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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Direito
Daniel Guimarães Medrado de Castro
DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para além da ontologia.
Belo Horizonte 2015
Daniel Guimarães Medrado de Castro
DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para além da ontologia.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito Público, financiado com concessão de bolsa de pesquisa ofertada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais – FAPEMIG. Orientador: Álvaro Ricardo de Souza Cruz
Belo Horizonte 2015
Daniel Guimarães Medrado de Castro
DO CONCEITO ABSTRATO À TIPICIDADE: Um olhar crítico para além da ontologia.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito Público, financiado com concessão de bolsa de pesquisa ofertada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais – FAPEMIG.
__________________________________________ Álvaro Ricardo de Souza Cruz – orientador – PUCMG
__________________________________________ Marciano Seabra de Godói – PUCMG
__________________________________________ Misabel de Abreu Machado Derzi – UFMG
___________________________________________ Marinella Machado Araújo - PUCMG
Belo Horizonte, 07 de abril de 2015.
Aos meus pais e à Luana.
AGRADECIMENTOS Agradeço à Deus por caminhar ao meu lado e se fazer presente em
cada trecho da estrada.
Aos meus pais, Márcio e Zuleide, aos meus irmãos Guilherme, Henrique
e Thiago e ao meu padrinho Ari pelo carinho e por me permitirem sentir seguro,
sabedor que não importa para onde eu vá, serei sempre recepcionado no
retorno. Família! Palavra incapaz de espelhar as in-finitas sensações!
À Luana, pelo companheirismo e inúmeras demonstrações de amor e
carinho. Mulher sem igual que aprisionei na minha existência. Menina linda que
me deu o seu melhor sorriso e que experimenta comigo as ambiguidades e
insuficiências do amor. Amor para vida toda!
Ao mestre dos mestres Álvaro Ricardo de Souza Cruz, com quem passei
a manter um diálogo que transborda os portões da academia. Mais do que
orientador, revelou-se um amigo, um pai, um avô, um in-finito, uma relação que
não se fecha nem se ontologiza nas suas múltiplas faces.
Àquele com quem dei os primeiros passos na filosofia, meu dileto amigo
Gustavo Nassif, que me mostrou os bons caminhos da justiça!
Aos amigos do mestrado com quem dividi as inquietantes indagações
surgidas durante uma pesquisa. Amigos que pularam o muro do simples
coleguismo e que se fizeram suporte para as incertezas da vida. Amigos para
sempre! Muito obrigado: Bárbara, Bernardo´s, Boninho, Éder, Guilherme
Ferreira, Guilherme Jeangregório, Gustavo Hermont, Walkiria e Wykrota.
Às “loucas do mestrado”, Ana Carolina Caram, Flávia Siqueira e Roberta
Parreira (em ordem de insanidade) que, na grandeza de uma amizade sem
contornos, suavizaram sobremaneira o sinuoso percurso do mestrado.
Aos grandes mestres da minha vida, em especial aos que mudaram os
rumos dessa pesquisa: Marinella Araújo, Flávio Bernardes, José Alfredo de
Oliveira Baracho Júnior e Lucas Gontijo.
Aos amigos (que não cometerei o impropério de nomeá-los) que são
pilastras na minha vida e que, no mesmo trilhar de Vinícius de Moraes, deixar-
me-iam enlouquecido pelas suas ausências.
À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais –
FAPEMIG, pelo financiamento da pesquisa e suporte conferido, sem o qual
seria impossível a caminhada.
“O que me tranquiliza é que tudo o que existe, existe com uma precisão absoluta. O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete não transborda nem uma fração de milímetro além do tamanho de uma cabeça de alfinete. Tudo o que existe é de uma grande exatidão. Pena é que a maior parte do que existe com essa exatidão nos é tecnicamente invisível. Apesar da verdade ser exata e clara em si própria, quando chega até nós se torna vaga, pois é tecnicamente invisível. O bom é que a verdade chega a nós como um sentido secreto das coisas. Nós terminamos adivinhando, confusos, a perfeição.” (A Perfeição – Clarice Lispector).
“Não sei quantas almas tenho. Cada momento mudei.
Continuamente me estranho. Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma. Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê, Quem sente não é quem é, Atento ao que sou e vejo, Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem; Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só, Não sei sentir-me onde estou.
Por isso, alheio, vou lendo Como páginas, meu ser.
O que sogue não prevendo, O que passou a esquecer. Noto à margem do que li O que julguei que senti. Releio e digo: "Fui eu?"
Deus sabe, porque o escreveu.”
(Não sei quantas almas tenho - Fernando Pessoa).
Resumo
O presente trabalho tem por finalidade investigar e criticar as bases científico-
filosóficas que alicerçam o pensamento tipológico e a teoria dos conceitos,
buscando uma (re)leitura desses institutos a partir da reviravolta linguístico
pragmática e da fenomenologia heideggeriana. Inicialmente, apresentamos as
diversas concepções sobre a tipicidade, apontando o seu uso tradicional no
direito brasileiro - como descrição completa e fechada dos elementos
percebidos na realidade - e fizemos um contraponto com os estudos
desenvolvidos na Alemanha e trazidos ao Brasil por Misabel de Abreu
Machado Derzi, concebendo a tipicidade como descrição não exaustiva do
mundo real, pressupondo uma abertura para a fluidez dos fatos sociais. A partir
dessa perspectiva e pautado na obra de Karl Larenz, apresentamos a
diferenciação entre a tipicidade e o conceito abstrato classificatório. Ambos os
institutos nos conduziu a investigação sobre a existência de uma linguagem
lógica perfeita que viabilizaria a sua distinção ontológica. Nesse diapasão,
perpassamos pela Filosofia Analítica, mais precisamente pelas obras de Frege,
de Russell e do primeiro Wittgenstein. Considerando precárias e insuficientes
as respostas dadas pelos autores, visitamos a obra Investigações Filosóficas
do segundo Wittgenstein, que nos apontou que o locus de significação da
linguagem é o seu uso, isto é, a pragmática. Com efeito, não se mostrou
palatável o fechamento ou abertura da linguagem em si mesma, ou seja,
isolado do caso concreto e do jogo de linguagem em que se está inserido. Em
seguida, intentando criticar a noção de objetividade e perceptibilidade total dos
fatos descritos no tipo e no conceito, imiscuímos na fenomenologia de Martin
Heidegger. Finalizando com um estudo empírico, concluímos a obra atestando
a impossibilidade de fechamento conceitual fora do seu uso e do seu contexto,
bem como a incapacidade do legislador e do aplicador de visualizarem a
totalidade dos fatos e transcrevê-los objetivamente em uma norma ou em uma
sentença judicial, o que desvelaria a fragilidade das concepções atuais sobre a
tipicidade e os conceitos abstratos.
Palavras-chave: Tipicidade. Conceitos. Reviravolta Linguístico-pragmática.
Fenomenologia. Heidegger.
ABSTRACT
This study aims to investigate and criticize the scientific and philosophical
foundations that underpin the typological thinking and the theory of concepts,
searching a (re) reading of these institutes from the pragmatic linguistic turn and
Heidegger's phenomenology. Firstly, we indicated the different concepts of
typicality as it is usually applied in Brazilian law - as completed description of
the reality - and distinguished it to the studies developed in Germany and
brought to Brazil by Misabel de Abreu Machado Derzi, that has conceptualized
typicality as non-exhaustive description of the real world, requiring necessarily
an open to the flow resultant from the social dynamics. From this perspective
and guided by the work of Karl Larenz, we introduced the differentiation
between typicality and the abstract concepts. Both institutes in the way shown
conducted us to research on the existence of a perfect logical language that
would allow its ontological distinction. Therefore, we analyzed the Analytic
Philosophy, more precisely the works of Frege, Russell and the “first”
Wittgenstein. Whereas insufficient responses by authors, we analyzed the book
“Philosophical Investigations” of “second” Wittgenstein, who pointed out that the
local of meaning of language is its use, in the other words, the pragmatic.
Indeed, the conceptual of opening or closing of the language is not in itself, in
other words, it is not possible verify the content of a proposition isolated from
the case and the game of the language that it is inserted. Then, we attempted to
criticize the notion of objectivity and full intelligibility of the facts described in
type and concept analyzing the “phenomenology” of Martin Heidegger. Finally,
we did an empirical study that we concluded the work stating the impossibility of
conceptual closure out of its use and its context as well as the inability of the
lawmaker and the judges visualize all the facts and describe them objectively in
a law or a court judgment, that shows the fragility of current conceptions of
typicality and abstract concepts.
Keywords: Typicality. Abstract Conceps. Pragmatic Linguistic Turn.
Phenomenology. Heidegger.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................ 9
CAPÍTULO I – O DESVELAR DO PENSAMENTO TIPOLÓGICO E DOS CONCEITOS
ABSTRATOS CLASSIFICATÓRIOS ..................................................................................... 14
CAPÍTULO II – EM BUSCA DE UMA LINGUAGEM LÓGICA PERFEITA ...................... 35
1.1 – Frege e a sua Conceitografia ................................................................................... 35
1.2 Bertrand Russell e a sua Teoria da Denotação ........................................................ 55
1.3 – Wittgenstein e o Tractatus Logico Philosophicus .................................................. 64
CAPÍTULO III – A REVIRAVOLTA LINGUÍSTICO PRAGMÁTICA – A LINGUAGEM
PARA ALÉM DA SEMÂNTICA ............................................................................................... 77
CAPÍTULO IV – A ANALÍTICA EXISTENCIAL E A FENOMENOLOGIA DE
HEIDEGGER ............................................................................................................................. 97
CAPÍTULO V – TEORIA OU PRÁTICA? ............................................................................ 133
CONCLUSÃO ......................................................................................................................... 145
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................... 150
9
INTRODUÇÃO
Introduzir. Intro ducere. Ato de levar para dentro. Dentro de onde?
Os primeiros rascunhos de uma obra intentam convidar o leitor para a imersão
nas ideias propaladas por um conjunto de proposições que só fazem sentido
quando compartilhadas. Introduzir é pedir ao Outro que entre em sua morada e
que assente em seu sofá, ofertando-lhe o seu melhor vinho com o queijo mais
fresco. Assim, convidamos o leitor a entrar e permanecer o quanto quiser como
quiser, enquanto a hospitalidade existir. Arrumamos a casa para a visita, mas
não podemos definir como será a visitação.
O nosso olhar não permite ver a introdução como um mapeamento,
como a pavimentação da estrada a ser seguida. Não exigimos que o seu rumar
se dê dessa ou daquela forma, pois não é de bom tom condicionar o
pensamento alheio. Queremos, apenas, dar-lhe conforto na caminhada,
oferecendo-lhe o que temos de melhor, inclusive o nosso mapa do tesouro, que
possui apenas traços, não caminhos.
Com receptividade, dizemos que jamais estará só, pois há o
assombro que lhe recorda da nossa presença, sempre com o retoante eis-me-
aqui. Se em outra oportunidade expusemos que a leitura pode ser solitária,
mas nunca solipsista1, o nosso intróito pretende funcionar como um Lírio de
Calla que convida o leitor a vir com a gente nessa caminhada, sem ponto de
chegada ou beijo de namorada2.
Caminhada na qual o roteiro se (re)faz em cada passo, como nos
filmes surpreendentes (e sangrentos) de Quentin Tarantino. Por mais que haja
um script inicial, não é possível antever o resultado, que se perfaz em cada
cena, alterando o sentido em cada novo “take”. Assim se a-presenta a nossa
obra, como traços que serão completados e desfeitos no olhar do Outro
durante o caminhar, não cabendo a nós realizar uma descrição tola e ilusória
1 Aproveitamos para fazer o convite ao leitor para a visitação da obra (O) Outro (e) (o) Direito, na qual apresentamos dois artigos em conjunto com o grande mestre Álvaro Ricardo de Souza Cruz: “Clareira de Clarice – assinatura” e “Clareira de Clarice – contra-assinatura”. 2 Viva Cazuza!
10
de qual será o percurso. Afinal, o eco que se faz presente é o de Macbeth, nos
recordando a todo instante que “(life) is a tale, told by an idiot, full of sound and
fury, signifying nothing.”3.
Se de um lado nos defrontamos com a im-possibilidade de descrever
a nossa trajetória, por outro há o Rosto que nos interpela e nos exige o
cumprimento da promessa de dar o nosso melhor. A alteridade nos impõe a
narrativa, ainda que precária, do por que se deve continuar a leitura.
Questionamento este que vem no formato original das indagações
metodológicas sobre a finalidade, a justificativa, os objetivos, o problema, as
hipóteses e o marco teórico. Devemos, então, nos esforçar para responder a
essas inquirições.
A-presentamos o texto, de uma forma geral, como um
questionamento dos postulados científicos do pensamento tipológico e da ideia
de conceito abstrato classificatório. A nossa bússola aponta para o norte, onde
começará a nossa investigação sobre o uso do termo “tipicidade” no direito
brasileiro, quase sempre concebido como uma proposição descritiva da
realidade que possui a totalidade dos fatos observados e que cria uma
obrigação comportamental clara e inequívoca para os jurisdicionados. Estamos
diante da ideia de um fechamento linguístico por meio do qual a previsibilidade
e a segurança jurídica se perfazem pela utilização de termos com significação
unívoca, que garantem uma única interpretação. Parte da doutrina chama essa
percepção de “tipicidade cerrada”, justamente em razão do seu fechamento
para possibilidades axiológicas, mostrando-se como uma proposição normativa
completa.
Mas será essa a concepção de tipicidade? Não tenho certeza, mas
ouvi dizer que por aquelas bandas há uma mente brilhante, que carrega no
nome a somatória de um “M”istério e a beleza da condessa de Angoulême, que
desvelou a tipicidade nos estudos germânicos de Karl Larenz, Karl Engisch,
Winfried Hassemer e Arthur Kauffmann. O tipo seria necessariamente aberto,
pendente de complementos valorativos e que torna factível o acompanhamento
da fluidez dos fatos sociais. Seria a descrição não exaustiva dos elementos da
realidade observada, mostrando-se possível que hipóteses fáticas semelhantes
3 Eco que se deu faticamente no diálogo com meu amigo José Bonifácio Suppes de Andrada.
11
se amoldem àquela expressão normativa. Fechados só os conceitos abstratos,
que prescindiriam de carga valorativa, principalmente no campo de aplicação.
A norma jurídica que venha a ser constituída por conceitos abstratos nos
promete maior segurança jurídica e previsibilidade, haja vista a sua
composição repleta de termos com significação determinada.
Caso encontremos naquelas terras essas edificações, pretendemos
perfurar o solo em busca das bases que sustentam tais pensamentos. A nossa
problematização se encontra na planta baixa, que nos preanuncia a percepção
de que está na própria linguagem a possibilidade de significação proposicional,
mostrando-se possível a escolha de termos sintáxicos e semânticos que
conduzam a um fechamento a priori do sentido da expressão linguística. Além
disso, a capacidade de descrever a realidade percebida parece pressupor a
existência de objetividade e neutralidade que permitem ao legislador e ao
intérprete reconhecerem a totalidade dos acontecimentos fáticos e narrá-los
com precisão. Tudo é observado pela minha racionalidade que depura e
percebe a completude do fenômeno. Por mais sólido e vultoso que esse
edifício possa parecer algo não me convence.
Com a finalidade de atestar a rigidez dos pilares, embrenharemos na
Filosofia Analítica e a sua pretensão de criar uma linguagem lógica perfeita. A
Conceitografia de Frege será a nossa primeira parada. O lógico alemão inovou
na forma de pensar as bases linguísticas, sugerindo a adoção de uma
linguagem formular que se diferenciasse da natural. Pautado nos fundamentos
matemáticos da função e argumento de função, Frege contempla um
isomorfismo entre linguagem e realidade identificável pela lógica extensional.
Não obstante haja diversos meios de representar um objeto, o importante é que
todos os sentidos empregados reflitam o mesmo referencial, dando uma
significação unívoca para a proposição.
Com o receio de que Frege não nos dê uma resposta satisfatória,
visualizamos a possibilidade de visitar Bertrand Russell. Em sua teoria
denotativa, o filósofo inglês tenta constituir uma metalinguagem suscetível de
identificar as significações linguísticas, permitindo a aplicação da lógica do
terceiro excluído, valendo-se da matemática para extrair critérios que
identifiquem uma proposição como sendo logicamente verdadeira ou falsa.
12
A busca por essa linguagem lógica perfeita possivelmente nos
guiará até o “primeiro” Wittgenstein. Em sua obra Tractatus Logico Philosoficus,
acreditou o autor ter desvendado os fundamentos da linguagem, o que lhe
permitiria a criação de um método lógico que retirasse da realidade a sua
correlação linguística. Sob o manto da máxima de que devo me calar quando
não posso conferir referenciabilidade a minha fala, o austríaco supôs ser
palatável a fixação de um isomorfismo entre signo/significante/significado, de
modo que a realidade deveria ser descrita por uma proposição que contivesse
elementos sintáxicos e semânticos que traduzissem para a linguagem o
acontecimento do mundo real.
O demorado diálogo com Wittgenstein, contudo, poderá nos causar
certa perturbação. Isso porque ele provavelmente nos apresentará a sua outra
face que desdiz todo o seu dito. Em seu sentir, a linguagem não mais possui
uma definição, mas um sentido que se concretiza em cada utilização e que se
dissolve ao serem mudadas as suas regras de uso. Tudo muda diante de um
novo jogo de linguagem. Essa é a perspectiva do livro Investigações
Filosóficas, que pode nos mostrar a existência da pragmática como elemento
fiador da significação. Uma proposição só tem sentido no seu utilizar.
Os dizeres do “segundo” Wittgenstein nos prometem o apontamento
de rachaduras graves no alicerce científico da tipicidade e do conceito abstrato.
Afirmamos aqui a nossa primeira hipótese, contestando a plausibilidade de
fechamento ou abertura linguística pelo correto uso da sintaxe e da semântica.
Impossível encontrar um sentido significativo fora do seu uso, desvelando que
o locus de significação é a pragmática.
Suspeito que nossa investigação, nessa etapa, encontre o tal marco
teórico. Marco e teórico. Mais parece nome de dupla sertaneja! A virada
linguístico pragmática pode simbolizar um dos cantores, mas e o Outro? Onde
encontrá-lo? Nesse sentido, sugiro caminharmos mais adiante e batermos à
porta do nada simpático Martin Heidegger. A fenomenologia e o existencialismo
analítico devem formar a segunda vertente teórica da obra4. Teimo em arriscar
4 Não posso omitir o constrangimento e o desconforto que tomam conta de mim ao narrar sobre o marco teórico. Mesmo que as minhas reflexões partam das correntes de pensamento indicadas, existem várias outras obras e pensadores que irão influenciar na forma como compreendi os ensinamentos de Wittgenstein e Heidegger. É uma injustiça dizer que o meu
13
que as noções do Dasein como existente em-um-mundo nos permitirá
escancarar as fissuras presentes nos pilares científicos que sustentam o
pensamento tipológico e os conceitos abstratos classificatórios.
Outros passos ainda precisam ser dados. A atestação prática pode
vir como uma exigência do leitor. Fugir dos apontamentos empíricos se revela
como permissivo para a descrença sobre a validade da nossa caminhada.
Misturar filosofia e direito não é sinônimo de descompromisso com a realidade,
mas, ao revés, um refletir que vai além da repetição mecânica do dito. Ao
contrário do que se propaga aos quatro cantos, direito e filosofia não se
dissociam quando há o compromisso de responsabilidade com o Outro,
compromisso com uma prática discernida, que não recaia em um tecnicismo
imprudente.
A boa prosa não acabou, mas o vinho sim. Feito incisivamente o
convite para pernadas em direção ao estudo crítico sobre as bases científicas
da tipicidade e do conceito abstrato, cabe-nos, com a pressuposição do aceite
do leitor, “sair de dentro”5 da nossa morada e começar os primeiros passos.
Como bom mineiro, ofereço-lhe o último pão de queijo com a indagação:
“Vambora”?
marco teórico gira em torno das teorias desenvolvidas por esses autores, pois a minha compreensão não se mostra como objetiva e total. A leitura, que é só minha, vai muito além do que está escrito. 5 Eu sei que há um vício de linguagem denominado gramaticalmente de pleonasmo, por isso a expressão está entre parênteses. Talvez por excesso de zelo, acredito ser necessário explicar que utilizamos o termo em contraposição ao “levar para dentro”, que remetemos no início como sentido da palavra “introdução”. O momento é de saída na direção prometida.
14
CAPÍTULO I – O DESVELAR DO PENSAMENTO TIPOLÓGICO E
DOS CONCEITOS ABSTRATOS CLASSIFICATÓRIOS
Os primeiros passos dessa jornada têm por pretensão o desvelar da
estrutura de significância da tipicidade. Compreender como esse instituto vem
ao nosso encontro na sua construção significativa é base fundamental para o
desenvolvimento dessa obra. Para tanto, a nossa racionalidade nos conduz
inicialmente a uma investigação sobre o utilizar do termo tipo na Ciência do
Direito, expondo os modos de ser como esta expressão se apresenta
usualmente. O nosso rumar inicial visa o desvelamento dos postulados
científicos que balizam a elaboração das teorias sobre o tipo, podendo, assim,
visualizar se há solidez na edificação desse instituto jurídico. Traçada a rota6, o
momento é de calçar o tênis e seguir em frente!
Refazendo o traçado da professora Misabel de Abreu Machado
Derzi (1988) em sua tese de doutoramento, vamos à busca da reconstrução
etimológica da palavra tipo. Em alusão aos estudos de Erich Heyde, a autora
expressa que a historiografia do termo remete à expressão latina typus que
derivou do signo τύπος do grego e que era empregado no sentido de “forma,
forma oca, relevo, impressão, batida, cunhagem”7.
A terminologia grega era utilizada em dois sentidos basilares, sendo
o primeiro de uma modelagem da realidade, como cópia ou espelhamento de
algo, um contorno que daria traços determinantes a um objeto; a segunda
acepção seria de modelo, um parâmetro a ser utilizado como uma espécie de
protótipo, algo que dá uma definição básica, mas que não encerra a
possibilidade significativa.
Platão e Aristóteles ainda teriam utilizado o termo para significar
uma ideia de representação esquemática ou ontológica das coisas. Ao que
parece, os filósofos gregos valiam do termo τύπος para remeter a essência de
6 Fixar uma rota ou um caminho a ser traçado já é um caminhar. A caminhada começa antes mesmo do começo, antes mesmo de firmar o primeiro pé no chão. 7 DERZI, 1988, pg.21.
15
uma coisa, de como um objeto se constitui no mundo, como ele se revela
essencialmente.
Essa visão do tipo permite visualizar, ainda que bem vagamente, a
utilização inicial do termo como uma expressão que aproxima a realidade, que
visa enfocar no real, numa correspondência do signo com a referência fática. O
tipo pretendia evidenciar não a abstração conceitual de algo, mas um padrão
existente no mundo real, na cotidianidade fática do homem.
Seguindo ainda os estudos da professora mineira, aduz-se que a
recepção do termo na sociedade romana (trabalhada por Cícero e Plinius) se
deu no sentido de formação de uma imagem, um signo que traz uma moldura
figurativa da realidade. Muito próximo também é o sentido encontrado nos
dicionários franceses do século XVIII, que traziam o termo type como “modelo,
totalidade da forma, modelo para coisas, totalidade da forma básica, natureza,
espécie nas coisas, etc”8. A expressão teria sido amplamente utilizada nas
ciências humanas, principalmente na medicina-psicológica, trazendo a ideia de
uma “forma básica”. O termo teria chegado às ciências sociais por John Stuart
Mill, que teria criticado casualmente o novo conceito de tipo em sua obra
“Sistema de lógica dedutiva e indutiva”.
Nas ciências humanas e sociais de uma forma geral, “tipo” teria
alcançado hodiernamente a concepção de forma básica (Grundform), que
traduziria uma ideia de modelo captado da realidade, estabelecendo um padrão
geral observado em que as coisas do mundo se dão. Em termos genéricos,
podemos afirmar que a expressão visa estabelecer um nexo com a realidade,
formando uma modelagem que parametriza a concretude fática, identificando
os elementos da realidade e como ela geralmente se dá.
Antes de adentrarmos a noção conceitual do tipo, já podemos
visualizar que, a princípio, pretende-se estabelecer uma hipótese universal a
partir da análise dos particulares, de modo a tornar possível a categorização da
realidade sem deixar de lado a fluidez que a dinamicidade social exige. Tipo
seria bem a percepção juvenil do “tipo assim”, algo que se parece, mas não é
totalmente, pois a particularidade fática impede que haja a absorção integral do
acontecimento fático pela descrição tipológica.
8 DERZI, 1988, pg.21.
16
Separamos, assim, dois aspectos que se mostram imprescindíveis
para a compreensão do tipo: sua proximidade com o real, não se tratando,
pois, de uma abstração pura da realidade; e a fluidez condizente com a
mobilidade dos fatos sociais, de forma que o tipo seria uma descrição dos
elementos gerais da realidade, sem se fechar conceitualmente.
Nesse mister, tentando evidenciar a utilização imprópria do termo
tipo por parte da doutrina, Derzi tenta fazer uma diferenciação ontológica do
tipo com o conceito classificatório, asseverando que a segunda expressão traz
a abstração racional e objetiva das coisas, analisando cada objeto e
circunstância de forma cotejada, isolando cada um dos elementos e os
rotulando individualmente para, em seguida, formular um conceito pela junção
do significado de cada objeto ou circunstância. O conceito traria objetivamente
os elementos componentes de cada coisa, tratando-se de uma construção
conceitual lógico-formal, que prescindiria da verificação empírica.
O conceito revelaria a definição ontológica das coisas, trazendo a
única possibilidade de sentido na utilização daquele termo. Seria o fechamento
das possibilidades significativas por meio da adoção de um conjunto de signos
linguísticos com o sentido semântico unívoco e previamente estabelecido. Há
uma perfeição sintático-semântica, fazendo com que a expressão não ganhe
mais de um sentido. Estaríamos diante de uma espécie de “quebra-cabeça”,
uma vez que a peça só se encaixa no seu local exato, ainda que haja outras
possibilidades aparentes. Não adianta forçar, pois o encaixe perfeito só se dá
em uma única localidade, existindo um único modo de ser.
Por outro lado, o tipo seria necessariamente aberto a outras
possibilidades significativas, detendo a natureza de descrição dos fatos
observados objetivamente. O cientista aprecia o que acontece no mundo fático
e faz a descrição dos elementos da realidade percebida. Ocorre uma descrição
de todo o conjunto identificado, ao invés de um isolamento abstrato e
apreensão dos elementos gerais presentes em todas as situações, como quer
o conceito classificatório.
No processo descritivo, no qual parte-se da análise das
circunstâncias particulares para estabelecer um padrão básico universal, seria
necessária a utilização de signos com conteúdos sintático e semântico que
17
permitissem uma maior extensão interpretativa, sendo a modelagem mais
flexível. Como teria uma função descritiva da natureza, o tipo é construído por
um olhar que observou a totalidade dos elementos fáticos e estruturou
linguisticamente um modelo geral básico, que não se encerra em si mesmo.
Com isso, acredita-se que o tipo possui a característica de fluidez, podendo ter
uma constante resignificação em razão de novos acontecimentos fáticos,
adequando-se as contínuas mudanças sociais.
Ricardo Lobo Torres (2006), caminha na mesma pretensão
diferenciadora, dissertando que o conceito tem o caráter representacional
abstrato da realidade, podendo, inclusive, violentar o real para construir os
seus preceitos. A abstração presente no conceito poderia interromper as
conexões de sentido, de modo a não refletir o que realmente acontece, mas o
que racionalmente representaria a realidade. Valendo-se do exemplo de Karl
Larenz (1997), a conceituação de cachorro no mundo jurídico, por exemplo,
não o considera como animal mamífero da espécie canina e da raça x, mas sim
como um bem móvel pertencente ao homem. Ocorre aqui uma abstração
racional para permitir que o conceito “cachorro” se adéque às necessidades do
direito.
O conceito abstrato ou classificatório pode criar uma realidade
apenas racionalmente verificável, não detendo uma correlação empírica.
LARENZ (1997) afirma que o conceito traz uma definição de acordo com os
objetivos buscados por determinada ciência, podendo desconsiderar o sentido
das expressões trabalhadas em outras áreas do conhecimento ou da sua
utilização corriqueira. No conceito não há uma necessidade de
correspondência com o real.
Como o conceito se firma a partir do isolamento de notas distintivas,
que diferenciam aquele objeto de qualquer outro, o critério subsuntivo se torna
factível, pois a clareza e a certeza sobre o pertencimento àquele conceito
viabilizam uma lógica interpretativa de sua aplicação ou não aplicação
imediata, mostrando-se prescindível e imprópria toda e qualquer valoração no
momento de aplicação conceitual. Afinal, ou é ou não é, não existe um
“depende”. O objeto pode ou não se encaixar naquele modelo significativo,
18
subsumindo ou não ao conceito. Aplica-se a teoria do terceiro excluído,
impondo que uma expressão seja necessariamente falsa ou verdadeira.
Yonne Dolácio de Oliveira (1980) anota que no processo de
formação do conceito há dois momentos de abstração, um negativo “o
prescindir da profusão especial” e outro positivo “o separar e reter um
determinado geral”9. Quando, por exemplo, tentamos compreender o
significado da cor amarelo, certamente excluímos do seu campo de
significação as cores azul, vermelho e verde. Para reter seu significado,
dizemos que é uma das cores primárias do nosso espectro visual e, para
“separar”, apontamos objetos identificados com ela: o sol, a manteiga, a
gordura, etc. O conceito ainda teria uma escala de abstração, do mais abstrato
ao mais concreto, de modo que o distanciamento da realidade permitiria uma
maior abrangência do conceito, que poderia cair sob um número maior de
hipóteses. A descida na escala abstrativista dar-se-ia pela inclusão de novas
notas distintivas ao conceito, permitindo uma maior aproximação com o mundo
real. Ao aumentar o número de elementos necessários para a adequação a um
conceito eu o aproximo a concretude fática, diminuindo, contudo, a amplitude
de sua aplicação. Por exemplo, “bege” deixaria de ser enquadrado no conceito
de amarelo.
Essa escala de abstração, porém, ainda que chegasse a níveis
baixíssimos, aproximando ao máximo da individualização concreta, não
perderia a sua taxionomia de “conceito abstrato”, uma vez que a sua formação
ainda se daria pelo método de isolamento das notas distintivas, fazendo com
que o produto final não decorresse da totalidade de elementos constatados de
um caso concreto.
O conceito traz uma ideia de distinção clara e inequívoca, que
permite uma imediata análise de adequação ou não a ele. Com efeito, o
conceito traz insitamente uma ideia de definição, ocorrendo um afastamento
dos aspectos valorativos na sua aplicação. Diante de um conceito eu teria a
condição cognitiva imediata e racional de dizer se aquele objeto se encaixa ou
não a ele. Trata-se de pretensão de conferir certeza significativa, encerrando
9 OLIVEIRA, 1980, pg.04
19
toda e qualquer margem interpretativa na clareza de sentido, não comportando
mais de uma interpretação.
O direito foi amplamente seduzido pela ideia de estruturação lógico-
formal da realidade captada pela mente e reproduzida no conceito abstrato, o
que supostamente daria à norma jurídica a previsibilidade exigida pela
segurança jurídica. Como seria possível apenas uma única interpretação
lógica, o afastamento dessa hipótese seria um tergiversar ilegítimo, pois o
intérprete estaria desvirtuando o sentido da norma e pessoalizando a aplicação
do direito.
Esse canto da sereia parece ter maravilhado DERZI (1988), que
assevera que “a legalidade estrita, a segurança jurídica, a uniformidade e a
praticabilidade determinam a tendência conceitual prevalente no Direito
Tributário”10. A eminente professora assevera que a necessidade de uma maior
previsibilidade no Direito Tributário ensejaria a adoção de conceitos
classificatórios com conteúdo fechado, não se admitindo “ordens de estrutura
flexível, graduável e de características renunciáveis que são os tipos”11. Com
isso, constatamos que há a encampação da ideia de existência de uma
linguagem lógica capaz de fechar todas as hipóteses normativas.12
Ainda segundo Misabel Derzi, o conceito fechado é corriqueiramente
utilizado por nossa doutrina como sinônimo de tipicidade, principalmente
quando se trata de ramos do direito em que se necessita de uma maior
proteção do jurisdicionado, como é o caso do Direito Penal e do Direito
Tributário. Trata-se de mera impropriedade terminológica, mas que enseja uma
investigação mais criteriosa sobre o que seria o tipo.
De uma forma geral, podemos afirmar que a diferenciação proposta
para o conceito e o tipo seria que, enquanto no primeiro o processo de
universalização da hipótese normativa se dá com base no isolamento das
notas distintivas de cada objeto e a sua análise em separado, formando
abstratamente uma expressão linguística clara e inequívoca, que permite
identificar pela lógica formal subsuntiva se o fato concreto se adéqua ou não ao
10 DERZI, 1988, pg. 248. 11 DERZI, 1988, pg. 248. 12 Durante o trilhar dessa obra, mostraremos a impossibilidade do alcance de expressões com sentido unívoco e que sejam sintática e semanticamente perfeitas.
20
conceito; na construção do tipo, a universalização se dá no movimento dialético
que sai do particular ao universal, tomando como parâmetro a descrição da
realidade sensorialmente apurada, possuindo, assim, uma maior proximidade
com a concretude fática. O tipo descreve a realidade, não lhe sendo permitida
a alteração das conexões de sentido, que aproxima o real da expressão
linguística.
Segundo LARENZ (1997), o pensamento tipológico se faz
necessário quando os conceitos abstratos não são suficientes para a captação
do fenômeno, mostrando-se imperiosa uma aproximação com o real, com o
que faticamente acontece. Apenas recordando que na abstração designada
pelo autor como “suprema”, ou seja, que está no ápice da cadeia de abstração,
embora permita a subsunção de um maior número de hipóteses, o seu
conteúdo é empobrecido em razão do distanciamento da realidade. Além disso,
o fechamento conceitual não viabiliza a solução de controvérsias decorrentes
das lacunas existentes no sistema em razão da dinamicidade social e das
múltiplas hipóteses de acontecimentos fáticos. Para solucionar esses
problemas é que o tipo deveria fazer-se presente na Ciência do Direito.
O tipo permitiria a solução das lacunas, pois a sua constituição
pressupõe a abertura significativa, dando fluidez aos seus termos e permitindo
que haja uma maior adequação com o caso concreto por meio da utilização de
elementos valorativos. Não se aplica a ele a lógica da exclusão do contrário,
por meio da qual um fato concreto se encaixa totalmente ou não na hipótese
normativa. É perfeitamente possível que a ausência de um elemento descrito
no tipo não prejudique a adequação do fato à hipótese tipificadora.
Em razão da sua natureza descritiva, o tipo forma um modelo básico
apreendido da análise dos fenômenos, de modo que a ausência de um ou
outro elemento não lhe descaracteriza. Ele funciona como uma espécie de
standard fluido que se move na faticidade para se concretizar, devendo haver
um processo inferencial valorativo para identificar se aquele fato é típico.
Ao tipo não se aplica o método subsuntivo, pois o meio de
observação da realidade é o inferencial indutivo, de modo que o parâmetro
modular que forma o tipo é alcançado pela identificação dos elementos
significativos extraídos dos casos particulares. O tipo se abre à realidade e
21
permite uma multiplicidade de fatos aplicáveis à mesma hipótese. Ele não traz
definições, mas descrições que parametrizam o agir investigativo, dando ao
intérprete uma margem valorativa para poder identificar a correlação do fato
com a descrição típica.
VELÁSQUEZ (2011) expressa que, no direito, a integração do fato
com a hipótese típica não se dá abstratamente como no conceito, mas é
exigida uma valoração por parte do intérprete, que valeria das pré-
compreensões formadoras do seu juízo (obtidas direta e indiretamente na
vivência jurídica) para identificar a possível adequação do fato ao previsto na
norma tipificadora. Esses juízos não seriam, contudo, aleatórios ou
subjetivistas, mas decorreriam das percepções obtidas da experiência jurídica,
seja do próprio intérprete ou pelo manuseio da jurisprudência13.
Vale frisar, contudo, que o pensamento tipológico não apresenta
uma unidade significativa, existindo várias formas de abordagem e estruturação
científica. Passamos então a discorrer sobre alguns dos modos de
apresentação do tipo.
Iniciamos pela ideia trabalhada por Karl Engisch relativa ao
denominado “tipo médio ou de frequência”. Esse modelo absorve a ideia de
descrição dos elementos normalmente visualizáveis na sociedade, tratando-se
daquele parâmetro básico extraído da realidade frequente de uma determinada
organização social. Na construção tipológica, o cientista não adota aqueles
elementos extremos, de verificação extraordinária, pautando-se por uma
descrição do que é usual.
Os exemplos trabalhados por Larenz são bem esclarecedores.
Quando dizemos “certa situação atmosférica é típica desta região e época do
ano” estamos a trabalhar com a noção do tipo médio. A imagem mental que
teríamos ao nos defrontar com tais expressões seriam àquelas
correspondentes ao que se mostrou faticamente usual.
13 Apenas para fins de registro, ao que nos parece, a teoria do pensamento tipológico se adéqua ao expresso por NINO (2010) como teoria descritivista naturalista objetivista, sendo que os juízos de valor integrantes do tipo são “empiricamente verificáveis” e extraíveis objetivamente de uma dada sociedade. Essa perspectiva se mostra ainda mais forte quando Larenz assevera que o tipo real é “ao mesmo tempo, sempre um tipo ideológico” (LARENZ, 1997, pg. 661)
22
O tipo médio descreve àquela situação mais comum, deixando de
penetrar nas características mais específicas, podendo ter graus de
intensidade diversos, bem como uma variedade de matizes e combinações. O
tempo pode estar mais frio ou mais quente, com maior ou menor umidade.
Contudo, nada disto retira a condição típica narrada, de situação atmosférica
normalmente verificada naquela época do ano. O verão brasileiro pode ser
mais ou menos chuvoso, com temperaturas mais ou menos altas do que o
normal, mas a expectativa é que nesta época tenhamos mais chuvas do que no
resto do ano, bem como temperaturas mais elevadas. Trata-se de uma
expectativa de repetição de caracteres assemelhados.
No direito, a figura do tipo médio se mostra bem presente. O
denominado homem médio ainda figura como parâmetro valorativo de
comportamento que subsidia a hermenêutica jurídica, exigindo que o intérprete
visualize no caso concreto se houve a adoção das medidas preventivas típicas
de um “bom sujeito”, que se concatena aos padrões médios observados. No
âmbito do Direito Penal isso se mostra em evidência nas figuras
caracterizadoras da culpa (imprudência, negligência e imperícia). Ser
imprudente nada mais é do que agir fora do padrão médio desenhado pela
sociedade. Em uma via cuja velocidade máxima permitida é de 60km/h, ser
imprudente não é simplesmente ultrapassar esse limite, mas transbordá-lo para
além do que o homem médio faria. O mesmo acontece com a negligência, que
é a omissão lesiva daquele que tinha o poder/dever de agir. Esse poder/dever
delineia uma ideia de comportamento esperado no modelo básico de
sociedade. O imperito é o sujeito que transgride barbaramente as regras de
atuação profissional, não lhe sendo exigida uma habilidade estrondosa, mas ao
menos aquela que se constata na prática mediana da profissão. Outro exemplo
do tipo médio seria a famigerada “mulher honesta” presente até 2005 na
conduta tipificada no artigo 215 do Código Penal, na qual pressupunha o
comportamento usualmente visto pela sociedade como condizente com os
bons costumes.
Mas afinal, quem é o homem médio? O personagem Lineu Silva da
Grande Família? E a mulher honesta? A Dona Nenê? As luzes que jogamos
para tentar enxergar o real escondem aquilo que não pode ser percebido,
23
aquilo que a nossa racionalidade não pode captar. O tipo médio ou frequente
nada mais é do que uma fajuta idealização do real, que não existe senão na
nossa ilusão de termos encontrado um padrão básico a partir da observação
empírica. O nosso olhar nos ludibria, pois vemos aquilo que queríamos ver.
Note-se que a nossa crítica não gira em torno da indeterminação
conceitual – até mesmo porque não acreditamos na determinação conceitual -,
mas em relação ao pensamento de que é possível captar objetivamente da
realidade o conjunto de elementos que formam um padrão comum de
comportamento. A nossa percepção não objetiva e nem tampouco consegue
alcançar a totalidade dos fatos, permitindo a descrição apenas daquilo que
“mais vezes” foi observado. Essa teoria narra, então, aquilo que queríamos ver,
que o nosso olhar foi direcionado pela nossa com-pre-ensão14. Suspeitamos
que o comportamento padrão e desejado de uma mulher possivelmente esteja
identificado na figura materna, simbolizando uma mulher que certamente
ascenderá aos céus pela demonstração de tantas virtudes15. Esse
comportamento exemplar, contudo, não se dá pela contemplação imparcial do
mundo. As mães são santas, porque o nosso olhar as enxergam assim, como
as verdadeiras mulheres honestas.
Outro modo de apresentação do pensamento tipológico na
modalidade empírica seria o de totalidade ou configuração. Nesta, o tipo total
é constituído a partir da análise comparativa, por meio da qual são identificadas
notas distintivas que serão consideradas no seu todo. Tomando o exemplo de
Heyde trabalhado por Larenz, esse modelo típico estaria presente na
expressão “a típica casa rústica da Baixa Saxônia”.
Para se chegar a esta descrição típica, observamos os elementos
que distinguem a casa rústica da Baixa Saxônia das demais casas,
14 Com-pre-ensão? Assim, separado? Nunca vi! Prometemos ao leitor ofertar o nosso melhor, o que justifica lhe dar a mão nessa travessia. Com traduz a relação de alteridade. A minha cognição não é solipsista, pois passa necessariamente pela alteridade. A compreensão será sempre com o Outro. Pre simboliza a noção de espacialidade e temporalidade do compreender. Há uma antecedência compreensiva que só se revela na compreensão. Em me remete ao tempo e ao espaço. O compreender se dá “em” algum lugar e ”em” algum tempo, que serão essenciais para a construção compreensiva. São me recorda do ser que reflete sobre sua própria existência e só é no sendo. Compreender só é possível no ser do homem. 15 Não que interesse ao leitor, mas à minha mãe faltam apenas as vestes de Santa. Como não há uma vestimenta típica, então, nada lhe falta para ocupação de tal cargo. Essa sim é uma verdade clara, inequívoca e absoluta. Único assunto que não aceito discussão.
24
identificamos quais são as notas distintivas e criamos um modelo básico que
permita a fluidez de sentido. As casas podem alterar alguns dos elementos,
como a quantidade de janelas, a cor, o tamanho, etc., mas isso não lhes retira
a característica marcante da casa rústica da Baixa Saxônia.
Esse modo de apresentação típica prima pela construção de um
mapa mental correlativo, no qual o tipo é a descrição do modelo básico
compreendido na sua totalidade, mas aberto significativamente, permitindo que
a ausência de alguns elementos não o descaracterize. Em outras palavras,
“casa rústica da Baixa Saxônia”, embora não possua um fechamento
conceitual, permite-me uma apreensão genérica daquelas simpáticas moradias
do interior da Alemanha. Não há uma definição do que é, mas permite-me fazer
uma imagem mental do tipo de edificação.
O problema dessa imagem mental já foi apontado por Leonard
Mlidinow em seu livro “O andar do bêbado”. Ao tentar extrair o modelo básico,
focamos a nossa racionalidade naquilo que nos é mais latente. Ora, quando
falamos no típico homem solteiro, é bem possível que venha a mente a figura
de um sujeito mulherengo, adepto ao chopp diário com os amigos e que vive
em uma casa um tanto desarrumada. Pode haver ausência desses elementos,
mas a imagem é costumeiramente essa. Ou será que o leitor visualizou o
Papa? A típica casa rústica da Baixa Saxônia pode não corresponder
exatamente com aquela imagem mental que fizemos ao nos deparar com o
modelo típico, mas ela será uma casa rústica da Baixa Saxônia.
Claro que o leitor pode dizer “não, você está confundindo. A casa
será rústica da Baixa Saxônia se detiver alguns elementos básicos, como a
estrutura do telhado, as janelas de vidro, etc. E, ainda, o típico solteiro é aquele
que não é casado, ponto final!”. Evidente que muitas outras críticas poderiam
surgir, mas a minha defesa sobre esta seria com o questionamento acerca de
qual seria a diferença do tipo para o conceito, se a pressuposição é de
necessidade do fato conter elementos específicos que se adéquem ao modelo
típico? Não seria, dentro da própria teoria do conceito, um menor grau de
abstração conceitual ao invés de tipicidade?
Em síntese, o que estamos apontando é que a imagem que vem a
nossa mente é turva e não decorre de percepções empíricas puras, existindo
25
sempre algo que nossa racionalidade não conseguiu alcançar. Não é possível
visualizar a totalidade de um objeto, o que impede a caracterização típica total.
Larenz ainda faz menção ao denominado tipo ideal normativo, que
seria construído por meio de uma abstração valorativa do que seria a realidade
ideal. O exemplo trazido pelo autor alemão seria a sociedade ideal platônica.
Apenas para recordar, de forma bem sintética, Platão idealiza o modelo de
governo perfeito, apresentando uma sociedade organicista governada pelos
filósofos, que aplicariam ao caso concreto os conceitos puros absorvidos no
mundo das ideias. Aplica-se também a esse modelo o tipo idealizado de
profissional, como o tipo de “juiz justo”. Seria um tipo de perfectibilidade, de
ideal a ser alcançado que norteia o agir humano. Logo, o tipo ideal normativo
pressupõe um lugar inalcançável em um tempo impossível. Pressupõe um
desejo pessoal/social de progresso ou de melhoria sempre inatingível, o que
acarreta outro problema: a impossibilidade de definir o que seria perfeito!!!
Perfeito para quem? Quais são os valores que norteiam essa perfeição? Quem
dita o padrão básico da conduta perfeita?
Avançamos agora para o que foi denominado por OLIVEIRA (1980)
de tipo ordem. Esse modo de ser do tipo revela a pretensão de descrever a
vida como ela é, sem definir os seus contornos, permitindo a fluidez, que é
traço marcante do comportamento humano. As experiências reais da vida
humana não possuem uma fragmentação, de modo que o processo descritivo
da realidade não poderia cindir o objeto ou o fato em notas distintivas. A
realidade é “como ela é”, e não pela individualização de cada um dos
elementos que a compõe. O tipo ordena as conexões da realidade ao invés de
isolá-las.
Afirmam Hempel/Oppenheim que, ao contrário, o tipo é uma ordem que esclarece sobre a disposição dos objetos em uma série uni ou pluridimensional, uma relação de objetos individuais entre si dentro do tipo. Este, como ordem, permite concluir que um objeto ou uma ou várias qualidades de um objeto estão em paridade com outros, ou sucedendo ou precedendo a outros. E verificam-se, ainda, transições fluidas entre objetos e grupos de objetos que possuem uma propriedade em mais alto grau e outros que a possuem em menor grau, o que possibilita perceber as graduações e transições flutuantes dentro do âmbito da nossa experiência. (OLIVEIRA, 1980, pgs. 08/09)
26
Como anota DERZI (1988, pg.38), o tipo ordem é caracterizado
pela graduação da realidade, fluidez, indeterminabilidade, indefinibilidade, certa
temporariedade, abertura ao mundo real para readequações de sentido e a
existência de uma imagem total que permita o reconhecimento do fato como
típico. Não há um modelo lógico formal unívoco, mas um molde ajustável à
própria concretude fática, que tenha mobilidade para se desenhar de acordo
com o movimento da própria sociedade. O pensamento tipológico nesse
formato traria para o direito uma atualização constante das normas com os
fatos sociais, uma vez que a renovação significativa dar-se-ia
instantaneamente à mudança da perspectiva social.
Importante notar que, mesmo nessa visão sobre o tipo, com uma
proximidade com os acontecimentos fáticos, a realidade é observada
objetivamente, por um olhar cientista que descreve como a realidade é em si,
ou seja, como ela efetivamente acontece. O processo de universalização do
real pressupõe uma realidade objetivamente enxergável pelo jurista e pelo
legislador, que teria o papel de descrever aquilo que racionalmente ele
percebeu. Há notoriamente um tom da racionalidade moderna que pressupõe a
capacidade do homem de, pelo cogito, identificar as coisas, classificá-las e,
consequentemente, dominá-las. Está, portanto, em uma dimensão do “eu
penso” cartesiano, capaz de captar racionalmente a realidade e descrevê-la
com perfeição de detalhes.
Com efeito, vale frisar dois pontos relevantes para o desdobrar
dessa obra. Em primeiro lugar, não obstante a apresentação do tipo como uma
abertura ao real tenha o nobre objetivo de permitir uma fissura interpretativa no
direito, de modo que as decisões judiciais acompanhem a fluidez das
mudanças sociais, ela ainda parte de uma lógica moderna que vislumbra a
possibilidade de extrair objetivamente os elementos do mundo físico, fazendo
do cientista jurídico aquele que sai do seu mundo para observar o que
acontece. Na própria dualização de conceito/tipo, apresentando a viabilidade
de desconexão do compreender com o mundo que circunda o intérprete,
reforça essa perspectiva, pois se acredita que está nas mãos do legislador
fazer uma abstração do cotidiano ou descrever o comportamento, expondo o
que fora observado na contemplação dos acontecimentos fáticos.
27
Ao contrário disso, pressupomos a indissociação do homem com o
mundo, o que torna a ideia de abstração uma impropriedade lógica. Dizer que
as expressões científicas podem ser classificadas como conceito ou tipo não
faz o menor sentido, pois não é possível o desligamento do homem com a
realidade fática. A sua narrativa terá inexoravelmente influxos decorrentes da
sua relação com o mundo que o circunda.
Como abordaremos mais a frente, a condição de ser-no-mundo
impede que haja essa fuga da realidade para compreender o que está a sua
volta. O homem não consegue extrair abstratamente os elementos do mundo,
pois esse ato já estaria eivado pela sua percepção real de desde sempre
compor o mundo. Além disso, as mudanças interpretativas não se darão
somente pela fluidez da sociedade, que modifica os seus valores a todo
instante, mas também na alternância do intérprete, que possui uma visão
interpretativa que é só sua, em razão da existência que lhe é própria.
Outro ponto que precisa ser frisado é a nossa contrariedade em
relação ao fechamento ou abertura significativa. Ao que nos parece, a miragem
doutrinária é no sentido de que se dá na linguagem o fechamento linguístico,
cabendo ao legislador realizar a escolha na adoção de conceitos - que trariam
uma semântica definida - ou do tipo - que teria como elemento central a
abertura significativa. Essa abertura seria fixada a partir da utilização de termos
semanticamente abertos, dando ao intérprete uma maior possibilidade
interpretativa, integrando o texto ao caso concreto por meio de juízos
valorativos existentes na sociedade e captados pelas experiências jurídicas
vividas direta ou indiretamente.
Ora, o nosso horizonte é que esse fechamento não pode se dar na
dimensão semântica da linguagem, mas apenas na pragmática, momento em
que a aplicação terminológica será provisória e precariamente “de-finida” pelos
interlocutores. Ainda que o legislador se esforçasse bastante, ele jamais
estruturaria uma sentença completa e com univocidade de sentido. Não há
significação fora do caso concreto, destoada do jogo de linguagem. O
fechamento conceitual é uma “im-possibilidade” lógica, pois a norma sempre
estará sujeita a (re)significações decorrentes da mutabilidade dos jogos de
linguagem e das influências pré-compreensivas do intérprete. Pré-
28
compreensão que não está relacionada à historicidade pura, isto é, das
vivências que teve, mas também da sua mundanidade, da sua condição
compreensiva decorrente da existência como ser-lançado. A mudança na
significação não se dá só pela alteração fática, mas também pela modificação
daquele que enxerga aquela realidade, pois o seu enxergar não é objetivo, ao
revés, expõe uma compreensão que é só sua.
Ainda há outros modos de apresentação da tipicidade, como a
estrutural de Karl Larenz16, o tipológico-analógico de Arthur Kaufmann17, a
tipicidade da imposição de Klaus Tipke18 e outras que fugiram da nossa
percepção. Entretanto, em cada uma dessas19 se impõe, em alguma medida,
as críticas que aqui já foram apontadas20, de forma que, para os objetivos do
presente trabalho, mostra-se desnecessária a abordagem de todas elas. Há,
porém, uma que é muito criticada no campo teórico, mas que tem subsidiado a
doutrina e a jurisprudência pátria, mormente em matérias de caráter
sancionador. Estamos a falar da tipicidade cerrada ou tipicidade fechada.
A tipicidade cerrada é configurada pela descrição exaustiva da
realidade e a indicação de todos os elementos concretos e valorativos que um
fato precisa ter para se concatenar àquela hipótese típica. Ocorre a definição
16 V. LARENZ, 1991, pgs. 655/701 – pgs. 391/439 17 V. KAUFMANN, 1997, pgs.161/191 -142/150 18 V. TIPKE, 2008, pgs. 235/260. 19 Obviamente que entre as que foram identificadas por nós. 20 Evidente que não estamos colocando todas essas teorias em uma sacola comum. Elas não são idênticas e nem possuem uma direção única. A nossa escolha em não minudenciá-las gira em torno da nossa percepção que, não obstante haja um esforço individualizado, elas acabam por recair nos mesmos problemas apontados nas outras teorias. A ideia de determinabilidade do tipo e da consequência jurídica na teoria da imposição de Klaus Tipke, em nosso sentir, aborda a linguagem como suficiente em si mesma, capaz de ser manuseada sintaxe e semanticamente de modo a ofertar a determinação conceitual da realidade. Por sua vez, tanto o tipo estrutural de Karl Larenz como o tipo-analógico de Arthur Kaufmann sustentam, na nossa ótica, que a abertura existente no tipo e a mutabilidade significativa se dão no campo dos elementos sintáxicos e semânticos. Kaufmann, aliás, por mais que tenha bebido em Wittgenstein e assevere que o homem não possui uma racionalidade pura, entendemos que ele não deu o salto necessário. Ele apresenta que a significação pode ser alterada em cada ramo do direito (uma abordagem sobre o jogo de linguagem), mas, ao mesmo tempo, petrifica o significado nesses ramos. Ao que parece, ele acredita em uma significação reconhecível e definível antes do seu uso, com base apenas na identificação do jogo de linguagem em que a proposição está inserida. Assim, mesmo com a sofisticação das suas teorias, entendemos que esses autores não ultrapassam os limites que aqui já foram criticados. Repisamos que não se trata de desconsideração das investigações desses autores ou conferir desimportância aos seus escritos. Em absoluto! Ao revés, recomendamos ao leitor a visitação dessas primorosas obras. Dessa maneira, se houver uma justificação para a nossa escolha, poderíamos indicar que a não a-presentação mais densa dessas teorias se faz pelo receio de se parecer repetitivo. De todo modo, ofertamos nossas escusas ao leitor.
29
do mundo real, exigindo a convergência de todos os elementos para a sua
caracterização. Não há fluidez ou espaços interpretativos que ajustem o tipo a
uma realidade análoga, devendo haver correspondência direta do modelo
tipificado com a concretude fática.
Os juízos valorativos, que justificariam a distinção com o conceito,
devem estar presentes no próprio enunciado típico, de modo que o cientista já
possua previamente o conjunto de valores a serem aplicados no caso concreto.
A narrativa típica do crime de “perigo de contágio venéreo” já possui na sua
descrição a reprovabilidade social da conduta e os valores normativos que
devem ser observados pelo intérprete.
O fechamento tipológico se justificaria pela necessidade de alcançar
maiores níveis de segurança jurídica, dando ao jurisdicionado a previsibilidade
nas relações jurídicas e, principalmente, nas decisões tomadas pelo judiciário.
Com elementos identificativos claros e inequívocos, não corro o risco de
interpretações esdrúxulas, distantes daquilo que foi normatizado pelo
legislador.21
Mas, o que diferenciaria o tipo cerrado do conceito abstrato?
OLIVEIRA (1980) sustenta que o tipo estaria mais próximo da realidade fática,
expondo elementos que exigiriam um acesso ao mundo real para verificar a
sua concretização. Em um caso homicídio com elementos caracterizadores da
crueldade, da cobiça, dos motivos vis fica patente as idas ao mundo real para
fazer o comparativo comportamental com os elementos descritos no tipo.
Ainda no trilhar da festejada autora, o tipo cerrado teria os
elementos básicos necessários para sua configuração alcançados em dois
momentos complementares. O primeiro comporia o tipo “partindo-se da
estrutura social, da tensão fático-axiológica existente que se busca captar na
sua proximidade da vida quanto possível; portanto, pensamento abstrativo e
tipológico rege a sua formação.”22. Em seguida, o legislador expressa a
realidade captada por meio de uma estrutura linguística determinada,
trabalhando com exaustão todos os elementos necessários para a
configuração do tipo. Haveria um agir investigativo prévio que se pautaria na
21 - Ah, como é doce a ilusão! 22 OLIVEIRA, 1980, pg. 26/27.
30
contemplação da realidade e um agir descritivo total que, valendo-se de termos
com conteúdo determinado, apresenta-se a realidade com todas as suas
minúcias necessárias, inclusive com os valores norteadores.
Conforme menção anterior, DERZI (1988) esposa que a tipicidade
cerrada seria a intelecção imprópria da ideia de tipo, que pressupõe
necessariamente a abertura significativa ao real. Alega, ainda, que tal equívoco
decorre da leitura apressada feita da obra do alemão Karl Larenz, que na
primeira edição de seu livro teria abordado a distinção entre tipo aberto e tipo
fechado, mas que teria reparado esse equívoco na terceira edição de sua obra.
Além disso, o uso impróprio da terminologia tipo para expressar uma linguagem
fechada teria sido o reflexo da tradução e utilização dos penalistas do termo
Tatbestand como referencial de tipo.
TORRES (2006) expõe que o equívoco interpretativo acerca do
pensamento renovado de Larenz também afetou a obra de Alberto Xavier, que
teria se alicerçado nas considerações de Castanheira Neves23 que, por sua
vez, teria se pautado na 1ª edição da obra do autor alemão. O efeito cascata
mostrou-se inevitável, sendo que diversos outros autores, como José Fernando
Cedeño de Barros e, em alguma medida, a professora Yonne Dolacio de
Oliveira, foram influenciados pela obra do professor português, avalizando o
erro metodológico cometido.
Nada obstante o indigitado lapso cometido pelo catedrático da
Universidade de Lisboa, a influência do seu trabalho e a constante utilização do
termo tipicidade cerrada no direito brasileiro a partir de tais fundamentos,
imperioso se torna o nosso imiscuir em sua obra.
Fazendo uma remissão aos estudos de Albert Hensel na Alemanha,
XAVIER (1978) expõe que o direito germânico possui, em matéria tributária, a
aplicação do Tatbestandsmässigkeit, que seria um atributo da vida real de se
adequar ao modelo abstrato descrito pela norma e que seria fundamental para
o alcance da eficácia normativa. Esse postulado estaria positivado no § 3º da
Lei de Ajuste Fiscal da Alemanha (Steueranpassungsgesetz), que previa que
uma dívida somente passaria a ser devida se houvesse inteira adequação com
23 Como realmente se observa da nota de rodapé nº 16, do capítulo VI, página 92, na qual aduz-se que “adota-se assim o conceito de tipicidade fechada de Larens. V. Castanheira Neves, Questão de fato – Questão de direito, p. 257, nota 7.”
31
o fato descrito precisamente no dispositivo legal24. Ocorreu ali a inauguração
da ideia de adequação típica, que exige uma conformação perfeita da hipótese
normativa com a ocorrência fática.
Ainda, o autor irá trabalhar com quatro princípios que figurariam
como corolário básico para a ocorrência da tipicidade: (I) Princípio da Seleção;
(II) Princípio do “numerus clausus”; (III) Princípio do Exclusivismo; e (IV)
Princípio da Determinação.
O Princípio da Seleção se divide em dois pontos, estando na
primeira ponta à perspectiva de seleção e tipologia, segundo a qual o legislador
primariamente deveria selecionar no mundo real as hipóteses fáticas que
cumpririam com o objetivo social e jurídico para, então, transformá-las em
descrições normativas. O exemplo dado pelo autor seria a identificação das
situações reveladoras de manifestação econômica e, fazendo um correlato com
o objetivo jurídico imposto pelo princípio da capacidade contributiva, far-se-ia
uma descrição típica com elementos semanticamente fechados. Isso impediria
que a tributação fosse aplicada com base em conceitos puramente abstratos,
que não revelassem uma correspondência com o concreto.
O Princípio da Seleção, outrossim, também deveria observar o
método casuístico, consignando na hipótese normativa a cláusula geral, mas
delimitando as circunstâncias e os grupos atingidos. Não poderia deixar uma
abertura interpretativa, ao mesmo tempo em que teria que abarcar a totalidade
de circunstâncias pretendidas.
No que concerne ao Princípio do “Numerus Clausus”, o lusitano
afirma que seria necessária a observância de uma tipologia taxativa, de modo
que as hipóteses normativas não poderiam sofrer inclusões interpretativas,
sendo vedada a utilização de rol exemplificativo. Ademais, o método analógico
seria amplamente vedado, limitando a capacidade valorativa do intérprete, que
não poderia aplicar aquela norma se não houvesse uma subsunção perfeita do
caso concreto com a descrição legal.
O Princípio do Exclusivismo fixa a concepção de que o tipo deve
conter a totalidade de elementos necessários para a sua configuração,
24 Die Steuerschuld entsteht, sobald der Tatbestand verwirklicht ist, an den das Gesetz die Steur knüpft. “A dívida fiscal nasce assim que o tipo é concretizado, momento em que a hipótese legal se adéqua ao fato gerador” (Tradução nossa)
32
encerrando a sua significação em si mesmo. Em outras palavras, o conteúdo
descritivo não poderia ser complementado por métodos interpretativos,
devendo haver uma adstrição absoluta ao que está descrito na norma. Nem
mais nem menos. A tipologia, igualmente, deveria pressupor a implicação
intensiva, que consubstancia na ideia de que a totalidade de valoração fática
possível está contida na descrição típica, inexistindo a possibilidade de
descoberta de um elemento ou valor acessório.
Por derradeiro, o Princípio da Determinação pressupõe que todas
as possibilidades de aplicação já estão previamente explicitadas na descrição
típica. A lei deveria conter os critérios de justificação e os de aplicação da
norma, devendo o intérprete figurar apenas como concretizador do método
subsuntivo.
Busca-se a retirada de qualquer subjetivismo no momento de
aplicação da norma, cabendo ao magistrado a tarefa de deduzir a conclusão a
partir das premissas claramente apresentadas. Aqui, Xavier faz uma
congregação da tipicidade com o Princípio da Determinação do Direito Alemão
(Grundsatz der Bestimmtheit), que vai ocasionar inclusive a crítica de Ricardo
Lobo Torres sobre a correção da teoria do professor ibérico25.
O grau de determinação semântica do tipo não admitiria as
denominadas normas elásticas ou incompletas, que seriam àquelas suscetíveis
a complementação interpretativa. A tipicidade expurgaria da descrição
normativa todo e qualquer conceito indeterminado, que seriam aqueles
carentes de um conteúdo lógico e conceitualmente unívoco. A determinação
conceitual ainda deveria estar presente nos parâmetros quantitativos do tipo,
ou seja, definindo clara e inequivocamente o valor a ser pago em caso de
tributo ou a penalidade exata a ser cumprida em caso de sanção. Não há
margem sequer na fixação do resultado jurídico, devendo o intérprete se ater
ao padrão fixado pelo órgão legislativo.
25 “Esse princípio da determinação se expressou, na tradição ibérica, com especial ressonância no Brasil, como princípio da tipicidade, pela confusão feita entre tipo e o fato gerador abstrato (Tatbestand), que o agasalha. Misabel Derzi, no Brasil, e José de Oliveira Ascensão, em Portugal, denunciaram o equívoco. O melhor exemplo dessa orientação no direito tributário se encontra na obra de Alberto Xavier.” (TORRES, 2006, pg. 12)
33
Nesse panorama geral explicitado por Alberto Xavier, por mais que
tenha sido direcionado ao Direito Tributário, conseguimos visualizar a adoção
nos outros ramos do direito que trabalham com a ideia de uma descrição da
totalidade dos elementos da realidade e, ao mesmo tempo, exige a imediata e
absoluta correlação do fato com o expresso na norma para a produção dos
efeitos. A essa perspectiva pouco nos importa se é chamada de Tatbestand,
conceito abstrato, Grundsatz der Bestimmtheit (Princípio da Descrição) ou
Tatbestandestimmtheit (determinação do fato gerador), até mesmo porque,
como já aludimos, a distinção ontológica feita com base na abstratividade será
um dos pontos a ser questionado nesse trabalho.
Ainda, vale mencionar que a evolução distintiva do tipo no Direito
Penal, de Tatbestand para a separação do tipo e a antijuridicidade promovida
por Beling, a Teoria Finalista de Welzel ou a Teoria da Imputação Objetiva de
Claus Roxin, apesar de terem a sua relevância revolucionária naquele ramo do
direito, acreditamos que recai sobre todas elas a caracterização de uma
pretensa linguagem lógica perfeita capaz de delimitar a conduta a ser punida,
de forma que ao intérprete é dado, no máximo, um norte lógico e objetivo que
deve ser observado no momento da aplicação da lei. Dessa maneira, a nossa
escolha em não descortinar o tipo como matéria penal se justifica pelo fato da
estrutura básica científica dessas teorias não se diferenciar das demais.
Com efeito, a nossa percepção é que as doutrinas sobre o
pensamento tipológico se alicerçam nos postulados científicos da modernidade,
tomando como parâmetro os seguintes pressupostos: (I) a existência de uma
linguagem lógica perfeita, capaz de encerrar em si mesma toda possibilidade
de significação. Mesmo na abertura do tipo, essa fissura é promovida pela
escolha certa dos signos linguísticos que possuam uma polissemia encontrada
na sua estrutura semântica e sintáxica. (II) A capacidade de descrição perfeita
da linguagem, que funciona como espelhamento de uma realidade
objetivamente percebida. Acredita-se que, pela razão, seria possível enxergar a
totalidade do acontecimento ou ao menos pensá-lo abstratamente. (III) A
existência de uma percepção objetiva da realidade, destituída de toda e
qualquer valoração e que tenha sido alcançada por meio da reflexão científico-
racional. (IV) A crença na cisão da capacidade cognitiva do homem com o
34
mundo que o circunda e a sua mundanidade, vislumbrando a viabilidade de um
pensar abstrato separado do fenômeno. (V) A suposição de que a interpretação
é neutra e objetiva, de modo que o intérprete seria capaz de sair da realidade
fática para observar o mundo como ele é.
Destarte, com essas asserções propedêuticas, aprumamos a nossa
caminhada em busca da desconstrução desses postulados científicos, tentando
evidenciar que a doutrina do tipo desenvolvida até a contemporaneidade fez a
sua fundação em terreno argiloso, incapaz de sustentar as ideias desse
instituto tão relevante para o direito. No próximo capítulo caminharemos na
busca pela linguagem lógica perfeita pressuposta pela teoria tipológica e pelo
conceito abstrato, que se fundam na ideia de plausibilidade de alcance de
expressões linguísticas com sentido unívoco ou, no caso do tipo “propriamente
dito”, com sentidos definíveis a priori no campo da sintaxe e da semântica. O
nosso trilhar segue em direção a Filosofia Analítica, mais precisamente as
teorias desenvolvidas por Frege, Russell e o primeiro Wittgenstein.
35
CAPÍTULO II – EM BUSCA DE UMA LINGUAGEM LÓGICA
PERFEITA
A nossa caminhada em busca de uma com-pre-ensão acerca da
tipicidade e dos conceitos abstratos, com a pretensão de revelar um
testemunho crítico para além da ontologia, segue em direção ao imiscuir nos
postulados científico-filosóficos estruturantes desses institutos. A ideia de
definibilidade significativa a partir dos elementos sintáxicos e semânticos dos
seus termos, pressuposta por ambos institutos, merece um estudo que vá além
da reprodução do dito. É preciso refletir sobre a sua base, sobre as
concepções sob as quais foram edificados. Acreditar em uma norma
interpretável de forma unívoca ou em um texto normativo possuidor de um
sentido exprimível a priori, exige uma navegação pelas teorias que buscaram
apresentar uma linguagem lógica perfeita.
Com efeito, os próximos passos dessa dissertação terão por destino
o movimento lógico-filosófico iniciado no final do século XIX e que fora
nominado como o Giro Linguístico promovido pelos adeptos da Filosofia
Analítica. Essa corrente de pensamento girou o enfoque das preocupações
filosóficas para a linguagem, dando a esta a atribuição de aferir o valor de
verdade de uma proposição. Considerando Gottlob Frege como precursor da
Filosofia da Linguagem, partimos em direção ao seu pensamento.
1.1 – Frege e a sua Conceitografia
Friedrich Ludwig Gottlob Frege (1848-1925), não obstante tenha sido
um desconhecido por quase toda a sua vida26, é ponto de partida basilar de
todo e qualquer estudo em que se pretenda imergir nas tormentosas águas da
26 V. FREGE, 2009, pg. 10.
36
filosofia analítica27. Conhecido como o pai da lógica moderna, Frege vale-se da
análise dos enunciados linguísticos enquanto método de obtenção da verdade,
buscando, a partir da lógica aritmética, construir uma linguagem que traduza a
hipercerteza exigida do conteúdo científico da modernidade.28
O seu inferencialismo busca romper com a lógica aristotélica29
firmada a partir da estrutura sujeito/predicado, construindo enunciados que
estejam despidos de toda ambiguidade e axiomas capazes de desvirtuar a sua
univocidade de sentido.
Na visão do autor, a linguagem cotidiana (natural) 30, edificada por
um conteúdo proposicional em que há um termo sujeito (referência da
proposição) e um termo predicado (conteúdo referido do termo sujeito) não tem
o condão de garantir uma correção formal do curso do pensamento. As
informações obtidas por meio da linguagem natural nos conduzem a uma
amplitude sem fim de significações produzidas subjetivamente em nosso
intelecto.
A linguagem natural, por não ser governada por leis lógicas, permite
a captação de uma multiplicidade de sentidos, mostrando-se incapaz de, em
uma cadeia de inferência sequencial, sustentar um conteúdo objetivo. As leis
lógicas seriam externas a estrutura linguística, oferecendo pouca proteção ao
cientista.
Para Frege, o silogismo aristotélico, cuja análise é realizada tão
somente a partir de elementos sintáxicos, não seria capaz de solucionar de
27 V. DUMMETT, 1994, pg 06. 28 Antes de apresentar a teoria fregeana, vale alertar o leitor que o lógico alemão, ao longo dos seus escritos, realiza mudanças sensíveis no seu modo de ver a linguagem. A noção de univocidade de sentido para cada referente, ponto presente na sua obra “Begriffsschritt, eine der arithmetischen nachgebildete Formelsprache des reinen”, é alterada visivelmente no artigo “Sentido e Referente”, quando Frege admite a possibilidade de denotação de um objeto por meio de uma multiplicidade de sentidos.Além disso, ele descarta a compreensão de conteúdo conceitual para trabalhar a concepção de objeto referido. Assim, para visualizar essas e outras reformas na teoria analítica de Frege, é preciso que a leitura esteja atenta às fases do seu pensamento. 29 Vale destacar que Frege não descarta a importância lógica da divisão dos enunciados em sujeito/predicado, apenas compreende que esta divisão não é suficiente para a obtenção da certeza científica. 30 Aquela expressa no cotidiano das pessoas.
37
forma intrassistêmica31 algumas proposições lógicas, desvelando-se
imprescindível a adoção de um método semântico hábil a verificar logicamente
a veracidade das sentenças.
Nesse sentido, será desenvolvida a “conceitografia” (Begriffsschrift)
como método lógico de análise das proposições linguísticas no intuito de se
alcançar o conteúdo conceitual (Begrifflichen Inhalt), analisando as expressões
não em uma divisão sujeito/predicado, mas pelo uso dos símbolos “função” e
“argumento da função.”
Com o objetivo de justificar a construção de uma linguagem
formular, edificada a partir de fórmulas matemáticas32, Frege, em artigo
publicado em 1882 (Sobre a Justificação Científica de uma Conceitografia)33,
compara a linguagem natural a mão humana que, não obstante possua uma
relevância na realização das mais diversas tarefas, não é suficiente para a
prática de todos os atos, sendo importante a criação de mãos artificiais ou
instrumentos que dessem a rigidez, a precisão e a inflexibilidade necessárias
para a prática de determinadas ações. O mesmo ocorreria com a linguagem.
A língua natural, assim, detém substancial importância nos atos
comunicacionais do cotidiano, sendo, inclusive, como assevera Mark Textor
(2011, pg. 53), gramaticalmente mais rica que a linguagem formular, detendo a
capacidade de expressar inúmeras distinções inalcançáveis nesta. A
multiplicidade de sentidos, a ambiguidade sempre presente e a existência de
um conteúdo implícito, contudo, faz com que os postulados necessários para
uma conclusão válida sejam omitidos, exigindo-se a adoção da Begriffsschrift.
No artigo retromencionado, Frege ((1882), 2009), enfatizando esse
aspecto, expõe que:
31 A terminologia aqui adotada em nada se confunde com o pensamento de Niklas Luhman. Quando dizemos “intrassistêmico”, a pretensão é de demonstrar a ausência de solução dentro da própria linguagem. 32 “Para a implementação de tal programa, cumpre descartar como imprestáveis, seja a linguagem corrente, seja a lógica tradicional aristotélica, seja ainda a lógica algébrica de Boole (ou Schöreder). Seu ponto de partida consiste em construir um sistema formal cujas noções básicas sejam fixadas com exatidão e clareza, e a seguir sejam estabelecidos enunciados primitivos e regras de inferências que tornam possível desenvolver sem qualquer lacuna uma demonstração nesse sistema.” (destaque nosso) (FREGE, 2009, p. 12). 33 (FREGE (1882), 2009, p. 62)
38
“Mesmo um autor tão consciencioso e rigoroso como Euclides faz com frequência uso, de modo tácito, de pressupostos que não são enumerados nem nos axiomas [e postulados] nem nas premissas dos teoremas particulares. Assim, na demonstração do teorema 19 do livro primeiro dos Elementos (“Em todo triângulo o lado maior opõe-se ao ângulo maior”), ele se utilizou de forma tácita das seguintes proposições: 1) se um segmento não é maior que outro, então ele é igual ou menor que este outro. 2) Se um ângulo é igual a outro, então não é maior que este outro. 3) Se um ângulo é menor que outro, então ele não é maior que este outro.” (FREGE (1882), 2009, p. 61)
Nesse espectro, o encobrimento de pressupostos não trabalhados
na proposição linguística poderia conduzir o leitor a conclusões extensivas ou
diversas da expressa, deturpando o conteúdo conceitual pretendido. A
descrição científica, portanto, estaria prejudicada por não conseguir denotar
com precisão o objeto estudado.
Outra razão que justificaria a conceitografia seria o fato de um único
símbolo gráfico cumprir papéis diferentes nas proposições linguísticas,
podendo servir como nome próprio ou como conceito que cai sob um nome
próprio. Frege exemplifica com o símbolo “cavalo”, que hora pode dar a
significação quanto a espécie, como na expressão “cavalo é um animal
herbívoro”; quanto um conceito que cai sob um individual, como em “Isto é um
cavalo” (Frege (1882), 2009, p. 61). Essas variações semânticas impediriam a
isomorfia do signo com significado, incorrendo em abertura para múltiplas
significações dadas a uma mesma palavra. Pretendeu evidenciar, assim, que
os elementos sintáxicos não conseguem representar com exatidão aquilo que
foi pensado.
Diante disso, o filósofo alemão desloca o seu olhar da lógica de
predicação a um sujeito34 e passa a desenvolver um método capaz de
encontrar o conteúdo conceitual transmitido em uma proposição, desvendando
as informações relevantes para o processo inferencial (Sclussfolge) com vista a
encontrar o pensamento puro35.
34 “[...] deparei-me com o obstáculo da insuficiência da linguagem (corrente): além de todas as dificuldades inerentes ao manuseio das expressões, à medida que as relações se tornavam mais complexas, tanto menos apto me encontrava para atingir a exatidão exigida.” (FREGE (1879), 2009, P. 45). 35 “[...] devo de início investigar até que ponto se procede em aritmética, apenas por inferências [formais], pelo uso tão somente das leis do pensamento que transcendem a todas as particularidades. A via que de sucessão em uma sequência (Anordnung in eine Reihe) à noção da consequência lógica (logishe Folge), para daí poder estabelecer o conceito de número. Para
39
O conteúdo conceitual trata-se do aspecto puramente informacional
da sentença; aquilo que pode ser transmitido, desconsiderando-se, portanto, o
aspecto que detém a retórica e demais ornamentações linguísticas. Para
melhor elucidação, tomemos como as seguintes sentenças trabalhadas por
Frege:
A – Os Gregos derrotaram os Persas em Plataea
B – Os Persas foram derrotados pelos Gregos em Plataea.
Na analítica aristotélica, visualizaríamos que as sentenças acima
formam proposições distintas, estruturáveis da seguinte maneira: A – Sujeito
(Os Gregos) – Predicado (derrotaram os Persas em Plataea); B – Sujeito (Os
Persas) – Predicado (derrotados pelos Gregos em Plataea). A mudança
provocada pela alteração da voz ativa para a voz passiva seria a condução do
ouvinte a uma determinada ênfase pretendida pelo locutor. Como exposto
acima, o conteúdo apreendido dependeria da forma de recepção do ouvinte, ou
seja, de um elemento fora da composição linguística, com a atribuição de
captar o conteúdo expresso, passando, portanto, por prováveis distorções
subjetivas.36
Ao revés, Frege, ao analisar as expressões supra, aduz que o
conteúdo preservado em ambas as sentenças constitui o conteúdo
conceitual, que traz toda carga informacional relevante e que possui um
mesmo valor de verdade. A mudança da voz ativa para a passiva não altera o
conteúdo semântico expresso e, portanto, após um processo inferencial, não
poderia haver conclusões diversas. Em ambas as expressões há uma única
denotação e, consequentemente, um mesmo conteúdo conceitual.
O alcance desse conteúdo conceitual, conforme apresentado, não
seria factível por meio da linguagem natural, o que leva Frege a desenvolver
uma linguagem formular, que consubstanciaria em um método científico de
análise proposicional em que se busca averiguar o conteúdo conceitual da
evitar que nessa tentativa se intrometesse inadvertidamente algo de intuitivo, cabia tudo reduzir a uma cadeia inferencial (Schlusskette) carente de qualquer lacuna.” (FREGE (1879), 2009, pg. 44). 36 Frege antecipa aqui a percepção dos elementos ilocucionários da linguagem, que só viriam a ser desenvolvidos cinquenta anos depois pela Escola de Oxford nos trabalhos de Searle e Austin.
40
sentença inferível, dividindo a estrutura do enunciado em função e argumento
de função.
BEANEY (2011, pg. 02) assevera que a chave para conhecer todo o
trabalho de Frege é compreender a análise realizada a partir da ideia de
função-argumento. Para tanto, ele expõe inicialmente a estrutura do
pensamento fregeano apontando a seguinte fórmula:
Y= ax+b
Podemos visualizar, assim, que “Y” é a função de “X” (termos
variáveis) e “a” e “b” são as constantes. Caso consideremos que as constantes
sejam expressas pelos números 2 e 3, respectivamente, teremos y = 2(x) +3.
Nesta expressão x é o argumento de y, sendo que o valor presente em y varia
de acordo com x. Portanto, se x fosse igual a 4, poderíamos dizer que 11 é o
valor da função 2x+3 para o argumento 4.37.
Da mesma forma se sustentaria a análise proposicional, sendo que a
sentença possui um determinado valor como resultado de uma função para
cada argumento. Vejamos a expressão “Álvaro é cruzeirense”. A analítica de
Frege traduziria essa expressão em “F(x) = x é cruzeirense”, sendo que, a
proposição “Álvaro é cruzeirense” é percebida como o valor da função “x é
cruzeirense” para o argumento “Álvaro”.38 Ao termo “x é cruzeirense” pode ser
atribuída à condição de elemento proposicional invariável, que permite a
denotação do elemento “x”, sendo nomeado por Frege como função. Por sua
vez, o termo “Álvaro”, que poderia ser substituído por outro termo sem que
houvesse prejuízo com o expresso em “x é cruzeirense”, vai ser denominado
de argumento da função39.
37 “We call x and y the variables here: as x varies, so too does y, in the systematic way reflected in the function. By taking different numerical values for x, we get different numerical values for y, enabling us to draw the relevant line on a graph.<< nominamos x e y como variáveis: considerando a variação de x, o mesmo acontece com y, no caminho sistemático refletido na função. Ao tomarmos diferentes valores numéricos para x, obtemos diferentes valores numéricos para y, o que nos permite traçar a linha relevante no gráfico (tradução nossa)” (BEANEY, 2011, pg. 02) 38 BEANEY, 2011, pg. 03. 39“ If we imagine that an expression can thus be altered, it decomposes into a stable component representing the totality of relations, and the sign, regarded as replaceable by others, that denotes the object standing in these relations. The former component I call a function, the latter its argument. The distinction nothing to do with the conceptual content <<Se imaginarmos que uma expressão pode ser estruturada pela decomposição em um elemento estável que representa a totalidade das relações, e pelo signo, considerado como passível de substituição por outros (signos), que denota o objeto utilizado nessas relações. O primeiro elemento eu
41
Em um primeiro contato o leitor poderia identificar a total ausência
de distinção prática desta com a lógica aristotélica, sendo que o método S/P
apenas não conteria o elemento copular (é) na sua análise, mas, ao final, o
resultado seria idêntico. Foi justamente nesta perspectiva que BEANEY (2011,
pg. 03) expõe que a relevância do método de análise função-argumento
começa a ser melhor identificada em proposições relacionais onde há mais de
um argumento para cada função. Tomemos o exemplo trabalhado por Frege
em Begriffsschrift (1967,pg. 22): “o hidrogênio é mais brilhante que o dióxido de
carbono”. Nesta expressão a função poderia ser identificada como “x é mais
brilhante que y” e os argumentos como hidrogênio e dióxido de carbono,
formando uma função Rxy.
O professor da universidade de York ainda assevera que o modelo
lógico de função-argumento apresenta uma melhor funcionalidade quando
estamos diante de proposições com elemento quantificacional, como, por
exemplo, a expressão “Todos os lógicos são humanos”. Para ele, enquanto na
lógica tradicional a análise dar-se-ia como “todos os lógicos” (sujeito) e
“humanos” (predicado), ligados por um elemento copular “são”, na lógica
fregeana essa expressão deveria ser visualizada como “para todo x, se x for
um lógico, então x é humano”, expresso pela fórmula ‘(∀x) (Lx → Hx)’. Essa
análise funcional permitira esgotar o conteúdo relevante expresso na
proposição.
Nas sentenças nas quais há mais de um quantificador, ainda
segundo BEANEY, ficaria mais latente a necessidade de uma linguagem
formular, como no exemplo “Todo número natural tem um sucessor”. Esta
poderia ser concebida, de acordo com a conceitografia, como Nx significando
“x é um número natural” e Syx como “y é um sucessor de x”, que
desencadearia na fórmula (S) (∀x) (Nx → (∃y) (Ny & Syx)). A leitura dessa
fórmula seria “para todo x, se x é um número natural, então há algum número
natural que é o seu sucessor”.
chamarei de função e este último de “argumento”. Essa distinção não interfere no conteúdo conceitual. >> (tradução nossa).” (Frege, 1967, pg. 22)
42
Ao revés da crítica exposta por CHATEUBRIAND (2001, pg 261), o
projeto de Frege, em busca de uma linguagem lógica perfeita40, vai além de um
aprofundamento da sistemática S/P, permitindo explorar a noção de que a
forma gramatical não coincide com a forma lógica, sendo que esta deve ser o
guia para a formação da sequência inferencial.
Isso fica bem claro quando Frege (1967, pg. 22/23) chama a atenção
para as sentenças “O número 20 pode ser representado como a soma de
quatro quadrados” e “Todo inteiro positivo pode ser representado como a soma
de quatro quadrados”. Ele assevera que se tomarmos a conceitografia da
mesma forma que a linguagem natural, ao apreciarmos essas sentenças cairia
no erro conceitual de que “todo número inteiro positivo” e “O número 20” são
argumentos diferentes para a mesma função “pode ser representável como
soma de quatro quadrados”.
Segundo o autor, “o número 20” e “todo número inteiro” não
pertencem ao mesmo grupo categorial (Gleichen Ranges) e o que é
asseverado do número 20 não pode ser dito no mesmo sentido sobre “todo
número inteiro”. Diferentemente do número 20, “todo número inteiro” não
possui uma ideia independente por si só, dependendo do contexto da frase
para ganhar uma significação.41 Em obras posteriores Frege melhor explica
40 V. PARTEE, 2011, pg. 16. 41 “For us the fact that there are various ways in which the same conceptual content can be regarded as a function of this or that argument has no importance so long as function and argument are completely determinate. But, if the argument becomes indeterminate, as in the judgement "you can take as argument of "being representable as the sum of four squares" an arbitrary positive integer, and the proposition will always be true", the distinction between function and argument takes on a substantive significance. On the other hand, it may also be that the argument is determinate and the function indeterminate. In both cases, through the opposition between the determinate and the indeterminate or that between the more and the less determinate, the whole decomposed into function and argument to its content and not merely according to the point of view adopted.[…] In the mind of speaker the subject ordinarily the main argument: the next in importance often appears as object. Through the choice between grammatical forms, such as active-passive, or between words, such as heavier - lighter and give - receive, ordinary language is free to allow this or that component of the sentence to appear as the main argument at will, a freedom that, however, is restricted by the scarcity of words. << "Para nós, o fato de que existem várias maneiras em que o mesmo conteúdo conceitual pode ser considerado como uma função deste ou daquele argumento não tem importância, desde que a função e argumento sejam completamente determinados. Mas, se o argumento torna-se indeterminado, como na sentença “você pode tomar como argumento de "ser representável pela soma de quatro quadrados" um número inteiro positivo, e a proposição será sempre verdadeira", a distinção entre função e argumento se torna de substancial importância. Por outro lado, é também possível que o argumento seja determinado e a função indeterminada. Em ambos os casos, por meio da oposição entre o determinado e indeterminado ou entre o mais e o menos determinado, decompondo em função e argumento
43
essa perspectiva, aduzindo que, enquanto “o número 20” traduz a ideia de um
objeto (Gegenstand), “todo número inteiro” caracterizaria um conceito
(Begriff).42
Em “Sobre o Conceito e Objeto” de 1892 (Über Begriff und
Gegestand), Frege explora essa distinção, asseverando que o conceito é uma
referência de um predicado gramatical e, por outro lado, o objeto nunca pode
exercer uma função predicativa. Na visão dele, não é possível dizer que
“Alexandre Magno” é um conceito que cai sob determinado objeto. Alexandre
Magno, enquanto nome próprio possui uma saturação conceitual, da mesma
forma que o planeta Vênus e os demais objetos.
“Não se pode, de uma coisa, dizer que é Alexandre Magno, ou que é o número quatro, ou que é o planeta Vênus como se diz que uma coisa é verde ou que é um mamífero. Caso assim se pense, não ficam devidamente distinguidos os diversos modos de se usar a palavra “é”. Nos dois últimos exemplos, esta palavra serve de cópula, como um mero sinal verbal (formwort) da predicação. Quando assim utilizada, ela (a palavra é) pode, às vezes, ser substituída pelo sufixo pessoal do verbo. Compare-se, por exemplo, “esta folha é verde” com “esta folha verdeja”. Aqui estamos dizendo [em ambos os exemplos] que algo cai sob um conceito e que o predicado gramatical se refere a esse conceito. Nos três primeiros exemplos, pelo contrário, o “é” tem a função do sinal aritmético de igualdade; ele exprime uma identidade.” (FREGE (1892 a), 2009, pg 113).
Para Michael Beaney, a distinção entre conceito e objeto é uma das
mais relevantes decorrentes do processo analítico função-argumento. Ele
assevera que a ideia de conceito se confunde com a ideia de função e que esta
possui uma abertura indicativa de onde o argumento vai se encaixar. Essa
abertura é identificada pelo uso do símbolo variável “x”, mostrando onde o
para o seu conteúdo, e não se apresenta apenas como ponto de vista adotado. [...] Na mente do falante o conteúdo ordinário se mostra como o argumento principal: a maior relevância muitas vezes aparece como objeto. Através da escolha entre as formas gramaticais, como ativo-passivo, ou entre palavras, como o mais pesado - mais leve e dar - receber, a linguagem natural é livre para permitir que este ou aquele componente da sentença possa aparecer como o principal argumento voluntário, uma liberdade que, no entanto, é limitada pela escassez de palavras. >>(tradução nossa) ” (FREGE, 1967, pg. 23). 42 “Na sua opinião, a representação objetiva seria a mesma para diferentes pessoas, enquanto a subjetiva não. A representação objetiva poderia ser divida em conceito e objeto, enquanto a subjetiva não (ou seja, a representação objetiva envolveria conceitos como ser assassino, que geraria uma verdade se isso for dito do objeto [no caso, a própria pessoa] Brutus, enquanto a representação subjetiva não admitiria essa distinção). Fundamentalmente, a representação objetiva interessa ao lógico, enquanto a subjetiva seria de interesse tão somente para a psicologia.” (MIRANDA, 2011, pg. 14)
44
argumento deve ser inserido para formar uma expressão linguisticamente
completa. Todo conceito, portanto, é insaturado, ou seja, carente de
determinação a ser atingida quando da aposição do argumento.
Por outro lado, o objeto traz uma ideia de saturação conceitual,
formando por si só um conteúdo determinado. Álvaro é Álvaro, assim como
maçã é maçã. Ambas as expressões trazem consigo, na visão de Frege, uma
finitude de conteúdo, sendo possível identificar precisamente de qual objeto
estamos a dissertar. O objeto usualmente encontra-se correlacionado como
referência do sujeito gramatical, sendo que, quando necessária a utilização de
um conceito como tal, é preciso, antes de tudo, a conversão deste conceito em
um objeto43, por meio da individualização de um conceito.
A ideia de objeto enquanto expressão saturada, com definição
completa e determinada, será referida por um nome próprio (Eigenname) na
acepção fregeana.44 Cada nome próprio possui, segundo nosso autor, uma
referência (Bedeutung) e um Sentido (Sinn). Tomemos as seguintes
expressões: “a estrela da manhã” e “a estrela vespertina”. Ambas possuem a
mesma referência, mas um sentido diferente. Na visão do nosso autor, ambas
as expressões possuem como referência o objeto Vênus, mas o sentido
apreendido depende da familiarização do interlocutor com o que foi designado.
43 Vale destacar a seguinte passagem de “Sobre o Conceito e o Objeto” “Tomando “sujeito” e “predicado” em seu sentido linguístico, podemos em resumo dizer: um conceito é a referência de um predicado, enquanto que um objeto é o que nunca pode ser a referência total de um predicado, embora possa ser a referência de um sujeito. Deve-se aqui observar as palavras “todo”, “cada”, “nenhum”, “algum” são antepostas a termos conceituais (Begriffswörtern). Em sentenças universais e particulares, afirmativas e negativas, expressamos relações entre conceitos e indicamos, por essas palavras, a peculiaridade dessa relação.” (FREGE (1892a), 2009, pg. 118) 44 Em nota de rodapé na tradução de “Über Sinn und Bedeutung”, Paulo Alcoforado assevera que “Um nome próprio (Eigenname), na acepção fregeana, é um sinal e, como tal, tem condições restritas de significado. Um nome próprio é uma expressão saturada que deve designar ou referir a um objeto, e de um modo determinado. Dada a diferença radical entre objeto e conceito, um nome próprio não pode designar um conceito e assim não pode exercer a função de predicado. As expressões que se seguem são exemplos de nomes próprios, na acepção fregeana: 1) “Aristóteles”; 2) “Ulisses”; 3) “ numerais – como 2”; 4) demonstrativos singulares, como “este”; 5) denominações de objetos únicos, como “Vênus”; 6) descrições definidas – v.g, “o discípulo de Platão e o mestre de Alexandre Magno”; [...] Com esses exemplos pode-se observar que nem tudo o que Frege denomina nome próprio coincide com o uso ordinário desta expressão. Esses exemplos nos permite induzir uma classificação para os nomes próprios: i) nomes simples e ii) nomes complexos ou nomes descritivos ou descrições. A concepção fregeana de que todo nome próprio ordinário deve ter não apenas um referente, mas também um sentido, segue-se diretamente da sua doutrina acerca do sentido e da referência das expressões. Todo nome próprio tem um sentido, que constitui a maneira pela qual o objeto é denominado.” (FREGE (1892b), 2009, pg 131)
45
Em outras palavras, podemos dizer que o sentido de um nome
próprio exprime os seus elementos intensionais, que permitem a denotação do
objeto ou, como expõe KIRKHAM (2003, pg 23), trazem o seu conteúdo
informacional. Uma mesma referência pode conter inúmeros sentidos ou, como
denomina Frege, diversos modos de apresentação.
Quando dizemos, por exemplo, “O autor de “O Discurso Científico na
Modernidade”, “O Capitão Nascimento da Puc”45 ou simplesmente “Álvaro”
estamos utilizando diversos sentidos para uma mesma referência, que é a
pessoa do professor Álvaro Ricardo de Souza Cruz. Contudo, o valor cognitivo,
isto é, aquilo que é informado por cada uma das expressões acima é diferente.
Enquanto no primeiro buscamos identificar o referente “Álvaro Ricardo” como
aquele indivíduo que é o autor da obra “O Discurso Científico na Modernidade”,
na segunda expressão empregamos o sentido de que o referente Álvaro é
aquele indivíduo que faz terrorismo com seus orientandos46. Já na terceira
expressão, “Álvaro” queremos dizer que Álvaro é Álvaro47.
Para compreender o sentido expresso por cada uma das expressões
acima é preciso que haja uma familiaridade com os acontecimentos
identificativos. Somente quem foi aluno do professor Álvaro Ricardo terá
condições de relacionar esse sentido com o seu referente. O sentido, portanto,
é o elemento que conecta o signo a referência, dando-lhe um valor cognitivo.
Ele permite que conheçamos o objeto denotado48.
45 Expressão utilizada por FERRAZ (2013) e que já teve as suas variáveis, como “Vingador” (da caverna do Dragão). 46 Qual o significado de terrorismo? O que denota tal expressão? Um professor que exige do aluno o seu máximo, impondo-lhe leituras e a máxima dedicação faz terror ou pratica o dom da docência com amor? Mas, se é amor, como pode ocasionar tanta angústia? Se é terror, como pode ocasionar tanta admiração pelos seus discípulos? Seria a Síndrome de Estocolmo? Na verdade, as pretensões de fechamento linguístico nada mais são do que a totalização da realidade, buscando referenciar em um símbolo as multiplicidades fáticas possíveis. Dizer que o amor é bom, essencialmente bom, é esquecer que junto a ele vem o ciúme, a possessividade, a saudade, etc. O que falar do amor paterno, esse do orientador, que é “terrorista”, mas que tortura no durante para que seja mais seguro o caminhar? 47 Neste caso, a expressão é tautológica e não traz nenhuma extensão de conteúdo, tratando-se de um juízo sintético na concepção kantiana. Justamente em razão disso que Frege diz que o foco da sua tese são os juízos analíticos, aqueles que permitem uma ampliação do conhecimento. Falaremos sobre isso um pouco mais adiante. 48 “A conexão regular entre um sinal, seu sentido e sua referência é de tal modo que ao sinal corresponde um sentido determinado e ao sentido, por sua vez, corresponde uma referência determinada.” (FREGE (1892b, 2009, pg. 132)
46
Com efeito, a ideia de sentido no pensamento fregeano é de suma
importância por permitir a extensão cognitiva sobre um objeto, pois, quando
uma referência é apresentada por um sentido diverso do usual ocorre uma
apreensão de um conhecimento novo, dando ao sentido um valor epistêmico.49
A compreensão completa de uma referência, portanto, dependeria
necessariamente do conhecimento prévio de todos os sentidos possíveis desta,
o que, na visão do próprio Frege, seria impossível50. Ele visualiza que o modo
de apresentação pode ser múltiplo, o que daria dinamicidade a linguagem.
Sempre poderíamos apreender algo diferente acerca de uma mesma
referência.
Frege ainda assevera que uma sentença bem construída
gramaticalmente sempre conterá um sentido, o que não significa que todo
sentido possui necessariamente uma referência. Para tanto ele toma as
expressões “o corpo celeste mais distante da Terra” e “a série que converge
menos rapidamente”, expondo que estas podem ser caracterizadas como
nomes próprios aparentes, sendo possível extrair o conteúdo dessas
expressões sem que haja uma referência determinada ou determinável.
Com isso, questionamos a crítica apontada por FERRAZ (2013)51
que o sistema fregeano não teria a capacidade de explicar os signos que não
reproduzem objetos no mundo físico, mas tão somente estados de coisas.
Claramente Frege visualiza a existência de expressões sem referência e que
“apreender um sentido nunca assegura a existência de sua referência” (FREGE
(1892b), 2009, 133). O fato de ele entender que uma linguagem lógica perfeita
deve conter uma referência não implica desconsiderar a existência de
expressões com sentido e sem referência lógica e que estas tenham a sua
importância para a Ciência.
49 V. BAR-ELLI, 2001 pg. 92-93. 50 V. FREGE (1892b), 2009, pg. 132. 51 “Outro ponto aventado coloca em questão signos que não reproduzem objetos do mundo físico, mas tão somente um estado de coisas, o que tem como consequência gerar diversos sentidos ou significados sem, no entanto, obter-se o referente que representaria a certeza e a segurança almejados. Ademais, prossegue o autor: ‘o problema da univocidade dos signos não se restringe à linguagem. Assim, quando se pensa no algarismo (3), ele teria um sentido único? Cremos que não, aduzindo que ele poderia ser entendido como “número primo”, “resultado da subtração4-1” ou como “resto da divisão de 8 por 5”(sic).” (FERRAZ, 2013, pg.69)
47
Ao que nos parece, a certeza e a segurança almejadas no projeto de
Frege não estão correlacionadas com a existência de uma referência para cada
objeto, mas na possibilidade de se estabelecer um critério de identidade, que
não se dá na relação signativa, mas na relação entre objetos52.
Além do mais, não obstante reconheça-se o primoroso trabalho do
professor mineiro, cumpre-nos o papel de rechaçar a crítica por ele apontada
que o nosso autor sustenta a ideia que um mesmo símbolo sempre deteria uma
univocidade de sentido. Ao revés, ele acredita que uma mesma referência pode
ser apresentada por uma multiplicidade de sentidos. Para pegarmos o exemplo
trabalhado por Ferraz, o número 3 pode tanto ser apresentado como o
resultado da soma de 2+1 quanto pela subtração de 4-1. Esses seriam dois
modos diferentes de apresentação do número 3. Teríamos uma identidade
extensional quando mencionamos que 2+1=4-1. Trata-se de expressões
distintas, com sentidos distintos, mas que denotam o mesmo objeto, ou seja, o
número 3.53
Retomando a ideia de Frege acerca do sentido e da referência do
nome próprio, a referência exprime os elementos extensionais da linguagem54,
capazes de indicar o objeto ou conjunto de objetos referidos na expressão55.
Pensemos, assim, os termos “O rei do futebol” e “Pelé”. No Brasil, ambos co-
extensionam o mesmo objeto (a pessoa Edson Arantes do Nascimento), mas
com apresentação de sentidos diferentes. Denota-se, assim, o mesmo objeto
por expressões distintas.
52 Frege em Sobre Sentido e Referência altera seu posicionamento firmado em Begriffsschift, quando entendia que a identidade deveria se dar entre os signos e não na relação entre objetos. 53 Conforme apontamos acima e em justiça a profícua pesquisa desenvolvida por Ferraz, essa percepção de Frege está presente em seu artigo “Sobre o Sentido e a Referência” e que, ao que nos parece, houve uma profunda mudança em relação a sua primeira obra (“Conceitografia”), na qual o autor tentou estabelecer uma isomorfia perfeita entre significado/significante. 54 CRUZ (2011, pg. 80/81) vale-se de uma interessante metáfora para caracterizar os elementos intensionais e extensionais da linguagem. Segundo ele, “[...] caso se pense em uma lanterna, e todo seu aparato técnico que a transforma em um instrumento de iluminação, e, de outro lado, “a área”, o conjunto de seres ou do ambiente iluminado que sofre a ação da lanterna, que se deixa ser iluminada pela potencialidade da mesma, ter-se-ia respectivamente a intenção conceitual cumprindo o papel da lanterna e a área ou conjunto daquilo que foi iluminado no mundo, ou seja, a extensão do conceito.” 55 V. KIRKHAM, 2003, pg. 23.
48
Nesse diapasão, recordando a mudança de posicionamento de
Frege (de que o critério de igualdade deve se dar em relação aos objetos e não
em relação aos sinais), destacamos que o autor caminhou para uma lógica
extensional, aduzindo que o valor de verdade de uma sentença depende do
referente e não do seu sentido.56 Com isso, não interessa mais a forma de
apresentação do objeto, desde que este continue a ser representado de forma
correta.
Em nosso ver, inexiste no pensamento fregeano uma pretensão
isomórfica entre significante/signo/significado, sendo que Frege concebe a
possibilidade de um mesmo significante ser apresentado por signos diferentes,
que trazem significações diversas. O que alteraria seria o conteúdo
informacional, mantendo-se, contudo, a referência. Isso seria relevante na
medida em que ambas as expressões, embora apresentassem sentidos
diversos, detivessem um mesmo valor de verdade. Não haveria uma unívoca
forma de apresentação de um objeto, que poderia ser denotado por inúmeras
maneiras. O que seria imprescindível é que todas estas formas de
determinação do objeto contivessem um mesmo valor cognitivo, que poderia
ser verdadeiro ou falso.
Neste ponto específico não acatamos a crítica apontada por CRUZ
(2011, pg. 82/83) que o filósofo alemão pretendeu buscar um método lógico em
que haveria uma única forma de designação de um objeto57. Frege, ao revés,
sustenta que Vênus, enquanto nome próprio, pode ser apresentado tanto como
Estrela da Manhã como por Estrela da Tarde, sendo que as duas expressões
iluminam uma mesma referência, não obstante a informação trazida seja
56 “In the same way, the truth-value of a sentence is dependent only upon the references of its constituents, not their senses: whatever we say of an object must be true or false of that object independently of the particular way in which we choose determinate which object it is that we are speaking about.” << Da mesma forma, o valor de verdade de uma sentença é dependente apenas das referências dos seus constituintes, não dos seus sentidos: Qualquer coisa que dissermos sobre um objeto deve ser verdadeiro ou falso, independentemente da forma particular pela qual nós escolhemos determinar o objeto o qual estamos dissertando. (tradução nossa) >> (DUMMETT 1981, pg. 159) 57 Nada como ter proximidade com o debatedor. Peço licença ao leitor para que Cruz dê a sua resposta neste trabalho. Com a palavra, o mestre: “Talvez eu tenha me expressado mal no “Resposta Correta”. Frege e o Círculo de Viena buscaram empreender um esforço que avulta as dificuldades da exatidão da lógica natural. Como Frege se debruça sobre a formulação de uma linguagem artificial com esse objetivo, eu o englobei na filosofia analítica dentro desse esforço”
49
distinta. A sua preocupação é que seja mantida a relação identitária quanto à
referência e não entre os sinais, preservando-se o valor de verdade da
sentença.
Vale destacar, ainda, que o nosso autor pugna pela adoção de
expressões distintas para denotar um mesmo objeto, pois permitiria um
acúmulo de conhecimento. Dizer que “Álvaro é Álvaro” não conduziria a
expansão significativa do referente, tratando-se de um juízo analítico na
concepção kantiana, puramente tautológica. Por outro lado, dizer que o “autor
do livro O Discurso Científico na Modernidade é o Capitão Nascimento da
PUC-Minas” traria possivelmente uma informação que o interlocutor não
dominava, permitindo-lhe apreender um novo conteúdo.
Importa salientar que, mesmo com a substituição dos termos nas
expressões acima, para Frege haveria a manutenção do valor cognitivo, uma
vez que não alteraria o objeto denotado, mesmo com modos de apresentação
diferentes.
Poderíamos dizer que há um idêntico valor de verdade nas duas
expressões, podendo caracterizá-las como “Álvaro = autor do livro O Discurso
Científico na Modernidade = o Capitão Nascimento da PUC-Minas = Álvaro” ou,
para aplicação de uma lógica aritmética, Ref. (a) = Ref. (b) = Ref. (c). Qualquer
expressão que tenha por escopo denotar “Álvaro” poderia ser substituída pelos
retromencionados termos58 sem que houvesse prejuízo quanto ao valor de
verdade ali expresso, tratando-se de termos correferenciais.
Sob esse prisma que funciona o Princípio da Substituição
trabalhado por Frege, que defende a possibilidade de se substituir expressões
que denotem o mesmo referente sem alterar o valor cognitivo da expressão. A
preocupação do lógico alemão parece caminhar para a busca de um critério de
identidade entre os referentes, formando uma lógica extensional.
Por mais que a intensionalidade e os signos sejam importantes na
sua sistemática, a correção linguística não está na relação de existência de
uma única forma de se apresentar um objeto ou na substituição pelo
correferencial mais determinativo, mas na manutenção do valor de verdade
58 Insta repisar que Frege compreendia que um mesmo referente pode conter uma quantidade incomensurável de modos de apresentação, o que tornaria o seu fechamento conceitual uma pretensão hercúlea.
50
mesmo quando se substituem os termos. A substituição terminológica não
intenta percorrer um caminho até se chegar à expressão tautológica do a=a.
Não se busca uma única forma de expressar um objeto, mas aferir se todas as
formas identificadas efetivamente têm o condão de determiná-lo em alguma
medida de modo unívoco.
Obviamente que isso não implica a asserção que as sentenças
preservariam o seu conteúdo informacional. Se há uma alteração no modo de
determinação do objeto, a informação transmitida sobre aquele também se
modifica. A mudança não é simbólica, de caráter meramente formal, ocorrendo
à apresentação de um novo conteúdo. Não é mudança de palavras, mas de
sentidos59 que iluminam uma mesma referência. A igualdade referencial não
pressupõe igualdade de pensamento, o que se permite dizer que quando se
substitui termos linguísticos correferenciais ocorre uma modificação no sentido
expresso na frase, mas não no seu valor de verdade.
Nesse espectro, Frege sustenta que o valor de verdade é a
referência da sentença completa, ou seja, aquilo que está expresso em uma
frase completa sempre trará um valor de verdade, que será o verdadeiro ou o
falso. Diante de qualquer sentença constatativa o que se deve refletir é o
pensamento objetivo sobre aquilo que está a dizer.
Quando dizemos, por exemplo, que “Belo Horizonte é a capital de
Minas Gerais”, na visão de Frege, se considerar a ideia de referência e sentido
sob a perspectiva do nome próprio, diríamos que “capital de Minas Gerais” é
um modo de apresentação (sentido) que liga o signo “Belo Horizonte” ao
referente da cidade de Belo Horizonte. Isso parece que ficou bem esclarecido
nos tópicos acima. Mas, na percepção do autor, a filosofia ou a lógica não
trabalham com nomes próprios isolados, sendo imprescindível a análise da
sentença quando esta alcança a sua completude linguística. Sob esse
espectro, ele vai dizer que o que é espelhado por uma sentença completa é o
seu valor cognitivo, ou seja, a percepção de que é verdadeira ou falsa.
59 “This would not be possible if the difference between the two propositions resided only in the names 'evening star' and 'evening morning. <<Isso não seria possível se a diferença entre duas proposições residissem apenas nos nomes “estrela da tarde” e estrela da manhã”.>>(tradução nossa) (FREGE, 1980, pg 127)
51
Essa percepção está além da nossa subjetividade, não sendo um
juízo de valor apresentado diante de uma determinada expressão. A
determinação desse valor cognitivo se dá pelo pensamento, que seria o sentido
da sentença completa. Em outras palavras, o pensamento racional seria o
condutor do trem que nos levaria inexoravelmente a terra do verdadeiro ou
falso.
Quando Frege fala em pensamento, ele tenta deixar claro que não
se trata de um produto construído subjetivamente por cada interlocutor. Não é
a minha visão sobre determinada sentença, mas aquilo que se pode extrair
objetivamente dos dados ali apresentados. Ele faz, assim, uma distinção entre
ideia e pensamento, sendo que aquela seria a percepção que psicologicamente
tenho sobre determinado fato e, por outro lado, pensamento seria tudo aquilo
que é alcançado objetivamente por nosso intelecto.
“The sense of an assertoric sentence I call a thought. Examples of thoughts are law of nature, mathematical laws, historical facts: all these find expression in assertoric sentences. I can now be more precise and say: The predicate “true” applies to thoughts. […] Thoughts are fundamentally different from ideas (psychological sense). The idea of a red rose is something different from the thought that this rose is red60. (FREGE, 1979, pg. 131)”
O pensamento é atemporal e não-espacial, sendo que a sua
validade não está condicionada a uma localidade ou a um espaço físico. Por
essas razões que Frege parece apontar que a sua teoria não seria aplicada em
todo e qualquer âmbito, haja vista que a sentença, para poder ser analisada
objetivamente, dependeria de um compartilhamento informacional atestável
pelo intelecto, pelo simples ato de pensar.
A linguagem formular, captadora da veracidade apodítica, somente
seria indestrutível nas questões eminentemente científicas. Não é constatável o
valor de verdade de uma sentença que é empregada em uma peça teatral ou
60 O sentido de uma sentença assertiva eu chamo de “pensamento”. São exemplos de pensamento: as leis da natureza, leis da matemática, fatos históricos. Todas essas atestações expressam sentenças assertivas. Eu agora consigo ser mais preciso e dizer: O predicado verdadeiro se aplica aos pensamentos (...) Os pensamentos são fundamentalmente diferentes das ideias (sentido psicológico). A ideia de uma rosa vermelha é diferente do pensamento dessa rosa vermelha.” (tradução nossa)
52
em uma poesia, que não teria, na percepção do autor, nenhuma pretensão de
correção.
O pensamento objetivo, enquanto sentido de uma expressão
completa, seria destinado às sentenças que traduzissem leis da natureza, leis
da matemática, fatos históricos e todos os demais ramos que pudessem conter
uma informação absorvível por cada um de modo que a sua compreensão não
permeasse pelo psiquismo individual.
Observemos a sentença “Em 07 de setembro de 1822 foi declarada
a independência do Brasil por Dom Pedro I”. Segundo Frege, todos aqueles
que conhecem a história do Brasil a tomarão como verdadeira, sendo
construída no intelecto a mensagem de que o Príncipe Dom Pedro I, filho do
Rei de Portugal Dom João VI, teria declarado independência da colônia Brasil
em relação à metrópole e que isto teria ocorrido no dia 07 do nono mês do ano
1822 após o nascimento de Jesus Cristo. Na sua visão, o sentido expresso
conduz necessariamente a referência de “ser verdade que”. Inexiste um campo
em que se permita construir outra conclusão que não o valor cognitivo ali
expresso.
Essa verdade linguística insofismável, além de imanente a áreas
específicas do conhecimento, imprescindia da existência de uma sentença
completa, que fosse por si só capaz de apresentar todas as informações que
determinam com precisão o acontecimento a ser representado.
Cremos estar exatamente aqui a base do pensamento tipológico e
do conceito abstrato. Ambos os institutos buscam o estabelecimento de
estruturas proposicionais cujo conteúdo informacional é apreendível pelo
intelecto do intérprete. A abertura ou fechamento da hipótese normativa seria
controlável pela própria linguagem e não impediria a sua objetividade, uma vez
que o pensamento expresso na sentença seria alcançado pelo raciocínio lógico
que conduziria a uma resposta correta. O pensamento como
“compartilhamento objetivo de informações” viabilizaria a análise comparativa
de adequação fato/norma. A abertura do tipo, assim, significaria apenas a
existência de outros sentidos, mas que corresponderia a um referencial exato e
passível de captação objetiva pelo aplicador da norma. A noção de
pensamento como percepção lógica e objetiva da realidade traria o fechamento
53
ao tipo exigido nas pretensões positivistas que embasam o nosso direito. No
mesmo sentido, em expressões normativas sustentadas pelo conceito abstrato,
a exatidão extensional dos termos ensejaria a univocidade interpretativa.
Todo o exposto até aqui pode ser sintetizado pelo esquema
formulado pelo próprio Frege em carta escrita a Husserl em maio de 1891, na
qual ele tenta melhor apresentar o seu pensamento:
PROPOSITION PROPER NAME CONCEPT WORD
↓ ↓ ↓
Sense of the sense of the sense of the
proposition proper name concept word
(thought)
↓ ↓ ↓
Bedeutung of the Bedeutung of the Bedeutung of
proposition proper name the concept word → object falling under
(truth value) (object) (concept) concept6162
Como esposado por Eduardo Antônio Pitt em dissertação de
mestrado apresentada no Programa de Pós Graduação em Filosofia da UFMG
(2013, pg. 52), o esquema aponta para uma coerente relação semântica entre
os elementos linguísticos (sentença, nomes próprios e termos conceituais) e os
elementos não linguísticos (as referências ou extensões dos sinais),
intermediada pelos sentidos (intensionalidade trazida pelos sinais).
Em síntese, uma lógica extensional que pretende definir a linguagem
a partir da identidade referencial, concebendo a partir dos nomes próprios e
das sentenças completas a saturação linguística, que apresenta a possibilidade
61 Sentença Nome Próprio Termo Conceitual ↓ ↓ ↓ Sentido Sentido do da proposição nome próprio sentido do termo conceitual (pensamento) ↓ ↓ ↓ Referência da Referência do Referência do sentença nome próprio termo conceitual → objeto que incide sobre o conceito (Valor de verdade) (objeto) (conceito) 62 Letter to Husserl . In Beaney, 1997, pg. 149.
54
de interpretação determinada e unívoca, ao passo que o termo conceitual
carrega a insaturação, dependendo a sua determinação do objeto que cai sob
o conceito.
A busca de Frege por uma lógica que exprimisse com exatidão o
pensamento científico através de uma linguagem que espelhasse a realidade e
que pudesse exprimir tudo aquilo que o “eu penso” pensou, apesar da sua
importância ao romper com a lógica formal aristotélica, encontrou obstáculos
instransponíveis que apontam que a verdade enquanto coerência semântica
encontra-se em terreno argiloso e de impossível edificação.
O primeiro desses obstáculos, sem dúvida, é o paradoxo
apresentado por Bertrand Russell em carta enviada a Frege em junho de 1902,
na qual o filósofo britânico apontou pela impossibilidade lógica da definição de
número a partir da teoria dos conjuntos63, como pretendia o lógico alemão.
Este paradoxo diz respeito ao conjunto de todos os conjuntos que não são elementos de si mesmos, logo E não é elemento de E. Mas se E não é elemento de E, então não é elemento do conjunto de todos os conjuntos que não são elementos de si mesmos, donde ele tem que ser elemento de si mesmo, isto é, E é um elemento de E. E assim se arma a contradição: E é elemento de si próprio se e somente se E não for elemento de si próprio. (FREGE, 2009, pg. 34)64
Além da inconsistência lógica do pensamento de Frege demonstrada
por Russell, a sua insuficiência fica ainda mais escancarada a partir da
reviravolta linguístico-pragmática e da noção de gramática profunda trabalhada
63 Conforme assevera Paulo Alcoforado (2009, pg. 34) “[...] em outras palavras, uma teoria que encerra o pressuposto de que dada uma propriedade sempre existe um conjunto que tem como membro exatamente aqueles objetos que apresentam essa propriedade. Tal pressuposto é, com frequência, chamado de “esquema de compreensão irrestrita de Cantor.” Todas as axiomáticas atuais da teoria dos conjuntos evitam o paradoxo de Russell ao restringir os princípios que enunciam a existência de conjuntos. E a forma mais simples de restringir o esquema de compreensão irrestrita é substituí-lo pelo axioma conhecido pela designação de “esquema de separação”, que pode assim ser enunciado: dado um conjunto X e uma propriedade, existe um conjunto cujos membros são exatamente aqueles membros de X que apresentam essa propriedade”. 64 Ainda segundo Paulo Alcoforado (2009, pg. 34), o paradoxo de Russell teria emergido a partir da Lei Fundamental V criada por Frege, sendo que “esta lei pode ser assim representada ´(...) expressão que enuncia que dois percursos de valores são iguais se e somente se as funções correspondentes assumirem os mesmos valores para os mesmos argumentos. (...) vale dizer, a extensão do conceito f é igual a extensão do conceito g se e somente se os mesmos objetos que caírem sob f também caírem sob g, e reciprocamente. Este princípio imprime à lógica fregeana um perfil conjuntista e extensional, fazendo que todo conceito tenha uma extensão constante e imutável.”
55
pelo segundo Wittgenstein, girando a ideia do know that para o know how.
Essas questões, entretanto, serão trabalhadas mais a frente neste trabalho.
A imersão de Frege na filosofia da consciência, com pensamento
enraizado no idealismo transcendental, também não lhe permitiu visualizar que
os conceitos não são construídos solipsisticamente em nosso intelecto, como
se houvesse um conteúdo objetivamente compartilhado entre os indivíduos.
CRUZ (2011, pg.88), em testemunho ao pensamento de Hilary Putnam, ao
contrapor-se a teoria fregeana, esposa que “a formação do conceito não se dá
pelo indivíduo isolado (como uma mônada husserliana), mas pelo consórcio de
conhecimentos, pela intersubjetividade, que Putnam designa como divisão de
trabalho”.
As contradições testemunhadas no pensamento fregeano, contudo,
não o condiciona a insignificância filosófica. Além da já mencionada
importância em razão da mudança na forma como se compreendia a
linguagem nos estudos filosóficos, a sua teoria semeou o campo para o
advento dos trabalhos de Russell e norteou os estudos do positivismo lógico do
Círculo de Viena e de Wittgenstein em sua primeira fase.
1.2 Bertrand Russell e a sua Teoria da Denotação
Bertrand Russell (1872-1970) é considerado por muitos como a
figura intelectual de maior destaque da escola britânica de todo o século XX.
Imerso em debates que permearam diversas áreas do conhecimento, as suas
ideias sobre a ontologia, a lógica, a linguagem e a matemática simbolizaram
significativos avanços na forma de perceber o conhecimento científico. Para os
fins deste trabalho, nos ateremos ao testemunho da sua Teoria das
Descrições, que teve como ponto originário as observações formuladas no
artigo “On denoting” de 1905. Porém, como o constructo desse artigo se deu a
partir de uma base teórica anterior, cumpre-nos apresentar alguns conceitos
epistemológicos trabalhados por ele e que serão de fundamental importância
para a compreensão da sua teoria.
56
Em sua epistemologia, Russell atesta que o conhecimento
primeiramente se dá através do contato direto que temos com um objeto,
permitindo-nos identificar as características que nos são apresentadas. O
conhecimento por acquaintance65 seria uma espécie de absorção cognitiva que
se dá diante desse contato direto.
A forma mais intensa de ocorrência deste contato seria pela
sensibilidade, viabilizando o nosso conhecimento por meio do acesso sensível
as características do objeto. Quando estamos diante de uma porta podemos
perceber pelos nossos sentidos todos os seus elementos constitutivos, como a
sua aspereza, a sua cor, a sua dimensão, etc. Essas informações obtidas
sensorialmente foram nomeadas por Russell como sense-data e serão
utilizadas na construção de expressões denotativas. Quando nos deparamos
com expressões como “essa porta”, iremos reconhecer o objeto valendo-se das
informações recolhidas por meio do sense-data, o que nos faz aduzir que não
ocorrerá conhecimento do objeto, mas reconhecimento, tendo em vista o
caráter não imediato dessa experiência66.
COSTA (2007, pg. 19) assevera que esse conhecimento é visto por
Russell como infalível, incapaz de ocasionar alguma dúvida, alguma
ambiguidade. A experiência dos sense-data será sempre verdadeira, mesmo
que nos deparemos com objetos não reais, oriundos de alguma crise
alucinógena. Ainda assim a experiência sensitiva será real.
A acquaintance pode também se dar quando acessamos
informações que foram interiorizadas na nossa memória. Ao visitarmos as
nossas lembranças acerca de um objeto podemos remontar as percepções
sensíveis que tivemos e inferir a denotação desse objeto. Esse acesso
reminiscente também seria factível diante de conceitos gerais, como o de
brancura67.
65 Esse termo é utilizado por diversos tradutores de Russell como “familiaridade”. Entretanto, não podemos deixar de anotar a posição de CINTRA (2007, pg. 28), que expõe que “[...] Traduzir acquaintance por familiaridade, como alguns fizeram, não é satisfatório, dado que a palavra familiaridade tem em português, conotações de intimidade, afeição e habitualidade ausentes do uso que Russell faz da palavra acquaintance. Em português, não diríamos que estamos familiarizados com uma pessoa que nos é apresentada pela primeira vez em um coquetel; contudo, seguindo o uso de Russell, estaríamos acquainted com essa pessoa.” 66 V. COSTA, 2007, pg. 18/19. 67 COSTA, 2007, pg.18/19.
57
Em contraposição ao acquaintance, Russell apresenta o
conhecimento indireto (knowledge about), alcançado por meio de expressões
denotativas. A sua formação é inteiramente dependente da apreensão sensitiva
realizada no acquaintance, tratando-se de descrição daquilo que não temos um
contato direto.68
The distinction between acquaintance and knowledge about is the distinction between the things we have presentations of, and the things we only reach by means of denoting phrases. It often happens that we know that a certain phrase denotes unambiguously, although we have no acquaintance with what it denotes; this occurs in the above case of the centre of the mass. In perception we have acquaintance with objects of a more abstract logical character; but we do not necessarily have acquaintance with the objects denoted by phrases composed of words with whose meaning we are acquainted.69 (RUSSELL, 2009, pg. 480)
Na visão do filósofo britânico, o pensamento é dependente das
percepções sensitivas, uma vez que o conhecimento indireto imprescinde do
nosso acquainted com os objetos e, assim, por meio de expressões
denotativas, podemos inferir o conhecimento. A base empirista em seu
pensamento é inegável e firmada sob a perspectiva do atomismo lógico70. A
linguagem figura como espelhamento do mundo e deterá como referente um
objeto constante da nossa realidade.
68 “Seguindo os passos da tradição empirista, Russell veio a sugerir que as entidades são construções lógicas: meras ficções simbólicas, completamente redutíveis a conjuntos de entidades que conhecemos por familiaridade, como é o caso do sense-data. Com efeito, o que poderia ser um objeto físico “essa mesa” além de um conjunto, de um sistema de sense-data atuais e possíveis? Devido ao seu caráter não imediato do conhecimento por descrição, ele é além do mais passível de erro, sendo tipicamente verdadeiro ou falso.” (COSTA, 2007, pg. 19) 69 A diferença entre familiaridade e conhecimento indireto é a distinção entre os objetos que nós fomos apresentados e as coisas que nós apenas alcançamos o significado a partir de frases denotativas. O que acontece é que muitas das vezes conhecemos certas frases que possuem denotação ambígua, embora não tenhamos nenhuma familiaridade com o que se denota; isso ocorre no caso acima sobre “o centro da massa”. Na percepção nós temos conhecimento direto com objetos que tenham um caráter lógico mais abstrato, mas não necessariamente há familiaridade com os objetos denotados pelas frases compostas por palavras cujo significado estamos familiarizados. (tradução nossa) 70 “Segundo o atomismo lógico, todas as sentenças de nossa linguagem , quando devidamente analisadas, se revelariam como constituídas de signos atômicos referentes aos elementos simples da realidade. Tais elementos seriam, por sua vez, aquilo que conhecemos por familiaridade, disso dependendo todo o conhecimento. O procedimento de análise nos conduziria àquelas configurações de elementos básicos que constituem o mundo: os fatos atômicos, Russell sugeriu que uma sentença como “isso é branco” poderia designar um fato atômico.” (COSTA, 2007, pg. 20).
58
Possivelmente apoiado nas leituras que fez de Frege, Russell
apresenta uma distinção entre a forma gramatical de uma sentença e a sua
forma lógica, sendo esta alcançada a partir do método analítico. Como anota
HAACK (2004, pg. 98), ele apresenta uma categoria especial de nomes
logicamente próprios, que teria o condão de denotar um objeto, provocando
uma coincidência entre significado e referência.
Os nomes próprios ordinários, por não serem denotados a partir de
um conhecimento por acquaintance, não se relacionariam como logicamente
próprios, sendo admitidos como tais apenas aqueles que detenham uma
descrição definida71. A ideia de descrição definida será detalhada por Russell
em sua teoria das descrições, o que nos induz a corrigir o timão e velejar por
sua obra escrita em 1905.
Ao iniciar a sua obra “On denoting”, Russell apresenta as
expressões denotativas como àquelas que se dão em virtude da sua forma,
podendo ser identificadas nos seguintes termos: um homem, algum homem,
qualquer homem, o atual Rei da França, o centro de massa do sistema solar no
primeiro instante do século XX, a revolução da Terra em torno do Sol72. O autor
não oferta um método específico de identificação das expressões denotativas,
deixando a entender apenas que seriam aquelas que, devida a sua forma, seria
possível alcançar a descrição de um objeto. Ou seja, diante da incapacidade de
indicar qualquer padrão para a semântica de modo geral ele adota um modelo
indutivo.
Partindo dessa premissa, ele assevera que é possível distinguir três
tipos de expressões denotativas: a) aquelas que, mesmo sendo denotativas,
não denotam nenhum objeto, como, por exemplo, “o atual Rei da França” (não
há um referente para a expressão, uma vez que inexiste um rei na França na
71 “Descrições definidas são expressões que, apesar de se assemelharem com nomes próprios, designando indivíduos, não são realmente nomes próprios. Através do método de análise, sentenças que contém descrições definidas podem ser reduzidas a sentenças em que essas descrições não mais ocorrem.” (MARCONDES, 2004, pg. 27) 72 “By a “denoting phrase” I mean a phrase such as one of the following: a man, some man, any man, every man, all men, the present King of England, the present King of France, the centre of mass of Solar System at the first instant of the twentieth century, the revolution of the earth . Thus a phrase is denoting solely in virtue of its form.” <<Por “frase denotativa” quero dizer uma das seguintes frases: um homem, algum homem, qualquer homem, todo homem, todos os homens, o atual Rei da Inglaterra, o atual Rei da França, o centro da massa do Sistema Solar no primeiro instante do século vinte, a revolução da Terra. Portanto, uma frase é denotativa somente em virtude da sua forma.>> (tradução nossa) (RUSSELL, 2009, PG.479 )
59
atualidade); b) aquelas expressões que podem denotar um objeto definido,
como, por exemplo, “a atual rainha da Inglaterra” (a expressão, para o autor,
apenas denotaria a Rainha Elizabeth II); c) por fim, a frase poderia denotar um
objeto indefinido ou com conceituação ambígua, como seria o caso da
expressão “um homem”, na qual não seria possível identificar qual objeto
“homem” seria o referente.
Trabalhando com a concepção de que nenhuma expressão
denotativa possui significado em si mesma, mas somente a partir de uma
sentença completa73, Russell buscará constituir uma metalinguagem apta a
identificar a significação das entidades linguísticas. Diante disso, ele toma a
noção de variável como fundamental na sua teoria, fazendo o uso da função
“C(x)”, em que a variável “x” é constituinte e essencialmente indeterminada.
Tomando ainda como expressões denotativas mais primitivas os termos “tudo”,
“nada” e “algo”74 e considerando as duas noções “C(x) é sempre verdadeiro” e
“C(x) é às vezes verdadeiro”, ele estabelece as seguintes funções
proposicionais:
A – C(tudo) significa “C(x) é sempre verdadeiro”;
B – C(nada) significa “C(x) é falso” é sempre verdadeiro;
C – C(algo) significa “ser falso que “C(x) é falso” é sempre verdadeiro”
A função proposicional A é tomada como uma noção última e
indefinível, por meio da qual se viabiliza a definição das outras duas. Cumpre,
assim, a atestação de um conhecimento universal, com uma relação direta com
a ideia de verdade. Com estas considerações, apesar de não haver uma
divisão sistemática nos trabalhos de Russell75, podemos dividir a teoria das
descrições em indefinidas, definidas e as sem referência.
Russell assevera que há algumas expressões que, apesar de não
deterem uma referência, elas possuem um sentido e, por essa razão, não
73 “[…] that denoting phrases never have any meaning in themselves,but that every proposition in whose verbal expression they occur has a meaning.” <<as frases denotativas não possuem qualquer significação em si mesmas, mas em toda proposição cuja expressão verbal ocasiona sua significação>> (RUSSELL, 2009, pg. 480) 74 Everything, Nothing and Something 75 V. CINTRA, 2007, pg 64.
60
podem ser desconsideradas. MARCONDES (2004, pg. 27) aduz que um dos
problemas encontrados por este tipo de expressão é que, aparentemente,
ocorreria a violação do princípio do terceiro excluído76. Tomemos a sentença “o
atual rei da França é careca”. Sob uma perspectiva sintáxica poderíamos dizer
que a sentença é logicamente bem estruturada. Entretanto, ao analisar a
existência da relação ali proposta pode-se verificar que ela não deveria ser
classificada nem como falsa nem como verdadeira. Isso porque não há na
atualidade um rei da França, o que impede que a asserção seja verdadeira; por
outro lado, não podemos dizer que é falso o fato do rei da França ser careca,
pois daria a entender que ele possui cabelo. Com esse espectro, considerando
que a forma gramatical não é capaz de encontrar uma solução, mostra-se
imperiosa a busca pela forma lógica que será encontrada a partir da divisão
sentencial analítica. Assim, teríamos:
S1- Existe um objeto X tal que X tem a propriedade P (ser rei da França);
S2 – Não existe um objeto Y≠X tal que Y tem a propriedade P;
S3 – X tem a propriedade Q (ser careca)77.
Dissecada a sentença, seria possível perceber que S1
consubstanciaria em uma expressão declarativa existencial, expondo que há
uma predicação que pode ser atribuída a X. O conteúdo expresso em S1, ao
confrontarmos com a realidade, seria sensorialmente falso. Considerando que
S3 pressupõe logicamente a veracidade de S1, também concluiríamos que S3
é falsa. O método analítico aplicado, portanto, conduziria ao código binário
linguístico, mesmo quando a expressão, embora gramaticalmente bem
construída, não detivesse um referente. As sentenças continuariam a ter um
valor cognitivo de verdade ou falsidade.
A sistemática russelliana supõe que a existência de um objeto é
condição de possibilidade para que ele possua uma predicação, sendo a
76 Segundo esse princípio lógico, uma sentença somente poderia ser verdadeira ou falsa, estando excluída qualquer outra possibilidade. 77 O paterno com as mãos sujas de giz nos alerta sobre o questionar do leitor: “A sentença é falsa pelo simples fato de inexistir um Rei na França”. Entretanto, vale aclarar que o conteúdo informacional da sentença diz respeito a propriedade de “ser careca”, sendo esta a relação sob exame.
61
existência um operador lógico e não uma propriedade78. Ter predicados
significa ter uma existência, mostrando-se impossível predicar algo que não
possua uma correlação com a realidade. O método analítico “supõe um
isomorfismo entre a lógica e a realidade, a sentença e o fato, através da
correspondência entre os elementos de um e de outro”79.
As expressões descritivas que possuam essa correspondência
podem, contudo, não conter um fechamento conceitual que nos indique com
precisão qual objeto está a dissertar. Podemos perceber tal assertiva quando o
filósofo britânico indica que a frase “Eu conheci um homem”80 não nos permite,
a partir puramente da linguagem natural, exprimir o seu valor cognitivo e nem a
explícita definição dos seus termos. Deveríamos, então, a partir da sua
metodologia e considerando tratar-se de afirmação verdadeira, interpretar essa
sentença como ““Eu conheci x e x é um homem” não é sempre falsa”.
O conteúdo lógico espelhado seria de que a predicação dada a C(x)
corresponde a sua inserção na classe dos homens, que significa possuir o
atributo de ser humano. CINTRA (2007, pg. 64) ressalta que a função
proposicional assim construída faria com que a descrição “um homem”
expressa na linguagem natural deixasse de ter uma significação isolada e
passasse a ganhar um sentido em toda expressão verbal em que houver a
repetição do termo “um homem”.
Consideremos agora a proposição “Todos os homens são mortais”.
Na visão de Russell, a forma lógica de visualizar a sentença seria a partir de
uma função proposicional hipotética em que o termo “homem” pode ser
substituído pelo atributo de ser “humano”. Assim, teríamos ““se x é humano,
então x é mortal” é sempre verdadeira”. O seu método analítico nos permitiria
realizar as seguintes asserções em modo de função:
78 “Uma das consequências do método de análise encontrado na teoria das descrições é que apenas objetos existentes podem ter propriedade. A existência não é, por sua vez, um predicado, uma propriedade, mas um operador lógico. Portanto, os predicados supõem a existência de um objeto do qual possam ser predicados. Só posso afirmar uma qualidade de algo que existe, e a existência não é ela própria uma qualidade, mas um pressuposto para que algo tenha qualidade”. (MARCONDES, 2004, pg. 28) 79 MARCONDES, 2004, pg. 29. 80 No original, “I met a man”.
62
S1 – C(todos os homens) – ““Se x é humano, então C(x) é
verdadeiro” é sempre verdadeiro”.
S2 – C(nenhum homem) – ““Se x é humano, então C(x) é falso” é
sempre verdadeiro”;
S3 – C(alguns homens) – “É falso que “C(x) e x é humano” é sempre
falso”;
No caso das descrições definidas, HAACK (2002, pg. 99) traça uma
aproximação da teoria de Russell com a de Frege, sustentando que ambos
apresentam a concepção de “nome próprio” na condição de uma descrição co-
designativa de algo conhecido (ou acquainted) pelo falante. Seriam todas
aquelas sentenças que descrevem um objeto em particular81. O filósofo
britânico menciona que seria o caso das expressões em que se utiliza o artigo
definido o/a82 em sentido estrito, como no caso da frase “O pai de Carlos II foi
executado83”.
O emprego do artigo definido “o”, como atesta Russell, traz o
elemento da não ambiguidade à sentença, havendo um único objeto passível
de descrição, que seria o genitor de Carlos II. Há, nessa hipótese, uma
precisão descritiva, uma vez que o conceito “genitor de Carlos II” somente
poderia cair sob o objeto (referente) “pai de Carlos II”. A perspectiva relacional
que circunda a frase (a relação do objeto com Carlos II) é unívoca, existindo
um único referente possível84. Deveríamos, então, enxergar a sentença como a
função proposicional “x é pai de Carlos II e x foi executado”, na qual a
significação lógica possível seria de que ““Não é sempre falso de x que x gerou
Carlos II e que x foi executado, de modo que “se y gerou Carlos II, então y é
equivalente a x” é sempre verdadeiro”. Atesta-se aqui duas circunstâncias
imprescindíveis para a visualização completa do conteúdo da sentença: a) a
81 Vale repisar que Russell, a partir desse artigo (“On Denoting”), passa a compreender que a linguagem possui função descritiva e não denotativa, ao passo que Frege divide a linguagem em elementos intensionais e extensionais capazes de denotar um objeto. 82 No texto “On denoting” Russell menciona que “I remains to interpret phrases containing the. These are by far the most interesting and difficult to denote phrases”. (Russell, 2009, pg. 481). 83 “The father of Charles II was executed” 84 Impõe destacar que, como observa CINTRA (2007, 69), Russell estava ciente que o artigo definido somente traria uma descrição definida quando utilizado em sentido estrito. Expressões como, por exemplo, “a baleia é um mamífero”, ao utilizarem o artigo “a” em sentido impróprio, não pode seria considerado como uma descrição definida, sendo, sob a sua ótica, uma forma gramaticalmente equivocada de se expressar.
63
existência do objeto é condição de possibilidade para que o valor cognitivo seja
verdadeiro; b) também é condição de possibilidade a existência de um único
referente descrito na oração85.
A teoria das descrições, na visão de Russell, simbolizaria um avanço
teórico por garantir um valor cognitivo a qualquer sentença, evitando, assim, a
existência da denominada “truth value gap” e garantindo a aplicabilidade do
princípio do terceiro excluído, segundo o qual, como já mencionamos, uma
proposição deve obrigatoriamente ter um valor de verdade que pode ser falso
ou verdadeiro, inexistindo uma terceira hipótese86.
A consistente teoria de Russell, contudo, não é imune a profícuas
objeções, como a desconsideração da pragmática enquanto dimensão
linguística. Tratando de forma ainda perfunctória, o valor de verdade da
sentença “o pai de Carlos II foi executado” depende da correlação com o fato
histórico ocorrido na Inglaterra no século XVII, ou seja, depende do jogo de
linguagem a que o indivíduo está inserido.
Do mesmo modo a objetividade pretendida como um valor
compartilhado por todos os falantes “familiarizados” com o tema não passa de
uma grande falácia. Cada indivíduo é um infinito em sua finitude, o que lhe abre
uma multiplicidade “in-finita” de formas de testemunho de um mesmo
acontecimento. A percepção que tenho diante de um fato nunca será a mesma
que a do outro espectador e, muito provavelmente, nem será a mesma para
mim quando experimentada em momento outro da minha vida. Isso tudo
impede que o valor de verdade de uma sentença se apresente sempre como
universal e a priori. Mas deixemos o aprofundamento a estas questões para
mais tarde. A nossa caminhada visita agora a primeira morada do pensamento
de Ludwig Wittgenstein (1889-1951).
85 Vale a reprodução das considerações de CINTRA (2007, pg. 66/67) sobre a questão: “De modo generalizado, dizemos que a análise oferecida pela teoria das descrições de qualquer proposição da forma C(o F) acarreta duas consequências: i) implicação da existência de no mínimo um F, e (ii) a implicação da existência de no máximo um F. A primeira consequência, a existência de no mínimo um F, é que qualquer proposição da forma C(o F)será falsa se não houver pelo menos um F[...] Logo, C(o círculo quadrado), C(o atual Rei da França) e todas as proposições do gênero serão falsas. A segunda consequência [...] é que qualquer proposição da forma C(o F) será falsa se houver mais de um F[...] Logo, C(número primo menor que 10) será falsa, porque há mais de um número primo menor que 10; e o mesmo ocorrerá em todas as proposições do gênero, ou seja, todas elas serão falsas.” 86 V. CINTRA, 2007, pgs. 66/67.
64
1.3 – Wittgenstein e o Tractatus Logico Philosophicus
Em nossa opinião, o pensamento do Século XX não pode ser
estruturado sem que se passe pela estrada pavimentada por Wittgenstein.
Conhecido e reconhecido como uma das principais figuras da filosofia de todos
os tempos, o autor austríaco comumente tem o seu pensamento dividido em
duas fases, sendo a primeira edificada pela obra Tractatus logico-
philosophicus87 e a segunda por Investigações Filosóficas.88
Tractatus é uma obra impactante mesmo antes do início da leitura.
Desenvolvida, nos frontes de batalha da I Guerra Mundial e com o objetivo
simples de responder aos debates travados com Frege e, principalmente, com
Russell, trata-se de um texto cuja complexidade89 se estende inclusive no que
concerne a formatação aplicada pelo autor. A escrita foi desenvolvida sob o
formato de suras em que é possível verificar a sistematização e a importância
de cada frase pela correspondência numérica.
Russell, ao prefaciar a obra, alerta que a pretensão do filósofo é de
estabelecer as condições necessárias para que o simbolismo possa produzir
sentido diante da combinação de símbolos e que traga, ao mesmo tempo, a
univocidade do significado ou da referência, cuidando-se, desta forma, de se
87 Publicada inicialmente no último número do periódico Annalen der Naturwissenschaft, a obra teve inicialmente o título de Logisch-philosophische Abhandlung, sendo que a modificação do nome se deu a partir da publicação como obra autônoma em 1922, por sugestão de Moore. 88 Conforme anota MARQUES (2005, pg. 08/09), não obstante a divisão corriqueira dos trabalhos de Wittgenstein seja feita de forma bipartida, não se pode olvidar que há intérpretes de Wittgenstein que visualizam uma unicidade da obra, defendendo que Investigações Filosóficas corrigem alguns pontos do Tractatus, mas não há uma ruptura de pensamento. Haveria, outrossim, outros que defendem ao menos três Wittgenstein, aduzindo que as obras do período intermediário também são de relevância filosófica e não se enquadram em nenhuma das outras duas formas de pensar. Sempre atentos a abertura classificativa, para efeitos dessa obra, caminharemos com os que fazem uma divisão bipartida da teoria, sem contudo, ontologizá-la como a forma correta de se interpretar o autor. 89 No prólogo, Wittgenstein lucidamente reconhece que a compreensão dos seus escritos não é uma tarefa fácil e que seria possível, como diria Platão, apenas para os iniciados: “Este livro será talvez apenas compreendido por alguém que tenha uma vez ele próprio já pensado os pensamentos que são nele expressos – ou pelo menos pensamentos semelhantes. Não é, pois, um livro de texto. O seu fim seria alcançado se desse prazer a quem o lesse compreendendo.”(WITTGENSTEIN, 2011, pg.27). Uma metalinguagem buscada por Carnap e Schilick.
65
estabelecer as condições necessárias para a construção de uma linguagem
lógica perfeita90.
A linguagem se apresenta como pressuposto lógico-científico para
descrição de um conhecimento válido. Se o conhecimento se pauta por uma
busca incessante pela verdade, esta não se concretiza de outro modo que não
pela linguagem. Como assevera PINTO (1998, pg. 144), o alcance da verdade
pressupõe a existência anterior de condições de expressão, de modo que só a
linguagem é capaz de exprimir o conteúdo verificável no mundo. Se as ciências
naturais cumprem o papel de descrever a realidade fática, mostra-se
imprescindível a existência de uma linguagem capaz de espelhar esse
conhecimento produzido. Seria, então, atribuição da filosofia “descrever as
condições da descrição do mundo”.
Nessa conjuntura, a filosofia não estaria no mesmo nível lógico das
ciências da natureza, mas, como apresenta o próprio Wittgenstein (2011, pg.
66 [4.111]), deve estar acima ou abaixo, nunca ao lado desta. O objetivo
empreendido pela filosofia deve ser o de clarear a lógica do pensamento, de
modo que se possa delimitar e clarificar os contornos proposicionais do
pensamento.
O pensamento tractatiano não se confunde, em absoluto, com o
psicologicismo91. Ao revés, é percebido como “a imagem lógica dos fatos”, isto
é, o modo pelo qual a racionalidade visualiza os fatos do mundo e os traduz em
um formato lógico estruturado pela linguagem. Não há pensamento ilógico,
uma vez que não posso pensar aquilo que não consigo perceber de forma clara
e bem delineada pelos meus sentidos. O pensamento será lógico se puder ser
expresso por meio de uma proposição. Caso contrário, teremos expressões
90 Russell assevera que esta linguagem lógica perfeita não se caracteriza “no sentido de que haja uma linguagem logicamente perfeita, mas no sentido de que toda a função da linguagem é ter sentido e que só satisfaz esta função na medida em que se aproxima da linguagem ideal postulada.” (WITTGENSTEIN, 2011, pg. 02/03). 91 A noção de pensamento de Wittgenstein não tem a pretensão de trabalhar como se forma o pensamento, mas o que nele contém que será sempre uma realidade fática. Se é irreal ou não exprimível, não pode ser pensamento no sentido por ele trabalhado.
66
que nada expressam, sem sentido. Há uma inequívoca pretensão de isomorfia
entre a realidade percebida e a estrutura significativa que a expressa92.
O que Wittgenstein nos aponta é a impossibilidade de se pensar o
mundo de forma outra que não pela linguagem. O conhecimento verdadeiro
possui como corolário lógico a potencialidade de ser expresso pela linguagem,
razão pela qual poderia se afirmar que a ausência de termos linguísticos
capazes de espelhar o conteúdo de determinado conhecimento simboliza a
ilogicidade deste ou, tomando seus termos, uma expressão sem sentido. O
autor exprime que o problema da filosofia até ali seria a ausência de sentido
das postulações assentadas em questionamentos como “o que é o bem”. Em
seus dizeres, “o resultado da filosofia não é proposições filosóficas, mas
esclarecimento de proposições”93 Percebe-se uma forte crítica à metafísica
clássica, pugnando-se pela análise do mundo físico como única forma de se
obter a verdade.
Na proposição94, o que se tem é a possibilidade de exprimir o
sentido daquilo que é projetado pelo sinal proposicional. A proposição não
possui um conteúdo em si, mas uma articulação de fatos expressos pelos
sinais que dão sentido a sentença. Uma frase não é um conjunto de palavras,
mas “uma combinação de nomes e de proposições elementares
isomorficamente articulados à estrutura interna do fato”9596.
92 Apenas para chamar a atenção dos desatentos, não seria exatamente essa a pretensão da tipicidade e, em alguma medida, do conceito abstrato? Uma correlação da realidade com uma proposição linguística capaz de descrever com perfeição o “percebido”? 93 Wittgenstein, 2011, pg. 62. 94 “Wittgenstein efetua uma análise das suas condições transcendentais de possibilidade, que se baseia nos seguintes princípios: 1º) todas as expressões lingüísticas são formadas a partir de conteúdos descritivos que são usados para afirmar, dar ordens, perguntar, exprimir emoções etc. (p. ex., as expressões a porta está aberta, abra a porta, a porta está aberta! e a porta está aberta? possuem, todas elas, o mesmo conteúdo descritivo, que corresponde à circunstância de a porta estar aberta); 2º) dentre as expressões lingüísticas, a proposição declarativa possui uma posição privilegiada, pois a sua bipolaridade constitui uma garantia segura para a existência de conteúdo descritivo autêntico (p. ex., a proposição a porta está aberta pode ser verdadeira ou falsa e possui por isso conteúdo descritivo autêntico, que poderá ser usado em ordens, perguntas etc., enquanto a proposição o círculo é redondo só pode ser verdadeira e, portanto não possui conteúdo descritivo autêntico); 3º) para estabelecer as condições transcendentais de possibilidade das diversas expressões usadas na linguagem, basta estabelecerem as condições transcendentais de possibilidade do conteúdo descritivo da proposição declarativa.” (PINTO, 2004, pg. 86) 95 MORENO, 2000, pg.14 96 “4.1221 - A uma propriedade interna de um facto também podemos chamar um traço deste facto. (No sentido em que se fala dos traços do rosto). 4.123 – Uma propriedade é interna, quando não é pensável que o seu objecto não a possua.” (WITTGENSTEIN, 2011, pg. 65)
67
Em outras palavras, a frase “Luís Inácio Lula da Silva foi eleito
presidente do Brasil em 2002” possui um sentido não apenas porque há um
respeito aos elementos sintáxicos, mas porque os elementos linguísticos
espelham uma realidade descrita pela história. Além da perfectibilidade
linguístico-gramatical, a proposição pode ser atestável como verdadeira diante
de uma confrontação com a realidade.
Por sua vez, a expressão “Caso Aécio Neves tivesse sido eleito
Presidente do Brasil em 2014”, apesar de hipotética e conforme os elementos
sintáxicos da linguagem, seria uma sentença sem sentido, uma vez que não
estruturada a partir de um fato. Não estaríamos, portanto, diante de uma
proposição lógica no sentido tractatiano, de uma proposição genuína97.
Por um testemunho mais responsável com o leitor, reconhecendo
que a leitura até aqui tem exigido razoável esforço para os “não iniciados”, há
que se transitar pelos elementos linguísticos abordados por Wittgenstein.
Poderíamos, assim, seguindo a trilha de BUCHHOLZ (2008, pg. 56),
sistematizar a linguagem na ótica tractatiano em nomes, proposições
elementares e proposições complexas.
Wittgenstein aduz que o signo ou nome seria aquele capaz de
denotar um objeto. O nome seria o elemento que conteria o conteúdo
informacional que espelha algum existente. Copo só pode denotar aquele
utensílio doméstico que utilizamos para tomar água, por exemplo. Há uma
correspondência biunívoca entre a realidade e o nome, de modo que o signo é
um elemento proposicional representativo do objeto existente no mundo
factual.
O nome é um elemento proposicional, mas não forma uma
proposição. Não podemos dizer que conceito de objeto possa ser valorado
como falso ou verdadeiro, mas, simplesmente, que ele é um objeto. O nome é
97 “Apenas uma proposição genuína é dotada de sentido, podendo, assim, ser verdadeira ou falsa. Proposições genuínas são aquelas que afiguram fatos. Proposições como tautologias e as contradições não são proposições genuínas, são casos limites, são vazias de sentido, pois, apesar de não violarem nenhum princípio da sintaxe lógica, elas não figuram a realidade (ponto que abordarei adiante). Dessa forma, essas são proposições sem sentido (Sinnlos). As proposições que violam as regras da sintaxe lógica são pseudoproposições (Scheinsätze), são absurdas (Unsinn); portanto não são nem verdadeiras nem falsas.” (CONDÉ, 1998, pg. 55)
68
o espelhamento da realidade visível, dando uma correspondência linguística a
algo existente.
Os nomes, assim, cumprem o papel de denotar um objeto, que, por
sua vez, mostra-se incapaz de apresentar um sentido98. Não expressamos um
sentido quando utilizamos, por exemplo, o termo “automóvel”. Aqui há tão
somente a denotação do “automóvel”, desvelando-se como inexprimível de
sentido.
Como leciona CONDÉ (1998, pg. 50), “somente a proposição
enquanto unidade de combinação semiótica possui sentido (Sinn), e não os
nomes isoladamente”. Em outras palavras, o nome não possui conteúdo
semântico, devendo ser conjugado com outros nomes de modo a constituir
uma proposição, essa sim a menor unidade linguística. O nome figura-se como
condição de possibilidade transcendental da proposição99, que forma-se a partir
da combinação lógica dos nomes simples, edificando o denominado atomismo
lógico transcendental100.
98 O pensamento tractatiano se desvela como inovador, entre outras coisas, por fixar uma lógica semântico-proposicional, na qual a relação objeto-signo não cumpre outro papel que não o denotativo. Nessa perspectiva, a unidade linguística mais trivial seria a proposição, uma vez que apenas a partir desta pode-se encontrar elemento semântico. 99 “Esses elementos simples, ou signos, que preenchem as proposições elementares são os nomes. Esses são signos primitivos (tract 3.26), constituindo-se, dessa forma, nos átomos lógicos, que são as condições transcendentais de possibilidade da proposição elementar, caracterizando, assim, o atomismo lógico-transcendental Tractatiano. Esses nomes, ou signos primitivos, representam os objetos, que são, por sua vez, os elementos simples da realidade. O objeto constitui a denotação (Bedeutung) de um nome e, como vimos, para Wittgenstein um nome não possui sentido (Sinn), mas apenas denotação. O conjunto de objetos simples é idêntico com o fixo, o subsistente (Das Bestehende), ao passo que as configurações de objetos constituem o mutável, o instável (Das Unbeständige) (Tract. 20271). Os objetos possuem necessariamente a possibilidade de combinação mútua (Tract. 1.13; 2.013). Essa combinação, ou configuração de objetos, constitui um estado de coisas (Sachverhalt). Os objetos possuem necessariamente a possibilidade dos estados de coisas (atomismo lógico-transcendental Tractatiano). Enfim, esses estados de coisas atômicos (isto é, os estados de coisas mais simples que são formados pelas combinações de objetos) são representados pelas proposições elementares.” (CONDÉ, 1998, pg. 53). 100 “Aplicada ao mundo, a crítica da linguagem desemboca no que poderíamos denominar atomismo transcendental. O princípio em que o Tractatus se baseia para chegar a este atomismo é a idéia de que existe um paralelismo estrito entre a linguagem e o mundo. Com base neste princípio, Wittgenstein estabelece que cada signo simples deve designar necessariamente um e somente um objeto simples. Este último também deve ser indivisível e, associado aos demais objetos simples, constitui a substância do mundo, a base permanente e imutável a partir da qual a diversidade dos fatos atômicos ou estados de coisas é construída. Em paralelismo com os signos simples, podemos afirmar que os objetos simples não "existem" como fatos mundanos, mas "subsistem" como condições de possibilidade ou coordenadas transcendentais dos fatos mundanos. Enquanto pertencente à substância do mundo, cada objeto simples deve possuir uma forma lógica tal que todas as suas possíveis combinações com outros objetos simples já estejam estabelecidas a priori. Se nos fosse dado conhecer
69
A pretensa unidade signativa trabalhada por Wittgenstein, na qual
haveria uma biunivocidade entre o signo e a realidade correspondente,
permitiria a constatação a priori das combinações lógicas possíveis entre os
objetos, formando os estados de coisas.
Esses estados de coisas, enquanto combinação lógica dos objetos
(fatos atômicos), seriam representados linguisticamente pelas proposições
elementares101. A proposição elementar possui uma relação de simetria com os
estados de coisas, existindo aqui também uma biunivocidade de
correspondência na qual uma proposição elementar reflete o estado de coisas.
Considerando que cada nome espelha no nível linguístico um objeto espelhado
no nível da realidade, a combinação de nomes enquanto estrutura
proposicional reflete inexoravelmente a combinação de objetos
correspondente. Como assevera CONDÉ (1998, 53), a estrutura interna das
proposições elementares deve se relacionar com a estrutura interna dos
estados de coisas, fixando um isomorfismo entre a realidade representada e a
proposição.
A correlação necessária da linguagem com a realidade existente,
pressupondo uma inexorável e exata correspondência isomórfica entre o que é
expresso na proposição e o fato, exprime o conteúdo da teoria da figuração
proposicional ou teoria pictórica defendida por nosso autor. Poderíamos
resumir esta teoria na noção de que um quadro, em que se representa a
realidade, todos os elementos devem estar harmoniosamente alinhados, de
modo que aquele indivíduo que sensorialmente tem contato com o quadro
consiga absorver de imediato todo o conteúdo da realidade ali espelhada. Isso
somente ocorre quando a harmonia é perfeita. Assim, a linguagem lógica
perfeita trabalhada a partir da proposição elementar cumpriria com o papel de
todos os objetos simples que compõem a substância do mundo, seríamos capazes de conhecer simultaneamente todas as suas combinações possíveis. Estas afirmações são compatíveis com a idéia de que os objetos simples constituem um sistema transcendental de coordenadas que subjaz ao mundo, fundamentando-o logicamente.” (PINTO, 2004, pg. 86/87) 101 “Na proposição elementar ocorre à mesma relação, isto é, os nomes que representam os objetos se combinam para formarem a proposição que, por sua vez, representa o estado de coisas. A proposição elementar é uma figuração de fato elementar, ou atômica, isto é, de um estado de coisas atômico. Assim, da mesma forma que o fato atômico se constitui na classe basilar dos fatos, não admitindo mais análise (enquanto fato), a proposição elementar, enquanto retrato lógico desse fato (estado de coisas atômico), também não admite análise ulterior”. (CONDÉ, 1998, pg. 53)
70
espelhamento da realidade se a isomorfia da relação linguagem/mundo fosse
perfeita.
Com efeito, não obstante a existência lógica de um estado de coisas
possível102 (que não existe, mas pode advir em razão da combinação lógica
possível dos objetos), uma proposição elementar só possui um valor de
verdade quando refletir um estado de coisas subsistente, haja vista que o
critério de verificação da realidade tractatiano é a confrontação com a
realidade, isto é, só posso dizer que uma proposição é falsa ou verdadeira se
puder confrontá-la com a realidade fática. A proposição “a porta está aberta”
será verdadeira se e somente se a verificação com o mundo real me permitir
dizer que a porta está aberta. Será falsa se a porta estiver fechada.
Por outro lado, a expressão “não existe vida fora da Terra” não é
passível de aferição da verdade, pois, por mais que os elementos sintáxicos
estejam corretamente empregados e que seja uma realidade fática possível, a
impossibilidade de conferência torna a proposição sem sentido, incapaz de
atestação da verdade ou falsidade. Não poderíamos dizer que ela é falsa nem
verdadeira, mas sem sentido.
A proposição elementar, portanto, enquanto unidade linguística
básica é factível apenas quando se trata de estados de coisas subsistentes, ou
seja, sobre fatos atômicos. Somente nestes casos teríamos uma proposição
genuína, sujeita a verificação pelo binômio verdadeiro-falso. Verdadeira seria a
proposição que exprime um fato atômico existente103. A realidade puramente
pensável, não acessível por nenhum critério de verificação empírica, enquanto
estado de coisas possível, mostrar-se-ia como não transcritível para uma
linguagem lógica. Mesmo observando o regramento da sintaxe, a sua
descrição não alcançaria um sentido lógico, vindo a compor a esfera do
indizível.104
102 A realidade enquanto estado de coisas se divide em aquilo que pode apenas ser pensado (estado de coisas possível) e aquilo que existe factualmente, em uma relação de objetos existentes (estado de coisas subsistente). 103 “Se a proposição elementar é verdadeira, então o estado de coisas existe; se a proposição elementar é falsa, então o estado de coisas não existe”(Tractatus, §4.25). 104 Sobre a doutrina do mostrar e do dizer, (CONDÉ, 1998, pg. 59/61), em testemunho do pensamento de Stegmuller, expressa que “A primeira acepção Stegmüller denomina “mostrar e”, isto é, mostrar externo. Nessa acepção, encontra-se a síntese da teoria pictórica ou figurativa do Tractatus, em que o sentido de uma proposição é dado tomando-a como figuração
71
O Tractatus traz a ideia de que a impossibilidade de representação
lógica de um estado de coisas deve conduzir ao silêncio. “Sobre aquilo que não
se pode falar, deve-se calar!” (Tractatus, 7). Essa é a máxima tractatiana,
segundo a qual a ausência de correspondência sensível no mundo faz com que
algumas expressões permaneçam no campo da indeterminação linguística,
desvelando-se como não suscetíveis a uma verificação de verdade. Como não
há o referente espelhado dos termos boa fé ou justiça, por exemplo, não seria
palatável a sua utilização, uma vez ausentes a exatidão e a certeza exigidas
pela racionalidade científica moderna. Não seriam, então, termos
epistemologicamente adequados, pois não produzem qualquer sentido
linguístico.
A exigência de uma correspondência biunívoca da proposição e da
realidade espelhada para validação científica parece ter sido açambarcada pelo
Direito. Ouço aos quatro cantos, como um retoante canto da sereia, que as
agruras jurídicas se dão pela ausência de previsibilidade linguística na
construção das normas. As críticas contundentes perpassam pela visão de que
a figura mística do legislador105 insiste em aportar termos sem sentido na
construção jurídica, valendo-se de expressões que só afastam a objetividade
do aplicador, transformando a decisão jurídica em uma amálgama de
valorações subjetivadas. Recordo-me que, ao iniciar o segundo período da
graduação, durante a disciplina de TGD, “aprendi” que o fim primeiro do Direito
isomórfica do estado de coisas por ela descrito. A proposição mostra o seu sentido, onde a estrutura externa da proposição corresponde à estrutura externa do estado de coisas que ela descreve. A segunda acepção do mostrar Tractatiano Stegmüller denomina de “mostrar i”, ou seja, mostrar interno, onde se mostra a forma lógica da proposição, a qual pode não pode ser representada [...] Ou ainda, a “a proposição não pode representar a forma lógica, esta apenas se espelha naquela”. [...] Assim, o “mostrar i” caracteriza-se como o mostrar interno à proposição, mas que não pode ser dito ou representado por ela. A terceira acepção do mostrar Stegmüller denomina “mostrar m”, vale dizer, mostrar místico. “Existe, com efeito, o indizível. Isto se mostra; é o místico ”” 105 Sempre me encantei com a figura do “Legislador”. Voluntas legislatoris. Quem, afinal, é esse tal de legislador? Alguém pode, por gentileza, apresentá-lo a mim? Sujeito caucasiano, mulato ou mestiço? Católico ou Protestante? Seria ele umbandista? Quando mencionamos a existência de um legislador homogêneo, dotado da representatividade total do povo, nos esquecemos da sua condição primária, da sua condição de ser humano. Não existe esse “legislador”, mas legisladores, cada qual com as suas especificidades e individualidades que não permitem a inferência de uma forma unívoca de manifestação e de pensamento. Cada qual vota com suas pretensões e com várias razões. Acreditar na figura do legislador, quase que como a figura do soberano desenhada por Hobbes na capa da 1ª edição de Leviatã, como um ser único constituído pela totalidade dos membros do povo é a mais pura insanidade perquirida pela razão moderna.
72
é a segurança jurídica travestida na estabilidade normativa decorrente da
utilização de uma linguagem lógica perfeita. Justiça? Essa não! Enquanto
termo aberto a subjetivismos seria apenas o fim último, desnecessário. Afinal, o
que não posso falar devo me calar. Devo, então, me calar diante de uma
injustiça? Ouço vozes fortes106 que dizem que sim, que releguemos às não-
ciências a missão de definir o que é justo. Ao direito cabe apenas a aplicação
da lei, lei enquanto substrato linguístico de uma realidade verificável
empiricamente.
Com as escusas pelo desabafo e a promessa de retorno a estas
questões mais a frente, retomemos a questão da linguagem trabalhada por
Wittgenstein. Em seu modo de ver, a proposição elementar, enquanto unidade
linguística básica seria o elemento constitutivo de todas as demais
proposições. As proposições complexas, portanto, seriam formadas a partir da
combinação das proposições elementares. As proposições complexas
figurariam como funções de verdade das proposições elementares (CONDÉ,
1998, pg. 56)107, enquanto a proposição elementar é uma função de verdade
em si mesma (Tractatus, 5).
A combinação das proposições elementares, de modo a formar uma
proposição complexa verdadeira, depende da adequabilidade lógica da
estrutura interna e externa. No âmbito da estrutura interna, mostra-se como
logicamente impossível a combinação de proposições elementares que se
106 Vozes fantasmagóricas que, provavelmente, as ouço em razão dos delírios provocados por um escrever solitário (mas não solipsista) nos embalos do sábado a noite. Vozes, porém, que soam com uma realidade singular, que dizem que o direito parou em Carlos Maximiliano ou que a segurança jurídica pode ser reforçada, quando houver duas interpretações possíveis de uma lei, por uma nova norma interpretadora (norma que interpreta? Eu hein?!). Bem, esses indícios de esquizofrenia, muito comuns àqueles orientados por Álvaro Ricardo de Souza Cruz, em verdade, são frutos das falas ouvidas em congressos por algumas das “maiores autoridades” (acho que não pelo tamanho) do direito brasileiro. Como ter sanidade diante de tamanha sandice? 107 “A proposição elementar, desse modo, é o elemento constitutivo de todas as outras proposições não-elementares, isto é, todas as proposições complexas são funções de verdade de proposições elementares. Compreendemos as proposições não-elementares através das elementares. A verdade ou falsidade de uma proposição não-elementar é determinada pelas proposições elementares que a compõem, sendo a linguagem a totalidade das proposições. Da mesma forma, a totalidade de estados de coisas subsistentes constitui o mundo. As proposições não-elementares são expressas por meio de articulações lógicas das proposições elementares. Essas articulações lógicas das proposições elementares revelam o caráter funcional que as proposições possuem. Toda proposição traz consigo a possibilidade de relacionar-se funcionalmente com outras, isto é, toda proposição traz consigo a possibilidade do espaço lógico” (CONDÉ, 1998, pg 56)
73
excluem. Por exemplo, não é factível dizer no mesmo espaço lógico que
“vemos um sol que brilha radiante durante uma chuva torrencial”. As nuvens de
uma chuva pesada impediriam a verificação de um brilhar radiante do sol. Ou é
um ou é outro108. Portanto, essa combinação de proposições elementares seria
logicamente impossível em razão da incompatibilidade das suas estruturas
internas. No âmbito da estrutura externa, como dissemos acima, a proposição
complexa figura como função de verdade das proposições elementares que lhe
formam. Em outras palavras, é preciso que haja o confrontamento
individualizado de cada uma das proposições elementares com a realidade,
identificando o seu valor de verdade para, enfim, identificarmos se a proposição
complexa é falsa ou verdadeira. Tomando emprestado o exemplo gráfico
trabalhado por CONDÉ (1998, pg. 57)109, em que temos uma proposição
complexa R formada pela combinação das proposições elementares P e Q,
poderíamos sistematizar a verificação da verdade da proposição complexa pela
seguinte função:
Proposição
elementar P
Proposição
elementar Q
Combinação PeQ Proposição
complexa R
V V V V
V F F F
F V V F
F F F F
Em outras palavras, a proposição complexa será verdadeira se e
somente se todas as proposições elementares que lhe compõem forem
também verdadeiras. Enquanto o valor de verdade da proposição elementar se
dá pelo confrontamento direto com a realidade, a proposição complexa se dá
pela análise da veracidade das proposições elementares que lhe constituem.
108 Essa noção me faz lembrar as brincadeiras juvenis, nas quais “pregávamos peças” aos amigos questionando se tinham assistido ao filme “as tranças do rei careca” ou “a volta dos que não foram”. Quanta nostalgia! 109 “suponhamos uma proposição complexa “R”, conjunção de duas proposições elementares “P” e “q”. Assim, para sabermos o valor de verdade de “R”, vale dizer, para sabermos se “R” é falsa ou verdadeira, devemos analisar o valor de verdade de “P” e “Q”, isto é, devemos nos assegurar se estas proposições elementares são verdadeiras ou falsas mediante aferição com o fato que cada uma representa. Dessa forma, após analisar cada uma em particular, podemos calcular, com base nisso, o valor de verdade da proposição não-elementar “R”. Assim, uma vez que “R” constitui a conjunção de “P” e “Q”, “R” terá o seu valor de verdade determinado pelos valores de verdade de “P” e “Q””.
74
BUCHHOLZ (2008, pg. 57), ao sintetizar as noções da linguagem
trabalhadas no Tractatus, traz uma interessante figura representativa que aqui
reproduzimos acreditando no seu auxílio ao leitor.
Apesar da sofisticação trazida pelo Tractatus, transmudando a
noção da linguística para a semântica proposicional110, a pretensão de certeza
enquanto um know that111 mostrou-se insuficiente e com inúmeras
contradições. A tentativa de fuga da metafísica, aspirando estabelecer uma
perfeita isomorfia da realidade com a proposição linguística, desvelou-se como
impraticável, porque sempre há elementos da realidade que não são
perceptíveis pelos nossos sentidos e sempre há algo que nos escapa. Essa
noção foi muito bem tracejada por FERRAZ (2013, pg. 151/152), mostrando-se
bem vinda a transcrição dos seus dizeres:
110 “O principal resultado da crítica da linguagem é o postulado transcendental que nos diz que o sentido duma proposição declarativa qualquer é determinado porque ela pode ser analisada em combinações lógicas de proposições atômicas, que são, por sua vez, combinações lógicas de signos simples. Estes últimos não "existem" como fatos lingüísticos, mas "subsistem" como condições de possibilidade ou coordenadas transcendentais dos fatos lingüísticos. Por esta razão, jamais teremos acesso direto à forma dos signos simples ou à forma de suas combinações (proposições atômicas) no mundo dos fatos. Mesmo assim, a existência destes signos é uma condição necessária da determinabilidade do sentido da proposição. Eles são indivisíveis e poderíamos dizer que seu conjunto constitui a "substância" da linguagem, a base permanente e imutável a partir da qual a diversidade das proposições que descrevem as situações mundanas é construída.” (PINTO, 2004, pg. 86) 111 “Sob o ponto de vista dessa lógica, o know that representaria “um saber o que” é necessário para designar um objeto, ao passo que o know how trabalha sob uma perspectiva radicalmente distinta, no sentido de abandonar a noção de se estabelecer “padrões” de determinação para trabalhar sob o prisma dos usos e contextos do conceito.” (FERRAZ, 2013, pg. 161).
75
“Isso porque em qualquer proferimento, é falaciosa a pretensão dessa correspondência absoluta. Um fato hipotético, em que seja visualizada uma criança ao lado de seu cachorrinho de estimação, pode gerar a seguinte expressão linguística: “a criança está à direita de seu cachorrinho de estimação”. De plano, a imagem mental da realidade estabelecida nessa situação é configurada com dois atores: a criança e o animal. O enunciado linguístico, a seu turno, possui, além da criança e do animal, a asserção de que o primeiro está situado à direita do segundo. Ora, como infere, sem maiores discussões, a pretensa isomorfia não existe. Além disso, outros pontos podem ser levantados: mudando-se o ângulo de observação, não se poderia afirmar que o cachorro está à direita da criança? Ou não seria factível que essa visão reducionista da lente do observador, de asseverar a relação entre a criança e o animal, tenha deixado para trás vários outros componentes da realidade, como o fato de a criança usar uma corrente para segurar o cachorro, de o dia estar chuvoso ou de sua mãe estar acompanhando a cena a uma distância pequena? E, ademais, seria a criança observada realmente uma criança? Não poderia ser um adolescente com um retardo de crescimento? Como, então, captar a essência do ser nesse caso?”
Com a argúcia que lhe é peculiar, o professor mineiro evidencia a
existência do não dito. A isomorfia do mundo com a linguagem é impossível,
porque por detrás da realidade há sempre aquilo que não foi percebido e, por
detrás da linguagem, aquilo que não foi dito. O esgotamento descritivo da
realidade é como a busca por Atlântida, ou seja, um perseguir mítico que nunca
tem um fim. Um novo elemento sempre se renova na renovação de um novo
olhar. Olhar este que também renova o sentido do já conceituado. Um
caminhar que não tem fim e cujo caminho é precário, provisório.
O autor, em testemunho a obra de Bouvier, Gaido e Brigido, também
nos alerta que o assentado em Tractatus inviabilizaria a construção de
determinadas terminologias importantes para a sociedade, como as noções de
democracia, conhecimento e até mesmo de direito. Todos estes nomes não
possuem um referente específico no mundo, inexistindo a correspondência
biunívoca do mundo/linguagem. Seria, então, impronunciável e impraticável o
Estado Democrático de Direito por não deter uma correspondência específica?
Fica a reflexão ao leitor.
Outra crítica relevante ao Tractatus foi à desenvolvida por LANDIM
FILHO (1981, pg. 36/37), para quem a forma de exposição da obra, com o
76
encadeamento crescente de importância da análise da linguagem, acaba por
exigir a observância de princípios metafísicos enunciados na própria obra112.
A pretensão de certeza e objetividade linguística mais uma vez
sucumbiu. A contribuição de Wittgenstein à filosofia da linguagem, contudo,
não se encerraria com esta obra. Após a imersão em si mesmo e o
distanciamento da academia, refletindo sobre os seus escritos, Wittgenstein
revisitará a sua teoria da linguagem em diversos escritos, sendo que o
compêndio de algumas reflexões fará parte da obra publicada postumamente:
Investigações Filosóficas.
112 “O livro tem ao mesmo tempo uma dimensão crítica (no sentido de que a filosofia é compreendida como uma atividade, um instrumento de análise conceitual, e não como uma teoria, um conjunto de enunciados verdadeiros) e especulativa (que o aproxima muitas vezes das reflexões da metafísica clássica). [...] Esta ambiguidade é ainda reforçada pelo tipo de exposição adotado por Wittgenstein. Como as proposições iniciais do Tractatus (1.2063) são consideradas ontológicas, a ordem de exposição (indicada pela numeração das proposições) poderia exprimir uma prioridade lógica da dimensão especulativa sobre a dimensão crítica. Assim, considerando as proposições básicas (numeradas pelos inteiros positivos 1 a 7) como encadeadas numa ordem crescente de importância, a análise da linguagem (que se inicia a partir da proposição 3) dependeria dos princípios metafísicos anteriormente enumerados.” (LANDIM FILHO (1981, pg. 36/37)
77
CAPÍTULO III – A REVIRAVOLTA LINGUÍSTICO PRAGMÁTICA –
A LINGUAGEM PARA ALÉM DA SEMÂNTICA
Após a publicação do livro Tractatus Logico Philosophicus (1921),
Wittgenstein acreditara que os seus escritos simbolizavam o porto de chegada
dos debates que navegavam em busca de uma linguagem lógica perfeita.
Acreditara ter ele encontrado as respostas lógicas identificadoras das
condições de possibilidade de todas as proposições, encerrando ali o meditar
sobre a linguística. Com a sensação de que nada mais seria extraível da
filosofia e profundamente marcado pelos acontecimentos do front de batalha
durante a Primeira Guerra, o filósofo austríaco recolhe-se a sua interioridade e
resolve ter uma vida mais simples, atuando como professor de escola primária
e, em seguida, como jardineiro em um monastério.
A partir de 1927, Wittgenstein inicia um diálogo com Schlick e outros
membros do Círculo de Viena113 (Carnap e Feigl)114, o que teria motivado o seu
retorno a Universidade de Cambridge, onde defendera o doutoramento em
1929, valendo-se do Tractatus como tese. A partir daí, o filósofo começa a
revisitar o seu trabalho inicial e modifica substancialmente o seu modo de ver a
relação da linguagem com o mundo115. Com isso, ele tenta compilar os textos
em uma obra única e até mesmo chega a pensar em publicá-la em vida116.
113 “Antes do primeiro encontro, Schlick nos advertiu enfaticamente a não começarmos nenhuma discussão do jeito que estávamos acostumados em nosso círculo, uma vez que Wittgenstein não desejava algo assim sob nenhuma circunstância. Devíamos também ser cuidadosos com perguntas, já que Wittgenstein seria extremamente sensível e fácil de ser assustado por meio de perguntas diretas. Seria melhor, segundo Schlick, deixar Wittgenstein falar e aí somente, muito cautelosamente, perguntar pelas elucidações necessárias” (CARNAP apud BUCHHOLZ, 2008, pg. 122). 114 BUCHHOLZ, 2008 pg. 164. 115 “Desde que há 16 anos comecei de novo a ocupar-me de Filosofia, tive que reconhecer erros graves no que escrevi no meu primeiro livro. Para reconhecer estes erros foi-me útil – a um ponto que eu próprio não posso julgar – a crítica que Frank Ramsey fez às minhas ideias. Com ele as discuti em inúmeras ocasiões durante os últimos dois anos de sua vida. Mais do que a esta crítica – sempre segura e poderosa – devo àquela que um professor desta universidade, o senhor P. Sraffa exerceu incessantemente durante muitos anos, sobre as minhas ideias. É a este estímulo que devo as teses mais consequentes deste trabalho.” (Wittgenstein, 2002, pg. 167) 116 “Até a pouco, eu já tinha renunciado à ideia de publicar o meu trabalho ainda durante a minha vida. Mas esta ideia era de quando em quando avivada, essencialmente devido ao facto de eu ter de vir, a saber, que os meus resultados, apresentados por mim em aulas, em notas e
78
Contudo, apenas após a sua morte será publicada a sua segunda grande obra,
Investigações Filosóficas.
Investigações Filosóficas tem como parágrafo iniciador uma
passagem do pensamento agostiniano117 – expresso no livro Confissões – em
que o autor aborda a linguagem como se cada signo traduzisse essencialmente
algum objeto, em uma relação direta de referência e significação118. Na
passagem, o bispo de Hipona aborda a significação como um compreender
que se dá na correlação denotativa do signo com a referência, isto é, o
aprender uma palavra se dá pela constatação de como esta é utilizada na
determinação de um objeto.
Segundo Agostinho, o adestramento pelo qual passamos, quando as
pessoas nos indicam repetidamente os sons identificadores de um objeto,
permite-nos fazer uma associação de que aquele signo denota a substância da
coisa. Seria, por exemplo, o aprendizado obtido por um ajudante de pedreiro ao
iniciar o seu trabalho em uma obra. Ali, ao ouvir o pedido para entregar uma
laje e sendo-lhe apontado o objeto, passaria o ajudante a deter o conhecimento
de que aquele nome simbolizava aquele objeto. A partir daí, ao ser indagado
em discussões, de diversas maneiras mal compreendidos, mais ou menos diluídos ou mutilados. Isso espiaçou a minha vaidade e foi-me moroso sossegá-la” (Wittgenstein, 2002, pg. 166) 117 Essa talvez seja um dos mais intrigantes questionamentos feitos pelos estudiosos de Wittgenstein sobre a obra. Por que construir a sua obra a partir dos dizeres de Santo Agostinho? Por mais interessante que sejam as reflexões do bispo de Hipona, outros autores mais próximos, como Frege e Russell, desenvolveram trabalhos mais completos. Aliás, o próprio Wittgenstein na sua primeira fase apresenta reflexões mais adequadas aos questionamentos formulados nas Investigações Filosóficas. Muitas serão as teorias, afirmando que o austríaco não queria entrar em embate com a obra dos seus diletos amigos. Outros dizem que ele não fez uma correção de curso, mas que, ao revés, há continuidade de uma obra para outra. Fato é que Wittgenstein, nessa história, apenas reforçou a sua impresibilidade. 118 “<< Cum ipsi (majores homines) appellabant rem aliquam, et cum secundum eam vocem corpus ad aliquid movebant, videbam, et tenebam hoc ab eis vocari rem illam, quod sonabant, cum eam vallent ostendere. Hoc autem eos velle ex motu corporis aperiebatur: tamquam verbos naturalibus omnium gentium, quae fiunt vultu et nutu oculorum, ceterorum que membrorum actu, et sonitu vocis indicante affectionem animi in pretendis, habendis, rejiciendis, fugiendisve rebus. Ita verba in varilis quarum rerum signa essent, paulatim colligebem, measque Jam volmtates, edomito in eis signis ore, per haec enuntiabam >> Quando eles (os meus pais) diziam o nome de um objeto e, em seguida, se moviam na sua direção, eu observava-os e compreendia que o objeto era designado pelo som que eles faziam, quando o queriam mostrar ostensivamente. A sua intenção era revelada pelos movimentos do corpo, como se estes fossem a linguagem natural de todos os povos: a expressão facial, o olhar, os movimentos das outras partes do corpo e o tom de voz, que exprime o estado de espírito ao desejar, ter, rejeitar, ou evitar uma coisa qualquer. Assim, ao ouvir palavras repetidamente empregues nos seus devidos lugares em diversas frases, acabei por compreender que objetos é que estas palavras designavam. E depois de ter habituado a minha boca articular estes sons, usava-os para exprimir os meus próprios desejos.” (WITTGENSTEIN, 2002, pg. 171/172)
79
com tal sonoplastia, entregaria o item requerido. A palavra laje teria a
significação como correspondência ao objeto identificado como tal.
A linguagem vislumbrada dessa forma traduziria a inteligência de
que uma proposição seria composta pelas designações perfeitamente
concatenáveis, de modo que o pensar agostiniano estaria balizado nos
substantivos enquanto componentes primeiros de uma língua. Somente a partir
de um substantivo eu consigo apresentar alguma proposição descritiva. A
linguagem seria a totalidade de substantivos e de nomes de pessoas ou ao
menos de palavras que cumpririam com esta funcionalidade.119
O pensamento agostiniano sustenta uma definição ostensiva da
linguagem, de modo que o conhecimento signativo dar-se-ia por uma relação
de familiaridade direta. A a-presentação de um objeto com a respectiva
nomeação permitiria ao indivíduo inferir a relação representacional do signo e
do objeto. Todas as vezes que se precisasse exprimir algo, dever-se-ia valer do
mesmo conjunto sonoro. Em outras palavras, quando conheço o que significa o
som “laje”, todas as vezes que eu me deparar com tal palavra, farei uma
correlação substantiva com o objeto.
FAUSTINO (1995, pg. 20) menciona que esse processo de cognição
linguístico, enquanto associação natural realizada pela mente, como uma
espécie de mecanismo mental subjacente a linguagem, apontaria para o
elemento finalístico, que seria o de despertar representações. A significação
seria o produto da tradução das ocorrências mentais, sendo que, antes de
exprimir o significado de algo, construiríamos a ideia em nossa mente para, em
seguida, trazê-la ao mundo por meio da linguagem.
Wittgenstein, contudo, chama-nos a atenção para algumas palavras
escritas no formato exclamativo. “Água!” “Fora!” “Ai!” “Socorro!” “Belo!” “Não!”
(2002, pg. 192). O que essas palavras exprimem em termos de significação? É
possível construir uma referência imediata? Essas palavras nos remetem a
119 “Sob tal ótica, o que garante o sentido na linguagem são as possibilidade de combinação ou ajuste entre esses ‘corpos-de-significação´subjacentes: se há ajuste, há sentido; na falta de ajuste, há contra-senso. Pois a proposição se define como uma combinação determinada de nomes e a condição de possibilidade de haver, para ela, um sentido depende da possibilidade de combinação dos nomes no plano da estrutura sintática, que, por sua vez, corresponde à possibilidade de combinação dos objetos (Bedeutungskörper) usado por Wittgenstein exprime a equivalência estabelecida pela imagem agostiniana entre significado (Bedeutung) e objeto (Gegenstand)” (FAUSTINO, 1995, pg. 22)
80
alguma situação específica? Para ficarmos apenas com a primeira, água pode
significar um pedido do líquido para matar a sede, assim como, em meio a um
incêndio, pode significar a ordem para abertura do hidrante. Pode, ainda,
significar o alívio de um torcedor no “Mineirão” ao perceber que o líquido que
fora lançado pela torcida adversária não era “xixi”. A compreensão e
significação dada a este símbolo exigem um adestramento de uso anterior a
própria utilização.
Imaginemos a figura de um estrangeiro que atraque em terras
tupiniquins durante um intercâmbio. Imaginemos que ele fez um longo curso
sobre a língua portuguesa e que conhece todos os signos gramaticais da nossa
língua. Imaginemos, agora, que, ao chegar à casa da sua família hospedeira,
depara-se com sua “irmã” chorando e, ao perguntá-la o que aconteceu, ela diz
que “levou um bolo” do namorado. Seria factível imaginarmos que o método de
definição ostensiva fosse capaz de dar sentido a esta situação? Teria o
estrangeiro compreendido perfeitamente o que a jovem teria dito? Ou será que
a compreensão dependeria de um ensinamento acerca do uso da proposição
“levar um bolo”?
Nesse sentido, Wittgenstein presta o testemunho que a linguagem
não se encerra em um conceito definitivo e fechado das palavras. A
ostensividade na formação do conhecimento está relacionada a uma forma de
ensino sobre o uso da palavra e não sobre o seu conceito definitivo. Ao
nomearmos determinado objeto, pregamos nele uma etiqueta120 que lhe
identifica e que nos dá a possibilidade de uso121. Entretanto, essa etiqueta
concatena-se especificamente com aquele uso, não fechando ali todas as
120 Ver Wittgenstein, 2002, pg. 181. 121 “A definição ostensiva, na qualidade de uma resposta definitiva à pergunta pela denominação, deveria, para Wittgenstein, ser considerada como um jogo de linguagem peculiar análogo a “pregar uma etiqueta numa coisa”. Enquanto tal, ela poderia, inclusive, ser vista como preparação para o uso de uma palavra. No entanto, ela só poderia elucidar o uso – o significado – de palavra quando já estivesse claro o papel que a palavra deveria desempenhar no jogo de linguagem. [...] Isso quer dizer que a inserção de uma palavra num jogo de linguagem determinado é gramaticalmente prioritária à sua “definição ostensiva”, que, além de insuficiente, pode às vezes se tornar inadequada para ilustrar usos possíveis daquela palavra.” (FAUSTINO, 1995, pg. 16)
81
possibilidades significativas da palavra.122 Funciona como se fosse um
preparativo para a utilização.
O etiquetamento, todavia, não significa enclausurar o conceito como
se a única referência possível fosse aquela. Ao revés, é uma a-presentação de
como a palavra pode ser utilizada, fixando um regramento de uso que não
encerra as suas possibilidades significativas. Seria uma explicação de como a
palavra pode ser utilizada naquela circunstância. A palavra “água” ouvida por
um bombeiro não significa a substância química cuja fórmula pode ser
expressa por H2O. Em verdade, água, naquele jogo de linguagem, ganha a
significação de instrumento de combate ao fogo.
O que o autor austríaco apresenta é que a significação não se dá a
partir da definição ostensiva, mas do ensino ostensivo, ou seja, o
aprendizado não se dá sobre o que a palavra significa (como pensava
Agostinho), mas como ela pode ser usada. Cuida-se de uma apresentação de
sentido, de uma explicação anterior de como pode se dar o uso de tal palavra.
O ensino do uso é como se fosse à apresentação de um manual de instruções,
por meio do qual são apresentadas as regras de correção para se utilizar
aquele símbolo.
Dizer que o ensino ostensivo apresenta um regramento acerca do
uso da palavra, adverte-se, não implica em absoluto sustentar ser viável o
fechamento de possibilidades significativas. Cada signo pode ganhar uma nova
instrução de uso e, consequentemente, uma nova significação. Não há se
confundir com uma pretensão de aplicabilidade diversificada do mesmo signo,
dizendo-se que este símbolo pode ser referenciado de mais de uma forma.
Não! O que Wittgenstein sustenta é que o conteúdo significativo
constante do símbolo somente pode ser alcançado por meio da
pragmática, isto é, pelo uso.
Não é factível a pretensão de se decorar todas as possibilidades
referenciais de um signo, pois este sempre apresentará uma abertura de
122 “Quere-se dizer que aprender uma linguagem consiste em dar nomes a objetos, como seres humanos, formas, cores, dores, estados de espírito, números, etc. Como foi dito – dar um nome é algo de semelhante a pregar uma etiqueta numa coisa. Pode chamar-lhe uma preparação para o uso de uma palavra. Mas é uma preparação para quê?” (WITTGENSTEIN, 2002, pg. 192)
82
significação expressa por uma nova possibilidade de uso. Ou seja, a noção de
conceito abstrato classificatório ou a de tipo cerrado inexistem, haja vista a
impossibilidade de estabelecer a priori o sentido significativo de uma expressão
linguística, desalojada do seu locus de significação, que é a pragmática. A
sensação de que estamos diante de um signo conceitualmente determinado é
apenas ilusória e decorrente da apreensão das regras de uso aplicáveis em um
jogo de linguagem, o que não significa fechar o conceito e torná-lo insuscetível
de novas significações. Sempre há a possibilidade de mutação significativa
dentro de um mesmo jogo de linguagem, sem falar na quase que necessária
mudança de sentido quando alteramos o jogo. Em síntese, os conceitos ou
tipos não possuem fechamento linguístico, pois o seu sentido será
inexoravemente precário, provisório e firmado apenas no momento do uso, isto
é, na pragmática.
Utilizando da mesma metáfora do nosso autor, imagine o jogo de
xadrez. Não é o fato de sabermos que a peça com um formato específico se
chama “Rei” que nos permitirá jogar. É preciso, antes de tudo, conhecer as
regras de movimentação das peças e, em seguida, conhecer as estratégias de
jogo. Esse conhecimento, pautado na compreensão das regras do jogo
conjuntamente com a habilidade nos usos das peças é que nos permitirá ter
êxito em uma partida. Mais: não há definição/denotação na locução de um
jogo. Um locutor de rádio/televisão jamais poderá traduzir em palavras tudo o
que transcorre diante de seus olhos. Não há um espelhamento...
O que se apresenta é que a linguagem não possui uma relação
referencial imediata, dependendo do conhecimento anterior acerca do seu uso,
o que nos permite dizer que a significação dependerá das circunstâncias e das
pessoas envolvidas. O sentido de uma palavra se dá diante do seu uso, e não
mediante uma tradução mental do seu conceito.123 O mesmo signo (rei) com o
mesmo formato pode ganhar uma significação diferente se alterarmos as
regras de uso. Não estaríamos mais no xadrez, mas em outro jogo de tabuleiro.
123 “Poder-se-ia dizer: a definição ostensiva explica o uso – o sentido – da palavra quando já se torna claro que papel a palavra tem de desempenhar na linguagem. Assim, se eu sei que uma pessoa me quer explicar o nome de uma cor, então a explicação ostensiva <<isto se chama <<sépia>> ajudar-me-á a compreender a palavra.” (Wittgenstein, 2002, pg 195)
83
A peça é a mesma, mas a sua significação mudou, pois o jogo de linguagem124
no qual está inserida também se alterou125.
As regras de uso no jogo de linguagem só são definidas na
execução do próprio jogo, isto é, jogando. O ensino ostensivo é um ponto de
partida, não de chegada. O adestramento no uso de um signo não
consubstancia em ficar preso àquela significação, sendo possível que as regras
sejam alteradas no decorrer do jogo.126 Dizer, portanto, que o ensino ostensivo
nos apresenta uma possibilidade de uso da linguagem não simboliza que
estamos acorrentados a este uso, mostrando-se plausível que alteremos a
significação linguística após a apresentação das regras do seu uso.
124 As vozes esquizofrênicas continuam a me perturbar. Agora posso ouvir os reclames do leitor que indaga sobre “o que é esse tal jogo de linguagem”. Impossível tal pretensão definidora do que é o jogo de linguagem. Dar uma finitude conceitual a esta combinação linguística iria de encontro às pretensões wittgensteinianas. Contudo, pelo compromisso responsável com o leitor, dou-lhe a mão. Não para conduzi-lo pelo meu caminho, mas para que, ao observar as migalhas deixadas no chão, faça o seu próprio. Assim sendo, nessa estrada sem caminho, deixo como “placas” às falas do próprio autor austríaco e o testemunho formulado por MORENO (2000). Com efeito, Wittgenstein afirma que “Na prática do uso da linguagem (2) um dos participantes pronuncia as palavras, o outro actua de acordo com estas; mas durante o ensino da linguagem encontrar-se-á o seguinte processo: o aprendiz nomeia os objectos, i.e, pronuncia a palavra quando o professor mostra a pedra. – De facto, encontrar-se-á um exercício ainda mais fácil: o aluno repete a palavra que o professor pronuncia – ambos os processos são semelhantes a processos linguísticos. Também podemos conceber que todo o processo do uso de palavras em (2) seja um daqueles jogos por meio dos quais as crianças aprendem a língua natal. A estes jogos quero chamar jogos de linguagem e falarei por vezes de uma linguagem primitiva como sendo um jogo de linguagem. E poder-se-ia chamar aos processos de nomear as pedras e repetir as palavras também jogos de linguagem. Pensa no uso que se faz de palavras em jogos de roda. Chamarei também ao todo formado pela linguagem com as actividades com as quais ela está entrelaçada o <<jogo de linguagem>>” (WITTGENSTEIN, 2002, pg. 177). Ainda valem as palavras de MORENO (2000, p.55), “Procura salientar, com a palavra ‘jogo’, a importância da praxis da linguagem, isto é, procura colocar em evidência, a título de elemento <constitutivo>, a multiplicidade de atividades nas quais se insere a linguagem; concomitantemente, essa expressão salienta o elemento essencialmente dinâmico da linguagem – por oposição, como vemos, à forma lógica.” 125 “O ensino ostensivo, diferentemente da definição ostensiva, permite a Wittgenstein dizer que a compreensão da palavra apenas se efetiva junto com uma lição ou instrução determinada (mit einem bestimmtem Unterricht – PU, §6º) Apenas desse ponto de vista torna-se possível dizer que, acompanhado de uma outra instrução, isto é, acompanhado de uma outra regra de uso, o mesmo ensino ostensivo produziria ou efetivaria uma compreensão inteiramente diferente de uma mesma palavra.” (FAUSTINO, 1995, pg.17) 126 “Não lança a analogia entre a linguagem e o jogo uma luz sobre a nossa questão? Podemos muito bem conceber pessoas que se divertem num prado a jogar com uma bola, que começam a jogar alguns jogos conhecidos, jogam outros sem os acabar, entre uns e outros atiram distraidamente a bola ao ar, correm com a bola uns atrás dos outros, etc. E uma pessoa agora diria: durante todo esse tempo as pessoas no prado jogavam um jogo de bola, e em cada lance guiava-se por determinadas regras. E não há também o caso em jogamos e - <<make up the rules as we go along [fazer as regras a medida que se joga]>>? E há também aquele em que mudamos - <<as we go along (a medida que se joga)>>.” (WITTGENSTEIN, 2002)
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Com efeito, o que fica latente é que o segundo Wittgenstein gira a
centralidade do debate para o uso (Gebrauch) enquanto significação, ao invés
de uma conceituação referencial de espelhamento da linguagem. Os signos
não refletem a essência do que um objeto é, mas apresentam uma
possibilidade de uso explicada por um ensinamento ostensivo. A significação
ontológica é como um labirinto, pois acreditamos sempre estar perto do ponto
de chegada que, simplesmente, não há.127 Inexiste uma norma jurídica que
descreva com claridade e univocidade o comportamento hipotético humano
como correspondência biunívoca da realidade com o significado. Não há uma
conceituação fechada, pois a significação sempre depende do jogo de
linguagem no qual os falantes estão inseridos, o que colocaria em xeque as
concepções da tipicidade fechada ou de conceitos abstratos.
Seguindo o mesmo trilhar, não é palatável conceber que o
pensamento tipológico contempla as observações do filósofo austríaco. A
abertura proposta para o tipo seria definida no momento constitutivo da
proposição, ou seja, desolada da pragmática. Ainda estamos diante da
definição ostensiva, ou seja, de um modo de pensar que acredita em
significados permanentes. A tipicidade seria aberta por escolha do legislador e
não pelo reconhecimento de que está na pragmática o locus significativo de
qualquer proposição. A abertura proposta não passa de utilização das flexões
sintáxicas e semânticas da gramática, estando ainda presa em uma lógica de
significação a priori. O significado seria perceptível fora do seu uso, contendo
contornos significativos conhecíveis por uma racionalidade pura. Não conheço
a totalidade das hipóteses previstas no tipo, mas, quando me deparar com uma
situação fática, a correspondência será imediata e inexorável.
Retomando o pensamento wittgensteiniano, HINTIKKA (1994, pg.
252) observa que a definição ostensiva é substituída pelos jogos de linguagem
na construção de um conceito que traduza a relação linguagem-mundo. A
127 “As Investigações ensinam-nos que, ao colocarem questões do tipo “o que é o conhecimento? ” ou “ o que é a linguagem?”, os filósofos apenas estão procurando fantasmas se pretendem encontrar uma essência ou algum tipo de fundamentação ontológica invariável do conhecimento ou da linguagem. Na realidade, como disse, ao filósofo não cabe fazer perguntas por essências metafísicas do tipo “o que é...?”, mas cabe a ele analisar como são usadas tais expressões (conhecimento, linguagem, etc.) nos diversos contextos linguísticos em que aparecem.” (CONDÉ, 1998, pg.90)
85
significação não encontra morada em uma situação representacional, como
espelhamento de uma realidade. Como anota BOLTON (1979), o conceito
somente ganha concretude quando utilizado nas atividades humanas128, ou
seja, quando aplicado em um caso concreto, estando presente o elemento da
pragmática linguística. O que se pode dizer é que a mudança do
posicionamento de Wittgenstein aponta para a inexistência de um
encaixotamento capaz de identificar a priori uma definição conceitual. O
conceito é provisoriamente definido durante a sua utilização e o seu sentido se
revela sempre precário e decorrente do jogo de linguagem.129
Essa perspectiva é apresentada por CRUZ (2011, p. 96) como um
deslocamento da noção de um know that para um know how. Enquanto no
know that eu tenho um conhecer essencialista, que petrifica o conceito numa
visão da linguagem enquanto espelhamento do mundo, o know how indica um
“conhecer o uso”, que traz precariedade conceitual. O adestramento não é
sobre o que determinada palavra significa, mas qual o sentido que ela possui
quando empregada em um jogo de linguagem específico. Isso simboliza uma
mutação significativa que toda palavra pode ter quando alterado o seu centro
de gravitação conceitual.
Caminhando pelas construções jurídicas, pode-se visualizar como
um mesmo signo pode conter uma multiplicidade infinita de significações. A
legalidade no direito brasileiro, quando aplicado em um contexto de liberdade
política, terá ordinariamente a sua conceituação balizada na máxima de que a
abstenção da prática de uma conduta somente pode se exigir quando da
existência de uma norma proibitiva. Por outro lado, se visto enquanto
128 “Language has meaning because men use it in their activities, therefore not because it reflects objects or states of affairs which are given independently (absolutely, unconditionally). << a linguagem ganha significação porque os homens a usa em suas atividades e não porque reflete objetos ou estados de coisas que são dadas de forma independente (absolutamente, incondicionalmente)” (BOLTON, 1979, pg. 116/117) 129 Importante a lição trazida por CRUZ (2011, p. 92) de que “ Wittgenstein percebe a impossibilidade de a semântica denotativa dar conta de tal desafio, percebendo que a formação de sentidos, referências e significados são uma possibilidade, ou seja, estão abertos à construção e à reconstrução permanentes, expostos permanentemente ao risco dialético do entendimento sobre o sentido proposto ou não, ou seja, da compreensão ou da incompreensão. Assim, se seu Tractatus lógico-philosophicus parte de uma análise semântica da linguagem, suas Investigações Filosóficas trazem como elemento central a percepção de que os significados somente podem ser percebidos pelo outro em um contexto de uso da linguagem.”
86
estandarte normativo aplicável a Administração Pública, o sentido empregado
possivelmente seria o de delimitação comportamental em razão da existência
de norma que imprime quais as condutas podem ser praticadas pelos agentes
do estado130. Ainda, no direito sancionador, a legalidade pode ser
compreendida como uma aplicação do brocardo latino “nulla crimen nulla
poena sina praevia lege”. Além destas, a legalidade pode alcançar N
significações, dependendo do deslocamento do jogo de linguagem. Seria,
então, possível compreender a sua significação desalojada do seu emprego
pragmático? Acreditamos que não. As significações apresentadas do termo
dependeriam da aplicação prática para que se possa visualizar qual o sentido
do seu emprego.
Em outras palavras, quando dizemos no âmbito de um processo
administrativo sancionador que há a violação ao princípio da legalidade, a
autoridade administrativa não busca em uma caixa conceitual o que é a
legalidade para, em seguida, alocá-la mentalmente na sua decisão. É preciso
que, diante do caso concreto e com o adestramento a que passou, interprete
as alegações, tomando como base o jogo de linguagem apresentado. O caso
concreto funciona como um horizonte de possibilidade significativa, por meio do
qual se consegue construir o conceito que será aplicável estritamente para
aquele caso, com base nas circunstâncias e nos indivíduos envolvidos. O jogo
de linguagem mostra-se como um parâmetro131, não como solução indefectível.
130 Ciente de que esta assertiva poderia levantar a dúvida de que este trabalho estaria apresentando informações contraditórias (como assim norma que traz delimitação comportamental? O conceito não é sempre a posteriori? Não seria contrário aos postulados aqui defendidos dizer que uma norma define um comportamento da Administração Pública?), vale dizer que não estamos defendendo a possibilidade de uma norma trazer de forma completa o comportamento exigível da Administração Pública. A essa norma, enquanto construção linguística, sempre caberá uma interpretação que dará o sentido precário àquele texto, decorrente das circunstâncias e dos sujeitos envolvidos. Não! Definitivamente não estamos açambarcando a ideia de que o Princípio da Legalidade traz insitamente e a priori a possibilidade de fixar ontologicamente os limites de atuação da Administração Pública. Perquirimos um testemunho de que o ensinamento ostensivo de tal constructo jurídico nos conduz a um utilizar não mecanizado de tal perspectiva. Trata-se de um ponto de partida, que não especifica o porto seguro que obrigatoriamente teríamos que chegar. Cuida-se da visão de que, usualmente, o signo “legalidade” quando utilizado no jogo de linguagem do Direito Administrativo, recebe tal conotação. 131 “Um jogo de linguagem é um modo de apresentar um paradigma, um critério, uma mesmidade a ser contraposta à diveridade e multiplicidade dos vários empregos e funcionamentos das palavras. Sob este aspecto, cumpre função parecida com aquela da proposição no Tractatus, modelo em relação ao qual o fato se comporta e que tem nesse próprio fato seu objeto de comparação. Mas esse objeto de comparação é fragmento de
87
Rechaçamos, mais uma vez, a viabilidade de compreensão a prioiri
dos termos linguísticos empregados, pois, por mais que se possam identificar
os contornos genéricos da legalidade em razão do seu ensino ostensivo,
ocorrendo o giro do jogo de linguagem, o modus de apresentação conceitual
também é deslocado, fazendo-se emergir um novo conceito. Ainda que a
legalidade em um âmbito sancionador tenha como parâmetro “nulla poena sina
praevia lege”, a sua concepção será diferenciada quando alterado o sistema
jurídico. A legalidade aplicada no direito brasileiro não será a mesma que no
direito dos demais países da América Latina132 ou dos Estados Unidos da
América, por exemplo. As circunstâncias jurídicas, sociais, políticas, individuais,
dentre outras de cada país permitirá a construção de um conceito (precário,
frise-se) aplicável apenas no âmbito daquele caso concreto.
Além disso, devemos recordar que o conceito empreendido em um
jogo de linguagem, por não espelhar uma realidade, possui a capacidade de
sofrer mutações significativas, sendo que o know how não implica fixar regras
imutáveis sobre o uso. Apenas a título de exemplo e de forma perfunctória,
podemos citar a Portaria 513/2010 do Ministério da Previdência Social, que
reconheceu a plausibilidade de pagamento da pensão previdenciária a
companheiro do mesmo gênero. Por meio deste ato normativo a Administração
Pública provocou uma alteração no conceito de união estável que vinha sendo
empregada como um instituto aplicável apenas para pessoas de gênero
oposto. Note-se que a mudança interpretativa conceitual se deu
independentemente da alteração sintáxica do termo, mas em razão da
alteração das circunstâncias que lhe davam aquela determinada conotação.
Houve uma mudança no modo de apresentação do termo, ou seja, dos critérios
de uso no seu jogo de linguagem.
Com uma abordagem salutar, GIANNOTTI (1995, pg. 66) chama-nos
a atenção de que a comunicação não exige um seguir metodológico das regras
de uso. Ao revés, o jogo de linguagem não esgota o fato linguístico. Os jogos
se apresentam como um modelo rudimentar e primitivo do fato linguístico, que
linguagem, arquipélago de frases e atividades pertinentes, que vem mostrar como devem funcionar nossos conceitos na linguagem cotidiana.” (GIANNOTTI, 1995, pg. 66) 132 Sugerimos a leitura do Relatório da Fundação “Due Processo of Law Foundation” intitulado “Digest of Latin American Jurisprudence on International Crimes”, de 2010.
88
se mostra mais dinâmico e complexo diante da faticidade. Trata-se de um
modo de apresentação que não se esgota em si mesmo e que, por isso,
permite a sua transformação. Daí a sempre precariedade do conceito, definível
apenas no campo da concretude fática.
Os jogos de linguagem são múltiplos e diversificados na mesma
dimensão da complexidade das relações humanas. Uma palavra conterá
infinitas possibilidades significativas ocorrentes em incontáveis situações. Em
cada uma estaremos diante de um regramento de uso específico, fazendo
surgir um novo conceito durante o utilizar. A sentença proposicional não
condiciona a interpretação.
Vale destacar, entretanto, que é possível identificar certa
semelhança entre os jogos de linguagem. Por mais que a legalidade no direito
brasileiro não seja a mesma do direito americano, por exemplo, há uma
similaridade que pode facilitar o trânsito na compreensão significativa. Essa
proximidade aparente vai ser denominada por Wittgenstein como
semelhanças de família133.
Por meio da ideia de semelhanças de família, Wittgenstein afasta a
pretensão ontologizante da linguagem, afirmando que aquilo que nos permite
identificar a proximidade linguística nada mais é que a similaridade entre os
133 “É aqui que encontramos a grande questão que se oculta por trás de todas estas considerações. – Poder-se-ia objectar-me: << Simplificas demais>>! Falas de todos os jogos de linguagem possíveis e imagináveis, mas nunca chegaste a dizer qual é a essência do jogo de linguagem e assim da linguagem. O que é comum a todos estes processos e que os torna em linguagem ou em partes da linguagem. Assim ofereces-te simplesmente a parte da investigação que em tempos te deu as maiores dores de cabeça nomeadamente a que diz respeito à forma geral da proposição e da linguagem. E é verdade. – Em vez de especificar o que é comum a tudo aquilo a que chamamos linguagem, eu afirmo que todos estes fenômenos nada têm em comum, em virtude do qual nós utilizemos a mesma palavra para todos – mas antes que todos eles são aparentados entre si de muitas maneiras. E por causa deste parentesco ou destes parentescos chamamos a todos <<linguagem>>. Quero tentar esclarecer isto. Considera, por exemplo, os processos aos quais chamamos <<jogos>>. Quero com isto dizer os jogos de tabuleiro, os jogos de cartas, os jogos de bola, os jogos de combate, etc. O que é que é comum a todos eles? Não respondas: << Tem de haver alguma coisa em comum, senão não se chamariam jogos>> - mas olha, para ver se têm alguma coisa em comum. – Porque, quando olhares para eles não verás de facto o que todos têm em comum, mas verás parecenças, parentesco, e em grande quantidade. [...] E o resultado desta investigação é o seguinte: vemos uma rede complicada de parecenças que se cruzam e sobrepõem umas às outras. Parecenças de conjunto e de pormenor. Não consigo caracterizar melhor estas parecenças do que com a expressão <<parecenças de família>>; porque as diversas parecenças entre os membros de uma família, constituição, traços faciais, cor dos olhos, andar, temperamento, etc, sobrepõem-se e cruzam-se da mesma maneira. . – E eu direi: os jogos constituem uma família.” (WITTGENSTEIN, 2002, pg. 227/229)
89
jogos de linguagem. Não há algo comum que identifique a natureza dos signos
linguísticos, mas semelhanças que os aproximam. Tomando o exemplo dado
por BOLTON (1979, pg. 118), o termo “cadeira” pode significar um objeto
estofado, com rodas, de couro, de tecido, fixa, de escritório, de leitura, etc. A
significação do termo se dá no caso concreto, quando se identifica qual o
objeto está-se apresentando. Entretanto, essas múltiplas possibilidades
significativas encontram semelhanças que permitirão um agir mais adequado.
Essa parecença pode ser em maior ou menor grau, pois, quando
falamos, por exemplo, “Álvaro é o titular da cadeira de direitos humanos”, há
um maior afastamento do jogo de linguagem em que se apresentou a
expressão “cadeira” como objeto. Do mesmo modo, quando um dos ritmos
musicais dos anos 90 exclamava “mexe a cadeira!”, o signo “cadeira” impõe um
afastamento de parentesco com o signo “cadeira” inicialmente proposto, pois
há uma menor similaridade entre os jogos de linguagem.
No caso do direito, o jogo de linguagem vai apresentar maior ou
menor similitude dependendo da área de concentração. No contexto de uma
gramática ocidental de inspiração liberal, o Direito Tributário é sensivelmente
mais próximo do Direito Penal, por garantir “bens” e “valores” de percepção
mais sagrada por essas sociedades. De outro lado, o Direito Tributário teria um
parentesco mais distante do Direito do Consumidor, por exemplo, eis que a
impositividade do tributo marcaria uma “violência” maior que as sanções
consumeristas. Cada um dos ramos do direito apresenta um jogo de linguagem
próprio, que se aproxima mais ou menos de outro. Essa similaridade, contudo,
não pode ser visualizada com distanciamento da realidade, como se fosse um
parentesco definido a priori. O olhar inicial sobre o ramo que nos permite fazer
essa aproximação defluiu do adestramento a que fomos submetidos durante o
aprendizado de uso da linguagem no direito. Essa percepção inicial pode,
porém, ser modificada no caso concreto. A pretensão punitiva pelo
descumprimento de normas expostas no Direito do Consumidor pode ganhar
uma aproximação com o Direito Administrativo e com o Direito Penal, por
exemplo. Quando eu sanciono um fornecedor, aplicando-lhe uma multa, a
natureza ontológica de norma consumerista se esfacela e ganha novos
90
contornos134, com novas necessidades de significações. A leitura dos signos
jurídicos deve ganhar interpretações de norma punitiva, decorrente dos atos de
sanção do estado e não de norma que regulamenta as relações comerciais
entre pessoas privadas. A própria semelhança de família dos jogos de
linguagem não possui uma rigidez de know that, mas a fluidez de um know
how.
As normas jurídicas não estão emolduradas em um conjunto de
significações definidas por um jogo de linguagem. As significações são
apresentadas a partir do regramento de uso em que ela se alicerça, podendo,
porém, transitar por outros jogos e, inclusive, transformá-los. O nosso esforço
com isso é de apresentar a ideia que a interpretação da norma jurídica inicia-se
pelas crenças e valores apreendidos no aprendizado da própria norma e pelo
jogo de linguagem em que ela se apresenta, em cada gramática profunda que
nos colocamos. Isso, todavia, não encerra e nem condiciona a sua
possibilidade significativa que, diante de um caso concreto, poderá receber
novos sentidos. O legislador não define a aplicação da norma jurídica por meio
de uma linguagem clara e unívoca, mas apresenta uma asserção dentro de um
jogo de linguagem que lhe é próprio, que criará mais de uma possibilidade de
uso. Uma possibilidade pode se tornar reiterativa, dominante, mas jamais será
totalizante, absoluta, universal e eterna. As mutações jurisprudenciais e
acadêmicas de diversos institutos jurídicos atestam a visão de Wittgenstein.
Em outras palavras, em um jogo de linguagem de universalização de
hipóteses comportamentais, o legislador apresenta uma proposição travestida
de norma jurídica. O intérprete, por sua vez, transitando pelos jogos específicos
do direito - que lhe deram a condição identificar modos de uso dessa norma-
diante de um caso concreto, construirá o sentido daquela norma que será
exclusivo àquele caso.
134 Talvez as construções aqui propostas estejam contaminadas por com-pre-ensões fenomenológicas. Não posso dizer que a trasnconstrução aqui empreendida tenha tomado como parâmetro exclusivamente os dizeres de Wittgenstein. Não! Sinto um pouco de Heidegger, de Álvaro Ricardo e até da minha mão nesses dizeres. Não estou sendo fidedigno com o pensamento do austríaco florista, eu sei! Mas, teria como sê-lo? Teria eu condições de exprimir objetivamente o que Wittgesntein pensou? Se tivesse (ou se tiver), teria que, objetiva e racionalmente, rasgar todo esse escrito.
91
Ao fixar o tipo “matar alguém”, o legislador apresenta uma asserção
dentro do seu jogo de linguagem, pretendendo universalizar o comportamento
humano que ele pretende tornar ilícito. Por sua vez, ao lhe ser apresentadas as
circunstâncias causais em que uma vida foi ceifada, o intérprete conduzirá135 a
fixação do sentido da norma, de modo a identificar se, no caso concreto, há a
aplicabilidade das sanções previstas na norma punitiva. Não se trata de um
método subsuntivo – tal qual preconiza a Escola da Exegese -, pois o sentido
da norma será construído exclusivamente no caso concreto, sem negar,
obviamente, a influência do ensino ostensivo que permeou o emprego do signo
linguístico normativo.
O exemplo do “matar alguém” é bem emblemático, pois, em uma
passagem superficial e com base nos pressupostos que pretendemos atacar
neste trabalho, poderíamos dizer que se trata de uma norma jurídica carente de
interpretação, cujo conteúdo encontra-se finalizado em seu próprio texto. Afinal,
“matar alguém” é retirar de um indivíduo o direito de viver. Não seria simples
assim? Entregamos para a ciência biológica o dever de definir o que é vida e,
em seguida, a única interpretação possível seria a de que, caso haja a prática
de um ato que culmine no encerramento daquela condição descrita pela
ciência, restaria imperiosa a subsunção fato/norma, incidindo o “matar alguém”,
ressalvada a aplicação de uma hipótese excludente criada pelo próprio direito.
Correto? Cremos que não!
Basta olhar para a contemporaneidade e visualizar a influência que
diversos temas - como as células-tronco, os embriões, a genética, os
transplantes, enfim, a biotecnologia – terá na adoção de um novo sentido para
o signo vida. Afinal, há dois séculos, matar um escravo não seria visto como
homicídio. E, no futuro, caso os cientistas fizessem e matassem um clone
humano, estaríamos diante de um homicídio? Existiria um significado dado a
priori ao intérprete para solucionar essa demanda fictícia? Ridley Scott anteviu
esse debate na direção do filme Blade Runner ao questionar a significação dos
“replicantes” como objetos a serem usados pelos homens e que poderiam ser
135 Conforme tentaremos mais a frente defender, a decisão judicial não se dá de forma solipsista, por uma construção egocêntrica do magistrado. Ao revés, o magistrado é apenas o responsável dirigente, que auxiliará e participará na construção do provimento jurisdicional.
92
“aposentados” pelos “Caçadores de Andróides”. Haveria apenas um sentido
para a expressão “ser humano”?
Para não ser acusado de roteirista de ficção científica, vale citar o
exemplo trabalhado por Streck136 (2008, pg. 170), ao mencionar que, após o
primeiro transplante de coração ocorrido na Argentina, foi deflagrado um
processo criminal por homicídio em face dos médicos envolvidos. O signo vida
era usado como a manutenção da capacidade respiratória, sendo que, para o
transplante, é preciso que o paciente ainda esteja com órgãos funcionando,
permitindo que o corpo “respire”. Esse novo influxo significativo permitiu a
mutação conceitual de vida enquanto manutenção das capacidades cerebrais,
passando a ser este o paradigma de uso utilizado. Nada obsta, contudo, que
novos influxos decorrentes de outras circunstâncias e outros sujeitos permitam
o emprego de sentido diverso, garantindo a fluidez da significação linguística
no tipo normativo.
Com efeito, seguindo as migalhas deixadas por CONDÉ (2004),
percebemos que a filosofia wittgensteniana rompe com a lógica totalizante
vigente no pensamento moderno137, que viabiliza a falaciosa pretensão
universalizante da linguagem, que se dizia capaz de encontrar uma significação
universal, aplicável a todos os casos de forma indistinta138. Não é possível
fechar conceitualmente e de forma totalizante a significação do tipo homicídio,
pois a realidade é aberta, constituída por uma multiplicidade de relações que
não se encerram.
A linguagem não é constituída por uma essência constatável pela
racionalidade objetiva humana. Não existe uma linguagem lógica perfeita, pois
136 Trabalhamos o exemplo, não o pensamento de Streck. 137 Vale destacar que, conforme afirma CONDÉ (2004), Wittgenstein não construiu uma Teoria da Ciência, de modo que o comparativo aqui proposto figura como um testemunho de Condé sobre os escritos do segundo Wittgenstein. 138 “Diferentemente da racionalidade científica moderna – totalizante – , essa nova noção de racionalidade não se constitui a partir de uma ordem a priori e hierárquica, contrariamente, ela é vista como uma “teia”, uma rede multidirecional flexível que se estende através de Semelhanças de família (I. F. §§ 67, 77, 108). Não é totalizante porque, além de não possuir fundamentos últimos, não pretende fornecer “a” inteligibilidade total e completa do mundo, como se todas as visões de mundo devessem convergir. Entretanto, é holista porque apresenta uma dimensão panorâmica (Übersichtlichkeit) constituindo um tipo de sistema aberto e descentralizado no qual a racionalidade não está assentada em nenhum lugar privilegiado, mas se configura a partir das múltiplas relações no interior do sistema. E, embora constitua um sistema autônomo, não se fecha no relativismo extremo na medida em que está aberto a outros sistemas.” (CONDÉ, 2004, pg. 04)
93
as circunstâncias do mundo sempre nos colocam em panoramas linguísticos
diferentes que, assim como o próprio homem, estão longe da perfeição
unidimensional. A linguagem de Wittgenstein é mais que uma gramática de
superfície, composta pela sintaxe e pela semântica. Deve ser visualizada como
uma gramática profunda139, um produto da práxis social, um conjunto de
regramentos que apresentam as possibilidades de uso, mas que não encerram
tais possibilidades, podendo as regras ser alteradas ou ampliadas.
A pragmática passa a ser o locus de formação do sentido de uma
expressão linguística, tornando-se elemento imprescindível na formação do
conceito. O significado não pode ser alcançado senão no seu uso, na
cotidianidade e na faticidade das relações humanas. Os sujeitos de um ato
comunicacional apresentam o sentido no momento da utilização da palavra,
consoante as circunstâncias causais presentes.
A pragmática, enquanto elemento da linguística enterrou as
pretensões isomórficas linguagem/mundo e a busca por uma linguagem lógica
perfeita e matematizada, que figura como produto de uma racionalidade
objetiva capaz de construir expressões cuja claridade conceitual torna
injustificadas as ações hermenêuticas do homem. A pragmática frustra a ilusão
de domínio que o homem tem sobre a linguagem. Uma palavra não tem sentido
senão quando utilizada na prática cotidiana do homem, mostrando-se
dependente do ambiente em que é proferida e a forma de recepção por parte
do interlocutor.
Wittgenstein revelou a falibilidade significativa da linguagem, que se
mostra incapaz de construir um conceito a priori claro e perfeito. A linguagem
não descreve um mundo, mas o apresenta e o faz pelo horizonte circundante
dos que participam do ato comunicacional. Não tem a linguagem a função
simplesmente descritiva. Fugindo dos dizeres do austríaco e caminhando para
139 “Nas Investigações, Wittgenstein distinguirá dois níveis da gramática. A gramática de superfície (oberflachengrammatik) e a gramática profunda (Tiefengrammatik) (I. F. § 664). A gramática de superfície trata das características evidentes das expressões, sem levar em consideração o contexto gramatical global em que tais expressões são geradas, contrariamente à gramática profunda (gramática panorâmica)6, isto é, a gramática na qual se engendram as regras de uso da linguagem, no interior da qual se opera, à semelhança de um jogo, a produção de diversas expressões lingüísticas e, por conseqüência, a constituição da racionalidade. Assim, a gramática profunda leva em consideração não apenas os aspectos peculiares de um dado jogo de linguagem, mas tudo o que está envolvido na práxis da linguagem como, usos, produção de regras, etc.” (CONDÉ, 2004, pg. 07)
94
a Inglaterra, podemos dizer que a linguagem não tem uma dimensão
puramente constativa, incrustada em uma relação sujeito-objeto. Como
apresentado por John Austin, à linguagem possui aquilo que excede ao próprio
texto, aquilo que é performativo. Dizer algo não é descrever, mas agir.
Sem a menor pretensão de reconstruir o pensamento do filósofo
britânico, relembramos os ensinamentos de CRUZ (2011) que, em seu
testemunho a Austin, assevera que a fala, mais do que apresentar uma ideia,
apresenta um agir, uma ação humana. Assim, o filósofo britânico sustentaria a
existência de três elementos no ato da fala e que são responsáveis pela
produção do sentido.
A linguagem seria, então, composta por um ato locucionário, um ato
ilocucionário e outro ato perlocucionário. O ato locucionário seria a
construção sonora e gramatical da expressão linguística, tratando-se da
conjunção dos elementos da sintaxe e da semântica. Nas palavras de GOMES
(2008, pg. 140), é a “proposição anunciada”, aquilo que formalmente está
sendo dito.
Por sua vez, o ato ilocucionário seria o agir que se encontra por
detrás de um símbolo. Seria o sentido dado à expressão linguística,
apresentando o agir que não está contido nos elementos sintáxicos ou
semânticos da proposição. Um “sim”, mais do que uma resposta afirmativa,
pode simbolizar o aceite de um noivo na formalização de uma união ou um
simples posicionar de um garçom, que diz o “sim” como se fosse um “estou à
disposição”. O ato ilocucionário é a mensagem que se pretende transmitir com
a ação comunicativa. Tomando o exemplo dado por OTTONI (2002), quando
digo “prometo”, o ato ilocucionário é a realização de uma promessa, ou seja, o
agir humano presente na minha fala.
O ato perlocucionário estaria relacionado à receptividade da
mensagem transmitida no ato da fala. O enfoque é o interlocutor, que
descriptografa a ação comunicativa empreendida, sendo um partícipe ativo na
construção do sentido. No exemplo anterior, o “sim” recebido por uma noiva no
altar de uma igreja possivelmente terá a conotação da mais esperada
declaração de amor que ela sonhara ouvir. No caso do cliente no restaurante, o
“sim” do garçom, geralmente, não terá a mesma mensagem recepcionada pela
95
noiva. Este “sim” será provavelmente recebido como um bom atendimento
ofertado ao cliente.
A dimensão perlocucionária escancara a intersubjetividade na
construção do sentido conceitual, que não pode se dar (ou não se dá) de forma
solipsista, como fruto de uma razão pura. Além disso, apresenta a ideia de que
uma mensagem não será recebida da mesma forma, pois as circunstâncias e
os interlocutores serão sempre diferentes.
Ainda que os interlocutores sejam os mesmos, eles serão diferentes.
Indo além do que Austin disse, a infinição impede que o experimento seja
repetido. Os mesmos nubentes não seriam capazes de apresentar um mesmo
sentido, em um mesmo lugar, para uma mesma frase. O amor já não é mais o
mesmo, pode ser mais forte, mais fraco ou apenas diferente, mas não será o
mesmo. Assim, o sentido experimentado em cada construção conceitual não se
revigora nem se repete. Pode se repetir os símbolos, jamais o sentido. Este
pode ter similaridades, mas nunca igualdade.
CRUZ (2011), em leitura da obra de Brandom, adverte que as
dimensões da fala devem ser vislumbradas de forma holística, mostrando-se
indissociáveis os atos locucionário, ilocucionário e perlocucionário. A ação
comunicativa é empreendida como um todo, sendo que a separação de tais
dimensões somente pode ser feita em caráter de apresentação teórica. O
professor mineiro, ao discorrer sobre a percepção holística das dimensões da
linguagem, afirma que “somente assim, será possível a discursividade humana,
que exige para a sua explicitação tanto a predicação quanto a
intersubjetividade contextual” (CRUZ, 2011, pg. 102).
A clareira acendida pela pragmática apresenta uma visão de que a
linguagem transborda a significação textual trazida pelos signos, mostrando o
conceito como dependente de um pano de fundo que o circunda. Mais do que
texto, a significação conceitual é formada por um contexto140, que apresenta
uma das múltiplas possibilidades significativas da proposição. O sentido de um
termo linguístico é um emaranhado de percepções, apreensões e
140 Válida a fala de GOMES (2008, pg. 141), para quem “Destarte, não apenas o texto se torna importante, mas também o contexto em que a afirmativa se insere passa a ser relevante para a sua compreensão, pois, afinal de contas, mudando-se aquele, altera-se o sentido da afirmação feita.”
96
compreensões que os interlocutores possuem e apresentam na forma de
linguagem.
Com efeito, estas “com-pre-ensões”, formam a primeira base da
nossa construção científica. Não podemos falar em tipicidade cerrada ou
conceito abstrato enquanto proposição logicamente perfeita, que traduz uma
hipótese clara e de fácil (ou nenhuma) interpretação, pois as significações
conceituais não podem estar deslocadas da pragmática e, portanto, não trazem
nem a universalidade nem a perenidade pretendida por uma noção isomórfica
de linguagem/mundo. O conceito não existe senão na provisoriedade do jogo
de linguagem a que está inserido.
Tampouco podemos dizer que há uma proposição cujos elementos
gramaticais permitem uma abertura axiológica que permitirá a fluidez do
sentido, como querem os defensores do pensamento tipológico. A im-
possibilidade de significação não é uma escolha, mas efetiva condição de
possibilidade de qualquer estrutura gramatical. A linguagem não espelha o
mundo e nem possui caráter meramente representativo da realidade. Dessa
forma, não há sentido deslocado do seu local de utilização ou sem a efetiva
participação dos interlocutores. O sentido significativo, além de precário e
provisório, somente pode ser constituído intersubjetivamente e no âmbito da
pragmática. A previsibilidade e a segurança jurídica, portanto, não podem ser
confundidas com exatidão lógico-gramatical ou com correspondência biunívoca
da proposição com a realidade fática.
O pilar construído, contudo, não encerra a nossa busca científica. A
resposta que inexiste um conceito formado a priori não nos satisfaz. É preciso
ir além. É preciso compreender a com-pre-ensão (se assim possível for). É
preciso mudar o rumo da nossa embarcação e navegar no rumo daquele que
nos promete desvelar o entendimento. O caminhar poderia se dar na mesma
trajetória, ou seja, na Filosofia Analítica contemporânea ou até mesmo no
Pragmatismo Filosófico. Contudo, optamos por ir um pouco mais além,
tentando “com-pre-ender” os fenômenos da “conceitualidade” e da tipicidade
por um ângulo “diferAnte”. E, para tanto, vamos em direção da Fenomenologia
de Heidegger.
97
CAPÍTULO IV – A ANALÍTICA EXISTENCIAL E A
FENOMENOLOGIA DE HEIDEGGER
Por que Heidegger? Se a pretensão da pesquisa era atestar a
fragilidade dos pressupostos científicos trabalhados na noção de tipicidade não
teria sido cumprido o seu papel? Afinal, Wittgenstein desvelou a ideia de que a
compreensão significativa depende do jogo de linguagem, que será o locus de
construção do sentido próprio para o termo linguístico naquele caso específico.
Qual seria a razão de dar continuidade filosófica a este trabalho?
Certa vez, durante banca de defesa de doutorado de um amigo, o
professor avaliador criticou o doutorando ao afirmar que, na atualidade, todos
resolveram adotar um pensador alemão como se fosse um bichinho de
estimação. Seria essa a razão de buscarmos em Heidegger o fundamento da
nossa pesquisa? Teimo em afirmar que, naquilo que a minha racionalidade
míope consegue alcançar, não se trata de mero fetiche com a filosofia alemã.
Não consubstancia em um prostrar-se diante de uma epistemologia
colonizadora do norte. Não! Nem é mera alegoria para dar formosidade a este
trabalho.
Mas, como fugir das sempre contundentes críticas de que Heidegger
seria um nazista e a sua filosofia seria despreocupada com o fundo moral e
encontra-se manchada pelo sangue dos milhões de judeus mortos durante o
Terceiro Reich? Além de inúmeros fatos de conhecimento público – como a
filiação ao partido nazista e a assunção ao cargo de Reitor da Universidade de
Freiburg durante o Regime Hitlerista -, a recente publicação dos “Cadernos
Negros”, editado por Peter Trawny, traz diversas anotações do filósofo alemão
que permitem sim a condução a um entendimento de que ele comungava com
preceitos antissemitas.
Contudo, isso não reforça senão a sua condição de ser-jogado. O
antissemitismo nas décadas de 1920 e 1930 era elemento presente na
sociedade europeia e fazia parte da cotidianidade de parcela significativa da
população. Por mais que muitas das críticas girem em torno do não pedido
98
público de desculpas por parte de Heidegger após o fim da Segunda Guerra, é
preciso reforçar que ele nunca defendeu a exterminação dos judeus nem
tampouco os famigerados campos de concentração141.
Mas e o silêncio? Parafraseando Luther King, aquele que se cala
diante ao horror não assombra a humanidade assim como aquele que atentara
contra o Outro? Eichmann e sua condição de burocrata a serviço de Hitler não
é, como bem sintetizou Arendt, o resumo da banalidade do mal? Sim. Sem
dúvida que sim! Concordamos ser repulsivo o seu alinhamento àquela
ideologia que trouxe tanto terror a humanidade, mas não foi esse o traço
marcante da sua forma de pensar. Não foi o antissemitismo que norteou os
seus escritos, mas a sua genial percepção sobre os fenômenos no mundo.
Posso até discordar com toda veemência da sua “com-pre-ensão” acerca dos
judeus e do seu agir que decepcionou os seus mais próximos amigos142, mas
não posso condená-lo ao esquecimento, nem fugir da sempre instigante tarefa
de desvelar a sua filosofia.
É o desvelar dessa filosofia que permeia a resposta sobre o porquê
de Heidegger. Um porque que apresenta a ideia que não é a linguagem que
carrega a ambiguidade, a falta de clareza ou a multiplicidade significativa. A
linguagem, enquanto ek-sistencial humano, traz a ambiguidade presente na
com-pre-ensão do homem sobre o mundo. É, pois, o homem que carrega tal
ambiguidade na sua existência e não a linguagem. Buscamos, assim, em Ser e
Tempo143 a clareira compreensiva que desestrutura toda a pretensão de
certeza por meio de uma racionalidade pura. A pretensão que há uma
141 Conforme anota Safransky (2005, pg.303 ) “Heidegger um anti-semita? Não no sentido do sistema ideológico insano dos nacional-socialistas. Pois chama a atenção o fato de que nem nas conferências, nem nos textos filosóficos, nem nos discursos e panfletos políticos se encontrem comentários anti-semitas e racistas. [...] O nacional–socialismo de Heidegger é decisionista. Não é a origem mas a determinação que lhe serve como padrão. Na sua terminologia significa: o ser humano não deve ser julgado pelo estar-jogado (Geworfenheit), mas pelo seu projeto (Entwurf). Nessa medida, Heidegger podia até ajudar colegas judeus afligidos, se reconhecesse seu trabalho.” 142 Como a própria Hanna Arendt, com quem supostamente teria tido um affair e o seu mestre, Edmund Husserl que, em carta a Dietrich Mahnke, afirma que o ingresso de Heidegger no partido nazista seria “o fim dessa amizade de almas presumidamente filosófica” (SAFRANSKY, 2005, pg. 303). 143 Escolhemos abordar apenas Ser e Tempo, com algumas pitadas de “A caminho da linguagem” e outros ensaios de Heidegger. Não há a pretensão de apresentar a metamorfose do pensamento heideggeriano tardio, mas apenas abordar algumas reflexões que se desvelam como fundamentais para a virada científica aqui pretendida.
99
linguagem lógica perfeita racionalmente cognoscível a priori por nossa mente e
que está livre de toda e qualquer ambiguidade. A pretensão que é possível
separar aquilo que somos da nossa compreensão. Para tanto, a nossa
caminhada segue para a analítica existencial e a fenomenologia de Heidegger
firmada em Ser e Tempo144.
Ser e Tempo é uma obra que tem em seu perquirir o resgate a um
tema objeto de reflexão desde os gregos, a questão do sentido do ser. Em
suas primeiras anotações, Heidegger (2002) registra que o estudo sobre o ser
dera fôlego às investigações filosóficas de Platão e Aristóteles, mas emudeceu-
se desde então. O esquecimento dessa temática percorreu por todas as
escolas de pensamento – ao menos até Hegel -, que preferiram a renovação
do velho, não trazendo nenhuma nova consideração relevante sobre a temática
do ser. Preferiu-se ver o ser como algo dado, pertencente ao inexorável, àquilo
cujo conceito é ínsito a si mesmo.
Heidegger acredita que o esquecimento do ser na filosofia ocidental
se deu por três razões basilares. O conceito de “ser” é universal. O “ser” não
consegue se classificar dentro de um particular e, ao mesmo tempo, aplica-se a
todo ele. O “ser” está na ponta da concepção de universalidade, sendo que “a
universalidade do ser transcende toda a universalidade genérica”145
(Heidegger, 2002, pg.28). Todo ente tem em si a apresentação de um ser, o
que traz a inexorável condição de universal transcendente a ideia do ser.
O filósofo alemão, contudo, alerta que essa condição universal não
aponta para uma definibilidade clara, isto é, para um conceito acessível. Ao
revés, o “ser” é um conceito indefinível, uma vez que não lhe é apropriável um
ente. O “ser” não apresenta uma entificação que possa lhe apresentar como
“é”, que lhe espelha uma essência. O “ser” não se define por um “é”, pois a
universalidade que lhe caracteriza ao mesmo tempo lhe impede a definição.
Nesse sentido que Heidegger vai dizer que a indefinibilidade do “ser” impede a
sua abordagem como na ontologia clássica, ou seja, a partir de um ente. Com
isso, a questão do ser deve ser encarada a partir do sentido do ser.
144 No original, “Sein und Zeit” 145 Heidegger, 2002, pg.28.
100
Ainda, o conceito de “ser” seria evidente. O não resgate a questões
filosóficas ligadas a noção do “ser” decorreria de uma imediata correlação que
estamos acostumados a fazer na construção significativa do ente. Expressões
como o “céu é azul” ou “eu sou feliz” carregam uma pretensão de claridade
conceitual comum que se revela não instigante à investigação científica.
Parece tão palpável e tão lógica a compreensão do “ser” que, em
verdade, apenas vela a incompreensão do “ser”, uma vez que, como anota
Heidegger, “um enigma já está sempre inserido a priori em todo ater-se e ser
para o ente, como ente.” A evidência, contudo, é sempre problemática, pois
esconde a reflexão daquilo que está para além do sensitivo, aquilo que
costumeiramente não percebemos. É preciso, pois, mudar a lente para
enxergar para além do evidente.
Antes de adentrar a questão do “ser”, Heidegger entende que é
necessária uma (re)visitação a sua estrutura formal. A busca pelo sentido do
“ser” é sempre um questionamento, uma procura pelo conhecer do ente como
ele é. O sentido do ser é um caminhar pela procura incessante do seu ente, por
um perguntar constante. Nessa perspectiva, ele apresenta que o questionar é
sempre um questionar sobre algo, uma pergunta que se direciona sobre algo,
sobre o que aquilo “é”.
Esse movimento interrogativo possui, portanto, um questionado
(das Gefragte), que é o “aquilo” sobre o qual se busca o sentido do “ser”. A
condição determinante do ente como ente, de como o ente é compreendido.
Não se fala, porém, de um questionado como ente, mas como “ser”, pois o ente
não é determinável senão como ser. O questionado é um modo de “de-
monstração” do ente, um como ele se “a-presenta”. Por outro lado, há ainda o
interrogado (das Befragte), que seria a quem se direciona o questionamento.
Uma investigação, um perquirir, um questionar é sempre dirigido a alguém. “O
interrogado na questão do ser é o próprio ente”. É uma interrogação sobre o
seu ser. Ainda há na questão do ser o perguntado (das Erfragte), que seria a
meta investigativa, aquilo que se pergunta sobre alguma coisa. O perguntado é
o próprio sentido do “ser”.146
146 “O questionado da questão do ser elaborada é o ser, o que determina o ente, como o ente já é sempre compreendido, em qualquer discussão que seja. O ser dos entes não “é” em si
101
CRUZ (2011) chama a atenção para o deslocamento proposicional
na filosofia heideggeriana147, que passa a ser apresentada a partir de um locus
interrogativo. Enquanto na filosofia clássica haveria uma noção de “como
apofântico”, isto é, a enunciação se dá a partir de uma estrutura predicativa
na qual são extraíveis os valores de verdade, para Heidegger a proposição
seria apresentada em um “como hermenêutico”, ou seja, como uma
capacidade de compreensão proposicional.
Assim, enquanto no “como apofântico” a proposição se mostra
declarativa, como, por exemplo, “o martelo é pesado”, sendo apresentada uma
ousia do ente martelo - que seria a condição de ser pesado -, “o como
hermenêutico” apresenta a proposição a partir de uma composição
interrogativa, “o martelo é pesado?”, que apresenta uma circunvisão, uma
“com-pre-ensão” a partir de um horizonte factual. Nessa proposição nós
teríamos o elemento do questionado (martelo), do perguntado (que seria a
condição de ser pesado) e do interrogado, que seria o ente capaz de
questionar sobre a si próprio e sobre os demais entes.
O interrogado, enquanto ente que se questiona sobre si mesmo,
para chegar ao sentido do ser, deve ter como acessível o seu ente antes
mesmo de ser. É um “morder do rabo de cachorro” que não pode ser
compreendido senão como movimento, como uma possibilidade de acesso ao
ente por meio do sentido do ser que já é (e só é) no seu sendo.148149
mesmo um outro ente. O primeiro passo filosófico na compreensão do problema do ser consiste em μυθον τινα δινγεισθαι. “Não contar estórias” significa: não determinar a proveniência do ente como um ente, reconduzindo-o a outro ente, como se o ser tivesse o caráter de um ente possível. [...] Em consonância, o perguntado, o sentido do ser, requer também uma conceituação própria que, por sua vez, também se diferencia dos conceitos em que o ente alcança a determinação de seu significado. [...] interrogado na questão do ser é o próprio ente. Este é como interrogado em seu ser.” (HEIDEGGER, 2002, pg. 32). 147 Falar em “filosofia heideggeriana” é deixar de ser fidedigno a algumas reflexões do próprio autor. Isso porque, como afirma Pierre Trotignon, “Heidegger afirmou um dia que não existia filosofia heideggeriana e que não concederia a menor atenção ao que pudesse apresentar sob tal designação.” (TROTIGNON, 1982, pg. 13). 148 “Mas será que uma tal empresa não cai num círculo vicioso evidente? Ter que determinar primeiro o ente em seu ser e, nessa base, querer colocar a questão do ser, não será isso andar em círculo? [...] não há nenhum círculo vicioso no questionamento da questão. O ente pode vir a ser determinado em seu ser sem que, para isso, seja necessário já dispor de um conceito explícito sobre o sentido do ser. [...] Na questão sobre o sentido do ser não há “círculo vicioso e sim uma curiosa “repercussão ou percussão prévia” do questionado (o ser) sobre o próprio questionar, enquanto modo de ser de um ente determinado.” (HEIDEGGER, 2002, pg. 33/34) 149 “Quanto ao interrogado, a questão do ser exige que se conquiste e assegure previamente um modo adequado de acesso ao ente. Chamamos de “ente” muitas coisas e em sentidos
102
Dentre os entes, apenas um existe, ou melhor, ek-siste150. Apenas
um ente possui uma “de-finição” ontológica, que seria a capacidade de
interrogar sobre o sentido do ser do ente a partir da sua própria existência.
Apenas este ente possui a capacidade de abertura e manifestação do seu ser.
A este ente Heidegger denominou de “pre-sença”151. A “pre-sença” é o modo
ser do ente “homem”, que seria o primeiro interrogado na filosofia
heideggeriana. Apenas a este ente é dada a existência como modo de ser, o
que lhe dá a condição de ente capaz de questionar sobre o sentido do ser. A
“pre-sença” não está-aí como um simplesmente dado, mas, ao contrário,
consegue se relacionar com o seu próprio ser a partir do seu modo de ser. O
ser da “pre-sença” é um sendo, um “seer”, que se “a-presenta” como uma
possibilidade, ao mesmo tempo em que se “a-presenta” como uma
diversos. Ente é tudo do que falamos, do que entendemos, com que nos comportamos dessa ou daquela maneira, ente é também o que e como nós mesmos somos. Ser está naquilo que é e como é, na realidade, no ser simplesmente dado (Vohandenheit), no teor e no recurso, no valor e na validade, na pre-sença, no “há”.” (HEIDEGGER, 2002, pg. 33/34) 150 “Sistere, ser; ek, para fora. Enquanto substantivo de uma oração, o ser entrevisto na luz da articulação, do acontecer e seu verbo. O cuidadoso trabalho de ver o verbo ser de o substantivo ser. Terá sido à toa que Heidegger insistentemente trouxe à tona o dizer da língua grega, posto que nenhuma outra língua tivesse um poder tão grande em seu dizer, como tiveram os gregos com as declinações e articulações de seu verbo einai?”(BRASIL, 2010, pg. 99) 151 Aqui vale as considerações que fizemos em obra anterior (CASTRO e CRUZ, 2015) acerca da tradução de Dasein para pre-sença. “A tradução de a obra Ser e Tempo utiliza a expressão “pre-sença” como tradução do Dasein. Entretanto, vale a consideração de Nunes (2010), que assevera que “trata-se de um equívoco da tradução, que apenas transladou o termo Da-sein a partir da sua etimologia, conflitando com a semântica proposta por Heidegger. “Por isso, não é o homem Dadeiende, mas Dasein: a abertura, o aí da existência fáctica, que vai tanto do homem para o ser quanto do ser para o homem, está enfeixada Semânticamente do Da de Dasein, relação que se perde no etimologismo praticado pela tradução brasileira de Ser e Tempo, que seria de exemplar competência não fosse o hamletiano prejuízo desse único defeito – by one defect – que o fez traduzir o mesmo termo Dasein por pré-sença, sem perceber que, na leitura, a etimologia não vigora sobre a semântica e que, nesse ato de leitura, a palavra deixa de ser neutra (das Dasein), funcionando a presença como Anwesende ou como présence, assim escrito, certa vez, em francês, por Heidegger, de acordo o que se pode ler no Beiträge, da terceira fase. “No sentido empregado pela primeira vez essencialmente em Sein und Zeit, este termo não se traduz, quer dizer, ele contradiz o ponto de vista do pensamento e do modo de expressão da história do Ocidente até agora: Da Sein. No sentido literal significa, por exemplo: a cadeira esta aí; o tio esta aí. Chegou e está presente: daí présence (sic). Da-sein significa propriamente um “ente”, mas não no modo de ser no sentido dito acima...” Apesar da arguta leitura de Nunes, acreditamos que o termo “presença” constitui uma boa tradução no conceito benjaminiano. Presença. Presente. Pre-sente. Pre-(s)ente. Movimento do Ser do ente. A terminologia não carrega a estaticidade substantiva do seer humano, mas um movimento constante, motivo que nos permite o atrevimento em continuar a utilizar a expressão traduzida “pre-sença””
103
necessidade. A “pre-sença” é uma manifestação do ser como um ser-aí152,
Dasein.153
Como anota CASANOVA (2010), por mais que Heidegger designe
como Dasein o ser do homem, não se pode fazer a leitura como se
estivéssemos diante de um conceito simples em que se traz o termo ser-aí
como sinônimo de homem. Não estamos diante de uma sofisticação gramatical
apenas. Há uma transformação no modo de ser do homem, que não se
confunde com o ser dos demais entes. O ser-aí evidencia a capacidade de
reflexão sobre o seu modo de ser. Sobre o ser-aí não cai um conceito rígido,
uma quididade que possa lhe conceituar como ele é. O modo de ser do ser-aí é
a existência, que lhe permite compreender a si mesmo.
Dizer que a existência é o que “de-fine” o ser-aí não é lhe atribuir
uma essencialidade154. A existência do Dasein se caracteriza como um modo
de ser possível, não como uma essência155. Isso porque o ser-aí é uma
possibilidade de ser estritamente relacionada com seu ser. A relação do ser-aí
152 Ser-aí e pre-sença são traduções válidas para a expressão Dasein. Recordando da crítica apontada por NUNES (2010) sobre a tradução de Dasein como pre-sença (ver as nossas considerações supra), compreendemos que a expressão ser-aí revela a condição de um ente que não está-aí, que não possui uma fixação, ao contrário, se a-presenta sempre como uma possibilidade, como um vir-a-ser. Assim, mesmo nos reservando o direito de usar ambas as expressões, tentará daqui em diante prestigiar a expressão “ser-aí”, por possuir uma semântica que contrasta com a noção do está-aí, do ontologicamente definido e estatizado. 153 “A pre-sença não é apenas um ente que ocorre entre outros entes. Ao contrário, do ponto de vista ôntico, ela se distingue pelo privilégio de, em seu ser, isto é, sendo, estar em jogo seu próprio ser. Mas também pertence a essa constituição de ser da pre-sença a característica de, em seu ser, isto é, sendo, estabelecer uma relação de ser com seu próprio ser. Isso significa, explicitamente e de alguma maneira, que a pre-sença se compreende em seu ser, isto é, sendo. É próprio deste ente que seu ser se lhe abra e manifeste com e por meio de seu próprio ser, isto é, sendo. A compreensão do ser é em si mesma uma determinação do ser da pre-sença. O privilégio ôntico que distingue a pre-sença está em ser ela ontológica.” (HEIDEGGER, 2002, pg. 38). 154 “A “essência” da pre-sença está em sua existência. As características que se podem extrair deste ente não são, portanto, “propriedades” simplesmente dadas de um ente simplesmente dado que possui esta ou aquela “configuração”. As características constitutivas da pre-sença são sempre modos possíveis de ser e somente isso. Toda modalidade de ser deste ente é primordialmente ser. Por isso o termo “pre-sença”, reservado para designá-lo, não exprime a sua quididade como mesa, casa, árvore, mas sim o ser.” (HEIDEGGER, 2002, pg. 78) 155 “A “essência” deste ente está em ter de ser. A quididade (essentia) deste ente, na medida em que se possa falar dela, há de ser concebida a partir de seu ser (existência). Neste propósito, é tarefa ontológica mostrar que, se escolhemos a palavra existência para designar o ser deste ente, esta não tem nem pode ter o significado ontológico do termo tradicional existentia. Para a ontologia tradicional, existentia designa o mesmo que ser simplesmente dado, modo de ser que não pertence à essência do ente dotado do caráter de pre-sença. Evita-se uma confusão usando a expressão interpretativa ser simplesmente dado para designar existência e reservando-se existência como determinação ontológica exclusiva da pre-sença” (HEIDEGGER, 2002, pg. 77)
104
na sua construção ontológica é sempre consigo mesmo, trata-se de uma
possibilidade constitutiva que é estritamente única. A existência de um ser-aí
não se dá da mesma forma que outro, pois o modo e a abertura do ser serão
inexoravelmente diferentes em cada ser-aí em razão do “pre” da “pre-sença”.
Ressalte-se que não estamos a afirmar que a possibilidade de ser
do Dasein se dá como uma mônada, invólucra em si mesma, mas que cada
ser-aí é uma existência que não se repete e não se dá como um ser
simplesmente dado. Não é possível extrair um modo de ser que seja
identificador do ser-aí, pois a possibilidade de ser só existe na própria
existência. Cada existência se dá como um modo de ser que se abre como
uma possibilidade em seu existir. A existência só se dá no existir, isto é, na
condição do ser-aí-jogado.
O ser-jogado deve ser visto como ponto de partida para a
compreensão da existência enquanto modo de ser do Dasein. A existência é
anterior a própria compreensão e se antecipa a qualquer racionalidade. Se a
racionalidade do Dasein se dá a partir de um mundo circundante, é preciso
compreender que a sua existência se dá na condição de ser-jogado.
CRUZ (2011) nos recorda que não pedimos para nascer,
simplesmente nascemos. Fomos jogados em um mundo no qual não
escolhemos. Pertencemos a uma família, a uma comunidade, a uma cidade, a
um país sem mesmo ter tido a oportunidade de opinar. Por que nascemos
brasileiros? Por que falamos português?
A historicidade que carregamos, sem dúvida alguma, é o ponto de
partida para toda e qualquer compreensão que temos. O local, a família, a
cultura onde nascemos caracteriza o nosso horizonte hermenêutico. O homem
cordial narrado por Sérgio Buarque de Holanda é um ótimo exemplo para
apontar essa historicidade. O nosso agir e o nosso pensar sempre se dá a
partir da nossa existência.
Como diz GADAMER (2009), nós somos jogados no aí que
caracteriza o nosso existir. A existência não se dá a partir de uma racionalidade
pura, mas de um horizonte caracterizado pela nossa condição de ser-jogado.
Não há uma escolha no existir, o que nos permite afirmar que a compreensão
não está dissociada das pré-compreensões que nos circundam. A existência
105
orienta a própria racionalidade, que estará diante de uma perspectiva, sob um
olhar que se firma a partir do horizonte em que estamos imersos.
A “com-pre-ensão” é um movimento que se dá na existência e que
está envolvida pelos preconceitos pertencentes ao existir do Dasein. O neutro e
o imparcial estão no campo da impossibilidade do ser-aí, que é, já no seu
existir, um ser com apreensões, o que nos permite dizer que “o horizonte
hermenêutico impede qualquer suposição de que seja possível tornar a mente
uma tabula rasa” (CRUZ, 2011, pg. 121). A nossa mente já possui escritos
inscritos na nossa existência.
Essa percepção filosófica fica em evidência quando estamos diante
de um caso que, às vezes sem muito “por que”, prende a nossa atenção. No
mundo jurídico, que exige a imparcialidade judicial para o alcance da
famigerada segurança jurídica, é inevitável que alguns casos chamem mais a
nossa atenção que outros. Um juiz que nasceu em berço imigrante
seguramente apreciará uma questão relacionada aos seus patrícios com uma
racionalidade que lhe é própria. No meio administrativo, um Conselheiro de
Tribunal de Contas que tenha atuado junto a uma prefeitura não visualizará
uma prestação anual de contas da mesma forma que um técnico do tribunal.
Isso não significa que eles estejam sendo levianos ou mesmo que estejam
corrompidos. Por vezes, a proximidade com a causa nos faz até mais severos.
Acreditamos que temos que ser imparciais e, para tanto, acabamos por pender
a balança para o lado oposto daquilo que achamos tratar-se de parcialidade. A
nossa racionalidade é míope e é constituída pelas pré-compreensões que
estão presentes na nossa existência, na nossa condição de ser-lançado.
Como afirmamos acima, o modo de ser do Dasein, isto é, aquilo que
lhe “de-fine” como um existente é a sua possibilidade de vir a ser. A existência,
enquanto marco ontológico do ser-aí, se “a-presenta” como um “pro-jeto”, como
uma possibilidade de vir a ser. Possibilidade esta que se dá apenas na minha
existência e que não se confunde com uma categorização de um ser
simplesmente dado. A possibilidade de vi-a-ser do meu “seer” é sempre minha
106
e se dá na minha existência, isto é, na relação de compreensão de mim
mesmo.156
Vale ressaltar que essa possibilidade de vir-a-ser não constitui uma
propriedade do Dasein de modo a lhe condicionar ontologicamente, devendo
ser desvelado a partir do modo indeterminado do existir. A existência se mostra
como uma possibilidade que é própria do Dasein na compreensão de si, não
alocando tal possibilidade como uma categoria, ou seja, como elemento
essencial de um ser simplesmente dado. Ao dizer que a compreensão é
sempre minha, quer se afirmar que não há um acesso determinado a minha
forma de compreender, que é só minha e que se dá a partir do meu horizonte
firmado na minha existência157.
A existência não pode, alerta-se, ser encarada como uma potência
que se transforma em ato, ou seja, como uma possibilidade do ente se
concretizar na sua essência. Quando dizemos que a possibilidade de ser do
Dasein constitui o seu modo de ser, pretendemos revelar a sua condição de vir-
a-ser. No vir-a-ser, contudo, há uma exigência de ter-que-ser. A existência se
dá no movimento fenomenológico do existir, o que implica dizer que ela
somente se dá no existir. O ser-aí não existe para depois escolher as suas
possibilidades de vir-a-ser, mas já existe como concretização de uma
possibilidade de ser enquanto ser-jogado.158
156 “A pre-sença se constitui pelo caráter de ser minha segundo este ou aquele modo de ser. De alguma maneira, sempre já se decidiu de que modo a pre-sença é sempre minha. O ente, em cujo ser, isto é, sendo, está em jogo o próprio ser, relaciona-se e comporta-se com o seu ser, como a sua possibilidade mais própria. A pre-sença é como sempre sua possibilidade. Ela não “tem” a possibilidade apenas como propriedade simplesmente dada. E é porque a pre-sença é sempre essencialmente a sua possibilidade que ela pode, em seu ser, isto é, sendo, “escolher-se”, ganhar-se ou perder-se ou ainda nunca ganhar-se ou só ganhar-se “aparentemente”. A pre-sença só pode perder-se ou ainda não se ter ganhado porque, segundo seu modo de ser, ela é uma possibilidade própria, ou seja, é chamada a apropriar-se de si mesma”. (HEIDEGGER, 2002, pg. 78) 157 “A pre-sença sempre se compreende a si mesma a partir de sua existência, de uma possibilidade própria de ser ou não ser ela mesma. Essas possibilidades são ou escolhidas pela própria pre-sença ou um meio em que ela caiu ou já sempre nasceu e cresceu. No modo de assumir-se ou perder-se, a existência só se decide a partir de cada pre-sença em si mesma.” (HEIDEGGER, 2002, pg. 39) 158 “O ser-aí humano sempre se concretiza como o poder-ser que ele é a partir de possibilidades fáticas que lhe são abertas por seu mundo. Ele não se apresenta primeiramente como um puro poder-ser, para em seguida se decidir por uma possibilidade entre outras disponíveis no mundo que é o seu. Ao contrário, a sua própria dinâmica existencial traz consigo a supressão de uma tal suposição, na medida em que o inscreve imediatamente em possibilidades existenciárias específicas.” (CASANOVA, 2010, pg. 92).
107
Por mais que não haja uma determinação do Dasein, que é uma in-
finitude de pro-jetos, ele não pode fugir da sua condição de existente e de
existir. Não há existência fora do plano do existir. Nas palavras do filósofo
alemão, “A questão da existência sempre só pode ser esclarecida pelo próprio
existir” (HEIDEGGER, 2002, pg.39). A essa compreensão a partir de si própria,
Heidegger dará o nome de compreensão existenciária. A compreensão
existenciária se dá no plano ôntico e prescinde da clarificação da estrutura
ontológica da existência. Em um movimento coordenado à compreensão
existenciária está à compreensão da existencialidade, que se dá no primado
ontológico da existência. Na existencialidade ocorre a analítica das estruturas
existenciais da existência, isto é, aquelas que estariam em uma espécie de
plano pré-ontológico. 159
Como bem expresso por ARAÚJO (2013), a ontologia fundamental
de Heidegger se firma na busca pelo sentido do ser daquele ente capaz da
compreensão de si. O único ser capaz de caminhar a procura pelo sentido do
seu ser é o ser do homem, isto é, o ser-aí. Apenas o Dasein existe, o que lhe
dá a condição de ser privilegiado, possuidor de um primado ôntico e ontológico.
À ontologia fundamental, portanto, é dada a missão da analítica existencial, isto
é, o desvelamento da estrutura permissiva da compreensão da existencialidade
do Dasein.
CASANOVA (2010) expressa que esse movimento de compreensão
do ser-aí, no qual a existência se manifesta de forma dinâmica no existir, seria
um movimento ek-stático que é confundível com o que Heidegger chamou de
159 “[...] uma vez que a existência do Dasein é fundamentalmente a interpretação de si, nosso pensamento simplesmente não pode se encaminhar de volta para uma caracterização das condições básicas daquela existência. O Dasein tem também de compreender essas condições em termos dos modos como ele efetivamente os vive em sua própria vida. Um existencial filosófico (categoria da existência) nasce da existência do Dasein, tal como ele vive sua própria interpretação existenciária de si. Por outro lado, esses existenciais descrevem a possibilidade mesma da vida existenciária do Dasein, sendo, assim, “prévias” a qualquer viver particular dessa vida. [...] o que é convocado na compreensão filosófica é um movimento entre o existencial e o existenciário, um movimento para frente e para trás entre as condições da existência possível e os modos efetivos como o Dasein existe. Um “existencial” é um tipo especial de categoria, um conceito básico que pode descrever as possibilidades básicas de existência do Dasein. Eles não significam nada se não são vividos. [...] A diferença entre o existencial e o existenciário aplica-se à nossa própria existência. Não se trata de uma diferença entre dois diferentes tipos de entes. Antes, trata-se de uma diferença entre o que poderíamos chamar de momentos distintos de autointerpretação do Dasein. O Dasein pode pensar a si mesmo em termos dessa diferença, mas ele também mantém essa diferença na compreensão de tudo.” (GREAVES, 2012, pg. 40)
108
movimento descerrador (er-schliesst). Ao mesmo tempo em que o Dasein
existe em um mundo que o circunda, a sua existência abre o horizonte no qual
os entes que estão-aí irão se manifestar.
A dinamicidade da existência empreendida por Heidegger é
extremamente importante, pois impede o condicionamento do ser-aí a um
antropologismo. A cotidianidade mediana que caracteriza o Dasein, como
literalmente expressa o filósofo alemão, não coincide com a primitividade que
poderia ser apreendida por noções antropológicas. O Dasein não é um simples
produto da sociedade a que pertence, uma vez que o mundo que o circunda
também se revela como abertura de manifestação do Dasein. O mundo só
existe a partir do Dasein que, do mesmo modo, já existe em um mundo. Daí,
Heidegger a-presenta o ser-aí como um ser-no-mundo (in der Welt sein).160
A condição de existente do Dasein remete necessariamente a
relação do ser-aí com o mundo que o circunda e que constitui a sua
facticidade. Não é possível compreender a existencialidade do Dasein fora da
sua facticidade. O ser-aí é desde sempre um ser-em, que se constitui a partir
de uma realidade. A minha existência se deu junto-ao meu mundo. Essa
facticidade constitui o que eu sou e como eu enxergo o mundo. A capacidade
de compreender determinados sons linguísticos é consequência dos elementos
que me circundam.
Não há um afastamento racional capaz de encontrar um espelho de
como as coisas são objetivamente. O mundo não é um exterior ao Dasein que
é acessível pela sua racionalidade, mas sim um constituinte da sua própria
existência. O mundo integra o meu olhar inicial sobre os demais entes. O toque
do mundo na minha existência não passa despercebido pela minha
racionalidade, pois há reciprocidade no tocar. O tocar do mundo na minha
160 “Assim, o que temos aqui pode ser descrito da seguinte forma: 1) o ser-aí existe; 2) a existência traz consigo um movimento de descerramento e liberação do mundo como campo de manifestação dos entes; 3) o surgimento mesmo desse horizonte torna possível a manifestação dos entes que, em seguida, vêm ao encontro do ser-aí e requisitam dele um modo de comportar-se em relação a eles; 4) o ser-aí assume, então, um determinado modo de comportamento e, assumindo um tal modo de comportamento, se determina como o que é. Dizer isto, por sua vez, significa afirmar que o ser-aí é um ser-no-mundo, um ente que funda todos os seus comportamentos em relação aos entes em geral em um comportamento originário em relação ao mundo. A questão fundamental passa a ser, por conseguinte, determinar como se constitui afinal tal comportamento.” (CASANOVA, 2010, pg. 92)
109
existência se dá no meu toque ao mundo, num tocar ambivalente que identifica
a unidade do mundo com o ser-aí.
Dizer que o Dasein é um “ser-em” não significa alocá-lo como
pertencente a um mundo que o constitui, mas estabelecer uma relação de
inseparabilidade, na qual o ser e o mundo não podem ser enxergados de forma
dissociada. É um achado fenomenal que acontece na existência. O ser-aí se dá
em-um-mundo que lhe integra.
O ser-em identifica uma unidade do ser com o mundo e não uma
relação de “dentro de”. O Dasein não é prisioneiro do mundo e nem está dentro
dele, como a água está dentro do copo ou uma meia, dentro de uma gaveta.
Heidegger explica que a noção de “dentro de” traz a identidade espacial de
seres simplesmente dados que estão determinados espacialmente a outros
seres simplesmente dados. Como um corpo que se encontra em um
determinado lugar. “A água está dentro do copo” apresenta uma noção de estar
ali, de algo que está ontologicamente determinado pela condição de estar
dentro de outro dado. 161
O ser-em, ao contrário, não estabelece uma relação de
espacialidade entre os entes, mas um viés de estrutura existencial do ser,
apontando para a ideia de que o mundo é um acontecimento fenomenal que
integra a estrutura ontológica do ser do Dasein. Nas palavras do autor alemão,
o ser-em “é o ente que eu sempre sou”. O modo de ser possível do Dasein é
sempre um ser-em, que traduz a imanência fenomenal do ser-aí com o mundo
que o circunda. O ser-no-mundo caracteriza-se, assim, como um ek-sistencial
do Dasein.
ARAÚJO (2013) esposa que a analítica existencial do Dasein como
um ser-no-mundo busca superar a relação sujeito-objeto presente no
pensamento da filosofia da consciência. Naquela, o sujeito está no interior do
mundo e, em busca da compreensão, vai ao exterior e traz o objeto para dentro
do mundo a fim de dissecá-lo e compreender a sua essência. A exterioridade
161 “O que diz ser em? De saída, completamos a expressão, dizendo: ser “em um mundo” e nos vemos tentados a compreender o ser-em como um estar “dentro de...” Com esta última expressão, designamos o modo de ser de um ente que está num outro, como a água está no copo, a roupa está no armário. Com este “dentro” indicamos a relação recíproca de ser de dois entes extensos “dentro” do espaço, no tocante a seu lugar neste mesmo espaço “em” um lugar.” (HEIDEGGER, 2002, pg. 91)
110
do mundo, contudo, coloca o sujeito como um ente voador, como aquele que
flutua no vazio em busca da significação. Pelo compreender objetivo é
compreender fora da realidade, é como se pudéssemos parar o tempo e o
espaço e dissecar um objeto a fim de conhecê-lo como ele é. Mas, como flutuar
para além do espaço e da temporalidade que constitui a realidade do sujeito?
O retirar da realidade é deixá-lo na flutuação compreensiva, em um lugar onde
não há chão, não há tempo, não há nada, nem mesmo o que pode ser
compreendido.162
O mundo do Dasein, por sua vez, se dá na sua abertura existencial,
de modo que já sou no mundo que é meu. O ser-no-mundo é a condição
existencial de um ser-aí que se abre ao mundo que se dá nessa abertura. O
Dasein, enquanto fenômeno originário do ser-no-mundo revela a
impossibilidade de um mundo exterior, pois o mundo já é desde sempre junto
ao ser. Não há sujeito descolado do mundo, de modo que não posso sair do
mundo que me “a-presenta” como eu sou e que só é na minha abertura
existencial. O ser-no-mundo é um existencial do Dasein e não uma
propriedade que condiciona o seu “seer”. Nos seus in-finitos “pro-jetos” de “vir-
a-ser”, o ser-aí será sempre um ser-no-mundo.163
162 “Mesmo que se lograsse determinar ontológica e primariamente o ser-em a partir do ser-no-mundo que conhece, isso implicaria, como primeira tarefa indispensável, uma caracterização fenomenal do conhecimento enquanto ser-em e ser-para o mundo. Ao se refletir sobre esta relação de ser, dá-se, logo de início, um ente, chamado natureza, como aquilo que primeiro se conhece. Nesse ente não encontra conhecimento. Quando “se dá” conhecimento, este pertence unicamente ao ente que conhece. Entretanto, o conhecimento também não é simplesmente dado nesse ente, a coisa homem. De todo modo, não pode ser constatado externamente como, por exemplo, propriedades de nosso corpo. Na medida, porém, em que não lhe pertence como uma qualidade externa, o conhecimento deve estar “dentro”. Assim, quanto mais univocamente se admite, em princípio, que o conhecimento está propriamente “dentro” e que nada possui do modo de ser de um ente físico e psíquico, tanto mais se acredita proceder sem pressuposições, na questão sobre a essência do conhecimento e sobre o esclarecimento da relação entre sujeito e objeto. Pois, só então, é que poderá surgir o problema ou a seguinte questão: Como este sujeito que conhece sai de sua “esfera” interna e chega a uma “outra” esfera, a “externa”? Como o conhecimento pode ter um objeto? Como se deve pensar o objeto em si mesmo de modo que o sujeito chegue por fim a conhecê-lo sem precisar arriscar o salto numa outra esfera?” 163 “De acordo com o que foi dito, o ser-no-mundo não é uma propriedade que a pre-sença às vezes apresenta e ourtras não, como se pudesse ser igualmente com ela ou sem ela. O homem não “é” no sentido de ser e, além disso, ter uma relação com o mundo, o qual por vezes lhe viesse a ser acrescentado. A pre-sença nunca é “primeiro” um ente, por assim dizer, livre de ser-em que, algumas vezes, tem gana de assumir uma “relação” com o mundo. Esse assumir relações com o mundo só é possível porque a pre-sença, sendo-no-mundo, é como é. Tal constituição de ser não surge do fato de, além dos entes dotados do caráter da pre-sença, ainda se darem e depararem com ela outros entes, os simplesmente dados. Esses outros
111
Do mesmo modo, não podemos compreender o mundo como uma
subjetividade do Dasein, pois, se assim fosse, perderíamos de vista a
capacidade de compartilhamento desse mundo, de modo que estaríamos
subjugados a viver de forma autista. O ser-no-mundo não significa um
isolamento epistemológico em que o mundo só existe para mim, como um ente
encapsulado em uma realidade aparente que só há em mim. O ser-no-mundo é
também um ser-com, ou seja, que se relaciona com os outros entes, sejam
eles existentes (Mitsein) ou subsistentes. Daí Heidegger chama de
mundanidade no mundo em geral o “conceito ontológico” que “significa a
estrutura de um momento constitutivo do ser-no-mundo.”164 Em outras
palavras, a mundanidade é o caminho que nos conduz ao fenômeno mundo.165
É a condição de pertencente a um mundo que serve como horizonte para a
compreensão dos entes que estão no mundo e do próprio mundo.
Mas, afinal, se o mundo não pode ser concebido como um ente
paralelo ao Dasein, como que se dá a manifestação do mundo? O mundo é
uma estrutura ôntica ou ontológica do Dasein? Heidegger, afirmando a
polissemia do termo “mundo”, expressa que a palavra pode conter ao menos
as seguintes significações:
“1. Mundo é usado como um conceito ôntico, significando, assim, a totalidade dos entes que se podem simplesmente dar dentro do mundo. 2. Mundo funciona como termo ontológico e significa o ser dos entes mencionados no item 1. E “mundo” pode denominar a região que sempre abarca uma multiplicidade de entes, como ocorre, por exemplo, na expressão “mundo,” usada pelos matemáticos, que designa a região dos objetos possíveis da matemática. 3. Mundo pode ser novamente entendido em sentido ôntico. Nesse caso, é o contexto “em que” de fato uma pre-sença “vive” como pre-sença, e não o ente que a pre-sençai em sua essência não é, mas que pode vir ao seu encontro dentro do mundo. Mundo possui aqui um significado pré-ontologicamente existenciário. Deste sentido, resultam diversas possibilidades: mundo ora indica o mundo público do nós, ora o mundo circundante mais próximo (doméstico) e próprio. 4. Por fim, mundo designa o conceito existencial-ontológico da mundanidade. “A própria mundanidade pode modificar-se e
entes só podem deparar-se “com” a pre-sença na medida em que conseguem mostrar-se, por si mesmos, dentro de um mundo.” (HEIDEGGER, 2002, pg. 95/96) 164 HEIDEGGER, 2002, pg. 104. 165 “Do ponto de vista ontológico, “mundo” não é a determinação de um ente que a pre-sença em sua essência não é. “Mundo” é um caráter da própria pre-sença. Isto não exclui o fato de que o caminho de investigação do fenômeno “mundo” deva seguir os entes intramundanos e seu ser.” (HEIDEGGER, 2002, pg. 105)
112
transformar-se, cada vez no conjunto de escrituras de “mundos” particulares, embora inclua em si o a priori da mundanidade em geral.” (HEIDEGGER, 2002, pg. 105).
A mundanidade se mostra como o marco de abertura para
compreensão do mundo em que o Dasein vive o mundo que o circunda. O
mundo circundante é o que está mais próximo do Dasein, àquele em os entes
intramundanos vão ao seu encontro. Não se referencia aqui a uma noção de
pura espacialidade, pois mundo não é o lugar onde o Dasein existe, e sim a
totalidade dos entes que o circundam. O sol, a lua, as estrelas, os minutos e os
segundos também compõem esse mundo circundante. Neste ponto, Heidegger
expressamente assinala para uma superação do modelo cartesiano, onde a
espacialidade tomou conta das reflexões sobre o mundo ao apontar um
distanciamento da natureza e da alma.
O raiar de um sol e a sensação de revigoramento, de reposição de
energia, é manifestação do Dasein no mundo circundante. As percepções que
temos e os sentimentos causados por algo que não é sensorialmente tocável
não significam que não pertencem a nossa existência. Tudo isso faz parte do
que somos e tudo isso nos toca, de modo a nos exigir a sua compreensão.
Todos estes entes vêm de encontro ao Dasein na ocupação que ele faz do
mundo. A significação dada a estes entes não se dá, contudo, em um processo
de acepção imediata, como se somente a partir daquele encontro eu revelasse
a significação daquele ente. Nossa ocupação já se faz com uma pré-
referencialidade, com um horizonte de possibilidades de instrumentalização
daquele ente.
Isso significa que o encontro dos entes com o Dasein não se dá
como um ente simplesmente dado (Vorhandenheit), mas como um ser-a-mão,
como um instrumento que está-aí para o Dasein (Zuhandenheit). Os entes
intramundanos se apresentam na cotidianidade do Dasein como um
instrumento que se “presta a”. Uma caneta que está sobre a mesa não tem
uma essência de caneta, ou seja, não há um conjunto de elementos que a
definem como um ente que é, como algo que é como é. O sentido do ser da
caneta é dado pelo homem, que pode utilizá-la como instrumento para escrever
uma carta, fazer a lição de casa ou até mesmo servir de marcador da página
113
de um livro. A caneta tem um sentido único e próprio ao Dasein que escapa de
qualquer pretensão de universalidade. Sua afecção implica a particularidade
necessária do sentido. Se a caneta é um presente paterno ou um agrado do
cônjuge; se a caneta pertenceu a um ente querido que já se foi; se a mesma
remate a um momento marcante em sua vida, a caneta se entifica como algo
infinitamente particular no mundo do Dasein. O modo como a caneta se “a-
presenta” ao Dasein é desvelado por este. Não há uma significação própria dos
entes como entes, mas uma instrumentalização que se dá na mundanidade do
Dasein.
O uso dos entes como instrumentos não se dá de forma intuitiva.
Não olho para uma caneta que está no mundo e tenho a intuição de utilizá-la
para a escrita. Não! Na ocupação do Dasein ao mundo já há um horizonte
referencial sobre a instrumentalidade dos entes intramundanos, que se
apresentam em in-finitos modos de ser. O Dasein não intui como utilizar o ente,
mas desvela uma das suas múltiplas possibilidades que já estão presentes na
sua mundanidade. A minha existência já carrega o horizonte compreensivo do
mundo que me circunda, o que me conduz a uma retirada do véu que esconde
uma das várias fatibilidades que os entes têm para mim. Uso a caneta como
um instrumento para a escrita, porque na minha mundanidade em geral já
estava inscrita a possibilidade de tal uso.166
A essência destes entes, então, é “de-finida” pelo uso e pelo “como”
elas se prestam ao Dasein, e não por um conjunto categorial de elementos.167
Não há possibilidade de dizer que a caneta é um instrumento para a escrita,
mas que ela, em uma determinada situação, prestou-se a escrita realizada por
166 “Para o Dasein, ser-no-mundo equivale a ter originariamente intimidade com uma totalidade de significados (VATTIMO, 1996, p. 33). A partir dessa noção, conclui-se que não há um mundo prévio de objetos, ao qual posteriormente o Dasein se relacionaria, atribuindo-lhe significados e funções; ao contrário, as coisas se mostram já no âmbito de uma totalidade de significados possíveis de que aquele já dispõe. Como afirma Ernildo Stein, “antes que o Dasein teorize ou exponha no discurso o mundo, ele já possui uma compreensão de si, dos utensílios com que lida” (2005, p. 17). Assim, pode-se afirmar que o mundo somente nos é dado, na medida em que já o temos! Só compreendemos o mundo, a partir de uma pré-compreensão que dele já possuímos, tal é a noção de círculo hermenêutico.” (CUNHA, 2010, pg. 120) 167 “A obra que se dá ao encontro, sobretudo no modo de lidar da ocupação – que está sendo trabalhada – deixa e faz vir também ao encontro, na possibilidade de emprego constitutiva de sua essência, para que (Wozu) ela foi produzida. Por sua vez, a obra encomendada só é, com base em seu uso e na totalidade referencial dos entes, descoberta no uso.” (HEIDEGGER, 2002, pg. 112)
114
alguém. Essa utilização, ao mesmo tempo em que desvela uma funcionalidade
da caneta, vela outra, que poderia ser a de redigir uma peça processual ou até
mesmo ser utilizada como “suporte”168 para cabelo, como as mulheres
correntemente fazem.
Da mesma forma devem ser encaradas as normas jurídicas, que não
possuem uma essência a ser conhecida pelo sujeito por meio da pura
racionalidade. As normas vêm ao encontro do Dasein no mundo. O direito é
desvelado pelo sujeito em uma abertura fenomenal de ser-no-mundo. Não há
um deslocamento do jurídico fora da realidade, pois ele não existe fora desta.
O direito só existe pelo homem, que é o único ente capaz de interpelar sobre o
seu sentido, sobre o sentido do ser do direito. Não há interpretação jurídica fora
do fenômeno, exterior a relação com o Dasein. Não há direito que seja desde
sempre uma significação simplesmente dada, pois esta será desvelada pelo
uso do direito.
Com isso, queremos afirmar a impossibilidade de se alcançar uma
significação objetiva da norma, seja pelos critérios da voluntas legis, voluntas
legislatoris ou pelo método subsuntivo exegético. Isso porque a significação
normativa somente se dá no encontro ao Dasein na sua faticidade. Em outras
palavras, não é alcançável o sentido da norma distante do caso concreto. Da
mesma forma, a tipicidade jamais poderá ser cerrada, pois, enquanto
instrumento presente em uma obra no mundo do Dasein, ela possui modos de
ser que se desvelam apenas na cotidianidade, no qual ganha a sua
significação sempre provisória. Relevante trazer as considerações feitas por
CUNHA (2010), que com muita felicidade expôs que
As críticas são plenamente aplicáveis ao Direito, que se manifestando nas práticas dos tribunais, insiste em apoiar-se na lei como entidade metafísica, muitas vezes contraposta ao mundo da vida, que é então negado e, com isso, é o próprio acontecer do Direito que resta velado, impedindo o seu acontecer como instrumento de efetivação do projeto de vida boa que a sociedade persegue. Insistimos que essa problemática resiste ao tempo, sobretudo mostrando-se em arquétipos epistemológicos que sucumbem frente à análise fenomenológica. Da busca de objetividade do conhecimento resulta o desvio de enxergar o mundo como exterioridade e o objeto que o integra como entidade cujo ser é independente do sujeito que intenta
168 A limitação com-pre-ensiva do meu ser, que não a-presenta o modo de ser que faz o uso da caneta como tal instrumento, impede que eu encontre uma palavra mais adequada.
115
conhecê-lo. Tal a relação sujeito-objeto, ainda tão festejada no Direito, que insiste em uma relação objetiva e com os eventos, a fim de angariar espaço entre as ciências. Esquecem os juristas que sequer essas (refiro-me às pujantes ciências da natureza) sustentam-se no ideal de certeza e objetividade que hoje são acriticamente perseguidos pelo Direito. (CUNHA, 2010, pgs 124/125)
Evidentemente que a significação normativa, assim como a que é
dada aos demais entes, não se dá de forma intuitiva. A mundanidade constitui
um existencial ontológico, o que implica dizer que não é possível que o Dasein
fuja na sua racionalidade de uma estrutura de mundo onde ele fora jogado
como ser-aí. O ser–aí já é desde sempre um ser em-um-mundo que é
compartilhado, ou seja, que é meu, mas que não funciona como uma cápsula
da existência. A existência do Dasein que busca a significação da norma
jurídica se dá em uma mundanidade em geral, na qual já há pré-(re)ferenciais
que servem como pano de fundo para a significação. A mundanidade se perfaz
por significâncias espirradas na existência e que não permitem a fuga desse
horizonte. Nunca é demais reprisar que este horizonte hermenêutico não
significa uma determinação prévia, um condicionamento para se dar a
significação desta ou daquela forma, mas uma possibilidade que está desde
sempre presente.
Outro ponto que vale acrescentar é que a significação dada nunca
será de forma solipsista. O ser-no-mundo, frise-se, não significa uma vivência
isolada a partir da qual se escolhe viver conjuntamente com os outros. Além
dos entes intramundanos, o Outro existente também vem ao encontro do
Dasein. O Dasein é sempre um ser-junto-ao-outro, ainda que não esteja
materialmente junto169. Por mais que o ser-com apresente uma significação de
posteridade, no sentido de que primeiro o ser se mostra na existência para, em
seguida, abrir-se aos outros existentes, não se pode enxergar o ser-com de
forma diversa da de um existencial ontológico. A abertura existencial do Dasein
se dá na relação com o outro existente, o Mitsein. Como expressa Heidegger,
“essa co-pre-sença dos outros só se abre para uma pre-sença e assim também
169 “Mesmo o estar-só da pre-sença é ser-com no mundo. Somente num ser-com e para um ser-com é que o outro pode faltar. O estar só é um modo deficiente de ser-com e sua possibilidade é a prova disso. Por outro lado, o fato de estar só não é eliminado porque “junto” a mim ocorre um outro exemplar de homem ou dez outros.” (HEIDEGGER, 2002, pg. 172)
116
para os co-pre-sentes, visto que a pre-sença é em si mesma, essencialmente,
ser-com”170.
Mas, quem é o Outro? O filósofo alemão deixa claro que o Mitsein
não corresponde à totalidade de outros existentes que não eu, mas aqueles
que vêm ao meu encontro no meu mundo. Somente essa proximidade fática
com o Mitsein é que poderia apresentar a capacidade de manifestação
fenomenal do Dasein. O Outro é aquele que está existencialmente ligado a
mim, ainda que este fio condutor seja de elevada extensão. É preciso que haja
faticidade para o compartilhamento do mundo, pois não posso compartilhar o
mundo com o ser do ente que não está na minha cotidianidade.
Abrimos um parêntese para afirmar a dificuldade em se manter essa
perspectiva na atualidade, pois as aberturas da globalização tornam a
cotidianidade do Dasein de uma extensão quase que sem limites. Em tempos
de Google, Facebook e Whatsapp, como dizer que aqueles que tocam a minha
existência não são a totalidade dos demais existentes?171
O Mitsein, como vimos não é tratado como os demais entes
intramundanos subsistentes. A ele não me é dada uma instrumentalidade, ou
seja, ele não me vem como um ser-a-mão. Não posso tratar o Mitsein como
algo que me tem uma serventia, que uso como uso uma caneta. O Outro é com
quem me concretizo na existência. Com esta perspectiva, o autor parece tentar
romper com a racionalidade moderna que intenta a dominação do homem pelo
homem, coisificando o homem e tornando-o como algo a ser dissecado e
compreendido pelo sujeito. A racionalidade moderna, que toma conta das
reflexões jurídicas até hoje, vê o homem como objeto a ser utilizado como
instrumento pelo homem. Definitivamente não é esse o projeto heideggeriano,
que coloca o Outro como estrutura existencial do Dasein, que não pode ser
compreendido senão como um ser-com. O Outro não é instrumento!
Esse esforço heideggeriano, contudo, parece não ter convencido
Emanuel Levinás. O filósofo lituano assevera que o projeto de Heidegger, por
não conter um fundo ético/humanista, simboliza uma totalização do Outro na
170 (HEIDEGGER, 2002, pg. 172) 171 Talvez por isso Heidegger tenha revisado a sua noção de mundo para Terra em seus escritos tardios. Por uma questão de corte epistemológico, preferimos não avançar em tal perspectiva.
117
constituição do Eu. A relação do ser-com-o-outro evidencia uma primazia do Eu
sobre o Outro, que totalizo e o insiro na minha existência como algo que me
pertence, que é desde sempre meu. Consigo alcançar a existência do Outro e
tomá-la para mim. Frase tão comum entre os apaixonados, o “eu não vivo sem
você” reflete bem essa lógica de apropriação do Outro, em que a preocupação
é sempre comigo, com o meu bem estar, relegando a segundo plano aquele
que está junto.
Por mais que Heidegger tenha retirado o Outro da condição de
instrumento, não foi capaz de romper com uma lógica egocêntrica em que o
Outro está em condição servil. Tenho o Outro como àquele que satisfaz a
minha volúpia e a minha solidão, em que o Outro é sempre aquilo que preciso
e quero ter. Temos amigos porque eles nos confortam. Temos amantes porque
nosso corpo anseia pelo calor do Outro. A relação com o Outro seria um evento
totalizante de apropriação do Mitsein na formação da minha subjetividade.172
Em uma proposta filosófica de resgate do homem, Levinás busca
inverter essa lógica totalitária e inserir uma ética da alteridade como elemento
primeiro na formação do Dasein.173 Para tanto, ele apresenta a evasão do ser
em direção ao Outro. Evasão que se dá como transcendência pré-existencial,
como um movimento metafísico em que o ser se joga em direção ao Outro,
sem nunca conseguir alcançá-lo. A evasão é um sair de si anterior a qualquer
significação ou compreensão que o ser possa ter. Movimento de anterioridade
172 “A crítica levinasiana ao projeto filosófico heideggeriano põe em questão, unicamente, a anulação do Outro. O outro heideggeriano é adequado e identificado ao si-mesmo através de uma operação do saber. Ainda que a ontologia fosse fundamental, seria injusta, porque o eu exerce um poder de se afirmar e de perseverar como princípio em detrimento do outro.” (MELO, 2003, pg. 31) 173 “Louca aspiração ao invisível quando uma experiência pungente do humano ensina, no século XX, que os pensamentos dos homens são conduzidos pelas necessidades, as quais explicam sociedade e história; que a fome e o medo podem vencer toda a resistência humana e toda a liberdade. Não se trata de duvidar da miséria humana – do domínio que as coisas e os maus exercem sobre o homem – da animalidade. Mas ser homem é saber que é assim. A liberdade consiste em saber que a liberdade está em perigo. Mas saber ou ter consciência é ter tempo para evitar e prevenir o momento da inumanidade. É o adiamento perpétuo da hora da traição – ínfima diferença entre o homem e o não-homem – que supõe o desinteresse da bondade, o desejo do absolutamente Outro ou a nobreza, a dimensão da metafísica.” (LEVINÁS, 1988, pg. 23)
118
a todo o Dito. É o movimento que apresenta à metafísica como precedente da
ontologia.174
Esse movimento de evasão do ser inverte a posição heideggeriana,
colocando o ser como responsável pelo Outro, transformando a relação
existencial em um ser-para-o-outro, na qual a minha resposta ao Outro será
sempre um eis-me-aqui. A responsabilidade175 é a filosofia primeira na ética da
alteridade de Levinás. Esperamos ter a oportunidade para um melhor debate
em obra futura, mas agora é hora de retornar a estrada do pensamento
heideggeriano e continuar no desvelar da estrutura existencial do Dasein.
Retomando o projeto do ser, é preciso compreendê-lo como tal,
como o pre da “pre-sença”.176 “É preciso interpretar o modo de ser em que
esse ente é cotidianamente o “pre” da pre-sença”177.Para tanto, passamos a
174 “A relação do Mesmo e do Outro – ou metafísica – processa-se originalmente como discurso em que o Mesmo, recolhido na sua ipseidade de “eu” – de ente particular e autóctone – sai de si. Uma relação, cujos termos não formam uma totalidade, só pode, pois produzir-se na economia geral do ser como indo de Mim para o Outro, como frente a frente, como desenhando uma distância em profundidade – a do discurso, da bondade, do Desejo – irredutível à estabelecida pela actividade sintética do entendimento entre os termos diversos – diferentes uns em relação aos outros – que se oferecem à sua operação sinóptica” (LEVINÁS, 1988, pg. 27) 175 “A responsabilidade é o que caracteriza a existência subjetiva do sujeito e o que possibilitaria um discurso ético que não se encontra num circuito fechado da relação entre dois amantes (eu-tu), a qual é pensada a partir da realização das suas necessidades. O terceiro desestabiliza, chega como presença que rompe e violenta a vontade, provoca um exame de consciência: todos somos culpados; todos somos responsáveis pelo outro. O terceiro é anterior à lei: as leis que regem a prática da justiça são baseadas na igualdade entre os indivíduos; os direitos dos indivíduos se fundam na dinâmica do respeito entre iguais; a justiça que pensa a sociedade moderna propõe a paz pela limitação, isto é, a retórica da justiça é fruto da defecção, de uma relação marcada pela indiferença, pela indiferença á totalidade. O terceiro intervém no âmbito dessa indiferença e se interpõe para além daquilo que a sociedade moderna chama de moral, para além da lógica das ciências, dos arquétipos psicanalíticos, racionalistas, céticos e utopias sociais. O terceiro é o falante inefável, operante responsável, comunicante inigualável. O terceiro revela que aquilo que chamamos de justiça está a serviço da totalidade: aquilo que levinás chama de injustiça da ação do terceiro.” (MELO, 2003, p. 87) 176 “O que se constitui essencialmente pelo ser-no-mundo é sempre em si mesmo o “pre” da pre-sença. Segundo o significado corrente da palavra, o “pre” da pre-sença remete ao “aqui” e ‘lá”. O “aqui”de um “eu-aqui”sempre se compreende a partir de um “lá” à mão, no sentido de um ser que se dis-tancia e se direciona numa ocupação. A espacialidade existencial da pre-sença que lhe determina o “lugar” já está fundada no ser-no-mundo. O lá é a determinação daquilo que vem ao encontro dentro do mundo. O aqui e lá são apenas possíveis no “pre” da “pre-sença”, isto é, quando se dá um ente que, enquanto serdo “pre” da pre-sença , rasgou espacialidade. Em seu ser mais próprio, este ente traz o caráter de não fechamento. A expressão “pre” refere-se a essa abertura essencial. Através dela, esse ente (pre-sença) está junto ao pre-sente do mundo e se faz pre-sença para si mesmo.” (HEIDEGGER, 2002, pg. 186) 177 HEIDEGGER, 2002, pg. 187.
119
caminhar em direção a constituição existencial do “pre”, e iniciamos pela
abordagem sobre a disposição afetiva (Befindlichkeit)178.
Para compreendermos a disposição afetiva enquanto existencial do
Dasein, é preciso retornar ao ser lançado. Como já mencionamos, o ser é
desde sempre um ser lançado no aí de um mundo que é a sua morada, em que
há um constante toque de significância da sua existência. Como ser lançado
tenho no “pre” da minha pre-sença um conjunto de afeccionalidades que me
pertencem desde sempre.
O ser-aí, no encontro que tem com o mundo, já possui um conjunto
de tonalidades afetivas que pertencem ao “seer” do ser. As mais diversas
situações do mundo circundante me mostram a afloração de uma afetividade
que faz parte de mim. A disposição afetiva é a abertura do Dasein ao mundo
que o circunda, pois só consigo tocar o mundo com a mesma sensitividade
com que sou tocado. Qual a sensação de uma criança ao nascer? Por mais
que ela nunca tenha tido uma experiência como aquela, o encontro com o
mundo lhe gera um conjunto de sensações. Algo que não é percebido pela sua
racionalidade, mas compreendido pelas sensações que teve. Há uma
instantaneidade no sentir e no compreender.
Talvez a neurociência de Leonard Midlinow ou Miguel Nicolelis seja
capaz de dizer qual a parte do cérebro humano que foi tocado naquela
experiência, mas duvido muito que seja capaz de identificar a sua
individualidade. Dizer que alguém sente medo, frio ou qualquer outro
sentimento não simboliza o dimensionamento individual daquela experiência,
daquela vivência que é só minha, infinitamente minha!
Retomando a ideia da disposição, o que Heidegger parece assentar
é que a sensibilidade do homem está no plano ôntico-ontológico, pois se
mostra como um círculo constitutivo em que o mundo já é desde sempre
ocupado a partir de uma disposição afetiva, mas que o encontro com os
demais entes no mundo também permitem ao ser-aí ser tocado pelo mundo e
alterar a sua mundanidade. Em outras palavras, nenhum agir ou compreender
178 “O que indicamos ontologicamente com o termo disposição é, onticamente, o mais conhecido e o mais cotidiano, a saber, o humor, o estado de humor. Antes de qualquer psicologia dos humores, ainda bastante primitiva, trata-se de ver este fenômeno como um existencial fundamental e delimitar sua estrutura.” (HEIDEGGER, 2002, pg. 188)
120
no mundo sai ileso, de forma que não possa ser tocado pelas sensações que
estão no aí do meu ser-aí e, reciprocamente, tocar esse aí de forma que novas
experiências nunca sejam as mesmas. Interessante é a colocação de CUNHA
(2010).
Arriscamos dizer que a disposição afetiva se encontra no âmbito da própria possibilitação compreensiva da teia remissional. Tomemos um exemplo. Eu transito pela calçada e me deparo com um cão enorme solto. O sentido a que este evento me remete não é necessariamente o mesmo do dono do animal, uma vez que ele não está aberto à possibilidade de ser tocado por qualquer ameaça envolvendo o cão. A ameaça não seria assim algo intrínseco ao animal (embora comumente esteja ele associado ao ameaçante). A disposição afetiva, do ponto de vista ontológico, não se identifica tampouco com algum estado psicológico; ao contrário, esses somente são possíveis diante de uma abertura para que eclodam. Assim, o medo de algo, somente poderá instaurar-se enquanto um estado psicológico, quando estiver aberto ao caráter ameaçante do ameaçador, somente enquanto a “medrosidade” o permitir. (CUNHA, 2010, 178)
Como bem acentuado pelo autor, a disponibilidade afetiva não pode
ser confundida como estado psicológico, pois a disposição é co-originária a
qualquer racionalidade, que já se dá apoiada por alguma sensação humana.
Trata-se de um modo originário do Dasein que se abre para si. O Dasein não é
uma tabula rasa de sentimentos que é preenchido nas vivências do mundo
circundante. Não! A sua percepção sobre esse mundo já se dá por um olhar
sensorial. O primeiro toque no mundo já um toque em que me sinto tocado de
alguma forma. Já há algo que me faz sentir esse toque. Toda e qualquer
percepção que tenho do mundo já se faz com alguma sensação.
O meu encontro com o mundo não se dá no racional a priori, mas
com as afeições pertencentes do meu “seer”. Não conheço o mundo para
depois senti-lo, já o conheço sentindo. Não consigo acessar o mundo sem o
“pre” da minha pre-sença, sem as pre-compreensões que estão desde sempre
em mim. Com isso rasga-se de vez toda pretensão de objetividade, pois não
consigo compreender nada de forma puramente racional, nada que retire de
mim a condição de ser que sente.
Com efeito, não é possível que o Direito continue a acreditar na
fábula de que o intérprete é um sujeito que deve ser imparcial diante de um
fato, que deve analisá-lo a partir da sua pura racionalidade. Objetivamente!
121
“Seja racional, não seja passional”, já dizia vovó! Talvez a fala da Dona Celeste
(minha avó) sirva como aconchego, como acolhimento ao neto pelas
decepções ocorridas na vida, mas não como uma forma de encarar e de
conceber o Direito.
Não é palatável a crença de que um julgador aplicará a lei sem
qualquer interferência valorativa. Como diria meu amigo Leonardo Wykrota
“neutro é detergente, neutro não é gente”. O que perquire de um magistrado
não é a neutralidade, mas sim a ausência de interesse particular direto no
julgamento, ou seja, um direcionamento consciente do julgar. Os valores
compõem a racionalidade do homem, que julga com os seus valores, que
visualiza a realidade com os óculos que lhe são seus, só seus.
Recordo-me bem de quando, ainda na graduação, tive como
obrigação extracurricular a visita ao fórum, mais precisamente nas varas de
tóxicos nada aconchegantes. No corredor pude ouvir um burburinho de que
naquela vara o julgamento não era justo, porque a juíza não podia ser
imparcial, já que perdera um filho para o tráfico. Hoje, com as reflexões
presentes nesse trabalho, posso dizer que a visão de justiça enquanto
objetividade no julgamento seria de alcance “im-possível”. Pode-se
eventualmente até dizer que não fora justo, mas não pela ausência de
objetividade, pois esse é um elemento que jamais estará presente na vida
humana. Um juiz que conviveu com o tráfico e outro que não, por mais que não
tenham perdido qualquer parente, não terão a mesma visão sobre aquela
realidade. Não digo que deveria ser assim, que o juiz não deve ser imparcial,
digo que é assim, que não há qualquer possibilidade de um julgamento ser feito
sem a interferência sensorial das partes, pois a disposição afetiva é um
existencial ontológico do Dasein que não pode ser cindido da sua
racionalidade.
A estrutura existencial em que se firma o ser do “pre” da “pre-sença”,
ainda, é sustentada pela compreensão, que se mostra como modo originário do
ser umbilicalmente ligado a disposição179, de modo que o compreender já
179 “Enquanto existenciais disposição e compreensão caracterizam a abertura originária do ser-no-mundo. No modo de ser do humor, a pre-sença vê possibilidades a partir das quais ela é. Na abertura projetiva destas possibilidades, ela já está sempre sintonizada com o humor. O
122
possui a disposição afetiva que, para ser, precisa ser compreendida. A “com-
pre-ensão” é vista por Heidegger como um existencial fundamental na estrutura
do ser da “pre-sença”, apontando-a como abertura inicial do Dasein ao mundo.
O Dasein se abre ao mundo na sua compreensão do mundo, que também se
abre ao Dasein como uma possibilidade compreensiva.
CRUZ (2011) “a-presenta” o caminho da compreensão como algo
que não está na dependência exclusiva do homem. Diferentemente do que
rascunhou a racionalidade moderna, o homem não possui em si a capacidade
de conhecer as coisas como elas são, mas sim conhecê-las como elas vêm ao
seu encontro e a partir de pre-com-pre-ensões que existem no ser do “pre” da
pre-sença. A com-pre-ensão é um evento fenomenológico no qual o homem é
participante, mas não detém a capacidade de dominá-lo por uma racionalidade
pura. “um processo no qual o homem se propõe estar junto, mas que não
tiraniza pela ideia da técnica”180181.
É preciso visualizar que a compreensão originária, aquela existencial
do “pre” da pre-sença, se desvela como um acontecimento fenomenal que se
dá no ser-em do ser-no-mundo, ou seja, a nossa mundanidade enquanto
possibilidade de modo de ser já está envolvida por um conjunto de
compreensões. Quando se diz que esse modo originário da compreensão se
dá no ser do “pre” da pre-sença pretende-se apontar para a ocorrência de um
fenômeno que precede kairologicamente a constituição do ente. O
compreender como abertura de si para si já é compreendida no fenômeno de
abertura. O fenômeno do ser-no-mundo, como abertura de possibilidades de
ser, já é um movimento de compreensão. Heidegger, com propriedade, diz que
“o ente que existe tem a visão de “si”, somente na medida em que ele se faz,
projeto do poder-ser mais próprio está entregue ao fato de ser lançado no pre da pre-sença” (HEIDEGGER, 2002, .pg. 204) 180 CRUZ, 2011, pg. 129. 181 “A compreensão deixa de ser entendida como ato da razão, mera função de meu intelecto, ação de meu ego, elemento de minha consciência e assume a condição de uma dádiva que o Dasein tem para se constituir como tal. A compreensão não existe para que o homem domine a natureza, submeta-a a seu intelecto, como Tomás de Aquino e Descartes supunham. A compreensão compõe o homem como uma abertura que o Dasein tem para se apropriar do mundo ser também apropriado” (CRUZ, 2011, pg. 129)
123
de modo igualmente originário, transparente em seu ser junto ao mundo, em
seu ser-com os outros, momentos constitutivos de sua existência ”182.
A compreensão é um olhar originário da pre-sença em seu projeto,
uma compreensão de si na abertura das possibilidades de vir-a-ser. Nesse
sentido, o filósofo alemão dirá que a compreensão no caráter existencial do
projeto constitui a visão (Sicht) da pre-sença. A visão é o modo em que se dá o
desvelamento do ente que vem ao meu encontro, de modo que eu tenho
acesso a um de seus in-finitos modos de ser183. A visão é um modo originário
da pre-sença que já caracteriza a circunvisão da ocupação184.
Essa primeira compreensão de si, como “captação compreensiva de
toda abertura do ser-no-mundo através dos momentos essenciais de sua
constituição”185, Heidegger irá denominar de clarividência186 (Durchsichtigkeit).
A clarividência se mostra como uma compreensão de si, como uma abertura
para si no momento inicial da constituição do Dasein. Dubois (2004), com
especial felicidade, aborda que:
“O segundo existencial que estrutura a abertura do Dasein é a compreensão. Nós já utilizamos com frequência este verbo: o Dasein se compreende, ele compreende seu mundo... o que isso significa? O Dasein, como dissemos, é em função de si. Este ser em função de si
182 HEIDEGGER, 2002, pg. 202 183 “Deve-se resguardar o termo “visão” de mal-entendidos. Ele corresponde à iluminação, o que caracterizamos como abertura do pre. “Ver” significa não só não perceber com os olhos do corpo como também não apreender, de modo puro e com os olhos do espírito, algo simplesmente dado em seu ser simplesmente dado. Para o significado existencial de visão, a única coisa a ser levada em conta é a particularidade do ver em que o ente a ele acessível se deixa encontrar descoberto em si mesmo. É o que todo “sentido” realiza em seu âmbito genuíno de descoberta. A tradição da filosofia, porém, orienta-se, desde o princípio, primariamente pelo “ver” enquanto modo de acesso para o ente e para o ser. A fim de manter um nexo com a tradição, pode-se formalizar a visão e o ver de modo tão amplo a ponto de se conquistar um termo universal capaz de caracterizar como acesso todo acesso ao ser”. (HEIDEGGER, 2002, pg. 203) 184 HEIDEGGER, 2002, pg. 202 185 HEIDEGGER, 2002, pg. 202. 186 Na versão do livro em português, Márcia Sá Cavalcante Schuback utiliza o termo “transparência”, que seria uma tradução mais literal. A utilização do termo “transparência” parece pretender apontar para uma ausência de escritos significativos na existência no momento da compreensão originária, ou seja, uma primeira significação antes da própria significação, uma significação que se dá no momento constitutivo da existência. Entretanto, o contexto significativo nos conduz a utilização do termo “clarividência”, que nos traz a ideia de uma primeira luz de significação, ainda bem míope, como um primeiro olhar após uma luz ofuscante. Preferimos esse termo, pois o “transparente” pode apontar para uma tabula rasa do Dasein, que não corresponde com o pretendido pelo autor, pois a compreensão como abertura do “pre” já é um modo de ser do Dasein. Mesmo no “pre” a pre-sença já se desvela como algo que pode ser.
124
é a raiz na qual se configura o mundo, o mundo sendo sempre pro-jetado, lançado em vista de mim mesmo, como “meu mundo”. Ser em função de si significa ao mesmo tempo duas coisas: estar aberto para si, conhecer-se em termos de ser-no-mundo (e não se conhecer no retorno reflexivo a si), e ser fim para si mesmo. Este é o sentido da compreensão: o si mesmo aberto em projeto como ser-no-mundo. O compreender não é, portanto, uma capacidade teorética do Dasein (entendimento ou razão), ainda que a origem desta também esteja nele. Trata-se muito antes de uma estrutura de seu ser, de sua existência, como poder ser como abertura para si mesmo como possibilidade. O possível do Dasein, suas possibilidades, por sua vez, não são categorias da modalidade, mas sua existência mesma, sua mais própria “realidade”. [...] Compreender-se quer dizer em princípio mal-compreender-se, estar na caverna, opacidade, cegueira. Ou ainda, a compreensão é sempre modulada: ela é ou imprópria, compreensão de si a partir do que se faz, do que se diz se deve fazer etc., ou é uma compreensão própria de si, abertura verdadeira. Sobre esta última, tendo em vista nosso ponto de partida, nada ainda sabemos, salvo que a compreensão própria de si deverá possuir a forma de uma ruptura com compreensão imprópria, uma certa apropriação própria, pelo Dasein, de seu poder-ser.” (DUBOIS, 2004, P. 36/37)
A compreensão não é uma capacidade lógico-racional do homem de
conhecer as coisas como elas são, mas de enxergá-las como elas se parecem
para mim na minha abertura, com um olhar que é sempre míope, incapaz de
alcançar a totalidade de significações de um ente. Há sempre um ponto cego,
aquilo que não consigo enxergar por detrás da significação que dei/me
deram187 ao ente. Nos seus in-finitos modos de ser, os entes vem ao meu
encontro em um desvelar de uma possibilidade de ser. Compreendo o mundo
não como ele é, mas como ele se dá na minha abertura. Essa compreensão
em que se apropria do compreendido, Heidegger chamará de interpretação. A
interpretação é o desvelar de uma possibilidade de ser captada pela minha
abertura como projeção de ser, ou seja, ao pro-jetar ao mundo, o Dasein o
compreende por meio da abertura de significância que se abriu.
O interpretar não parte do zero, de uma racionalidade que sai
espacialmente do corpo e interpreta algo como ele é como um simplesmente
dado. Interpretar é um relacionar com a compreensão prévia que tenho sobre
algo que vem ao meu encontro como uma possibilidade de ser. Interpreto que
uma caneta me serve para escrita porque na minha abertura compreensiva do
mundo enquanto ser-no-mundo a caneta veio ao meu encontro como a
187 Circularidade! Se já uso o português para entificar, desde já qualquer sentido de qualquer coisa já foi me dado de antemão!
125
possibilidade de ser um instrumento para a escrita, mas isso não significa que
ela é um instrumento para a escrita, pois ela pode vir ao meu encontro como
outra possibilidade de ser, como um abridor de garrafas para quem tiver
habilidade para tanto. A caneta não vem no formato de “o quê”, mas de “como”,
isto é, como ela se a-presenta na minha cotidianidade.
No jogo do Direito, o interpretar não é um conhecer a norma, mas
desvelar o modo de ser que ela vem a mim na minha compreensão. Interpretar
não é aplicá-la como ela é, como se eu apenas mostrasse a sua essência na
hora do decidir. Interpretar é dar ao caso concreto a melhor decisão com base
na instrumentalidade de como a norma vem ao meu encontro. Em outras
palavras, não se trata de dizer que é tipificado como tráfico a venda de
substância ilícita, ainda que para fins medicinais. O caso do “canabidiol” é um
bom exemplo sobre essa perspectiva. Para quem não se recorda o canabidiol,
não obstante fosse uma substância considerada ilícita pela ANVISA, tinha
efeitos terapêuticos consideráveis em pacientes com doenças
neurodegenerativas, como o mal de Parkinson e ELA (esclerose lateral
amiotrófica).
A pergunta é: um médico ou um farmacêutico (para fugir da relação
de proximidade em razão de parentesco) que auxiliem na produção de
canabidiol para fins terapêuticos e que venham a distribuí-lo gratuitamente aos
seus pacientes, encontram-se na mesma situação de um sujeito que vende
maconha para fins alucinógenos? A forma como o tipo penal inscrito no artigo
33 da Lei 11.343/2006 vem ao meu compreender é a mesma? Em ambas as
situações, estamos diante de pessoas que manuseiam substâncias
consideradas ilícitas, mas a forma como esse fato vem a mim não será a
mesma. Os fatos sempre possuem variações não só na ocorrência, mas
também como eles vêm a mim, como a minha abertura compreensiva permite
interpretá-los.
Importante dizer que essa percepção não decorre de uma valoração
subjetiva do Direito. Não estamos a dizer que o intérprete deve analisar de
forma diversa, porque seria mais justo agir assim. Se assim nos colocássemos,
dando uma resposta correta para a situação, cairíamos em contradição com o
que se está a defender. A nossa posição é apenas que o fato não vem ao
126
nosso encontro de forma idêntica, de modo que não é possível uma
interpretação subsuntiva, que pressupõe uma identidade fática. No caso acima,
em uma ou outra hipótese poderíamos ter diversas respostas fundadas nas
mais diversas fundamentações (como factualmente teríamos), e isso não
decorre da incapacidade lógica do intérprete, mas da sua im-possibilidade de
ter a priori qual a decisão correta. A interpretação da norma nunca será isenta
das compreensões prévias que temos do mundo e, portanto, nunca traduzirão
uma verdade científica enquanto certeza jurídica.188 No direito não há certeza,
só pretensão de certeza!
A interpretação não nos conduz ao significado do ente, mas ao seu
sentido. Segundo Heidegger, “sentido é a perspectiva em função da qual se
estrutura o projeto pela posição prévia, visão prévia e concepção prévia. É a
partir dela que algo se torna compreensível como algo”.189 Isso quer dizer que
eu nunca chego ao ente como ele é, mas como ele se a-presenta para mim
como possibilidade. O sentido do ente que vem ao meu encontro se dá na
abertura compreensiva com ele e que permite vê-lo como possibilidade. O
sentido compreendido de algo nunca é sua essência, nunca chego ao ente em
si. Desse modo, compreender o sentido normativo não é transformá-lo em algo
estático, finito, mas sim interpretar a forma como ele vem a mim na abertura
compreensiva em que se manifestam as minhas pre-compreensões.
Heidegger deixa bem claro que esse movimento interpretativo-
compreensivo não se fecha em um círculo, dando uma conotação fechada do
ente que me é a-presentado. Não fico preso em um círculo interpretativo que
condiciona a interpretação, mostrando-me sempre o mesmo sentido, como se
estivéssemos presos em uma dimensão compreensiva. Não! O círculo não
fecha a compreensão e nem se baseia em mera intuição. Devemos visualizar o
círculo da compreensão como uma espiral ou um círculo, como um movimento
188 “A interpretação de algo como algo se funda, essencialmente, numa posição prévia, visão prévia e concepção prévia. A interpretação nunca é apreensão de um dado preliminar, isenta de pressuposições. Se a concreção da interpretação, no sentido da interpretação textual exata, se compraz em se basear nisso que “está” no texto, aquilo que, de imediato, apresenta como estando no texto nada mais é do que a opinião prévia, indiscutida e supostamente evidente, do intérprete. Em todo princípio de interpretação, ela se apresenta como sendo aquilo que a interpretação necessariamente já “põe”, ou seja, que é preliminarmente dado na posição prévia, visão prévia e concepção prévia.” (HEIDEGGER, 2002, pg. 207) 189 HEIDEGGER, 2002, pg. 208.
127
que não cessa e nem se fecha, tornando a compreensão sempre algo
inacabado, sujeita a uma nova interpretação, que também ocasionará uma
nova compreensão.
Mas, ver nesse círculo um vício, buscar caminhos para evitá-lo e também “senti-lo” apenas como imperfeição inevitável, significa um mal-entendido de princípio acerca do que é compreensão. Não se trata de equiparar compreensão e interpretação a um ideal de conhecimento, que determinado em si mesmo não passa de uma degeneração e que, na tarefa devida de aprender o ser simplesmente dado, perdeu-se na incompreensão de sua essência. Para se preencher as condições fundamentais de uma interpretação possível, não se devem desconhecer as suas condições essenciais de realização. O decisivo não é sair do círculo, mas entrar no círculo de modo adequado. Esse círculo da compreensão não é um cerco em que se movimentasse qualquer tipo de conhecimento. Ele exprime a estrutura prévia-existencial, própria da presença. O círculo não deve ser rebaixado a um vitiosum, mesmo que apenas tolerado. Nele se esconde a possibilidade positiva do conhecimento mais originário que, de certo, só pode ser apreendida de modo autêntico se a interpretação tiver compreendido que sua primeira, única e última tarefa são de não guiar, na posição prévia, visão prévia e concepção prévia por conceitos ingênuos e “chutes”. [...] a compreensão, de acordo com seu sentido existencial, é o poder-ser da própria pre-sença, as pressuposições ontológicas do conhecimento histórico ultrapassam, em princípio, a ideia de rigor das ciências mais exatas.190
Até aqui vimos que a disposição e a compreensão são aberturas do
“pre” da pre-sença no seu modo originário de ser, tratando-se de existenciais-
ontológicos. Toda a compreensão já apresenta em si uma carga de afetividade,
estando compreensão e disposição umbilicalmente ligadas. Entretanto, há mais
um existencial a ser considerado. A compreensão se dá de forma estruturada,
articulada em proposições que desvelam o sentido das coisas. Com efeito, o
discurso191 também é visualizado como um existencial originário da pre-sença.
A linguagem permite que a compreensão se forme no existir do Dasein. O
compreender enquanto abertura para si já se mostra estruturada
linguisticamente.
Heidegger (2003) manifesta que a linguagem viabiliza a condição do
ser enquanto aquele que compreende a si próprio, fazendo do homem o único
190 HEIDEGGER, 2002, §32 191 “O fundamento ontológico-existencial da linguagem é o discurso. [...] (n)o discurso se acha a base de toda interpretação e proposição. Chamamos de sentido o que pode ser articulado na interpretação e, por conseguinte, mais originariamente ainda, já no discurso.” (HEIDEGGER, 2002, pg. 219)
128
ser existente. A linguagem permite a articulação do compreender,
possibilitando a abertura do Dasein ao mundo. A linguagem não é referencial
do mundo, não exterioriza uma realidade que fora captada pelo racional, mas
viabiliza o compreender. O compartimentar de percepções presente no
compreender só é possível por causa da linguagem, que aponta a nós mesmos
o que foi compreendido. Sem a linguagem as percepções seriam vazias e
promovidas pelo intuitivo presente na condição animalesca dos entes viventes
que não possuem existência.
A linguagem não é uma propriedade dentre tantas outras do homem,
mas um existencial, aquilo que faz do homem um existente, um ser capaz de
compreender a si próprio e indagar sobre o sentido do ser dos demais entes. O
ser-em, enquanto um ser lançado no mundo, já compreende o mundo e o faz
pela linguagem. Tentamos a todo instante referenciar um objeto com o uso de
um signo linguístico, pois, somente assim, poderemos compreender o sentido
daquele ser. Esse referenciar não é um pós-compreender por meio do qual
utilizamos a linguagem como meio representacional da realidade. Ao contrário,
a linguagem como existencial originário do “pre” da pre-sença, impõe um
movimento fenomenal em que o compreender, a disposição e o discurso estão
presentes nesse movimento que é indissociável.
O discurso também é abertura do ser-com, pois a linguagem é
manifestação comunicacional que se dá com o Outro, com o Mitsein. O
compreender heideggeriano não se dá de forma solipsista, pois a linguagem
enquanto existencial se dá na relação com o outro, na manifestação do Dasein
como ser-junto-ao-outro. Se a linguagem não é espelhamento da realidade,
mas existencial do modo originário do ser que se revela como ser-com, então
podemos afirmar que a compreensão se manifesta linguisticamente na
comunicação com o Outro. Heidegger deixa isso bem claro quando manifesta
que a escuta é uma “possibilidade existencial inerente ao próprio discurso”192.
O discurso não é um comportamento ativo em que o Dasein simplesmente fala.
O falar imprime a condição de ouvinte, de escutar aquilo que está sendo dito. O
discurso apresenta na escuta a passividade linguística-compreensiva do
homem, que compreende na abertura do escutar, do abrir-se para o mundo
192 HEIDEGGER, 2002, pg. 222.
129
que vem ao seu encontro. Não é a toa que, como diz o filósofo, dizemos que
não compreendemos “bem” quando a nossa escuta não foi boa.193
O ouvir como manifestação do discurso originário fica mais em
evidência quando percebemos a nossa incapacidade em escutar algo como é,
isolado da condição de ser-no-mundo. Quando ouvimos um barulho ou um
ruído, o som é aquele que vem a nós, como, por exemplo, o ruído de um carro
ou o ranger de uma carteira. Mesmo que o ouvir se dê como primeiro contato
com o ente, a significação do sentido do ente é alcançada junto ao relacionar
com o ente, na condição de ser-no-mundo. A significação não é dada primeiro,
mas no acontecimento fenomenal em que o ruído vem ao meu encontro no
mundo.194
O discurso ainda pode ser constituído pelo silêncio. Silêncio que
significa se calar quando se tinha o que falar; se calar por opção de se abrir à
escuta, se mostrar como capaz de ouvir. O filósofo alemão diz que o silêncio na
forma de existencial somente é possível no discurso autêntico, pois aquele que
se mostra mudo ou que pouco fala não possui o modo de silenciar. Silencia
àquele que pode falar, mas não o fala. Aquele que foge do falatório, do lugar
onde se fala e nada se discursa, pois não há movimento de compreensão
autêntica, mas só repetição do dito. Há um velho brocardo de que “aquele que
muito fala, nada tem a comunicar”. Talvez seja bem essa ideia trabalhada por
Heidegger, de que discursar é um movimento em torno da compreensão
autêntica, daquela reflexiva e que busca desvelar o sentido dos entes e não
apenas repetir, repetir e repetir.
O silêncio é ensurdecedor e nos permite sentir melhor o fenômeno
da compreensão, do formular o discurso sem uma palavra, apenas
estruturando a compreensão. “Para que falar?”, já dizia o poeta Cazuza. O
193 “A pre-sença escuta porque compreende. Como ser-no-mundo articulado em compreensões com os outros, a pre-sença obedece na escuta à coexistência e a si própria, “pertencente” a essa obediência. O escutar recíproco de um e outro, onde se forma e elabora o ser-com, possui os modos possíveis de seguir, acompanhar e os modos privativos de não ouvir, resistir, defender-se e fazer frente a.” (HEIDEGGER, 2002, pg. 222) 194 “o fato de ouvirmos primeiramente motocicletas e carros constitui um testemunho fenomenal de que a pre-sença, enquanto ser-no-mundo, já sempre se detém junto ao que está à mão dentro do mundo e não junto a “sensações”, cujo turbilhão tivesse o ser primeiro formado para propiciar o trampolim de onde o sujeito pudesse pular para finalmente alcançar o “mundo”. Sendo, em sua essência, compreensiva, a pre-sença está, desde o início, junto ao que ela compreende.” (HEIDEGGER, 2002, pg. 222/223)
130
codinome beija-flor não precisa ser dito, pois no silêncio em que ele é mantido
é que há a compreensão do seu sentido. Dizer, nesse caso, é uma
manifestação do nada, da inautenticidade da compreensão. Deve-se
compreender no silêncio do discurso.
Esse silêncio, enquanto modo do discurso parece convidativo.
Parece nos convidar ao silêncio. Há muito mais a dizer. Mas sempre há. Nunca
conseguimos esgotar uma significação, pois ela reflete apenas a clarividência
presente no nosso compreender que é sempre míope, incapaz de enxergar a
totalidade de significâncias.
Mas ainda há um sopro de voz, suficiente apenas para responder
aos reclames do leitor. Por que interromper a caminhada? Ainda há várias
migalhas deixadas no texto e que não foram elucidadas. Há muito ainda a
abordar sobre o pensamento heideggeriano195. Por que parou? Parou por quê?
Um primeiro respiro altivo me fez lembrar Lesley Gore e sua célebre música
tocada centenas de vezes na Sessão da Tarde “it is my party and I will cry if I
want to”. O rosto do Outro que me interpela e me recorda da minha
insignificância e da minha responsabilidade ética me repudia exigindo outra
resposta. Afinal, o Telekid já me ensinara nas nostálgicas tardes de uma
distante (mas nem tão distante) infância que “porque sim não é resposta!”. O
Outro me exige mais, exige-me uma resposta sincera.
O parar aqui é uma escolha epistemológica196, capaz de me auxiliar
nos constructos propostos nesse trabalho de que não é possível alcançar a
objetividade normativa presente na ideia de tipicidade. O corte epistemológico
feito nos dá o suporte necessário para responder à pergunta formulada no
início deste capítulo. Por que Heidegger?
Porque ele nos mostra um caminho em que se desvela o homem
não como um ser puramente racional que tudo controla e tudo domina pela sua
capacidade cognitiva que se separa das sentimentalidades e percepções do
195 Para ser sincero, até prefiro o II Heidegger ou o Heidegger tardio. Preferia abordar a estética heideggeriana e o seu giro da linguagem para a poesia. Preferia abordar a temporalidade do Dasein. Preferia aprofundar na existência autêntica e inautêntica. Abordar o Impessoal. Sinceramente, preferia continuar. Preferia... 196 Sim! Escolha epistemológica. Não há uma razão pura que me diga qual o motivo exato do parar. Foi uma escolha entre caminhos possíveis. Poderia continuar, mas precisei fazer o corte aqui. Ao mesmo tempo a escolha não é aleatória ou intuitiva, por isso epistemológica, porque se deu na busca sincera por um melhor caminho científico.
131
mundo. A cognição humana está repleta da sua humanidade, da sua
incapacidade de se separar do mundo e de vê-lo objetivamente, pois o mundo
se dá no evento fenomenológico de constituição do Dasein. A compreensão é
sempre a partir de um mundo em que somos jogados, não há pureza.
Compreender é um desvelar que se dá no prévio, naquilo que somos antes
mesmo de ser. Compreender é abrir-se com todo o pre da pre-sença, com as
pre-compreensões pertencentes ao nosso ser.
Assim, o homem neutro, com a capacidade hercúlea de trazer justiça
aplicando a lei na sua essência, como foi idealizado no pensamento jurídico
contemporâneo, não existe. Ou mesmo aquele que deve estar preocupado
apenas com a segurança jurídica, que deve julgar para dar previsibilidade aos
jurisdicionados por meio de decisões idênticas em casos idênticos, não foge do
padecimento da realidade.
A lei não é um algo que nos é simplesmente dado, em que eu
percebo a sua essência, mas um instrumento que tem o seu sentido desvelado
no encontro com a minha existência. Isso significa que a significação normativa
é dada por cada ser humano com o olhar que lhe é próprio. Não há
univocidade significativa.
Do mesmo modo não há casos idênticos, pois cada circunstância
vem a mim em uma percepção compreensiva diferente. O meu olhar nunca é o
mesmo, pois o “seer” do meu ser impede a minha compreensão estática. O
meu ser é um contínuo sendo que se dá e se altera na existência. Com isso,
podemos dizer que a significação é alcançada em cada caso concreto, no qual
eu desvelarei naquela hipótese o sentido da norma a ser aplicada.
Em outros termos, não há uma essencialidade da norma e nem uma
quididade do homem a ponto de me dizer qual será o único sentido em que
aquela norma poderá ser aplicada. A imprecisão normativa, além de se dar
uma impossibilidade de alcance a um conjunto linguístico perfeito – como
apontamos nos capítulos anteriores -, também decorre da imprecisão que de-
fine o homem, que escancara as suas ambiguidades. Por que o juiz decidiu de
duas formas diferentes? Porque ele é homem e, como tal, compreende as
situações de modos diversos. Impossível fugir dessa realidade, ou melhor, da
facticidade que influencia no seu decidir.
132
Dessa forma, a razão epistemológica de usar Heidegger nesse
trabalho, se é que há uma, seria de que ele nos revela uma realidade
encoberta durante o racionalismo moderno. Uma realidade de que o homem
não pode ser caracterizado como um universal, como um ser
unidimensionalizado, que possui um único modo de ser. Usamos Heidegger
como pretensão de certeza de que a certeza pura certamente se perdeu na
ilusão de estar sempre certa. Não há uma única forma de interpretar, pois o
interpretar é constitutivo da compreensão, que não se separa da condição de
ser-no-mundo daquele que interpreta.
Em outras palavras, a tipicidade não pode ser cerrada, com a
possibilidade de uma única interpretação, porque cada interpretação será única
em si, correlacionada com a visão que o intérprete tem do mundo que lhe é
existencial. Não há uma resposta correta a priori, pelo menos não uma única
resposta.
Vale aclarar que não estamos a defender um ceticismo científico,
dizendo que tudo é válido. Que a validade do direito encontra-se no cargo do
intérprete, que pode fazer o que quiser. Não, definitivamente não! Apenas
atestamos a “im-possibilidade” de termos uma descrição completa da realidade
ou mesmo objetiva, uma vez que a “com-pre-ensão” do homem não se dá por
uma razão pura capaz de perceber a totalidade do mundo a partir de um olhar
neutro. Essa não é uma proposta de superação do modelo racional, mas uma
atestação de como se dá o processo cognitivo pelo homem. Com o objetivo de
a-presentar o nosso posicionamento na sociedade vigente, caminharemos no
próximo capítulo pela estrada do empirismo, investigando em casos concretos
a viabilidade da nossa pesquisa.
133
CAPÍTULO V – TEORIA OU PRÁTICA?
Muitos trabalhos renovadores do direito recebem como crítica a não
conversão para a prática daquilo que se está a-presentando. “Heidegger não
se usa em petições iniciais”, reclamam alguns. Realmente é preciso tomar
cuidado para não recair em um elitismo acadêmico, encastelando-se em uma
Torre de Marfim, preso na própria soberba de não se importar se são úteis tais
reflexões. Mesmo acreditando não ser palatável a separação entre teoria e
prática, a pretensão do nosso estudo não é a idealização do direito,
distanciando-se do que acontece no dia a dia. Ao revés, tentamos revelar como
ele acontece na faticidade do homem. Assim, a proposta para este capítulo é
caminhar pelo deserto mundo do real, buscando, a partir de casos concretos,
mostrar teoria e prática na sua comunhão. Bem verdade que essa comunhão
foi atestada ao longo de todo o trabalho, sendo que, sempre que a nossa
sensibilidade foi alertada, identificamos no direito as percepções filosóficas que
estavam sendo a-presentadas. Entretanto, na inseparabilidade da teoria e da
prática, resolvemos aqui inverter a lógica dissertativa. Apresentaremos os
casos tentando, a partir deles, atestar o dito dessa obra. Na imensidão de
possibilidades que se fazem presentes, abordaremos aquelas que vierem ao
nosso encontro por acaso. Parafraseando Carlos Drummond de Andrade, há
sem razões no escolher desses exemplos.
Começamos pela investigação da possibilidade de fechamento
conceitual das hipóteses de incidência tributária (para alguns doutrinadores,
deve-se adotar o termo fato gerador, tendo em vista a expressa previsão do
artigo 114 do CTN) 197, que DERZI (1988) chama de tipo em sentido impróprio
e, balizada em Hensel, conceitua como “descrição de um concreto estado de
197 A professora Misabel Derzi (1988) nos esclarece que a teoria do Tatbestand foi absorvida pelo Direito Tributário que, inicialmente, no Brasil, adotou-se “fato gerador” como termo referencial à expressão alemã. Anota, ainda, que a obra de A. Falcão teria proposto a utilização do termo “hipótese de incidência”. Apenas para facilitar a leitura da obra, acompanharemos apenas para fins didáticos a construção realizada por Geraldo Ataliba na sua festejada obra “Hipótese de Incidência Tributária”, na qual, em apertada síntese, podemos afirmar que ele diferencia a hipótese de incidência tributária como a descrição abstrata do fato que ocasiona a possibilidade de tributação e o fato gerador como acontecimento concreto que permite a cobrança do tributo.
134
coisas”. Trata-se do apontamento de quais são as características essenciais
para que uma situação seja tributada pelo estado. Ocorrendo faticamente
aquela hipótese normativa, configura-se o fato gerador, nascendo a obrigação
tributária.
Sem a aspiração de adentrar nas minúcias sobre o tema, é sonora a
doutrina que defende que, como corolário da legalidade, a previsão normativa
que institui um tributo deve conter conceitos jurídicos determinados, impedindo
a ampliação para outros casos que não foram taxativamente previstos ou a
inclusão de contribuintes não especificados no texto. Consubstanciaria em uma
segurança ao contribuinte, que teria a previsibilidade de qual conjectura exigiria
o pagamento ao ente estatal198. O simples deparar com a disposição legal já
permitiria a visualização se o fato seria ou não tributável. Será que é mesmo
possível alcançar essa certeza jurídica?
Os chamados “easy cases” de Herbert Hart, sonho dogmático da
Escola da Exegese, não existe. Não há uma essência por detrás do signo que
garanta essa certeza. No cotidiano forense, o “positivismo” oferece a ilusão do
método subsuntivo, da junção entre “fato gerador” e a “hipótese legal de
incidência”. Em verdade, o que “garante” essa incidência é a ostensividade de
uma gramática social que “vende” a imagem da eternidade de significados
semânticos. Pobre dos advogados se fosse assim! Não haveria a criatividade
para buscar “exceções”, “interpretações conforme”, “distinções
jurisprudenciais”, “superações de precedentes” ou “analogia”. Essa “certeza”
subsuntiva, porém, sustenta-se na provisoriedade de conceitos que são
interpretativos. Intoxicações linguísticas, antinomias, dúvidas sintáticas se
acumulam diante de uma hermenêutica de fundo concretista. “Casos fáceis” de
hoje se tornam “casos difíceis (hard cases)” amanhã e vice-versa. O círculo
hermenêutico não tem freio, não tem pausa ou descanso. Uma evasão sem fim
do humano pelo humano. Não temos como esgotar o assunto, pois a epifania
não se encerra jamais. Podemos apenas tatear, buscar no fundo do armário
aquilo que pode iluminar o argumento. Busca ao acaso, busca de casos caso o
leitor não tenha se convencido do nosso “caso”. Vejamos então.
198 “[...] supõe assim uma possibilidade de previsão objetiva e esta exige, por seu turno, uma segurança quanto aos elementos que a afetam” (MACHADO,1991, p. 17)
135
Tomamos inicialmente o exemplo do denominado Imposto Predial
Territorial Urbano (IPTU). Segundo o artigo 32 do Código Tributário
Nacional199, todo aquele indivíduo que detiver a propriedade, a posse ou o
domínio útil de bem imóvel urbano será responsável pela pertinente obrigação
tributária. Nos termos do referido artigo, os sujeitos passivos podem ser os
proprietários200, os possuidores ou os detentores de domínio útil.
Quanto a figura do possuidor, o STJ e o STF201 firmaram o
entendimento que o tributo era direcionado aos possuidores com animus
domini, excluindo, assim, figuras como o locatário e o comodatário. Já em um
primeiro momento podemos perceber que a leitura interpretativa do STJ e do
STF modificou o sentido do termo usualmente empregado no Código Civil de
2002202, que expressa em seu artigo 1.204 que a posse é adquirida pelo
exercício em nome próprio de algum dos direitos relacionados à propriedade. A
interpretação jurisprudencial consolidou o entendimento que, como o IPTU
incide sobre a relação de propriedade, o sentido da “posse” expresso na norma
deveria se alinhar à tese de Von Jhering e toldar apenas as hipóteses em que
há a exteriorização da condição possessória, ou seja, quando há a aparência
de dono203.
Mesmo após a “pacificação” jurisprudencial, nada impediu a
ocorrência de uma mutação significativa, como se pode perceber da análise
feita por GODÓI (2011) sobre os julgamentos dos RE 451.152 e RE 434.251204.
199 “Art. 32 - O imposto, de competência dos Municípios, sobre a propriedade predial e territorial urbana tem como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel por natureza ou por acessão física, como definido na lei civil, localizado na zona urbana do Município.” 200 Remetendo-se ao Direito Civil, que exige o registro do título translatício de propriedade no pertinente Cartório de Imóveis para que se consolide a condição de proprietário, consoante artigo 1.245 do Código Civil de 2001. 201 V RESP 325.489 e RE 265.749. 202 Um olhar para o passado nos permite visualizar a ausência de sentido unívoco de “posse”. Não há um espelhamento entre referente e objeto. A leitura feita por Savigny desse acontecimento jurídico não é a mesma realizada por Von Jhering. Enquanto o primeiro defendeu que a posse imprescindia do exercício de um poder físico sobre a coisa, Jhering defendia a exteriorização da affectio tenendi como requisito para caracterização da posse. Podemos, ainda, mudar a lente e visualizar a “posse” sob outra ótica. Quando se diz que o Presidente da República ou um servidor público tomou posse no cargo, não estamos a afirmar que ele está no uso, gozo ou fruição de um bem, mas sim que ele passa a agir em serviço da sociedade no exercício daquela atividade profissional. Tudo isso ajuda a reforçar a im-possibilidade de se ontologizar a “posse”, que se a-presenta em in-finitos modos de ser. 203 V. o voto do Ministro Garcia Vieira no Resp 40.240/SP, publicado em 21/02/94. 204 Ainda pendente de julgamento, estando com pedido de vista pela Ministra Carmen Lúcia.
136
Nesses casos discutiu-se a aplicação da imunidade recíproca, avaliando a
plausibilidade de cobrança de IPTU sobre imóveis cedidos por entes públicos a
entidades particulares. GODOI (2011) observa que há uma tendência na
superação do precedente, devendo o Tribunal passar a considerar como
possível a cobrança do tributo quando a posse direta não estiver sendo
exercida pelo ente público, tributando, assim, possuidores sem o animus
domini.
Ao que parece, o que norteou a mudança de posicionamento da
corte não foi a alteração dos elementos sintáxicos da hipótese de incidência,
mas a compreensão dada diante do caso concreto que a imunidade concedida
naquelas situações ocasionaria um desequilíbrio nas relações de mercado.
Note-se que a provável superação do precedente decorrerá da troca de lente
da razão, que passou a ler o enunciado a partir de outra ótica, enxergando uma
realidade que estava oculta e que foi revelada pela iluminação de uma lanterna
que não alcança a totalidade fática do mundo. Mais uma vez apontamos que o
conceito não pode ser compreendido como determinado ou indeterminado fora
do seu locus significativo, pois sempre há a possibilidade de alteração do
sentido. A expressão possui significâncias, não significado. O ente não é o ser.
Ainda é possível ir além. Como mencionamos acima, a propriedade
para fins tributários é aquela que consta do registro de imóveis. Entretanto,
quem não pode exercer o direito de uso, gozo ou disposição de um bem – que
seriam direitos inerentes a propriedade -, mesmo assim pode ser considerado
proprietário, simplesmente por constar seu nome nos registros cartorários? O
próprio STJ, no julgamento do Resp 963.449/PR avaliou no caso concreto que
a formalidade do registro não passa de “casca vazia” quando não se tem o
efetivo exercício dos direitos de propriedade.
Outro ponto que podemos aventar sobre a propriedade é que o
sentido usualmente empregado está estruturado pelas noções do estado
liberal. Caso houvesse uma mudança ideológica profunda no país - como
alardeiam os opositores do Governo Dilma e defendem os partidos políticos de
extrema esquerda - e caminhássemos para um “socialismo bolivariano”,
palpitaria que a concepção de propriedade teria o seu sentido sensivelmente
alterado. Insta salientar que não se trata de palpite aventureiro, pois os
137
diversos modos de apresentação da propriedade nos permite tal presságio.
Afinal, o direito de propriedade expresso no artigo 72 da Constituição da
República dos Estados Unidos do Brasil de 1891205, com influências notórias
da Revolução Francesa206, trazia o sentido de uma propriedade exercida
ilimitadamente, quase sem possibilidades de interferência do poder público no
seu exercício.
Por outro lado, a Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946,
não obstante tenha trazido o mesmo texto normativo da Constituição de
1891207, a propriedade era visualizada no jogo de linguagem do Welfare State,
podendo o seu exercício ser limitado ou até mesmo restringido em nome do
bem estar social208.
Para fugirmos da alegação de que o positivismo soluciona esse
enigma pelo seu catálogo interpretativo, podendo-se valer do método
sistemático, podemos visualizar a mudança de sentido da propriedade na
Constituição Federal de 1988, que também traz esse direito no caput do artigo
5º209, inserindo, porém, a exigência de conferir uma função social ao bem. Em
outras palavras, o proprietário tem que dar utilidade para o seu patrimônio.
Porém, uma nova leitura do dispositivo tem dado um sentido diferente ao termo
“função social”, compreendendo que não é a mera conferência de utilidade que
permite a caracterização do requisito constitucional, devendo-se apreciar no
caso concreto se a utilidade não é nociva ou inadequada. Fazer um pasto por
meio do desmatamento não seria na atualidade exercer a propriedade dando-
lhe uma função social.
205 “A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no paiz a inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade, á segurança individual e á propriedade, nos termos seguintes” (BRASIL [1891], 2015) 206 Como, por exemplo, a extinção de privilégios estamentais: “A Republica não admitte privilegios de nascimento, desconhece fóros de nobreza, e extingue as ordens honoríficas existentes e todas as suas prerogativas e regalias, bem como os titulos nobiliarchicos e de conselho.” (BRASIL [1891], 2015) 207 “Artigo 141 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes” (BRASIL [1946], 2015) 208 “Art 147 - O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá, com observância do disposto no art. 141, § 16, promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos.” (BRASIL [1946], 2015) 209 “Art 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes” (BRASIL, 2015 – C)
138
Todas essas mutações significativas do termo “propriedade”
reforçam a im-possibilidade de se fixar o sentido de uma proposição por meio
da análise dos seus elementos sintáxicos, como se houvesse um
espelhamento da realidade. Cada termo possui uma pluralidade in-finita de
significâncias e o alcance do sentido é sempre precário e obtido em cada uso.
A formação provisória desse sentido depende, inexoravelmente, do mundo que
circunda o intérprete.
Recorremos, agora, aos exemplos tratados por Felipe Faria de
Oliveira (2010) para robustecer a tese aqui aventada. O artigo 150, VI, “d” da
Constituição Federal de 1988 conferiu imunidade tributária aos livros, aos
jornais, aos periódicos e ao papel destinado a sua impressão. Entretanto, qual
o sentido da expressão “livro”?
Podemos até supor que os legisladores constituintes, quando
decidiram inserir essa norma, tinham em mente que “livro” era aquele objeto
retangular impresso ou datilografado que possui informações relevantes. Ou
melhor, acreditando em um “tecnicismo” do constituinte, podemos vislumbrar
que ele se valeu da Resolução da UNESCO aprovada em sua décima terceira
reunião, no ano de 1964, expressando ser livro toda e qualquer publicação não
periódica, impressa e que contenha mais de 49 páginas210.
Um olhar inicial nos faz crer que o dispositivo constitucional confere
a segurança jurídica e a previsibilidade pretendidas pelo Direito Tributário,
trazendo um conceito determinado, haja vista que há o delineamento preciso
dos elementos materiais e formais necessários para a caracterização do objeto.
Entretanto, na era virtual, poderíamos afastar a aplicação da imunidade em
relação aos ebooks? Além disso, sites compostos por centenas de megabytes
de informação podem ser considerados livros ou periódicos? E o caso dos
livros infantis que, geralmente, não ultrapassam quinze laudas? Mesmo com
relevância educativa e informacional para as nossas crianças, deve-se rejeitar
a sua condição de livro? As apostilas e os álbuns de figurinhas podem ser
210 “A book is a non-periodical printed publication of at least 49 pages, exclusive of the cover pages, published in the country and made available to the public. <<um livro é uma publicação impressa não periódica com pelo menos 49 páginas, excluídas as folhas de rosto, publicado em um país ou disponibilizado para o público>>(tradução nossa)” (UNESCO, 1964, pg. 144)
139
considerados “livros”211? Aliás, Misabel Derzi, em atualização da obra de
autoria do ex-Ministro Aliomar de Andrade Baleeiro (2006), anota que o sentido
empregado pela expressão “periódico” foi sendo alterado de acordo com os
casos concretos que desafiaram o judiciário. Seriam as listas telefônicas
protegidas pela imunidade? E a parte publicitária constante de um periódico? E
um periódico especializado na divulgação de marcas?
O que nós pretendemos atestar por meio desses exemplos é que,
mesmo sem alteração sintáxica, o confrontamento da norma com o caso
concreto na dimensão pragmática da linguagem impõe modificações
semânticas e construções provisórias de sentido. A univocidade pretendida na
ideia de conceito abstrato classificatório se mostra cada vez mais como uma
quimera, como uma ilusão de ótica que nos faz acreditar ser real a percepção
total e objetiva da realidade.
Ilusória também é a crença que as nossas ações não estão
permeadas pelas pré-compreensões presentes no nosso “pre” enquanto “pre-
sença”. Exemplos certamente não nos faltam para atestar essa afirmação, mas
aqui optamos por um que fora amplamente divulgado pelas mídias sociais no
ano de 2014.
Justamente por acreditar em uma resposta correta dada pelos
elementos semânticos de uma palavra, o juiz federal Eugênio Rosa de Araújo,
nos autos da Ação Civil Pública nº 0004747-33.2014.4.02.5101, que tramita
perante a 17ª Vara Federal do Rio de Janeiro, asseverou que as manifestações
de “macumba, umbanda, candomblé ou quimbanda” não constituem
exteriorização de religiosidade, uma vez não preenchidos os elementos da
existência de: um livro base, de uma estrutura hierárquica e de uma figura
venerável como ser supremo212. Portanto, esses cultos não estavam protegidos
pelo direito de liberdade de religião, disposto no artigo 5º, inciso VI da
Constituição Federal213.
211 V. RE 221.239 (DJ 25/05/2004) e RE 183.403 (DJ 07/11/2000) 212 “No caso, ambas manifestações de religiosidade não contêm os traços necessários de uma religião a saber, um texto base (corão, bíblia etc) ausência de estrutura hierárquica e ausência de um Deus a ser venerado.” (RIO DE JANEIRO, 2014) 213 O magistrado, todavia, reconheceu que são manifestações culturais sujeitas a proteção pelo direito de reunião, mas não consubstancia culto religioso.
140
Na referida decisão, o juiz, com o objetivo de diferenciar práticas
religiosas de culturais, pretendeu estabelecer critérios objetivos que
identificassem a natureza ontológica da religião. Fez como exige o figurino.
Buscou na realidade social brasileira as notas distintivas da prática religiosa,
tentando identificar qual seria o comportamento usualmente adotado nos cultos
religiosos “em geral”. Nessa “observação científica”, ele aferiu que o padrão
médio da religiosidade no Brasil se dá por meio de um culto ao transcendente,
fundamentado por um conjunto normativo escrito e suscetível a uma estrutura
hierárquica214. Fixou-se, assim, os atributos necessários para a distinção entre
a prática religiosa e a meramente cultural. Na abertura significativa do signo
“religião”, ele conferiu acessibilidade ao ente, dando um maior grau de
determinabilidade ao conceito. Trouxe, assim, ao processo judicial o
significado científico (e correto?) de religião, que fora auferido por meio de uma
descrição objetiva da realidade.
Cientista de encher os olhos de qualquer “conceitualista”!
Por que, então, houve um ruidoso questionamento sobre a validade
da fundamentação jurídica utilizada nessa decisão? Ela não é científica e
absolutamente imparcial? Claro que alguns irão defender a ausência de
cientificidade, alegando que não houve a observância da totalidade dos fatos
da realidade social; que há outras práticas que foram sonegadas na sua
análise, etc. Em nosso sentir, porém, ainda que o magistrado tivesse sido mais
diligente, sempre lhe escaparia alguma manifestação ou algum elemento que o
seu olhar seria incapaz de perceber. A conceituação empreendida estaria
inexoravelmente atrelada a um ponto de vista enxergado a partir da sua
mundanidade. Ao buscar um conceito objetivo, não se percebeu que o olhar
objetivante estava repleto de subjetividade e de limitações cognitivas
decorrentes da condição de ser-lançado, de um ser que com-pre-ende como
ser em-um-mundo.
214 Essa observação poderia ser contrastada com o CENSO 2010, por meio do qual se constatou que 64,6% da população brasileira professa a religião católica, 22,2% a religião evangélica, 2,0% a religião espírita, Umbanda e Candomblé 0,31%, 8,0% não possuem religião e o restante se enquadraria em outras. Com efeito, poderíamos perfeitamente dizer que o padrão médio de práticas religiosas praticadas no Brasil se adéqua àquele narrado pelo magistrado.
141
Esse exemplo atesta que o decisum não é um ponto de chegada
alcançado por meio de uma fundamentação lógica, que conduz a um único
caminho decisório, a uma resposta logicamente correta. Não! O que acontece
na fundamentação é apenas a narrativa daquilo que já foi previamente decidido
no contato com o caso concreto. Decido e depois fundamento, pois o decidir se
dá no evento fenomenológico apropriante (Ereignis) da com-pre-ensão. A
justificação decisória se revela, nesse sentido, como uma atestação do
fenômeno, como a narrativa (não descritiva) histórica do “como
hermenêutico”215.
A narrativa a-presenta o fenômeno desvelado pelo intérprete. No
desvelar do sentido há sempre o encobrimento de uma significação diferente,
que não pôde ser percebida em razão dos limites de intensidade da nossa
“lanterna racional”. No caso em questão, o juiz foi ludibriado pela crença que
seria possível chegar ao ente “religião”, encontrando o seu reflexo no espelho
da razão pura. Entretanto, as luzes jogadas pela sua racionalidade não lhe
revelou a penumbra significativa daquilo que ficou escondido no campo não
iluminado. O magistrado não percebeu que a sua lanterna não tinha uma luz
pura e que o conceito de religião estava intoxicado pela sua mundanidade e
pelo mundo que lhe circunda.
215 Importante a lição que nos é dada por CRUZ e WYKROTA (2015): “Em verdade, descremos da possibilidade de se desvincular aquilo que seria a “descoberta” daquilo que seria o contexto de justificação de uma decisão. Até porque, sempre será possível a revisão de uma decisão nessa etapa de justificação. Daí nossa opção por trabalhar a argumentação em bases para além do iluminismo. A argumentação deixa de ser método que congela a decisão. Tampouco ela é simples justificativa que tenha a pretensão de “descrever” a decisão. Entendemos que a argumentação deve ser atestada como um processo narrativo da “de-cisão”. Desde logo, porém, mais um alerta: a narração não pode ser entendida como uma mera descrição.133 Não supomos ser possível a “des-crição” do real, como nos mostra Derrida. A imposição de graus numéricos e de fórmulas matemáticas que pretende a justificação de teorias de bases iluministas, por exemplo, em verdade, esconde a natureza fenomênica da “de-cisão” pela “pretensão” de que a decisão “é” meramente racional! A narrativa se presta, pois, a entificar o ser (do ente?) da “de-cisão”. Desse modo, não é apenas uma questão semântica trocar a “justificação” pela narrativa, pois esta última não pretende ser o “espelho” da “de-cisão”. Não há representação da “de-cisão”. A narrativa “a-presenta” a “de-cisão” a nós! É, portanto, uma narrativa de fundo ricoueriana, como uma atestação do fenômeno. Uma narrativa histórica do evento que se deu na “de-cisão”, e que nossos pontos cegos sempre a tornarão, em parte, uma ficção. Não conduz à decisão e nem tampouco a “reconstrói”.” (CRUZ e WYKROTA, 2015, pg. 54 [ainda no prelo])
142
Ainda, propomos um passar de olhos pelo disposto no artigo 37, §1º
da Constituição Federal Brasileira de 1988216. Em síntese, a norma estabelece
que a publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos
órgãos públicos observe o caráter educativo, informativo ou de interesse social,
garantindo, a impessoalidade, vedando a promoção pessoal dos agentes do
estado.
Qual a conotação de “publicidade” no texto constitucional? Vamos
supor que a norma seja apresentada aos responsáveis pela construção das
marcas, slogans e imagens do governo e de seus programas e, ao mesmo
tempo, ao assessor jurídico chefe de um determinado órgão. Será que em
ambas as hipóteses a recepção de sentido será a mesma? É admissível
acreditar que, para o grupo de marqueteiros, a norma venha como uma diretriz
na construção das peças publicitárias, devendo atender àquelas especificações
do “cliente”. Por outro lado, é factível crer que o jurista visualizaria a
imprescindibilidade de observar a impessoalidade no exercício do dever de
informar à população sobre as práticas governamentais.
Ficando com a conotação possível no jogo de linguagem do direito,
como os entes e órgãos governamentais cumprem o seu dever de tornarem
públicas as ações perpetradas? O que é dar publicidade a um fato? Por
exemplo, informar via Twitter que um programa social está em funcionamento,
é tornar pública a informação? Podemos ir além: a publicação no Twitter da
Presidenta Dilma torna a notícia pública da mesma forma que um vereador do
sertão baiano com pouco mais de uma dúzia de seguidores que conheceu
durante uma viagem à Natal? Aliás, quando um agente do estado cria uma
conta nas redes sociais gratuitas, utilizando-se do cargo ocupado na
apresentação pessoal, estaríamos diante de uma publicidade regulamentada
pelo artigo 37 da Constituição Federal ou de um instrumento pessoal e íntimo
desses agentes políticos?
Mudando o sistema de divulgação, poderíamos dizer que há
publicidade quando uma Câmara Municipal lança em seu sítio eletrônico
216 “Art. 37, §1º - a publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos deverá ter caráter educativo, informativo ou de orientação social, dela não podendo constar nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos”. (BRASIL [1988], 2015)
143
informações sobre a atividade dos parlamentares, mesmo quando a média de
visitação da página é inferior a quarenta/mês em um Município com densidade
demográfica superior a cinquenta mil pessoas?
Continuando no mesmo viés, o caráter informativo, educativo ou de
interesse social, bem como a impessoalidade, que são elementos constantes
na descrição normativa, podem ser objetivamente identificados? Ora,
suponhamos que na mesma publicação no sítio eletrônico, contenha a
informação de uma verba específica conseguida por meio de proposição
legislativa encaminhada por um Vereador, constando, ainda, o nome e a foto
do parlamentar. Há violação do parâmetro publicitário proposto na
Constituição? Caso mudássemos a função estatal e fossemos ao Judiciário,
seria legítima a publicação de notícias sobre um julgamento importante, sendo
transcrito parte do voto, com nome do Desembargador e uma foto sua? Repare
que ambas narrativas relatam a atividade exercida por agentes estatais,
ocorrendo, em alguma medida, a correlação do servidor com o resultado
obtido.
Mesmo que não houvesse nenhuma foto ou nome do agente estatal,
mensagens incisivas que apontam para “um novo governo”, logo após as
eleições ou até mesmo que contenha “nos últimos doze anos (período em que
aquele grupo governa)”, não haveria uma correlação natural do ouvinte com o
gestor? Quando o informe publicitário termina com ”Ministério do Meio
Ambiente, Governo Federal”, devemos crer que o telespectador não faz uma
correspondência imediata com a imagem da Presidenta Dilma? Estaríamos,
então, diante de uma publicidade vedada?
Com efeito, a pretensão do pensamento tipológico em aderir à
analogia como método para solucionar a fluidez e abertura normativa não se
mostra adequado, pois não há uma racionalidade objetiva capaz de retirar de
casos análogos a essência proibitiva/permissiva, sendo que a forma como o
caso concreto vem ao encontro do intérprete será essencial para o deslinde
decisório. Consigo vislumbrar percepções diferentes nos informes do judiciário
e do legislativo, que se dão especialmente pela nossa condição de ser-jogado
em um mundo.
144
O que acontece é que a decisão é apenas a narrativa do que fora
decidido no momento em que o caso veio ao meu encontro, permitindo, assim,
mais de uma resposta correta. Note-se que não estamos defendendo a
“ditadura da magistratura”, mas apenas afirmando que o processo de cognição
dos fatos e do direito não se dá de forma uniforme, o que vai ocasionar a
existência de decisões diferentes. O que queremos evidenciar é que existem
infinitas possibilidades de significação para a proposição normativa, sendo que
o seu sentido é alterado todas as vezes que eu modifico o jogo de linguagem
ou o intérprete.
Por oportuno, vale destacar que a alternância significativa que
defendemos se diferencia do pensamento tipológico, porque este atribui à
fluidez social a responsabilidade pela modificação de sentido de uma norma,
podendo a semântica ser alterada em razão de novas práticas sociais. Repare-
se que a renovação de sentido e a abertura significativa é objetivamente
condicionada pelas novas percepções da sociedade, como se houvesse um
compartilhamento universal das novas experiências, que permitiriam um olhar
único e racional sobre os fatos sociais. O caso concreto continua a ter que
comportar uma resposta de adequação ou não àquele modelo típico, estando
inserido na lógica do terceiro excluído, que norteia o pensamento analítico
clássico. Por mais que haja abertura significativa ou interpretativa, está-se
acorrentado à ideia de que é possível encontrar racionalmente a melhor
decisão. A valoração do legislador e/ou do aplicador possui parâmetros
definidos na racionalidade pura, o que viabilizaria o chegar a uma conclusão
por meio do método axiológico previamente definido. Definitivamente não é
essa nossa perspectiva, pois acreditamos que está na unidade do caso e na
individualidade do intérprete/legislador o motivo de existirem in-finitos caminhos
possíveis.
145
CONCLUSÃO
E agora, José? A luz apagou e a festa acabou. O que farás com as
pedras que estão no meio do caminho? O que fazer agora que descobrimos
que o mastro de Ulisses em que amarramos a nossa racionalidade era a cauda
do dragão? Descortinado que a base científica em que se pautava o
pensamento tipológico era, na verdade, feita de argila mole e areia fofa, como
escapar dessa mistura movediça?
A nossa caminhada nos apontou que não há uma linguagem lógica
perfeita, não há objetividade e nem tampouco cisão do homem com o mundo
que o circunda. A compreensão não é puramente racional. O tipo, seja ele visto
como aberto ou cerrado, não possui um conteúdo que se encerra em si
mesmo. O mundo visto como uma descrição típica é àquele enxergado pela luz
de uma lanterna que sonega as informações que estão no campo não
iluminado. Assim, não há descrição da realidade, mas narrativa daquilo que
pude ver na escuridão fulgente, em um raio de luz da razão que não é pura e
nem capaz de visualizar a totalidade fática.
Se pudéssemos dar um marco inicial para o ruir da base estruturante
do tipo, a nossa escolha seria a percepção do segundo Wittgenstein. A nossa
leitura do filósofo nos a-presentou a im-possibilidade de dar finitude conceitual
a uma proposição linguística. A linguagem não espelha o mundo que desde
sempre já é. O processo cognitivo de conhecer a linguagem não é a correlação
direta de um signo com o seu correspondente referencial. Aprendemos pela
ostensividade como usar as palavras, que não possuem uma essência
significativa, ganhando sentido apenas na pragmática.
Como o sentido da proposição só é alcançado na utilização prática,
asseverar que há distinções entre graus de definibilidade conceitual torna-se
falacioso, pois o desvelamento do sentido da proposição não é obtido antes do
seu uso. Não há, assim, conceitos determinados e indeterminados, mas
conceitos que se determinam provisoriamente no momento do seu uso,
ganhando um sentido utilizável apenas para o caso concreto. Da mesma forma
146
não há se falar em fechamento conceitual, pois sempre há uma nova
possibilidade significativa a ser construída na mutação do jogo de linguagem
empreendida no campo da pragmática.
A ratificação dessa perspectiva pode ser visualizada no pensamento
de Heidegger, ao afirmar a incapacidade de apresentarmos a totalidade dos
modos de ser das coisas. Ainda que eu tente descrever exaustivamente algo,
sempre me escapa alguma característica. O meu olhar não absorve a
completude do mundo, de modo que não há uma expressão que possa ser
compreendida como tradutora universal de uma realidade.
Com efeito, a nota distintiva do tipo, da tipicidade cerrada e do
conceito abstrato, no que concerne a utilização de expressões com conceitos
determinados ou mais abertos, mostra-se irrelevante. A linguagem é
necessariamente aberta para novas significações, sendo ilusória a pretensão
de compreender todos os sentidos que uma expressão pode vir a ter e escolher
àquelas que possuem um sentido único ou mais determinado. Não há graus de
certeza definíveis a priori na formação da linguagem.
A tentativa de diferenciar o tipo do conceito a partir da abstração ou
da proximidade com o real também se mostrou infrutífera na presente obra.
Dizer que o conceito foge do concreto é apegar-se ao empirismo como forma
de verificação da realidade. É acreditar em um mundo alheio a sua existência,
que pode ser apropriado pela racionalidade por meio da análise que se dá fora
desse mundo.
Heidegger escancara a impossibilidade de se pensar o mundo
dissociado do homem que o pensa. O mundo só existe pelo homem, que só
existe em-um-mundo. A relação de imanência entre o mundo e o homem não
permite a fuga desse mundo para compreendê-lo, sendo a com-pre-ensão um
movimento fenomenológico que se dá com e no próprio mundo. Portanto, a
abstratividade é uma quimera defendida pelo racionalismo, não justificando a
separação categorial de tipos e conceitos. Tudo versa sobre a realidade, ainda
que não seja aquela que eu possa sensorialmente perceber. Dizer que um
cachorro é um bem móvel ao invés de um mamífero não é abstrair ou alterar a
substância do canino, mas mudar a lente com a qual se enxerga o animal, que
147
se a-presenta por outro modo de ser. Mudamos o jogo de linguagem, mudamos
o “como” o cachorro veio ao nosso encontro, mudamos o sentido da expressão.
Da mesma forma, desvelamos que a ideia do tipo como descrição
passível de contornos valorativos ao passo que o conceito ou o tipo fechado
não possuem a abertura a esses juízos é um non sense. Embasado no filósofo
da floresta negra, podemos vislumbrar que a compreensão não se dá por um
processo de análise comandado pela nossa razão e desprovido de toda e
qualquer sentimentalidade. A compreensão como ek-sistencial do “pre” da pre-
sença se dá pelo movimento fenomenológico do ser-lançado e ocorre em
imanência com a disposição e a linguagem.
O compreender imprescinde do sentir, que faz parte do plano
ontológico do Dasein. A nossa existência não é uma tabula rasa que vai sendo
preenchida por conceitos apreendidos ao longo da vida. O momento em que
tocamos o mundo para compreendê-lo também sentimos o seu toque. Assim,
os juízos são indissociáveis da narrativa e da interpretação que formam o tipo,
não podendo ser vistos como uma escolha racional e objetiva.
A hermenêutica jurídica é um acontecer que se dá na
experimentação do caso concreto, no compartilhamento compreensivo que se
dá entre as partes litigantes. A interpretação não é solipsista e nem se emprega
um subjetivismo axiológico na construção decisória. Se o mundo é
compartilhado com o Outro, a minha compreensão é também intersubjetiva, o
que erige as partes processuais a um patamar de destaque, de co-
responsabilidade pelo provimento jurisdicional.
Por oportuno, vale salientar que a experimentação e o ceticismo em
ralação ao objetivismo e a abstração não são um apadrinhamento às teorias
pautadas no realismo jurídico, principalmente o Pragmatismo Econômico de
Richard A. Posner, a Teoria da Previsibilidade de Oliver Wendell Holmes ou o
ceticismo filosófico de Richard Rorty. O direito não pode ser entregue ao
alvedrio dos magistrados, sendo reduzido ao que “o juiz tomou no café da
manhã”, como já anotou Ronald Dworkin.
O nosso rumar parece mais dirigir-se a formação e interpretação
tipológica a partir de uma ética da alteridade, em que a responsabilidade como
filosofia primeira do ser figura como orientadora do agir jurídico. O meu
148
compromisso na relação processual é com o Outro, que não se dá em uma
dimensão jurídica egológica. Acreditamos que o pensamento tipológico deve
ser desenvolvido a partir da ideia de infinição da linguagem e o
transbordamento conceitual que cada proposição possui. O tipo não é aberto
ou fechado, mas transbordante, pois o seu conceito é in-finito e vai muito além
daquilo que podemos perceber. Ele não se encerra nem mesmo como
possibilidade. Além disso, os valores que lhe permeiam não são encontrados a
partir de uma busca ética universal autônoma ou heterônoma, que parte do
“eu” (como em Kant) ou do “nós” (como no hedonismo ou no utilitarismo). O
meu olhar não é impessoal, pois busca o Rosto do Outro como alteridade que
está além da individualidade. É preciso evadir do ser na busca incessante e
impossível ao Outro.
Se perguntarem se seria essa a nossa conclusão, a resposta é
negativa. Não concluímos, pois concluir é fechar um pensamento que não se
fecha, que não se interrompe nem mesmo com o silenciar das palavras. Em
verdade, esses são apenas traços, tropos, migalhas deixadas ao leitor que
deve fazer seu próprio caminho. Esse é apenas o tracejar e não um mapa que
nos diz como ou aonde chegar.
O concluir é passar a caneta ao leitor, nosso personagem principal.
Cabe a ele decidir pular no ab-ismo aberto ou retornar ao campo seguro.
Sabemos que o misturar entre a multidão na existência inautêntica é mais
confortável. Nada como deitar na boia e deixar a correnteza fazer todo o
esforço. No nosso caso, a boia pode ser chamada de crença na segurança
jurídica como previsibilidade em razão da completude significativa da norma e
da interpretação, sendo possível que o legislador crie uma norma
conceitualmente fechada.
Podemos, assim, simplesmente ignorar o que foi dito, pois acreditar
na objetividade do cientista é mais reconfortante. É sempre possível esconder-
se nessa perspectiva e se deixar levar pelo conto ilusório de que há
objetividade no nosso olhar e que podemos separar a razão da disposição
afetiva. O ordenamento jurídico é hermético em si mesmo e nos traz todas as
respostas. “Mudaram as estações, nada mudou!”
149
O camuflar entre a multidão nos traz o conforto de quem está
sentado em uma nuvem, sentindo a maciez e a segurança do nada. Esse
trajeto nos conduz à im-possibilidade de compreensão e ao negar a própria
possibilidade de ser. Trata-se do tomar a pílula azul celeste e retornar à
artificialidade da vida em Matrix, onde tudo é assimetricamente perfeito, onde
até as imperfeições são vistas de forma perfeita.
Pois bem, encerramos por aqui. Em cima da mesa há caneta e
papel, bem como um copo com água até a sua metade e duas pílulas, uma
azul e outra vermelha. O nosso esforço foi para que a escolha fosse pela
vermelha, mas não podemos definir qual será a escolha do leitor.
150
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