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GONÇALVES, Virginia M. F. Do racionalismo crítico ao anarquismo pluralista: uma ruptura no pensamento de Paul Feyerabend. 82 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004. 1 A dissertação de mestrado de Virginia Gonçalves faz, antes de tudo, uma apresentação da epistemologia de Feyerabend, situando-a no movimento que o pensamento do autor faz, da adesão inicial ao racionalismo crítico de Popper à subseqüente ruptura com esta concepção epistemológica, ao elaborar a sua própria epistemologia, que podemos chamar de um anarquismo pluralista. Neste trabalho, são apresentados os aspectos gerais da epistemologia anarquista de Feyerabend e, com o propósito de delinear o movimento de ruptura com o racionalismo crítico, a autora procura investigar aspectos comuns às duas fases do epistemólogo, identificados em uma atitude pluralista vinculada ao humanismo liberal de Stuart Mill. Em sua introdução, a autora situa Feyerabend no debate epistemológico entre Karl Popper, Thomas Kuhn e Imre Lakatos, fazendo também uma breve retomada do debate epistemológico na história da filosofia. Fala, de um modo geral, das posições epistemológicas de Feyerabend, que se opõe à imposição de um método único para a produção do 1 Resenha por André Mattos, graduando em Psicologia (UFBA), membro do Grupo de Pesquisa CONES.

Do racionalismo crítico ao anarquismo pluralista (resenha)

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Resenha da dissertação "Do racionalismo crítico ao anarquismo pluralista: uma ruptura no pensamento de Paul Feyerabend", de Virginia Gonçalves.

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Page 1: Do racionalismo crítico ao anarquismo pluralista (resenha)

GONÇALVES, Virginia M. F. Do racionalismo crítico ao anarquismo pluralista: uma

ruptura no pensamento de Paul Feyerabend. 82 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) –

Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de

Janeiro, 2004.1

A dissertação de mestrado de Virginia Gonçalves faz, antes de tudo, uma

apresentação da epistemologia de Feyerabend, situando-a no movimento que o

pensamento do autor faz, da adesão inicial ao racionalismo crítico de Popper à

subseqüente ruptura com esta concepção epistemológica, ao elaborar a sua própria

epistemologia, que podemos chamar de um anarquismo pluralista. Neste trabalho, são

apresentados os aspectos gerais da epistemologia anarquista de Feyerabend e, com o

propósito de delinear o movimento de ruptura com o racionalismo crítico, a autora

procura investigar aspectos comuns às duas fases do epistemólogo, identificados em

uma atitude pluralista vinculada ao humanismo liberal de Stuart Mill.

Em sua introdução, a autora situa Feyerabend no debate epistemológico entre

Karl Popper, Thomas Kuhn e Imre Lakatos, fazendo também uma breve retomada do

debate epistemológico na história da filosofia. Fala, de um modo geral, das posições

epistemológicas de Feyerabend, que se opõe à imposição de um método único para a

produção do conhecimento científico e sugere que a ciência se paute em propósitos

humanistas. A autora procura ressaltar a importância das críticas de Feyerabend à

discriminação pejorativa das formas não-científicas de conhecimento e afirma a sua

intenção de “mostrar que Feyerabend foi muito mais um ardoroso crítico da

uniformidade e defensor da diversidade quanto às visões de mundo, do que um opositor

da ciência per se” (p. 13). Apresenta, então, três hipóteses de trabalho acerca da

epistemologia feyerabendiana e suas repercussões, as quais serão retomadas em uma

avaliação ao final do trabalho, de modo que as abordaremos aqui mais adiante.

Ao iniciar o primeiro capítulo, intitulado “A atitude pluralista e o humanismo em

Paul Feyerabend enquanto fios condutores para a ruptura com o racionalismo crítico”, a

autora afirma que a principal referência usada será o livro Feyerabend: Philosophy,

Science and Society, de John Preston (1997). São identificadas duas grandes fases na

1 Resenha por André Mattos, graduando em Psicologia (UFBA), membro do Grupo de Pesquisa CONES.

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obra de Feyerabend, as quais não possuem fronteiras precisas, mas a primeira é situada

nas décadas de 1950 a 1970, enquanto a segunda nas décadas de 1970 a 1990, e, apesar

de haver uma ruptura entre as duas fases, a autora considera importante identificar os

aspectos comuns a ambas. Trazendo algumas considerações históricas do percurso de

Feyerabend, ela afirma que, em 1965, alinhado com o racionalismo crítico de Popper,

Feyerabend privilegia o conhecimento científico. Ele “desenvolve uma metodologia

pluralista a partir de uma expansão do conceito de ‘experimento crucial’, o dispositivo

metodológico falsificacionista para teste e eventual refutação de uma teoria” (p. 18), no

sentido de que o “experimento crucial” favorece a comparação entre teorias rivais e

oferece subsídios para o desenvolvimento de novas teorias. Assim se delineia o

pluralismo teórico, presente nesta primeira fase do pensamento de Feyerabend, que está

pautado no “Princípio de Proliferação”, que recomenda que o cientista elabore teorias

alternativas às que já estão estabelecidas. A partir do final da década de 1950 e durante

a década de 60, ele começa a se afastar do falsificacionismo e do racionalismo, que

busca um padrão único de racionalidade científica, influenciado também pela

abordagem histórica da ciência de Kuhn, seu colega em Berkeley, e, mais tarde, passará

a grafar “Verdade”, “Razão”, “Honestidade” e “Justiça” com iniciais maiúsculas, em

tom de desdém e deboche. Somando-se a isso um estilo cada vez mais agressivo em sua

argumentação, essas são as características da passagem para a segunda fase da sua

epistemologia, que parecem ser o desdobramento de uma atitude pluralista e de uma

ética humanista.

Como uma espécie de projeção do pluralismo teórico no domínio do método, a

segunda fase da epistemologia feyerabendiana passa a incluir o pluralismo

metodológico, vindo a caracterizar a sua epistemologia anarquista. Apesar da transição,

em ambas as fases vemos uma atitude pluralista, o que mostra “uma espécie de

continuidade – e também uma ruptura – entre as duas fases da epistemologia

feyerabendiana” (p. 25). Em sua primeira fase, Feyerabend estava engajado em uma

concepção normativa da epistemologia, com influência de Popper e Kraft, mas, a partir

de 1968, suprimiu estes posicionamentos em seus escritos. A fundamentação ética da

sua epistemologia é fortemente influenciada pelo humanismo liberal de John Stuart

Mill, e é a partir desta orientação que podemos compreender o ataque às hegemonias e a

defesa dos pluralismos.

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No terceiro capítulo, “A epistemologia anarquista de Paul Feyerabend”, são

apresentados os argumentos de Feyerabend contra o monismo metodológico e contra os

privilégios do conhecimento científico ante outras formas de conhecimento, mostrando

como o epistemólogo rompeu com estas concepções, mantendo, como fios condutores,

uma crítica às hegemonias e um humanismo liberal. Este “humanismo liberal e

pluralista”, segundo a autora, se torna mais claramente identificável na segunda fase,

por ter-se tornado mais radical. A epistemologia de Feyerabend também é apresentada

por ele como um anarquismo dadaísta, enquanto pluralismo liberal e tolerante,

afirmando que o dadaísta é “capaz de vigorosamente defender posições diferentes e

contraditórias entre si em momentos distintos” (p. 34). Com a publicação de Contra o

método, em 1975, o estilo agressivo e os posicionamentos de Feyerabend o renderam

uma enxurrada de críticas, mais do que ele próprio já esperava. Considerava que os

cientistas agem de maneira “oportunista”, ao expor suas teorias, usam estratégias de

convencimento para além da argumentação racional, como o recurso à propaganda,

manipulações e induções de natureza psicológica etc. Afirmava que, nos momentos de

progresso científico, os cientistas não seguiam as regras a eles prescritas, e utilizou

Galileu como o principal exemplo em sua argumentação em favor do pluralismo

metodológico, afirmando que ele não foi fiel às regras metodológicas e utilizou métodos

contra-indutivos e hipóteses ad hoc, o que gerou várias discordâncias por parte de

historiadores da ciência. Afirma a incomensurabilidade das teorias, de modo que duas

teorias não podem ser avaliadas lado a lado, pois tratam de entidades distintas. Desse

modo, afirma que o único princípio que não limitaria o progresso científico seria o “vale

tudo”.

Feyerabend também tece considerações sobre as implicações da relação do seu

anarquismo epistemológicos com a educação, também um reflexo de sua inspiração no

humanismo liberal de Stuart Mill. Coloca-se, assim, contra a “educação científica que

limita a multiplicidade de abordagens e pontos de vista”; afirma que “o pluralismo não é

apenas uma questão metodológica, mas, também, humanista e que precisa ser observada

na educação” (p. 50). Diz que a educação científica tornou-se a educação “regular”, a

partir de sua associação com o Estado, e compara a hegemonia da educação científica à

hegemonia religiosa.

No terceiro capítulo, a autora faz uma avaliação crítica das três hipóteses de

trabalho levantadas na introdução da dissertação, abordando inicialmente as duas

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primeiras. A primeira hipótese afirma que o estilo panfletário de Feyerabend,

principalmente em Contra o método, levou a uma tendência para uma interpretação

parcial e superficial de sua obra, assumindo-se a mesma como descrevendo ou

sugerindo uma falta total de critérios para a pesquisa dita científica; a segunda hipótese

afirma que uma leitura mais articulada de todo o conjunto da obra de Feyerabend nos

indica que, ao contrário de um simplório anarquismo metodológico com total ausência

de critérios, o autor pretendeu atacar a existência de uma unidade de método científico,

pautado numa Razão que pressupõe a possibilidade de tal método único, defendendo

uma maior plausibilidade e desejabilidade tanto da pluralidade metodológica quanto de

seus fundamentos. Considera que, além do estilo panfletário, também contribuíram para

uma grande rejeição ao anarquismo epistemológico os seguintes fatores: diversos

problemas na estrutura formal tanto nos argumentos contrários ao monismo

metodológico quanto nos de defesa ao anarquismo pluralista; discordâncias de outros

epistemólogos quanto às interpretações de episódios da história da ciência e da atitude

de cientistas a que Feyerabend faz alusão para fundamentar e dar respaldo histórico à

sua epistemologia (Galileu); e a sua defesa de atitudes “politicamente incorretas”. Já a

segunda hipótese foi plenamente confirmada, segundo a autora.

A terceira hipótese avaliada afirma que o desenvolvimento de uma atitude crítica

em relação aos cânones de racionalidade e objetividade do conhecimento científico e da

sociedade cientificista, segundo Feyerabend, abririam um caminho para outras formas

de conhecimento serem reconhecidamente válidas, tornando sem sentido a

desqualificação atualmente prevalente dessas outras formas de conhecimento

pejorativamente ditas não científicas e/ou não racionais. A autora também considera

esta hipótese plenamente confirmada.

No capítulo final, a autora apresenta as conclusões da pesquisa, sintetizando

brevemente o que foi constatado com relação à epistemologia de Feyerabend.

Apresenta, então, inusitadamente, o delineamento de uma nova hipótese para pesquisa

futura, que se refere à possibilidade de aproximação entre a epistemologia anarquista de

Feyerabend e as atuais pesquisas em complexidade sob o enfoque agregativo. Traça,

assim, uma analogia entre o sistema epistemológico anarquista pluralista e os sistemas

complexos, alongando-se na questão de um modo realmente inesperado.

Ao abordar a transformação do pensamento de Feyerabend, do racionalismo

crítico popperiano à sua epistemologia anarquista, a autora traz uma contribuição

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importante ao situar o autor historicamente, desde o seu pensamento enquanto discípulo

de Popper, influenciado pelas suas idéias, até a ruptura com estas idéias e o

desenvolvimento de suas próprias concepções. Se Bachelard havia chamado a nossa

atenção para a descontinuidade no progresso científico, para a necessidade de se pensar

a noção de ruptura, Gonçalves nos mostra a descontinuidade na epistemologia, em dois

autores que se sucedem, mas aqui seria mais imprudente falar em progresso. Além desta

ruptura, que Feyerabend realiza, ao destacar-se do racionalismo crítico de Popper, a

autora também procura voltar nossos olhos a uma continuidade que perpassa as duas

fases da epistemologia de Feyerabend — a atitude pluralista e a influência do

humanismo liberal de Stuart Mill. Se, na primeira fase de sua obra, Feyerabend já

expressava essa atitude em uma defesa do pluralismo teórico, na segunda fase a

estenderá a um pluralismo metodológico e na crítica aos privilégios dados ao

conhecimento científico, assumindo uma atitude pluralista perante todas as formas de

conhecimento, e colocando uma ética humanista como princípio norteador para o fazer

científico. Considerando que a autora, além de apresentar os aspectos gerais da

epistemologia anarquista de Feyerabend, nos proporciona uma compreensão histórica e

ponderações sobre as razões das críticas ferrenhas que o autor sofreu, posso dizer que

esta dissertação é uma ótima introdução ao pensamento epistemológico de Feyerabend.

Resenha por André Mattos, 29 de agosto de 2010.