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DO TRABALHO DE CAMPO À ESCRITA ETNOGRÁFICA: BREVES

REMINISCÊNCIAS SOBRE O FAZER ANTROPOLÓGICO.

Isis Caroline Nagami1

Universidade Estadual de Londrina

GT4 - Perspectivas Antropológicas Contemporâneas.

Capes

Resumo: A ascensão do trabalho de campo como forma de pesquisa antropológica trouxe o debate

sobre a relação estabelecida entre antropólogo e nativo, entre o "eu" e o "outro". Firth2 afirmava um

"nós" ao se referir a sua pesquisa entre os Tikopia, no entanto, se o antropólogo interpreta os

símbolos dos "nativos" a luz de seus próprios conceitos, certamente a relação estabelecida entre

"eu" e o "outro" não será nem a voz nativa nem a voz do antropólogo. O "ir a campo" contrapõe os

conceitos do antropólogo com os conceitos do nativo; o "ser afetado" traz a percepção de que a

experiência de campo, seus insights e imponderáveis, são significativos para a interpretação dos

eventos. E o presente etnográfico se apresenta como estratégia discursiva de observação do sujeito e

do objeto. As oscilações entre a questão da experiência e da interpretação trazem interessantes

debates acerca dos conceitos e relações estabelecidas entre pesquisador e pesquisado, entre sujeito e

objeto, entre o trabalho de campo e a escrita etnográfica.

Palavras-chave: pesquisa de campo, imagem, alteridade

Introdução

James Clifford, em A Experiência Etnográfica (2002), observa alguns recursos que a

antropologia utiliza para legitimar suas pesquisas. Além da experiência de campo, o fazer

etnográfico traduz a experiência para a forma textual. Fotos e modos de escrita fazem parte das

estratégias com as quais se pretende dar autoridade científica ao conhecimento antropológico. No

entanto, o modo como estas são utilizadas tem sofrido grandes mudanças.

Diferente de Malinowski, que utilizava a fotografia como recurso comprobatório do “eu

estava lá”, Jean Rouch proporcionou outro viés aos recursos imagéticos. Em “Les Maîtres Fous”,

Rouch traz o ritual para o vídeo, através do acompanhamento da câmera aos movimentos do ritual.

[...] Eis que entra em cena o “cine-transe”, expressão cunhada por Jean Rouch

para se referir à filmagem de Les Maîtres Fous: é preciso filmar como se estivesse

em transe para que o efeito do filme aproxime-se do efeito do ritual. (ROUCH

apud SZTUTMAN, 2005: 122)

A imagem e o texto deixam de ser vistos como produções isentas de subjetividade daquele

que o produz. No entanto, o uso da imagem em pesquisas antropológicas continua a ser

problemática à medida que é vista como uma invasão de outras áreas. Sylvia Caiuby Novaes, em “O

1Mestranda em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina, PR.

Endereço eletrônico: [email protected] 2 Ver: Firth, R. Nós, os Tikopias. 1998.

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uso da imagem na Antropologia”, observa que mesmo “(...) Um antropólogo mestre das imagens

como Jean Rouch é certamente mais reconhecido e apreciado por cineastas (...) do que por seus

colegas antropólogos" (NOVAES, 2005:109). Assim como a imagem, o texto também não está

isento da percepção do pesquisador. A mudança perceptiva sobre os conceitos e modos discursivos

do fazer antropológico trazem questionamentos sobre a autoridade do antropólogo em interpretar a

"cultura do outro". Sob quais conceitos compreendemos o outro? Será que tais conceitos não são

expressões culturais construídas historicamente? Quais as relações de poder existentes na

elaboração de tais conceitos?

A ascensão do trabalho de campo como forma de pesquisa antropológica trouxe o debate

sobre a relação estabelecida entre antropólogo e nativo, entre o "eu" e o "outro". Firth3 afirmava um

"nós" ao se referir a sua pesquisa entre os Tikopia, no entanto, se o antropólogo interpreta os

símbolos dos "nativos" a luz de seus próprios conceitos, certamente a relação estabelecida entre

"eu" e o "outro" não será nem a voz nativa nem a voz do antropólogo. O "ir a campo" contrapõe os

conceitos do antropólogo com os conceitos do nativo; o "ser afetado" traz a percepção de que a

experiência de campo, seus insights e imponderáveis, são significativos para a interpretação dos

eventos. E o presente etnográfico se apresenta como estratégia discursiva de observação do sujeito e

do objeto.

As oscilações entre a questão da experiência e da interpretação trazem interessantes debates

acerca dos conceitos e relações estabelecidas entre pesquisador e pesquisado, entre sujeito e objeto,

entre o trabalho de campo e a escrita etnográfica.

O trabalho de campo, o antropólogo e a escrita etnográfica

A antropologia possui métodos de pesquisa particulares se comparada as outras áreas das

ciências sociais. A pesquisa de campo tornou-se um dos principais meios de pesquisa das

longínquas sociedades que se pretendia analisar. Os relatos de viajantes foram os primeiros meios

informativos de divulgação da existência do "outro", através de observações e transcrições sobre as

experiências de viagens. Tais relatos eram comumente realizados por religiosos que acompanhavam

as viagens expedicionárias colonialistas.

De acordo com Clifford4, entre 1900 e 1960 houve o estabelecimento de uma nova forma de

pesquisa de campo, pautada em um intensivo contato com povos exóticos, realizados por

especialistas treinados na universidade. A observação participante tornou-se um dos meios

3 Ver: Firth, R. Nós, os Tikopias. 1998.

4 ver: Clifford, J. Sobre a autoridade etnográfica, in: A experiência etnográfica, 2002.

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legítimos, institucionalizado e concretizado através da produção textual. Malinowski5 retrata a

condição da observação participante ao expor a situação do pesquisador que é deixado em uma ilha

desconhecida - imagine-se você leitor, sendo deixado por um barco em uma ilha longínqua? Este

"estar lá" da observação participante, tinha como aliada não apenas a forma textual com que se

conquista o leitor, havia também a materialização fotográfica comprobatória do "eu estava lá". Tais

elementos sugeriam a legitimidade da pesquisa antropológica que, através de seus métodos de

coleta de dados, permitia que a observação do "outro" se desse de forma cientificamente validada,

culminando na tradução de tal experiência através da forma textual.

Em 1967, o diário íntimo de Malinowski foi publicado com a autorização da sua esposa. A

publicação do diário trouxe a tona o lado menos nobre do antropólogo no trabalho de campo.

Diferente da retórica utilizada na produção acadêmica, o que se observa é "um Malinowski

frequentemente mal-humorado, enfurecido com os nativos (págs. 70, 83, 104, 201), ansiando por

pegar um barco e 'dar o fora dali' (pág.100) e reclamando do desconforto daquela vida entre pulgas,

mosquitos, fumaça, porcos e crianças barulhentas (pág. 89)"6

A observação participante efetuada entre sociedades exóticas, intensiva e temporalmente

extensa contrapõe lógicas, hábitos, valores e costumes diferentes. A publicação do diário de

Malinowski expressa as contradições da pesquisa de campo e da produção textual. O

questionamento sobre os métodos, conceitos e sobre os próprios antropólogos estão presentes desde

a consolidação da antropologia enquanto área do conhecimento. Se os teóricos da época de

Malinowski questionavam os "antropólogos de gabinete" que utilizavam dos relatos dos viajantes

como forma de informação, após o período colonial vê-se o questionamento dessa "teoria ocidental

do norte" que, durante muitos anos, foi considerada a produtora legítima de conhecimento do

"outro".

Ao contrapor as grandes teorias evolucionistas baseadas no método comparativo com o

"ponto de vista dos nativos", Malinowski inaugura um novo "fazer antropológico" em que o

confronto entre teoria e trabalho de campo tornam-se o meio pelo qual o antropólogo põe a prova os

conceitos e elabora reflexões acerca da experiência, interpretando e materializando a experiência

através da escrita etnográfica. Com isto, não pretendo sugerir um exercício meramente descritivo ou

jornalístico da experiência do antropólogo que vai a comunidades exóticas relatar diferenças.

Há algo curioso na antropologia: ao mesmo tempo em que se vangloria de ter uma

das tradições mais sólidas entre as ciências sociais - na qual se reconhecem

cronologicamente os mesmos autores ‘clássicos’ quer se esteja no Brasil, nos

Estados Unidos, na Índia ou na Inglaterra -, a disciplina abriga estilos bastante

5 ver: Malinowski, B. Argonautas do Pacifico Ocidental, 1978.

6 ver: Silva, V. G. Resenha de Um diário no sentido estrito do termo. Núcleo de Antropologia Urbana da USP.

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diferenciados, na medida em que fatores como contexto de pesquisa, orientação

teórica, momento sócio-histórico e até personalidade do pesquisador e ethos dos

pesquisados influenciam o resultado obtido. Essa característica, ao mesmo tempo

que pode ser apropriada positivamente como um dos aspectos mais ricos e

complexos da disciplina, por outro lado oferece o perigo de, não respeitado o

equilíbrio sutil entre teoria e pesquisa, resvalar para uma situação na qual existam

tantas antropologias quanto antropólogos." (Peirano, 1991)

O exercício auto-reflexivo do fazer antropológico está no cerne da própria teoria. Pensar o

outro como espelho para a compreensão de sua própria sociedade esteve presente no pensamento

antropológico, como no de Mead7 por exemplo. Não pretendo discorrer sobre as contribuições

específicas dos autores tradicionais que servem como base teórica da antropologia, apenas apontar

algumas mudanças relativas ao modo como tais experiências de campo suscitaram mudanças

conceituais. Não existe receita de como deve ser o "ir a campo", e no caso da antropologia, as

monografias são transmitidas e narradas em um momento posterior a própria experiência. Os

recursos narrativos, as ênfases em determinados eventos e o meio fio que conectam teoria e

experiência possuem, até certa medida, liberdade criativa por parte de quem a produz.

Ponto ápice da narrativa sobre as brigas de galos em Bali, Geertz8 reflete sobre como a

iniciativa de "fugir junto com os nativos" ao notar a aproximação da polícia resultou na "aceitação"

do antropólogo pelos balineses. Os insights dos antropólogos passam a permear a tensa relação

entre teoria e prática. "Ser afetado"9, e demonstrar-se sendo, passa a contemplar parte do processo

de alteridade do exercício antropológico. Os imponderáveis do trabalho de campo e a interpretação

destes, passam a fazer parte das narrativas etnográficas.

A noção de cultura na antropologia tem se modificado devido a sua própria atuação. Ao

levar os conceitos a campo confrontando-o com a interpretação nativa, os antropólogos também

acabam por confrontar seus próprios conceitos. O debate travado entre Sahlins e Obeyesekere sobre

a questão da chegada do capitão Cook nas ilhas havaianas nos traz o diálogo de como pensar sobre

o pensamento, principalmente quando este se trata do pensamento do outro. De acordo com Sahlins,

o Capitão Cook foi "pensado como Lono desde a sua chegada ao Havaí" enquanto para

Obeyesekere ele só foi considerado Lono após sua morte.

No capítulo quatro de Ilhas de História, Sahlins observa que:

[...] Em janeiro de 1779, o capitão Cook foi levado a cumprir no templo os ritos de

boas vindas a Lono. Cook tornou-se realmente a imagem de Lono, enquanto o

sacerdote Ko'a e o tenente King mantinham seus braços esticados à sua frente. Ele

parecia uma duplicata do ícone de travessão (construído com varas de madeira) que

7 ver: Mead, M. Adolescencia y Cultura en Samoa, 1973.

8 ver: Geertz, C. Um jogo absorvente: notas sobre a briga de galos balinesa, 1989.

9 ver: Favred Saada, J. Ser afetado, 2005.

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é a aparência do deus. Esta era a cerimônia do Makahiki, o grande festival de Ano-

Novo havaiano. (Sahlins, p 141).

A interpretação de Sahlins sobre o evento da chegada de Cook as ilhas havaianas sugere

que, do ponto de vista do nativo, a figura do capitão foi interpretada como a chegada de Lono. Os

argumentos de Obeyesekere sobre a tese de Sahlins apontam para a questão da tradução linguística.

Mesmo que Zimmermann tivesse sensibilidade para compreender a pronúncia da língua havaiana, a

ideia de Lono pode ter sido confundida com a noção de "chefe" ou "acima". Obeyesekere outorga

para si a legitimidade sobre a racionalidade havaiana ao se identificar com um nativo do Sri Lanka

que observou nunca ter visto um europeu sendo deificado. De acordo com Da Silva,

Para Obeyesekere, Cook foi alvo de um "ritual de investidura" que fez dele um alto

chefe havaiano (leia-se humano) e somente após sua morte é que foi "deificado"

pelos havaianos. As réplicas de Sahlins, por sua vez, sugerem que a tese de

Obeyesekere (Cook-não-foi-o-deus-Lono-para-os-havaianos-a-não-ser-que-você-

seja-um-navegador-inglês-para-acreditar-nisso) nega aos havaianos seus próprios

pressupostos culturais, tornando-os depositários de uma forma de pensar similar a

dos europeus burgueses do século XVIII. (Da Silva, 2002)

Não cabe ao debate apontar se Sahlins ou Obeyesekere estavam corretos, mas em perceber

os limites da compreensão dos antropólogos e de seus conceitos. Estes, representam muito mais a

racionalidade do pesquisador do que a do pesquisado. A noção de tradução - traduzir os conceitos

nativos para os conceitos do pesquisado de forma inteligível - é um complexo caminho de busca da

compreensão de elementos da racionalidade humana. A cultura enquanto conceito, é construída

pelos antropólogos e, portanto, cada antropólogo possui diferentes racionalidades. Se Sahlins impõe

uma "racionalidade ocidental" para compreender os nativos, por outro lado, Obeyesekere se

apropria da posição de "nativo universal" para legitimar sua observação. Assim como é importante

levar em consideração "o local de que fala o antropólogo", também é necessário pensar quem é o

"nativo que ao empoderar-se responde por um todo", mas que, muitas vezes, não é a fala de todos.

Não podemos definir a cultura como algo objetivamente passível de análise e descrição.

Entretanto, assumir a multiplicidade de conceitos e de antropólogos pode acabar por esvaziar os

conteúdos e debates consolidados na área, culminando em uma simples menção a experiências e

interpretações divergentes.

[...]É sobre a tensão entre o presente teórico e a história da disciplina que a tradição

da antropologia se transmite, resultando que, no processo de formação, cada

iniciante estabelece sua própria linhagem como inspiração, de acordo com

preferências que são teóricas mas também existenciais, políticas, às vezes estéticas

e mesmo de personalidade. (Peirano, 1991)

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Sahlins compreendia a cultura como "a organização da experiência e das ações humanas por

meios simbólicos. As pessoas, relações e coisas que povoam a existência humana manifestam-se

essencialmente como valores e significados." Os símbolos expressos nas relações e coisas não tem

em si valor algum. Pensar os símbolos como construções que nos dão a forma como o interpretar e

o modo como o usar é pensar que os símbolos têm uma atuação sobre os sujeitos, mas a cultura,

enquanto sistema simbólico, não está fadada ao extermínio pela globalização ou a morte de

elementos primordiais das sociedades. Apontar para uma suposta morte da cultura devido ao

processo de globalização, devido a ação das grandes hegemonias culturais capitalistas soa de forma

um tanto simplificada.

O polêmico filme etnográfico de Jean Rouch, Les Maîtres Fous trouxe o debate sobre a

multiplicidade de interpretações sobre o mesmo evento. Para alguns o filme mostra como os

elementos trazidos pelo processo de desenvolvimento das cidades podem ser observados a partir das

interpretações no rituais Hauka. O grupo se reúne aos fins de semana na casa de Mountyeba,

sacerdote dos Hauka. Lá se encontra a estátua do governador, com seus cabelos, bigodes e armas.

Rouch descreve o processo ritual associando a elementos presentes nas cidades. O governador, as

armas, o sistema jurídico através da realização de "confissões", a separação entre os "não

sentenciados" e os "sentenciados". Após esta parte do ritual, observa-se o sacrifício de alguns

animais, e o deslocamento dos "sentenciados" para outro local em que eles deverão incorporar os

espíritos dos Hauka para então poder voltar ao circulo sagrado. Durante as filmagens da

incorporação, Rouch acompanha os movimentos rituais com a câmera. Este recurso de acompanhar

o movimento e, portanto, não deixar a imagem estanque, influenciou o surgimento do cinema

verdade. Do ponto de vista da antropologia visual esta inovação traz o debate sobre a questão da

experiência traduzida para o audiovisual, no entanto, o choque de tais imagens pode ser interpretada

como uma construção negativa da cultura africana. Supor que os símbolos possuem em si elementos

essenciais e naturais confronta-se com a percepção de que a cultura se modifica. Tanto no caso de

Sahlins quanto no de Rouch observa-se que a perspectiva depende de quem a está teorizando.

Em Cultura com Aspas (2009), Manoela Carneiro da Cunha observa como a identidade é

construída. Ao pesquisar a comunidade "brasileira" em Lagos, ela observa que o que os distinguia

era o uso de nomes portugueses, festas, comidas, linguagem e religiosidade brasileira.

[...]As implicações para os estudos afro-americanos são evidentes: não me parece

que se possa manter – se ainda houvesse alguém para querer fazê-lo – a ideia de

uma tradição cultural que se adapta a novos meios ambientes e se perpetua como

pode diante dos obstáculos que esse novo meio lhe antepõe, ao contrario, a noção

que se depreende é que a tradição cultural serve, por assim dizer de reservatório

onde se irão buscar, à medida das necessidades no novo meio, traços culturais

isolados do todo, que servirão como sinais diacríticos para uma identificação

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étnica. A tradição cultural seria, assim, seletivamente reconstruída, e não uma

instância determinante.(Cunha, p 226)

O processo de globalização acelerou a relação entre os diversos segmentos culturais,

entretanto, isto não quer dizer que há a sobreposição de uma cultura sobre a outra. Como podemos

observar através da contribuição da autora sobre as comunidades em Lagos, é que a cultura serve

como meio de diferenciação e assimilação entre indivíduos, elaborando a partir de elementos

culturais suas identidades.

A compreensão de que as culturas e que as teorias são construídas talvez nos traga mais

questionamentos do que asserções. A ampliação das áreas produtoras de conhecimento iniciou a

crítica a hegemonia teórica tradicional ocidental. Até então, os principais produtores de

conhecimento do "outro" eram os países norte americanos e europeus. Ao que Jean Camaroff10

nomeou como teorias do sul, exemplificando através dos estudos pós-coloniais as relações

estabelecidas entre os centros hegemônicos de produção do conhecimento e a produção teórica

daqueles que estão a margem, assim como a dependência teórica a que estão expostos.

Guillermo Gomez Penã, em performance apresentada no Encontro Internacional de

Antropologia e Performance11

, observa a questão da multiplicidade de olhares sobre as fronteiras.

Através de abordagens linguísticas e corporais, Guillermo apresenta-se como um "chicano cyber

punk", delineando elementos presentes no discurso sobre a questão da fronteira entre os Estados

Unidos e o México e mantendo como fio condutor as contribuições conceituais da performance art

com o ativismo e a teatralização das teorias pós-coloniais. A compreensão das relações de poder

presentes nas relações humanas através das teorias e da cultura passam a ser expressas nas

produções textuais a medida que são inseridos no texto posicionamentos bem claros. O texto

enquanto linguagem, expressa mais do que se pode ler em suas páginas. A estrutura textual passa a

incorporar parte do posicionamento do autor. Podemos observar tal estratégia no trabalho de John

Dawsey12

sobre o conceito de liminaridade na antropologia da performance. O desenvolvimento do

texto segue os "momentos" do processo ritual; ruptura (do teatro ao ritual), momento liminar (do

ritual ao teatro) e reagregação (as margens das margens - Benjamin). Sem entrar nos méritos

conceituais do texto, o que nos propomos observar é ao fato de como não só os conceitos teórico-

metodológicos mas também a própria escrita passa a ser construída a partir do ponto de vista do

antropólogo. Se antes o ponto de vista do nativos era almejado para a compreensão da cultura, nota-

se agora a relevância do ponto de vista do antropólogo.

10

ver: Camaroff, J. Teorias do Sul, 2011. 11

http://eiap2011.wordpress.com/programacao/mesas/ 12

ver: Turner, Benjamin e Antropologia da Performance: O lugar olhado (e ouvido) das coisas, 2006.

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Homi Bhabha, autor de O Local da Cultura(2007), questiona sobre a busca de subjetividades

originárias da cultura que permearam a teoria antropológica e suscita a necessidade de "ir além das

fronteiras".

(...) O que é teoricamente inovador e politicamente crucial é a necessidade de

passar além das narrativas de subjetividades originárias e iniciais e de focalizar

aqueles momentos ou processos que são produzidos na articulação de diferenças

culturais. Esses "entre-lugares" fornecem o terreno para a elaboração de estratégias

de subjetivação - singular ou coletiva - que dão início a novos signos de identidade

e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria ideia

de sociedade. (Bhabha, p 20)

A iniciativa de partir da questão do trabalho de campo para a escrita etnográfica origina-se

da percepção de que é na relação entre o campo e a etnografia que as teorias são lapidadas. Mesmo

que o antropólogo leve as teorias ao campo seguindo as orientações de Evans-Pritchard em

"Algumas reminiscências e reflexões sobre o trabalho de campo"13

, em que observa que a primeira

exigência para realizar uma pesquisa de campo é um treino rigoroso em teoria antropológica,

observamos que o fato do "ir a campo" não é a única forma de questionamento dos conceitos. A

própria produção textual acaba fornecendo fontes de contestação a medida que, enquanto símbolo,

pode ter mais do que uma interpretação.

Ao neófito que se inicia na antropologia, pensar sobre "como fazer pesquisa de campo" pode

ser tortuoso. Se não existe uma forma específica de fazer pesquisa de campo e se um afinado

conhecimento teórico é necessário para fazer pesquisa de campo pode-se concluir que, se permitir

dialogar com todas as linhagens da antropologia é estratégia necessária para se fazer antropologia.

Ao ir a campo e confrontar os conceitos do antropólogo com os conceitos nativos, há a

possibilidade de resignificação destes conceitos, tanto por parte do nativo quanto do pesquisador.

Esse "ser afetado" talvez forneça uma das formas possíveis de percepção das subjetividades levando

o antropólogo a saber o que olhar e o que ouvir. E através disso resultar em uma interpretação,

obviamente aliada as teorias, como forma de conhecimento sobre as formas de pensar.

Este, então, é o cerne do problema: se, na antropologia, a criatividade nasce na

relação entre pesquisa empírica e fundamentos da disciplina, então a pesquisa de

campo surge como algo mais que um mero ritual de iniciação no qual o

antropólogo prova que ‘sofreu, mas resistiu’. A solidão, embora boa companheira

das descobertas da alteridade, não é o caminho virtuoso e mágico que, por si só,

produz boa antropologia. À parte o fato de que a distância necessária para produzir

o estranhamento pode ser geográfica, de classe, de etnia ou outra, mas será sempre

psíquica, os conceitos nativos requerem, necessariamente, a outra ponta da

corrente, aquela que liga o antropólogo aos próprios conceitos da disciplina, isto é,

à tradição teórico-etnográfica acumulada. (Peirano, 1991)

13

ver: Evans-Pritchard, E.E. Bruxarias, Oráculos e Magia entre os Azande, 1978.

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A experiência no campo tem adquirido autoridade no fazer antropológico, desde

Malinowski o "estar lá" passou a configurar a estratégia primordial de pesquisa em antropologia. As

monografias, escritas no presente etnográfico, visam transmitir para o leitor a ideia de autoridade. O

uso de recursos como experiência dependerá das teorias e conceitos levados a campo.

Considerações finais

A fotografia também se mostram como fontes comprobatórias do "eu estava lá". A ênfase na

experiência tem oscilado com a ênfase na interpretação. Por um lado, a teoria levada a campo é

transformada pela experiência, por outro, sendo as teorias uma das formas de interpretação, a

Como podemos observar ao longo de nosso debate neste texto o campo na antropologia

encontra-se como fator essencial no processo de pesquisa antropológica. A importância dos debates

trazido pelas diversas concepções de "nós" e os "outros" sempre esteve no cerne da antropologia, no

entanto, com o desenvolvimentos das formas de comunicação e de ampliação dos espaços de

produção do conhecimento vê-se o surgimento de novos debates que passam a repensar a posição

do pesquisador e do pesquisado como performatizando o que lhe é dado.

Talvez uma das contribuições da antropologia do próximo seja pensar que o

conhecimento outro, a teoria outra, não necessariamente são o conhecimento do

outro ou a teoria do outro, ou pelo menos desse que ocupa, na forma como a

“alteridade” é pensada na antropologia, um lugar ontologicamente dado (coisa que

uma antropologia reversa, levada à sua radicalidade, ajudaria a repensar, já que,

sendo os outros nossos antropólogos, somos nós os outros desse outro e são eles o

“nós” dessa outra antropologia); nós e outros deixam de ser aqui lugares fixos, mas

posições no interior de relações, assim como sujeito e objeto, invenção e

convenção, ou mesmo natureza e cultura, conforme o que as reflexões sobre o

perspectivismo ameríndio têm trazido. (Maluf, 2010)

Talvez haja alguma explicação para que Geertz tenha se tornado referencia na antropologia

antes de Roy Wagner14

. Enquanto Geertz partia para uma antropologia interpretativa, Wagner

propõe uma antropologia em que desloca a dicotomia nós/eles, mostrando o sentido inventado dessa

convenção. A compreensão de que a noção de "nós" e "outros" deixa de ser compreendida como

uma unidade homogênea, dotada de termos próprios, trouxe a percepção de que não há um lugar

fixo. São as relações estabelecidas entre os sujeitos que, ao tomarem posicionamentos dentro desta

relação o performatizam e constroem os sentidos.

Certamente que uma boa formação teórica clássica é necessária, no entanto, é a experiência

de campo que desconstrói e constrói o conhecimento antropológico. Mesmo com tantas

14

ver: Wagner, R. A invenção da cultura. São Paulo : Cosac Naify, 2010.

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monografias e suas "descrições densas", seus insights e seus "ser afetados" não há como determinar

o modo que deve transcorrer a pesquisa de campo, a este fica o imponderável.

Referência bibliográfica

BHABHA, H. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.

BENITES, L. Cultura e Reversibilidade: breve reflexão sobre a abordagem “inventiva” de Roy

Wagner. In: Capôs 8(2): 117-130, 2007.

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PEIRANO, M.G. S. Os Antropólogos e suas Linhagens, In: Revista Brasileira de Ciências Sociais,

ano 6, vol. 16: 43-50 (1991).

disponível em: http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_16/rbcs16_03.htm

acessado em: 08/2011

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