Documentario Em Sala de Aula Bruzzo

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  • Cincia & Ensino, 4 Junho, 98

    Debate

    O DOCUMENTRIO EM SALA DE AULA

    Cristina Bruzzo

    Quando se anuncia um filme documentrio o pblico se prepara para ver a vida como ela . A tradicional diviso dos filmes em fico e documentrio consolidou esta expectativa, assim, o primeiro conta uma histria e o segundo mostra a realidade. A decorrncia desta simplificao que o filme de fico serve ao entretenimento, enquanto atribui-se ao documentrio a enunciao da verdade, portanto a possibilidade de se aprender alguma coisa. Logo este cabe perfeitamente na escola, enquanto o outro requer cuidado em seu uso pedaggico, porque, sendo fico, engana.

    Assim o essencial do documentrio a realidade supostamente captada pela cmera e que pode ser revista infinitas vezes, congelada para sempre. Esta preocupao com a fixao do real acompanha todas as formas de representao, desde sempre. A pintura e a escultura tm uma longa trajetria de busca da forma natural e de sua negao, expressa pelos vrios movimentos de contestao do naturalismo. A possibilidade do registro fotogrfico, a partir da metade do sculo XIX, foi recebida como uma forma definitiva e inequvoca de reteno do real, a comprovao dos acontecimentos.

    O advento do cinema viria a coroar a apreenso da realidade, permitindo a fixao do movimento na pelcula. Os primeiros filmes realizados foram cenas reais que o pblico assistia com interesse: seqncias captadas nas ruas, filmagens de pases exticos, situaes familiares. Tudo era motivo para acionar a cmera.

    Entretanto esta variedade de imagens, aparentemente desordenada, atendia a uma necessidade precisa: o entretenimento. As pessoas se divertiam vendo filmes, nesta poca

    estes eram atraes nas feiras, junto com mulheres barbadas e as apresentaes burlescas. Os realizadores no tinham qualquer problema para simular situaes e apresent-las como se fossem verdadeiras..1

    A grosso modo tendemos a considerar este tipo de filme como mentiroso, a simulao ou a reconstituio so uma falsificao das provas. As reportagens televisivas, associadas `a idia de informao e atualidade, reforam a pretenso de quem produz as imagens e preparam o espectador para a verdade. Os programas so avaliados pela seu grau de exposio da realidade (a realidade nua e crua).

    Contudo no h unanimidade quanto ao entendimento de que a verdade est expressa nessas formas flmicas. H uma parcela do pblico, aquela familiarizada com as querelas da imprensa escrita e mais informada sobre os interesses econmicos e polticos que cercam a mdia, que com freqncia questiona e discorda de pontos de vista apresentados em programas que abordam temas sociais e polticos. Inmeras foram as atividades organizadas para a conscientizao do espectador, visando a formao do pblico para a chamada leitura crtica dos meios de comunicao, ocasionalmente chegando a banir alguns realizadores e personagens, por ideologicamente incorretos.2

    1 Para maiores informaes sobre os primrdios do cinema ver: Cristina Bruzzo. O cinema na escola: o professor, um espectador. Unicamp, 1995.

    Cristina Bruzzo professora da Faculdade de Educao da UNICAMP, membro do Laboratrio de Estudos audiovisuais - OLHO

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    2 Vale lembrar o ataque sofrido pelo Pato Donald e demais personagens dos Estdios Disney nos anos 70 por Armand Matellart (Para ler o Pato Donald), posteriormente reabilitados. O Pica-pau tambm no passou inclume.

  • Cincia & Ensino, Junho, 98 pode estar se passando o oposto do que est sendo filmado.3

    Porm, quando o assunto a atividade cientfica ou o mundo natural, parece que o espectador mobilizado de outra forma, talvez menos crtica ou, quem sabe, atribuindo menos importncia a este tipo de assunto. Pode ser que isto reflita, em alguma medida, a relao ambgua que a sociedade mantm com tudo que guarde relao com a cincia: um misto de respeitoso temor e distanciamento com a considerao ingnua de que, embora sria, sua esfera menos interessante, ou merece menos ateno. Basta ver como parco o jornalismo cientfico, apesar da candncia de muitos temas que dizem respeito diretamente ao denominado homem comum, como os problemas ambientais, a tica biomdica, as possibilidades da biotecnologia, a conquista espacial, dentre outros.

    Sem dvida importante no ter iluses quanto `a veracidade dos filmes, de todos os tipos de filmes, isto no significa, entretanto, que o diretor seja um mentiroso. Se o professor se preocupa com a verdade expressa nos filmes, s me resta um conselho: o espectador que necessita de garantias de autenticidade no deve ver filmes.4

    Documentrios e abobrinhas

    Todos sabem que tipo de filme se enquadra na

    categoria de documentrio, entretanto difcil a delimitao precisa deste gnero. A fronteira entre documentrio e fico cada vez menos clara e os realizadores ousam experimentar empregando procedimentos ficcionais nos documentrios e, inversamente, h filmes de fico com jeito de documentrio. A mescla de elementos autnticos e atores j familiar ao freqentador de cinemas, o recente O cineasta da selva (1997), de Aurlio Michiles uma fico que incorpora diversos trechos de filmes realizados pelo cineasta portugus Silvino Santos (tema do filme) nos anos 20, na regio amaznica. Bill Nichols, professor de cinema, destaca a dificuldade para demarcar as fronteiras entre os dois gneros, comparando-a com a impreciso na distino entre frutos e legumes.5

    Sendo a verdade ou mentirosos, os documentrios sobre a natureza so pouco abordados como objeto de estudo e o professor fica desarmado para proceder `a escolha desse tipo de produo flmica, por falta de reflexes que apontem critrios de seleo e explorao dessa profuso e imagens que cabos, satlites e vdeos espalham pelas telas.

    Exatamente pela quantidade e inevitvel fascnio que estes filmes despertam o educador no pode ignorar esta discusso, da qual no decorre necessariamente que deva empregar os filmes como recurso didtico em sala de aula.

    Para o espectador-aluno o documentrio mostra uma situao, prxima ou distante, cuja realidade inquestionvel, porque comprovada por imagens. Neste mundo do ver para crer, impregnado pelo que Gaston Bachelard denominou vcio da ocularidade, bem-vinda a abordagem na escola das possibilidades de manipulao das imagens: por cortes e montagens, insero de cenrios, alteraes de todo o tipo atravs da edio eletrnica. Basta lembrar que, mesmo sem o recurso de qualquer trucagem, o realizador sempre escolhe o local onde ser colocada a cmera de filmar, qual parte

    Isto entretanto no impede a identificao de algumas caractersticas do documentrio, fundamentais para a compreenso da lgica que organiza este tipo de filme e da forma como o espectador se relaciona com ele. Nichols aponta o papel central do discurso, da palavra, `a qual, de certa forma, as imagens ficam subordinadas. O discurso srio que orienta o filme tem origem na rea de conhecimento da temtica escolhida pelo diretor. Isto significa que o documentrio visa

    do lugar de filmagem ser mostrada e como ser iluminada, alm da deciso sobre o momento de ligar e desligar o equipamento. 'As suas costas

    3 Sobre o assunto recomendo a leitura do depoimento de Jorge Bodanzky, realizador de muitos documentrios, como Terceiro Milnio(1981). Coletnea lies com cinema vol. 3. So Paulo: FDE, 1996.

    4 Cristina Bruzzo. Introduo ao depoimento de Jorge Bodanzky. Coletnea lies com cinema..

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    5 Bill Nichols. Representing reality: issues and concepts in documentary. Indiana University Press, 1991, p.6.

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    convencer o espectador de alguma tese, conceito ou idia.

    A centralidade do discurso se expressa tanto pela narrao, quanto pelo encadeamento das imagens. A banda sonora organiza o sentido do documentrio, geralmente narrado por uma voz cujo emissor no identificado e que confere legitimidade ao contedo expresso. No por acaso que este tipo de filme faz sucesso na escola, os professores reconhecem a prevalncia da palavra e transformam a anlise do filme em falar sobre o que o filme falou, afirmando seu contedo. Os alunos, por sua vez, costumam morrer de tdio e preferem, de longe, os filmes de fico.

    Como a organizao visual persegue a narrao, comum neste gnero de filme a presena de lapsos e saltos, inconcebveis em filmes ficcionais. A analogia da imagem com o texto pode ser bastante distante, sem causar estranhamento no espectador, como, por exemplo, em filmes sobre um determinado habitat a insero de cenas de animais fora do ambiente natural (em cativeiro), ou seqncias indefinidas, como qualquer imagem de rios e lagos, ao se falar de poluio das guas, pelo princpio de que poderiam vir a ser contaminados. A plausibilidade menos rigorosa ao se tratar do documentrio, que admite imagens menos diretamente ligadas ao tema, sem prejudicar o entendimento.

    A falsa idia de que os acontecimentos mostrados no documentrio acontecem independentemente do fato de haver a filmagem, credita ao cinema no ficccional o pressuposto da no interveno. Contudo boa parte dos filmes sobre a natureza so estruturados tomando por base as regras ficcionais, notadamente dos filmes de aventura, basta lembrar das seqncias flmicas de predao e reproduo no reino animal. A prpria publicidade deste tipo de fita de vdeo enfatiza estas caractersticas de ao. Os ttulos das fitas de vdeo acenam para a aventura, como A fria da natureza, de 1994, cuja embalagem informa ser possvel que o espectador veja verdadeiros heris lutando para salvar propriedades e vidas, e o sofrimento das vtimas que enfrentam estas incrveis tragdias;

    ou no filme Baleias assassinas: lobos do mar, de 1993, sobre um dos mais temidos predadores do

    oceano, ambas da srie de documentrios em vdeo da National Geographic.

    Com isto percebe-se que, muitas vezes estamos diante de espetculos montados para o entretenimento ligeiro, que os produtores acreditam garantir maior audincia. claro que existem filmes que se diferenciam deste padro, como os documentrios da srie Eye Witness, exibidos pela TV Cultura de So Paulo com o ttulo de Olho Vivo. Nestes as trucagens e os efeitos so evidenciados pela alternncia de cenas naturais e artificiais.

    Por outro lado pode-se buscar a sombra da realidade nos filmes de fico. Afinal eles so filmados em algum lugar, no tempo presente, independente da localizao no tempo e no espao da trama narrada pelo filme. Assim quando a locao fora do estdio e no h grande alterao do local , possvel pensar a realidade do cenrio (claro que antes preciso reconhecer se houve montagem ou reconstituio e onde foi feita a filmagem). Guy Gauthier menciona em seu livro sobre o documentrio o dito cmico do cineasta Woody Allen: quando a trama de seus filmes tiver perdido o sentido para geraes do futuro, pelo menos sua obra servir para mostrar Manhattan, local privilegiado de suas filmagens.6

    claro que esta anlise parte de uma generalizao como se a produo documental fosse homognea. Isto no verdade, h documentrios que inovam o gnero e supem a participao ativa do espectador. Tambm a reflexo sobre a impossibilidade da captao perfeita da realidade no significa que o documentrio como um filme de fico, e que no cabe esperar qualquer rigor. O tema vasto, esta apenas uma breve introduo ao tema.

    6 Guy Gauthier. Le documentaire: un autre Cinma. Paris: Nathan, 1995.