dependendo do contexto da frase

para ganhar uma significação.41 Em obras posteriores Frege melhor explica

40 V. PARTEE, 2011, pg. 16. 41 “For us the fact that there are various ways in which the same conceptual content can be regarded as a function of this or that argument has no importance so long as function and argument are completely determinate. But, if the argument becomes indeterminate, as in the judgement "you can take as argument of "being representable as the sum of four squares" an arbitrary positive integer, and the proposition will always be true", the distinction between function and argument takes on a substantive significance. On the other hand, it may also be that the argument is determinate and the function indeterminate. In both cases, through the opposition between the determinate and the indeterminate or that between the more and the less determinate, the whole decomposed into function and argument to its content and not merely according to the point of view adopted.[…] In the mind of speaker the subject ordinarily the main argument: the next in importance often appears as object. Through the choice between grammatical forms, such as active-passive, or between words, such as heavier - lighter and give - receive, ordinary language is free to allow this or that component of the sentence to appear as the main argument at will, a freedom that, however, is restricted by the scarcity of words. << "Para nós, o fato de que existem várias maneiras em que o mesmo conteúdo conceitual pode ser considerado como uma função deste ou daquele argumento não tem importância, desde que a função e argumento sejam completamente determinados. Mas, se o argumento torna-se indeterminado, como na sentença “você pode tomar como argumento de "ser representável pela soma de quatro quadrados" um número inteiro positivo, e a proposição será sempre verdadeira", a distinção entre função e argumento se torna de substancial importância. Por outro lado, é também possível que o argumento seja determinado e a função indeterminada. Em ambos os casos, por meio da oposição entre o determinado e indeterminado ou entre o mais e o menos determinado, decompondo em função e argumento

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43

essa perspectiva, aduzindo que, enquanto “o número 20” traduz a ideia de um

objeto (Gegenstand), “todo número inteiro” caracterizaria um conceito

(Begriff).42

Em “Sobre o Conceito e Objeto” de 1892 (Über Begriff und

Gegestand), Frege explora essa distinção, asseverando que o conceito é uma

referência de um predicado gramatical e, por outro lado, o objeto nunca pode

exercer uma função predicativa. Na visão dele, não é possível dizer que

“Alexandre Magno” é um conceito que cai sob determinado objeto. Alexandre

Magno, enquanto nome próprio possui uma saturação conceitual, da mesma

forma que o planeta Vênus e os demais objetos.

“Não se pode, de uma coisa, dizer que é Alexandre Magno, ou que é o número quatro, ou que é o planeta Vênus como se diz que uma coisa é verde ou que é um mamífero. Caso assim se pense, não ficam devidamente distinguidos os diversos modos de se usar a palavra “é”. Nos dois últimos exemplos, esta palavra serve de cópula, como um mero sinal verbal (formwort) da predicação. Quando assim utilizada, ela (a palavra é) pode, às vezes, ser substituída pelo sufixo pessoal do verbo. Compare-se, por exemplo, “esta folha é verde” com “esta folha verdeja”. Aqui estamos dizendo [em ambos os exemplos] que algo cai sob um conceito e que o predicado gramatical se refere a esse conceito. Nos três primeiros exemplos, pelo contrário, o “é” tem a função do sinal aritmético de igualdade; ele exprime uma identidade.” (FREGE (1892 a), 2009, pg 113).

Para Michael Beaney, a distinção entre conceito e objeto é uma das

mais relevantes decorrentes do processo analítico função-argumento. Ele

assevera que a ideia de conceito se confunde com a ideia de função e que esta

possui uma abertura indicativa de onde o argumento vai se encaixar. Essa

abertura é identificada pelo uso do símbolo variável “x”, mostrando onde o

para o seu conteúdo, e não se apresenta apenas como ponto de vista adotado. [...] Na mente do falante o conteúdo ordinário se mostra como o argumento principal: a maior relevância muitas vezes aparece como objeto. Através da escolha entre as formas gramaticais, como ativo-passivo, ou entre palavras, como o mais pesado - mais leve e dar - receber, a linguagem natural é livre para permitir que este ou aquele componente da sentença possa aparecer como o principal argumento voluntário, uma liberdade que, no entanto, é limitada pela escassez de palavras. >>(tradução nossa) ” (FREGE, 1967, pg. 23). 42 “Na sua opinião, a representação objetiva seria a mesma para diferentes pessoas, enquanto a subjetiva não. A representação objetiva poderia ser divida em conceito e objeto, enquanto a subjetiva não (ou seja, a representação objetiva envolveria conceitos como ser assassino, que geraria uma verdade se isso for dito do objeto [no caso, a própria pessoa] Brutus, enquanto a representação subjetiva não admitiria essa distinção). Fundamentalmente, a representação objetiva interessa ao lógico, enquanto a subjetiva seria de interesse tão somente para a psicologia.” (MIRANDA, 2011, pg. 14)

Page 45: DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

44

argumento deve ser inserido para formar uma expressão linguisticamente

completa. Todo conceito, portanto, é insaturado, ou seja, carente de

determinação a ser atingida quando da aposição do argumento.

Por outro lado, o objeto traz uma ideia de saturação conceitual,

formando por si só um conteúdo determinado. Álvaro é Álvaro, assim como

maçã é maçã. Ambas as expressões trazem consigo, na visão de Frege, uma

finitude de conteúdo, sendo possível identificar precisamente de qual objeto

estamos a dissertar. O objeto usualmente encontra-se correlacionado como

referência do sujeito gramatical, sendo que, quando necessária a utilização de

um conceito como tal, é preciso, antes de tudo, a conversão deste conceito em

um objeto43, por meio da individualização de um conceito.

A ideia de objeto enquanto expressão saturada, com definição

completa e determinada, será referida por um nome próprio (Eigenname) na

acepção fregeana.44 Cada nome próprio possui, segundo nosso autor, uma

referência (Bedeutung) e um Sentido (Sinn). Tomemos as seguintes

expressões: “a estrela da manhã” e “a estrela vespertina”. Ambas possuem a

mesma referência, mas um sentido diferente. Na visão do nosso autor, ambas

as expressões possuem como referência o objeto Vênus, mas o sentido

apreendido depende da familiarização do interlocutor com o que foi designado.

43 Vale destacar a seguinte passagem de “Sobre o Conceito e o Objeto” “Tomando “sujeito” e “predicado” em seu sentido linguístico, podemos em resumo dizer: um conceito é a referência de um predicado, enquanto que um objeto é o que nunca pode ser a referência total de um predicado, embora possa ser a referência de um sujeito. Deve-se aqui observar as palavras “todo”, “cada”, “nenhum”, “algum” são antepostas a termos conceituais (Begriffswörtern). Em sentenças universais e particulares, afirmativas e negativas, expressamos relações entre conceitos e indicamos, por essas palavras, a peculiaridade dessa relação.” (FREGE (1892a), 2009, pg. 118) 44 Em nota de rodapé na tradução de “Über Sinn und Bedeutung”, Paulo Alcoforado assevera que “Um nome próprio (Eigenname), na acepção fregeana, é um sinal e, como tal, tem condições restritas de significado. Um nome próprio é uma expressão saturada que deve designar ou referir a um objeto, e de um modo determinado. Dada a diferença radical entre objeto e conceito, um nome próprio não pode designar um conceito e assim não pode exercer a função de predicado. As expressões que se seguem são exemplos de nomes próprios, na acepção fregeana: 1) “Aristóteles”; 2) “Ulisses”; 3) “ numerais – como 2”; 4) demonstrativos singulares, como “este”; 5) denominações de objetos únicos, como “Vênus”; 6) descrições definidas – v.g, “o discípulo de Platão e o mestre de Alexandre Magno”; [...] Com esses exemplos pode-se observar que nem tudo o que Frege denomina nome próprio coincide com o uso ordinário desta expressão. Esses exemplos nos permite induzir uma classificação para os nomes próprios: i) nomes simples e ii) nomes complexos ou nomes descritivos ou descrições. A concepção fregeana de que todo nome próprio ordinário deve ter não apenas um referente, mas também um sentido, segue-se diretamente da sua doutrina acerca do sentido e da referência das expressões. Todo nome próprio tem um sentido, que constitui a maneira pela qual o objeto é denominado.” (FREGE (1892b), 2009, pg 131)

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45

Em outras palavras, podemos dizer que o sentido de um nome

próprio exprime os seus elementos intensionais, que permitem a denotação do

objeto ou, como expõe KIRKHAM (2003, pg 23), trazem o seu conteúdo

informacional. Uma mesma referência pode conter inúmeros sentidos ou, como

denomina Frege, diversos modos de apresentação.

Quando dizemos, por exemplo, “O autor de “O Discurso Científico na

Modernidade”, “O Capitão Nascimento da Puc”45 ou simplesmente “Álvaro”

estamos utilizando diversos sentidos para uma mesma referência, que é a

pessoa do professor Álvaro Ricardo de Souza Cruz. Contudo, o valor cognitivo,

isto é, aquilo que é informado por cada uma das expressões acima é diferente.

Enquanto no primeiro buscamos identificar o referente “Álvaro Ricardo” como

aquele indivíduo que é o autor da obra “O Discurso Científico na Modernidade”,

na segunda expressão empregamos o sentido de que o referente Álvaro é

aquele indivíduo que faz terrorismo com seus orientandos46. Já na terceira

expressão, “Álvaro” queremos dizer que Álvaro é Álvaro47.

Para compreender o sentido expresso por cada uma das expressões

acima é preciso que haja uma familiaridade com os acontecimentos

identificativos. Somente quem foi aluno do professor Álvaro Ricardo terá

condições de relacionar esse sentido com o seu referente. O sentido, portanto,

é o elemento que conecta o signo a referência, dando-lhe um valor cognitivo.

Ele permite que conheçamos o objeto denotado48.

45 Expressão utilizada por FERRAZ (2013) e que já teve as suas variáveis, como “Vingador” (da caverna do Dragão). 46 Qual o significado de terrorismo? O que denota tal expressão? Um professor que exige do aluno o seu máximo, impondo-lhe leituras e a máxima dedicação faz terror ou pratica o dom da docência com amor? Mas, se é amor, como pode ocasionar tanta angústia? Se é terror, como pode ocasionar tanta admiração pelos seus discípulos? Seria a Síndrome de Estocolmo? Na verdade, as pretensões de fechamento linguístico nada mais são do que a totalização da realidade, buscando referenciar em um símbolo as multiplicidades fáticas possíveis. Dizer que o amor é bom, essencialmente bom, é esquecer que junto a ele vem o ciúme, a possessividade, a saudade, etc. O que falar do amor paterno, esse do orientador, que é “terrorista”, mas que tortura no durante para que seja mais seguro o caminhar? 47 Neste caso, a expressão é tautológica e não traz nenhuma extensão de conteúdo, tratando-se de um juízo sintético na concepção kantiana. Justamente em razão disso que Frege diz que o foco da sua tese são os juízos analíticos, aqueles que permitem uma ampliação do conhecimento. Falaremos sobre isso um pouco mais adiante. 48 “A conexão regular entre um sinal, seu sentido e sua referência é de tal modo que ao sinal corresponde um sentido determinado e ao sentido, por sua vez, corresponde uma referência determinada.” (FREGE (1892b, 2009, pg. 132)

Page 47: DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

46

Com efeito, a ideia de sentido no pensamento fregeano é de suma

importância por permitir a extensão cognitiva sobre um objeto, pois, quando

uma referência é apresentada por um sentido diverso do usual ocorre uma

apreensão de um conhecimento novo, dando ao sentido um valor epistêmico.49

A compreensão completa de uma referência, portanto, dependeria

necessariamente do conhecimento prévio de todos os sentidos possíveis desta,

o que, na visão do próprio Frege, seria impossível50. Ele visualiza que o modo

de apresentação pode ser múltiplo, o que daria dinamicidade a linguagem.

Sempre poderíamos apreender algo diferente acerca de uma mesma

referência.

Frege ainda assevera que uma sentença bem construída

gramaticalmente sempre conterá um sentido, o que não significa que todo

sentido possui necessariamente uma referência. Para tanto ele toma as

expressões “o corpo celeste mais distante da Terra” e “a série que converge

menos rapidamente”, expondo que estas podem ser caracterizadas como

nomes próprios aparentes, sendo possível extrair o conteúdo dessas

expressões sem que haja uma referência determinada ou determinável.

Com isso, questionamos a crítica apontada por FERRAZ (2013)51

que o sistema fregeano não teria a capacidade de explicar os signos que não

reproduzem objetos no mundo físico, mas tão somente estados de coisas.

Claramente Frege visualiza a existência de expressões sem referência e que

“apreender um sentido nunca assegura a existência de sua referência” (FREGE

(1892b), 2009, 133). O fato de ele entender que uma linguagem lógica perfeita

deve conter uma referência não implica desconsiderar a existência de

expressões com sentido e sem referência lógica e que estas tenham a sua

importância para a Ciência.

49 V. BAR-ELLI, 2001 pg. 92-93. 50 V. FREGE (1892b), 2009, pg. 132. 51 “Outro ponto aventado coloca em questão signos que não reproduzem objetos do mundo físico, mas tão somente um estado de coisas, o que tem como consequência gerar diversos sentidos ou significados sem, no entanto, obter-se o referente que representaria a certeza e a segurança almejados. Ademais, prossegue o autor: ‘o problema da univocidade dos signos não se restringe à linguagem. Assim, quando se pensa no algarismo (3), ele teria um sentido único? Cremos que não, aduzindo que ele poderia ser entendido como “número primo”, “resultado da subtração4-1” ou como “resto da divisão de 8 por 5”(sic).” (FERRAZ, 2013, pg.69)

Page 48: DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

47

Ao que nos parece, a certeza e a segurança almejadas no projeto de

Frege não estão correlacionadas com a existência de uma referência para cada

objeto, mas na possibilidade de se estabelecer um critério de identidade, que

não se dá na relação signativa, mas na relação entre objetos52.

Além do mais, não obstante reconheça-se o primoroso trabalho do

professor mineiro, cumpre-nos o papel de rechaçar a crítica por ele apontada

que o nosso autor sustenta a ideia que um mesmo símbolo sempre deteria uma

univocidade de sentido. Ao revés, ele acredita que uma mesma referência pode

ser apresentada por uma multiplicidade de sentidos. Para pegarmos o exemplo

trabalhado por Ferraz, o número 3 pode tanto ser apresentado como o

resultado da soma de 2+1 quanto pela subtração de 4-1. Esses seriam dois

modos diferentes de apresentação do número 3. Teríamos uma identidade

extensional quando mencionamos que 2+1=4-1. Trata-se de expressões

distintas, com sentidos distintos, mas que denotam o mesmo objeto, ou seja, o

número 3.53

Retomando a ideia de Frege acerca do sentido e da referência do

nome próprio, a referência exprime os elementos extensionais da linguagem54,

capazes de indicar o objeto ou conjunto de objetos referidos na expressão55.

Pensemos, assim, os termos “O rei do futebol” e “Pelé”. No Brasil, ambos co-

extensionam o mesmo objeto (a pessoa Edson Arantes do Nascimento), mas

com apresentação de sentidos diferentes. Denota-se, assim, o mesmo objeto

por expressões distintas.

52 Frege em Sobre Sentido e Referência altera seu posicionamento firmado em Begriffsschift, quando entendia que a identidade deveria se dar entre os signos e não na relação entre objetos. 53 Conforme apontamos acima e em justiça a profícua pesquisa desenvolvida por Ferraz, essa percepção de Frege está presente em seu artigo “Sobre o Sentido e a Referência” e que, ao que nos parece, houve uma profunda mudança em relação a sua primeira obra (“Conceitografia”), na qual o autor tentou estabelecer uma isomorfia perfeita entre significado/significante. 54 CRUZ (2011, pg. 80/81) vale-se de uma interessante metáfora para caracterizar os elementos intensionais e extensionais da linguagem. Segundo ele, “[...] caso se pense em uma lanterna, e todo seu aparato técnico que a transforma em um instrumento de iluminação, e, de outro lado, “a área”, o conjunto de seres ou do ambiente iluminado que sofre a ação da lanterna, que se deixa ser iluminada pela potencialidade da mesma, ter-se-ia respectivamente a intenção conceitual cumprindo o papel da lanterna e a área ou conjunto daquilo que foi iluminado no mundo, ou seja, a extensão do conceito.” 55 V. KIRKHAM, 2003, pg. 23.

Page 49: DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

48

Nesse diapasão, recordando a mudança de posicionamento de

Frege (de que o critério de igualdade deve se dar em relação aos objetos e não

em relação aos sinais), destacamos que o autor caminhou para uma lógica

extensional, aduzindo que o valor de verdade de uma sentença depende do

referente e não do seu sentido.56 Com isso, não interessa mais a forma de

apresentação do objeto, desde que este continue a ser representado de forma

correta.

Em nosso ver, inexiste no pensamento fregeano uma pretensão

isomórfica entre significante/signo/significado, sendo que Frege concebe a

possibilidade de um mesmo significante ser apresentado por signos diferentes,

que trazem significações diversas. O que alteraria seria o conteúdo

informacional, mantendo-se, contudo, a referência. Isso seria relevante na

medida em que ambas as expressões, embora apresentassem sentidos

diversos, detivessem um mesmo valor de verdade. Não haveria uma unívoca

forma de apresentação de um objeto, que poderia ser denotado por inúmeras

maneiras. O que seria imprescindível é que todas estas formas de

determinação do objeto contivessem um mesmo valor cognitivo, que poderia

ser verdadeiro ou falso.

Neste ponto específico não acatamos a crítica apontada por CRUZ

(2011, pg. 82/83) que o filósofo alemão pretendeu buscar um método lógico em

que haveria uma única forma de designação de um objeto57. Frege, ao revés,

sustenta que Vênus, enquanto nome próprio, pode ser apresentado tanto como

Estrela da Manhã como por Estrela da Tarde, sendo que as duas expressões

iluminam uma mesma referência, não obstante a informação trazida seja

56 “In the same way, the truth-value of a sentence is dependent only upon the references of its constituents, not their senses: whatever we say of an object must be true or false of that object independently of the particular way in which we choose determinate which object it is that we are speaking about.” << Da mesma forma, o valor de verdade de uma sentença é dependente apenas das referências dos seus constituintes, não dos seus sentidos: Qualquer coisa que dissermos sobre um objeto deve ser verdadeiro ou falso, independentemente da forma particular pela qual nós escolhemos determinar o objeto o qual estamos dissertando. (tradução nossa) >> (DUMMETT 1981, pg. 159) 57 Nada como ter proximidade com o debatedor. Peço licença ao leitor para que Cruz dê a sua resposta neste trabalho. Com a palavra, o mestre: “Talvez eu tenha me expressado mal no “Resposta Correta”. Frege e o Círculo de Viena buscaram empreender um esforço que avulta as dificuldades da exatidão da lógica natural. Como Frege se debruça sobre a formulação de uma linguagem artificial com esse objetivo, eu o englobei na filosofia analítica dentro desse esforço”

Page 50: DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

49

distinta. A sua preocupação é que seja mantida a relação identitária quanto à

referência e não entre os sinais, preservando-se o valor de verdade da

sentença.

Vale destacar, ainda, que o nosso autor pugna pela adoção de

expressões distintas para denotar um mesmo objeto, pois permitiria um

acúmulo de conhecimento. Dizer que “Álvaro é Álvaro” não conduziria a

expansão significativa do referente, tratando-se de um juízo analítico na

concepção kantiana, puramente tautológica. Por outro lado, dizer que o “autor

do livro O Discurso Científico na Modernidade é o Capitão Nascimento da

PUC-Minas” traria possivelmente uma informação que o interlocutor não

dominava, permitindo-lhe apreender um novo conteúdo.

Importa salientar que, mesmo com a substituição dos termos nas

expressões acima, para Frege haveria a manutenção do valor cognitivo, uma

vez que não alteraria o objeto denotado, mesmo com modos de apresentação

diferentes.

Poderíamos dizer que há um idêntico valor de verdade nas duas

expressões, podendo caracterizá-las como “Álvaro = autor do livro O Discurso

Científico na Modernidade = o Capitão Nascimento da PUC-Minas = Álvaro” ou,

para aplicação de uma lógica aritmética, Ref. (a) = Ref. (b) = Ref. (c). Qualquer

expressão que tenha por escopo denotar “Álvaro” poderia ser substituída pelos

retromencionados termos58 sem que houvesse prejuízo quanto ao valor de

verdade ali expresso, tratando-se de termos correferenciais.

Sob esse prisma que funciona o Princípio da Substituição

trabalhado por Frege, que defende a possibilidade de se substituir expressões

que denotem o mesmo referente sem alterar o valor cognitivo da expressão. A

preocupação do lógico alemão parece caminhar para a busca de um critério de

identidade entre os referentes, formando uma lógica extensional.

Por mais que a intensionalidade e os signos sejam importantes na

sua sistemática, a correção linguística não está na relação de existência de

uma única forma de se apresentar um objeto ou na substituição pelo

correferencial mais determinativo, mas na manutenção do valor de verdade

58 Insta repisar que Frege compreendia que um mesmo referente pode conter uma quantidade incomensurável de modos de apresentação, o que tornaria o seu fechamento conceitual uma pretensão hercúlea.

Page 51: DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

50

mesmo quando se substituem os termos. A substituição terminológica não

intenta percorrer um caminho até se chegar à expressão tautológica do a=a.

Não se busca uma única forma de expressar um objeto, mas aferir se todas as

formas identificadas efetivamente têm o condão de determiná-lo em alguma

medida de modo unívoco.

Obviamente que isso não implica a asserção que as sentenças

preservariam o seu conteúdo informacional. Se há uma alteração no modo de

determinação do objeto, a informação transmitida sobre aquele também se

modifica. A mudança não é simbólica, de caráter meramente formal, ocorrendo

à apresentação de um novo conteúdo. Não é mudança de palavras, mas de

sentidos59 que iluminam uma mesma referência. A igualdade referencial não

pressupõe igualdade de pensamento, o que se permite dizer que quando se

substitui termos linguísticos correferenciais ocorre uma modificação no sentido

expresso na frase, mas não no seu valor de verdade.

Nesse espectro, Frege sustenta que o valor de verdade é a

referência da sentença completa, ou seja, aquilo que está expresso em uma

frase completa sempre trará um valor de verdade, que será o verdadeiro ou o

falso. Diante de qualquer sentença constatativa o que se deve refletir é o

pensamento objetivo sobre aquilo que está a dizer.

Quando dizemos, por exemplo, que “Belo Horizonte é a capital de

Minas Gerais”, na visão de Frege, se considerar a ideia de referência e sentido

sob a perspectiva do nome próprio, diríamos que “capital de Minas Gerais” é

um modo de apresentação (sentido) que liga o signo “Belo Horizonte” ao

referente da cidade de Belo Horizonte. Isso parece que ficou bem esclarecido

nos tópicos acima. Mas, na percepção do autor, a filosofia ou a lógica não

trabalham com nomes próprios isolados, sendo imprescindível a análise da

sentença quando esta alcança a sua completude linguística. Sob esse

espectro, ele vai dizer que o que é espelhado por uma sentença completa é o

seu valor cognitivo, ou seja, a percepção de que é verdadeira ou falsa.

59 “This would not be possible if the difference between the two propositions resided only in the names 'evening star' and 'evening morning. <<Isso não seria possível se a diferença entre duas proposições residissem apenas nos nomes “estrela da tarde” e estrela da manhã”.>>(tradução nossa) (FREGE, 1980, pg 127)

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51

Essa percepção está além da nossa subjetividade, não sendo um

juízo de valor apresentado diante de uma determinada expressão. A

determinação desse valor cognitivo se dá pelo pensamento, que seria o sentido

da sentença completa. Em outras palavras, o pensamento racional seria o

condutor do trem que nos levaria inexoravelmente a terra do verdadeiro ou

falso.

Quando Frege fala em pensamento, ele tenta deixar claro que não

se trata de um produto construído subjetivamente por cada interlocutor. Não é

a minha visão sobre determinada sentença, mas aquilo que se pode extrair

objetivamente dos dados ali apresentados. Ele faz, assim, uma distinção entre

ideia e pensamento, sendo que aquela seria a percepção que psicologicamente

tenho sobre determinado fato e, por outro lado, pensamento seria tudo aquilo

que é alcançado objetivamente por nosso intelecto.

“The sense of an assertoric sentence I call a thought. Examples of thoughts are law of nature, mathematical laws, historical facts: all these find expression in assertoric sentences. I can now be more precise and say: The predicate “true” applies to thoughts. […] Thoughts are fundamentally different from ideas (psychological sense). The idea of a red rose is something different from the thought that this rose is red60. (FREGE, 1979, pg. 131)”

O pensamento é atemporal e não-espacial, sendo que a sua

validade não está condicionada a uma localidade ou a um espaço físico. Por

essas razões que Frege parece apontar que a sua teoria não seria aplicada em

todo e qualquer âmbito, haja vista que a sentença, para poder ser analisada

objetivamente, dependeria de um compartilhamento informacional atestável

pelo intelecto, pelo simples ato de pensar.

A linguagem formular, captadora da veracidade apodítica, somente

seria indestrutível nas questões eminentemente científicas. Não é constatável o

valor de verdade de uma sentença que é empregada em uma peça teatral ou

60 O sentido de uma sentença assertiva eu chamo de “pensamento”. São exemplos de pensamento: as leis da natureza, leis da matemática, fatos históricos. Todas essas atestações expressam sentenças assertivas. Eu agora consigo ser mais preciso e dizer: O predicado verdadeiro se aplica aos pensamentos (...) Os pensamentos são fundamentalmente diferentes das ideias (sentido psicológico). A ideia de uma rosa vermelha é diferente do pensamento dessa rosa vermelha.” (tradução nossa)

Page 53: DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

52

em uma poesia, que não teria, na percepção do autor, nenhuma pretensão de

correção.

O pensamento objetivo, enquanto sentido de uma expressão

completa, seria destinado às sentenças que traduzissem leis da natureza, leis

da matemática, fatos históricos e todos os demais ramos que pudessem conter

uma informação absorvível por cada um de modo que a sua compreensão não

permeasse pelo psiquismo individual.

Observemos a sentença “Em 07 de setembro de 1822 foi declarada

a independência do Brasil por Dom Pedro I”. Segundo Frege, todos aqueles

que conhecem a história do Brasil a tomarão como verdadeira, sendo

construída no intelecto a mensagem de que o Príncipe Dom Pedro I, filho do

Rei de Portugal Dom João VI, teria declarado independência da colônia Brasil

em relação à metrópole e que isto teria ocorrido no dia 07 do nono mês do ano

1822 após o nascimento de Jesus Cristo. Na sua visão, o sentido expresso

conduz necessariamente a referência de “ser verdade que”. Inexiste um campo

em que se permita construir outra conclusão que não o valor cognitivo ali

expresso.

Essa verdade linguística insofismável, além de imanente a áreas

específicas do conhecimento, imprescindia da existência de uma sentença

completa, que fosse por si só capaz de apresentar todas as informações que

determinam com precisão o acontecimento a ser representado.

Cremos estar exatamente aqui a base do pensamento tipológico e

do conceito abstrato. Ambos os institutos buscam o estabelecimento de

estruturas proposicionais cujo conteúdo informacional é apreendível pelo

intelecto do intérprete. A abertura ou fechamento da hipótese normativa seria

controlável pela própria linguagem e não impediria a sua objetividade, uma vez

que o pensamento expresso na sentença seria alcançado pelo raciocínio lógico

que conduziria a uma resposta correta. O pensamento como

“compartilhamento objetivo de informações” viabilizaria a análise comparativa

de adequação fato/norma. A abertura do tipo, assim, significaria apenas a

existência de outros sentidos, mas que corresponderia a um referencial exato e

passível de captação objetiva pelo aplicador da norma. A noção de

pensamento como percepção lógica e objetiva da realidade traria o fechamento

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53

ao tipo exigido nas pretensões positivistas que embasam o nosso direito. No

mesmo sentido, em expressões normativas sustentadas pelo conceito abstrato,

a exatidão extensional dos termos ensejaria a univocidade interpretativa.

Todo o exposto até aqui pode ser sintetizado pelo esquema

formulado pelo próprio Frege em carta escrita a Husserl em maio de 1891, na

qual ele tenta melhor apresentar o seu pensamento:

PROPOSITION PROPER NAME CONCEPT WORD

↓ ↓ ↓

Sense of the sense of the sense of the

proposition proper name concept word

(thought)

↓ ↓ ↓

Bedeutung of the Bedeutung of the Bedeutung of

proposition proper name the concept word → object falling under

(truth value) (object) (concept) concept6162

Como esposado por Eduardo Antônio Pitt em dissertação de

mestrado apresentada no Programa de Pós Graduação em Filosofia da UFMG

(2013, pg. 52), o esquema aponta para uma coerente relação semântica entre

os elementos linguísticos (sentença, nomes próprios e termos conceituais) e os

elementos não linguísticos (as referências ou extensões dos sinais),

intermediada pelos sentidos (intensionalidade trazida pelos sinais).

Em síntese, uma lógica extensional que pretende definir a linguagem

a partir da identidade referencial, concebendo a partir dos nomes próprios e

das sentenças completas a saturação linguística, que apresenta a possibilidade

61 Sentença Nome Próprio Termo Conceitual ↓ ↓ ↓ Sentido Sentido do da proposição nome próprio sentido do termo conceitual (pensamento) ↓ ↓ ↓ Referência da Referência do Referência do sentença nome próprio termo conceitual → objeto que incide sobre o conceito (Valor de verdade) (objeto) (conceito) 62 Letter to Husserl . In Beaney, 1997, pg. 149.

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54

de interpretação determinada e unívoca, ao passo que o termo conceitual

carrega a insaturação, dependendo a sua determinação do objeto que cai sob

o conceito.

A busca de Frege por uma lógica que exprimisse com exatidão o

pensamento científico através de uma linguagem que espelhasse a realidade e

que pudesse exprimir tudo aquilo que o “eu penso” pensou, apesar da sua

importância ao romper com a lógica formal aristotélica, encontrou obstáculos

instransponíveis que apontam que a verdade enquanto coerência semântica

encontra-se em terreno argiloso e de impossível edificação.

O primeiro desses obstáculos, sem dúvida, é o paradoxo

apresentado por Bertrand Russell em carta enviada a Frege em junho de 1902,

na qual o filósofo britânico apontou pela impossibilidade lógica da definição de

número a partir da teoria dos conjuntos63, como pretendia o lógico alemão.

Este paradoxo diz respeito ao conjunto de todos os conjuntos que não são elementos de si mesmos, logo E não é elemento de E. Mas se E não é elemento de E, então não é elemento do conjunto de todos os conjuntos que não são elementos de si mesmos, donde ele tem que ser elemento de si mesmo, isto é, E é um elemento de E. E assim se arma a contradição: E é elemento de si próprio se e somente se E não for elemento de si próprio. (FREGE, 2009, pg. 34)64

Além da inconsistência lógica do pensamento de Frege demonstrada

por Russell, a sua insuficiência fica ainda mais escancarada a partir da

reviravolta linguístico-pragmática e da noção de gramática profunda trabalhada

63 Conforme assevera Paulo Alcoforado (2009, pg. 34) “[...] em outras palavras, uma teoria que encerra o pressuposto de que dada uma propriedade sempre existe um conjunto que tem como membro exatamente aqueles objetos que apresentam essa propriedade. Tal pressuposto é, com frequência, chamado de “esquema de compreensão irrestrita de Cantor.” Todas as axiomáticas atuais da teoria dos conjuntos evitam o paradoxo de Russell ao restringir os princípios que enunciam a existência de conjuntos. E a forma mais simples de restringir o esquema de compreensão irrestrita é substituí-lo pelo axioma conhecido pela designação de “esquema de separação”, que pode assim ser enunciado: dado um conjunto X e uma propriedade, existe um conjunto cujos membros são exatamente aqueles membros de X que apresentam essa propriedade”. 64 Ainda segundo Paulo Alcoforado (2009, pg. 34), o paradoxo de Russell teria emergido a partir da Lei Fundamental V criada por Frege, sendo que “esta lei pode ser assim representada ´(...) expressão que enuncia que dois percursos de valores são iguais se e somente se as funções correspondentes assumirem os mesmos valores para os mesmos argumentos. (...) vale dizer, a extensão do conceito f é igual a extensão do conceito g se e somente se os mesmos objetos que caírem sob f também caírem sob g, e reciprocamente. Este princípio imprime à lógica fregeana um perfil conjuntista e extensional, fazendo que todo conceito tenha uma extensão constante e imutável.”

Page 56: DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

55

pelo segundo Wittgenstein, girando a ideia do know that para o know how.

Essas questões, entretanto, serão trabalhadas mais a frente neste trabalho.

A imersão de Frege na filosofia da consciência, com pensamento

enraizado no idealismo transcendental, também não lhe permitiu visualizar que

os conceitos não são construídos solipsisticamente em nosso intelecto, como

se houvesse um conteúdo objetivamente compartilhado entre os indivíduos.

CRUZ (2011, pg.88), em testemunho ao pensamento de Hilary Putnam, ao

contrapor-se a teoria fregeana, esposa que “a formação do conceito não se dá

pelo indivíduo isolado (como uma mônada husserliana), mas pelo consórcio de

conhecimentos, pela intersubjetividade, que Putnam designa como divisão de

trabalho”.

As contradições testemunhadas no pensamento fregeano, contudo,

não o condiciona a insignificância filosófica. Além da já mencionada

importância em razão da mudança na forma como se compreendia a

linguagem nos estudos filosóficos, a sua teoria semeou o campo para o

advento dos trabalhos de Russell e norteou os estudos do positivismo lógico do

Círculo de Viena e de Wittgenstein em sua primeira fase.

1.2 Bertrand Russell e a sua Teoria da Denotação

Bertrand Russell (1872-1970) é considerado por muitos como a

figura intelectual de maior destaque da escola britânica de todo o século XX.

Imerso em debates que permearam diversas áreas do conhecimento, as suas

ideias sobre a ontologia, a lógica, a linguagem e a matemática simbolizaram

significativos avanços na forma de perceber o conhecimento científico. Para os

fins deste trabalho, nos ateremos ao testemunho da sua Teoria das

Descrições, que teve como ponto originário as observações formuladas no

artigo “On denoting” de 1905. Porém, como o constructo desse artigo se deu a

partir de uma base teórica anterior, cumpre-nos apresentar alguns conceitos

epistemológicos trabalhados por ele e que serão de fundamental importância

para a compreensão da sua teoria.

Page 57: DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

56

Em sua epistemologia, Russell atesta que o conhecimento

primeiramente se dá através do contato direto que temos com um objeto,

permitindo-nos identificar as características que nos são apresentadas. O

conhecimento por acquaintance65 seria uma espécie de absorção cognitiva que

se dá diante desse contato direto.

A forma mais intensa de ocorrência deste contato seria pela

sensibilidade, viabilizando o nosso conhecimento por meio do acesso sensível

as características do objeto. Quando estamos diante de uma porta podemos

perceber pelos nossos sentidos todos os seus elementos constitutivos, como a

sua aspereza, a sua cor, a sua dimensão, etc. Essas informações obtidas

sensorialmente foram nomeadas por Russell como sense-data e serão

utilizadas na construção de expressões denotativas. Quando nos deparamos

com expressões como “essa porta”, iremos reconhecer o objeto valendo-se das

informações recolhidas por meio do sense-data, o que nos faz aduzir que não

ocorrerá conhecimento do objeto, mas reconhecimento, tendo em vista o

caráter não imediato dessa experiência66.

COSTA (2007, pg. 19) assevera que esse conhecimento é visto por

Russell como infalível, incapaz de ocasionar alguma dúvida, alguma

ambiguidade. A experiência dos sense-data será sempre verdadeira, mesmo

que nos deparemos com objetos não reais, oriundos de alguma crise

alucinógena. Ainda assim a experiência sensitiva será real.

A acquaintance pode também se dar quando acessamos

informações que foram interiorizadas na nossa memória. Ao visitarmos as

nossas lembranças acerca de um objeto podemos remontar as percepções

sensíveis que tivemos e inferir a denotação desse objeto. Esse acesso

reminiscente também seria factível diante de conceitos gerais, como o de

brancura67.

65 Esse termo é utilizado por diversos tradutores de Russell como “familiaridade”. Entretanto, não podemos deixar de anotar a posição de CINTRA (2007, pg. 28), que expõe que “[...] Traduzir acquaintance por familiaridade, como alguns fizeram, não é satisfatório, dado que a palavra familiaridade tem em português, conotações de intimidade, afeição e habitualidade ausentes do uso que Russell faz da palavra acquaintance. Em português, não diríamos que estamos familiarizados com uma pessoa que nos é apresentada pela primeira vez em um coquetel; contudo, seguindo o uso de Russell, estaríamos acquainted com essa pessoa.” 66 V. COSTA, 2007, pg. 18/19. 67 COSTA, 2007, pg.18/19.

Page 58: DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

57

Em contraposição ao acquaintance, Russell apresenta o

conhecimento indireto (knowledge about), alcançado por meio de expressões

denotativas. A sua formação é inteiramente dependente da apreensão sensitiva

realizada no acquaintance, tratando-se de descrição daquilo que não temos um

contato direto.68

The distinction between acquaintance and knowledge about is the distinction between the things we have presentations of, and the things we only reach by means of denoting phrases. It often happens that we know that a certain phrase denotes unambiguously, although we have no acquaintance with what it denotes; this occurs in the above case of the centre of the mass. In perception we have acquaintance with objects of a more abstract logical character; but we do not necessarily have acquaintance with the objects denoted by phrases composed of words with whose meaning we are acquainted.69 (RUSSELL, 2009, pg. 480)

Na visão do filósofo britânico, o pensamento é dependente das

percepções sensitivas, uma vez que o conhecimento indireto imprescinde do

nosso acquainted com os objetos e, assim, por meio de expressões

denotativas, podemos inferir o conhecimento. A base empirista em seu

pensamento é inegável e firmada sob a perspectiva do atomismo lógico70. A

linguagem figura como espelhamento do mundo e deterá como referente um

objeto constante da nossa realidade.

68 “Seguindo os passos da tradição empirista, Russell veio a sugerir que as entidades são construções lógicas: meras ficções simbólicas, completamente redutíveis a conjuntos de entidades que conhecemos por familiaridade, como é o caso do sense-data. Com efeito, o que poderia ser um objeto físico “essa mesa” além de um conjunto, de um sistema de sense-data atuais e possíveis? Devido ao seu caráter não imediato do conhecimento por descrição, ele é além do mais passível de erro, sendo tipicamente verdadeiro ou falso.” (COSTA, 2007, pg. 19) 69 A diferença entre familiaridade e conhecimento indireto é a distinção entre os objetos que nós fomos apresentados e as coisas que nós apenas alcançamos o significado a partir de frases denotativas. O que acontece é que muitas das vezes conhecemos certas frases que possuem denotação ambígua, embora não tenhamos nenhuma familiaridade com o que se denota; isso ocorre no caso acima sobre “o centro da massa”. Na percepção nós temos conhecimento direto com objetos que tenham um caráter lógico mais abstrato, mas não necessariamente há familiaridade com os objetos denotados pelas frases compostas por palavras cujo significado estamos familiarizados. (tradução nossa) 70 “Segundo o atomismo lógico, todas as sentenças de nossa linguagem , quando devidamente analisadas, se revelariam como constituídas de signos atômicos referentes aos elementos simples da realidade. Tais elementos seriam, por sua vez, aquilo que conhecemos por familiaridade, disso dependendo todo o conhecimento. O procedimento de análise nos conduziria àquelas configurações de elementos básicos que constituem o mundo: os fatos atômicos, Russell sugeriu que uma sentença como “isso é branco” poderia designar um fato atômico.” (COSTA, 2007, pg. 20).

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Possivelmente apoiado nas leituras que fez de Frege, Russell

apresenta uma distinção entre a forma gramatical de uma sentença e a sua

forma lógica, sendo esta alcançada a partir do método analítico. Como anota

HAACK (2004, pg. 98), ele apresenta uma categoria especial de nomes

logicamente próprios, que teria o condão de denotar um objeto, provocando

uma coincidência entre significado e referência.

Os nomes próprios ordinários, por não serem denotados a partir de

um conhecimento por acquaintance, não se relacionariam como logicamente

próprios, sendo admitidos como tais apenas aqueles que detenham uma

descrição definida71. A ideia de descrição definida será detalhada por Russell

em sua teoria das descrições, o que nos induz a corrigir o timão e velejar por

sua obra escrita em 1905.

Ao iniciar a sua obra “On denoting”, Russell apresenta as

expressões denotativas como àquelas que se dão em virtude da sua forma,

podendo ser identificadas nos seguintes termos: um homem, algum homem,

qualquer homem, o atual Rei da França, o centro de massa do sistema solar no

primeiro instante do século XX, a revolução da Terra em torno do Sol72. O autor

não oferta um método específico de identificação das expressões denotativas,

deixando a entender apenas que seriam aquelas que, devida a sua forma, seria

possível alcançar a descrição de um objeto. Ou seja, diante da incapacidade de

indicar qualquer padrão para a semântica de modo geral ele adota um modelo

indutivo.

Partindo dessa premissa, ele assevera que é possível distinguir três

tipos de expressões denotativas: a) aquelas que, mesmo sendo denotativas,

não denotam nenhum objeto, como, por exemplo, “o atual Rei da França” (não

há um referente para a expressão, uma vez que inexiste um rei na França na

71 “Descrições definidas são expressões que, apesar de se assemelharem com nomes próprios, designando indivíduos, não são realmente nomes próprios. Através do método de análise, sentenças que contém descrições definidas podem ser reduzidas a sentenças em que essas descrições não mais ocorrem.” (MARCONDES, 2004, pg. 27) 72 “By a “denoting phrase” I mean a phrase such as one of the following: a man, some man, any man, every man, all men, the present King of England, the present King of France, the centre of mass of Solar System at the first instant of the twentieth century, the revolution of the earth . Thus a phrase is denoting solely in virtue of its form.” <<Por “frase denotativa” quero dizer uma das seguintes frases: um homem, algum homem, qualquer homem, todo homem, todos os homens, o atual Rei da Inglaterra, o atual Rei da França, o centro da massa do Sistema Solar no primeiro instante do século vinte, a revolução da Terra. Portanto, uma frase é denotativa somente em virtude da sua forma.>> (tradução nossa) (RUSSELL, 2009, PG.479 )

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atualidade); b) aquelas expressões que podem denotar um objeto definido,

como, por exemplo, “a atual rainha da Inglaterra” (a expressão, para o autor,

apenas denotaria a Rainha Elizabeth II); c) por fim, a frase poderia denotar um

objeto indefinido ou com conceituação ambígua, como seria o caso da

expressão “um homem”, na qual não seria possível identificar qual objeto

“homem” seria o referente.

Trabalhando com a concepção de que nenhuma expressão

denotativa possui significado em si mesma, mas somente a partir de uma

sentença completa73, Russell buscará constituir uma metalinguagem apta a

identificar a significação das entidades linguísticas. Diante disso, ele toma a

noção de variável como fundamental na sua teoria, fazendo o uso da função

“C(x)”, em que a variável “x” é constituinte e essencialmente indeterminada.

Tomando ainda como expressões denotativas mais primitivas os termos “tudo”,

“nada” e “algo”74 e considerando as duas noções “C(x) é sempre verdadeiro” e

“C(x) é às vezes verdadeiro”, ele estabelece as seguintes funções

proposicionais:

A – C(tudo) significa “C(x) é sempre verdadeiro”;

B – C(nada) significa “C(x) é falso” é sempre verdadeiro;

C – C(algo) significa “ser falso que “C(x) é falso” é sempre verdadeiro”

A função proposicional A é tomada como uma noção última e

indefinível, por meio da qual se viabiliza a definição das outras duas. Cumpre,

assim, a atestação de um conhecimento universal, com uma relação direta com

a ideia de verdade. Com estas considerações, apesar de não haver uma

divisão sistemática nos trabalhos de Russell75, podemos dividir a teoria das

descrições em indefinidas, definidas e as sem referência.

Russell assevera que há algumas expressões que, apesar de não

deterem uma referência, elas possuem um sentido e, por essa razão, não

73 “[…] that denoting phrases never have any meaning in themselves,but that every proposition in whose verbal expression they occur has a meaning.” <<as frases denotativas não possuem qualquer significação em si mesmas, mas em toda proposição cuja expressão verbal ocasiona sua significação>> (RUSSELL, 2009, pg. 480) 74 Everything, Nothing and Something 75 V. CINTRA, 2007, pg 64.

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60

podem ser desconsideradas. MARCONDES (2004, pg. 27) aduz que um dos

problemas encontrados por este tipo de expressão é que, aparentemente,

ocorreria a violação do princípio do terceiro excluído76. Tomemos a sentença “o

atual rei da França é careca”. Sob uma perspectiva sintáxica poderíamos dizer

que a sentença é logicamente bem estruturada. Entretanto, ao analisar a

existência da relação ali proposta pode-se verificar que ela não deveria ser

classificada nem como falsa nem como verdadeira. Isso porque não há na

atualidade um rei da França, o que impede que a asserção seja verdadeira; por

outro lado, não podemos dizer que é falso o fato do rei da França ser careca,

pois daria a entender que ele possui cabelo. Com esse espectro, considerando

que a forma gramatical não é capaz de encontrar uma solução, mostra-se

imperiosa a busca pela forma lógica que será encontrada a partir da divisão

sentencial analítica. Assim, teríamos:

S1- Existe um objeto X tal que X tem a propriedade P (ser rei da França);

S2 – Não existe um objeto Y≠X tal que Y tem a propriedade P;

S3 – X tem a propriedade Q (ser careca)77.

Dissecada a sentença, seria possível perceber que S1

consubstanciaria em uma expressão declarativa existencial, expondo que há

uma predicação que pode ser atribuída a X. O conteúdo expresso em S1, ao

confrontarmos com a realidade, seria sensorialmente falso. Considerando que

S3 pressupõe logicamente a veracidade de S1, também concluiríamos que S3

é falsa. O método analítico aplicado, portanto, conduziria ao código binário

linguístico, mesmo quando a expressão, embora gramaticalmente bem

construída, não detivesse um referente. As sentenças continuariam a ter um

valor cognitivo de verdade ou falsidade.

A sistemática russelliana supõe que a existência de um objeto é

condição de possibilidade para que ele possua uma predicação, sendo a

76 Segundo esse princípio lógico, uma sentença somente poderia ser verdadeira ou falsa, estando excluída qualquer outra possibilidade. 77 O paterno com as mãos sujas de giz nos alerta sobre o questionar do leitor: “A sentença é falsa pelo simples fato de inexistir um Rei na França”. Entretanto, vale aclarar que o conteúdo informacional da sentença diz respeito a propriedade de “ser careca”, sendo esta a relação sob exame.

Page 62: DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

61

existência um operador lógico e não uma propriedade78. Ter predicados

significa ter uma existência, mostrando-se impossível predicar algo que não

possua uma correlação com a realidade. O método analítico “supõe um

isomorfismo entre a lógica e a realidade, a sentença e o fato, através da

correspondência entre os elementos de um e de outro”79.

As expressões descritivas que possuam essa correspondência

podem, contudo, não conter um fechamento conceitual que nos indique com

precisão qual objeto está a dissertar. Podemos perceber tal assertiva quando o

filósofo britânico indica que a frase “Eu conheci um homem”80 não nos permite,

a partir puramente da linguagem natural, exprimir o seu valor cognitivo e nem a

explícita definição dos seus termos. Deveríamos, então, a partir da sua

metodologia e considerando tratar-se de afirmação verdadeira, interpretar essa

sentença como ““Eu conheci x e x é um homem” não é sempre falsa”.

O conteúdo lógico espelhado seria de que a predicação dada a C(x)

corresponde a sua inserção na classe dos homens, que significa possuir o

atributo de ser humano. CINTRA (2007, pg. 64) ressalta que a função

proposicional assim construída faria com que a descrição “um homem”

expressa na linguagem natural deixasse de ter uma significação isolada e

passasse a ganhar um sentido em toda expressão verbal em que houver a

repetição do termo “um homem”.

Consideremos agora a proposição “Todos os homens são mortais”.

Na visão de Russell, a forma lógica de visualizar a sentença seria a partir de

uma função proposicional hipotética em que o termo “homem” pode ser

substituído pelo atributo de ser “humano”. Assim, teríamos ““se x é humano,

então x é mortal” é sempre verdadeira”. O seu método analítico nos permitiria

realizar as seguintes asserções em modo de função:

78 “Uma das consequências do método de análise encontrado na teoria das descrições é que apenas objetos existentes podem ter propriedade. A existência não é, por sua vez, um predicado, uma propriedade, mas um operador lógico. Portanto, os predicados supõem a existência de um objeto do qual possam ser predicados. Só posso afirmar uma qualidade de algo que existe, e a existência não é ela própria uma qualidade, mas um pressuposto para que algo tenha qualidade”. (MARCONDES, 2004, pg. 28) 79 MARCONDES, 2004, pg. 29. 80 No original, “I met a man”.

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62

S1 – C(todos os homens) – ““Se x é humano, então C(x) é

verdadeiro” é sempre verdadeiro”.

S2 – C(nenhum homem) – ““Se x é humano, então C(x) é falso” é

sempre verdadeiro”;

S3 – C(alguns homens) – “É falso que “C(x) e x é humano” é sempre

falso”;

No caso das descrições definidas, HAACK (2002, pg. 99) traça uma

aproximação da teoria de Russell com a de Frege, sustentando que ambos

apresentam a concepção de “nome próprio” na condição de uma descrição co-

designativa de algo conhecido (ou acquainted) pelo falante. Seriam todas

aquelas sentenças que descrevem um objeto em particular81. O filósofo

britânico menciona que seria o caso das expressões em que se utiliza o artigo

definido o/a82 em sentido estrito, como no caso da frase “O pai de Carlos II foi

executado83”.

O emprego do artigo definido “o”, como atesta Russell, traz o

elemento da não ambiguidade à sentença, havendo um único objeto passível

de descrição, que seria o genitor de Carlos II. Há, nessa hipótese, uma

precisão descritiva, uma vez que o conceito “genitor de Carlos II” somente

poderia cair sob o objeto (referente) “pai de Carlos II”. A perspectiva relacional

que circunda a frase (a relação do objeto com Carlos II) é unívoca, existindo

um único referente possível84. Deveríamos, então, enxergar a sentença como a

função proposicional “x é pai de Carlos II e x foi executado”, na qual a

significação lógica possível seria de que ““Não é sempre falso de x que x gerou

Carlos II e que x foi executado, de modo que “se y gerou Carlos II, então y é

equivalente a x” é sempre verdadeiro”. Atesta-se aqui duas circunstâncias

imprescindíveis para a visualização completa do conteúdo da sentença: a) a

81 Vale repisar que Russell, a partir desse artigo (“On Denoting”), passa a compreender que a linguagem possui função descritiva e não denotativa, ao passo que Frege divide a linguagem em elementos intensionais e extensionais capazes de denotar um objeto. 82 No texto “On denoting” Russell menciona que “I remains to interpret phrases containing the. These are by far the most interesting and difficult to denote phrases”. (Russell, 2009, pg. 481). 83 “The father of Charles II was executed” 84 Impõe destacar que, como observa CINTRA (2007, 69), Russell estava ciente que o artigo definido somente traria uma descrição definida quando utilizado em sentido estrito. Expressões como, por exemplo, “a baleia é um mamífero”, ao utilizarem o artigo “a” em sentido impróprio, não pode seria considerado como uma descrição definida, sendo, sob a sua ótica, uma forma gramaticalmente equivocada de se expressar.

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63

existência do objeto é condição de possibilidade para que o valor cognitivo seja

verdadeiro; b) também é condição de possibilidade a existência de um único

referente descrito na oração85.

A teoria das descrições, na visão de Russell, simbolizaria um avanço

teórico por garantir um valor cognitivo a qualquer sentença, evitando, assim, a

existência da denominada “truth value gap” e garantindo a aplicabilidade do

princípio do terceiro excluído, segundo o qual, como já mencionamos, uma

proposição deve obrigatoriamente ter um valor de verdade que pode ser falso

ou verdadeiro, inexistindo uma terceira hipótese86.

A consistente teoria de Russell, contudo, não é imune a profícuas

objeções, como a desconsideração da pragmática enquanto dimensão

linguística. Tratando de forma ainda perfunctória, o valor de verdade da

sentença “o pai de Carlos II foi executado” depende da correlação com o fato

histórico ocorrido na Inglaterra no século XVII, ou seja, depende do jogo de

linguagem a que o indivíduo está inserido.

Do mesmo modo a objetividade pretendida como um valor

compartilhado por todos os falantes “familiarizados” com o tema não passa de

uma grande falácia. Cada indivíduo é um infinito em sua finitude, o que lhe abre

uma multiplicidade “in-finita” de formas de testemunho de um mesmo

acontecimento. A percepção que tenho diante de um fato nunca será a mesma

que a do outro espectador e, muito provavelmente, nem será a mesma para

mim quando experimentada em momento outro da minha vida. Isso tudo

impede que o valor de verdade de uma sentença se apresente sempre como

universal e a priori. Mas deixemos o aprofundamento a estas questões para

mais tarde. A nossa caminhada visita agora a primeira morada do pensamento

de Ludwig Wittgenstein (1889-1951).

85 Vale a reprodução das considerações de CINTRA (2007, pg. 66/67) sobre a questão: “De modo generalizado, dizemos que a análise oferecida pela teoria das descrições de qualquer proposição da forma C(o F) acarreta duas consequências: i) implicação da existência de no mínimo um F, e (ii) a implicação da existência de no máximo um F. A primeira consequência, a existência de no mínimo um F, é que qualquer proposição da forma C(o F)será falsa se não houver pelo menos um F[...] Logo, C(o círculo quadrado), C(o atual Rei da França) e todas as proposições do gênero serão falsas. A segunda consequência [...] é que qualquer proposição da forma C(o F) será falsa se houver mais de um F[...] Logo, C(número primo menor que 10) será falsa, porque há mais de um número primo menor que 10; e o mesmo ocorrerá em todas as proposições do gênero, ou seja, todas elas serão falsas.” 86 V. CINTRA, 2007, pgs. 66/67.

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1.3 – Wittgenstein e o Tractatus Logico Philosophicus

Em nossa opinião, o pensamento do Século XX não pode ser

estruturado sem que se passe pela estrada pavimentada por Wittgenstein.

Conhecido e reconhecido como uma das principais figuras da filosofia de todos

os tempos, o autor austríaco comumente tem o seu pensamento dividido em

duas fases, sendo a primeira edificada pela obra Tractatus logico-

philosophicus87 e a segunda por Investigações Filosóficas.88

Tractatus é uma obra impactante mesmo antes do início da leitura.

Desenvolvida, nos frontes de batalha da I Guerra Mundial e com o objetivo

simples de responder aos debates travados com Frege e, principalmente, com

Russell, trata-se de um texto cuja complexidade89 se estende inclusive no que

concerne a formatação aplicada pelo autor. A escrita foi desenvolvida sob o

formato de suras em que é possível verificar a sistematização e a importância

de cada frase pela correspondência numérica.

Russell, ao prefaciar a obra, alerta que a pretensão do filósofo é de

estabelecer as condições necessárias para que o simbolismo possa produzir

sentido diante da combinação de símbolos e que traga, ao mesmo tempo, a

univocidade do significado ou da referência, cuidando-se, desta forma, de se

87 Publicada inicialmente no último número do periódico Annalen der Naturwissenschaft, a obra teve inicialmente o título de Logisch-philosophische Abhandlung, sendo que a modificação do nome se deu a partir da publicação como obra autônoma em 1922, por sugestão de Moore. 88 Conforme anota MARQUES (2005, pg. 08/09), não obstante a divisão corriqueira dos trabalhos de Wittgenstein seja feita de forma bipartida, não se pode olvidar que há intérpretes de Wittgenstein que visualizam uma unicidade da obra, defendendo que Investigações Filosóficas corrigem alguns pontos do Tractatus, mas não há uma ruptura de pensamento. Haveria, outrossim, outros que defendem ao menos três Wittgenstein, aduzindo que as obras do período intermediário também são de relevância filosófica e não se enquadram em nenhuma das outras duas formas de pensar. Sempre atentos a abertura classificativa, para efeitos dessa obra, caminharemos com os que fazem uma divisão bipartida da teoria, sem contudo, ontologizá-la como a forma correta de se interpretar o autor. 89 No prólogo, Wittgenstein lucidamente reconhece que a compreensão dos seus escritos não é uma tarefa fácil e que seria possível, como diria Platão, apenas para os iniciados: “Este livro será talvez apenas compreendido por alguém que tenha uma vez ele próprio já pensado os pensamentos que são nele expressos – ou pelo menos pensamentos semelhantes. Não é, pois, um livro de texto. O seu fim seria alcançado se desse prazer a quem o lesse compreendendo.”(WITTGENSTEIN, 2011, pg.27). Uma metalinguagem buscada por Carnap e Schilick.

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65

estabelecer as condições necessárias para a construção de uma linguagem

lógica perfeita90.

A linguagem se apresenta como pressuposto lógico-científico para

descrição de um conhecimento válido. Se o conhecimento se pauta por uma

busca incessante pela verdade, esta não se concretiza de outro modo que não

pela linguagem. Como assevera PINTO (1998, pg. 144), o alcance da verdade

pressupõe a existência anterior de condições de expressão, de modo que só a

linguagem é capaz de exprimir o conteúdo verificável no mundo. Se as ciências

naturais cumprem o papel de descrever a realidade fática, mostra-se

imprescindível a existência de uma linguagem capaz de espelhar esse

conhecimento produzido. Seria, então, atribuição da filosofia “descrever as

condições da descrição do mundo”.

Nessa conjuntura, a filosofia não estaria no mesmo nível lógico das

ciências da natureza, mas, como apresenta o próprio Wittgenstein (2011, pg.

66 [4.111]), deve estar acima ou abaixo, nunca ao lado desta. O objetivo

empreendido pela filosofia deve ser o de clarear a lógica do pensamento, de

modo que se possa delimitar e clarificar os contornos proposicionais do

pensamento.

O pensamento tractatiano não se confunde, em absoluto, com o

psicologicismo91. Ao revés, é percebido como “a imagem lógica dos fatos”, isto

é, o modo pelo qual a racionalidade visualiza os fatos do mundo e os traduz em

um formato lógico estruturado pela linguagem. Não há pensamento ilógico,

uma vez que não posso pensar aquilo que não consigo perceber de forma clara

e bem delineada pelos meus sentidos. O pensamento será lógico se puder ser

expresso por meio de uma proposição. Caso contrário, teremos expressões

90 Russell assevera que esta linguagem lógica perfeita não se caracteriza “no sentido de que haja uma linguagem logicamente perfeita, mas no sentido de que toda a função da linguagem é ter sentido e que só satisfaz esta função na medida em que se aproxima da linguagem ideal postulada.” (WITTGENSTEIN, 2011, pg. 02/03). 91 A noção de pensamento de Wittgenstein não tem a pretensão de trabalhar como se forma o pensamento, mas o que nele contém que será sempre uma realidade fática. Se é irreal ou não exprimível, não pode ser pensamento no sentido por ele trabalhado.

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66

que nada expressam, sem sentido. Há uma inequívoca pretensão de isomorfia

entre a realidade percebida e a estrutura significativa que a expressa92.

O que Wittgenstein nos aponta é a impossibilidade de se pensar o

mundo de forma outra que não pela linguagem. O conhecimento verdadeiro

possui como corolário lógico a potencialidade de ser expresso pela linguagem,

razão pela qual poderia se afirmar que a ausência de termos linguísticos

capazes de espelhar o conteúdo de determinado conhecimento simboliza a

ilogicidade deste ou, tomando seus termos, uma expressão sem sentido. O

autor exprime que o problema da filosofia até ali seria a ausência de sentido

das postulações assentadas em questionamentos como “o que é o bem”. Em

seus dizeres, “o resultado da filosofia não é proposições filosóficas, mas

esclarecimento de proposições”93 Percebe-se uma forte crítica à metafísica

clássica, pugnando-se pela análise do mundo físico como única forma de se

obter a verdade.

Na proposição94, o que se tem é a possibilidade de exprimir o

sentido daquilo que é projetado pelo sinal proposicional. A proposição não

possui um conteúdo em si, mas uma articulação de fatos expressos pelos

sinais que dão sentido a sentença. Uma frase não é um conjunto de palavras,

mas “uma combinação de nomes e de proposições elementares

isomorficamente articulados à estrutura interna do fato”9596.

92 Apenas para chamar a atenção dos desatentos, não seria exatamente essa a pretensão da tipicidade e, em alguma medida, do conceito abstrato? Uma correlação da realidade com uma proposição linguística capaz de descrever com perfeição o “percebido”? 93 Wittgenstein, 2011, pg. 62. 94 “Wittgenstein efetua uma análise das suas condições transcendentais de possibilidade, que se baseia nos seguintes princípios: 1º) todas as expressões lingüísticas são formadas a partir de conteúdos descritivos que são usados para afirmar, dar ordens, perguntar, exprimir emoções etc. (p. ex., as expressões a porta está aberta, abra a porta, a porta está aberta! e a porta está aberta? possuem, todas elas, o mesmo conteúdo descritivo, que corresponde à circunstância de a porta estar aberta); 2º) dentre as expressões lingüísticas, a proposição declarativa possui uma posição privilegiada, pois a sua bipolaridade constitui uma garantia segura para a existência de conteúdo descritivo autêntico (p. ex., a proposição a porta está aberta pode ser verdadeira ou falsa e possui por isso conteúdo descritivo autêntico, que poderá ser usado em ordens, perguntas etc., enquanto a proposição o círculo é redondo só pode ser verdadeira e, portanto não possui conteúdo descritivo autêntico); 3º) para estabelecer as condições transcendentais de possibilidade das diversas expressões usadas na linguagem, basta estabelecerem as condições transcendentais de possibilidade do conteúdo descritivo da proposição declarativa.” (PINTO, 2004, pg. 86) 95 MORENO, 2000, pg.14 96 “4.1221 - A uma propriedade interna de um facto também podemos chamar um traço deste facto. (No sentido em que se fala dos traços do rosto). 4.123 – Uma propriedade é interna, quando não é pensável que o seu objecto não a possua.” (WITTGENSTEIN, 2011, pg. 65)

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67

Em outras palavras, a frase “Luís Inácio Lula da Silva foi eleito

presidente do Brasil em 2002” possui um sentido não apenas porque há um

respeito aos elementos sintáxicos, mas porque os elementos linguísticos

espelham uma realidade descrita pela história. Além da perfectibilidade

linguístico-gramatical, a proposição pode ser atestável como verdadeira diante

de uma confrontação com a realidade.

Por sua vez, a expressão “Caso Aécio Neves tivesse sido eleito

Presidente do Brasil em 2014”, apesar de hipotética e conforme os elementos

sintáxicos da linguagem, seria uma sentença sem sentido, uma vez que não

estruturada a partir de um fato. Não estaríamos, portanto, diante de uma

proposição lógica no sentido tractatiano, de uma proposição genuína97.

Por um testemunho mais responsável com o leitor, reconhecendo

que a leitura até aqui tem exigido razoável esforço para os “não iniciados”, há

que se transitar pelos elementos linguísticos abordados por Wittgenstein.

Poderíamos, assim, seguindo a trilha de BUCHHOLZ (2008, pg. 56),

sistematizar a linguagem na ótica tractatiano em nomes, proposições

elementares e proposições complexas.

Wittgenstein aduz que o signo ou nome seria aquele capaz de

denotar um objeto. O nome seria o elemento que conteria o conteúdo

informacional que espelha algum existente. Copo só pode denotar aquele

utensílio doméstico que utilizamos para tomar água, por exemplo. Há uma

correspondência biunívoca entre a realidade e o nome, de modo que o signo é

um elemento proposicional representativo do objeto existente no mundo

factual.

O nome é um elemento proposicional, mas não forma uma

proposição. Não podemos dizer que conceito de objeto possa ser valorado

como falso ou verdadeiro, mas, simplesmente, que ele é um objeto. O nome é

97 “Apenas uma proposição genuína é dotada de sentido, podendo, assim, ser verdadeira ou falsa. Proposições genuínas são aquelas que afiguram fatos. Proposições como tautologias e as contradições não são proposições genuínas, são casos limites, são vazias de sentido, pois, apesar de não violarem nenhum princípio da sintaxe lógica, elas não figuram a realidade (ponto que abordarei adiante). Dessa forma, essas são proposições sem sentido (Sinnlos). As proposições que violam as regras da sintaxe lógica são pseudoproposições (Scheinsätze), são absurdas (Unsinn); portanto não são nem verdadeiras nem falsas.” (CONDÉ, 1998, pg. 55)

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68

o espelhamento da realidade visível, dando uma correspondência linguística a

algo existente.

Os nomes, assim, cumprem o papel de denotar um objeto, que, por

sua vez, mostra-se incapaz de apresentar um sentido98. Não expressamos um

sentido quando utilizamos, por exemplo, o termo “automóvel”. Aqui há tão

somente a denotação do “automóvel”, desvelando-se como inexprimível de

sentido.

Como leciona CONDÉ (1998, pg. 50), “somente a proposição

enquanto unidade de combinação semiótica possui sentido (Sinn), e não os

nomes isoladamente”. Em outras palavras, o nome não possui conteúdo

semântico, devendo ser conjugado com outros nomes de modo a constituir

uma proposição, essa sim a menor unidade linguística. O nome figura-se como

condição de possibilidade transcendental da proposição99, que forma-se a partir

da combinação lógica dos nomes simples, edificando o denominado atomismo

lógico transcendental100.

98 O pensamento tractatiano se desvela como inovador, entre outras coisas, por fixar uma lógica semântico-proposicional, na qual a relação objeto-signo não cumpre outro papel que não o denotativo. Nessa perspectiva, a unidade linguística mais trivial seria a proposição, uma vez que apenas a partir desta pode-se encontrar elemento semântico. 99 “Esses elementos simples, ou signos, que preenchem as proposições elementares são os nomes. Esses são signos primitivos (tract 3.26), constituindo-se, dessa forma, nos átomos lógicos, que são as condições transcendentais de possibilidade da proposição elementar, caracterizando, assim, o atomismo lógico-transcendental Tractatiano. Esses nomes, ou signos primitivos, representam os objetos, que são, por sua vez, os elementos simples da realidade. O objeto constitui a denotação (Bedeutung) de um nome e, como vimos, para Wittgenstein um nome não possui sentido (Sinn), mas apenas denotação. O conjunto de objetos simples é idêntico com o fixo, o subsistente (Das Bestehende), ao passo que as configurações de objetos constituem o mutável, o instável (Das Unbeständige) (Tract. 20271). Os objetos possuem necessariamente a possibilidade de combinação mútua (Tract. 1.13; 2.013). Essa combinação, ou configuração de objetos, constitui um estado de coisas (Sachverhalt). Os objetos possuem necessariamente a possibilidade dos estados de coisas (atomismo lógico-transcendental Tractatiano). Enfim, esses estados de coisas atômicos (isto é, os estados de coisas mais simples que são formados pelas combinações de objetos) são representados pelas proposições elementares.” (CONDÉ, 1998, pg. 53). 100 “Aplicada ao mundo, a crítica da linguagem desemboca no que poderíamos denominar atomismo transcendental. O princípio em que o Tractatus se baseia para chegar a este atomismo é a idéia de que existe um paralelismo estrito entre a linguagem e o mundo. Com base neste princípio, Wittgenstein estabelece que cada signo simples deve designar necessariamente um e somente um objeto simples. Este último também deve ser indivisível e, associado aos demais objetos simples, constitui a substância do mundo, a base permanente e imutável a partir da qual a diversidade dos fatos atômicos ou estados de coisas é construída. Em paralelismo com os signos simples, podemos afirmar que os objetos simples não "existem" como fatos mundanos, mas "subsistem" como condições de possibilidade ou coordenadas transcendentais dos fatos mundanos. Enquanto pertencente à substância do mundo, cada objeto simples deve possuir uma forma lógica tal que todas as suas possíveis combinações com outros objetos simples já estejam estabelecidas a priori. Se nos fosse dado conhecer

Page 70: DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

69

A pretensa unidade signativa trabalhada por Wittgenstein, na qual

haveria uma biunivocidade entre o signo e a realidade correspondente,

permitiria a constatação a priori das combinações lógicas possíveis entre os

objetos, formando os estados de coisas.

Esses estados de coisas, enquanto combinação lógica dos objetos

(fatos atômicos), seriam representados linguisticamente pelas proposições

elementares101. A proposição elementar possui uma relação de simetria com os

estados de coisas, existindo aqui também uma biunivocidade de

correspondência na qual uma proposição elementar reflete o estado de coisas.

Considerando que cada nome espelha no nível linguístico um objeto espelhado

no nível da realidade, a combinação de nomes enquanto estrutura

proposicional reflete inexoravelmente a combinação de objetos

correspondente. Como assevera CONDÉ (1998, 53), a estrutura interna das

proposições elementares deve se relacionar com a estrutura interna dos

estados de coisas, fixando um isomorfismo entre a realidade representada e a

proposição.

A correlação necessária da linguagem com a realidade existente,

pressupondo uma inexorável e exata correspondência isomórfica entre o que é

expresso na proposição e o fato, exprime o conteúdo da teoria da figuração

proposicional ou teoria pictórica defendida por nosso autor. Poderíamos

resumir esta teoria na noção de que um quadro, em que se representa a

realidade, todos os elementos devem estar harmoniosamente alinhados, de

modo que aquele indivíduo que sensorialmente tem contato com o quadro

consiga absorver de imediato todo o conteúdo da realidade ali espelhada. Isso

somente ocorre quando a harmonia é perfeita. Assim, a linguagem lógica

perfeita trabalhada a partir da proposição elementar cumpriria com o papel de

todos os objetos simples que compõem a substância do mundo, seríamos capazes de conhecer simultaneamente todas as suas combinações possíveis. Estas afirmações são compatíveis com a idéia de que os objetos simples constituem um sistema transcendental de coordenadas que subjaz ao mundo, fundamentando-o logicamente.” (PINTO, 2004, pg. 86/87) 101 “Na proposição elementar ocorre à mesma relação, isto é, os nomes que representam os objetos se combinam para formarem a proposição que, por sua vez, representa o estado de coisas. A proposição elementar é uma figuração de fato elementar, ou atômica, isto é, de um estado de coisas atômico. Assim, da mesma forma que o fato atômico se constitui na classe basilar dos fatos, não admitindo mais análise (enquanto fato), a proposição elementar, enquanto retrato lógico desse fato (estado de coisas atômico), também não admite análise ulterior”. (CONDÉ, 1998, pg. 53)

Page 71: DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

70

espelhamento da realidade se a isomorfia da relação linguagem/mundo fosse

perfeita.

Com efeito, não obstante a existência lógica de um estado de coisas

possível102 (que não existe, mas pode advir em razão da combinação lógica

possível dos objetos), uma proposição elementar só possui um valor de

verdade quando refletir um estado de coisas subsistente, haja vista que o

critério de verificação da realidade tractatiano é a confrontação com a

realidade, isto é, só posso dizer que uma proposição é falsa ou verdadeira se

puder confrontá-la com a realidade fática. A proposição “a porta está aberta”

será verdadeira se e somente se a verificação com o mundo real me permitir

dizer que a porta está aberta. Será falsa se a porta estiver fechada.

Por outro lado, a expressão “não existe vida fora da Terra” não é

passível de aferição da verdade, pois, por mais que os elementos sintáxicos

estejam corretamente empregados e que seja uma realidade fática possível, a

impossibilidade de conferência torna a proposição sem sentido, incapaz de

atestação da verdade ou falsidade. Não poderíamos dizer que ela é falsa nem

verdadeira, mas sem sentido.

A proposição elementar, portanto, enquanto unidade linguística

básica é factível apenas quando se trata de estados de coisas subsistentes, ou

seja, sobre fatos atômicos. Somente nestes casos teríamos uma proposição

genuína, sujeita a verificação pelo binômio verdadeiro-falso. Verdadeira seria a

proposição que exprime um fato atômico existente103. A realidade puramente

pensável, não acessível por nenhum critério de verificação empírica, enquanto

estado de coisas possível, mostrar-se-ia como não transcritível para uma

linguagem lógica. Mesmo observando o regramento da sintaxe, a sua

descrição não alcançaria um sentido lógico, vindo a compor a esfera do

indizível.104

102 A realidade enquanto estado de coisas se divide em aquilo que pode apenas ser pensado (estado de coisas possível) e aquilo que existe factualmente, em uma relação de objetos existentes (estado de coisas subsistente). 103 “Se a proposição elementar é verdadeira, então o estado de coisas existe; se a proposição elementar é falsa, então o estado de coisas não existe”(Tractatus, §4.25). 104 Sobre a doutrina do mostrar e do dizer, (CONDÉ, 1998, pg. 59/61), em testemunho do pensamento de Stegmuller, expressa que “A primeira acepção Stegmüller denomina “mostrar e”, isto é, mostrar externo. Nessa acepção, encontra-se a síntese da teoria pictórica ou figurativa do Tractatus, em que o sentido de uma proposição é dado tomando-a como figuração

Page 72: DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

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O Tractatus traz a ideia de que a impossibilidade de representação

lógica de um estado de coisas deve conduzir ao silêncio. “Sobre aquilo que não

se pode falar, deve-se calar!” (Tractatus, 7). Essa é a máxima tractatiana,

segundo a qual a ausência de correspondência sensível no mundo faz com que

algumas expressões permaneçam no campo da indeterminação linguística,

desvelando-se como não suscetíveis a uma verificação de verdade. Como não

há o referente espelhado dos termos boa fé ou justiça, por exemplo, não seria

palatável a sua utilização, uma vez ausentes a exatidão e a certeza exigidas

pela racionalidade científica moderna. Não seriam, então, termos

epistemologicamente adequados, pois não produzem qualquer sentido

linguístico.

A exigência de uma correspondência biunívoca da proposição e da

realidade espelhada para validação científica parece ter sido açambarcada pelo

Direito. Ouço aos quatro cantos, como um retoante canto da sereia, que as

agruras jurídicas se dão pela ausência de previsibilidade linguística na

construção das normas. As críticas contundentes perpassam pela visão de que

a figura mística do legislador105 insiste em aportar termos sem sentido na

construção jurídica, valendo-se de expressões que só afastam a objetividade

do aplicador, transformando a decisão jurídica em uma amálgama de

valorações subjetivadas. Recordo-me que, ao iniciar o segundo período da

graduação, durante a disciplina de TGD, “aprendi” que o fim primeiro do Direito

isomórfica do estado de coisas por ela descrito. A proposição mostra o seu sentido, onde a estrutura externa da proposição corresponde à estrutura externa do estado de coisas que ela descreve. A segunda acepção do mostrar Tractatiano Stegmüller denomina de “mostrar i”, ou seja, mostrar interno, onde se mostra a forma lógica da proposição, a qual pode não pode ser representada [...] Ou ainda, a “a proposição não pode representar a forma lógica, esta apenas se espelha naquela”. [...] Assim, o “mostrar i” caracteriza-se como o mostrar interno à proposição, mas que não pode ser dito ou representado por ela. A terceira acepção do mostrar Stegmüller denomina “mostrar m”, vale dizer, mostrar místico. “Existe, com efeito, o indizível. Isto se mostra; é o místico ”” 105 Sempre me encantei com a figura do “Legislador”. Voluntas legislatoris. Quem, afinal, é esse tal de legislador? Alguém pode, por gentileza, apresentá-lo a mim? Sujeito caucasiano, mulato ou mestiço? Católico ou Protestante? Seria ele umbandista? Quando mencionamos a existência de um legislador homogêneo, dotado da representatividade total do povo, nos esquecemos da sua condição primária, da sua condição de ser humano. Não existe esse “legislador”, mas legisladores, cada qual com as suas especificidades e individualidades que não permitem a inferência de uma forma unívoca de manifestação e de pensamento. Cada qual vota com suas pretensões e com várias razões. Acreditar na figura do legislador, quase que como a figura do soberano desenhada por Hobbes na capa da 1ª edição de Leviatã, como um ser único constituído pela totalidade dos membros do povo é a mais pura insanidade perquirida pela razão moderna.

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é a segurança jurídica travestida na estabilidade normativa decorrente da

utilização de uma linguagem lógica perfeita. Justiça? Essa não! Enquanto

termo aberto a subjetivismos seria apenas o fim último, desnecessário. Afinal, o

que não posso falar devo me calar. Devo, então, me calar diante de uma

injustiça? Ouço vozes fortes106 que dizem que sim, que releguemos às não-

ciências a missão de definir o que é justo. Ao direito cabe apenas a aplicação

da lei, lei enquanto substrato linguístico de uma realidade verificável

empiricamente.

Com as escusas pelo desabafo e a promessa de retorno a estas

questões mais a frente, retomemos a questão da linguagem trabalhada por

Wittgenstein. Em seu modo de ver, a proposição elementar, enquanto unidade

linguística básica seria o elemento constitutivo de todas as demais

proposições. As proposições complexas, portanto, seriam formadas a partir da

combinação das proposições elementares. As proposições complexas

figurariam como funções de verdade das proposições elementares (CONDÉ,

1998, pg. 56)107, enquanto a proposição elementar é uma função de verdade

em si mesma (Tractatus, 5).

A combinação das proposições elementares, de modo a formar uma

proposição complexa verdadeira, depende da adequabilidade lógica da

estrutura interna e externa. No âmbito da estrutura interna, mostra-se como

logicamente impossível a combinação de proposições elementares que se

106 Vozes fantasmagóricas que, provavelmente, as ouço em razão dos delírios provocados por um escrever solitário (mas não solipsista) nos embalos do sábado a noite. Vozes, porém, que soam com uma realidade singular, que dizem que o direito parou em Carlos Maximiliano ou que a segurança jurídica pode ser reforçada, quando houver duas interpretações possíveis de uma lei, por uma nova norma interpretadora (norma que interpreta? Eu hein?!). Bem, esses indícios de esquizofrenia, muito comuns àqueles orientados por Álvaro Ricardo de Souza Cruz, em verdade, são frutos das falas ouvidas em congressos por algumas das “maiores autoridades” (acho que não pelo tamanho) do direito brasileiro. Como ter sanidade diante de tamanha sandice? 107 “A proposição elementar, desse modo, é o elemento constitutivo de todas as outras proposições não-elementares, isto é, todas as proposições complexas são funções de verdade de proposições elementares. Compreendemos as proposições não-elementares através das elementares. A verdade ou falsidade de uma proposição não-elementar é determinada pelas proposições elementares que a compõem, sendo a linguagem a totalidade das proposições. Da mesma forma, a totalidade de estados de coisas subsistentes constitui o mundo. As proposições não-elementares são expressas por meio de articulações lógicas das proposições elementares. Essas articulações lógicas das proposições elementares revelam o caráter funcional que as proposições possuem. Toda proposição traz consigo a possibilidade de relacionar-se funcionalmente com outras, isto é, toda proposição traz consigo a possibilidade do espaço lógico” (CONDÉ, 1998, pg 56)

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excluem. Por exemplo, não é factível dizer no mesmo espaço lógico que

“vemos um sol que brilha radiante durante uma chuva torrencial”. As nuvens de

uma chuva pesada impediriam a verificação de um brilhar radiante do sol. Ou é

um ou é outro108. Portanto, essa combinação de proposições elementares seria

logicamente impossível em razão da incompatibilidade das suas estruturas

internas. No âmbito da estrutura externa, como dissemos acima, a proposição

complexa figura como função de verdade das proposições elementares que lhe

formam. Em outras palavras, é preciso que haja o confrontamento

individualizado de cada uma das proposições elementares com a realidade,

identificando o seu valor de verdade para, enfim, identificarmos se a proposição

complexa é falsa ou verdadeira. Tomando emprestado o exemplo gráfico

trabalhado por CONDÉ (1998, pg. 57)109, em que temos uma proposição

complexa R formada pela combinação das proposições elementares P e Q,

poderíamos sistematizar a verificação da verdade da proposição complexa pela

seguinte função:

Proposição

elementar P

Proposição

elementar Q

Combinação PeQ Proposição

complexa R

V V V V

V F F F

F V V F

F F F F

Em outras palavras, a proposição complexa será verdadeira se e

somente se todas as proposições elementares que lhe compõem forem

também verdadeiras. Enquanto o valor de verdade da proposição elementar se

dá pelo confrontamento direto com a realidade, a proposição complexa se dá

pela análise da veracidade das proposições elementares que lhe constituem.

108 Essa noção me faz lembrar as brincadeiras juvenis, nas quais “pregávamos peças” aos amigos questionando se tinham assistido ao filme “as tranças do rei careca” ou “a volta dos que não foram”. Quanta nostalgia! 109 “suponhamos uma proposição complexa “R”, conjunção de duas proposições elementares “P” e “q”. Assim, para sabermos o valor de verdade de “R”, vale dizer, para sabermos se “R” é falsa ou verdadeira, devemos analisar o valor de verdade de “P” e “Q”, isto é, devemos nos assegurar se estas proposições elementares são verdadeiras ou falsas mediante aferição com o fato que cada uma representa. Dessa forma, após analisar cada uma em particular, podemos calcular, com base nisso, o valor de verdade da proposição não-elementar “R”. Assim, uma vez que “R” constitui a conjunção de “P” e “Q”, “R” terá o seu valor de verdade determinado pelos valores de verdade de “P” e “Q””.

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BUCHHOLZ (2008, pg. 57), ao sintetizar as noções da linguagem

trabalhadas no Tractatus, traz uma interessante figura representativa que aqui

reproduzimos acreditando no seu auxílio ao leitor.

Apesar da sofisticação trazida pelo Tractatus, transmudando a

noção da linguística para a semântica proposicional110, a pretensão de certeza

enquanto um know that111 mostrou-se insuficiente e com inúmeras

contradições. A tentativa de fuga da metafísica, aspirando estabelecer uma

perfeita isomorfia da realidade com a proposição linguística, desvelou-se como

impraticável, porque sempre há elementos da realidade que não são

perceptíveis pelos nossos sentidos e sempre há algo que nos escapa. Essa

noção foi muito bem tracejada por FERRAZ (2013, pg. 151/152), mostrando-se

bem vinda a transcrição dos seus dizeres:

110 “O principal resultado da crítica da linguagem é o postulado transcendental que nos diz que o sentido duma proposição declarativa qualquer é determinado porque ela pode ser analisada em combinações lógicas de proposições atômicas, que são, por sua vez, combinações lógicas de signos simples. Estes últimos não "existem" como fatos lingüísticos, mas "subsistem" como condições de possibilidade ou coordenadas transcendentais dos fatos lingüísticos. Por esta razão, jamais teremos acesso direto à forma dos signos simples ou à forma de suas combinações (proposições atômicas) no mundo dos fatos. Mesmo assim, a existência destes signos é uma condição necessária da determinabilidade do sentido da proposição. Eles são indivisíveis e poderíamos dizer que seu conjunto constitui a "substância" da linguagem, a base permanente e imutável a partir da qual a diversidade das proposições que descrevem as situações mundanas é construída.” (PINTO, 2004, pg. 86) 111 “Sob o ponto de vista dessa lógica, o know that representaria “um saber o que” é necessário para designar um objeto, ao passo que o know how trabalha sob uma perspectiva radicalmente distinta, no sentido de abandonar a noção de se estabelecer “padrões” de determinação para trabalhar sob o prisma dos usos e contextos do conceito.” (FERRAZ, 2013, pg. 161).

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“Isso porque em qualquer proferimento, é falaciosa a pretensão dessa correspondência absoluta. Um fato hipotético, em que seja visualizada uma criança ao lado de seu cachorrinho de estimação, pode gerar a seguinte expressão linguística: “a criança está à direita de seu cachorrinho de estimação”. De plano, a imagem mental da realidade estabelecida nessa situação é configurada com dois atores: a criança e o animal. O enunciado linguístico, a seu turno, possui, além da criança e do animal, a asserção de que o primeiro está situado à direita do segundo. Ora, como infere, sem maiores discussões, a pretensa isomorfia não existe. Além disso, outros pontos podem ser levantados: mudando-se o ângulo de observação, não se poderia afirmar que o cachorro está à direita da criança? Ou não seria factível que essa visão reducionista da lente do observador, de asseverar a relação entre a criança e o animal, tenha deixado para trás vários outros componentes da realidade, como o fato de a criança usar uma corrente para segurar o cachorro, de o dia estar chuvoso ou de sua mãe estar acompanhando a cena a uma distância pequena? E, ademais, seria a criança observada realmente uma criança? Não poderia ser um adolescente com um retardo de crescimento? Como, então, captar a essência do ser nesse caso?”

Com a argúcia que lhe é peculiar, o professor mineiro evidencia a

existência do não dito. A isomorfia do mundo com a linguagem é impossível,

porque por detrás da realidade há sempre aquilo que não foi percebido e, por

detrás da linguagem, aquilo que não foi dito. O esgotamento descritivo da

realidade é como a busca por Atlântida, ou seja, um perseguir mítico que nunca

tem um fim. Um novo elemento sempre se renova na renovação de um novo

olhar. Olhar este que também renova o sentido do já conceituado. Um

caminhar que não tem fim e cujo caminho é precário, provisório.

O autor, em testemunho a obra de Bouvier, Gaido e Brigido, também

nos alerta que o assentado em Tractatus inviabilizaria a construção de

determinadas terminologias importantes para a sociedade, como as noções de

democracia, conhecimento e até mesmo de direito. Todos estes nomes não

possuem um referente específico no mundo, inexistindo a correspondência

biunívoca do mundo/linguagem. Seria, então, impronunciável e impraticável o

Estado Democrático de Direito por não deter uma correspondência específica?

Fica a reflexão ao leitor.

Outra crítica relevante ao Tractatus foi à desenvolvida por LANDIM

FILHO (1981, pg. 36/37), para quem a forma de exposição da obra, com o

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encadeamento crescente de importância da análise da linguagem, acaba por

exigir a observância de princípios metafísicos enunciados na própria obra112.

A pretensão de certeza e objetividade linguística mais uma vez

sucumbiu. A contribuição de Wittgenstein à filosofia da linguagem, contudo,

não se encerraria com esta obra. Após a imersão em si mesmo e o

distanciamento da academia, refletindo sobre os seus escritos, Wittgenstein

revisitará a sua teoria da linguagem em diversos escritos, sendo que o

compêndio de algumas reflexões fará parte da obra publicada postumamente:

Investigações Filosóficas.

112 “O livro tem ao mesmo tempo uma dimensão crítica (no sentido de que a filosofia é compreendida como uma atividade, um instrumento de análise conceitual, e não como uma teoria, um conjunto de enunciados verdadeiros) e especulativa (que o aproxima muitas vezes das reflexões da metafísica clássica). [...] Esta ambiguidade é ainda reforçada pelo tipo de exposição adotado por Wittgenstein. Como as proposições iniciais do Tractatus (1.2063) são consideradas ontológicas, a ordem de exposição (indicada pela numeração das proposições) poderia exprimir uma prioridade lógica da dimensão especulativa sobre a dimensão crítica. Assim, considerando as proposições básicas (numeradas pelos inteiros positivos 1 a 7) como encadeadas numa ordem crescente de importância, a análise da linguagem (que se inicia a partir da proposição 3) dependeria dos princípios metafísicos anteriormente enumerados.” (LANDIM FILHO (1981, pg. 36/37)

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CAPÍTULO III – A REVIRAVOLTA LINGUÍSTICO PRAGMÁTICA –

A LINGUAGEM PARA ALÉM DA SEMÂNTICA

Após a publicação do livro Tractatus Logico Philosophicus (1921),

Wittgenstein acreditara que os seus escritos simbolizavam o porto de chegada

dos debates que navegavam em busca de uma linguagem lógica perfeita.

Acreditara ter ele encontrado as respostas lógicas identificadoras das

condições de possibilidade de todas as proposições, encerrando ali o meditar

sobre a linguística. Com a sensação de que nada mais seria extraível da

filosofia e profundamente marcado pelos acontecimentos do front de batalha

durante a Primeira Guerra, o filósofo austríaco recolhe-se a sua interioridade e

resolve ter uma vida mais simples, atuando como professor de escola primária

e, em seguida, como jardineiro em um monastério.

A partir de 1927, Wittgenstein inicia um diálogo com Schlick e outros

membros do Círculo de Viena113 (Carnap e Feigl)114, o que teria motivado o seu

retorno a Universidade de Cambridge, onde defendera o doutoramento em

1929, valendo-se do Tractatus como tese. A partir daí, o filósofo começa a

revisitar o seu trabalho inicial e modifica substancialmente o seu modo de ver a

relação da linguagem com o mundo115. Com isso, ele tenta compilar os textos

em uma obra única e até mesmo chega a pensar em publicá-la em vida116.

113 “Antes do primeiro encontro, Schlick nos advertiu enfaticamente a não começarmos nenhuma discussão do jeito que estávamos acostumados em nosso círculo, uma vez que Wittgenstein não desejava algo assim sob nenhuma circunstância. Devíamos também ser cuidadosos com perguntas, já que Wittgenstein seria extremamente sensível e fácil de ser assustado por meio de perguntas diretas. Seria melhor, segundo Schlick, deixar Wittgenstein falar e aí somente, muito cautelosamente, perguntar pelas elucidações necessárias” (CARNAP apud BUCHHOLZ, 2008, pg. 122). 114 BUCHHOLZ, 2008 pg. 164. 115 “Desde que há 16 anos comecei de novo a ocupar-me de Filosofia, tive que reconhecer erros graves no que escrevi no meu primeiro livro. Para reconhecer estes erros foi-me útil – a um ponto que eu próprio não posso julgar – a crítica que Frank Ramsey fez às minhas ideias. Com ele as discuti em inúmeras ocasiões durante os últimos dois anos de sua vida. Mais do que a esta crítica – sempre segura e poderosa – devo àquela que um professor desta universidade, o senhor P. Sraffa exerceu incessantemente durante muitos anos, sobre as minhas ideias. É a este estímulo que devo as teses mais consequentes deste trabalho.” (Wittgenstein, 2002, pg. 167) 116 “Até a pouco, eu já tinha renunciado à ideia de publicar o meu trabalho ainda durante a minha vida. Mas esta ideia era de quando em quando avivada, essencialmente devido ao facto de eu ter de vir, a saber, que os meus resultados, apresentados por mim em aulas, em notas e

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Contudo, apenas após a sua morte será publicada a sua segunda grande obra,

Investigações Filosóficas.

Investigações Filosóficas tem como parágrafo iniciador uma

passagem do pensamento agostiniano117 – expresso no livro Confissões – em

que o autor aborda a linguagem como se cada signo traduzisse essencialmente

algum objeto, em uma relação direta de referência e significação118. Na

passagem, o bispo de Hipona aborda a significação como um compreender

que se dá na correlação denotativa do signo com a referência, isto é, o

aprender uma palavra se dá pela constatação de como esta é utilizada na

determinação de um objeto.

Segundo Agostinho, o adestramento pelo qual passamos, quando as

pessoas nos indicam repetidamente os sons identificadores de um objeto,

permite-nos fazer uma associação de que aquele signo denota a substância da

coisa. Seria, por exemplo, o aprendizado obtido por um ajudante de pedreiro ao

iniciar o seu trabalho em uma obra. Ali, ao ouvir o pedido para entregar uma

laje e sendo-lhe apontado o objeto, passaria o ajudante a deter o conhecimento

de que aquele nome simbolizava aquele objeto. A partir daí, ao ser indagado

em discussões, de diversas maneiras mal compreendidos, mais ou menos diluídos ou mutilados. Isso espiaçou a minha vaidade e foi-me moroso sossegá-la” (Wittgenstein, 2002, pg. 166) 117 Essa talvez seja um dos mais intrigantes questionamentos feitos pelos estudiosos de Wittgenstein sobre a obra. Por que construir a sua obra a partir dos dizeres de Santo Agostinho? Por mais interessante que sejam as reflexões do bispo de Hipona, outros autores mais próximos, como Frege e Russell, desenvolveram trabalhos mais completos. Aliás, o próprio Wittgenstein na sua primeira fase apresenta reflexões mais adequadas aos questionamentos formulados nas Investigações Filosóficas. Muitas serão as teorias, afirmando que o austríaco não queria entrar em embate com a obra dos seus diletos amigos. Outros dizem que ele não fez uma correção de curso, mas que, ao revés, há continuidade de uma obra para outra. Fato é que Wittgenstein, nessa história, apenas reforçou a sua impresibilidade. 118 “<< Cum ipsi (majores homines) appellabant rem aliquam, et cum secundum eam vocem corpus ad aliquid movebant, videbam, et tenebam hoc ab eis vocari rem illam, quod sonabant, cum eam vallent ostendere. Hoc autem eos velle ex motu corporis aperiebatur: tamquam verbos naturalibus omnium gentium, quae fiunt vultu et nutu oculorum, ceterorum que membrorum actu, et sonitu vocis indicante affectionem animi in pretendis, habendis, rejiciendis, fugiendisve rebus. Ita verba in varilis quarum rerum signa essent, paulatim colligebem, measque Jam volmtates, edomito in eis signis ore, per haec enuntiabam >> Quando eles (os meus pais) diziam o nome de um objeto e, em seguida, se moviam na sua direção, eu observava-os e compreendia que o objeto era designado pelo som que eles faziam, quando o queriam mostrar ostensivamente. A sua intenção era revelada pelos movimentos do corpo, como se estes fossem a linguagem natural de todos os povos: a expressão facial, o olhar, os movimentos das outras partes do corpo e o tom de voz, que exprime o estado de espírito ao desejar, ter, rejeitar, ou evitar uma coisa qualquer. Assim, ao ouvir palavras repetidamente empregues nos seus devidos lugares em diversas frases, acabei por compreender que objetos é que estas palavras designavam. E depois de ter habituado a minha boca articular estes sons, usava-os para exprimir os meus próprios desejos.” (WITTGENSTEIN, 2002, pg. 171/172)

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com tal sonoplastia, entregaria o item requerido. A palavra laje teria a

significação como correspondência ao objeto identificado como tal.

A linguagem vislumbrada dessa forma traduziria a inteligência de

que uma proposição seria composta pelas designações perfeitamente

concatenáveis, de modo que o pensar agostiniano estaria balizado nos

substantivos enquanto componentes primeiros de uma língua. Somente a partir

de um substantivo eu consigo apresentar alguma proposição descritiva. A

linguagem seria a totalidade de substantivos e de nomes de pessoas ou ao

menos de palavras que cumpririam com esta funcionalidade.119

O pensamento agostiniano sustenta uma definição ostensiva da

linguagem, de modo que o conhecimento signativo dar-se-ia por uma relação

de familiaridade direta. A a-presentação de um objeto com a respectiva

nomeação permitiria ao indivíduo inferir a relação representacional do signo e

do objeto. Todas as vezes que se precisasse exprimir algo, dever-se-ia valer do

mesmo conjunto sonoro. Em outras palavras, quando conheço o que significa o

som “laje”, todas as vezes que eu me deparar com tal palavra, farei uma

correlação substantiva com o objeto.

FAUSTINO (1995, pg. 20) menciona que esse processo de cognição

linguístico, enquanto associação natural realizada pela mente, como uma

espécie de mecanismo mental subjacente a linguagem, apontaria para o

elemento finalístico, que seria o de despertar representações. A significação

seria o produto da tradução das ocorrências mentais, sendo que, antes de

exprimir o significado de algo, construiríamos a ideia em nossa mente para, em

seguida, trazê-la ao mundo por meio da linguagem.

Wittgenstein, contudo, chama-nos a atenção para algumas palavras

escritas no formato exclamativo. “Água!” “Fora!” “Ai!” “Socorro!” “Belo!” “Não!”

(2002, pg. 192). O que essas palavras exprimem em termos de significação? É

possível construir uma referência imediata? Essas palavras nos remetem a

119 “Sob tal ótica, o que garante o sentido na linguagem são as possibilidade de combinação ou ajuste entre esses ‘corpos-de-significação´subjacentes: se há ajuste, há sentido; na falta de ajuste, há contra-senso. Pois a proposição se define como uma combinação determinada de nomes e a condição de possibilidade de haver, para ela, um sentido depende da possibilidade de combinação dos nomes no plano da estrutura sintática, que, por sua vez, corresponde à possibilidade de combinação dos objetos (Bedeutungskörper) usado por Wittgenstein exprime a equivalência estabelecida pela imagem agostiniana entre significado (Bedeutung) e objeto (Gegenstand)” (FAUSTINO, 1995, pg. 22)

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alguma situação específica? Para ficarmos apenas com a primeira, água pode

significar um pedido do líquido para matar a sede, assim como, em meio a um

incêndio, pode significar a ordem para abertura do hidrante. Pode, ainda,

significar o alívio de um torcedor no “Mineirão” ao perceber que o líquido que

fora lançado pela torcida adversária não era “xixi”. A compreensão e

significação dada a este símbolo exigem um adestramento de uso anterior a

própria utilização.

Imaginemos a figura de um estrangeiro que atraque em terras

tupiniquins durante um intercâmbio. Imaginemos que ele fez um longo curso

sobre a língua portuguesa e que conhece todos os signos gramaticais da nossa

língua. Imaginemos, agora, que, ao chegar à casa da sua família hospedeira,

depara-se com sua “irmã” chorando e, ao perguntá-la o que aconteceu, ela diz

que “levou um bolo” do namorado. Seria factível imaginarmos que o método de

definição ostensiva fosse capaz de dar sentido a esta situação? Teria o

estrangeiro compreendido perfeitamente o que a jovem teria dito? Ou será que

a compreensão dependeria de um ensinamento acerca do uso da proposição

“levar um bolo”?

Nesse sentido, Wittgenstein presta o testemunho que a linguagem

não se encerra em um conceito definitivo e fechado das palavras. A

ostensividade na formação do conhecimento está relacionada a uma forma de

ensino sobre o uso da palavra e não sobre o seu conceito definitivo. Ao

nomearmos determinado objeto, pregamos nele uma etiqueta120 que lhe

identifica e que nos dá a possibilidade de uso121. Entretanto, essa etiqueta

concatena-se especificamente com aquele uso, não fechando ali todas as

120 Ver Wittgenstein, 2002, pg. 181. 121 “A definição ostensiva, na qualidade de uma resposta definitiva à pergunta pela denominação, deveria, para Wittgenstein, ser considerada como um jogo de linguagem peculiar análogo a “pregar uma etiqueta numa coisa”. Enquanto tal, ela poderia, inclusive, ser vista como preparação para o uso de uma palavra. No entanto, ela só poderia elucidar o uso – o significado – de palavra quando já estivesse claro o papel que a palavra deveria desempenhar no jogo de linguagem. [...] Isso quer dizer que a inserção de uma palavra num jogo de linguagem determinado é gramaticalmente prioritária à sua “definição ostensiva”, que, além de insuficiente, pode às vezes se tornar inadequada para ilustrar usos possíveis daquela palavra.” (FAUSTINO, 1995, pg. 16)

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possibilidades significativas da palavra.122 Funciona como se fosse um

preparativo para a utilização.

O etiquetamento, todavia, não significa enclausurar o conceito como

se a única referência possível fosse aquela. Ao revés, é uma a-presentação de

como a palavra pode ser utilizada, fixando um regramento de uso que não

encerra as suas possibilidades significativas. Seria uma explicação de como a

palavra pode ser utilizada naquela circunstância. A palavra “água” ouvida por

um bombeiro não significa a substância química cuja fórmula pode ser

expressa por H2O. Em verdade, água, naquele jogo de linguagem, ganha a

significação de instrumento de combate ao fogo.

O que o autor austríaco apresenta é que a significação não se dá a

partir da definição ostensiva, mas do ensino ostensivo, ou seja, o

aprendizado não se dá sobre o que a palavra significa (como pensava

Agostinho), mas como ela pode ser usada. Cuida-se de uma apresentação de

sentido, de uma explicação anterior de como pode se dar o uso de tal palavra.

O ensino do uso é como se fosse à apresentação de um manual de instruções,

por meio do qual são apresentadas as regras de correção para se utilizar

aquele símbolo.

Dizer que o ensino ostensivo apresenta um regramento acerca do

uso da palavra, adverte-se, não implica em absoluto sustentar ser viável o

fechamento de possibilidades significativas. Cada signo pode ganhar uma nova

instrução de uso e, consequentemente, uma nova significação. Não há se

confundir com uma pretensão de aplicabilidade diversificada do mesmo signo,

dizendo-se que este símbolo pode ser referenciado de mais de uma forma.

Não! O que Wittgenstein sustenta é que o conteúdo significativo

constante do símbolo somente pode ser alcançado por meio da

pragmática, isto é, pelo uso.

Não é factível a pretensão de se decorar todas as possibilidades

referenciais de um signo, pois este sempre apresentará uma abertura de

122 “Quere-se dizer que aprender uma linguagem consiste em dar nomes a objetos, como seres humanos, formas, cores, dores, estados de espírito, números, etc. Como foi dito – dar um nome é algo de semelhante a pregar uma etiqueta numa coisa. Pode chamar-lhe uma preparação para o uso de uma palavra. Mas é uma preparação para quê?” (WITTGENSTEIN, 2002, pg. 192)

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significação expressa por uma nova possibilidade de uso. Ou seja, a noção de

conceito abstrato classificatório ou a de tipo cerrado inexistem, haja vista a

impossibilidade de estabelecer a priori o sentido significativo de uma expressão

linguística, desalojada do seu locus de significação, que é a pragmática. A

sensação de que estamos diante de um signo conceitualmente determinado é

apenas ilusória e decorrente da apreensão das regras de uso aplicáveis em um

jogo de linguagem, o que não significa fechar o conceito e torná-lo insuscetível

de novas significações. Sempre há a possibilidade de mutação significativa

dentro de um mesmo jogo de linguagem, sem falar na quase que necessária

mudança de sentido quando alteramos o jogo. Em síntese, os conceitos ou

tipos não possuem fechamento linguístico, pois o seu sentido será

inexoravemente precário, provisório e firmado apenas no momento do uso, isto

é, na pragmática.

Utilizando da mesma metáfora do nosso autor, imagine o jogo de

xadrez. Não é o fato de sabermos que a peça com um formato específico se

chama “Rei” que nos permitirá jogar. É preciso, antes de tudo, conhecer as

regras de movimentação das peças e, em seguida, conhecer as estratégias de

jogo. Esse conhecimento, pautado na compreensão das regras do jogo

conjuntamente com a habilidade nos usos das peças é que nos permitirá ter

êxito em uma partida. Mais: não há definição/denotação na locução de um

jogo. Um locutor de rádio/televisão jamais poderá traduzir em palavras tudo o

que transcorre diante de seus olhos. Não há um espelhamento...

O que se apresenta é que a linguagem não possui uma relação

referencial imediata, dependendo do conhecimento anterior acerca do seu uso,

o que nos permite dizer que a significação dependerá das circunstâncias e das

pessoas envolvidas. O sentido de uma palavra se dá diante do seu uso, e não

mediante uma tradução mental do seu conceito.123 O mesmo signo (rei) com o

mesmo formato pode ganhar uma significação diferente se alterarmos as

regras de uso. Não estaríamos mais no xadrez, mas em outro jogo de tabuleiro.

123 “Poder-se-ia dizer: a definição ostensiva explica o uso – o sentido – da palavra quando já se torna claro que papel a palavra tem de desempenhar na linguagem. Assim, se eu sei que uma pessoa me quer explicar o nome de uma cor, então a explicação ostensiva <<isto se chama <<sépia>> ajudar-me-á a compreender a palavra.” (Wittgenstein, 2002, pg 195)

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A peça é a mesma, mas a sua significação mudou, pois o jogo de linguagem124

no qual está inserida também se alterou125.

As regras de uso no jogo de linguagem só são definidas na

execução do próprio jogo, isto é, jogando. O ensino ostensivo é um ponto de

partida, não de chegada. O adestramento no uso de um signo não

consubstancia em ficar preso àquela significação, sendo possível que as regras

sejam alteradas no decorrer do jogo.126 Dizer, portanto, que o ensino ostensivo

nos apresenta uma possibilidade de uso da linguagem não simboliza que

estamos acorrentados a este uso, mostrando-se plausível que alteremos a

significação linguística após a apresentação das regras do seu uso.

124 As vozes esquizofrênicas continuam a me perturbar. Agora posso ouvir os reclames do leitor que indaga sobre “o que é esse tal jogo de linguagem”. Impossível tal pretensão definidora do que é o jogo de linguagem. Dar uma finitude conceitual a esta combinação linguística iria de encontro às pretensões wittgensteinianas. Contudo, pelo compromisso responsável com o leitor, dou-lhe a mão. Não para conduzi-lo pelo meu caminho, mas para que, ao observar as migalhas deixadas no chão, faça o seu próprio. Assim sendo, nessa estrada sem caminho, deixo como “placas” às falas do próprio autor austríaco e o testemunho formulado por MORENO (2000). Com efeito, Wittgenstein afirma que “Na prática do uso da linguagem (2) um dos participantes pronuncia as palavras, o outro actua de acordo com estas; mas durante o ensino da linguagem encontrar-se-á o seguinte processo: o aprendiz nomeia os objectos, i.e, pronuncia a palavra quando o professor mostra a pedra. – De facto, encontrar-se-á um exercício ainda mais fácil: o aluno repete a palavra que o professor pronuncia – ambos os processos são semelhantes a processos linguísticos. Também podemos conceber que todo o processo do uso de palavras em (2) seja um daqueles jogos por meio dos quais as crianças aprendem a língua natal. A estes jogos quero chamar jogos de linguagem e falarei por vezes de uma linguagem primitiva como sendo um jogo de linguagem. E poder-se-ia chamar aos processos de nomear as pedras e repetir as palavras também jogos de linguagem. Pensa no uso que se faz de palavras em jogos de roda. Chamarei também ao todo formado pela linguagem com as actividades com as quais ela está entrelaçada o <<jogo de linguagem>>” (WITTGENSTEIN, 2002, pg. 177). Ainda valem as palavras de MORENO (2000, p.55), “Procura salientar, com a palavra ‘jogo’, a importância da praxis da linguagem, isto é, procura colocar em evidência, a título de elemento <constitutivo>, a multiplicidade de atividades nas quais se insere a linguagem; concomitantemente, essa expressão salienta o elemento essencialmente dinâmico da linguagem – por oposição, como vemos, à forma lógica.” 125 “O ensino ostensivo, diferentemente da definição ostensiva, permite a Wittgenstein dizer que a compreensão da palavra apenas se efetiva junto com uma lição ou instrução determinada (mit einem bestimmtem Unterricht – PU, §6º) Apenas desse ponto de vista torna-se possível dizer que, acompanhado de uma outra instrução, isto é, acompanhado de uma outra regra de uso, o mesmo ensino ostensivo produziria ou efetivaria uma compreensão inteiramente diferente de uma mesma palavra.” (FAUSTINO, 1995, pg.17) 126 “Não lança a analogia entre a linguagem e o jogo uma luz sobre a nossa questão? Podemos muito bem conceber pessoas que se divertem num prado a jogar com uma bola, que começam a jogar alguns jogos conhecidos, jogam outros sem os acabar, entre uns e outros atiram distraidamente a bola ao ar, correm com a bola uns atrás dos outros, etc. E uma pessoa agora diria: durante todo esse tempo as pessoas no prado jogavam um jogo de bola, e em cada lance guiava-se por determinadas regras. E não há também o caso em jogamos e - <<make up the rules as we go along [fazer as regras a medida que se joga]>>? E há também aquele em que mudamos - <<as we go along (a medida que se joga)>>.” (WITTGENSTEIN, 2002)

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Com efeito, o que fica latente é que o segundo Wittgenstein gira a

centralidade do debate para o uso (Gebrauch) enquanto significação, ao invés

de uma conceituação referencial de espelhamento da linguagem. Os signos

não refletem a essência do que um objeto é, mas apresentam uma

possibilidade de uso explicada por um ensinamento ostensivo. A significação

ontológica é como um labirinto, pois acreditamos sempre estar perto do ponto

de chegada que, simplesmente, não há.127 Inexiste uma norma jurídica que

descreva com claridade e univocidade o comportamento hipotético humano

como correspondência biunívoca da realidade com o significado. Não há uma

conceituação fechada, pois a significação sempre depende do jogo de

linguagem no qual os falantes estão inseridos, o que colocaria em xeque as

concepções da tipicidade fechada ou de conceitos abstratos.

Seguindo o mesmo trilhar, não é palatável conceber que o

pensamento tipológico contempla as observações do filósofo austríaco. A

abertura proposta para o tipo seria definida no momento constitutivo da

proposição, ou seja, desolada da pragmática. Ainda estamos diante da

definição ostensiva, ou seja, de um modo de pensar que acredita em

significados permanentes. A tipicidade seria aberta por escolha do legislador e

não pelo reconhecimento de que está na pragmática o locus significativo de

qualquer proposição. A abertura proposta não passa de utilização das flexões

sintáxicas e semânticas da gramática, estando ainda presa em uma lógica de

significação a priori. O significado seria perceptível fora do seu uso, contendo

contornos significativos conhecíveis por uma racionalidade pura. Não conheço

a totalidade das hipóteses previstas no tipo, mas, quando me deparar com uma

situação fática, a correspondência será imediata e inexorável.

Retomando o pensamento wittgensteiniano, HINTIKKA (1994, pg.

252) observa que a definição ostensiva é substituída pelos jogos de linguagem

na construção de um conceito que traduza a relação linguagem-mundo. A

127 “As Investigações ensinam-nos que, ao colocarem questões do tipo “o que é o conhecimento? ” ou “ o que é a linguagem?”, os filósofos apenas estão procurando fantasmas se pretendem encontrar uma essência ou algum tipo de fundamentação ontológica invariável do conhecimento ou da linguagem. Na realidade, como disse, ao filósofo não cabe fazer perguntas por essências metafísicas do tipo “o que é...?”, mas cabe a ele analisar como são usadas tais expressões (conhecimento, linguagem, etc.) nos diversos contextos linguísticos em que aparecem.” (CONDÉ, 1998, pg.90)

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significação não encontra morada em uma situação representacional, como

espelhamento de uma realidade. Como anota BOLTON (1979), o conceito

somente ganha concretude quando utilizado nas atividades humanas128, ou

seja, quando aplicado em um caso concreto, estando presente o elemento da

pragmática linguística. O que se pode dizer é que a mudança do

posicionamento de Wittgenstein aponta para a inexistência de um

encaixotamento capaz de identificar a priori uma definição conceitual. O

conceito é provisoriamente definido durante a sua utilização e o seu sentido se

revela sempre precário e decorrente do jogo de linguagem.129

Essa perspectiva é apresentada por CRUZ (2011, p. 96) como um

deslocamento da noção de um know that para um know how. Enquanto no

know that eu tenho um conhecer essencialista, que petrifica o conceito numa

visão da linguagem enquanto espelhamento do mundo, o know how indica um

“conhecer o uso”, que traz precariedade conceitual. O adestramento não é

sobre o que determinada palavra significa, mas qual o sentido que ela possui

quando empregada em um jogo de linguagem específico. Isso simboliza uma

mutação significativa que toda palavra pode ter quando alterado o seu centro

de gravitação conceitual.

Caminhando pelas construções jurídicas, pode-se visualizar como

um mesmo signo pode conter uma multiplicidade infinita de significações. A

legalidade no direito brasileiro, quando aplicado em um contexto de liberdade

política, terá ordinariamente a sua conceituação balizada na máxima de que a

abstenção da prática de uma conduta somente pode se exigir quando da

existência de uma norma proibitiva. Por outro lado, se visto enquanto

128 “Language has meaning because men use it in their activities, therefore not because it reflects objects or states of affairs which are given independently (absolutely, unconditionally). << a linguagem ganha significação porque os homens a usa em suas atividades e não porque reflete objetos ou estados de coisas que são dadas de forma independente (absolutamente, incondicionalmente)” (BOLTON, 1979, pg. 116/117) 129 Importante a lição trazida por CRUZ (2011, p. 92) de que “ Wittgenstein percebe a impossibilidade de a semântica denotativa dar conta de tal desafio, percebendo que a formação de sentidos, referências e significados são uma possibilidade, ou seja, estão abertos à construção e à reconstrução permanentes, expostos permanentemente ao risco dialético do entendimento sobre o sentido proposto ou não, ou seja, da compreensão ou da incompreensão. Assim, se seu Tractatus lógico-philosophicus parte de uma análise semântica da linguagem, suas Investigações Filosóficas trazem como elemento central a percepção de que os significados somente podem ser percebidos pelo outro em um contexto de uso da linguagem.”

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86

estandarte normativo aplicável a Administração Pública, o sentido empregado

possivelmente seria o de delimitação comportamental em razão da existência

de norma que imprime quais as condutas podem ser praticadas pelos agentes

do estado130. Ainda, no direito sancionador, a legalidade pode ser

compreendida como uma aplicação do brocardo latino “nulla crimen nulla

poena sina praevia lege”. Além destas, a legalidade pode alcançar N

significações, dependendo do deslocamento do jogo de linguagem. Seria,

então, possível compreender a sua significação desalojada do seu emprego

pragmático? Acreditamos que não. As significações apresentadas do termo

dependeriam da aplicação prática para que se possa visualizar qual o sentido

do seu emprego.

Em outras palavras, quando dizemos no âmbito de um processo

administrativo sancionador que há a violação ao princípio da legalidade, a

autoridade administrativa não busca em uma caixa conceitual o que é a

legalidade para, em seguida, alocá-la mentalmente na sua decisão. É preciso

que, diante do caso concreto e com o adestramento a que passou, interprete

as alegações, tomando como base o jogo de linguagem apresentado. O caso

concreto funciona como um horizonte de possibilidade significativa, por meio do

qual se consegue construir o conceito que será aplicável estritamente para

aquele caso, com base nas circunstâncias e nos indivíduos envolvidos. O jogo

de linguagem mostra-se como um parâmetro131, não como solução indefectível.

130 Ciente de que esta assertiva poderia levantar a dúvida de que este trabalho estaria apresentando informações contraditórias (como assim norma que traz delimitação comportamental? O conceito não é sempre a posteriori? Não seria contrário aos postulados aqui defendidos dizer que uma norma define um comportamento da Administração Pública?), vale dizer que não estamos defendendo a possibilidade de uma norma trazer de forma completa o comportamento exigível da Administração Pública. A essa norma, enquanto construção linguística, sempre caberá uma interpretação que dará o sentido precário àquele texto, decorrente das circunstâncias e dos sujeitos envolvidos. Não! Definitivamente não estamos açambarcando a ideia de que o Princípio da Legalidade traz insitamente e a priori a possibilidade de fixar ontologicamente os limites de atuação da Administração Pública. Perquirimos um testemunho de que o ensinamento ostensivo de tal constructo jurídico nos conduz a um utilizar não mecanizado de tal perspectiva. Trata-se de um ponto de partida, que não especifica o porto seguro que obrigatoriamente teríamos que chegar. Cuida-se da visão de que, usualmente, o signo “legalidade” quando utilizado no jogo de linguagem do Direito Administrativo, recebe tal conotação. 131 “Um jogo de linguagem é um modo de apresentar um paradigma, um critério, uma mesmidade a ser contraposta à diveridade e multiplicidade dos vários empregos e funcionamentos das palavras. Sob este aspecto, cumpre função parecida com aquela da proposição no Tractatus, modelo em relação ao qual o fato se comporta e que tem nesse próprio fato seu objeto de comparação. Mas esse objeto de comparação é fragmento de

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Rechaçamos, mais uma vez, a viabilidade de compreensão a prioiri

dos termos linguísticos empregados, pois, por mais que se possam identificar

os contornos genéricos da legalidade em razão do seu ensino ostensivo,

ocorrendo o giro do jogo de linguagem, o modus de apresentação conceitual

também é deslocado, fazendo-se emergir um novo conceito. Ainda que a

legalidade em um âmbito sancionador tenha como parâmetro “nulla poena sina

praevia lege”, a sua concepção será diferenciada quando alterado o sistema

jurídico. A legalidade aplicada no direito brasileiro não será a mesma que no

direito dos demais países da América Latina132 ou dos Estados Unidos da

América, por exemplo. As circunstâncias jurídicas, sociais, políticas, individuais,

dentre outras de cada país permitirá a construção de um conceito (precário,

frise-se) aplicável apenas no âmbito daquele caso concreto.

Além disso, devemos recordar que o conceito empreendido em um

jogo de linguagem, por não espelhar uma realidade, possui a capacidade de

sofrer mutações significativas, sendo que o know how não implica fixar regras

imutáveis sobre o uso. Apenas a título de exemplo e de forma perfunctória,

podemos citar a Portaria 513/2010 do Ministério da Previdência Social, que

reconheceu a plausibilidade de pagamento da pensão previdenciária a

companheiro do mesmo gênero. Por meio deste ato normativo a Administração

Pública provocou uma alteração no conceito de união estável que vinha sendo

empregada como um instituto aplicável apenas para pessoas de gênero

oposto. Note-se que a mudança interpretativa conceitual se deu

independentemente da alteração sintáxica do termo, mas em razão da

alteração das circunstâncias que lhe davam aquela determinada conotação.

Houve uma mudança no modo de apresentação do termo, ou seja, dos critérios

de uso no seu jogo de linguagem.

Com uma abordagem salutar, GIANNOTTI (1995, pg. 66) chama-nos

a atenção de que a comunicação não exige um seguir metodológico das regras

de uso. Ao revés, o jogo de linguagem não esgota o fato linguístico. Os jogos

se apresentam como um modelo rudimentar e primitivo do fato linguístico, que

linguagem, arquipélago de frases e atividades pertinentes, que vem mostrar como devem funcionar nossos conceitos na linguagem cotidiana.” (GIANNOTTI, 1995, pg. 66) 132 Sugerimos a leitura do Relatório da Fundação “Due Processo of Law Foundation” intitulado “Digest of Latin American Jurisprudence on International Crimes”, de 2010.

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se mostra mais dinâmico e complexo diante da faticidade. Trata-se de um

modo de apresentação que não se esgota em si mesmo e que, por isso,

permite a sua transformação. Daí a sempre precariedade do conceito, definível

apenas no campo da concretude fática.

Os jogos de linguagem são múltiplos e diversificados na mesma

dimensão da complexidade das relações humanas. Uma palavra conterá

infinitas possibilidades significativas ocorrentes em incontáveis situações. Em

cada uma estaremos diante de um regramento de uso específico, fazendo

surgir um novo conceito durante o utilizar. A sentença proposicional não

condiciona a interpretação.

Vale destacar, entretanto, que é possível identificar certa

semelhança entre os jogos de linguagem. Por mais que a legalidade no direito

brasileiro não seja a mesma do direito americano, por exemplo, há uma

similaridade que pode facilitar o trânsito na compreensão significativa. Essa

proximidade aparente vai ser denominada por Wittgenstein como

semelhanças de família133.

Por meio da ideia de semelhanças de família, Wittgenstein afasta a

pretensão ontologizante da linguagem, afirmando que aquilo que nos permite

identificar a proximidade linguística nada mais é que a similaridade entre os

133 “É aqui que encontramos a grande questão que se oculta por trás de todas estas considerações. – Poder-se-ia objectar-me: << Simplificas demais>>! Falas de todos os jogos de linguagem possíveis e imagináveis, mas nunca chegaste a dizer qual é a essência do jogo de linguagem e assim da linguagem. O que é comum a todos estes processos e que os torna em linguagem ou em partes da linguagem. Assim ofereces-te simplesmente a parte da investigação que em tempos te deu as maiores dores de cabeça nomeadamente a que diz respeito à forma geral da proposição e da linguagem. E é verdade. – Em vez de especificar o que é comum a tudo aquilo a que chamamos linguagem, eu afirmo que todos estes fenômenos nada têm em comum, em virtude do qual nós utilizemos a mesma palavra para todos – mas antes que todos eles são aparentados entre si de muitas maneiras. E por causa deste parentesco ou destes parentescos chamamos a todos <<linguagem>>. Quero tentar esclarecer isto. Considera, por exemplo, os processos aos quais chamamos <<jogos>>. Quero com isto dizer os jogos de tabuleiro, os jogos de cartas, os jogos de bola, os jogos de combate, etc. O que é que é comum a todos eles? Não respondas: << Tem de haver alguma coisa em comum, senão não se chamariam jogos>> - mas olha, para ver se têm alguma coisa em comum. – Porque, quando olhares para eles não verás de facto o que todos têm em comum, mas verás parecenças, parentesco, e em grande quantidade. [...] E o resultado desta investigação é o seguinte: vemos uma rede complicada de parecenças que se cruzam e sobrepõem umas às outras. Parecenças de conjunto e de pormenor. Não consigo caracterizar melhor estas parecenças do que com a expressão <<parecenças de família>>; porque as diversas parecenças entre os membros de uma família, constituição, traços faciais, cor dos olhos, andar, temperamento, etc, sobrepõem-se e cruzam-se da mesma maneira. . – E eu direi: os jogos constituem uma família.” (WITTGENSTEIN, 2002, pg. 227/229)

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jogos de linguagem. Não há algo comum que identifique a natureza dos signos

linguísticos, mas semelhanças que os aproximam. Tomando o exemplo dado

por BOLTON (1979, pg. 118), o termo “cadeira” pode significar um objeto

estofado, com rodas, de couro, de tecido, fixa, de escritório, de leitura, etc. A

significação do termo se dá no caso concreto, quando se identifica qual o

objeto está-se apresentando. Entretanto, essas múltiplas possibilidades

significativas encontram semelhanças que permitirão um agir mais adequado.

Essa parecença pode ser em maior ou menor grau, pois, quando

falamos, por exemplo, “Álvaro é o titular da cadeira de direitos humanos”, há

um maior afastamento do jogo de linguagem em que se apresentou a

expressão “cadeira” como objeto. Do mesmo modo, quando um dos ritmos

musicais dos anos 90 exclamava “mexe a cadeira!”, o signo “cadeira” impõe um

afastamento de parentesco com o signo “cadeira” inicialmente proposto, pois

há uma menor similaridade entre os jogos de linguagem.

No caso do direito, o jogo de linguagem vai apresentar maior ou

menor similitude dependendo da área de concentração. No contexto de uma

gramática ocidental de inspiração liberal, o Direito Tributário é sensivelmente

mais próximo do Direito Penal, por garantir “bens” e “valores” de percepção

mais sagrada por essas sociedades. De outro lado, o Direito Tributário teria um

parentesco mais distante do Direito do Consumidor, por exemplo, eis que a

impositividade do tributo marcaria uma “violência” maior que as sanções

consumeristas. Cada um dos ramos do direito apresenta um jogo de linguagem

próprio, que se aproxima mais ou menos de outro. Essa similaridade, contudo,

não pode ser visualizada com distanciamento da realidade, como se fosse um

parentesco definido a priori. O olhar inicial sobre o ramo que nos permite fazer

essa aproximação defluiu do adestramento a que fomos submetidos durante o

aprendizado de uso da linguagem no direito. Essa percepção inicial pode,

porém, ser modificada no caso concreto. A pretensão punitiva pelo

descumprimento de normas expostas no Direito do Consumidor pode ganhar

uma aproximação com o Direito Administrativo e com o Direito Penal, por

exemplo. Quando eu sanciono um fornecedor, aplicando-lhe uma multa, a

natureza ontológica de norma consumerista se esfacela e ganha novos

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90

contornos134, com novas necessidades de significações. A leitura dos signos

jurídicos deve ganhar interpretações de norma punitiva, decorrente dos atos de

sanção do estado e não de norma que regulamenta as relações comerciais

entre pessoas privadas. A própria semelhança de família dos jogos de

linguagem não possui uma rigidez de know that, mas a fluidez de um know

how.

As normas jurídicas não estão emolduradas em um conjunto de

significações definidas por um jogo de linguagem. As significações são

apresentadas a partir do regramento de uso em que ela se alicerça, podendo,

porém, transitar por outros jogos e, inclusive, transformá-los. O nosso esforço

com isso é de apresentar a ideia que a interpretação da norma jurídica inicia-se

pelas crenças e valores apreendidos no aprendizado da própria norma e pelo

jogo de linguagem em que ela se apresenta, em cada gramática profunda que

nos colocamos. Isso, todavia, não encerra e nem condiciona a sua

possibilidade significativa que, diante de um caso concreto, poderá receber

novos sentidos. O legislador não define a aplicação da norma jurídica por meio

de uma linguagem clara e unívoca, mas apresenta uma asserção dentro de um

jogo de linguagem que lhe é próprio, que criará mais de uma possibilidade de

uso. Uma possibilidade pode se tornar reiterativa, dominante, mas jamais será

totalizante, absoluta, universal e eterna. As mutações jurisprudenciais e

acadêmicas de diversos institutos jurídicos atestam a visão de Wittgenstein.

Em outras palavras, em um jogo de linguagem de universalização de

hipóteses comportamentais, o legislador apresenta uma proposição travestida

de norma jurídica. O intérprete, por sua vez, transitando pelos jogos específicos

do direito - que lhe deram a condição identificar modos de uso dessa norma-

diante de um caso concreto, construirá o sentido daquela norma que será

exclusivo àquele caso.

134 Talvez as construções aqui propostas estejam contaminadas por com-pre-ensões fenomenológicas. Não posso dizer que a trasnconstrução aqui empreendida tenha tomado como parâmetro exclusivamente os dizeres de Wittgenstein. Não! Sinto um pouco de Heidegger, de Álvaro Ricardo e até da minha mão nesses dizeres. Não estou sendo fidedigno com o pensamento do austríaco florista, eu sei! Mas, teria como sê-lo? Teria eu condições de exprimir objetivamente o que Wittgesntein pensou? Se tivesse (ou se tiver), teria que, objetiva e racionalmente, rasgar todo esse escrito.

Page 92: DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

91

Ao fixar o tipo “matar alguém”, o legislador apresenta uma asserção

dentro do seu jogo de linguagem, pretendendo universalizar o comportamento

humano que ele pretende tornar ilícito. Por sua vez, ao lhe ser apresentadas as

circunstâncias causais em que uma vida foi ceifada, o intérprete conduzirá135 a

fixação do sentido da norma, de modo a identificar se, no caso concreto, há a

aplicabilidade das sanções previstas na norma punitiva. Não se trata de um

método subsuntivo – tal qual preconiza a Escola da Exegese -, pois o sentido

da norma será construído exclusivamente no caso concreto, sem negar,

obviamente, a influência do ensino ostensivo que permeou o emprego do signo

linguístico normativo.

O exemplo do “matar alguém” é bem emblemático, pois, em uma

passagem superficial e com base nos pressupostos que pretendemos atacar

neste trabalho, poderíamos dizer que se trata de uma norma jurídica carente de

interpretação, cujo conteúdo encontra-se finalizado em seu próprio texto. Afinal,

“matar alguém” é retirar de um indivíduo o direito de viver. Não seria simples

assim? Entregamos para a ciência biológica o dever de definir o que é vida e,

em seguida, a única interpretação possível seria a de que, caso haja a prática

de um ato que culmine no encerramento daquela condição descrita pela

ciência, restaria imperiosa a subsunção fato/norma, incidindo o “matar alguém”,

ressalvada a aplicação de uma hipótese excludente criada pelo próprio direito.

Correto? Cremos que não!

Basta olhar para a contemporaneidade e visualizar a influência que

diversos temas - como as células-tronco, os embriões, a genética, os

transplantes, enfim, a biotecnologia – terá na adoção de um novo sentido para

o signo vida. Afinal, há dois séculos, matar um escravo não seria visto como

homicídio. E, no futuro, caso os cientistas fizessem e matassem um clone

humano, estaríamos diante de um homicídio? Existiria um significado dado a

priori ao intérprete para solucionar essa demanda fictícia? Ridley Scott anteviu

esse debate na direção do filme Blade Runner ao questionar a significação dos

“replicantes” como objetos a serem usados pelos homens e que poderiam ser

135 Conforme tentaremos mais a frente defender, a decisão judicial não se dá de forma solipsista, por uma construção egocêntrica do magistrado. Ao revés, o magistrado é apenas o responsável dirigente, que auxiliará e participará na construção do provimento jurisdicional.

Page 93: DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

92

“aposentados” pelos “Caçadores de Andróides”. Haveria apenas um sentido

para a expressão “ser humano”?

Para não ser acusado de roteirista de ficção científica, vale citar o

exemplo trabalhado por Streck136 (2008, pg. 170), ao mencionar que, após o

primeiro transplante de coração ocorrido na Argentina, foi deflagrado um

processo criminal por homicídio em face dos médicos envolvidos. O signo vida

era usado como a manutenção da capacidade respiratória, sendo que, para o

transplante, é preciso que o paciente ainda esteja com órgãos funcionando,

permitindo que o corpo “respire”. Esse novo influxo significativo permitiu a

mutação conceitual de vida enquanto manutenção das capacidades cerebrais,

passando a ser este o paradigma de uso utilizado. Nada obsta, contudo, que

novos influxos decorrentes de outras circunstâncias e outros sujeitos permitam

o emprego de sentido diverso, garantindo a fluidez da significação linguística

no tipo normativo.

Com efeito, seguindo as migalhas deixadas por CONDÉ (2004),

percebemos que a filosofia wittgensteniana rompe com a lógica totalizante

vigente no pensamento moderno137, que viabiliza a falaciosa pretensão

universalizante da linguagem, que se dizia capaz de encontrar uma significação

universal, aplicável a todos os casos de forma indistinta138. Não é possível

fechar conceitualmente e de forma totalizante a significação do tipo homicídio,

pois a realidade é aberta, constituída por uma multiplicidade de relações que

não se encerram.

A linguagem não é constituída por uma essência constatável pela

racionalidade objetiva humana. Não existe uma linguagem lógica perfeita, pois

136 Trabalhamos o exemplo, não o pensamento de Streck. 137 Vale destacar que, conforme afirma CONDÉ (2004), Wittgenstein não construiu uma Teoria da Ciência, de modo que o comparativo aqui proposto figura como um testemunho de Condé sobre os escritos do segundo Wittgenstein. 138 “Diferentemente da racionalidade científica moderna – totalizante – , essa nova noção de racionalidade não se constitui a partir de uma ordem a priori e hierárquica, contrariamente, ela é vista como uma “teia”, uma rede multidirecional flexível que se estende através de Semelhanças de família (I. F. §§ 67, 77, 108). Não é totalizante porque, além de não possuir fundamentos últimos, não pretende fornecer “a” inteligibilidade total e completa do mundo, como se todas as visões de mundo devessem convergir. Entretanto, é holista porque apresenta uma dimensão panorâmica (Übersichtlichkeit) constituindo um tipo de sistema aberto e descentralizado no qual a racionalidade não está assentada em nenhum lugar privilegiado, mas se configura a partir das múltiplas relações no interior do sistema. E, embora constitua um sistema autônomo, não se fecha no relativismo extremo na medida em que está aberto a outros sistemas.” (CONDÉ, 2004, pg. 04)

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93

as circunstâncias do mundo sempre nos colocam em panoramas linguísticos

diferentes que, assim como o próprio homem, estão longe da perfeição

unidimensional. A linguagem de Wittgenstein é mais que uma gramática de

superfície, composta pela sintaxe e pela semântica. Deve ser visualizada como

uma gramática profunda139, um produto da práxis social, um conjunto de

regramentos que apresentam as possibilidades de uso, mas que não encerram

tais possibilidades, podendo as regras ser alteradas ou ampliadas.

A pragmática passa a ser o locus de formação do sentido de uma

expressão linguística, tornando-se elemento imprescindível na formação do

conceito. O significado não pode ser alcançado senão no seu uso, na

cotidianidade e na faticidade das relações humanas. Os sujeitos de um ato

comunicacional apresentam o sentido no momento da utilização da palavra,

consoante as circunstâncias causais presentes.

A pragmática, enquanto elemento da linguística enterrou as

pretensões isomórficas linguagem/mundo e a busca por uma linguagem lógica

perfeita e matematizada, que figura como produto de uma racionalidade

objetiva capaz de construir expressões cuja claridade conceitual torna

injustificadas as ações hermenêuticas do homem. A pragmática frustra a ilusão

de domínio que o homem tem sobre a linguagem. Uma palavra não tem sentido

senão quando utilizada na prática cotidiana do homem, mostrando-se

dependente do ambiente em que é proferida e a forma de recepção por parte

do interlocutor.

Wittgenstein revelou a falibilidade significativa da linguagem, que se

mostra incapaz de construir um conceito a priori claro e perfeito. A linguagem

não descreve um mundo, mas o apresenta e o faz pelo horizonte circundante

dos que participam do ato comunicacional. Não tem a linguagem a função

simplesmente descritiva. Fugindo dos dizeres do austríaco e caminhando para

139 “Nas Investigações, Wittgenstein distinguirá dois níveis da gramática. A gramática de superfície (oberflachengrammatik) e a gramática profunda (Tiefengrammatik) (I. F. § 664). A gramática de superfície trata das características evidentes das expressões, sem levar em consideração o contexto gramatical global em que tais expressões são geradas, contrariamente à gramática profunda (gramática panorâmica)6, isto é, a gramática na qual se engendram as regras de uso da linguagem, no interior da qual se opera, à semelhança de um jogo, a produção de diversas expressões lingüísticas e, por conseqüência, a constituição da racionalidade. Assim, a gramática profunda leva em consideração não apenas os aspectos peculiares de um dado jogo de linguagem, mas tudo o que está envolvido na práxis da linguagem como, usos, produção de regras, etc.” (CONDÉ, 2004, pg. 07)

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a Inglaterra, podemos dizer que a linguagem não tem uma dimensão

puramente constativa, incrustada em uma relação sujeito-objeto. Como

apresentado por John Austin, à linguagem possui aquilo que excede ao próprio

texto, aquilo que é performativo. Dizer algo não é descrever, mas agir.

Sem a menor pretensão de reconstruir o pensamento do filósofo

britânico, relembramos os ensinamentos de CRUZ (2011) que, em seu

testemunho a Austin, assevera que a fala, mais do que apresentar uma ideia,

apresenta um agir, uma ação humana. Assim, o filósofo britânico sustentaria a

existência de três elementos no ato da fala e que são responsáveis pela

produção do sentido.

A linguagem seria, então, composta por um ato locucionário, um ato

ilocucionário e outro ato perlocucionário. O ato locucionário seria a

construção sonora e gramatical da expressão linguística, tratando-se da

conjunção dos elementos da sintaxe e da semântica. Nas palavras de GOMES

(2008, pg. 140), é a “proposição anunciada”, aquilo que formalmente está

sendo dito.

Por sua vez, o ato ilocucionário seria o agir que se encontra por

detrás de um símbolo. Seria o sentido dado à expressão linguística,

apresentando o agir que não está contido nos elementos sintáxicos ou

semânticos da proposição. Um “sim”, mais do que uma resposta afirmativa,

pode simbolizar o aceite de um noivo na formalização de uma união ou um

simples posicionar de um garçom, que diz o “sim” como se fosse um “estou à

disposição”. O ato ilocucionário é a mensagem que se pretende transmitir com

a ação comunicativa. Tomando o exemplo dado por OTTONI (2002), quando

digo “prometo”, o ato ilocucionário é a realização de uma promessa, ou seja, o

agir humano presente na minha fala.

O ato perlocucionário estaria relacionado à receptividade da

mensagem transmitida no ato da fala. O enfoque é o interlocutor, que

descriptografa a ação comunicativa empreendida, sendo um partícipe ativo na

construção do sentido. No exemplo anterior, o “sim” recebido por uma noiva no

altar de uma igreja possivelmente terá a conotação da mais esperada

declaração de amor que ela sonhara ouvir. No caso do cliente no restaurante, o

“sim” do garçom, geralmente, não terá a mesma mensagem recepcionada pela

Page 96: DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

95

noiva. Este “sim” será provavelmente recebido como um bom atendimento

ofertado ao cliente.

A dimensão perlocucionária escancara a intersubjetividade na

construção do sentido conceitual, que não pode se dar (ou não se dá) de forma

solipsista, como fruto de uma razão pura. Além disso, apresenta a ideia de que

uma mensagem não será recebida da mesma forma, pois as circunstâncias e

os interlocutores serão sempre diferentes.

Ainda que os interlocutores sejam os mesmos, eles serão diferentes.

Indo além do que Austin disse, a infinição impede que o experimento seja

repetido. Os mesmos nubentes não seriam capazes de apresentar um mesmo

sentido, em um mesmo lugar, para uma mesma frase. O amor já não é mais o

mesmo, pode ser mais forte, mais fraco ou apenas diferente, mas não será o

mesmo. Assim, o sentido experimentado em cada construção conceitual não se

revigora nem se repete. Pode se repetir os símbolos, jamais o sentido. Este

pode ter similaridades, mas nunca igualdade.

CRUZ (2011), em leitura da obra de Brandom, adverte que as

dimensões da fala devem ser vislumbradas de forma holística, mostrando-se

indissociáveis os atos locucionário, ilocucionário e perlocucionário. A ação

comunicativa é empreendida como um todo, sendo que a separação de tais

dimensões somente pode ser feita em caráter de apresentação teórica. O

professor mineiro, ao discorrer sobre a percepção holística das dimensões da

linguagem, afirma que “somente assim, será possível a discursividade humana,

que exige para a sua explicitação tanto a predicação quanto a

intersubjetividade contextual” (CRUZ, 2011, pg. 102).

A clareira acendida pela pragmática apresenta uma visão de que a

linguagem transborda a significação textual trazida pelos signos, mostrando o

conceito como dependente de um pano de fundo que o circunda. Mais do que

texto, a significação conceitual é formada por um contexto140, que apresenta

uma das múltiplas possibilidades significativas da proposição. O sentido de um

termo linguístico é um emaranhado de percepções, apreensões e

140 Válida a fala de GOMES (2008, pg. 141), para quem “Destarte, não apenas o texto se torna importante, mas também o contexto em que a afirmativa se insere passa a ser relevante para a sua compreensão, pois, afinal de contas, mudando-se aquele, altera-se o sentido da afirmação feita.”

Page 97: DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

96

compreensões que os interlocutores possuem e apresentam na forma de

linguagem.

Com efeito, estas “com-pre-ensões”, formam a primeira base da

nossa construção científica. Não podemos falar em tipicidade cerrada ou

conceito abstrato enquanto proposição logicamente perfeita, que traduz uma

hipótese clara e de fácil (ou nenhuma) interpretação, pois as significações

conceituais não podem estar deslocadas da pragmática e, portanto, não trazem

nem a universalidade nem a perenidade pretendida por uma noção isomórfica

de linguagem/mundo. O conceito não existe senão na provisoriedade do jogo

de linguagem a que está inserido.

Tampouco podemos dizer que há uma proposição cujos elementos

gramaticais permitem uma abertura axiológica que permitirá a fluidez do

sentido, como querem os defensores do pensamento tipológico. A im-

possibilidade de significação não é uma escolha, mas efetiva condição de

possibilidade de qualquer estrutura gramatical. A linguagem não espelha o

mundo e nem possui caráter meramente representativo da realidade. Dessa

forma, não há sentido deslocado do seu local de utilização ou sem a efetiva

participação dos interlocutores. O sentido significativo, além de precário e

provisório, somente pode ser constituído intersubjetivamente e no âmbito da

pragmática. A previsibilidade e a segurança jurídica, portanto, não podem ser

confundidas com exatidão lógico-gramatical ou com correspondência biunívoca

da proposição com a realidade fática.

O pilar construído, contudo, não encerra a nossa busca científica. A

resposta que inexiste um conceito formado a priori não nos satisfaz. É preciso

ir além. É preciso compreender a com-pre-ensão (se assim possível for). É

preciso mudar o rumo da nossa embarcação e navegar no rumo daquele que

nos promete desvelar o entendimento. O caminhar poderia se dar na mesma

trajetória, ou seja, na Filosofia Analítica contemporânea ou até mesmo no

Pragmatismo Filosófico. Contudo, optamos por ir um pouco mais além,

tentando “com-pre-ender” os fenômenos da “conceitualidade” e da tipicidade

por um ângulo “diferAnte”. E, para tanto, vamos em direção da Fenomenologia

de Heidegger.

Page 98: DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

97

CAPÍTULO IV – A ANALÍTICA EXISTENCIAL E A

FENOMENOLOGIA DE HEIDEGGER

Por que Heidegger? Se a pretensão da pesquisa era atestar a

fragilidade dos pressupostos científicos trabalhados na noção de tipicidade não

teria sido cumprido o seu papel? Afinal, Wittgenstein desvelou a ideia de que a

compreensão significativa depende do jogo de linguagem, que será o locus de

construção do sentido próprio para o termo linguístico naquele caso específico.

Qual seria a razão de dar continuidade filosófica a este trabalho?

Certa vez, durante banca de defesa de doutorado de um amigo, o

professor avaliador criticou o doutorando ao afirmar que, na atualidade, todos

resolveram adotar um pensador alemão como se fosse um bichinho de

estimação. Seria essa a razão de buscarmos em Heidegger o fundamento da

nossa pesquisa? Teimo em afirmar que, naquilo que a minha racionalidade

míope consegue alcançar, não se trata de mero fetiche com a filosofia alemã.

Não consubstancia em um prostrar-se diante de uma epistemologia

colonizadora do norte. Não! Nem é mera alegoria para dar formosidade a este

trabalho.

Mas, como fugir das sempre contundentes críticas de que Heidegger

seria um nazista e a sua filosofia seria despreocupada com o fundo moral e

encontra-se manchada pelo sangue dos milhões de judeus mortos durante o

Terceiro Reich? Além de inúmeros fatos de conhecimento público – como a

filiação ao partido nazista e a assunção ao cargo de Reitor da Universidade de

Freiburg durante o Regime Hitlerista -, a recente publicação dos “Cadernos

Negros”, editado por Peter Trawny, traz diversas anotações do filósofo alemão

que permitem sim a condução a um entendimento de que ele comungava com

preceitos antissemitas.

Contudo, isso não reforça senão a sua condição de ser-jogado. O

antissemitismo nas décadas de 1920 e 1930 era elemento presente na

sociedade europeia e fazia parte da cotidianidade de parcela significativa da

população. Por mais que muitas das críticas girem em torno do não pedido

Page 99: DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

98

público de desculpas por parte de Heidegger após o fim da Segunda Guerra, é

preciso reforçar que ele nunca defendeu a exterminação dos judeus nem

tampouco os famigerados campos de concentração141.

Mas e o silêncio? Parafraseando Luther King, aquele que se cala

diante ao horror não assombra a humanidade assim como aquele que atentara

contra o Outro? Eichmann e sua condição de burocrata a serviço de Hitler não

é, como bem sintetizou Arendt, o resumo da banalidade do mal? Sim. Sem

dúvida que sim! Concordamos ser repulsivo o seu alinhamento àquela

ideologia que trouxe tanto terror a humanidade, mas não foi esse o traço

marcante da sua forma de pensar. Não foi o antissemitismo que norteou os

seus escritos, mas a sua genial percepção sobre os fenômenos no mundo.

Posso até discordar com toda veemência da sua “com-pre-ensão” acerca dos

judeus e do seu agir que decepcionou os seus mais próximos amigos142, mas

não posso condená-lo ao esquecimento, nem fugir da sempre instigante tarefa

de desvelar a sua filosofia.

É o desvelar dessa filosofia que permeia a resposta sobre o porquê

de Heidegger. Um porque que apresenta a ideia que não é a linguagem que

carrega a ambiguidade, a falta de clareza ou a multiplicidade significativa. A

linguagem, enquanto ek-sistencial humano, traz a ambiguidade presente na

com-pre-ensão do homem sobre o mundo. É, pois, o homem que carrega tal

ambiguidade na sua existência e não a linguagem. Buscamos, assim, em Ser e

Tempo143 a clareira compreensiva que desestrutura toda a pretensão de

certeza por meio de uma racionalidade pura. A pretensão que há uma

141 Conforme anota Safransky (2005, pg.303 ) “Heidegger um anti-semita? Não no sentido do sistema ideológico insano dos nacional-socialistas. Pois chama a atenção o fato de que nem nas conferências, nem nos textos filosóficos, nem nos discursos e panfletos políticos se encontrem comentários anti-semitas e racistas. [...] O nacional–socialismo de Heidegger é decisionista. Não é a origem mas a determinação que lhe serve como padrão. Na sua terminologia significa: o ser humano não deve ser julgado pelo estar-jogado (Geworfenheit), mas pelo seu projeto (Entwurf). Nessa medida, Heidegger podia até ajudar colegas judeus afligidos, se reconhecesse seu trabalho.” 142 Como a própria Hanna Arendt, com quem supostamente teria tido um affair e o seu mestre, Edmund Husserl que, em carta a Dietrich Mahnke, afirma que o ingresso de Heidegger no partido nazista seria “o fim dessa amizade de almas presumidamente filosófica” (SAFRANSKY, 2005, pg. 303). 143 Escolhemos abordar apenas Ser e Tempo, com algumas pitadas de “A caminho da linguagem” e outros ensaios de Heidegger. Não há a pretensão de apresentar a metamorfose do pensamento heideggeriano tardio, mas apenas abordar algumas reflexões que se desvelam como fundamentais para a virada científica aqui pretendida.

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linguagem lógica perfeita racionalmente cognoscível a priori por nossa mente e

que está livre de toda e qualquer ambiguidade. A pretensão que é possível

separar aquilo que somos da nossa compreensão. Para tanto, a nossa

caminhada segue para a analítica existencial e a fenomenologia de Heidegger

firmada em Ser e Tempo144.

Ser e Tempo é uma obra que tem em seu perquirir o resgate a um

tema objeto de reflexão desde os gregos, a questão do sentido do ser. Em

suas primeiras anotações, Heidegger (2002) registra que o estudo sobre o ser

dera fôlego às investigações filosóficas de Platão e Aristóteles, mas emudeceu-

se desde então. O esquecimento dessa temática percorreu por todas as

escolas de pensamento – ao menos até Hegel -, que preferiram a renovação

do velho, não trazendo nenhuma nova consideração relevante sobre a temática

do ser. Preferiu-se ver o ser como algo dado, pertencente ao inexorável, àquilo

cujo conceito é ínsito a si mesmo.

Heidegger acredita que o esquecimento do ser na filosofia ocidental

se deu por três razões basilares. O conceito de “ser” é universal. O “ser” não

consegue se classificar dentro de um particular e, ao mesmo tempo, aplica-se a

todo ele. O “ser” está na ponta da concepção de universalidade, sendo que “a

universalidade do ser transcende toda a universalidade genérica”145

(Heidegger, 2002, pg.28). Todo ente tem em si a apresentação de um ser, o

que traz a inexorável condição de universal transcendente a ideia do ser.

O filósofo alemão, contudo, alerta que essa condição universal não

aponta para uma definibilidade clara, isto é, para um conceito acessível. Ao

revés, o “ser” é um conceito indefinível, uma vez que não lhe é apropriável um

ente. O “ser” não apresenta uma entificação que possa lhe apresentar como

“é”, que lhe espelha uma essência. O “ser” não se define por um “é”, pois a

universalidade que lhe caracteriza ao mesmo tempo lhe impede a definição.

Nesse sentido que Heidegger vai dizer que a indefinibilidade do “ser” impede a

sua abordagem como na ontologia clássica, ou seja, a partir de um ente. Com

isso, a questão do ser deve ser encarada a partir do sentido do ser.

144 No original, “Sein und Zeit” 145 Heidegger, 2002, pg.28.

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Ainda, o conceito de “ser” seria evidente. O não resgate a questões

filosóficas ligadas a noção do “ser” decorreria de uma imediata correlação que

estamos acostumados a fazer na construção significativa do ente. Expressões

como o “céu é azul” ou “eu sou feliz” carregam uma pretensão de claridade

conceitual comum que se revela não instigante à investigação científica.

Parece tão palpável e tão lógica a compreensão do “ser” que, em

verdade, apenas vela a incompreensão do “ser”, uma vez que, como anota

Heidegger, “um enigma já está sempre inserido a priori em todo ater-se e ser

para o ente, como ente.” A evidência, contudo, é sempre problemática, pois

esconde a reflexão daquilo que está para além do sensitivo, aquilo que

costumeiramente não percebemos. É preciso, pois, mudar a lente para

enxergar para além do evidente.

Antes de adentrar a questão do “ser”, Heidegger entende que é

necessária uma (re)visitação a sua estrutura formal. A busca pelo sentido do

“ser” é sempre um questionamento, uma procura pelo conhecer do ente como

ele é. O sentido do ser é um caminhar pela procura incessante do seu ente, por

um perguntar constante. Nessa perspectiva, ele apresenta que o questionar é

sempre um questionar sobre algo, uma pergunta que se direciona sobre algo,

sobre o que aquilo “é”.

Esse movimento interrogativo possui, portanto, um questionado

(das Gefragte), que é o “aquilo” sobre o qual se busca o sentido do “ser”. A

condição determinante do ente como ente, de como o ente é compreendido.

Não se fala, porém, de um questionado como ente, mas como “ser”, pois o ente

não é determinável senão como ser. O questionado é um modo de “de-

monstração” do ente, um como ele se “a-presenta”. Por outro lado, há ainda o

interrogado (das Befragte), que seria a quem se direciona o questionamento.

Uma investigação, um perquirir, um questionar é sempre dirigido a alguém. “O

interrogado na questão do ser é o próprio ente”. É uma interrogação sobre o

seu ser. Ainda há na questão do ser o perguntado (das Erfragte), que seria a

meta investigativa, aquilo que se pergunta sobre alguma coisa. O perguntado é

o próprio sentido do “ser”.146

146 “O questionado da questão do ser elaborada é o ser, o que determina o ente, como o ente já é sempre compreendido, em qualquer discussão que seja. O ser dos entes não “é” em si

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101

CRUZ (2011) chama a atenção para o deslocamento proposicional

na filosofia heideggeriana147, que passa a ser apresentada a partir de um locus

interrogativo. Enquanto na filosofia clássica haveria uma noção de “como

apofântico”, isto é, a enunciação se dá a partir de uma estrutura predicativa

na qual são extraíveis os valores de verdade, para Heidegger a proposição

seria apresentada em um “como hermenêutico”, ou seja, como uma

capacidade de compreensão proposicional.

Assim, enquanto no “como apofântico” a proposição se mostra

declarativa, como, por exemplo, “o martelo é pesado”, sendo apresentada uma

ousia do ente martelo - que seria a condição de ser pesado -, “o como

hermenêutico” apresenta a proposição a partir de uma composição

interrogativa, “o martelo é pesado?”, que apresenta uma circunvisão, uma

“com-pre-ensão” a partir de um horizonte factual. Nessa proposição nós

teríamos o elemento do questionado (martelo), do perguntado (que seria a

condição de ser pesado) e do interrogado, que seria o ente capaz de

questionar sobre a si próprio e sobre os demais entes.

O interrogado, enquanto ente que se questiona sobre si mesmo,

para chegar ao sentido do ser, deve ter como acessível o seu ente antes

mesmo de ser. É um “morder do rabo de cachorro” que não pode ser

compreendido senão como movimento, como uma possibilidade de acesso ao

ente por meio do sentido do ser que já é (e só é) no seu sendo.148149

mesmo um outro ente. O primeiro passo filosófico na compreensão do problema do ser consiste em μυθον τινα δινγεισθαι. “Não contar estórias” significa: não determinar a proveniência do ente como um ente, reconduzindo-o a outro ente, como se o ser tivesse o caráter de um ente possível. [...] Em consonância, o perguntado, o sentido do ser, requer também uma conceituação própria que, por sua vez, também se diferencia dos conceitos em que o ente alcança a determinação de seu significado. [...] interrogado na questão do ser é o próprio ente. Este é como interrogado em seu ser.” (HEIDEGGER, 2002, pg. 32). 147 Falar em “filosofia heideggeriana” é deixar de ser fidedigno a algumas reflexões do próprio autor. Isso porque, como afirma Pierre Trotignon, “Heidegger afirmou um dia que não existia filosofia heideggeriana e que não concederia a menor atenção ao que pudesse apresentar sob tal designação.” (TROTIGNON, 1982, pg. 13). 148 “Mas será que uma tal empresa não cai num círculo vicioso evidente? Ter que determinar primeiro o ente em seu ser e, nessa base, querer colocar a questão do ser, não será isso andar em círculo? [...] não há nenhum círculo vicioso no questionamento da questão. O ente pode vir a ser determinado em seu ser sem que, para isso, seja necessário já dispor de um conceito explícito sobre o sentido do ser. [...] Na questão sobre o sentido do ser não há “círculo vicioso e sim uma curiosa “repercussão ou percussão prévia” do questionado (o ser) sobre o próprio questionar, enquanto modo de ser de um ente determinado.” (HEIDEGGER, 2002, pg. 33/34) 149 “Quanto ao interrogado, a questão do ser exige que se conquiste e assegure previamente um modo adequado de acesso ao ente. Chamamos de “ente” muitas coisas e em sentidos

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Dentre os entes, apenas um existe, ou melhor, ek-siste150. Apenas

um ente possui uma “de-finição” ontológica, que seria a capacidade de

interrogar sobre o sentido do ser do ente a partir da sua própria existência.

Apenas este ente possui a capacidade de abertura e manifestação do seu ser.

A este ente Heidegger denominou de “pre-sença”151. A “pre-sença” é o modo

ser do ente “homem”, que seria o primeiro interrogado na filosofia

heideggeriana. Apenas a este ente é dada a existência como modo de ser, o

que lhe dá a condição de ente capaz de questionar sobre o sentido do ser. A

“pre-sença” não está-aí como um simplesmente dado, mas, ao contrário,

consegue se relacionar com o seu próprio ser a partir do seu modo de ser. O

ser da “pre-sença” é um sendo, um “seer”, que se “a-presenta” como uma

possibilidade, ao mesmo tempo em que se “a-presenta” como uma

diversos. Ente é tudo do que falamos, do que entendemos, com que nos comportamos dessa ou daquela maneira, ente é também o que e como nós mesmos somos. Ser está naquilo que é e como é, na realidade, no ser simplesmente dado (Vohandenheit), no teor e no recurso, no valor e na validade, na pre-sença, no “há”.” (HEIDEGGER, 2002, pg. 33/34) 150 “Sistere, ser; ek, para fora. Enquanto substantivo de uma oração, o ser entrevisto na luz da articulação, do acontecer e seu verbo. O cuidadoso trabalho de ver o verbo ser de o substantivo ser. Terá sido à toa que Heidegger insistentemente trouxe à tona o dizer da língua grega, posto que nenhuma outra língua tivesse um poder tão grande em seu dizer, como tiveram os gregos com as declinações e articulações de seu verbo einai?”(BRASIL, 2010, pg. 99) 151 Aqui vale as considerações que fizemos em obra anterior (CASTRO e CRUZ, 2015) acerca da tradução de Dasein para pre-sença. “A tradução de a obra Ser e Tempo utiliza a expressão “pre-sença” como tradução do Dasein. Entretanto, vale a consideração de Nunes (2010), que assevera que “trata-se de um equívoco da tradução, que apenas transladou o termo Da-sein a partir da sua etimologia, conflitando com a semântica proposta por Heidegger. “Por isso, não é o homem Dadeiende, mas Dasein: a abertura, o aí da existência fáctica, que vai tanto do homem para o ser quanto do ser para o homem, está enfeixada Semânticamente do Da de Dasein, relação que se perde no etimologismo praticado pela tradução brasileira de Ser e Tempo, que seria de exemplar competência não fosse o hamletiano prejuízo desse único defeito – by one defect – que o fez traduzir o mesmo termo Dasein por pré-sença, sem perceber que, na leitura, a etimologia não vigora sobre a semântica e que, nesse ato de leitura, a palavra deixa de ser neutra (das Dasein), funcionando a presença como Anwesende ou como présence, assim escrito, certa vez, em francês, por Heidegger, de acordo o que se pode ler no Beiträge, da terceira fase. “No sentido empregado pela primeira vez essencialmente em Sein und Zeit, este termo não se traduz, quer dizer, ele contradiz o ponto de vista do pensamento e do modo de expressão da história do Ocidente até agora: Da Sein. No sentido literal significa, por exemplo: a cadeira esta aí; o tio esta aí. Chegou e está presente: daí présence (sic). Da-sein significa propriamente um “ente”, mas não no modo de ser no sentido dito acima...” Apesar da arguta leitura de Nunes, acreditamos que o termo “presença” constitui uma boa tradução no conceito benjaminiano. Presença. Presente. Pre-sente. Pre-(s)ente. Movimento do Ser do ente. A terminologia não carrega a estaticidade substantiva do seer humano, mas um movimento constante, motivo que nos permite o atrevimento em continuar a utilizar a expressão traduzida “pre-sença””

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103

necessidade. A “pre-sença” é uma manifestação do ser como um ser-aí152,

Dasein.153

Como anota CASANOVA (2010), por mais que Heidegger designe

como Dasein o ser do homem, não se pode fazer a leitura como se

estivéssemos diante de um conceito simples em que se traz o termo ser-aí

como sinônimo de homem. Não estamos diante de uma sofisticação gramatical

apenas. Há uma transformação no modo de ser do homem, que não se

confunde com o ser dos demais entes. O ser-aí evidencia a capacidade de

reflexão sobre o seu modo de ser. Sobre o ser-aí não cai um conceito rígido,

uma quididade que possa lhe conceituar como ele é. O modo de ser do ser-aí é

a existência, que lhe permite compreender a si mesmo.

Dizer que a existência é o que “de-fine” o ser-aí não é lhe atribuir

uma essencialidade154. A existência do Dasein se caracteriza como um modo

de ser possível, não como uma essência155. Isso porque o ser-aí é uma

possibilidade de ser estritamente relacionada com seu ser. A relação do ser-aí

152 Ser-aí e pre-sença são traduções válidas para a expressão Dasein. Recordando da crítica apontada por NUNES (2010) sobre a tradução de Dasein como pre-sença (ver as nossas considerações supra), compreendemos que a expressão ser-aí revela a condição de um ente que não está-aí, que não possui uma fixação, ao contrário, se a-presenta sempre como uma possibilidade, como um vir-a-ser. Assim, mesmo nos reservando o direito de usar ambas as expressões, tentará daqui em diante prestigiar a expressão “ser-aí”, por possuir uma semântica que contrasta com a noção do está-aí, do ontologicamente definido e estatizado. 153 “A pre-sença não é apenas um ente que ocorre entre outros entes. Ao contrário, do ponto de vista ôntico, ela se distingue pelo privilégio de, em seu ser, isto é, sendo, estar em jogo seu próprio ser. Mas também pertence a essa constituição de ser da pre-sença a característica de, em seu ser, isto é, sendo, estabelecer uma relação de ser com seu próprio ser. Isso significa, explicitamente e de alguma maneira, que a pre-sença se compreende em seu ser, isto é, sendo. É próprio deste ente que seu ser se lhe abra e manifeste com e por meio de seu próprio ser, isto é, sendo. A compreensão do ser é em si mesma uma determinação do ser da pre-sença. O privilégio ôntico que distingue a pre-sença está em ser ela ontológica.” (HEIDEGGER, 2002, pg. 38). 154 “A “essência” da pre-sença está em sua existência. As características que se podem extrair deste ente não são, portanto, “propriedades” simplesmente dadas de um ente simplesmente dado que possui esta ou aquela “configuração”. As características constitutivas da pre-sença são sempre modos possíveis de ser e somente isso. Toda modalidade de ser deste ente é primordialmente ser. Por isso o termo “pre-sença”, reservado para designá-lo, não exprime a sua quididade como mesa, casa, árvore, mas sim o ser.” (HEIDEGGER, 2002, pg. 78) 155 “A “essência” deste ente está em ter de ser. A quididade (essentia) deste ente, na medida em que se possa falar dela, há de ser concebida a partir de seu ser (existência). Neste propósito, é tarefa ontológica mostrar que, se escolhemos a palavra existência para designar o ser deste ente, esta não tem nem pode ter o significado ontológico do termo tradicional existentia. Para a ontologia tradicional, existentia designa o mesmo que ser simplesmente dado, modo de ser que não pertence à essência do ente dotado do caráter de pre-sença. Evita-se uma confusão usando a expressão interpretativa ser simplesmente dado para designar existência e reservando-se existência como determinação ontológica exclusiva da pre-sença” (HEIDEGGER, 2002, pg. 77)

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104

na sua construção ontológica é sempre consigo mesmo, trata-se de uma

possibilidade constitutiva que é estritamente única. A existência de um ser-aí

não se dá da mesma forma que outro, pois o modo e a abertura do ser serão

inexoravelmente diferentes em cada ser-aí em razão do “pre” da “pre-sença”.

Ressalte-se que não estamos a afirmar que a possibilidade de ser

do Dasein se dá como uma mônada, invólucra em si mesma, mas que cada

ser-aí é uma existência que não se repete e não se dá como um ser

simplesmente dado. Não é possível extrair um modo de ser que seja

identificador do ser-aí, pois a possibilidade de ser só existe na própria

existência. Cada existência se dá como um modo de ser que se abre como

uma possibilidade em seu existir. A existência só se dá no existir, isto é, na

condição do ser-aí-jogado.

O ser-jogado deve ser visto como ponto de partida para a

compreensão da existência enquanto modo de ser do Dasein. A existência é

anterior a própria compreensão e se antecipa a qualquer racionalidade. Se a

racionalidade do Dasein se dá a partir de um mundo circundante, é preciso

compreender que a sua existência se dá na condição de ser-jogado.

CRUZ (2011) nos recorda que não pedimos para nascer,

simplesmente nascemos. Fomos jogados em um mundo no qual não

escolhemos. Pertencemos a uma família, a uma comunidade, a uma cidade, a

um país sem mesmo ter tido a oportunidade de opinar. Por que nascemos

brasileiros? Por que falamos português?

A historicidade que carregamos, sem dúvida alguma, é o ponto de

partida para toda e qualquer compreensão que temos. O local, a família, a

cultura onde nascemos caracteriza o nosso horizonte hermenêutico. O homem

cordial narrado por Sérgio Buarque de Holanda é um ótimo exemplo para

apontar essa historicidade. O nosso agir e o nosso pensar sempre se dá a

partir da nossa existência.

Como diz GADAMER (2009), nós somos jogados no aí que

caracteriza o nosso existir. A existência não se dá a partir de uma racionalidade

pura, mas de um horizonte caracterizado pela nossa condição de ser-jogado.

Não há uma escolha no existir, o que nos permite afirmar que a compreensão

não está dissociada das pré-compreensões que nos circundam. A existência

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105

orienta a própria racionalidade, que estará diante de uma perspectiva, sob um

olhar que se firma a partir do horizonte em que estamos imersos.

A “com-pre-ensão” é um movimento que se dá na existência e que

está envolvida pelos preconceitos pertencentes ao existir do Dasein. O neutro e

o imparcial estão no campo da impossibilidade do ser-aí, que é, já no seu

existir, um ser com apreensões, o que nos permite dizer que “o horizonte

hermenêutico impede qualquer suposição de que seja possível tornar a mente

uma tabula rasa” (CRUZ, 2011, pg. 121). A nossa mente já possui escritos

inscritos na nossa existência.

Essa percepção filosófica fica em evidência quando estamos diante

de um caso que, às vezes sem muito “por que”, prende a nossa atenção. No

mundo jurídico, que exige a imparcialidade judicial para o alcance da

famigerada segurança jurídica, é inevitável que alguns casos chamem mais a

nossa atenção que outros. Um juiz que nasceu em berço imigrante

seguramente apreciará uma questão relacionada aos seus patrícios com uma

racionalidade que lhe é própria. No meio administrativo, um Conselheiro de

Tribunal de Contas que tenha atuado junto a uma prefeitura não visualizará

uma prestação anual de contas da mesma forma que um técnico do tribunal.

Isso não significa que eles estejam sendo levianos ou mesmo que estejam

corrompidos. Por vezes, a proximidade com a causa nos faz até mais severos.

Acreditamos que temos que ser imparciais e, para tanto, acabamos por pender

a balança para o lado oposto daquilo que achamos tratar-se de parcialidade. A

nossa racionalidade é míope e é constituída pelas pré-compreensões que

estão presentes na nossa existência, na nossa condição de ser-lançado.

Como afirmamos acima, o modo de ser do Dasein, isto é, aquilo que

lhe “de-fine” como um existente é a sua possibilidade de vir a ser. A existência,

enquanto marco ontológico do ser-aí, se “a-presenta” como um “pro-jeto”, como

uma possibilidade de vir a ser. Possibilidade esta que se dá apenas na minha

existência e que não se confunde com uma categorização de um ser

simplesmente dado. A possibilidade de vi-a-ser do meu “seer” é sempre minha

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106

e se dá na minha existência, isto é, na relação de compreensão de mim

mesmo.156

Vale ressaltar que essa possibilidade de vir-a-ser não constitui uma

propriedade do Dasein de modo a lhe condicionar ontologicamente, devendo

ser desvelado a partir do modo indeterminado do existir. A existência se mostra

como uma possibilidade que é própria do Dasein na compreensão de si, não

alocando tal possibilidade como uma categoria, ou seja, como elemento

essencial de um ser simplesmente dado. Ao dizer que a compreensão é

sempre minha, quer se afirmar que não há um acesso determinado a minha

forma de compreender, que é só minha e que se dá a partir do meu horizonte

firmado na minha existência157.

A existência não pode, alerta-se, ser encarada como uma potência

que se transforma em ato, ou seja, como uma possibilidade do ente se

concretizar na sua essência. Quando dizemos que a possibilidade de ser do

Dasein constitui o seu modo de ser, pretendemos revelar a sua condição de vir-

a-ser. No vir-a-ser, contudo, há uma exigência de ter-que-ser. A existência se

dá no movimento fenomenológico do existir, o que implica dizer que ela

somente se dá no existir. O ser-aí não existe para depois escolher as suas

possibilidades de vir-a-ser, mas já existe como concretização de uma

possibilidade de ser enquanto ser-jogado.158

156 “A pre-sença se constitui pelo caráter de ser minha segundo este ou aquele modo de ser. De alguma maneira, sempre já se decidiu de que modo a pre-sença é sempre minha. O ente, em cujo ser, isto é, sendo, está em jogo o próprio ser, relaciona-se e comporta-se com o seu ser, como a sua possibilidade mais própria. A pre-sença é como sempre sua possibilidade. Ela não “tem” a possibilidade apenas como propriedade simplesmente dada. E é porque a pre-sença é sempre essencialmente a sua possibilidade que ela pode, em seu ser, isto é, sendo, “escolher-se”, ganhar-se ou perder-se ou ainda nunca ganhar-se ou só ganhar-se “aparentemente”. A pre-sença só pode perder-se ou ainda não se ter ganhado porque, segundo seu modo de ser, ela é uma possibilidade própria, ou seja, é chamada a apropriar-se de si mesma”. (HEIDEGGER, 2002, pg. 78) 157 “A pre-sença sempre se compreende a si mesma a partir de sua existência, de uma possibilidade própria de ser ou não ser ela mesma. Essas possibilidades são ou escolhidas pela própria pre-sença ou um meio em que ela caiu ou já sempre nasceu e cresceu. No modo de assumir-se ou perder-se, a existência só se decide a partir de cada pre-sença em si mesma.” (HEIDEGGER, 2002, pg. 39) 158 “O ser-aí humano sempre se concretiza como o poder-ser que ele é a partir de possibilidades fáticas que lhe são abertas por seu mundo. Ele não se apresenta primeiramente como um puro poder-ser, para em seguida se decidir por uma possibilidade entre outras disponíveis no mundo que é o seu. Ao contrário, a sua própria dinâmica existencial traz consigo a supressão de uma tal suposição, na medida em que o inscreve imediatamente em possibilidades existenciárias específicas.” (CASANOVA, 2010, pg. 92).

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107

Por mais que não haja uma determinação do Dasein, que é uma in-

finitude de pro-jetos, ele não pode fugir da sua condição de existente e de

existir. Não há existência fora do plano do existir. Nas palavras do filósofo

alemão, “A questão da existência sempre só pode ser esclarecida pelo próprio

existir” (HEIDEGGER, 2002, pg.39). A essa compreensão a partir de si própria,

Heidegger dará o nome de compreensão existenciária. A compreensão

existenciária se dá no plano ôntico e prescinde da clarificação da estrutura

ontológica da existência. Em um movimento coordenado à compreensão

existenciária está à compreensão da existencialidade, que se dá no primado

ontológico da existência. Na existencialidade ocorre a analítica das estruturas

existenciais da existência, isto é, aquelas que estariam em uma espécie de

plano pré-ontológico. 159

Como bem expresso por ARAÚJO (2013), a ontologia fundamental

de Heidegger se firma na busca pelo sentido do ser daquele ente capaz da

compreensão de si. O único ser capaz de caminhar a procura pelo sentido do

seu ser é o ser do homem, isto é, o ser-aí. Apenas o Dasein existe, o que lhe

dá a condição de ser privilegiado, possuidor de um primado ôntico e ontológico.

À ontologia fundamental, portanto, é dada a missão da analítica existencial, isto

é, o desvelamento da estrutura permissiva da compreensão da existencialidade

do Dasein.

CASANOVA (2010) expressa que esse movimento de compreensão

do ser-aí, no qual a existência se manifesta de forma dinâmica no existir, seria

um movimento ek-stático que é confundível com o que Heidegger chamou de

159 “[...] uma vez que a existência do Dasein é fundamentalmente a interpretação de si, nosso pensamento simplesmente não pode se encaminhar de volta para uma caracterização das condições básicas daquela existência. O Dasein tem também de compreender essas condições em termos dos modos como ele efetivamente os vive em sua própria vida. Um existencial filosófico (categoria da existência) nasce da existência do Dasein, tal como ele vive sua própria interpretação existenciária de si. Por outro lado, esses existenciais descrevem a possibilidade mesma da vida existenciária do Dasein, sendo, assim, “prévias” a qualquer viver particular dessa vida. [...] o que é convocado na compreensão filosófica é um movimento entre o existencial e o existenciário, um movimento para frente e para trás entre as condições da existência possível e os modos efetivos como o Dasein existe. Um “existencial” é um tipo especial de categoria, um conceito básico que pode descrever as possibilidades básicas de existência do Dasein. Eles não significam nada se não são vividos. [...] A diferença entre o existencial e o existenciário aplica-se à nossa própria existência. Não se trata de uma diferença entre dois diferentes tipos de entes. Antes, trata-se de uma diferença entre o que poderíamos chamar de momentos distintos de autointerpretação do Dasein. O Dasein pode pensar a si mesmo em termos dessa diferença, mas ele também mantém essa diferença na compreensão de tudo.” (GREAVES, 2012, pg. 40)

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movimento descerrador (er-schliesst). Ao mesmo tempo em que o Dasein

existe em um mundo que o circunda, a sua existência abre o horizonte no qual

os entes que estão-aí irão se manifestar.

A dinamicidade da existência empreendida por Heidegger é

extremamente importante, pois impede o condicionamento do ser-aí a um

antropologismo. A cotidianidade mediana que caracteriza o Dasein, como

literalmente expressa o filósofo alemão, não coincide com a primitividade que

poderia ser apreendida por noções antropológicas. O Dasein não é um simples

produto da sociedade a que pertence, uma vez que o mundo que o circunda

também se revela como abertura de manifestação do Dasein. O mundo só

existe a partir do Dasein que, do mesmo modo, já existe em um mundo. Daí,

Heidegger a-presenta o ser-aí como um ser-no-mundo (in der Welt sein).160

A condição de existente do Dasein remete necessariamente a

relação do ser-aí com o mundo que o circunda e que constitui a sua

facticidade. Não é possível compreender a existencialidade do Dasein fora da

sua facticidade. O ser-aí é desde sempre um ser-em, que se constitui a partir

de uma realidade. A minha existência se deu junto-ao meu mundo. Essa

facticidade constitui o que eu sou e como eu enxergo o mundo. A capacidade

de compreender determinados sons linguísticos é consequência dos elementos

que me circundam.

Não há um afastamento racional capaz de encontrar um espelho de

como as coisas são objetivamente. O mundo não é um exterior ao Dasein que

é acessível pela sua racionalidade, mas sim um constituinte da sua própria

existência. O mundo integra o meu olhar inicial sobre os demais entes. O toque

do mundo na minha existência não passa despercebido pela minha

racionalidade, pois há reciprocidade no tocar. O tocar do mundo na minha

160 “Assim, o que temos aqui pode ser descrito da seguinte forma: 1) o ser-aí existe; 2) a existência traz consigo um movimento de descerramento e liberação do mundo como campo de manifestação dos entes; 3) o surgimento mesmo desse horizonte torna possível a manifestação dos entes que, em seguida, vêm ao encontro do ser-aí e requisitam dele um modo de comportar-se em relação a eles; 4) o ser-aí assume, então, um determinado modo de comportamento e, assumindo um tal modo de comportamento, se determina como o que é. Dizer isto, por sua vez, significa afirmar que o ser-aí é um ser-no-mundo, um ente que funda todos os seus comportamentos em relação aos entes em geral em um comportamento originário em relação ao mundo. A questão fundamental passa a ser, por conseguinte, determinar como se constitui afinal tal comportamento.” (CASANOVA, 2010, pg. 92)

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109

existência se dá no meu toque ao mundo, num tocar ambivalente que identifica

a unidade do mundo com o ser-aí.

Dizer que o Dasein é um “ser-em” não significa alocá-lo como

pertencente a um mundo que o constitui, mas estabelecer uma relação de

inseparabilidade, na qual o ser e o mundo não podem ser enxergados de forma

dissociada. É um achado fenomenal que acontece na existência. O ser-aí se dá

em-um-mundo que lhe integra.

O ser-em identifica uma unidade do ser com o mundo e não uma

relação de “dentro de”. O Dasein não é prisioneiro do mundo e nem está dentro

dele, como a água está dentro do copo ou uma meia, dentro de uma gaveta.

Heidegger explica que a noção de “dentro de” traz a identidade espacial de

seres simplesmente dados que estão determinados espacialmente a outros

seres simplesmente dados. Como um corpo que se encontra em um

determinado lugar. “A água está dentro do copo” apresenta uma noção de estar

ali, de algo que está ontologicamente determinado pela condição de estar

dentro de outro dado. 161

O ser-em, ao contrário, não estabelece uma relação de

espacialidade entre os entes, mas um viés de estrutura existencial do ser,

apontando para a ideia de que o mundo é um acontecimento fenomenal que

integra a estrutura ontológica do ser do Dasein. Nas palavras do autor alemão,

o ser-em “é o ente que eu sempre sou”. O modo de ser possível do Dasein é

sempre um ser-em, que traduz a imanência fenomenal do ser-aí com o mundo

que o circunda. O ser-no-mundo caracteriza-se, assim, como um ek-sistencial

do Dasein.

ARAÚJO (2013) esposa que a analítica existencial do Dasein como

um ser-no-mundo busca superar a relação sujeito-objeto presente no

pensamento da filosofia da consciência. Naquela, o sujeito está no interior do

mundo e, em busca da compreensão, vai ao exterior e traz o objeto para dentro

do mundo a fim de dissecá-lo e compreender a sua essência. A exterioridade

161 “O que diz ser em? De saída, completamos a expressão, dizendo: ser “em um mundo” e nos vemos tentados a compreender o ser-em como um estar “dentro de...” Com esta última expressão, designamos o modo de ser de um ente que está num outro, como a água está no copo, a roupa está no armário. Com este “dentro” indicamos a relação recíproca de ser de dois entes extensos “dentro” do espaço, no tocante a seu lugar neste mesmo espaço “em” um lugar.” (HEIDEGGER, 2002, pg. 91)

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110

do mundo, contudo, coloca o sujeito como um ente voador, como aquele que

flutua no vazio em busca da significação. Pelo compreender objetivo é

compreender fora da realidade, é como se pudéssemos parar o tempo e o

espaço e dissecar um objeto a fim de conhecê-lo como ele é. Mas, como flutuar

para além do espaço e da temporalidade que constitui a realidade do sujeito?

O retirar da realidade é deixá-lo na flutuação compreensiva, em um lugar onde

não há chão, não há tempo, não há nada, nem mesmo o que pode ser

compreendido.162

O mundo do Dasein, por sua vez, se dá na sua abertura existencial,

de modo que já sou no mundo que é meu. O ser-no-mundo é a condição

existencial de um ser-aí que se abre ao mundo que se dá nessa abertura. O

Dasein, enquanto fenômeno originário do ser-no-mundo revela a

impossibilidade de um mundo exterior, pois o mundo já é desde sempre junto

ao ser. Não há sujeito descolado do mundo, de modo que não posso sair do

mundo que me “a-presenta” como eu sou e que só é na minha abertura

existencial. O ser-no-mundo é um existencial do Dasein e não uma

propriedade que condiciona o seu “seer”. Nos seus in-finitos “pro-jetos” de “vir-

a-ser”, o ser-aí será sempre um ser-no-mundo.163

162 “Mesmo que se lograsse determinar ontológica e primariamente o ser-em a partir do ser-no-mundo que conhece, isso implicaria, como primeira tarefa indispensável, uma caracterização fenomenal do conhecimento enquanto ser-em e ser-para o mundo. Ao se refletir sobre esta relação de ser, dá-se, logo de início, um ente, chamado natureza, como aquilo que primeiro se conhece. Nesse ente não encontra conhecimento. Quando “se dá” conhecimento, este pertence unicamente ao ente que conhece. Entretanto, o conhecimento também não é simplesmente dado nesse ente, a coisa homem. De todo modo, não pode ser constatado externamente como, por exemplo, propriedades de nosso corpo. Na medida, porém, em que não lhe pertence como uma qualidade externa, o conhecimento deve estar “dentro”. Assim, quanto mais univocamente se admite, em princípio, que o conhecimento está propriamente “dentro” e que nada possui do modo de ser de um ente físico e psíquico, tanto mais se acredita proceder sem pressuposições, na questão sobre a essência do conhecimento e sobre o esclarecimento da relação entre sujeito e objeto. Pois, só então, é que poderá surgir o problema ou a seguinte questão: Como este sujeito que conhece sai de sua “esfera” interna e chega a uma “outra” esfera, a “externa”? Como o conhecimento pode ter um objeto? Como se deve pensar o objeto em si mesmo de modo que o sujeito chegue por fim a conhecê-lo sem precisar arriscar o salto numa outra esfera?” 163 “De acordo com o que foi dito, o ser-no-mundo não é uma propriedade que a pre-sença às vezes apresenta e ourtras não, como se pudesse ser igualmente com ela ou sem ela. O homem não “é” no sentido de ser e, além disso, ter uma relação com o mundo, o qual por vezes lhe viesse a ser acrescentado. A pre-sença nunca é “primeiro” um ente, por assim dizer, livre de ser-em que, algumas vezes, tem gana de assumir uma “relação” com o mundo. Esse assumir relações com o mundo só é possível porque a pre-sença, sendo-no-mundo, é como é. Tal constituição de ser não surge do fato de, além dos entes dotados do caráter da pre-sença, ainda se darem e depararem com ela outros entes, os simplesmente dados. Esses outros

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111

Do mesmo modo, não podemos compreender o mundo como uma

subjetividade do Dasein, pois, se assim fosse, perderíamos de vista a

capacidade de compartilhamento desse mundo, de modo que estaríamos

subjugados a viver de forma autista. O ser-no-mundo não significa um

isolamento epistemológico em que o mundo só existe para mim, como um ente

encapsulado em uma realidade aparente que só há em mim. O ser-no-mundo é

também um ser-com, ou seja, que se relaciona com os outros entes, sejam

eles existentes (Mitsein) ou subsistentes. Daí Heidegger chama de

mundanidade no mundo em geral o “conceito ontológico” que “significa a

estrutura de um momento constitutivo do ser-no-mundo.”164 Em outras

palavras, a mundanidade é o caminho que nos conduz ao fenômeno mundo.165

É a condição de pertencente a um mundo que serve como horizonte para a

compreensão dos entes que estão no mundo e do próprio mundo.

Mas, afinal, se o mundo não pode ser concebido como um ente

paralelo ao Dasein, como que se dá a manifestação do mundo? O mundo é

uma estrutura ôntica ou ontológica do Dasein? Heidegger, afirmando a

polissemia do termo “mundo”, expressa que a palavra pode conter ao menos

as seguintes significações:

“1. Mundo é usado como um conceito ôntico, significando, assim, a totalidade dos entes que se podem simplesmente dar dentro do mundo. 2. Mundo funciona como termo ontológico e significa o ser dos entes mencionados no item 1. E “mundo” pode denominar a região que sempre abarca uma multiplicidade de entes, como ocorre, por exemplo, na expressão “mundo,” usada pelos matemáticos, que designa a região dos objetos possíveis da matemática. 3. Mundo pode ser novamente entendido em sentido ôntico. Nesse caso, é o contexto “em que” de fato uma pre-sença “vive” como pre-sença, e não o ente que a pre-sençai em sua essência não é, mas que pode vir ao seu encontro dentro do mundo. Mundo possui aqui um significado pré-ontologicamente existenciário. Deste sentido, resultam diversas possibilidades: mundo ora indica o mundo público do nós, ora o mundo circundante mais próximo (doméstico) e próprio. 4. Por fim, mundo designa o conceito existencial-ontológico da mundanidade. “A própria mundanidade pode modificar-se e

entes só podem deparar-se “com” a pre-sença na medida em que conseguem mostrar-se, por si mesmos, dentro de um mundo.” (HEIDEGGER, 2002, pg. 95/96) 164 HEIDEGGER, 2002, pg. 104. 165 “Do ponto de vista ontológico, “mundo” não é a determinação de um ente que a pre-sença em sua essência não é. “Mundo” é um caráter da própria pre-sença. Isto não exclui o fato de que o caminho de investigação do fenômeno “mundo” deva seguir os entes intramundanos e seu ser.” (HEIDEGGER, 2002, pg. 105)

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112

transformar-se, cada vez no conjunto de escrituras de “mundos” particulares, embora inclua em si o a priori da mundanidade em geral.” (HEIDEGGER, 2002, pg. 105).

A mundanidade se mostra como o marco de abertura para

compreensão do mundo em que o Dasein vive o mundo que o circunda. O

mundo circundante é o que está mais próximo do Dasein, àquele em os entes

intramundanos vão ao seu encontro. Não se referencia aqui a uma noção de

pura espacialidade, pois mundo não é o lugar onde o Dasein existe, e sim a

totalidade dos entes que o circundam. O sol, a lua, as estrelas, os minutos e os

segundos também compõem esse mundo circundante. Neste ponto, Heidegger

expressamente assinala para uma superação do modelo cartesiano, onde a

espacialidade tomou conta das reflexões sobre o mundo ao apontar um

distanciamento da natureza e da alma.

O raiar de um sol e a sensação de revigoramento, de reposição de

energia, é manifestação do Dasein no mundo circundante. As percepções que

temos e os sentimentos causados por algo que não é sensorialmente tocável

não significam que não pertencem a nossa existência. Tudo isso faz parte do

que somos e tudo isso nos toca, de modo a nos exigir a sua compreensão.

Todos estes entes vêm de encontro ao Dasein na ocupação que ele faz do

mundo. A significação dada a estes entes não se dá, contudo, em um processo

de acepção imediata, como se somente a partir daquele encontro eu revelasse

a significação daquele ente. Nossa ocupação já se faz com uma pré-

referencialidade, com um horizonte de possibilidades de instrumentalização

daquele ente.

Isso significa que o encontro dos entes com o Dasein não se dá

como um ente simplesmente dado (Vorhandenheit), mas como um ser-a-mão,

como um instrumento que está-aí para o Dasein (Zuhandenheit). Os entes

intramundanos se apresentam na cotidianidade do Dasein como um

instrumento que se “presta a”. Uma caneta que está sobre a mesa não tem

uma essência de caneta, ou seja, não há um conjunto de elementos que a

definem como um ente que é, como algo que é como é. O sentido do ser da

caneta é dado pelo homem, que pode utilizá-la como instrumento para escrever

uma carta, fazer a lição de casa ou até mesmo servir de marcador da página

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113

de um livro. A caneta tem um sentido único e próprio ao Dasein que escapa de

qualquer pretensão de universalidade. Sua afecção implica a particularidade

necessária do sentido. Se a caneta é um presente paterno ou um agrado do

cônjuge; se a caneta pertenceu a um ente querido que já se foi; se a mesma

remate a um momento marcante em sua vida, a caneta se entifica como algo

infinitamente particular no mundo do Dasein. O modo como a caneta se “a-

presenta” ao Dasein é desvelado por este. Não há uma significação própria dos

entes como entes, mas uma instrumentalização que se dá na mundanidade do

Dasein.

O uso dos entes como instrumentos não se dá de forma intuitiva.

Não olho para uma caneta que está no mundo e tenho a intuição de utilizá-la

para a escrita. Não! Na ocupação do Dasein ao mundo já há um horizonte

referencial sobre a instrumentalidade dos entes intramundanos, que se

apresentam em in-finitos modos de ser. O Dasein não intui como utilizar o ente,

mas desvela uma das suas múltiplas possibilidades que já estão presentes na

sua mundanidade. A minha existência já carrega o horizonte compreensivo do

mundo que me circunda, o que me conduz a uma retirada do véu que esconde

uma das várias fatibilidades que os entes têm para mim. Uso a caneta como

um instrumento para a escrita, porque na minha mundanidade em geral já

estava inscrita a possibilidade de tal uso.166

A essência destes entes, então, é “de-finida” pelo uso e pelo “como”

elas se prestam ao Dasein, e não por um conjunto categorial de elementos.167

Não há possibilidade de dizer que a caneta é um instrumento para a escrita,

mas que ela, em uma determinada situação, prestou-se a escrita realizada por

166 “Para o Dasein, ser-no-mundo equivale a ter originariamente intimidade com uma totalidade de significados (VATTIMO, 1996, p. 33). A partir dessa noção, conclui-se que não há um mundo prévio de objetos, ao qual posteriormente o Dasein se relacionaria, atribuindo-lhe significados e funções; ao contrário, as coisas se mostram já no âmbito de uma totalidade de significados possíveis de que aquele já dispõe. Como afirma Ernildo Stein, “antes que o Dasein teorize ou exponha no discurso o mundo, ele já possui uma compreensão de si, dos utensílios com que lida” (2005, p. 17). Assim, pode-se afirmar que o mundo somente nos é dado, na medida em que já o temos! Só compreendemos o mundo, a partir de uma pré-compreensão que dele já possuímos, tal é a noção de círculo hermenêutico.” (CUNHA, 2010, pg. 120) 167 “A obra que se dá ao encontro, sobretudo no modo de lidar da ocupação – que está sendo trabalhada – deixa e faz vir também ao encontro, na possibilidade de emprego constitutiva de sua essência, para que (Wozu) ela foi produzida. Por sua vez, a obra encomendada só é, com base em seu uso e na totalidade referencial dos entes, descoberta no uso.” (HEIDEGGER, 2002, pg. 112)

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114

alguém. Essa utilização, ao mesmo tempo em que desvela uma funcionalidade

da caneta, vela outra, que poderia ser a de redigir uma peça processual ou até

mesmo ser utilizada como “suporte”168 para cabelo, como as mulheres

correntemente fazem.

Da mesma forma devem ser encaradas as normas jurídicas, que não

possuem uma essência a ser conhecida pelo sujeito por meio da pura

racionalidade. As normas vêm ao encontro do Dasein no mundo. O direito é

desvelado pelo sujeito em uma abertura fenomenal de ser-no-mundo. Não há

um deslocamento do jurídico fora da realidade, pois ele não existe fora desta.

O direito só existe pelo homem, que é o único ente capaz de interpelar sobre o

seu sentido, sobre o sentido do ser do direito. Não há interpretação jurídica fora

do fenômeno, exterior a relação com o Dasein. Não há direito que seja desde

sempre uma significação simplesmente dada, pois esta será desvelada pelo

uso do direito.

Com isso, queremos afirmar a impossibilidade de se alcançar uma

significação objetiva da norma, seja pelos critérios da voluntas legis, voluntas

legislatoris ou pelo método subsuntivo exegético. Isso porque a significação

normativa somente se dá no encontro ao Dasein na sua faticidade. Em outras

palavras, não é alcançável o sentido da norma distante do caso concreto. Da

mesma forma, a tipicidade jamais poderá ser cerrada, pois, enquanto

instrumento presente em uma obra no mundo do Dasein, ela possui modos de

ser que se desvelam apenas na cotidianidade, no qual ganha a sua

significação sempre provisória. Relevante trazer as considerações feitas por

CUNHA (2010), que com muita felicidade expôs que

As críticas são plenamente aplicáveis ao Direito, que se manifestando nas práticas dos tribunais, insiste em apoiar-se na lei como entidade metafísica, muitas vezes contraposta ao mundo da vida, que é então negado e, com isso, é o próprio acontecer do Direito que resta velado, impedindo o seu acontecer como instrumento de efetivação do projeto de vida boa que a sociedade persegue. Insistimos que essa problemática resiste ao tempo, sobretudo mostrando-se em arquétipos epistemológicos que sucumbem frente à análise fenomenológica. Da busca de objetividade do conhecimento resulta o desvio de enxergar o mundo como exterioridade e o objeto que o integra como entidade cujo ser é independente do sujeito que intenta

168 A limitação com-pre-ensiva do meu ser, que não a-presenta o modo de ser que faz o uso da caneta como tal instrumento, impede que eu encontre uma palavra mais adequada.

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115

conhecê-lo. Tal a relação sujeito-objeto, ainda tão festejada no Direito, que insiste em uma relação objetiva e com os eventos, a fim de angariar espaço entre as ciências. Esquecem os juristas que sequer essas (refiro-me às pujantes ciências da natureza) sustentam-se no ideal de certeza e objetividade que hoje são acriticamente perseguidos pelo Direito. (CUNHA, 2010, pgs 124/125)

Evidentemente que a significação normativa, assim como a que é

dada aos demais entes, não se dá de forma intuitiva. A mundanidade constitui

um existencial ontológico, o que implica dizer que não é possível que o Dasein

fuja na sua racionalidade de uma estrutura de mundo onde ele fora jogado

como ser-aí. O ser–aí já é desde sempre um ser em-um-mundo que é

compartilhado, ou seja, que é meu, mas que não funciona como uma cápsula

da existência. A existência do Dasein que busca a significação da norma

jurídica se dá em uma mundanidade em geral, na qual já há pré-(re)ferenciais

que servem como pano de fundo para a significação. A mundanidade se perfaz

por significâncias espirradas na existência e que não permitem a fuga desse

horizonte. Nunca é demais reprisar que este horizonte hermenêutico não

significa uma determinação prévia, um condicionamento para se dar a

significação desta ou daquela forma, mas uma possibilidade que está desde

sempre presente.

Outro ponto que vale acrescentar é que a significação dada nunca

será de forma solipsista. O ser-no-mundo, frise-se, não significa uma vivência

isolada a partir da qual se escolhe viver conjuntamente com os outros. Além

dos entes intramundanos, o Outro existente também vem ao encontro do

Dasein. O Dasein é sempre um ser-junto-ao-outro, ainda que não esteja

materialmente junto169. Por mais que o ser-com apresente uma significação de

posteridade, no sentido de que primeiro o ser se mostra na existência para, em

seguida, abrir-se aos outros existentes, não se pode enxergar o ser-com de

forma diversa da de um existencial ontológico. A abertura existencial do Dasein

se dá na relação com o outro existente, o Mitsein. Como expressa Heidegger,

“essa co-pre-sença dos outros só se abre para uma pre-sença e assim também

169 “Mesmo o estar-só da pre-sença é ser-com no mundo. Somente num ser-com e para um ser-com é que o outro pode faltar. O estar só é um modo deficiente de ser-com e sua possibilidade é a prova disso. Por outro lado, o fato de estar só não é eliminado porque “junto” a mim ocorre um outro exemplar de homem ou dez outros.” (HEIDEGGER, 2002, pg. 172)

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116

para os co-pre-sentes, visto que a pre-sença é em si mesma, essencialmente,

ser-com”170.

Mas, quem é o Outro? O filósofo alemão deixa claro que o Mitsein

não corresponde à totalidade de outros existentes que não eu, mas aqueles

que vêm ao meu encontro no meu mundo. Somente essa proximidade fática

com o Mitsein é que poderia apresentar a capacidade de manifestação

fenomenal do Dasein. O Outro é aquele que está existencialmente ligado a

mim, ainda que este fio condutor seja de elevada extensão. É preciso que haja

faticidade para o compartilhamento do mundo, pois não posso compartilhar o

mundo com o ser do ente que não está na minha cotidianidade.

Abrimos um parêntese para afirmar a dificuldade em se manter essa

perspectiva na atualidade, pois as aberturas da globalização tornam a

cotidianidade do Dasein de uma extensão quase que sem limites. Em tempos

de Google, Facebook e Whatsapp, como dizer que aqueles que tocam a minha

existência não são a totalidade dos demais existentes?171

O Mitsein, como vimos não é tratado como os demais entes

intramundanos subsistentes. A ele não me é dada uma instrumentalidade, ou

seja, ele não me vem como um ser-a-mão. Não posso tratar o Mitsein como

algo que me tem uma serventia, que uso como uso uma caneta. O Outro é com

quem me concretizo na existência. Com esta perspectiva, o autor parece tentar

romper com a racionalidade moderna que intenta a dominação do homem pelo

homem, coisificando o homem e tornando-o como algo a ser dissecado e

compreendido pelo sujeito. A racionalidade moderna, que toma conta das

reflexões jurídicas até hoje, vê o homem como objeto a ser utilizado como

instrumento pelo homem. Definitivamente não é esse o projeto heideggeriano,

que coloca o Outro como estrutura existencial do Dasein, que não pode ser

compreendido senão como um ser-com. O Outro não é instrumento!

Esse esforço heideggeriano, contudo, parece não ter convencido

Emanuel Levinás. O filósofo lituano assevera que o projeto de Heidegger, por

não conter um fundo ético/humanista, simboliza uma totalização do Outro na

170 (HEIDEGGER, 2002, pg. 172) 171 Talvez por isso Heidegger tenha revisado a sua noção de mundo para Terra em seus escritos tardios. Por uma questão de corte epistemológico, preferimos não avançar em tal perspectiva.

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117

constituição do Eu. A relação do ser-com-o-outro evidencia uma primazia do Eu

sobre o Outro, que totalizo e o insiro na minha existência como algo que me

pertence, que é desde sempre meu. Consigo alcançar a existência do Outro e

tomá-la para mim. Frase tão comum entre os apaixonados, o “eu não vivo sem

você” reflete bem essa lógica de apropriação do Outro, em que a preocupação

é sempre comigo, com o meu bem estar, relegando a segundo plano aquele

que está junto.

Por mais que Heidegger tenha retirado o Outro da condição de

instrumento, não foi capaz de romper com uma lógica egocêntrica em que o

Outro está em condição servil. Tenho o Outro como àquele que satisfaz a

minha volúpia e a minha solidão, em que o Outro é sempre aquilo que preciso

e quero ter. Temos amigos porque eles nos confortam. Temos amantes porque

nosso corpo anseia pelo calor do Outro. A relação com o Outro seria um evento

totalizante de apropriação do Mitsein na formação da minha subjetividade.172

Em uma proposta filosófica de resgate do homem, Levinás busca

inverter essa lógica totalitária e inserir uma ética da alteridade como elemento

primeiro na formação do Dasein.173 Para tanto, ele apresenta a evasão do ser

em direção ao Outro. Evasão que se dá como transcendência pré-existencial,

como um movimento metafísico em que o ser se joga em direção ao Outro,

sem nunca conseguir alcançá-lo. A evasão é um sair de si anterior a qualquer

significação ou compreensão que o ser possa ter. Movimento de anterioridade

172 “A crítica levinasiana ao projeto filosófico heideggeriano põe em questão, unicamente, a anulação do Outro. O outro heideggeriano é adequado e identificado ao si-mesmo através de uma operação do saber. Ainda que a ontologia fosse fundamental, seria injusta, porque o eu exerce um poder de se afirmar e de perseverar como princípio em detrimento do outro.” (MELO, 2003, pg. 31) 173 “Louca aspiração ao invisível quando uma experiência pungente do humano ensina, no século XX, que os pensamentos dos homens são conduzidos pelas necessidades, as quais explicam sociedade e história; que a fome e o medo podem vencer toda a resistência humana e toda a liberdade. Não se trata de duvidar da miséria humana – do domínio que as coisas e os maus exercem sobre o homem – da animalidade. Mas ser homem é saber que é assim. A liberdade consiste em saber que a liberdade está em perigo. Mas saber ou ter consciência é ter tempo para evitar e prevenir o momento da inumanidade. É o adiamento perpétuo da hora da traição – ínfima diferença entre o homem e o não-homem – que supõe o desinteresse da bondade, o desejo do absolutamente Outro ou a nobreza, a dimensão da metafísica.” (LEVINÁS, 1988, pg. 23)

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118

a todo o Dito. É o movimento que apresenta à metafísica como precedente da

ontologia.174

Esse movimento de evasão do ser inverte a posição heideggeriana,

colocando o ser como responsável pelo Outro, transformando a relação

existencial em um ser-para-o-outro, na qual a minha resposta ao Outro será

sempre um eis-me-aqui. A responsabilidade175 é a filosofia primeira na ética da

alteridade de Levinás. Esperamos ter a oportunidade para um melhor debate

em obra futura, mas agora é hora de retornar a estrada do pensamento

heideggeriano e continuar no desvelar da estrutura existencial do Dasein.

Retomando o projeto do ser, é preciso compreendê-lo como tal,

como o pre da “pre-sença”.176 “É preciso interpretar o modo de ser em que

esse ente é cotidianamente o “pre” da pre-sença”177.Para tanto, passamos a

174 “A relação do Mesmo e do Outro – ou metafísica – processa-se originalmente como discurso em que o Mesmo, recolhido na sua ipseidade de “eu” – de ente particular e autóctone – sai de si. Uma relação, cujos termos não formam uma totalidade, só pode, pois produzir-se na economia geral do ser como indo de Mim para o Outro, como frente a frente, como desenhando uma distância em profundidade – a do discurso, da bondade, do Desejo – irredutível à estabelecida pela actividade sintética do entendimento entre os termos diversos – diferentes uns em relação aos outros – que se oferecem à sua operação sinóptica” (LEVINÁS, 1988, pg. 27) 175 “A responsabilidade é o que caracteriza a existência subjetiva do sujeito e o que possibilitaria um discurso ético que não se encontra num circuito fechado da relação entre dois amantes (eu-tu), a qual é pensada a partir da realização das suas necessidades. O terceiro desestabiliza, chega como presença que rompe e violenta a vontade, provoca um exame de consciência: todos somos culpados; todos somos responsáveis pelo outro. O terceiro é anterior à lei: as leis que regem a prática da justiça são baseadas na igualdade entre os indivíduos; os direitos dos indivíduos se fundam na dinâmica do respeito entre iguais; a justiça que pensa a sociedade moderna propõe a paz pela limitação, isto é, a retórica da justiça é fruto da defecção, de uma relação marcada pela indiferença, pela indiferença á totalidade. O terceiro intervém no âmbito dessa indiferença e se interpõe para além daquilo que a sociedade moderna chama de moral, para além da lógica das ciências, dos arquétipos psicanalíticos, racionalistas, céticos e utopias sociais. O terceiro é o falante inefável, operante responsável, comunicante inigualável. O terceiro revela que aquilo que chamamos de justiça está a serviço da totalidade: aquilo que levinás chama de injustiça da ação do terceiro.” (MELO, 2003, p. 87) 176 “O que se constitui essencialmente pelo ser-no-mundo é sempre em si mesmo o “pre” da pre-sença. Segundo o significado corrente da palavra, o “pre” da pre-sença remete ao “aqui” e ‘lá”. O “aqui”de um “eu-aqui”sempre se compreende a partir de um “lá” à mão, no sentido de um ser que se dis-tancia e se direciona numa ocupação. A espacialidade existencial da pre-sença que lhe determina o “lugar” já está fundada no ser-no-mundo. O lá é a determinação daquilo que vem ao encontro dentro do mundo. O aqui e lá são apenas possíveis no “pre” da “pre-sença”, isto é, quando se dá um ente que, enquanto serdo “pre” da pre-sença , rasgou espacialidade. Em seu ser mais próprio, este ente traz o caráter de não fechamento. A expressão “pre” refere-se a essa abertura essencial. Através dela, esse ente (pre-sença) está junto ao pre-sente do mundo e se faz pre-sença para si mesmo.” (HEIDEGGER, 2002, pg. 186) 177 HEIDEGGER, 2002, pg. 187.

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119

caminhar em direção a constituição existencial do “pre”, e iniciamos pela

abordagem sobre a disposição afetiva (Befindlichkeit)178.

Para compreendermos a disposição afetiva enquanto existencial do

Dasein, é preciso retornar ao ser lançado. Como já mencionamos, o ser é

desde sempre um ser lançado no aí de um mundo que é a sua morada, em que

há um constante toque de significância da sua existência. Como ser lançado

tenho no “pre” da minha pre-sença um conjunto de afeccionalidades que me

pertencem desde sempre.

O ser-aí, no encontro que tem com o mundo, já possui um conjunto

de tonalidades afetivas que pertencem ao “seer” do ser. As mais diversas

situações do mundo circundante me mostram a afloração de uma afetividade

que faz parte de mim. A disposição afetiva é a abertura do Dasein ao mundo

que o circunda, pois só consigo tocar o mundo com a mesma sensitividade

com que sou tocado. Qual a sensação de uma criança ao nascer? Por mais

que ela nunca tenha tido uma experiência como aquela, o encontro com o

mundo lhe gera um conjunto de sensações. Algo que não é percebido pela sua

racionalidade, mas compreendido pelas sensações que teve. Há uma

instantaneidade no sentir e no compreender.

Talvez a neurociência de Leonard Midlinow ou Miguel Nicolelis seja

capaz de dizer qual a parte do cérebro humano que foi tocado naquela

experiência, mas duvido muito que seja capaz de identificar a sua

individualidade. Dizer que alguém sente medo, frio ou qualquer outro

sentimento não simboliza o dimensionamento individual daquela experiência,

daquela vivência que é só minha, infinitamente minha!

Retomando a ideia da disposição, o que Heidegger parece assentar

é que a sensibilidade do homem está no plano ôntico-ontológico, pois se

mostra como um círculo constitutivo em que o mundo já é desde sempre

ocupado a partir de uma disposição afetiva, mas que o encontro com os

demais entes no mundo também permitem ao ser-aí ser tocado pelo mundo e

alterar a sua mundanidade. Em outras palavras, nenhum agir ou compreender

178 “O que indicamos ontologicamente com o termo disposição é, onticamente, o mais conhecido e o mais cotidiano, a saber, o humor, o estado de humor. Antes de qualquer psicologia dos humores, ainda bastante primitiva, trata-se de ver este fenômeno como um existencial fundamental e delimitar sua estrutura.” (HEIDEGGER, 2002, pg. 188)

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no mundo sai ileso, de forma que não possa ser tocado pelas sensações que

estão no aí do meu ser-aí e, reciprocamente, tocar esse aí de forma que novas

experiências nunca sejam as mesmas. Interessante é a colocação de CUNHA

(2010).

Arriscamos dizer que a disposição afetiva se encontra no âmbito da própria possibilitação compreensiva da teia remissional. Tomemos um exemplo. Eu transito pela calçada e me deparo com um cão enorme solto. O sentido a que este evento me remete não é necessariamente o mesmo do dono do animal, uma vez que ele não está aberto à possibilidade de ser tocado por qualquer ameaça envolvendo o cão. A ameaça não seria assim algo intrínseco ao animal (embora comumente esteja ele associado ao ameaçante). A disposição afetiva, do ponto de vista ontológico, não se identifica tampouco com algum estado psicológico; ao contrário, esses somente são possíveis diante de uma abertura para que eclodam. Assim, o medo de algo, somente poderá instaurar-se enquanto um estado psicológico, quando estiver aberto ao caráter ameaçante do ameaçador, somente enquanto a “medrosidade” o permitir. (CUNHA, 2010, 178)

Como bem acentuado pelo autor, a disponibilidade afetiva não pode

ser confundida como estado psicológico, pois a disposição é co-originária a

qualquer racionalidade, que já se dá apoiada por alguma sensação humana.

Trata-se de um modo originário do Dasein que se abre para si. O Dasein não é

uma tabula rasa de sentimentos que é preenchido nas vivências do mundo

circundante. Não! A sua percepção sobre esse mundo já se dá por um olhar

sensorial. O primeiro toque no mundo já um toque em que me sinto tocado de

alguma forma. Já há algo que me faz sentir esse toque. Toda e qualquer

percepção que tenho do mundo já se faz com alguma sensação.

O meu encontro com o mundo não se dá no racional a priori, mas

com as afeições pertencentes do meu “seer”. Não conheço o mundo para

depois senti-lo, já o conheço sentindo. Não consigo acessar o mundo sem o

“pre” da minha pre-sença, sem as pre-compreensões que estão desde sempre

em mim. Com isso rasga-se de vez toda pretensão de objetividade, pois não

consigo compreender nada de forma puramente racional, nada que retire de

mim a condição de ser que sente.

Com efeito, não é possível que o Direito continue a acreditar na

fábula de que o intérprete é um sujeito que deve ser imparcial diante de um

fato, que deve analisá-lo a partir da sua pura racionalidade. Objetivamente!

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“Seja racional, não seja passional”, já dizia vovó! Talvez a fala da Dona Celeste

(minha avó) sirva como aconchego, como acolhimento ao neto pelas

decepções ocorridas na vida, mas não como uma forma de encarar e de

conceber o Direito.

Não é palatável a crença de que um julgador aplicará a lei sem

qualquer interferência valorativa. Como diria meu amigo Leonardo Wykrota

“neutro é detergente, neutro não é gente”. O que perquire de um magistrado

não é a neutralidade, mas sim a ausência de interesse particular direto no

julgamento, ou seja, um direcionamento consciente do julgar. Os valores

compõem a racionalidade do homem, que julga com os seus valores, que

visualiza a realidade com os óculos que lhe são seus, só seus.

Recordo-me bem de quando, ainda na graduação, tive como

obrigação extracurricular a visita ao fórum, mais precisamente nas varas de

tóxicos nada aconchegantes. No corredor pude ouvir um burburinho de que

naquela vara o julgamento não era justo, porque a juíza não podia ser

imparcial, já que perdera um filho para o tráfico. Hoje, com as reflexões

presentes nesse trabalho, posso dizer que a visão de justiça enquanto

objetividade no julgamento seria de alcance “im-possível”. Pode-se

eventualmente até dizer que não fora justo, mas não pela ausência de

objetividade, pois esse é um elemento que jamais estará presente na vida

humana. Um juiz que conviveu com o tráfico e outro que não, por mais que não

tenham perdido qualquer parente, não terão a mesma visão sobre aquela

realidade. Não digo que deveria ser assim, que o juiz não deve ser imparcial,

digo que é assim, que não há qualquer possibilidade de um julgamento ser feito

sem a interferência sensorial das partes, pois a disposição afetiva é um

existencial ontológico do Dasein que não pode ser cindido da sua

racionalidade.

A estrutura existencial em que se firma o ser do “pre” da “pre-sença”,

ainda, é sustentada pela compreensão, que se mostra como modo originário do

ser umbilicalmente ligado a disposição179, de modo que o compreender já

179 “Enquanto existenciais disposição e compreensão caracterizam a abertura originária do ser-no-mundo. No modo de ser do humor, a pre-sença vê possibilidades a partir das quais ela é. Na abertura projetiva destas possibilidades, ela já está sempre sintonizada com o humor. O

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122

possui a disposição afetiva que, para ser, precisa ser compreendida. A “com-

pre-ensão” é vista por Heidegger como um existencial fundamental na estrutura

do ser da “pre-sença”, apontando-a como abertura inicial do Dasein ao mundo.

O Dasein se abre ao mundo na sua compreensão do mundo, que também se

abre ao Dasein como uma possibilidade compreensiva.

CRUZ (2011) “a-presenta” o caminho da compreensão como algo

que não está na dependência exclusiva do homem. Diferentemente do que

rascunhou a racionalidade moderna, o homem não possui em si a capacidade

de conhecer as coisas como elas são, mas sim conhecê-las como elas vêm ao

seu encontro e a partir de pre-com-pre-ensões que existem no ser do “pre” da

pre-sença. A com-pre-ensão é um evento fenomenológico no qual o homem é

participante, mas não detém a capacidade de dominá-lo por uma racionalidade

pura. “um processo no qual o homem se propõe estar junto, mas que não

tiraniza pela ideia da técnica”180181.

É preciso visualizar que a compreensão originária, aquela existencial

do “pre” da pre-sença, se desvela como um acontecimento fenomenal que se

dá no ser-em do ser-no-mundo, ou seja, a nossa mundanidade enquanto

possibilidade de modo de ser já está envolvida por um conjunto de

compreensões. Quando se diz que esse modo originário da compreensão se

dá no ser do “pre” da pre-sença pretende-se apontar para a ocorrência de um

fenômeno que precede kairologicamente a constituição do ente. O

compreender como abertura de si para si já é compreendida no fenômeno de

abertura. O fenômeno do ser-no-mundo, como abertura de possibilidades de

ser, já é um movimento de compreensão. Heidegger, com propriedade, diz que

“o ente que existe tem a visão de “si”, somente na medida em que ele se faz,

projeto do poder-ser mais próprio está entregue ao fato de ser lançado no pre da pre-sença” (HEIDEGGER, 2002, .pg. 204) 180 CRUZ, 2011, pg. 129. 181 “A compreensão deixa de ser entendida como ato da razão, mera função de meu intelecto, ação de meu ego, elemento de minha consciência e assume a condição de uma dádiva que o Dasein tem para se constituir como tal. A compreensão não existe para que o homem domine a natureza, submeta-a a seu intelecto, como Tomás de Aquino e Descartes supunham. A compreensão compõe o homem como uma abertura que o Dasein tem para se apropriar do mundo ser também apropriado” (CRUZ, 2011, pg. 129)

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123

de modo igualmente originário, transparente em seu ser junto ao mundo, em

seu ser-com os outros, momentos constitutivos de sua existência ”182.

A compreensão é um olhar originário da pre-sença em seu projeto,

uma compreensão de si na abertura das possibilidades de vir-a-ser. Nesse

sentido, o filósofo alemão dirá que a compreensão no caráter existencial do

projeto constitui a visão (Sicht) da pre-sença. A visão é o modo em que se dá o

desvelamento do ente que vem ao meu encontro, de modo que eu tenho

acesso a um de seus in-finitos modos de ser183. A visão é um modo originário

da pre-sença que já caracteriza a circunvisão da ocupação184.

Essa primeira compreensão de si, como “captação compreensiva de

toda abertura do ser-no-mundo através dos momentos essenciais de sua

constituição”185, Heidegger irá denominar de clarividência186 (Durchsichtigkeit).

A clarividência se mostra como uma compreensão de si, como uma abertura

para si no momento inicial da constituição do Dasein. Dubois (2004), com

especial felicidade, aborda que:

“O segundo existencial que estrutura a abertura do Dasein é a compreensão. Nós já utilizamos com frequência este verbo: o Dasein se compreende, ele compreende seu mundo... o que isso significa? O Dasein, como dissemos, é em função de si. Este ser em função de si

182 HEIDEGGER, 2002, pg. 202 183 “Deve-se resguardar o termo “visão” de mal-entendidos. Ele corresponde à iluminação, o que caracterizamos como abertura do pre. “Ver” significa não só não perceber com os olhos do corpo como também não apreender, de modo puro e com os olhos do espírito, algo simplesmente dado em seu ser simplesmente dado. Para o significado existencial de visão, a única coisa a ser levada em conta é a particularidade do ver em que o ente a ele acessível se deixa encontrar descoberto em si mesmo. É o que todo “sentido” realiza em seu âmbito genuíno de descoberta. A tradição da filosofia, porém, orienta-se, desde o princípio, primariamente pelo “ver” enquanto modo de acesso para o ente e para o ser. A fim de manter um nexo com a tradição, pode-se formalizar a visão e o ver de modo tão amplo a ponto de se conquistar um termo universal capaz de caracterizar como acesso todo acesso ao ser”. (HEIDEGGER, 2002, pg. 203) 184 HEIDEGGER, 2002, pg. 202 185 HEIDEGGER, 2002, pg. 202. 186 Na versão do livro em português, Márcia Sá Cavalcante Schuback utiliza o termo “transparência”, que seria uma tradução mais literal. A utilização do termo “transparência” parece pretender apontar para uma ausência de escritos significativos na existência no momento da compreensão originária, ou seja, uma primeira significação antes da própria significação, uma significação que se dá no momento constitutivo da existência. Entretanto, o contexto significativo nos conduz a utilização do termo “clarividência”, que nos traz a ideia de uma primeira luz de significação, ainda bem míope, como um primeiro olhar após uma luz ofuscante. Preferimos esse termo, pois o “transparente” pode apontar para uma tabula rasa do Dasein, que não corresponde com o pretendido pelo autor, pois a compreensão como abertura do “pre” já é um modo de ser do Dasein. Mesmo no “pre” a pre-sença já se desvela como algo que pode ser.

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124

é a raiz na qual se configura o mundo, o mundo sendo sempre pro-jetado, lançado em vista de mim mesmo, como “meu mundo”. Ser em função de si significa ao mesmo tempo duas coisas: estar aberto para si, conhecer-se em termos de ser-no-mundo (e não se conhecer no retorno reflexivo a si), e ser fim para si mesmo. Este é o sentido da compreensão: o si mesmo aberto em projeto como ser-no-mundo. O compreender não é, portanto, uma capacidade teorética do Dasein (entendimento ou razão), ainda que a origem desta também esteja nele. Trata-se muito antes de uma estrutura de seu ser, de sua existência, como poder ser como abertura para si mesmo como possibilidade. O possível do Dasein, suas possibilidades, por sua vez, não são categorias da modalidade, mas sua existência mesma, sua mais própria “realidade”. [...] Compreender-se quer dizer em princípio mal-compreender-se, estar na caverna, opacidade, cegueira. Ou ainda, a compreensão é sempre modulada: ela é ou imprópria, compreensão de si a partir do que se faz, do que se diz se deve fazer etc., ou é uma compreensão própria de si, abertura verdadeira. Sobre esta última, tendo em vista nosso ponto de partida, nada ainda sabemos, salvo que a compreensão própria de si deverá possuir a forma de uma ruptura com compreensão imprópria, uma certa apropriação própria, pelo Dasein, de seu poder-ser.” (DUBOIS, 2004, P. 36/37)

A compreensão não é uma capacidade lógico-racional do homem de

conhecer as coisas como elas são, mas de enxergá-las como elas se parecem

para mim na minha abertura, com um olhar que é sempre míope, incapaz de

alcançar a totalidade de significações de um ente. Há sempre um ponto cego,

aquilo que não consigo enxergar por detrás da significação que dei/me

deram187 ao ente. Nos seus in-finitos modos de ser, os entes vem ao meu

encontro em um desvelar de uma possibilidade de ser. Compreendo o mundo

não como ele é, mas como ele se dá na minha abertura. Essa compreensão

em que se apropria do compreendido, Heidegger chamará de interpretação. A

interpretação é o desvelar de uma possibilidade de ser captada pela minha

abertura como projeção de ser, ou seja, ao pro-jetar ao mundo, o Dasein o

compreende por meio da abertura de significância que se abriu.

O interpretar não parte do zero, de uma racionalidade que sai

espacialmente do corpo e interpreta algo como ele é como um simplesmente

dado. Interpretar é um relacionar com a compreensão prévia que tenho sobre

algo que vem ao meu encontro como uma possibilidade de ser. Interpreto que

uma caneta me serve para escrita porque na minha abertura compreensiva do

mundo enquanto ser-no-mundo a caneta veio ao meu encontro como a

187 Circularidade! Se já uso o português para entificar, desde já qualquer sentido de qualquer coisa já foi me dado de antemão!

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125

possibilidade de ser um instrumento para a escrita, mas isso não significa que

ela é um instrumento para a escrita, pois ela pode vir ao meu encontro como

outra possibilidade de ser, como um abridor de garrafas para quem tiver

habilidade para tanto. A caneta não vem no formato de “o quê”, mas de “como”,

isto é, como ela se a-presenta na minha cotidianidade.

No jogo do Direito, o interpretar não é um conhecer a norma, mas

desvelar o modo de ser que ela vem a mim na minha compreensão. Interpretar

não é aplicá-la como ela é, como se eu apenas mostrasse a sua essência na

hora do decidir. Interpretar é dar ao caso concreto a melhor decisão com base

na instrumentalidade de como a norma vem ao meu encontro. Em outras

palavras, não se trata de dizer que é tipificado como tráfico a venda de

substância ilícita, ainda que para fins medicinais. O caso do “canabidiol” é um

bom exemplo sobre essa perspectiva. Para quem não se recorda o canabidiol,

não obstante fosse uma substância considerada ilícita pela ANVISA, tinha

efeitos terapêuticos consideráveis em pacientes com doenças

neurodegenerativas, como o mal de Parkinson e ELA (esclerose lateral

amiotrófica).

A pergunta é: um médico ou um farmacêutico (para fugir da relação

de proximidade em razão de parentesco) que auxiliem na produção de

canabidiol para fins terapêuticos e que venham a distribuí-lo gratuitamente aos

seus pacientes, encontram-se na mesma situação de um sujeito que vende

maconha para fins alucinógenos? A forma como o tipo penal inscrito no artigo

33 da Lei 11.343/2006 vem ao meu compreender é a mesma? Em ambas as

situações, estamos diante de pessoas que manuseiam substâncias

consideradas ilícitas, mas a forma como esse fato vem a mim não será a

mesma. Os fatos sempre possuem variações não só na ocorrência, mas

também como eles vêm a mim, como a minha abertura compreensiva permite

interpretá-los.

Importante dizer que essa percepção não decorre de uma valoração

subjetiva do Direito. Não estamos a dizer que o intérprete deve analisar de

forma diversa, porque seria mais justo agir assim. Se assim nos colocássemos,

dando uma resposta correta para a situação, cairíamos em contradição com o

que se está a defender. A nossa posição é apenas que o fato não vem ao

Page 127: DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

126

nosso encontro de forma idêntica, de modo que não é possível uma

interpretação subsuntiva, que pressupõe uma identidade fática. No caso acima,

em uma ou outra hipótese poderíamos ter diversas respostas fundadas nas

mais diversas fundamentações (como factualmente teríamos), e isso não

decorre da incapacidade lógica do intérprete, mas da sua im-possibilidade de

ter a priori qual a decisão correta. A interpretação da norma nunca será isenta

das compreensões prévias que temos do mundo e, portanto, nunca traduzirão

uma verdade científica enquanto certeza jurídica.188 No direito não há certeza,

só pretensão de certeza!

A interpretação não nos conduz ao significado do ente, mas ao seu

sentido. Segundo Heidegger, “sentido é a perspectiva em função da qual se

estrutura o projeto pela posição prévia, visão prévia e concepção prévia. É a

partir dela que algo se torna compreensível como algo”.189 Isso quer dizer que

eu nunca chego ao ente como ele é, mas como ele se a-presenta para mim

como possibilidade. O sentido do ente que vem ao meu encontro se dá na

abertura compreensiva com ele e que permite vê-lo como possibilidade. O

sentido compreendido de algo nunca é sua essência, nunca chego ao ente em

si. Desse modo, compreender o sentido normativo não é transformá-lo em algo

estático, finito, mas sim interpretar a forma como ele vem a mim na abertura

compreensiva em que se manifestam as minhas pre-compreensões.

Heidegger deixa bem claro que esse movimento interpretativo-

compreensivo não se fecha em um círculo, dando uma conotação fechada do

ente que me é a-presentado. Não fico preso em um círculo interpretativo que

condiciona a interpretação, mostrando-me sempre o mesmo sentido, como se

estivéssemos presos em uma dimensão compreensiva. Não! O círculo não

fecha a compreensão e nem se baseia em mera intuição. Devemos visualizar o

círculo da compreensão como uma espiral ou um círculo, como um movimento

188 “A interpretação de algo como algo se funda, essencialmente, numa posição prévia, visão prévia e concepção prévia. A interpretação nunca é apreensão de um dado preliminar, isenta de pressuposições. Se a concreção da interpretação, no sentido da interpretação textual exata, se compraz em se basear nisso que “está” no texto, aquilo que, de imediato, apresenta como estando no texto nada mais é do que a opinião prévia, indiscutida e supostamente evidente, do intérprete. Em todo princípio de interpretação, ela se apresenta como sendo aquilo que a interpretação necessariamente já “põe”, ou seja, que é preliminarmente dado na posição prévia, visão prévia e concepção prévia.” (HEIDEGGER, 2002, pg. 207) 189 HEIDEGGER, 2002, pg. 208.

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127

que não cessa e nem se fecha, tornando a compreensão sempre algo

inacabado, sujeita a uma nova interpretação, que também ocasionará uma

nova compreensão.

Mas, ver nesse círculo um vício, buscar caminhos para evitá-lo e também “senti-lo” apenas como imperfeição inevitável, significa um mal-entendido de princípio acerca do que é compreensão. Não se trata de equiparar compreensão e interpretação a um ideal de conhecimento, que determinado em si mesmo não passa de uma degeneração e que, na tarefa devida de aprender o ser simplesmente dado, perdeu-se na incompreensão de sua essência. Para se preencher as condições fundamentais de uma interpretação possível, não se devem desconhecer as suas condições essenciais de realização. O decisivo não é sair do círculo, mas entrar no círculo de modo adequado. Esse círculo da compreensão não é um cerco em que se movimentasse qualquer tipo de conhecimento. Ele exprime a estrutura prévia-existencial, própria da presença. O círculo não deve ser rebaixado a um vitiosum, mesmo que apenas tolerado. Nele se esconde a possibilidade positiva do conhecimento mais originário que, de certo, só pode ser apreendida de modo autêntico se a interpretação tiver compreendido que sua primeira, única e última tarefa são de não guiar, na posição prévia, visão prévia e concepção prévia por conceitos ingênuos e “chutes”. [...] a compreensão, de acordo com seu sentido existencial, é o poder-ser da própria pre-sença, as pressuposições ontológicas do conhecimento histórico ultrapassam, em princípio, a ideia de rigor das ciências mais exatas.190

Até aqui vimos que a disposição e a compreensão são aberturas do

“pre” da pre-sença no seu modo originário de ser, tratando-se de existenciais-

ontológicos. Toda a compreensão já apresenta em si uma carga de afetividade,

estando compreensão e disposição umbilicalmente ligadas. Entretanto, há mais

um existencial a ser considerado. A compreensão se dá de forma estruturada,

articulada em proposições que desvelam o sentido das coisas. Com efeito, o

discurso191 também é visualizado como um existencial originário da pre-sença.

A linguagem permite que a compreensão se forme no existir do Dasein. O

compreender enquanto abertura para si já se mostra estruturada

linguisticamente.

Heidegger (2003) manifesta que a linguagem viabiliza a condição do

ser enquanto aquele que compreende a si próprio, fazendo do homem o único

190 HEIDEGGER, 2002, §32 191 “O fundamento ontológico-existencial da linguagem é o discurso. [...] (n)o discurso se acha a base de toda interpretação e proposição. Chamamos de sentido o que pode ser articulado na interpretação e, por conseguinte, mais originariamente ainda, já no discurso.” (HEIDEGGER, 2002, pg. 219)

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128

ser existente. A linguagem permite a articulação do compreender,

possibilitando a abertura do Dasein ao mundo. A linguagem não é referencial

do mundo, não exterioriza uma realidade que fora captada pelo racional, mas

viabiliza o compreender. O compartimentar de percepções presente no

compreender só é possível por causa da linguagem, que aponta a nós mesmos

o que foi compreendido. Sem a linguagem as percepções seriam vazias e

promovidas pelo intuitivo presente na condição animalesca dos entes viventes

que não possuem existência.

A linguagem não é uma propriedade dentre tantas outras do homem,

mas um existencial, aquilo que faz do homem um existente, um ser capaz de

compreender a si próprio e indagar sobre o sentido do ser dos demais entes. O

ser-em, enquanto um ser lançado no mundo, já compreende o mundo e o faz

pela linguagem. Tentamos a todo instante referenciar um objeto com o uso de

um signo linguístico, pois, somente assim, poderemos compreender o sentido

daquele ser. Esse referenciar não é um pós-compreender por meio do qual

utilizamos a linguagem como meio representacional da realidade. Ao contrário,

a linguagem como existencial originário do “pre” da pre-sença, impõe um

movimento fenomenal em que o compreender, a disposição e o discurso estão

presentes nesse movimento que é indissociável.

O discurso também é abertura do ser-com, pois a linguagem é

manifestação comunicacional que se dá com o Outro, com o Mitsein. O

compreender heideggeriano não se dá de forma solipsista, pois a linguagem

enquanto existencial se dá na relação com o outro, na manifestação do Dasein

como ser-junto-ao-outro. Se a linguagem não é espelhamento da realidade,

mas existencial do modo originário do ser que se revela como ser-com, então

podemos afirmar que a compreensão se manifesta linguisticamente na

comunicação com o Outro. Heidegger deixa isso bem claro quando manifesta

que a escuta é uma “possibilidade existencial inerente ao próprio discurso”192.

O discurso não é um comportamento ativo em que o Dasein simplesmente fala.

O falar imprime a condição de ouvinte, de escutar aquilo que está sendo dito. O

discurso apresenta na escuta a passividade linguística-compreensiva do

homem, que compreende na abertura do escutar, do abrir-se para o mundo

192 HEIDEGGER, 2002, pg. 222.

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129

que vem ao seu encontro. Não é a toa que, como diz o filósofo, dizemos que

não compreendemos “bem” quando a nossa escuta não foi boa.193

O ouvir como manifestação do discurso originário fica mais em

evidência quando percebemos a nossa incapacidade em escutar algo como é,

isolado da condição de ser-no-mundo. Quando ouvimos um barulho ou um

ruído, o som é aquele que vem a nós, como, por exemplo, o ruído de um carro

ou o ranger de uma carteira. Mesmo que o ouvir se dê como primeiro contato

com o ente, a significação do sentido do ente é alcançada junto ao relacionar

com o ente, na condição de ser-no-mundo. A significação não é dada primeiro,

mas no acontecimento fenomenal em que o ruído vem ao meu encontro no

mundo.194

O discurso ainda pode ser constituído pelo silêncio. Silêncio que

significa se calar quando se tinha o que falar; se calar por opção de se abrir à

escuta, se mostrar como capaz de ouvir. O filósofo alemão diz que o silêncio na

forma de existencial somente é possível no discurso autêntico, pois aquele que

se mostra mudo ou que pouco fala não possui o modo de silenciar. Silencia

àquele que pode falar, mas não o fala. Aquele que foge do falatório, do lugar

onde se fala e nada se discursa, pois não há movimento de compreensão

autêntica, mas só repetição do dito. Há um velho brocardo de que “aquele que

muito fala, nada tem a comunicar”. Talvez seja bem essa ideia trabalhada por

Heidegger, de que discursar é um movimento em torno da compreensão

autêntica, daquela reflexiva e que busca desvelar o sentido dos entes e não

apenas repetir, repetir e repetir.

O silêncio é ensurdecedor e nos permite sentir melhor o fenômeno

da compreensão, do formular o discurso sem uma palavra, apenas

estruturando a compreensão. “Para que falar?”, já dizia o poeta Cazuza. O

193 “A pre-sença escuta porque compreende. Como ser-no-mundo articulado em compreensões com os outros, a pre-sença obedece na escuta à coexistência e a si própria, “pertencente” a essa obediência. O escutar recíproco de um e outro, onde se forma e elabora o ser-com, possui os modos possíveis de seguir, acompanhar e os modos privativos de não ouvir, resistir, defender-se e fazer frente a.” (HEIDEGGER, 2002, pg. 222) 194 “o fato de ouvirmos primeiramente motocicletas e carros constitui um testemunho fenomenal de que a pre-sença, enquanto ser-no-mundo, já sempre se detém junto ao que está à mão dentro do mundo e não junto a “sensações”, cujo turbilhão tivesse o ser primeiro formado para propiciar o trampolim de onde o sujeito pudesse pular para finalmente alcançar o “mundo”. Sendo, em sua essência, compreensiva, a pre-sença está, desde o início, junto ao que ela compreende.” (HEIDEGGER, 2002, pg. 222/223)

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130

codinome beija-flor não precisa ser dito, pois no silêncio em que ele é mantido

é que há a compreensão do seu sentido. Dizer, nesse caso, é uma

manifestação do nada, da inautenticidade da compreensão. Deve-se

compreender no silêncio do discurso.

Esse silêncio, enquanto modo do discurso parece convidativo.

Parece nos convidar ao silêncio. Há muito mais a dizer. Mas sempre há. Nunca

conseguimos esgotar uma significação, pois ela reflete apenas a clarividência

presente no nosso compreender que é sempre míope, incapaz de enxergar a

totalidade de significâncias.

Mas ainda há um sopro de voz, suficiente apenas para responder

aos reclames do leitor. Por que interromper a caminhada? Ainda há várias

migalhas deixadas no texto e que não foram elucidadas. Há muito ainda a

abordar sobre o pensamento heideggeriano195. Por que parou? Parou por quê?

Um primeiro respiro altivo me fez lembrar Lesley Gore e sua célebre música

tocada centenas de vezes na Sessão da Tarde “it is my party and I will cry if I

want to”. O rosto do Outro que me interpela e me recorda da minha

insignificância e da minha responsabilidade ética me repudia exigindo outra

resposta. Afinal, o Telekid já me ensinara nas nostálgicas tardes de uma

distante (mas nem tão distante) infância que “porque sim não é resposta!”. O

Outro me exige mais, exige-me uma resposta sincera.

O parar aqui é uma escolha epistemológica196, capaz de me auxiliar

nos constructos propostos nesse trabalho de que não é possível alcançar a

objetividade normativa presente na ideia de tipicidade. O corte epistemológico

feito nos dá o suporte necessário para responder à pergunta formulada no

início deste capítulo. Por que Heidegger?

Porque ele nos mostra um caminho em que se desvela o homem

não como um ser puramente racional que tudo controla e tudo domina pela sua

capacidade cognitiva que se separa das sentimentalidades e percepções do

195 Para ser sincero, até prefiro o II Heidegger ou o Heidegger tardio. Preferia abordar a estética heideggeriana e o seu giro da linguagem para a poesia. Preferia abordar a temporalidade do Dasein. Preferia aprofundar na existência autêntica e inautêntica. Abordar o Impessoal. Sinceramente, preferia continuar. Preferia... 196 Sim! Escolha epistemológica. Não há uma razão pura que me diga qual o motivo exato do parar. Foi uma escolha entre caminhos possíveis. Poderia continuar, mas precisei fazer o corte aqui. Ao mesmo tempo a escolha não é aleatória ou intuitiva, por isso epistemológica, porque se deu na busca sincera por um melhor caminho científico.

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131

mundo. A cognição humana está repleta da sua humanidade, da sua

incapacidade de se separar do mundo e de vê-lo objetivamente, pois o mundo

se dá no evento fenomenológico de constituição do Dasein. A compreensão é

sempre a partir de um mundo em que somos jogados, não há pureza.

Compreender é um desvelar que se dá no prévio, naquilo que somos antes

mesmo de ser. Compreender é abrir-se com todo o pre da pre-sença, com as

pre-compreensões pertencentes ao nosso ser.

Assim, o homem neutro, com a capacidade hercúlea de trazer justiça

aplicando a lei na sua essência, como foi idealizado no pensamento jurídico

contemporâneo, não existe. Ou mesmo aquele que deve estar preocupado

apenas com a segurança jurídica, que deve julgar para dar previsibilidade aos

jurisdicionados por meio de decisões idênticas em casos idênticos, não foge do

padecimento da realidade.

A lei não é um algo que nos é simplesmente dado, em que eu

percebo a sua essência, mas um instrumento que tem o seu sentido desvelado

no encontro com a minha existência. Isso significa que a significação normativa

é dada por cada ser humano com o olhar que lhe é próprio. Não há

univocidade significativa.

Do mesmo modo não há casos idênticos, pois cada circunstância

vem a mim em uma percepção compreensiva diferente. O meu olhar nunca é o

mesmo, pois o “seer” do meu ser impede a minha compreensão estática. O

meu ser é um contínuo sendo que se dá e se altera na existência. Com isso,

podemos dizer que a significação é alcançada em cada caso concreto, no qual

eu desvelarei naquela hipótese o sentido da norma a ser aplicada.

Em outros termos, não há uma essencialidade da norma e nem uma

quididade do homem a ponto de me dizer qual será o único sentido em que

aquela norma poderá ser aplicada. A imprecisão normativa, além de se dar

uma impossibilidade de alcance a um conjunto linguístico perfeito – como

apontamos nos capítulos anteriores -, também decorre da imprecisão que de-

fine o homem, que escancara as suas ambiguidades. Por que o juiz decidiu de

duas formas diferentes? Porque ele é homem e, como tal, compreende as

situações de modos diversos. Impossível fugir dessa realidade, ou melhor, da

facticidade que influencia no seu decidir.

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132

Dessa forma, a razão epistemológica de usar Heidegger nesse

trabalho, se é que há uma, seria de que ele nos revela uma realidade

encoberta durante o racionalismo moderno. Uma realidade de que o homem

não pode ser caracterizado como um universal, como um ser

unidimensionalizado, que possui um único modo de ser. Usamos Heidegger

como pretensão de certeza de que a certeza pura certamente se perdeu na

ilusão de estar sempre certa. Não há uma única forma de interpretar, pois o

interpretar é constitutivo da compreensão, que não se separa da condição de

ser-no-mundo daquele que interpreta.

Em outras palavras, a tipicidade não pode ser cerrada, com a

possibilidade de uma única interpretação, porque cada interpretação será única

em si, correlacionada com a visão que o intérprete tem do mundo que lhe é

existencial. Não há uma resposta correta a priori, pelo menos não uma única

resposta.

Vale aclarar que não estamos a defender um ceticismo científico,

dizendo que tudo é válido. Que a validade do direito encontra-se no cargo do

intérprete, que pode fazer o que quiser. Não, definitivamente não! Apenas

atestamos a “im-possibilidade” de termos uma descrição completa da realidade

ou mesmo objetiva, uma vez que a “com-pre-ensão” do homem não se dá por

uma razão pura capaz de perceber a totalidade do mundo a partir de um olhar

neutro. Essa não é uma proposta de superação do modelo racional, mas uma

atestação de como se dá o processo cognitivo pelo homem. Com o objetivo de

a-presentar o nosso posicionamento na sociedade vigente, caminharemos no

próximo capítulo pela estrada do empirismo, investigando em casos concretos

a viabilidade da nossa pesquisa.

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133

CAPÍTULO V – TEORIA OU PRÁTICA?

Muitos trabalhos renovadores do direito recebem como crítica a não

conversão para a prática daquilo que se está a-presentando. “Heidegger não

se usa em petições iniciais”, reclamam alguns. Realmente é preciso tomar

cuidado para não recair em um elitismo acadêmico, encastelando-se em uma

Torre de Marfim, preso na própria soberba de não se importar se são úteis tais

reflexões. Mesmo acreditando não ser palatável a separação entre teoria e

prática, a pretensão do nosso estudo não é a idealização do direito,

distanciando-se do que acontece no dia a dia. Ao revés, tentamos revelar como

ele acontece na faticidade do homem. Assim, a proposta para este capítulo é

caminhar pelo deserto mundo do real, buscando, a partir de casos concretos,

mostrar teoria e prática na sua comunhão. Bem verdade que essa comunhão

foi atestada ao longo de todo o trabalho, sendo que, sempre que a nossa

sensibilidade foi alertada, identificamos no direito as percepções filosóficas que

estavam sendo a-presentadas. Entretanto, na inseparabilidade da teoria e da

prática, resolvemos aqui inverter a lógica dissertativa. Apresentaremos os

casos tentando, a partir deles, atestar o dito dessa obra. Na imensidão de

possibilidades que se fazem presentes, abordaremos aquelas que vierem ao

nosso encontro por acaso. Parafraseando Carlos Drummond de Andrade, há

sem razões no escolher desses exemplos.

Começamos pela investigação da possibilidade de fechamento

conceitual das hipóteses de incidência tributária (para alguns doutrinadores,

deve-se adotar o termo fato gerador, tendo em vista a expressa previsão do

artigo 114 do CTN) 197, que DERZI (1988) chama de tipo em sentido impróprio

e, balizada em Hensel, conceitua como “descrição de um concreto estado de

197 A professora Misabel Derzi (1988) nos esclarece que a teoria do Tatbestand foi absorvida pelo Direito Tributário que, inicialmente, no Brasil, adotou-se “fato gerador” como termo referencial à expressão alemã. Anota, ainda, que a obra de A. Falcão teria proposto a utilização do termo “hipótese de incidência”. Apenas para facilitar a leitura da obra, acompanharemos apenas para fins didáticos a construção realizada por Geraldo Ataliba na sua festejada obra “Hipótese de Incidência Tributária”, na qual, em apertada síntese, podemos afirmar que ele diferencia a hipótese de incidência tributária como a descrição abstrata do fato que ocasiona a possibilidade de tributação e o fato gerador como acontecimento concreto que permite a cobrança do tributo.

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134

coisas”. Trata-se do apontamento de quais são as características essenciais

para que uma situação seja tributada pelo estado. Ocorrendo faticamente

aquela hipótese normativa, configura-se o fato gerador, nascendo a obrigação

tributária.

Sem a aspiração de adentrar nas minúcias sobre o tema, é sonora a

doutrina que defende que, como corolário da legalidade, a previsão normativa

que institui um tributo deve conter conceitos jurídicos determinados, impedindo

a ampliação para outros casos que não foram taxativamente previstos ou a

inclusão de contribuintes não especificados no texto. Consubstanciaria em uma

segurança ao contribuinte, que teria a previsibilidade de qual conjectura exigiria

o pagamento ao ente estatal198. O simples deparar com a disposição legal já

permitiria a visualização se o fato seria ou não tributável. Será que é mesmo

possível alcançar essa certeza jurídica?

Os chamados “easy cases” de Herbert Hart, sonho dogmático da

Escola da Exegese, não existe. Não há uma essência por detrás do signo que

garanta essa certeza. No cotidiano forense, o “positivismo” oferece a ilusão do

método subsuntivo, da junção entre “fato gerador” e a “hipótese legal de

incidência”. Em verdade, o que “garante” essa incidência é a ostensividade de

uma gramática social que “vende” a imagem da eternidade de significados

semânticos. Pobre dos advogados se fosse assim! Não haveria a criatividade

para buscar “exceções”, “interpretações conforme”, “distinções

jurisprudenciais”, “superações de precedentes” ou “analogia”. Essa “certeza”

subsuntiva, porém, sustenta-se na provisoriedade de conceitos que são

interpretativos. Intoxicações linguísticas, antinomias, dúvidas sintáticas se

acumulam diante de uma hermenêutica de fundo concretista. “Casos fáceis” de

hoje se tornam “casos difíceis (hard cases)” amanhã e vice-versa. O círculo

hermenêutico não tem freio, não tem pausa ou descanso. Uma evasão sem fim

do humano pelo humano. Não temos como esgotar o assunto, pois a epifania

não se encerra jamais. Podemos apenas tatear, buscar no fundo do armário

aquilo que pode iluminar o argumento. Busca ao acaso, busca de casos caso o

leitor não tenha se convencido do nosso “caso”. Vejamos então.

198 “[...] supõe assim uma possibilidade de previsão objetiva e esta exige, por seu turno, uma segurança quanto aos elementos que a afetam” (MACHADO,1991, p. 17)

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135

Tomamos inicialmente o exemplo do denominado Imposto Predial

Territorial Urbano (IPTU). Segundo o artigo 32 do Código Tributário

Nacional199, todo aquele indivíduo que detiver a propriedade, a posse ou o

domínio útil de bem imóvel urbano será responsável pela pertinente obrigação

tributária. Nos termos do referido artigo, os sujeitos passivos podem ser os

proprietários200, os possuidores ou os detentores de domínio útil.

Quanto a figura do possuidor, o STJ e o STF201 firmaram o

entendimento que o tributo era direcionado aos possuidores com animus

domini, excluindo, assim, figuras como o locatário e o comodatário. Já em um

primeiro momento podemos perceber que a leitura interpretativa do STJ e do

STF modificou o sentido do termo usualmente empregado no Código Civil de

2002202, que expressa em seu artigo 1.204 que a posse é adquirida pelo

exercício em nome próprio de algum dos direitos relacionados à propriedade. A

interpretação jurisprudencial consolidou o entendimento que, como o IPTU

incide sobre a relação de propriedade, o sentido da “posse” expresso na norma

deveria se alinhar à tese de Von Jhering e toldar apenas as hipóteses em que

há a exteriorização da condição possessória, ou seja, quando há a aparência

de dono203.

Mesmo após a “pacificação” jurisprudencial, nada impediu a

ocorrência de uma mutação significativa, como se pode perceber da análise

feita por GODÓI (2011) sobre os julgamentos dos RE 451.152 e RE 434.251204.

199 “Art. 32 - O imposto, de competência dos Municípios, sobre a propriedade predial e territorial urbana tem como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel por natureza ou por acessão física, como definido na lei civil, localizado na zona urbana do Município.” 200 Remetendo-se ao Direito Civil, que exige o registro do título translatício de propriedade no pertinente Cartório de Imóveis para que se consolide a condição de proprietário, consoante artigo 1.245 do Código Civil de 2001. 201 V RESP 325.489 e RE 265.749. 202 Um olhar para o passado nos permite visualizar a ausência de sentido unívoco de “posse”. Não há um espelhamento entre referente e objeto. A leitura feita por Savigny desse acontecimento jurídico não é a mesma realizada por Von Jhering. Enquanto o primeiro defendeu que a posse imprescindia do exercício de um poder físico sobre a coisa, Jhering defendia a exteriorização da affectio tenendi como requisito para caracterização da posse. Podemos, ainda, mudar a lente e visualizar a “posse” sob outra ótica. Quando se diz que o Presidente da República ou um servidor público tomou posse no cargo, não estamos a afirmar que ele está no uso, gozo ou fruição de um bem, mas sim que ele passa a agir em serviço da sociedade no exercício daquela atividade profissional. Tudo isso ajuda a reforçar a im-possibilidade de se ontologizar a “posse”, que se a-presenta em in-finitos modos de ser. 203 V. o voto do Ministro Garcia Vieira no Resp 40.240/SP, publicado em 21/02/94. 204 Ainda pendente de julgamento, estando com pedido de vista pela Ministra Carmen Lúcia.

Page 137: DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

136

Nesses casos discutiu-se a aplicação da imunidade recíproca, avaliando a

plausibilidade de cobrança de IPTU sobre imóveis cedidos por entes públicos a

entidades particulares. GODOI (2011) observa que há uma tendência na

superação do precedente, devendo o Tribunal passar a considerar como

possível a cobrança do tributo quando a posse direta não estiver sendo

exercida pelo ente público, tributando, assim, possuidores sem o animus

domini.

Ao que parece, o que norteou a mudança de posicionamento da

corte não foi a alteração dos elementos sintáxicos da hipótese de incidência,

mas a compreensão dada diante do caso concreto que a imunidade concedida

naquelas situações ocasionaria um desequilíbrio nas relações de mercado.

Note-se que a provável superação do precedente decorrerá da troca de lente

da razão, que passou a ler o enunciado a partir de outra ótica, enxergando uma

realidade que estava oculta e que foi revelada pela iluminação de uma lanterna

que não alcança a totalidade fática do mundo. Mais uma vez apontamos que o

conceito não pode ser compreendido como determinado ou indeterminado fora

do seu locus significativo, pois sempre há a possibilidade de alteração do

sentido. A expressão possui significâncias, não significado. O ente não é o ser.

Ainda é possível ir além. Como mencionamos acima, a propriedade

para fins tributários é aquela que consta do registro de imóveis. Entretanto,

quem não pode exercer o direito de uso, gozo ou disposição de um bem – que

seriam direitos inerentes a propriedade -, mesmo assim pode ser considerado

proprietário, simplesmente por constar seu nome nos registros cartorários? O

próprio STJ, no julgamento do Resp 963.449/PR avaliou no caso concreto que

a formalidade do registro não passa de “casca vazia” quando não se tem o

efetivo exercício dos direitos de propriedade.

Outro ponto que podemos aventar sobre a propriedade é que o

sentido usualmente empregado está estruturado pelas noções do estado

liberal. Caso houvesse uma mudança ideológica profunda no país - como

alardeiam os opositores do Governo Dilma e defendem os partidos políticos de

extrema esquerda - e caminhássemos para um “socialismo bolivariano”,

palpitaria que a concepção de propriedade teria o seu sentido sensivelmente

alterado. Insta salientar que não se trata de palpite aventureiro, pois os

Page 138: DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

137

diversos modos de apresentação da propriedade nos permite tal presságio.

Afinal, o direito de propriedade expresso no artigo 72 da Constituição da

República dos Estados Unidos do Brasil de 1891205, com influências notórias

da Revolução Francesa206, trazia o sentido de uma propriedade exercida

ilimitadamente, quase sem possibilidades de interferência do poder público no

seu exercício.

Por outro lado, a Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946,

não obstante tenha trazido o mesmo texto normativo da Constituição de

1891207, a propriedade era visualizada no jogo de linguagem do Welfare State,

podendo o seu exercício ser limitado ou até mesmo restringido em nome do

bem estar social208.

Para fugirmos da alegação de que o positivismo soluciona esse

enigma pelo seu catálogo interpretativo, podendo-se valer do método

sistemático, podemos visualizar a mudança de sentido da propriedade na

Constituição Federal de 1988, que também traz esse direito no caput do artigo

5º209, inserindo, porém, a exigência de conferir uma função social ao bem. Em

outras palavras, o proprietário tem que dar utilidade para o seu patrimônio.

Porém, uma nova leitura do dispositivo tem dado um sentido diferente ao termo

“função social”, compreendendo que não é a mera conferência de utilidade que

permite a caracterização do requisito constitucional, devendo-se apreciar no

caso concreto se a utilidade não é nociva ou inadequada. Fazer um pasto por

meio do desmatamento não seria na atualidade exercer a propriedade dando-

lhe uma função social.

205 “A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no paiz a inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade, á segurança individual e á propriedade, nos termos seguintes” (BRASIL [1891], 2015) 206 Como, por exemplo, a extinção de privilégios estamentais: “A Republica não admitte privilegios de nascimento, desconhece fóros de nobreza, e extingue as ordens honoríficas existentes e todas as suas prerogativas e regalias, bem como os titulos nobiliarchicos e de conselho.” (BRASIL [1891], 2015) 207 “Artigo 141 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes” (BRASIL [1946], 2015) 208 “Art 147 - O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá, com observância do disposto no art. 141, § 16, promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos.” (BRASIL [1946], 2015) 209 “Art 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes” (BRASIL, 2015 – C)

Page 139: DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

138

Todas essas mutações significativas do termo “propriedade”

reforçam a im-possibilidade de se fixar o sentido de uma proposição por meio

da análise dos seus elementos sintáxicos, como se houvesse um

espelhamento da realidade. Cada termo possui uma pluralidade in-finita de

significâncias e o alcance do sentido é sempre precário e obtido em cada uso.

A formação provisória desse sentido depende, inexoravelmente, do mundo que

circunda o intérprete.

Recorremos, agora, aos exemplos tratados por Felipe Faria de

Oliveira (2010) para robustecer a tese aqui aventada. O artigo 150, VI, “d” da

Constituição Federal de 1988 conferiu imunidade tributária aos livros, aos

jornais, aos periódicos e ao papel destinado a sua impressão. Entretanto, qual

o sentido da expressão “livro”?

Podemos até supor que os legisladores constituintes, quando

decidiram inserir essa norma, tinham em mente que “livro” era aquele objeto

retangular impresso ou datilografado que possui informações relevantes. Ou

melhor, acreditando em um “tecnicismo” do constituinte, podemos vislumbrar

que ele se valeu da Resolução da UNESCO aprovada em sua décima terceira

reunião, no ano de 1964, expressando ser livro toda e qualquer publicação não

periódica, impressa e que contenha mais de 49 páginas210.

Um olhar inicial nos faz crer que o dispositivo constitucional confere

a segurança jurídica e a previsibilidade pretendidas pelo Direito Tributário,

trazendo um conceito determinado, haja vista que há o delineamento preciso

dos elementos materiais e formais necessários para a caracterização do objeto.

Entretanto, na era virtual, poderíamos afastar a aplicação da imunidade em

relação aos ebooks? Além disso, sites compostos por centenas de megabytes

de informação podem ser considerados livros ou periódicos? E o caso dos

livros infantis que, geralmente, não ultrapassam quinze laudas? Mesmo com

relevância educativa e informacional para as nossas crianças, deve-se rejeitar

a sua condição de livro? As apostilas e os álbuns de figurinhas podem ser

210 “A book is a non-periodical printed publication of at least 49 pages, exclusive of the cover pages, published in the country and made available to the public. <<um livro é uma publicação impressa não periódica com pelo menos 49 páginas, excluídas as folhas de rosto, publicado em um país ou disponibilizado para o público>>(tradução nossa)” (UNESCO, 1964, pg. 144)

Page 140: DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

139

considerados “livros”211? Aliás, Misabel Derzi, em atualização da obra de

autoria do ex-Ministro Aliomar de Andrade Baleeiro (2006), anota que o sentido

empregado pela expressão “periódico” foi sendo alterado de acordo com os

casos concretos que desafiaram o judiciário. Seriam as listas telefônicas

protegidas pela imunidade? E a parte publicitária constante de um periódico? E

um periódico especializado na divulgação de marcas?

O que nós pretendemos atestar por meio desses exemplos é que,

mesmo sem alteração sintáxica, o confrontamento da norma com o caso

concreto na dimensão pragmática da linguagem impõe modificações

semânticas e construções provisórias de sentido. A univocidade pretendida na

ideia de conceito abstrato classificatório se mostra cada vez mais como uma

quimera, como uma ilusão de ótica que nos faz acreditar ser real a percepção

total e objetiva da realidade.

Ilusória também é a crença que as nossas ações não estão

permeadas pelas pré-compreensões presentes no nosso “pre” enquanto “pre-

sença”. Exemplos certamente não nos faltam para atestar essa afirmação, mas

aqui optamos por um que fora amplamente divulgado pelas mídias sociais no

ano de 2014.

Justamente por acreditar em uma resposta correta dada pelos

elementos semânticos de uma palavra, o juiz federal Eugênio Rosa de Araújo,

nos autos da Ação Civil Pública nº 0004747-33.2014.4.02.5101, que tramita

perante a 17ª Vara Federal do Rio de Janeiro, asseverou que as manifestações

de “macumba, umbanda, candomblé ou quimbanda” não constituem

exteriorização de religiosidade, uma vez não preenchidos os elementos da

existência de: um livro base, de uma estrutura hierárquica e de uma figura

venerável como ser supremo212. Portanto, esses cultos não estavam protegidos

pelo direito de liberdade de religião, disposto no artigo 5º, inciso VI da

Constituição Federal213.

211 V. RE 221.239 (DJ 25/05/2004) e RE 183.403 (DJ 07/11/2000) 212 “No caso, ambas manifestações de religiosidade não contêm os traços necessários de uma religião a saber, um texto base (corão, bíblia etc) ausência de estrutura hierárquica e ausência de um Deus a ser venerado.” (RIO DE JANEIRO, 2014) 213 O magistrado, todavia, reconheceu que são manifestações culturais sujeitas a proteção pelo direito de reunião, mas não consubstancia culto religioso.

Page 141: DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

140

Na referida decisão, o juiz, com o objetivo de diferenciar práticas

religiosas de culturais, pretendeu estabelecer critérios objetivos que

identificassem a natureza ontológica da religião. Fez como exige o figurino.

Buscou na realidade social brasileira as notas distintivas da prática religiosa,

tentando identificar qual seria o comportamento usualmente adotado nos cultos

religiosos “em geral”. Nessa “observação científica”, ele aferiu que o padrão

médio da religiosidade no Brasil se dá por meio de um culto ao transcendente,

fundamentado por um conjunto normativo escrito e suscetível a uma estrutura

hierárquica214. Fixou-se, assim, os atributos necessários para a distinção entre

a prática religiosa e a meramente cultural. Na abertura significativa do signo

“religião”, ele conferiu acessibilidade ao ente, dando um maior grau de

determinabilidade ao conceito. Trouxe, assim, ao processo judicial o

significado científico (e correto?) de religião, que fora auferido por meio de uma

descrição objetiva da realidade.

Cientista de encher os olhos de qualquer “conceitualista”!

Por que, então, houve um ruidoso questionamento sobre a validade

da fundamentação jurídica utilizada nessa decisão? Ela não é científica e

absolutamente imparcial? Claro que alguns irão defender a ausência de

cientificidade, alegando que não houve a observância da totalidade dos fatos

da realidade social; que há outras práticas que foram sonegadas na sua

análise, etc. Em nosso sentir, porém, ainda que o magistrado tivesse sido mais

diligente, sempre lhe escaparia alguma manifestação ou algum elemento que o

seu olhar seria incapaz de perceber. A conceituação empreendida estaria

inexoravelmente atrelada a um ponto de vista enxergado a partir da sua

mundanidade. Ao buscar um conceito objetivo, não se percebeu que o olhar

objetivante estava repleto de subjetividade e de limitações cognitivas

decorrentes da condição de ser-lançado, de um ser que com-pre-ende como

ser em-um-mundo.

214 Essa observação poderia ser contrastada com o CENSO 2010, por meio do qual se constatou que 64,6% da população brasileira professa a religião católica, 22,2% a religião evangélica, 2,0% a religião espírita, Umbanda e Candomblé 0,31%, 8,0% não possuem religião e o restante se enquadraria em outras. Com efeito, poderíamos perfeitamente dizer que o padrão médio de práticas religiosas praticadas no Brasil se adéqua àquele narrado pelo magistrado.

Page 142: DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

141

Esse exemplo atesta que o decisum não é um ponto de chegada

alcançado por meio de uma fundamentação lógica, que conduz a um único

caminho decisório, a uma resposta logicamente correta. Não! O que acontece

na fundamentação é apenas a narrativa daquilo que já foi previamente decidido

no contato com o caso concreto. Decido e depois fundamento, pois o decidir se

dá no evento fenomenológico apropriante (Ereignis) da com-pre-ensão. A

justificação decisória se revela, nesse sentido, como uma atestação do

fenômeno, como a narrativa (não descritiva) histórica do “como

hermenêutico”215.

A narrativa a-presenta o fenômeno desvelado pelo intérprete. No

desvelar do sentido há sempre o encobrimento de uma significação diferente,

que não pôde ser percebida em razão dos limites de intensidade da nossa

“lanterna racional”. No caso em questão, o juiz foi ludibriado pela crença que

seria possível chegar ao ente “religião”, encontrando o seu reflexo no espelho

da razão pura. Entretanto, as luzes jogadas pela sua racionalidade não lhe

revelou a penumbra significativa daquilo que ficou escondido no campo não

iluminado. O magistrado não percebeu que a sua lanterna não tinha uma luz

pura e que o conceito de religião estava intoxicado pela sua mundanidade e

pelo mundo que lhe circunda.

215 Importante a lição que nos é dada por CRUZ e WYKROTA (2015): “Em verdade, descremos da possibilidade de se desvincular aquilo que seria a “descoberta” daquilo que seria o contexto de justificação de uma decisão. Até porque, sempre será possível a revisão de uma decisão nessa etapa de justificação. Daí nossa opção por trabalhar a argumentação em bases para além do iluminismo. A argumentação deixa de ser método que congela a decisão. Tampouco ela é simples justificativa que tenha a pretensão de “descrever” a decisão. Entendemos que a argumentação deve ser atestada como um processo narrativo da “de-cisão”. Desde logo, porém, mais um alerta: a narração não pode ser entendida como uma mera descrição.133 Não supomos ser possível a “des-crição” do real, como nos mostra Derrida. A imposição de graus numéricos e de fórmulas matemáticas que pretende a justificação de teorias de bases iluministas, por exemplo, em verdade, esconde a natureza fenomênica da “de-cisão” pela “pretensão” de que a decisão “é” meramente racional! A narrativa se presta, pois, a entificar o ser (do ente?) da “de-cisão”. Desse modo, não é apenas uma questão semântica trocar a “justificação” pela narrativa, pois esta última não pretende ser o “espelho” da “de-cisão”. Não há representação da “de-cisão”. A narrativa “a-presenta” a “de-cisão” a nós! É, portanto, uma narrativa de fundo ricoueriana, como uma atestação do fenômeno. Uma narrativa histórica do evento que se deu na “de-cisão”, e que nossos pontos cegos sempre a tornarão, em parte, uma ficção. Não conduz à decisão e nem tampouco a “reconstrói”.” (CRUZ e WYKROTA, 2015, pg. 54 [ainda no prelo])

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142

Ainda, propomos um passar de olhos pelo disposto no artigo 37, §1º

da Constituição Federal Brasileira de 1988216. Em síntese, a norma estabelece

que a publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos

órgãos públicos observe o caráter educativo, informativo ou de interesse social,

garantindo, a impessoalidade, vedando a promoção pessoal dos agentes do

estado.

Qual a conotação de “publicidade” no texto constitucional? Vamos

supor que a norma seja apresentada aos responsáveis pela construção das

marcas, slogans e imagens do governo e de seus programas e, ao mesmo

tempo, ao assessor jurídico chefe de um determinado órgão. Será que em

ambas as hipóteses a recepção de sentido será a mesma? É admissível

acreditar que, para o grupo de marqueteiros, a norma venha como uma diretriz

na construção das peças publicitárias, devendo atender àquelas especificações

do “cliente”. Por outro lado, é factível crer que o jurista visualizaria a

imprescindibilidade de observar a impessoalidade no exercício do dever de

informar à população sobre as práticas governamentais.

Ficando com a conotação possível no jogo de linguagem do direito,

como os entes e órgãos governamentais cumprem o seu dever de tornarem

públicas as ações perpetradas? O que é dar publicidade a um fato? Por

exemplo, informar via Twitter que um programa social está em funcionamento,

é tornar pública a informação? Podemos ir além: a publicação no Twitter da

Presidenta Dilma torna a notícia pública da mesma forma que um vereador do

sertão baiano com pouco mais de uma dúzia de seguidores que conheceu

durante uma viagem à Natal? Aliás, quando um agente do estado cria uma

conta nas redes sociais gratuitas, utilizando-se do cargo ocupado na

apresentação pessoal, estaríamos diante de uma publicidade regulamentada

pelo artigo 37 da Constituição Federal ou de um instrumento pessoal e íntimo

desses agentes políticos?

Mudando o sistema de divulgação, poderíamos dizer que há

publicidade quando uma Câmara Municipal lança em seu sítio eletrônico

216 “Art. 37, §1º - a publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos deverá ter caráter educativo, informativo ou de orientação social, dela não podendo constar nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos”. (BRASIL [1988], 2015)

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143

informações sobre a atividade dos parlamentares, mesmo quando a média de

visitação da página é inferior a quarenta/mês em um Município com densidade

demográfica superior a cinquenta mil pessoas?

Continuando no mesmo viés, o caráter informativo, educativo ou de

interesse social, bem como a impessoalidade, que são elementos constantes

na descrição normativa, podem ser objetivamente identificados? Ora,

suponhamos que na mesma publicação no sítio eletrônico, contenha a

informação de uma verba específica conseguida por meio de proposição

legislativa encaminhada por um Vereador, constando, ainda, o nome e a foto

do parlamentar. Há violação do parâmetro publicitário proposto na

Constituição? Caso mudássemos a função estatal e fossemos ao Judiciário,

seria legítima a publicação de notícias sobre um julgamento importante, sendo

transcrito parte do voto, com nome do Desembargador e uma foto sua? Repare

que ambas narrativas relatam a atividade exercida por agentes estatais,

ocorrendo, em alguma medida, a correlação do servidor com o resultado

obtido.

Mesmo que não houvesse nenhuma foto ou nome do agente estatal,

mensagens incisivas que apontam para “um novo governo”, logo após as

eleições ou até mesmo que contenha “nos últimos doze anos (período em que

aquele grupo governa)”, não haveria uma correlação natural do ouvinte com o

gestor? Quando o informe publicitário termina com ”Ministério do Meio

Ambiente, Governo Federal”, devemos crer que o telespectador não faz uma

correspondência imediata com a imagem da Presidenta Dilma? Estaríamos,

então, diante de uma publicidade vedada?

Com efeito, a pretensão do pensamento tipológico em aderir à

analogia como método para solucionar a fluidez e abertura normativa não se

mostra adequado, pois não há uma racionalidade objetiva capaz de retirar de

casos análogos a essência proibitiva/permissiva, sendo que a forma como o

caso concreto vem ao encontro do intérprete será essencial para o deslinde

decisório. Consigo vislumbrar percepções diferentes nos informes do judiciário

e do legislativo, que se dão especialmente pela nossa condição de ser-jogado

em um mundo.

Page 145: DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

144

O que acontece é que a decisão é apenas a narrativa do que fora

decidido no momento em que o caso veio ao meu encontro, permitindo, assim,

mais de uma resposta correta. Note-se que não estamos defendendo a

“ditadura da magistratura”, mas apenas afirmando que o processo de cognição

dos fatos e do direito não se dá de forma uniforme, o que vai ocasionar a

existência de decisões diferentes. O que queremos evidenciar é que existem

infinitas possibilidades de significação para a proposição normativa, sendo que

o seu sentido é alterado todas as vezes que eu modifico o jogo de linguagem

ou o intérprete.

Por oportuno, vale destacar que a alternância significativa que

defendemos se diferencia do pensamento tipológico, porque este atribui à

fluidez social a responsabilidade pela modificação de sentido de uma norma,

podendo a semântica ser alterada em razão de novas práticas sociais. Repare-

se que a renovação de sentido e a abertura significativa é objetivamente

condicionada pelas novas percepções da sociedade, como se houvesse um

compartilhamento universal das novas experiências, que permitiriam um olhar

único e racional sobre os fatos sociais. O caso concreto continua a ter que

comportar uma resposta de adequação ou não àquele modelo típico, estando

inserido na lógica do terceiro excluído, que norteia o pensamento analítico

clássico. Por mais que haja abertura significativa ou interpretativa, está-se

acorrentado à ideia de que é possível encontrar racionalmente a melhor

decisão. A valoração do legislador e/ou do aplicador possui parâmetros

definidos na racionalidade pura, o que viabilizaria o chegar a uma conclusão

por meio do método axiológico previamente definido. Definitivamente não é

essa nossa perspectiva, pois acreditamos que está na unidade do caso e na

individualidade do intérprete/legislador o motivo de existirem in-finitos caminhos

possíveis.

Page 146: DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para

145

CONCLUSÃO

E agora, José? A luz apagou e a festa acabou. O que farás com as

pedras que estão no meio do caminho? O que fazer agora que descobrimos

que o mastro de Ulisses em que amarramos a nossa racionalidade era a cauda

do dragão? Descortinado que a base científica em que se pautava o

pensamento tipológico era, na verdade, feita de argila mole e areia fofa, como

escapar dessa mistura movediça?

A nossa caminhada nos apontou que não há uma linguagem lógica

perfeita, não há objetividade e nem tampouco cisão do homem com o mundo

que o circunda. A compreensão não é puramente racional. O tipo, seja ele visto

como aberto ou cerrado, não possui um conteúdo que se encerra em si

mesmo. O mundo visto como uma descrição típica é àquele enxergado pela luz

de uma lanterna que sonega as informações que estão no campo não

iluminado. Assim, não há descrição da realidade, mas narrativa daquilo que

pude ver na escuridão fulgente, em um raio de luz da razão que não é pura e

nem capaz de visualizar a totalidade fática.

Se pudéssemos dar um marco inicial para o ruir da base estruturante

do tipo, a nossa escolha seria a percepção do segundo Wittgenstein. A nossa

leitura do filósofo nos a-presentou a im-possibilidade de dar finitude conceitual

a uma proposição linguística. A linguagem não espelha o mundo que desde

sempre já é. O processo cognitivo de conhecer a linguagem não é a correlação

direta de um signo com o seu correspondente referencial. Aprendemos pela

ostensividade como usar as palavras, que não possuem uma essência

significativa, ganhando sentido apenas na pragmática.

Como o sentido da proposição só é alcançado na utilização prática,

asseverar que há distinções entre graus de definibilidade conceitual torna-se

falacioso, pois o desvelamento do sentido da proposição não é obtido antes do

seu uso. Não há, assim, conceitos determinados e indeterminados, mas

conceitos que se determinam provisoriamente no momento do seu uso,

ganhando um sentido utilizável apenas para o caso concreto. Da mesma forma

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146

não há se falar em fechamento conceitual, pois sempre há uma nova

possibilidade significativa a ser construída na mutação do jogo de linguagem

empreendida no campo da pragmática.

A ratificação dessa perspectiva pode ser visualizada no pensamento

de Heidegger, ao afirmar a incapacidade de apresentarmos a totalidade dos

modos de ser das coisas. Ainda que eu tente descrever exaustivamente algo,

sempre me escapa alguma característica. O meu olhar não absorve a

completude do mundo, de modo que não há uma expressão que possa ser

compreendida como tradutora universal de uma realidade.

Com efeito, a nota distintiva do tipo, da tipicidade cerrada e do

conceito abstrato, no que concerne a utilização de expressões com conceitos

determinados ou mais abertos, mostra-se irrelevante. A linguagem é

necessariamente aberta para novas significações, sendo ilusória a pretensão

de compreender todos os sentidos que uma expressão pode vir a ter e escolher

àquelas que possuem um sentido único ou mais determinado. Não há graus de

certeza definíveis a priori na formação da linguagem.

A tentativa de diferenciar o tipo do conceito a partir da abstração ou

da proximidade com o real também se mostrou infrutífera na presente obra.

Dizer que o conceito foge do concreto é apegar-se ao empirismo como forma

de verificação da realidade. É acreditar em um mundo alheio a sua existência,

que pode ser apropriado pela racionalidade por meio da análise que se dá fora

desse mundo.

Heidegger escancara a impossibilidade de se pensar o mundo

dissociado do homem que o pensa. O mundo só existe pelo homem, que só

existe em-um-mundo. A relação de imanência entre o mundo e o homem não

permite a fuga desse mundo para compreendê-lo, sendo a com-pre-ensão um

movimento fenomenológico que se dá com e no próprio mundo. Portanto, a

abstratividade é uma quimera defendida pelo racionalismo, não justificando a

separação categorial de tipos e conceitos. Tudo versa sobre a realidade, ainda

que não seja aquela que eu possa sensorialmente perceber. Dizer que um

cachorro é um bem móvel ao invés de um mamífero não é abstrair ou alterar a

substância do canino, mas mudar a lente com a qual se enxerga o animal, que

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147

se a-presenta por outro modo de ser. Mudamos o jogo de linguagem, mudamos

o “como” o cachorro veio ao nosso encontro, mudamos o sentido da expressão.

Da mesma forma, desvelamos que a ideia do tipo como descrição

passível de contornos valorativos ao passo que o conceito ou o tipo fechado

não possuem a abertura a esses juízos é um non sense. Embasado no filósofo

da floresta negra, podemos vislumbrar que a compreensão não se dá por um

processo de análise comandado pela nossa razão e desprovido de toda e

qualquer sentimentalidade. A compreensão como ek-sistencial do “pre” da pre-

sença se dá pelo movimento fenomenológico do ser-lançado e ocorre em

imanência com a disposição e a linguagem.

O compreender imprescinde do sentir, que faz parte do plano

ontológico do Dasein. A nossa existência não é uma tabula rasa que vai sendo

preenchida por conceitos apreendidos ao longo da vida. O momento em que

tocamos o mundo para compreendê-lo também sentimos o seu toque. Assim,

os juízos são indissociáveis da narrativa e da interpretação que formam o tipo,

não podendo ser vistos como uma escolha racional e objetiva.

A hermenêutica jurídica é um acontecer que se dá na

experimentação do caso concreto, no compartilhamento compreensivo que se

dá entre as partes litigantes. A interpretação não é solipsista e nem se emprega

um subjetivismo axiológico na construção decisória. Se o mundo é

compartilhado com o Outro, a minha compreensão é também intersubjetiva, o

que erige as partes processuais a um patamar de destaque, de co-

responsabilidade pelo provimento jurisdicional.

Por oportuno, vale salientar que a experimentação e o ceticismo em

ralação ao objetivismo e a abstração não são um apadrinhamento às teorias

pautadas no realismo jurídico, principalmente o Pragmatismo Econômico de

Richard A. Posner, a Teoria da Previsibilidade de Oliver Wendell Holmes ou o

ceticismo filosófico de Richard Rorty. O direito não pode ser entregue ao

alvedrio dos magistrados, sendo reduzido ao que “o juiz tomou no café da

manhã”, como já anotou Ronald Dworkin.

O nosso rumar parece mais dirigir-se a formação e interpretação

tipológica a partir de uma ética da alteridade, em que a responsabilidade como

filosofia primeira do ser figura como orientadora do agir jurídico. O meu

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148

compromisso na relação processual é com o Outro, que não se dá em uma

dimensão jurídica egológica. Acreditamos que o pensamento tipológico deve

ser desenvolvido a partir da ideia de infinição da linguagem e o

transbordamento conceitual que cada proposição possui. O tipo não é aberto

ou fechado, mas transbordante, pois o seu conceito é in-finito e vai muito além

daquilo que podemos perceber. Ele não se encerra nem mesmo como

possibilidade. Além disso, os valores que lhe permeiam não são encontrados a

partir de uma busca ética universal autônoma ou heterônoma, que parte do

“eu” (como em Kant) ou do “nós” (como no hedonismo ou no utilitarismo). O

meu olhar não é impessoal, pois busca o Rosto do Outro como alteridade que

está além da individualidade. É preciso evadir do ser na busca incessante e

impossível ao Outro.

Se perguntarem se seria essa a nossa conclusão, a resposta é

negativa. Não concluímos, pois concluir é fechar um pensamento que não se

fecha, que não se interrompe nem mesmo com o silenciar das palavras. Em

verdade, esses são apenas traços, tropos, migalhas deixadas ao leitor que

deve fazer seu próprio caminho. Esse é apenas o tracejar e não um mapa que

nos diz como ou aonde chegar.

O concluir é passar a caneta ao leitor, nosso personagem principal.

Cabe a ele decidir pular no ab-ismo aberto ou retornar ao campo seguro.

Sabemos que o misturar entre a multidão na existência inautêntica é mais

confortável. Nada como deitar na boia e deixar a correnteza fazer todo o

esforço. No nosso caso, a boia pode ser chamada de crença na segurança

jurídica como previsibilidade em razão da completude significativa da norma e

da interpretação, sendo possível que o legislador crie uma norma

conceitualmente fechada.

Podemos, assim, simplesmente ignorar o que foi dito, pois acreditar

na objetividade do cientista é mais reconfortante. É sempre possível esconder-

se nessa perspectiva e se deixar levar pelo conto ilusório de que há

objetividade no nosso olhar e que podemos separar a razão da disposição

afetiva. O ordenamento jurídico é hermético em si mesmo e nos traz todas as

respostas. “Mudaram as estações, nada mudou!”

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149

O camuflar entre a multidão nos traz o conforto de quem está

sentado em uma nuvem, sentindo a maciez e a segurança do nada. Esse

trajeto nos conduz à im-possibilidade de compreensão e ao negar a própria

possibilidade de ser. Trata-se do tomar a pílula azul celeste e retornar à

artificialidade da vida em Matrix, onde tudo é assimetricamente perfeito, onde

até as imperfeições são vistas de forma perfeita.

Pois bem, encerramos por aqui. Em cima da mesa há caneta e

papel, bem como um copo com água até a sua metade e duas pílulas, uma

azul e outra vermelha. O nosso esforço foi para que a escolha fosse pela

vermelha, mas não podemos definir qual será a escolha do leitor.

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