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III CONGRESSO INTERNACIONAL DE DIREITO DO UBM
Direito, Desenvolvimento e Cidadania na América Latina.
Barra Mansa RJ, Brasil. 26, 27 e 28 de agosto de 2015 – ISSN: 1516-4071
DOS DIREITOS HUMANOS AOS DIREITOS INDIVIDUAIS: O IMPACTO DO INDIVIDUALISMO MODERNO SOBRE A CULTURA
POLÍTICA NO ESTADO LAICO.
GT I: Evolução e Concretização dos Direitos Humanos e Fundamentais na América Latina
Roney de Seixas Andrade1
RESUMO
Os Direitos Humanos emergem de um processo de longo tempo de construção da
autonomia da ordem coletiva iniciada com o advento do cristianismo, reconhecido
como a religião da saída da religião, e concretizada no período das revoluções
modernas – Revolução Inglesa, Revolução Americana e Revolução Francesa – as
quais contribuíram para o estabelecimento do Estado laico. Atualmente, no entanto,
a autonomia da ordem coletiva alcança um estágio avançado de seu
desenvolvimento, fato esse que tem levado alguns a considerar que estamos
vivendo, neste momento, numa “sociedade de indivíduos”. Assim sendo, nesta
comunicação buscaremos apresentar o percurso da consolidação dos direitos
humanos através da recomposição histórica da laicidade e da solidificação da
autonomia da ordem coletiva, bem como verificar as transformações ocorridas nas
sociedades ocidentais modernas que contribuíram para o processo de evolução dos
direitos humanos em direitos individuais.
Palavras-chave: Direitos Humanos, Laicidade, Autonomia da Ordem Coletiva.
ABSTRACT
Human Rights emerge from a process of long time of construction of the autonomy of
collective order that began with the advent of Christianity, recognized as the religion
1 Mestre e Doutorando no Programa de Pós-graduação em Ciência da Religião do Instituto da Ciências Humanas da
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Visiting Researcher Fellow – Fuller Theological Seminary, Pasadena, CA (EUA). Bolsista CAPES. Email : [email protected]
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for departing from religion, and is realized in the period of modern revolutions –
English Revolution, American Revolution and French Revolution – which contributed
to the establishment of the secular state. Currently, however, the autonomy of
collective order reaches an advanced stage of development, a fact that has led some
to consider that we are living right now in a “society of individuals”. Therefore, in this
communication we will seek to present the route of human rights consolidation
through the historical restoration of secularism and of the solidification of the
autonomy of collective order and also verify the changes occurring in modern
Western societies which have contributed to the process of evolution of human rights
into individual rights.
Keywords: Human Rights, Secularism, Autonomy of the Collective Order.
1. INTRODUÇÃO
Os Direitos Humanos emergem de um processo de longa duração de uma
gradual construção da autonomia da ordem coletiva em relação a um universo
religioso marcadamente heterônomo. Esse processo, que se inicia com o advento do
cristianismo reconhecido por alguns estudiosos como a religião da saída da religião2
se concretiza no período das revoluções modernas – Revolução Inglesa, Revolução
Americana e Revolução Francesa – as quais contribuíram para o estabelecimento
do Estado laico. Foi justamente essa separação jurídica entre Igreja e Estado, e o
princípio de separação entre religião e política, que facilitou a ampliação da política,
concedendo aos homens a liberdade de criar suas próprias leis ao passo que os
desobrigaram de receber do alto o poder que se impunha sobre sua vontade.
Atualmente, no entanto, a autonomia da ordem coletiva alcança um estágio
avançado em seu desenvolvimento o que tem levado alguns pensadores, tais como
Marcel Gauchet (1989), a considerar que estamos neste momento vivendo numa
“sociedade de indivíduos” a qual é caracterizada pela perda de um princípio de
transcendência coletiva, o que consequentemente leva a um obscurecimento
sistemático da intrínseca dimensão política dessas mesmas sociedades.
2 Cf. Marcel Gauchet em sua obra Le Désenchantement du monde: Une histoire politique de la
religion, Gallimard, Paris, 1985.
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Assim sendo, nesta breve comunicação buscaremos, ainda que
sumariamente, apresentar o percurso da consolidação dos direitos humanos através
da recomposição histórica da laicidade e da solidificação da autonomia da ordem
coletiva, bem como verificar as transformações ocorridas nas sociedades ocidentais
que promoveram uma transformação dos direitos humanos em direitos individuais.
2. O PERCURSO DA LAICIDADE
“Liberdade, igualdade, universalidade e autonomia de juízo de cada cidadão, fundada na instrução laica: tais são os valores e os princípios essenciais da laicidade” (PEÑA-RUIZ, 2009, p. 1).
Tratar dos valores e dos princípios essenciais da laicidade, em uma época
como a nossa, na qual tais princípios e valores parecem estar conceitualmente
cristalizados pode causar em muitos, num primeiro instante, certa estranheza. No
entanto, em nosso entendimento, a recuperação da trajetória histórica da conquista
desses ideais laicos é fundamental para sua própria valorização, para que os
mesmos não se percam e, sobretudo, para sua promoção e ampliação em nossas
contemporâneas sociedades democráticas.
Como têm destacado Henri Peña-Ruiz, podemos melhor compreender a
laicidade se retornarmos ao momento quando tínhamos uma total ausência de
liberdade de consciência pela imposição de um monopólio religioso e, em seguida,
examinarmos os passos que nos conduziram até a ampliação da laicidade aplicada
nas esferas da Sociedade Civil, do Estado e da Escola. Assim sendo, chamamos a
atenção para as três etapas fundamentais que foram seguidas para a conquista da
emancipação laica.
A primeira etapa caracterizou-se por uma pretensa ‘tolerância religiosa’,
quando se permitiu aos adeptos de uma religião dominada confessar sua fé. A
segunda etapa é a que corresponde ao reconhecimento da soberania popular, qual
seja, um direito não pode depender da boa vontade de um príncipe, por mais sábio
que seja. E a terceira etapa, a que consistiu na laicização do poder público, político e
jurídico, no qual o Estado renunciou a todo poder religioso e as igrejas a todo poder
político. Conforme assinala Peña-Ruiz:
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Da incerta tolerância à consciência liberada, da consciência liberada à emancipação do direito, da emancipação do direito à liberação da sociedade, do Estado e da Escola de toda tutela clerical, estes são os principais tempos da emancipação laica e de sua dinâmica histórica (PEÑA-RUIZ, 1999, p. 101).
Outro fator que merece destaque está relacionado ao fundamento do ideal
laico, o qual, como o próprio termo laicidade indica, carrega consigo a fusão de duas
noções fundamentais: a liberdade de consciência e a igualdade de maneira radical.
Essas noções fundamentais de liberdade e igualdade, presentes nos textos das
diferentes declarações de direitos humanos e fundamentais, são o resultado do
desejo de emancipação da consciência de toda tutela clerical (religiosa e ideológica)
iniciada na Reforma Protestante, unindo o sacerdócio universal com o livre exame
do crente, e desenvolvida mais plenamente no Iluminismo durante o qual se buscou
a consolidação da libertação da consciência e do juízo dos homens – quaisquer que
fossem – unindo “humanidade e liberdade, atribuindo a todo homem o livre arbítrio
intelectual e moral e a possibilidade nata de aperfeiçoar-se, graças à instituição
metódica e a cultura, uma autêntica autonomia de juízo” (PEÑA-RUIZ, 1999, p. 98).
No entanto, o verdadeiro momento da universalização desta liberdade positiva
seria conquistado apenas com a institucionalização de uma Escola pública, gratuita
e laica na qual o laicismo escolar garantisse a formação de um sujeito livre. Nesse
sentido a liberdade de consciência tem como corolário a ideia de uma educação da
razão para liberar a capacidade de juízo de tudo o que podia enganá-la ou extraviá-
la. Além disso, vale notar que não se trata somente de uma “liberdade negativa”
consistente em suprimir os obstáculos internos ou externos ao desdobramento do
pensamento, mas uma “liberdade positiva” que dotaria todo homem de autonomia de
reflexão e de iniciativa (PEÑA-RUIZ, 1999, p. 98).
Assim compreendida, a laicidade tende a ampliar-se. Consiste em preservar
as instituições públicas (escola, justiça e outras instituições orgânicas da República)
de toda tutela religiosa e também de toda tutela ideológica que marque o desejo de
poder de um grupo de interesses concretos ou de uma força política dada. Liberando
as consciências individuais de toda sujeição bem como a própria República, a
laicidade define o marco de uma paz cívica na qual a liberdade de consciência e o
juízo dos cidadãos já não hão de ser temidos pelo poder público, o qual, pelo
contrário, se aplica a promovê-los.
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Na trajetória histórica da laicidade, outra importante contribuição na luta pela
conquista da emancipação laica são os textos do pensador John Locke, Ensaio
sobre a tolerância, 1667 e Cartas sobre a tolerância, 1689. Os argumentos de Locke
dão grande importância à ideia segundo a qual é impossível definir a verdadeira
religião, portanto é necessário deixar a cada um a liberdade de crer no que queira e
de exercer o culto que deseja. Havia apenas uma ressalva quanto a esta tolerância
religiosa. Considerando que o Estado deva velar para que se proíbam as opiniões
especulativas suscetíveis de produzir ações danosas, Locke restaura a intolerância
com respeito ao ateísmo no qual ele mesmo observava uma fonte de
comportamentos incompatíveis com a vida civil. A posição de Locke devolveu ao
Estado a categoria de árbitro das crenças quando se trata da relação entre religião e
ateísmo, ao passo que lhe negava esse papel no que se referia às diversas
concepções religiosas. Entretanto, em nosso parecer, a liberdade de consciência,
contemplada em sua radicalidade e em seu âmbito de exercício, deve incluir tanto a
opção do ateísmo como a do agnosticismo ou da crença religiosa.
Na ampliação da laicidade, desde o momento em que a liberdade de
consciência é reconhecida como um direito primordial e irredutível porque
corresponde à dignidade de todo o ser humano, as coisas mudam radicalmente. Na
sociedade civil, se organiza uma pluralidade de confissões e de convicções e é
preciso que essa gente viva junta e pacificamente. A igualdade e liberdade assim
reconhecidas demandam uma tolerância como disposição subjetiva compartilhada.
“A consciência será liberta de forma radical quando não lhe seja imposta nenhuma
crença, nem lhe seja apresentada como verdadeira pelo poder público e quando já
não tenha que viver sua aventura como um vagabundo ou uma desviação” (PEÑA-
RUIZ, 1999, p. 115).
A Declaração dos Direitos do Homem de 26 de agosto de 1789 buscou
claramente resgatar as liberdades que requer a dignidade do homem. “Viver livre é
dispor do corpo e ser dono da alma ou da consciência”. Assim dois princípios vão se
incidir pela luta da emancipação laica ante a opressão clerical: habeas animum
(liberdade de consciência) e habeas corpus (liberdade física) (PEÑA-RUIZ, 1999, p.
95).
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A liberdade é, pois o verdadeiro fundamento constitucional da República e é
reconhecida como um direito essencial. A liberdade é entendida como condição
ideal de existência e princípio de plenitude que corresponde a todo o ser humano.
Como assinala Peña-Ruiz, “a história humana, filosoficamente compreendida, é o
advento da própria ideia de liberdade” (PEÑA-RUIZ, 1999, p. 97).
A laicidade é o fundamento do Estado que define a unificação do povo com
relação à única exigência da vida comum. Não decide sobre questões metafísicas e
religiosas, nem estimula a divisão nem o enfrentamento, mas por seu
distanciamento legitima o pluralismo. “A laicidade promove o que une os homens
antes de valorizar o que os divide” (PEÑA-RUIZ, 2009, p. 2).
A laicidade se funde com a exigência de verdade e razão; requer o
cumprimento de uma liberdade de princípios garantida por lei, liberdade de
consciência, como liberdade efetiva de juízo plenamente exercida e autônoma. A
razão ajuda, desde o momento em que é cultivada pela instrução que se dispensa a
todos, separando o âmbito do diálogo e o da linguagem ordinária mais além das
afiliações confessionais concretas (PEÑA-RUIZ, 1999, p. 149).
É importante também lembrar que a laicidade não se opõe aos compromissos
confessionais desde o momento em que estão dotados de uma distância reflexiva
que evita qualquer deslizamento a intolerância e cuida do espaço do diálogo assim
como o da reapropriação reflexiva. A dinâmica do ideal laico promove o uso ativo da
razão num horizonte de universalidade que vão além das crenças confessionais
(PEÑA-RUIZ, 1999, p. 150).
Visto sob essa ótica, o dispositivo jurídico do Estado laico deve garantir a
aplicação do ideal fundador articulando rigorosamente a igualdade de direitos de
cada um e a liberdade de todos. Tal condição jurídica é necessária, porém não
suficiente, como indicamos anteriormente, é antes necessário promover através de
uma Escola laica a razão que libera em cada um a capacidade de juízo reto e
também a capacidade de distância reflexiva. Como resalta Peña-Ruiz, “a escola
laica, verdadeira instituição orgânica da República é a antecâmara de uma cidadania
ilustrada”, por isso mesmo, podemos afirmar que a autonomia constrói-se numa
escola laica, o que não significa antirreligiosa, mas, simplesmente, livre de todo o
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grupo de pressão, quer seja religioso, ideológico, ou econômico (PEÑA-RUIZ, 1999,
p. 152).
3. SECULARIZAÇÃO E LAICIDADE: A AUTONOMIA DA ORDEM COLETIVA
Como temos observado, em certos contextos, laicidade e secularização
aparecem como termos correlatos. De fato, se por um lado, o termo laicismo pode
ser conceituado como “a doutrina que defende a independência do homem ou da
sociedade, e mais particularmente do Estado, de toda influência eclesiástica ou
religiosa”. Por outro lado, o termo secularização pode ser entendido como a
passagem da hegemonia completa de uma religião apoiada pelo poder Estatal para
a influência social difusa das confissões e igrejas num processo nos quais ambos,
são parte ativas e onde o seu papel público é reconhecido sobre o título de uma
espécie de cimento social. É também tida como um projeto filosófico, político e
científico baseado nos direitos do homem e do cidadão (PEÑA-RUIZ, 1999, p. 37-8).
Diante de tais conceituações podemos afirmar, com certa segurança, que a
laicidade é produto de um processo de secularização característico da própria
modernidade. Ou, ainda melhor, que a laicidade é o corolário jurídico da
secularização.
Duas evidências observáveis ao fenômeno da laicização parecem dar
condições de sustentar tal afirmação. A primeira diz respeito à diminuição da
influência teológico-política dos vínculos sociais. E a segunda pelo relacionamento
dos principais eixos da laicidade com os fundamentos do pensamento moderno, tais
como: autonomia moral e individual, reconhecimento dos direitos humanos,
igualdade civil, liberdade de consciência, neutralidade metafísica do Estado, entre
outros.
Como havíamos indicado, uma das relações entre laicidade e secularização
reside exatamente no fato da diminuição da influência teológico-político instaurada
no cristianismo – chamada pelo filósofo francês Marcel Gauchet de a religião da
saída da religião (GAUCHET, 2005, p. 145) – onde se distinguiu rigorosamente a
ordem espiritual e a ordem temporal permitindo a emancipação laica da política
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trazendo a dimensão religiosa para a consciência individual. Apesar disso, Henri
Peña-Ruiz acredita que a mera separação do temporal e espiritual preconizada por
Jesus Cristo não pôde, pois, definir a plenitude do ideal laico.3 Em sua opinião o
dispositivo jurídico da laicidade emancipa efetivamente a Sociedade, o Estado e
suas instituições essenciais, entre elas a escola, de qualquer tutela clerical apenas a
partir do final do século XVIII.4 (PEÑA-RUIZ, 1999, p. 231).
Considerando a relação entre religião e política, a laicidade carrega consigo uma
redefinição do papel da religião quando esta deixa de ser o princípio fundamental do
estar-junto-coletivo. “A religião é um assunto puramente espiritual, cuja essência é a
relação com Deus e não se pode confundir com a existência temporal regulada pela
autoridade política” (PEÑA-RUIZ, 1999, p. 220). Neste sentido, o conceito de
“desencantamento do mundo”, ou seja, o esgotamento do reino do invisível; a
reconstrução da instancia dos homens a parte da dependência divina; a diminuição
da influência da regra espiritual sobre a conduta secular; dão uma nova significação
ao papel da religião. Reconhece-se o fato da separação entre a cultura global
secularizante e a religião. Reconhece-se também que as religiões, inclusive o
cristianismo, tendem a ser subculturas particulares portadoras de uma reserva de
sentido. E por fim reconhece-se até mesmo o fundamentalismo secular como uma
espécie de subcultura.
Outra evidência destacada para sustentar a tese de ser a laicidade produto de
um processo de secularização característico da modernidade está nas semelhanças
dos eixos da laicidade com o conjunto de princípios claramente manifestados na
modernidade: constitucionalismo; autonomia moral e individual; direitos humanos;
igualdade civil; consumo, indústria e tecnologia; e a própria laicidade, esta entendida
aqui, como processo euro-americano moderno de separação entre Igreja e Estado.
3 No sentido em que se trata a laicidade nesta apresentação, isto é, como produto de um processo de
secularização característico da modernidade, a constituição laica do Estado moderno pode parecer mais evidente a partir da Revolução Francesa. Entretanto, parece ser bem sólida a tese segundo a qual o processo de secularização, entendido como diminuição da influência teológico-política dos vínculos sociais, remonta a tempos mais antigos do que o século XVIII. 4 Em seu livro La Emancipación Laica (1999) Henri Peña-Ruiz também reconhece que o ideal laico é
uma herança do iluminismo e que, portanto, implica numa cultura de autonomia de juízo (p. 29). Ressalta ainda que a refundação laica do direito não implica em hostilidade alguma as religiões. É uma luta anticlerical: “O anticlericalismo militante da refundação laica só põe em mira as pretensões do clero de se intrometer na esfera temporal e nas instituições públicas para impor certo tipo de norma” (PEÑA-RUIZ, 1999, p. 220).
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Em nossa opinião, tais princípios da modernidade são co-constitutivos da autonomia
da ordem coletiva e, portanto, contribuíram para o surgimento e consolidação do
próprio Estado laico e democrático.
4. A SOCIEDADE DE INDIVÍDUOS
Um dos pensadores contemporâneos que têm se proposto a analisar as
sociedades democráticas contemporâneas tem sido o filósofo francês Marcel
Gauchet. De acordo com esse filósofo (GAUCHET, 2002, p. ix) nós estamos vivendo
em uma “sociedade de indivíduos”, ou seja, “uma sociedade assombrada por um
tipo de individualismo das quais nenhuma sociedade pode ser concebida e o qual
ofusca sistematicamente sua intrínseca dimensão política” (BRAECKMAN, 2008, p.
30).5
Marcel Gauchet concebe o contemporâneo individualismo, ou a atual “onda
de liberalização”, como ele mesmo menciona, como o resultado de dois processos:
por um lado, como o resultado do desenvolvimento do Welfare State (Estado de
bem-estar social), e, por outro, como resultado da perda de sentido de todas as
formas de transcendência coletiva (GAUCHET, 1998, p. 89). Assim sendo, ele
acredita, em primeiro lugar, que desde a segunda metade da década de 1970 o
desenvolvimento do Welfare State tem separado o indivíduo de seu ambiente social
original (GAUCHET, 1998, p. 94). Isto, ao mesmo tempo, tem também desconectado
os indivíduos uns dos outros. Em segundo lugar, ele acredita também que todas as
formas de transcendência coletiva, tais como: a nação, o estado, as classes, a
religião e a ideologia, têm perdido suas formas de qualidade sublime (GAUCHET,
2002, p. 340).6
5 De acordo com Natalie Doyle, Marcel Gauchet percebe as globais redefinições das sociedades
ocidentais modernas as quais se situam no quadro das democracias liberais no âmbito de um projeto cultural geral: a criação de um novo tipo de sociedade: a sociedade democrática de indivíduos autônomos (DOYLE, 2003, p. 70). 6 Por “formas de transcendência coletiva”, Gauchet entende “todo fenômeno no qual o grupo
transcende o indivíduo” e no qual o indivíduo se viu como pertencendo a uma ordem superior. Como tal, essas foram experimentadas como formas de autoridades orientadoras pelas quais o indivíduo nutria um enorme respeito (GAUCHET, 2002, p. 344-5).
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Num nível mais profundo, na visão de Gauchet a desclassificação das formas
de coletividade transcendente sobre todos está relacionada ao fim do conflito entre
Igreja e Estado. Na opinião desse filósofo francês, até à metade da década de 1970,
o estado esteve lutando com a igreja pelo controle da sociedade. No curso de sua
história, no entanto, o estado, passo a passo, conquistou o poder da igreja. O triunfo
do estado sobre a igreja deu ao estado sua dignidade e autoridade (GAUCHET,
1998, p. 62-3). Mas agora que a disputa está definida, isto é, desde que a religião,
ou sua secular versão, a ideologia, não é mais concebida com uma alternativa
plausível para o estado, o estado perdeu, junto com seu oponente, a dignidade que
havia uma vez alcançado por si mesmo devido a esse conflito. Como observa
Andreas Kalivas:
O desaparecimento do inimigo privou [a democracia] de sua razão de ser. Desde que a própria fonte da heteronomia – a religião – teve sido irrevogavelmente removida, os aspectos emancipatórios e seculares da política democrática que eram utilizados para dotá-la de uma aura sagrada tem perdido o seu significado (KALIVAS, 1999, p. 494).
Ainda de acordo com Gauchet, essa desclassificação da dimensão da
transcendência na sociedade é um solo fértil importante para o contemporâneo
individualismo, pois é este “desencantamento da política” que leva a uma profunda
transformação da relação entre o Estado e o indivíduo (GAUCHET, 1998, p. 108).
Devido ao “desencantamento da política”, o indivíduo abertamente vem à tona. Hoje
isso é sintomaticamente ilustrado pela geral preocupação com os “direitos
individuais” (GAUCHET, 1998, p. 111). Em sua relação com o Estado o indivíduo se
vê principalmente como portador de direitos. Esses direitos não dizem respeito
principalmente aos seus direitos civis, mas aos direitos dos quais o indivíduo
considera ser portador legítimo tal como um indivíduo que ele é, como uma pessoa,
isto é, como um ser humano – daí a sincera preocupação no presente com os
“direitos humanos”. Esses são direitos que os destinatários consideram
intuitivamente como seus direitos básicos, sendo eles ou não reconhecidos
formalmente como direitos civis.
Neste sentido, podemos notar uma séria transformação no que diz respeito à
primeira e clássica noção de cidadania. De acordo com as primeiras noções, cada
cidadão deveria se apropriar da perspectiva geral comumente realizada em conjunto
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com a sua própria perspectiva particular. Atualmente, todavia, cada indivíduo
procura ter seus próprios interesses privados garantidos pelo Estado, cuja
perspectiva ninguém mais está preparado para compartilhar (GAUCHET, 1998, p.
115). A preocupação com o interesse geral é assim deixada aos políticos
profissionais. Além disso, todos os interesses privados são percebidos como
legítimos, independentemente de onde e como eles podem contribuir ao interesse
geral das sociedades (GAUCHET, 1998, p. 116). Agora, esses interesses privados
são considerados quase como invioláveis, como direitos básicos assim como
“liberdade” e “igualdade” e, portanto, devem também ser reconhecidos.
Nesta perspectiva, como observa Gauchet, estamos atualmente vivendo em
uma sociedade de mercado político (GAUCHET, 1998, p. 117). O interesse geral é
concebido como sendo o resultado da livre concorrência entre interesses
particulares. Contrário ao seu antigo papel, o governo não é mais capaz de conduzir
os assuntos de interesse geral e, portanto, superiores, em direção aos interesses
particulares. Hoje, em direção contrária, se trabalha a partir do pressuposto segundo
o qual o mercado de interesses particulares contém a resposta para a questão
política que deve orientar a sociedade como tal. Este modelo de mercado, de acordo
com Gauchet, muda o indivíduo profundamente. Em contraste, enquanto o cidadão
deveria dissociar-se dos seus próprios interesses particulares em prol do interesse
geral, estamos agora confrontados com um indivíduo que está exclusivamente
direcionado aos seus próprios interesses particulares. Além disso, seus interesses
tornaram-se os seus direitos e os seus direitos têm se tornado seus interesses.
Ambos se fundem em uma unidade quase indiferenciada.
Desaparecendo a preocupação com o interesse público, a emergência do
indivíduo e de seus direitos individuais juntamente com a privatização do reino
político, eventualmente transforma a autocompreensão do indivíduo e a maneira em
que ele se apresenta dentro da sociedade. Característica desta modificação da
posição do indivíduo se apresenta quando as “convicções são transformadas em
identidades” (GAUCHET, 1998, p. 121).
De fato, como mais uma vez observa Gauchet, hoje concebemos nossa
identidade, exatamente como o oposto de como nós a compreendíamos há tempos
passados. Enquanto que o meu “verdadeiro eu” era encontrado quando havia uma
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eliminação dos laços que me particularizavam, hoje, ao contrário, o indivíduo se
identifica quando se encontra com sua particular singularidade. Esta identificação
entre o indivíduo e sua singularidade está em jogo em diferentes níveis.
Subjetivamente, o “verdadeiro eu” é o resultado de uma subjetiva apropriação de
uma singularidade social. Dessa forma, eu coincido com minha crença, com as
minhas origens, como meu ser Judeu, negro, gay ou o que quer que seja.
Socialmente, nós conseguimos contato com outras pessoas com base nessa
singularidade. Esta é a base sobre a qual se deseja iniciar um diálogo. E,
politicamente, tal singularidade também, eventualmente, constitui a base para
obtenção de uma posição dentro da esfera pública. Neste sentido, a esfera pública
hoje coincide com aquelas singularidades privadas tendo-se tornado pública. A
esfera pública, por essa mesma razão já não tem qualquer substância própria que
se refere às metas gerais que transcenderia o mercado de indivíduos singulares e os
seus interesses privados (GAUCHET, 1998, p. 124).
No sentido político do individualismo contemporâneo, o sistema jurídico e,
portanto, como ele o indivíduo portador de direitos, é considerado o único
fundamento da sociedade democrática. Compreendido dessa maneira, a fim de
constituir uma sociedade democrática, acredita-se que seja necessário nada mais
além do que o reconhecimento do indivíduo e de seus direitos subjetivos. Num nível
mais profundo, isto significa principalmente que a cidadania clássica desaparece. O
indivíduo não está mais preocupado com o interesse geral, e, portanto, não está
mais disposto a considerar seu próprio interesse privado do ponto de vista do
interesse geral – e muito menos subordiná-lo, se necessário, ao do todo coletivo. Em
segundo lugar, essa evolução também dá origem a transformações das “convicções
em identidades”, como já dissemos. Como resultado, a esfera pública deixa de ser
um domínio de discussão. Ela funciona apenas como um palco sobre o qual os
recursos individuais, a fim de receber o reconhecimento por sua singularidade e por
seus direitos subjetivos, associam os indivíduos com eles mesmos.
Essa evolução na dinâmica própria da democracia moderna, a qual se baseia
em três e não em apenas em um único pilar, é vista por Marcel Gauchet como
problemática por completo.7 Em sua avaliação, concentrar-se unilateralmente em um
7 Os três pilares da democracia moderna: o pilar político, o socio-histórico e o sistema legal.
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desses pilares implica no risco de erosão dos outros e, possivelmente em longo
prazo, levaria a própria democracia a um total colapso (GAUCHET, 2002, p. 374-5).
Na presente circunstância, o espetáculo da democracia de hoje oferece a imagem
de uma “contradição performativa”. É uma democracia que, na sua prática
democrática, se volta contra si mesma e, portanto, torna-se uma ameaça a si mesma
(GAUCHET, 2002, p. 379).
5. CONCLUSÃO
Essa breve análise revela o alcance da problemática contemporânea do
individualismo. Ao concentrar-se unilateralmente no indivíduo como portador de
direitos subjetivos, o individualismo contemporâneo não é simplesmente uma
expansão de um dos pilares da democracia moderna – o sistema jurídico – em
detrimento dos pilares da política e histórico-social. Mais do que isso, o
individualismo contemporâneo parece ser uma negação da política como dimensão
constitutiva da sociedade (GAUCHET, 2003b, p. 329). Em outras palavras, a ideia
liberal segundo a qual, por natureza, o ser humano possui direito aos direitos, que
sujeitos de direito constituem a base da sociedade e que apenas os relacionamentos
legais entres esses temas de direitos são suficientes para preservar a sociedade
como tal, falha em nossa opinião em dois aspectos. Em primeiro lugar, falha por
ignorar que esses direitos subjetivos pressupõem um fator político, ou seja, uma
estrutura de poder pelo qual tais direitos são reconhecidos, distribuídos e, se
necessário, reforçados. Em segundo lugar, por trás dessa recusa elementar está
outro aspecto ainda mais importante: a negação do papel da política como a esfera
em que a sociedade se vê representada e, por isso mesmo, se constitui como
sociedade. Neste caso, o individualismo contemporâneo revela uma lacuna crucial
na política e, acima de tudo, na autocompreensão democrática, que, no final,
poderia ameaçar a própria sociedade democrática. Uma sociedade que deixa de
apreciar suas próprias fundações corre o risco de implosão.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFI CAS
14
III CONGRESSO INTERNACIONAL DE DIREITO DO UBM
Direito, Desenvolvimento e Cidadania na América Latina.
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