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CICLO INTEGRADO DE CINEMA, DEBATES E COLÓQUIOS NA FEUC DOC TAGV / FEUC INTEGRAÇÃO MUNDIAL, DESINTEGRAÇÃO NACIONAL: A CRISE NOS MERCADOS DE TRABALHO NAVIOS DA VERGONHA UM FILME DE MALCOM GUY E MICHELLE SMITH DOCUMENTÁRIO 2006 Michelle Smith © 2000 Productions Multi-Monde

DOC TAGV / FEUC INTEGRAçãO mUNDIAL, DESINTEGRAçãO … · nas galeras dos tempos modernos que movimentam mais de 90% das mercadorias transaccionadas através do mundo. São elementos

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CICLO INTEGRADO DE CINEmA, DEBATES E COLÓQUIOS NA FEUC

DOC TAGV / FEUC

INTEGRAçãO mUNDIAL, DESINTEGRAçãO NACIONAL:

A CRISE NOS mERCADOS DE TRABALhO

NAvIOS DAvERGONhA

Um FILmE DE mALCOm GUy E mIChELLE SmITh

DOCUmENTáRIO

2006

Michelle Smith© 2000 Productions Multi-Monde

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CICLO INTEGRADO DE CINEmA, DEBATES E COLÓQUIOS NA FEUC

DOC TAGV / FEUC

INTEGRAçãO mUNDIAL, DESINTEGRAçãO NACIONAL:

A CRISE NOS mERCADOS DE TRABALhO

GLOBALIzAçãO E mARINhA mARCANTE:

A REDE mUNDIAL DA pRECARIDADE NO TRABALhO

NAvIOS DA vERGONhA

Um FilmE DE mAlCOm GUy E miChEllE SmiTh

DOCUmEnTáriO, 2006

DEbATE COm A pArTiCipAçãO DE:

FRANçOIS LILLE

máRIO RUIvO

áLvARO GARRIDO

TEATrO ACADémiCO DE Gil ViCEnTE

8 DE OUTUbrO DE 2007

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Globalização é um daqueles termos que passaram directamente da obscuridade para a ausência de sentido, sem qualquer fase intermédia de coerência. Mas deixem-me dizer apenas o seguinte: a globalização é também muito importante e é totalmente consistente com mais e melhores empregos, salários decentes e empregos decentes.

Robert Reich

Ship in Vancouver Harbour, June 2003© 2003 Productions Multi-Monde

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NAvIOS DA vERGONhA

Introdução

A maior parte das mercadorias que consumimos é transportada em navios onde as condições de trabalho recordam as das galeras duma outra época. Navios da Vergonha, o recente filme de Produções MultiMundo, tem argumento e realização de Malcolm Guy e Michelle Smith. Esta longa metragem documental leva-nos ao mundo perturbado dos armadores (como a família do antigo primeiro-ministro canadiano, Paul Martin) que evitam as normas de exploração e de trabalho aplicáveis nos seus próprios países, matriculando os seus navios no estrangeiro, em paraísos fiscais como o Panamá, as Baamas ou a Libéria. Seguidamente, contratam marinheiros com salários baixos nas Filipinas, na Índia, na China ou na Ucrânia. Navios da Vergonha conta a história dalguns destes marinheiros – a trabalharem nas galeras do Século XXI – e destes navios da vergonha em que eles vivem hoje, na era da mundialização das empresas.

Críticas

Navios da Vergonha é um excelente retrato das condições de trabalho extremamente difíceis dos trabalhadores da marinha mercante nos barcos com pavilhões de conveniência. O filme mostra as dificuldades extremas que enfrentam os marinheiros que chegam inclusive a serem maltratados nos barcos. Se há qualquer coisa a sublinhar, se o filme suaviza as condições que enfrentam muitos marinheiros, uma vez que os casos mostrados aqui são apenas aqueles onde a Federação Internacional dos Trabalhadores dos Transporte (IFT, em inglês) � pode entrar para ajudar os marinheiros em dificuldade então, na maioria dos exemplos mostrados,

� O IFT é uma federação sindical mundial que apoia as lutas dos marinheiros na obtenção de melhores condições de trabalho e melhores salários. Colocou inspectores em portos de importância crítica através do mundo para poderem ajudar as tripulações em dificuldade. www.itfglbal.org/seafarers/index.cfm

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resolve pelo menos alguns dos problemas enfrentados. Mostra o trabalho importante que pode ser feito pelos inspectores e pelas organizações internacionais dos trabalhadores para garantir os direitos daqueles que estão empregados até porque poucos mais virão em sua defesa.

Elizabeth R. DeSombre, Frost Associate Professor of Environmental Studies and

Political Science, Wellesley College

Altamente recomendado. A força do filme consiste na sua capacidade de demonstrar as negociações do IFT na defesa dos marinheiros… Navios da Vergonha é um filme importante porque traz à luz do dia e torna claro um mundo também com que muito poucas pessoas são familiares; contudo, na nossa era global do transporte internacional, trata-se de uma realidade da qual já não nos separamos.

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Sinopse

Navios da Vergonha leva-nos até ao fundo dos porões dos cargueiros que sulcam as águas internacionais, para descobrir a existência e as lutas dos marinheiros a trabalharem nas galeras dos tempos modernos que movimentam mais de 90% das mercadorias transaccionadas através do mundo.

São elementos essenciais na engrenagem da mundialização, permitindo que milhares de milhões de dólares de carros, laranjas, açúcar e de petróleo cheguem até nós e até aos nossos lugares de trabalho. E, no entanto, eles são elementos invisíveis; eles são mais de um milhão, originários das Filipinas, da Índia, da Ucrânia e da China, embarcados com contratos de nove meses (ou mais), distante das suas famílias, trabalhando frequentemente vários meses sem salários, em navios vetustos e perigosos, confrontados com os riscos de doenças e mesmo de morte.

A trama principal de Navios da Vergonha acompanha a tripulação de Cap Lord, enorme cargueiro, propriedade de um armador grego, que transporta carvão de Richard’ s Bay na África do Sul para Roterdão. A tripulação ucraniana não recebe salários desde há 5 meses. Não têm praticamente mais alimentos a bordo e os membros da tripulação estão

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inquietos, esfomeados e nervosos. Decidem passar à acção e pedem a ajuda de Sprite Zungu, o inspector local da IFT.

Nos dias seguintes, a câmara segue os altos e baixos desta batalha entre a tripulação ucraniana branca apoiada pelo inspector Zungu, negro intransigente, e o potente armador grego. As reivindicações da tripulação são simples: serem pagos, terem alimentos e deixarem o navio porque deixaram de ter confiança no seu proprietário. Os armadores gregos são conhecidos por enganarem os seus marinheiros. Mas o preço a pagar poderia ter sido elevado: por terem apresentado estas simples reivindicações, os membros da tripulação poderiam ficar registados na lista negra e nunca mais poder vir a trabalhar. Sob a pressão, alguns recuam mas a maioria dos membros da tripulação prossegue a sua luta.

Numa história paralela, descobrimos o impacto do sistema de listas negras.

O inspector do IFT em Vancouver, Myles Parsons, um canadiano imponente e tatuado de bigodes a parecerem um guiador de bicicleta, vem em socorro duma tripulação filipina que decidiu fazer greve em Montoir, na França, para protestar contra um capitão violento. Os marinheiros ganharam a batalha, mas ficaram a saber, no seu regresso às Filipinas, que as suas fotografias e os seus nomes circulam nas agências de recrutamento de tripulações.

Através das histórias destes personagens determinados e alegres, descobrimos a dimensão económica da marinha mercante, uma das indústrias mais desregulamentadas e onde a concorrência é das mais exacerbadas no mundo actual. Os navios navegam arvorando pavilhões de conveniência, compradas na Libéria, no Panamá e no Camboja, enquanto as agências de recrutamento tentam economizar milhões aos armadores, contratando as tripulações ao mais baixo custo possível. Descobrimos também os perigos do trabalho no mar, nestes navios que se partem em dois como o Flare, ao largo das costas de Terra Nova, ou o Prestige junto às costas de Espanha. Estes acidentes constituem as notícias principais dos jornais à escala do planeta devido aos impactos ecológicos evidentes, mas as tripulações que põem em risco as suas vidas para salvar os navios são muito pouco mencionadas.

No entanto, apesar de todos os perigos, centenas de filipinos, ucranianos e chineses fazem filas de espera diariamente à porta das agências de recrutamento para estes empregos no alto mar em que se atraem as pessoas jovens com promessas de aventura, uma mulher em cada porto, e sobretudo salários quatro a cinco vezes superiores aos que poderiam esperar ganhar

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nos seus países. O filme Navios da Vergonha penetra neste mundo estranhamente cosmopolita onde os nomes exóticos dos portos mundiais fazem parte das conversas diárias, através das histórias pessoais dos marinheiros e dos que se batem em seu nome. Num contexto onde vidas são postas em causa e onde se entregam a duras batalhas, o filme apreende o humor dum mundo de homens que tentam viver uma vida normal em circunstâncias que são das mais inusitadas. Finalmente, o filme deixa-nos com a esperança que, nesta trama internacional muito complexa, há pessoas que ousam resistir, e de pé, e sobreviver a estas travessias difíceis na maior dignidade para entregarem as mercadorias de que temos diariamente necessidade.

Quando o filme está a chegar ao fim, a confrontação final entre a tripulação ucraniana e o armador anuncia-se iminente, John de Guzman vai saber assim se pode ou não voltar a trabalhar e Myles Parsons embarca a bordo duma vedeta para salvar os membros duma tripulação desesperada, originária das Maldivas, que está prisioneira no seu navio desde há mais de �8 meses.

Palavras

A ideia deste filme germinou enquanto trabalhávamos na nossa série de três episódios sobre as trabalhadoras migrantes das Filipinas. Há vários anos, encontramos em Manilha um grupo de antigos marinheiros com as suas famílias, marcados para sempre pelo seu trabalho no alto mar. Chocou-nos saber que estes marinheiros, amputados na sequência de acidentes do trabalho, nunca tivessem recebido qualquer indemnização. Uma mãe chorava o seu filho considerado desaparecido. O seu desaparecimento foi ligado a “tendências psicóticas”, de acordo com os relatórios médicos, embora nunca tivesse anteriormente apresentado sintomas psicológicos. Outros lamentavam-se de terem sido postos na lista negra pelas agências de recrutamento e já não conseguirem outro emprego apesar dos seus anos de experiência profissional.

Aqui, no Canadá, o caso de quatro marinheiros filipinos que em Halifax ousaram testemunhar contra o seu empregador, um armador de Taiwan bem estabelecido, declarando que o capitão tinha ordenado lançar ao mar os clandestinos romenos, reteve a nossa atenção. Estes marinheiros continuaram retidos em Halifax durante dois anos a trabalharem numa fábrica de conservas de lagosta, esperando obter o estatuto de refugiados. Entretanto, nas Filipinas, as suas famílias eram objecto de perseguição e passaram a viver sob protecção.

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Depois, estes marinheiros obtiveram o estatuto de refugiados mas já não conseguiram trabalhar mais como marinheiros.

Estas histórias revelam a impunidade que prevalece no alto mar, onde os trabalhadores são confrontados com o despedimento, os golpes, ou mesmo com a morte quando protestam ou recusam respeitar as regras. As Filipinas são o maior país fornecedor de marinheiros do mundo e concorrem com outros países para fornecer aos armadores, tripulações dóceis, trabalhadoras e baratas.

Escondem-se para além das ruas pavimentadas e dos cafés para turistas que bordam os cais das grandes cidades portuárias como Montreal. Chegam aos portos de escala do Canadá tripulações multinacionais de croatas, de indianos e de filipinos e permanecem apenas o tempo de descarregar e de se reabastecerem. Fazem a volta ao mundo, mas estes viajantes raramente ficam a conhecer as regiões dos seus destinos. Formam comunidades móveis nestes imensos navios cargueiros, governados pela forte hierarquia entre os oficiais e os membros de tripulação. Fizemos este filme para dar a palavra a uma comunidade invisível (desembarcam raramente nas nossas margens) que assegura o transporte de 90% dos produtos que consumimos diariamente. Estão no centro da mundialização e, no entanto, enfrentam também um dos elementos-chave desta mundialização, a indústria do transporte marítimo, nas suas lutas para obterem melhores condições de trabalho e um tratamento justo.

Malcolm Guy

Malcolm Guy é um director/produtor de documentários e filmes de ficção, que vive em Montreal; é o presidente de Produções MultiMundo, uma produtora que fundou em �987 com a cineasta Marie Boti. A sua obra inclui: Opération SalAMI: Les profits ou la vie? (melhor documentário, L’Association québécoise des critiques de cinéma �999); longa-metragem documental Moving the Mountain, como realizador; Modern Heroes Modern Slaves (melhor documentário, Associação Canadiana dos Jornalistas �997); Cherry Fruitbread (prémio do público, melhor curta metragem canadiana, Festival dos Filmes do Mundo 2003) e a longa-metragem L’Oreille d’un sourd, como produtor. Malcolm milita em prol das várias causas políticas e sociais, assim como do cinema independente. Interessa-se particularmente por filmes que abordam as questões sociais e políticas, nomeadamente no contexto das relações Norte-Sul, da imigração e das experiências interculturais.

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Michelle Smith

Michelle Smith produziu vários filmes com as Produções Multi-Monde entre os quais o filme de animação The Stray Dog (Le chien errant) (�997), When Strangers Reunite (�999) e A Time of Love and War (2000). Durante sete épocas, foi realizadora de Culture Shock/Culture Choc de RDI-CBC Newsworld, uma série bilingue que explorava o mosaico cultural canadiano. É a realizadora de Bizart, uma série de �3 episódios, difundida pela ARTV e TFO (2002). Foi a assistente de realização e a co-argumentista de Marie Boti em Modern Heroes Modern Slaves (melhor documentário canadiano, pela Associação Canadiana dos Jornalistas) e colaborou com a equipa de Multi-Monde em Musiques Rebelles Québec, com a câmara e como realizadora da segunda unidade. Foi co-realizadora da produção de RDI, Élections 2000: en coulisse. Esta série apresenta artistas canadianos emergentes numa grande variedade de campos artísticos.

Factos

Que papel desempenha a marinha mercante na economia mundial?

A marinha está no centro da economia global. Com efeito, esta indústria transporta 90% das mercadorias negociadas internacionalmente. Em �995, os cargueiros transportaram 4,5 mil milhões de toneladas por todo o mundo, incluindo �,4 mil milhões de barris de óleo, 402 milhões de toneladas de minério de ferro e �96 milhões de toneladas de cereais.

Que papel desempenha o Canadá na indústria marítima e na contratação de marinheiros?

Uma das maiores companhias de transporte marítimo no Canadá é a Sociedade Marítima CSL inc., da qual faz parte o Canadá Steamship Lines, empresa ligada ao antigo primeiro-ministro canadiano Paul Martin.

A IFT tem inspectores nos três maiores grandes portos no Canadá, ou seja, Halifax,

Montreal e Vancouver.

O IFT considera que há pelo menos seis a oito greves por ano nos portos canadianos.

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Outras acções correntes efectuadas pelos marinheiros são a greve de fome, as fugas dos navios ou a procura de refúgio nos centros para marinheiros.

Quem são estes marinheiros?

– há �,2 milhões de marinheiros através do mundo; – a maioria destes marinheiros tem entre o 3� e o 40 anos; – os marinheiros mais jovens são filipinos ou chineses; – quase 55% dos marinheiros ganham para o sustento de duas a cinco pessoas, enquanto

23% destes ganham para o sustento de 5 pessoas ou ainda de outros membros da sua família;– a maioria destes marinheiros são procedentes das Filipinas, da Indonésia e da Turquia; – um número crescente destes marinheiros provem da China e do antigo bloco do Leste; – a língua oficial nos navios é o inglês.

Quais são principais os problemas que os marinheiros têm que enfrentar?

– fracas garantias (metade dos marinheiros viaja nos cargueiros FOC (Flag of Convenience/Pavilhão de Conveniência) e ganham menos de �550 dólares por mês (taxa fixa pelo IFT), e a maior parte recebe mesmo menos de 500 dólares por mês;

– longas horas de trabalho (86% dos marinheiros trabalham de 8 a �2 horas, �4% deles trabalham mesmo mais de �2 horas);

– condições de trabalho perigosas;– abusos físicos e/ou sexuais (marinheiros das Filipinas e da Indonésia denunciaram

abusos muito intensos); – rações alimentares e de água e condições de higienes insuficientes;– contratos não cumpridos;– a inscrição sobre na lista negra. As agências de recrutamento colocam os marinheiros

na sua lista negra se eles desagradam abertamente os seus empregadores, que os impedem assim de poder voltar a ter emprego nos barcos e no sector marítimo em geral. Estas listas negras, onde figuram as informações e as fotografias dos marinheiros “não cumpridores”, são distribuídas a todas as agências de recrutamento.

Qual é a taxa anual e a causa de mortalidade entre os marinheiros a bordo dos cargueiros?

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A quantidade de marinheiros que perdem a vida em viagem pelo mundo é considerada em 2.500 por ano. A causa principal de mortalidade é a catástrofe marítima seguida pelas seguintes causas:

– acidentes de trabalho;– doença; – desaparecimento no mar; – homicídio; – suicídio.

O que é um pavilhão de conveniência (flags of convenience ou FOC)?

Os países que oferecem a um armador estrangeiro o registo da sua bandeira marítima são considerados como países de pavilhões de conveniência. Um quinto do número total de cargueiros são embarcações FOC, que são apesar de tudo os responsáveis por mais de 50% das perdas de navios pelo mundo. A taxa anual de morte dos marinheiros nos barcos FOC são aproximadamente duas vezes mais elevada que a verificada nos outros navios. Em geral, estas pavilhões de conveniência permitem aos armadores:

– evitar os impostos;– transferir preços; – evitar os sindicatos; – recrutarem marinheiros sem domicílio e sem documentação a salários por hora

muito baixos; – evitar pagar as contribuições de seguros e para a Segurança Social às suas

tripulações;– evitar aplicar correctamente as regras de segurança e as leis ambientais.

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mAUS TEmpOS NOS mARES

François Lille Economista

www. gisti.org/doc/plein-droit/61/mers

No mercado mundial, o trabalho marítimo tende cada vez mais a desembaraçar-se dos seus “obstáculos sociais”. Com o desprezo pelas normas nacionais e internacionais do direito do trabalho e do direito marítimo, dois princípios dominam actualmente as relações de trabalho, a negociação individual e a discriminação. Perante estes perigos, as lutas sindicais organizam-se.

O que há de comum entre um super petroleiro, um porta-contentores de rotações rápidas, um cargueiro vagabundo, um car-ferry que efectua várias viagens por dia, um navio de cruzeiros? O mar, é certo, mas também o ofício de marinheiro, destas “pessoas do mar”, cuja formação as torna aptas a passar, ao longo de toda a sua carreira, por diversos tipos de actividades, assim como a especializar-se numa só – mediante formações complementares rápidas se necessário.

Descrever um ofício é já algo difícil, mas a itinerância profissional é mais do que um ofício, é um modo de vida. Para os marinheiros: a vida a bordo em contínuo, num espaço delimitado; relações sociais forçadas, num isolamento inelutável; o ambiente marinheiro selvagem; o ambiente portuário, profissionalmente estereotipado e culturalmente diversificado. Um mundo tradicionalmente masculino, mas onde tudo muda ou pode mudar.

Neste artigo, interessar-nos-emos particularmente pelos marinheiros da frota de transporte de mercadorias, que asseguram 90% das trocas comerciais internacionais. Quantos são? Cerca de um milhão, maioritariamente do Terceiro Mundo, dispersos pelos cerca de 40.000 navios, sem maior precisão, porque os números citados variam consideravelmente, de acordo com as fontes e as definições.

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Outrora, estávamos na presença de um sistema de trabalho marítimo essencialmente comercial, mas submetido a forte regulação, nacional e também cada vez mais internacional. A regulação global assentava numa base sólida, a combinação país da bandeira arvorada/armador, herdada de uma época onde o controlo duma frota que arvora pavilhão nacional era considerado como um dos instrumentos do poder económico e político dum país, e numa relação capital/trabalho que permitia um verdadeiro progresso social, e que se inscrevia progressivamente nos direito nacional e internacional do trabalho.

Até que as sociedades petrolíferas americanas, após a última guerra, imaginaram uma forma de colocar os seus navios sob as nacionalidades fictícias de Estados de conveniência, para escapar às leis sociais e fiscais nacionais americanas. O sistema das pavilhões de conveniência tinha nascido, sob o guarda-chuva protector dos “paraísos fiscais”.

É a partir daí que tudo começou a derrapar. Uma vez quebrado o elo forte do sistema, o triângulo Estado-armador-sindicatos, são as actividades mais directamente produtivas que são as primeiras a lucrarem ao iniciarem estas novas práticas, e são duas as componente nas quais se pode imediatamente lucrar, o trabalho e a segurança. O terceiro, mais geral, é a legalidade. O dumping social apoia-se naquelas duas componentes e delas se alimenta.

Mercado livre para trabalhadores escravos

Observa-se, no mercado de trabalho marítimo, os restos duma estrutura em via de liquidação, porque os direitos dos marinheiros das nações marítimas antigas estão sujeitos à concorrência permanente do não-direito dos marinheiros do resto do mundo. Na Europa, em França nomeadamente, vê-se bem como o mercado de trabalho, sob a pressão constante dos armadores, se liberta dos seus obstáculos sociais e sindicais.

As condições extremas são conhecidas, porque mediatizadas. Salários não pagos, navios abandonados cheios de dívidas, ou a enferrujar, ou mesmo as duas coisas, marinheiros sobre-explorados e mal alimentados, condições sanitárias pavorosas, intimidação e assassinatos se necessário, sem hipótese de recurso. Navios em fim de vida, riscos mortais para os marinheiros, mas não para o proprietário geralmente bem protegido. Da criminalidade económica, passa-se facilmente à criminalidade no sentido rigoroso do termo, sob a impunidade dos mundos sem lei.

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Aproximamo-nos da escravidão. Inúmeros armadores, e sobretudo mercadores de homens que trabalham por sua conta, desenvolveram meios de coerção brutais para obterem o cumprimento das suas ordens. Um destes, muito utilizado, consiste em cobrar ao marinheiro para lhe arranjar um emprego, normalmente um montante que vai de um a dois meses de salário. Não tendo evidentemente esta soma, o trabalhador embarca endividado, o que cria – além da espoliação – uma sujeição. Um outro método reside no atraso do pagamento do salário; independentemente das condições de trabalho e de vida que lhes é imposta, o marinheiro recusa-se a deixar um navio que é a única fiança de recuperação dos salários não pagos. Ainda aqui a espoliação e a sujeição vão a par, e de modo demasiado frequente de forma a que não possam ser atribuídas a dificuldades económicas momentâneas. Os meios directos de intimidação são piores, as listas negras, são uma prática corrente.

Não se deve pensar que a degradação da relação de trabalho se limita a uma franja maldita de armadores – canalhas, por muito grande que seja. Até nos armadores mais conhecidos, nos tráfegos dos grandes porta-contentores modernos, a situação se degrada: redução das tripulações, aumento dos ritmos de viagens e ritmos de trabalho, redução da protecção social, pressão sobre os salários. A prática das tripulações multinacionais generaliza-se (seis ou sete nacionalidades, correntemente, sobre uma vintena de pessoas) e favorece a sobre-exploração, mas também o declínio das práticas sindicais, ou muito simplesmente reivindicativas.

É por conseguinte no conjunto da marinha mercante à escala mundial que o mercado de trabalho é cada vez mais desembaraçado das suas restrições e das suas regulações. Tudo isto começou por ser feito a pretexto das pavilhões de conveniência, seguidamente das “duplas bandeiras”, com a cobertura das quais as nações marítimas procuram fazer concorrência aos primeiros (na França, chamam-se Kerguelen, aliás TAAF, Wallis e Futuna). O caos que se segue reestrutura-se espontaneamente sob o forte determinismo de uma concorrência selvagem, segundo duas “linhas de atracção estranhas”, duas linhas de força gerais: a negociação individual e a discriminação.

Perigoso modelo

A negociação individual é um termo antigo, uma prática dos inícios da revolução industrial que se julgava completamente extinta e que desenterrada reaparece agora: os trabalhadores estão sob contratos realizados com sociedades de “manning”, os mercadores de mão-de-obra, e não com os empregadores reais, os armadores. Estes adquirem assim o

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direito de explorar os marinheiro, ou até de os despedir. Mas o marinheiro, sem contrato de trabalho com o armador, não tem defesa legal contra a sobre-exploração, excepto voltar-se contra a “manning agency” que apressar-se-á a pô-lo nas listas negras da profissão. A negociação individual permite também constituir tripulações compósitas de marinheiros supostamente contratados nas condições dos seus países de origem, com efeito sem outra lei que não seja a do “livre mercado” mundial. Cruzando as desigualdades entre categorias e entre origens, os desvios tornam-se vertiginosos. E mesmo nas categorias superiores, mais bem remuneradas, as suas remunerações encontram-se fortemente reduzidas. Coberturas sociais e direitos sindicais, quando existem, referem-se fundamentalmente àquelas categorias, ou então desaparecem.

Tal é a situação de facto que se deixou criar no conjunto da marinha mercante à escala internacional, em ruptura quer com o direito nacional quer com o internacional, e do qual se quereria fazer-nos crer que se trata duma nova modernidade, inelutável. A fase seguinte é o ensaio de introdução destas práticas no direito nacional do trabalho, e é o que ilustra às mil maravilhas, neste mesmo momento, o projecto de lei que institui o novo registo internacional francês, dito “projecto RIF”, oferecido aos navios franceses mas destinado também a atrair navios estrangeiros.

Trata-se de um projecto de inspiração patronal que visa substituir, nos navios inscritos neste RIF, todo o edifício do direito do trabalho, sindical e de segurança social, pelas únicas disposições previstas pela lei! Quais são? Um desenterrar duma mistura de cláusulas minimalistas visivelmente escolhidas, mas sem referência precisa, nas convenções marítimas da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Trata-se muito genericamente de disposições que oferecem condições inferiores às do direito francês (curiosa utilização do direito internacional!): a semana legal de trabalho volta às 48 horas de antes de �936, os feriados oficiais tornam-se contratuais, o salário mínimo desaparece em proveito do salário mínimo marítimo da OIT (variável por país, mas na base média de 435 USD), etc. Quanto ao contrato de trabalho, é indiscutivelmente a termo.

Onde o projecto de lei mais inova é na introdução no direito francês da negociação individual e da discriminação. O texto atribui, com efeito, às “manning agencies” internacionais, rebaptizadas de “empresas de mão-de-obra marítima”, um estatuto que legaliza a prática da negociação individual que definimos acima. É o único ponto no qual se encontra uma referência precisa a uma convenção da OIT, neste caso a convenção n.º �79 sobre o recrutamento e a colocação das pessoas no mar. Mas, na realidade, esta referência é falaciosa porque “recrutamento

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e colocação” significam que o marinheiro obtém um contrato de trabalho com o armador, o que não é o caso quando há, como no sistema RIF, “contratação e posto à disposição”. Esta interpretação abusiva corre o risco no entanto de fazer escola, criando assim uma brecha séria num domínio do direito internacional a que falta ainda jurisprudência.

Por outro lado, a discriminação por nacionalidades é omnipresente neste texto. Disfarça-se para não chocar tão frontalmente o direito nacional como o direito internacional do trabalho, estabelecendo uma diferenciação por “lugares de residência”, como se, durante o seu embarque, os marinheiros continuassem a residir no seu país de origem — cujas condições sociais supostamente lhes são então aplicáveis. Também aqui, trata-se de um deslize que pode fazer escola, podendo vir a ser aplicável a outros trabalhadores migrantes temporariamente deslocados com contratos a termo.

Mas as coisas iam demasiado longe. Facto raro nesta profissão, a reacção sindical foi unânime. A greve maciçamente seguida provocou a travagem do projecto, divisões nos seus promotores, surgiu mesmo um bloqueio ao projecto e isto tendo como pano de fundo uma possível derrota eleitoral... A questão contudo ainda não acabou. Após um voto do projecto de lei pelo Senado no Outono passado, sem a mínima negociação nem sequer de contacto prévio com os sindicatos, o processo parlamentar foi apenas temporariamente interrompido. Primeiro sucesso para os sindicatos: obtiveram a abertura de uma negociação tripartida com o Estado e os armadores. Mas estes parecem não largar os dois pontos fortes do seu projecto, a negociação individual e a discriminação. A seguir, pois.

Recentemente foi apresentada uma proposta de directiva comunitária � relativa aos serviços no mercado interno, que visa permitir (designadamente) ao prestador de serviços de um Estado-Membro o envio de mão-de-obra para um outro, mantendo-o sob contrato nas condições do seu país de origem 2. No contexto novo da Europa a vinte e cinco, imagine-se

� Apresentada pela Comissão em �3/�/2004.2 O texto final desta directiva foi publicado em 27 de Dezembro de 2006 (�23/2006/CE). Entre Janeiro de 2004 e finais de 2006, este documento foi alvo de bastantes críticas e interrogações nomeadamente no âmbito do Parlamento Europeu. Um dos pontos que mais dúvidas levantou foi precisamente o princípio do país de origem. No texto final, a expressão desaparece sendo substituída pelo princípio da “livre prestação de serviços”. O Parlamento Europeu, no entanto, rejeitou a afirmação clara da primazia do direito do país de destino (N. do T.).

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as perspectivas que esta directiva viria a abrir, não para diminuir as desigualdades sociais, mas para organizar uma exploração mais vantajosa! De que se trata? Toda a diferença entre prestação de serviço e negociação individual de mão-de-obra é completamente esquecida, e o RIF vence mesmo mas, negando imediatamente esta diferença, cria o conceito de “empresários de mão-de-obra marítima” cuja “contratação em termos individuais” é a sua única função. A brecha está aberta, ainda mais aberta quando a lei não fará mais do que ratificar uma prática já tolerada.

A discriminação que daí decorre situa-se ao nível dos trabalhadores nacionais, comunitários e extra-comunitários, dado que os “prestadores” poderão contratar e “revender” directamente os trabalhadores do mundo inteiro. Neste caso, com a cereja no cimo do bolo, estas pessoas deslocadas já não ameaçam mais tornarem-se imigrantes no país onde ficam temporariamente a trabalhar, porque o Estado do prestador compromete-se a reenviá-las no final do trabalho.

Por último, o elo mundial fecha-se novamente com o AGCS (Acordo Geral sobre o Comércio dos Serviços, GATS em inglês), Acordo este do qual a directiva comunitária apenas retomou os seus princípios. Para a sua aplicação, a OMC (Organização Mundial do Comércio) dispõe de um braço de ferro, o ORD (Organismo de Regulamento dos Diferendos) a fim de forçar a sua generalização, sector por sector.

Direito internacional e lutas sindicais

Mas... tudo isto, em parte, está ainda apenas em projecto, e existem umas outras referências ainda mais fortes. A não discriminação por origens nacionais figura explicitamente em textos que se deveriam impor aos precedentes: a Declaração de �948, convenções da OIT, sem estar a esquecer o artigo �4 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem de �950. Embora o Tratado de Amesterdão se “esqueça” de a mencionar na lista das discriminações proibidas, assim como o projecto de Constituição europeia, as armas jurídicas não faltam, mas uma arma só é útil se há alguém que saiba e se sirva dela.

No campo internacional, as convenções e recomendações marítimas da OIT vão constituindo progressivamente, desde �920, elementos de um verdadeiro estatuto. Estas apoiaram-se nos progressos sociais dos marinheiros de numerosos países, entre os quais a

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França: do contrato precário ao emprego contínuo, aos estatutos estáveis, ao reconhecimento da dignidade da profissão e à consolidação de um sistema de previdência social já antigo; o progresso social não tinha sido uma palavra em vão desde o Século XIX.

As convenções internacionais marítimas do trabalho cobrem um largo campo, da contratação ao repatriamento eventual, passando pelas condições de trabalho e de vida a bordo, pela saúde e pelos cuidados, pelas feriados e pela protecção social que inclui a da família, pela inspecção do trabalho para se terminar em beleza... Desenham os traços de um possível modelo de estatuto profissional internacional, mesmo se este ainda não é um estatuto exemplar... Contudo, é o primeiro no mundo.

Um grupo de trabalho tripartido “de alto nível” do OIT prepara actualmente, para submeter à Conferência Geral da OIT de 2005, “um instrumento único e coerente que sintetiza tanto quanto possível todas as normas... do trabalho marítimo em vigor...”. É presidido pela França, que acaba também de assumir a liderança do movimento, votando a ratificação de todas as restantes convenções que se tinham vindo a arrastar 3. Que contradição com a louca saga RIF!

Pelo seu lado, a IFT luta passo a passo para impor aos armadores, por via contratual, o respeito dos principais elementos deste estatuto, que os Estados não se preocupam em fazer aplicar, e normas salariais mínimas que reduzam a pressão à baixa no mercado mundial de trabalho. Estes acordos cobririam já, segundo o IFT, �40.000 marinheiros, mas a sua eficácia e a sua extensão são um combate permanente.

A marinha mercante, primeira indústria historicamente internacionalizada, encontra-se agora na vanguarda da desregulação descontrolada chamada “mundialização neoliberal”. Em completa regressão social, ou pior? A história não se repete, mesmo quando fortemente o parece fazer. Os marinheiros, saberão eles que estão na ponta dum combate essencial da nossa civilização? Mas terão muita dificuldade em daí saírem sozinhos, e o seu caso diz-nos respeito a todos nós, e em primeiro lugar aos trabalhadores migrantes, itinerantes, deslocados ou explorados à distância... Porque não fazer-se deste primeiro exemplo possível da

3 Assinalemos, contudo, a ausência inquietante da convenção �65 sobre a segurança social dos marinheiros.

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instauração do estatuto internacional duma profissão uma causa mundial? As principais bases desta renovação existem no direito internacional, direito marítimo e direito do trabalho, nos costumes marítimos ainda vivos, na acção sindical e na experiência dos trabalhadores do mar e de terra. As bases institucionais existem também, mas os lobbys dos pavilhões de conveniência aí dominam como mestres, e o conjunto roda no sentido contrário. Será assim tão complicado pôr tudo em ordem?

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EmBARCAçõES. CONvENIêNCIA. RAINhA DO mAR

Por detrás do conceito de pavilhão de conveniência esconde-se um oceano poluído, com naftas de hipocrisia. Pavilhões de conveniência, pavilhões A, pavilhões TAAF (Terras Austrais e Antárcticas Francesas): como a espiral infernal da concorrência sem fim terminou por destruir as marinhas mercantes de todos os países da Europa�. Depois de cada maré negra, é a mesma litania. Um concerto de indignações tão unânime que custa a compreender como é que as catástrofes se repetem tanto. Todos denunciam, em conjunto, as pavilhões de conveniência, as embarcações caixotes de lixo, os armadores desonestos. Mesmo o patrão dos patrões não hesita em tratar os seus colegas de «proprietários de caixotes de lixo flutuantes» de «vadios dos mares». E o barão presidente da confederação do patronato francês, Ernest-Antoine Seillière, acrescenta que «os empresários estão totalmente de acordo para pôr cobro a estas práticas». Tem piada! Apetece-nos dizer. Mas de que práticas se trata, precisamente? Compreender o que esconder o conceito de pavilhão de conveniência é fazer uma viagem num oceano poluído de barcos velhos e de grandes manchas de hipocrisia.

No tempo da divisão dos mares

A primeira vaga inicia-se nos anos 50, no momento em que os países recentemente descolonizados desejaram legitimamente dotar-se de marinhas mercantes nacionais, tal como as das antigas potências coloniais. Uma concorrência inaceitável para estes últimos, que preferiram sabotar o sistema existente: o comércio partilhado entre os Estados. Até então, qualquer navio devia obrigatoriamente estar inscrito num registo nacional. Em contrapartida de ajudas públicas, os Estados exerciam uma tutela na construção naval, na marinha mercante. Uma questão de independência nacional tida em conta, em França, por

� Segundo o especialista em assuntos marítimos François Lille “no período recente, a explosão de registos de navios com pavilhões de conveniência correspondeu às políticas neoliberais lançadas a partir dos Estados Unidos com Reagan e da Inglaterra com Teatcher.

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Colbert a partir de �68�, e reafirmada com força após a guerra de �9�4-�9�8. Um país que não domine os seus abastecimentos em matérias-primas fica vulnerável. Nesta lógica, o pavilhão do navio simboliza uma coerência: uma bandeira conforme com a nacionalidade do barco, os marinheiros sujeitos a uma mesma legislação social, um lugar de trabalho enquadrado por leis nacionais, regras fiscais. Na França, os marinheiros tinham mesmo obtido condições sociais (contrato de trabalho, cuidados médicos, etc.), antecipando-se aos trabalhadores terrestres.

Quando se pôs a questão da divisão dos mares com os países descolonizados, os armadores, com a cumplicidade dos Estados, escolheram arrasar a coerência da «lei do pavilhão». Em �958, a convenção de Genebra inaugura um direito internacional pouco vinculativo. Esta convenção dissocia o Estado do seu pavilhão marítimo. Entre os dois, pode, a partir de agora, deixar de subsistir qualquer «relação substancial», por muito vaga que seja. Tudo passa a ser possível dado que esta formulação ondulante permite toda e qualquer interpretação. A atribuição de um pavilhão tende a tornar-se simplesmente uma formalidade administrativa. É aqui que nasce a «livre matrícula» e os Estados de conveniência pela mesma circunstância. O verme está no casco. E tanto mais quanto a complacência não se reduz ao pavilhão. Engloba também os jogos perversos entre o afretador e o transportador, que organizam a sua irresponsabilidade em cascatas de sociedades ecrãs. O Prestige, naufragado a �9 de Novembro de 2002 na Galiza, bem perto de Portugal, ilustra efectivamente a situação: construído no Japão, tendo pavilhão das Bahamas, pertence à uma empresa da Libéria situada em Atenas, tem o seguro ao mesmo tempo em Londres e certificado por uma sociedade norte-americana deslocalizada na Letónia. Mas era fretado por uma sociedade ecrã ancorada nas ilhas Virgens e referenciado em Zoug, na Suíça.

O Erika é um outro bom exemplo desta autêntica embrulhada económica, jurídica e humana. Em vinte e quatro anos mudou sete vezes de nome, nove vezes de entidade gestora, cinco vezes de bandeira. Para enviar um carregamento sem grande valor de França para Itália, a Total France activa a Total Bermudas (que na realidade está em Londres) que através de dois corretores marítimos, um suíço e o outro italiano, encontra na Suiça um barco dito de Malta, considerado propriedade duma sociedade ecrã das Bahamas supostamente pertencente a um Trust das Bermudas, gerida por um gabinete do Panamá, sem contar ainda com um pequeno armador italiano, duas pseudo-sociedades da Libéria, o banco Bank of Scotland e uma sociedade italiana de “manning”.

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Os armadores europeus estão actualizados. Quem não se recorda de Aristide Onassis, o riquíssimo armador grego, proprietário de frotas matriculadas em Chipre ou na Libéria. Para criar uma “sociedade de papel” num Estado de conveniência, basta enviar dois telefaxes. Nem é mesmo necessário investir capitais. No caso de situações contenciosas, um juiz, se for necessário chegar até aí, só consegue apanhar o vento! Em �976, os armadores da Alemanha Federal, para quebrarem a grande greve dos marinheiros, registam 40% da sua frota arvorando pavilhão cipriota. Os Estados Unidos, onde os navios eram matriculados (desde a Proibição) no Panamá, dotam-se de um novo lugar de matrícula, em �956: a Libéria. Ao tribunal deste país devastado por guerras intestinas, é inútil pedir o endereço onde se pode matricular um navio. A formalidade efectua-se nos Estados Unidos, Reston, na Virgínia. Ficção de um registo de um Estado, enquanto se trata apenas de um acto privado 2. Na Libéria, que não assinou nenhuma convenção internacional do trabalho, as tripulações encontram-se à mercê do armador. Forçadas e flutuantes. Os proprietários da Grã-Bretanha preferem matricular as suas frotas na Ilha de Man, ou mesmo nas Bahamas, onde o direito de greve não existe e onde as actividades sindicais são proibidas.

Todos os países europeus utilizam o pavilhão de conveniência. Uns directamente, como a Alemanha, a Dinamarca, a Noruega, a Itália, criando um registo internacional: “uma europeização do pavilhão de conveniência”. Outros países da União Europeia, entre os quais a França, escolheram uma solução híbrida de abrirem um registo de matrícula num território ultramarino para escapar ao direito nacional. A Espanha regista os seus barcos nas Canárias, Portugal na Madeira. E a França? A França escolhe Kerguelen. Em �986, dota-se de uma matrícula Kerguelen! Com o nome deste arquipélago francês da Antárctica. Um território sem habitantes, juridicamente autónomo, totalmente gerido a partir de Paris. Apareceram outros registos “franceses”, a Polinésia e a Nova Caledónia e, mais recentemente, Wallis-et-Futuna. Baptizaram-se estes pavilhões de “Kerguelen”, bis ou TAAF. Se se compara a situação dos marinheiros quase escravos do pavilhão de

2 Como sublinha o Le Monde Diplomatique, “Símbolo desta pura ficção jurídica, a frota da Libéria – atingida pela guerra civil – é, completamente, gerida por uma grande sociedade americana de Virgínia, e existe um acordo entre Monróvia eWashington que prevê que em caso de crise todos os navios liberianos pertencentes a interesses americanos podem ser imediatamente repatriados sob pavilhão dos Estados Unidos”. Le Monde Diplomatique, Ces espaces hors la loi du transport maritime, Fevereiro de 2000.

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conveniência pura e dura, os cinco registos franceses bis impõem um mínimo de direitos às tripulações e uma quota de marinheiros e de oficiais nacionais. Actualmente, 66% dos marinheiros franceses navegam sob o registo TAAF. Com turbulências jurídicas, na sua esteira: quid da lei republicana e do Código do Trabalho com a existência de marinheiros que fazem o mesmo trabalho num mesmo lugar, sem terem o mesmo estatuto nem o mesmo pagamento?

À primeira vista, nada distingue uma embarcação registada na metrópole de um navio TAAF, bis ou Kerguelen. Todos arvoram a bandeira nacional. Mas os navios da segunda categoria são registados em lugares que permitem aos proprietários escapar à regulamentação francesa. E ao fisco. Logicamente, o planisfério dos países de conveniência coincide estreitamente com o mapa dos paraísos fiscais. Estes são os únicos a oferecer a porosidade financeira que deixa flutuar livremente os benefícios dos armadores. Dinheiro sujo e conveniência, a mesma constatação. Mas, para além desta fraude fiscal legalizada, o pavilhão de conveniência é, primeiramente, a possibilidade de poder embarcar marinheiros mal pagos, de nacionalidade diversa. “É a procura dos custos mais baixos, a procura do lucro máximo. Perigoso para o ambiente, é um sistema que destrói os homens. Uma corrida ao lucro que conduz a que os produtos petrolíferos pesados sejam transportados inevitavelmente em embarcações vetustas, condição necessária para garantir bons lucros”, explica-nos Jean-Claude Gayssot, antigo ministro dos Transportes). Fala-se dos pavilhões, do estado dos navios, mas muito raramente dos homens embarcados sem direitos e abandonados à primeira dificuldade, sem salário, como barcos naufragados. Depois de cada catástrofe, alguns fazem precisamente notar que catástrofe não rima necessariamente com navio caixote de lixo. As embarcações sob pavilhões bis à francesa continuam a ser apresentadas a controlos técnicos qualificados de sérios. Nenhum tem mais de vinte anos de idade. O que não é o caso das frotas dos Estados de conveniência. A catástrofe aparece em primeiro como o resultado de um erro humano. Mas a complacência não é ela antes de mais uma fábrica de erros humanos? Reduzir as tripulações, os salários e os direitos sociais ao mínimo, não é embarcar pessoas insuficientemente formadas? Não é alongar os dias de trabalho até ao esgotamento e à perda de vigilância? Transformar os navios em Torre de Babel flutuante não é diluir a eficácia das ordens nos momentos cruciais? É exactamente porque a dimensão humana é primordial na análise de uma catástrofe marítima que a complacência é criminosa. Para os homens. Para o ambiente.

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Fim programado das marinhas mercantes

Assim desencadeada, a espiral infernal da concorrência sem fim acabou por destruir as marinhas mercantes de todos os países da Europa. Nas instâncias internacionais da profissão, na Organização Marítima Internacional (OMI), a voz dos que ganham com o pavilhão de conveniência prima sobre a dos Estados marítimos que suportam as consequências das marés negras. Alguns preconizam a complacência e a intensificação dos controlos nos portos. Mas quando existem, estes nunca incidem sobre as tripulações. Não será necessário, para além da intensificação dos controlos nos portos, reequilibrar o poder entre os ganhadores do sistema de conveniência e os Estados a que pertencem os portos e as costas? Não será necessário partir em guerra contra os pavilhões de conveniência, criando instrumentos internacionais ad hoc? Os parceiros sociais não fazem a mesma análise. A Confederação Geral dos Trabalhadores da marinha mercante opõe-se “às desregulamentações impostas pelos armadores e pela União Europeia”. Outros aceitam a evolução actual e procuram acompanhá-la. Mas um tal dossier não diz respeito exclusivamente às pessoas do mar. Ora, os cidadãos só exprimem a sua cólera quando surgem os baldes e as pás nas praias poluídas. Quando já é demasiado tarde. É tempo de abrir o dossier e de o debater a fundo.

Serge Garde. Humanité

Os países que têm mais pavilhões de conveniência

Erika, Prestige. Estes navios ilustram um triste fenómeno: as pavilhões de conveniência. Um navio com pavilhão de conveniência é um navio com bandeira de um país diferente do que se assume como seu proprietário. Estas pavilhões são utilizadas para se contornarem as regulamentações de trabalho do país de propriedade real e tornaram-se assim um meio de pagar salários medíocres, de escaparem às regulamentações sindicais e ambientais. É igualmente um meio de fazer circular barcos com mais de 20 anos de idade. Uma falta de regulação?

A mundialização acelerou este fenómeno: perante a concorrência do mercado marítimo, os armadores reclamam taxas as mais baixas possíveis e impõem regras reduzidas ao mínimo. A OMI, encarregada de velar pela regulação deste mercado, tem infelizmente muito poucos meios e poderes, até porque é dominada pelos Estados marítimos, em proporção da tonelagem da frota nacional e, por conseguinte, é dominada principalmente...

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pelas pavilhões de conveniência. De toda a maneira, veja-se a lista dos 20 países que acolhem mais pavilhões de conveniência:

Ordenação País Número

de barcos

Tonelagem total

(milhões de toneladas)

Idade média dos barcos

(em anos)

� Panamá 6247 �24,73 �8

2 Libéria �535 50,4 �3

3 Bahamas �348 35,8 �7

4 Grécia �548 28,78 24

5 Malta �350 26,33 �9

6 Chipre �325 23 �7

7 Singapura �768 2�,�5 �2

8 Noruega 722 �8,4� �7

9 China 3326 �7,3� 22

�0 Hong-Kong 766 �6,�6 �3

�� Ilhas Marshall 428 �4,67 �4

�2 Japão 7458 �3,92 �4

�3 Rússia 4943 �0,38 23

�4 Estados Unidos 6080 �0,37 24

�5 Itália �486 9,59 23

�6 Inglaterra �525 8,04 2�

�7 Dinamarca 453 7,09 �8

�8 Coreia do Sul 2532 7,05 24

�9 Saint-Vincent �304 6,58 24

20 Alemanha 857 6,45 2�

Responsabilidades

Para uma expedição marítima banal, é necessário um afretador (ou carregador) a solicitar o transporte e um armador (ou uma companhia de navegação) para oferecer o navio. Mas o centro do sistema está efectivamente no armador, a peça fundamental. A sua responsabilidade é total, e as leis do país onde matriculou o seu navio determinam as condições de trabalho das tripulações e a segurança da embarcação. O armador deve também

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respeitar as regulamentações internacionais ou então a sua responsabilidade é comprometida gravemente no caso de incumprimento das suas obrigações.

Esta era a situação, até ao aparecimento das pavilhões de conveniência, até as sociedades petrolíferas americanas, após a Segunda Guerra Mundial, começarem a colocar os seus navios sob nacionalidades fictícias de Estados de conveniência, para escaparem às leis sociais e fiscais do seu país. Desde então, assiste-se à uma evolução paradoxal. À medida que a duríssima condição dos marinheiros melhorava, constituíam-se novas frotas nas colónias recentemente libertadas, a derivação para o pavilhão de conveniência começava a desenvolver-se, até se tornar hoje o modo de funcionamento dominante. Esta deriva caracteriza o domínio marítimo, com as suas dimensões sociais, ecológicas, económicas, com as suas marés negras e as suas embarcações a caírem de velhas, com a generalização de práticas criminosas, mas é também um problema mais geral da economia mundial, com as zonas francas e a recusa dos direitos humanos, e o mundo sem lei dos paraísos fiscais, bancários e jurídicos.

Os anátemas oficiais proferidos contra as pavilhões de conveniência não têm mais efeito do que os enunciadas contra os “paraísos fiscais”. Pretender moralizar estas práticas, pregando contra os piores dos paraísos e pavilhões têm como efeito perverso branquear os outros e validar o princípio dos mundos sem lei. Tratar a questão em termos de “concorrência desleal”, quer seja a nível da Europa ou da OMC e da OMI pode ter apenas o mesmo efeito. Porque é a própria existência de um sistema que duplica e contamina o espaço legal que deve ser necessariamente condenado.

O problema não é técnico-jurídico, é profundamente político. Para tal, seria suficiente incriminar os utilizadores e promotores “legais” do sistema, para atingir e pôr a descoberto todo o movimento ilegal e criminoso que se esconde de trás. Sob o princípio jurídico – potencialmente universal – da associação de malfeitores, seria possível condenar aqueles que utilizam tais associações assim como aqueles que as concebem e as põem em prática.

Como atingir os promotores e utilizadores, que essencialmente estão situados nos nossos países ricos e não nas ilhas remotas? Dois exemplos podem resumir, grosso modo, a extrema diversidade das situações marítimas:

a) o “tramping” ou transporte de carga completa por conta de um afretador chamado “dador da ordem”. Se o navio não tem um armador real, com escritório público no país de matrícula dos seus navios, o responsável principal é de facto o dador da ordem, por conta de quem circula a mercadoria a transportar. Este é, por exemplo, o Total-Fina no caso do Erika.

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b) a “linha regular”, geralmente de contentores, cujos clientes constituem uma multiplicidade de afretadores “dadores de ordem” e não apenas um agente. Aqui há efectivamente, de modo que a linha exista e funcione, um armador, mesmo se tiver apenas a função comercial de subcontratar tudo o resto. Aqui é necessário, como no caso precedente, que suporte de forma global a inteira responsabilidade económica e social das suas subcontratações.

Como atingir estes responsáveis? Nos seus países, para as empresas legais ou ilegais, nos portos e mares costeiros para os navios de todos os países. O respeito do direito do trabalho internacional (das convenções da OIT) a bordo e o estado dos navios são critérios fundamentais, mas é necessário acrescentar um terceiro: o controlo das condições de afretamento de navios (um navio sem armador conhecido nem pavilhão real é uma embarcação pirata). Mas de modo a que esta prevenção não se faça às custas dos marinheiros, como tem sido o caso até agora.

A vertente repressiva não é porém suficiente, se não se criam as condições de uma sã exploração marítima. Seria necessário imaginar o que poderia ser um verdadeiro estatuto internacional do marinheiro e das empresas de navegação, com base na legislação internacional existente, nas convenções da OIT, e em todo o edifício dos direitos universais e das liberdades sindicais e políticas.

Fonte: excertos de �) Complaisances, de François Lille; 2) Naufrage Industriel pour la marine marchande,

Le Monde Diplomatique, Novembro de 2005 ; 3) Marée noire... le retour / Naufrage du Prestige, Novembro de 2002,

http://maree.noire.free.fr/indexb.htm; 4) La marine marchande, Attac, Março de 2005 ; 5) Bateaux. Complaisance,

reine des mers, L’Humanité, Janeiro de 2003; 6) Ces espaces hors la loi du transport maritime,

Le Monde Diplomatique, Fevereiro de 2000.

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Um BELO ExEmpLO DA mUNDIALIzAçãO ORGANIzADA pELAS mULTINACIONAIS

NAUFRáGIO DO pRESTIGE – O pETRÓLEO ESCORRE, Um jOGO vIRTUAL

Bernard Viau

Se dispõe de acesso à Internet, prometemos-lhe uma experiência que o fascinará durante horas a fio, à medida que progredir na sua investigação criminal. A sua missão, se decidir entrar neste jogo, consiste em descobrir as pistas de duas galáxias, nebulosas financeiras com ramificações internacionais, para o levar aos verdadeiros responsáveis do desastre petrolífero que aconteceu junto à costa de Espanha e perto de Portugal, uma catástrofe sem precedentes. Propomos que descubra por si mesmo a verdade sobre o desastre do petroleiro Prestige, cujas operações de limpeza foram as principais notícias na imprensa internacional.

Jogo virtual de inquérito, digno dos melhores cenários de Hollywood, este jogo da realidade em directo far-vos-á vibrar como nunca o fez nem o fará a televisão interactiva. O seu inquérito é perfeitamente legal, logo inútil, o que significa que não tem nada a temer quanto à eventualidade de vir a ser processado por difamação. Se vos perguntarem o que estão a fazer, dirão que se trata de um jogo apenas, e nada mais.

Os actores. Vejamos em resumo, a história, os actores e os acontecimentos. O petroleiro Prestige iniciou a sua viagem, no princípio de Novembro de 2002, num porto da Letónia, no Báltico, com um carregamento de petróleo de má qualidade – percentagem de enxofre de teor elevado em produtos cancerígenos – com carga destinada a um eventual comprador asiático ou africano. O proprietário do velho petroleiro é a companhia Mare Shipping da Libéria, que por sua vez é propriedade de Universe Maritime, empresa controlada pelo trust privado do falecido John Coulouthros, de Atenas. O petroleiro Prestige da Libéria arvora um pavilhão de conveniência das Bahamas, trabalha com uma tripulação de marinheiros filipinos, dirigidos por um capitão grego e transporta petróleo russo de má qualidade, comprado por uma companhia chamada Crown Ressources AG, com sede na Suiça, mas gerida a partir de

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escritórios em Gibraltar. Se procuram os accionistas maioritários, encontram Crown Trade and Financial, sociedade sediada nas Ilhas Virgens Britânicas, depois uma companhia moscovita, le grupo Alfa, que é presidida par um homem respeitável, poderoso como não podia deixar, e não duvide – Mikhail Fridman.

Quando o navio começou a perder petróleo, uma firma de Roterdão foi mandatada para o seu salvamento, a sociedade SMIT, a mesma que esteve implicada na recuperação do submarino Kursk, em 2000. Os seus peritos, depois de uma avaliação sumária, insistiram fortemente para que o petroleiro seja rebocado para o porto espanhol mais próximo. O ministro espanhol do Ambiente, Saune Matas, recusou liminarmente e ordenou à marinha espanhola que escoltasse o petroleiro moribundo até �20 milhas das costas de Espanha. Segundo os seus próprios termos, “uma vez afastado, não será da nossa responsabilidade”. O petroleiro nunca chegou a águas internacionais, aí, onde tudo é permitido e afundou-se ao largo da costa da Galiza, perdendo �0% da carga de petróleo, a qual se dispersou numa mancha de 250 quilómetros de margens.

Ficam-nos 90% dos 20 milhões de barris de petróleo nos porões, mas o Ministério do Ambiente Espanhol afirma que «tudo está sobre controlo» e que nós não temos nenhuma razão válida para nos inquietarmos. Depois de tudo, não são eles que são os peritos em ambiente?

O Jogo. O objectivo do seu inquérito será estabelecer a parte de responsabilidade de cada um dos actores. Aqui tem os nomes chaves que pode utilizar com um motor de busca: Mare Shipping Inc., Universe Maritime, Intertanko em Londres, CEDRE em Brest, ABS American Bureau of Shipping, Crown Ressources AG e MRI, em Zug, na Suiça, Crown Trade and Financial Inc., Alfa Group, os petroleiros Prestige, Bysantio, Mar Egeo, Captain Egeo, John, Nicolas, Anthony et Basil Coulouthros, Mikhail Fridman, Pyotr Aven e Boris Berezovski, Marc Rich, de domicílio variável, o ministro Saume Matas em Espanha, Lars Walden, da empresa SMIT de Roterdão.

Para todos aqueles que acreditam que isto não tem nada a ver com o Canadá, procurem os verdadeiros proprietários dos quatro velhos petroleiros canadianos registados na Libéria, tal como o Prestige; folheiem o registo das empresas nas Bermudas. Espero ter-vos dado suficientes informações e índices para aguçar a vossa imaginação e estimular-vos para esta aventura virtual.

Jogo transmitido por Bernard Viaux, e publicado em www.ledevoir.com

Page 31: DOC TAGV / FEUC INTEGRAçãO mUNDIAL, DESINTEGRAçãO … · nas galeras dos tempos modernos que movimentam mais de 90% das mercadorias transaccionadas através do mundo. São elementos
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