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Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP-USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.

Dos modos de se escrever e reescrever um mesmo livro:

Gilberto Freyre e a História frente às “atualizações” de Casa-Grande & Senzala

(1933-1961)

Fábio Franzini1

Introdução

Gilberto Freyre e Casa-Grande & Senzala são habitualmente tidos como um dos marcos

de uma historiografia brasileira “moderna”, ao lado de Sérgio Buarque de Holanda e Raízes do

Brasil e Caio Prado Junior e Formação do Brasil Contemporâneo (eventualmente associado, ou

substituído, por Evolução Política do Brasil). Tomados em conjunto, os três pares

representariam a superação das interpretações pautadas pelo pensamento oitocentista,

supostamente hegemônica ainda na década de 1930, inaugurando novas formas de se abordar e

de se escrever sobre o passado nacional, em conformidade tanto com perspectivas teórico-

metodológicas também inovadoras quanto com o clima de mudanças políticas pós-Revolução de

30. Tais características tornariam a tríade responsável por operar um verdadeiro

“redescobrimento do Brasil”, assim descrito, de forma emblemática, por Carlos Guilherme

Mota:

O redescobrimento do Brasil pode ser registrado na própria sucessão das produções historiográficas

posteriores à Revolução de 1930. A Revolução, se não foi suficientemente longe para romper com as

formas de organização social, ao menos abalou as linhas de interpretação da realidade brasileira –

já arranhadas pela intelectualidade que emergia em 1922, com a Semana de Arte Moderna, de um

lado, e com a fundação do Partido Comunista, de outro. Assim como no plano da política, na seara

historiográfica novos estilos surgiram, contrapondo às explicações autorizadas de Varnhagen,

Euclides da Cunha, Capistrano de Abreu e Oliveira Vianna concepções até então praticamente

inéditas, e que soariam como revolucionárias para o momento. A Historiografia da elite oligárquica,

empenhada na valorização dos feitos dos heróis da raça branca, e representada pelo Instituto

Histórico e Geográfico Brasileiro (fundado em 1838), vai ser contestada de maneira radical por um

conjunto de autores que representarão os pontos de partida para o estabelecimento de novos

parâmetros no conhecimento do Brasil e de seu passado. Esse momento é marcado pelo surgimento

das obras de Caio Prado Junior (1933), Gilberto Freyre (1933), Sérgio Buarque de Holanda (1936) e

Roberto Simonsen (1937).2 1 Doutor em História Social – FFLCH-USP; Docente da Universidade Nove de Julho – Uninove/SP. 2 Carlos Guilherme MOTA, Ideologia da Cultura Brasileira (1933-1974). 3. ed. São Paulo: Ática, 1977. p. 27-8 (grifos do original). Desnecessário discutir o equívoco em juntar autores tão díspares como Varnhagen, Euclides, Capistrano e Oliveira Vianna sob um mesmo rótulo e, pior ainda, dar a entender que todos os quatro estariam comprometidos com a tal “historiografia da elite oligárquica”; da mesma forma, é desnecessário notar que Roberto Simonsen tornou-se uma excrescência à consagrada tríade Freyre-Buarque-Prado Junior.

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Embora tal idéia não esteja, a rigor, incorreta, a sua transformação em lugar-comum da

história da historiografia brasileira acaba por ocultar dois aspectos importantes dessa mesma

história: um, de caráter geral, é o fato de que os três autores citados inserem-se em um

movimento muito mais amplo de interpretação – ou “redescobrimento”, como diria Mota – do

Brasil, o qual mobilizou pensadores os mais diversos, com visões da história também diversas,

bem como editores, críticos e, dentro dos limites da sociedade da época, o chamado “público

leitor”, configurando assim um cenário pulsante, no qual a busca pela compreensão de nossa

trajetória, ou, mais precisamente, de nossa formação, não era a exceção, mas a regra;3 o outro,

de cunho específico, mas que pode ser visto como um desdobramento do primeiro, diz respeito à

trajetória diferenciada que cada um dos pares em destaque seguiu até alcançar o lugar

privilegiado que ocupam, já há bom tempo, no rol de nossos historiadores – isto é, o lugar de

clássicos: longe de incontestes, sua recepção oscilou ao sabor das características assumidas pelo

campo intelectual brasileiro, da década de 1930 até hoje, refletindo muito dos debates e embates

não apenas sobre a História como também sobre os rumos do país.

Combinando o geral ao específico, parece não ser equivocado dizer que o percurso mais

sinuoso seja o de Gilberto Freyre e de seu livro de estréia, percurso no qual se percebem pelo

menos três momentos distintos: o da consagração, que vai da publicação de Casa-Grande &

Senzala, em 1933, ao início da década de 1960; o da contestação (senão rejeição), da década de

1960 a fins dos anos 1980, época da morte do autor (1987); e o da reabilitação, de fins da

década de 1980 em diante, até hoje. Acompanhar tal percurso, então, pode ser revelador de

como se constrói um “clássico” e, por extensão, de como se constrói uma história, que,

obviamente, tem relação direta – e crucial – com a da escrita da história no Brasil. Aqui, o que

se pretende é apenas iniciar esse exercício, focalizando o primeiro dos momentos citados, com a

abordagem dos prefácios escritos por Freyre no decorrer das edições de Casa-Grande & Senzala

lançadas entre 1933 e 1961. Afinal, já que se trata de pensar sobre a construção do lugar de um

autor e de um livro, é imprescindível ouvir a voz desse autor sobre esse livro, que é, antes de

tudo, um texto; e, como mostra o teórico francês Gérard Genette, um texto poucas vezes se

apresenta sem o reforço e o acompanhamento de paratextos, isto é, produções, verbais ou não,

que visam primordialmente a “assegurar sua existência no mundo, sua ‘recepção’ e seu

consumo, sob a forma (ao menos em nossa época) de um livro”.4 Paratexto típico, o prefácio,

por configurar-se como “um discurso produzido acerca do texto que segue ou que precede” (e

3 Cf. Paulo Eduardo Arantes, “Providências de um crítico literário na periferia do capitalismo”, in Otília Beatriz Fiori ARANTES e Paulo Eduardo ARANTES, Sentido da Formação. Três estudos sobre Antonio Candido, Gilda de Mello e Souza e Lúcio Costa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. p. 11-2 e seguintes. 4 Cf. Gérard GENETTE, Umbrales. Trad. Susana Lage. México: Siglo Veintuno, 2001. p. 7.

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perante o qual ainda goza de relativa autonomia), busca, em geral, oferecer ao leitor as

informações tidas como imprescindíveis a uma perfeita compreensão daquilo que se vai ler,

explicando-lhe por quê e como deve lê-lo.5 Desta forma, embora se coloque como o espaço

privilegiado do “diálogo” entre a obra e o público, um prefácio efetivamente visa, de modo

implícito ou mesmo explícito, a orientar a leitura conforme interesses pré-estabelecidos pelo seu

autor, quiçá conduzi-la.

Nesse sentido, perceber como a instância prefacial se constitui em Casa-Grande &

Senzala não é algo secundário, muito menos irrelevante. Basta notar, a princípio, que no período

indicado para a análise o livro alcança dez edições, para as quais Gilberto Freyre escreve oito

prefácios distintos, sempre procurando, aparentemente, “atualizar” o livro e suas idéias,

atualizando assim sua própria posição no cenário intelectual brasileiro. Afinal, ele sabia muito

bem que, se um texto é sempre o mesmo, as suas leituras e os seus leitores não o são, como

também não se pode dizer que seu próprio autor o seja. Mas o mais interessante é notar que, na

articulação entre temas recorrentes e discussões conjunturais, Freyre realiza um movimento tão

sutil quanto decisivo: o da instituição de uma posição única para sua obra e, por extensão, para

si mesmo.

Primeiro compasso: por uma nova história

Apresentado, no longo prefácio à primeira edição, como “ensaio de sociologia genética e

de história social” cuja pretensão era “fixar e às vezes interpretar alguns dos aspectos mais

significativos da formação da família brasileira”,6 Casa-Grande & Senzala tinha o “novo” como

uma espécie de adjetivo-síntese. De certa forma, tudo no livro trazia este traço: os novos sujeitos

históricos apresentados – o senhor, o escravo e o mundo à sua volta; a nova abordagem

empreendida, centrada no âmbito privado das relações entre tais sujeitos, com a família como

peça-chave; a nova explicação oferecida, diferenciando “raça” de “cultura” e daí enfatizando a

positividade da miscigenação; as novas fontes empregadas, como livros do Santo Ofício, cartas

dos jesuítas e outros documentos produzidos na esfera eclesiástica, inventários e testamentos,

livros de viagem, livros e cadernos de modinhas, receitas e etiqueta, jornais, romances,

memórias e biografias, depoimentos e até a iconografia; e, claro, a nova linguagem que

expressava tudo isso, solta, fluente e vívida. A novidade fundamental, contudo, aquilo que

consistia sua maior inovação, era dada pelo conjunto, isto é, pela reunião de todas essas

5 É importante notar que Genette toma a “instância prefacial” em sentido amplo, sob suas mais diversas formas e nomes, incluindo os posfácios. Cf. idem, p. 137 e passim. 6 Gilberto FREYRE, “Prefácio à 1a. edição”, in Gilberto FREYRE, Casa-Grande & Senzala. 47. ed., revista. São Paulo: Global, 2003. p. 50.

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características em uma única obra, manejadas por um único autor. Tal como acontecera décadas

antes com Os Sertões, o livro de estréia de Gilberto Freyre revelava uma força interpretativa

surpreendente naquele início da década de 1930, a qual descortinava aos brasileiros, ainda que

somente à minoria culta, aspectos da formação do Brasil até então pouco ou nada considerados.

Tantas e tamanhas novidades, porém, não deixaram de causar também alguma

estranheza entre os críticos, o que seria abordado por Freyre no prefácio à segunda edição de seu

livro, publicada em 1936, da seguinte maneira:

O autor não desconhece, neste ensaio, defeitos de construção, que vários críticos já salientaram.

Alguns desses defeitos animou-se a procurar corrigir. Mas permanece, através do livro, aquela falta

de coesão de material que um crítico estrangeiro, aliás amabilíssimo, lamentou nestas páginas, tão

pouco francesas na sua técnica, talvez mesmo pouco latinas na sua maneira um tanto relassa [sic].

Deve-se, aliás, observar que este ensaio pretendeu ser menos obra convencionalmente literária que

esforço de pesquisa e tentativa de interpretação nova de determinado grupo de fatos da formação

social brasileira.7

Tal esforço, era o que Freyre procurava mostrar, implicava necessariamente posturas um

tanto diferentes em relação ao já estabelecido, em especial ao consagrado. Para aqueles que o

acusavam de não apresentar “conclusões” em seu ensaio, ele primeiro reiterava ter-se limitado a

“procurar fixar, partindo de novas hipóteses e de idéias e até intuições às vezes personalíssimas,

certos aspectos da formação patriarcal da família brasileira, às vezes aventurando-se a

interpretações”; a tarefa de concluir, “por certo mais nobre”, deixava-se para um grupo

vagamente denominado “pensadores”, pois ali se reuniam apenas “um grupo de fatos que, por

sua significação social, talvez dêem um pouco que pensar”. Já para aqueles que haviam

reclamado da escassez de referências aos “grandes mestres da nossa história – Handelmann, por

exemplo, Southey, Varnhagen, Capistrano, Oliveira Lima, Rocha Pombo, João Ribeiro, Joaquim

Nabuco”, numa “falta aparente de devoção de um principiante por mestres tão ilustres”, o autor

explicava-se “pelo fato de ter sido uma das suas preocupações o contato direto com as fontes”.

Eram elas que, junto a “pesquisas de campo”, davam a fundamentação do texto, e não “os livros

de historiadores consagrados e o seu uso e interpretação daquelas fontes” – algo que encontrava

complemento dois parágrafos adiante, quando, a propósito de sua linguagem ter sido tida por

alguns como “pouco técnica”, senão “chula”, ele “lembrava” que:

em estudos de sociologia, antropologia e história social, o critério de valor dos fatos se junta cada

dia mais ao de pura materialidade, quebrando-lhe a rigidez. Humanizando-o. Passou o tempo,

7 Gilberto FREYRE, “Prefácio à 2a edição”, in Gilberto FREYRE, Casa-Grande & Senzala. Rio de Janeiro: Schmidt Editor, 1936. p. XXXIII (grifo meu).

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nesses estudos, de se imitar a linguagem difícil e inumana em que se deliciam certos cientistas e

principalmente alguns técnicos. [...] O ensaio de sociologia, de antropologia, de história social, tem

a sua própria linguagem; não está obrigado a limitar-se à noção de terminologia exata de outras

ciências, despreocupadas dos valores humanos.8

Embora curto (apenas três páginas) e, por isso mesmo, superficial, não é difícil perceber

que este texto procurava afirmar, ainda que timidamente, a importância e a necessidade de uma

nova história do Brasil, da qual Casa-Grande & Senzala pretendia ser apenas uma expressão.

Uma história livre, até onde possível, de idéias pré-concebidas e, ao mesmo tempo, permeada

pela sociologia, pela antropologia, pela psicologia ou qualquer outra ciência que possibilitasse a

melhor compreensão de seus processos. Uma história apoiada em fontes as mais diversas, que

permitissem tanto a reconstituição multifacetada e global do passado quanto a compreensão da

sua dinâmica. Uma história marcada pelo comprometimento do historiador com seu objeto,

produzida pelo entrecruzamento da objetividade científica com a subjetividade analítica. Uma

história que, sem se limitar apenas a ele, Freyre, orientasse modernas interpretações da

sociedade brasileira, que avançassem os limites das abordagens tradicionais. Uma história,

enfim, que revolucionasse o conhecimento sobre o Brasil, uma história “íntima”, vívida e até

mesmo “mística”. E, se tudo isto era apenas sugerido no texto em questão, em outro, publicado

no mesmo ano de 1936, as coisas eram ditas de modo mais explícito – está lá, no prefácio a

Sobrados e Mucambos:

É tempo de procurarmos ver na formação brasileira a série de desajustamentos profundos, ao lado

dos ajustamentos e dos equilíbrios. E de vê-los em conjunto, desembaraçando-nos de pontos de vista

estreitos e de ânsias de conclusão desinteressada. Do estreito ponto de vista econômico, ora tão em

moda, como do estreito ponto de vista político, até pouco tempo quase o exclusivo. O humano só

pode ser compreendido pelo humano – até onde pode ser compreendido; e compreensão importa em

maior ou menor sacrifício da objetividade à subjetividade. Pois tratando-se de passado humano, há

que deixar-se espaço para a dúvida e até para o mistério: a história de uma instituição, quando feita

ou tentada sob critério sociológico que se alongue em psicológico está sempre nos levando a zonas

de mistério, onde seria ridículo nos declararmos satisfeitos com interpretações marxistas ou

explicações behavioristas ou paretistas; com puras descrições semelhantes às da história natural de

comunidades botânicas ou animais.

A “humildade diante dos fatos”, a que ainda há pouco se referia um mestre da crítica, ao lado do

sentido mais humano e menos doutrinário das coisas, cada vez se impõe com maior força aos novos

franciscanos que procuram salvar as verdades da História, tanto das duras estratificações em

dogmas, como das rápidas dissoluções em extravagâncias de momento.9 8 Idem, p. XXXIII-IV. 9 Gilberto FREYRE, “Prefácio à primeira edição”, in Gilberto FREYRE, Sobrados e Mucambos. 7. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1985. p. L-LI.

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Este combate freyreano por uma nova história, a qual poderia ser chamada

interdisciplinar,10 seria retomado em seu texto a respeito da terceira edição de Casa-Grande &

Senzala, publicada em 1938. Um texto atípico, uma vez que esta edição, publicada, como as

anteriores, pelo poeta-editor Augusto Frederico Schmidt, saíra à revelia do autor. Avisado do

fato pelo amigo e crítico literário Gastão Cruls, Freyre escreve um longo artigo para o número

de reestréia da Revista do Brasil, então iniciando sua terceira fase, intitulado “A propósito de um

livro na 3a edição”, no qual dedica-se a “anotar algumas críticas àquele livro”, debatendo, em

especial, as objeções formuladas pelo etnólogo Carlos Estevão de Oliveira, crítico de suas

interpretações da cultura indígena, e pelo historiador Afonso d´Escragnolle Taunay, para quem o

livro se ocuparia “quase exclusivamente do Norte, desprezando a paisagem social do Sul”.

Embora reconhecesse a importância destas e de outras observações acerca de seu trabalho,

mesmo que não tão qualificadas, ele não deixa de lamentar que seus pontos de vista nem sempre

eram “apresentados fielmente, ou interpretados com inteira compreensão do que seja a atitude

científica e, tanto quanto possível, objetiva do estudioso moderno de sociologia genética ou de

história, de antropologia e de psicologia sociais, em face de problemas que numerosas sugestões

de ordem moral e sentimental, religiosa e política tornam extremamente delicados”.11

Ainda assim, apesar das “deformações de alguns de seus pontos de vista por críticos

literários e publicistas da ‘direita’ como da ‘esquerda’ ainda pouco familiarizados com a técnica,

o método e a terminologia da sociologia genética e da história, da antropologia e da psicologia

sociais”, ele dizia não ser raras as críticas “inteligentes” e as “sugestões tecnicamente bem

orientadas” que vinha recebendo, “não só de especialistas estrangeiros como de estudiosos seus

compatriotas”. E completava:

Críticas e sugestões que sempre esperou para trabalho tão afoito, e realizado em tão pouco tempo,

de tentativa de reconstituição e de interpretação de aspectos mais íntimos do passado nacional e, ao

mesmo tempo, de sondagem de antecedentes de raça e principalmente de cultura da sociedade

brasileira de formação mais profundamente agrário-patriarcal. Sondagem a que o que menos faltou

foi, na verdade, ousadia de enfrentar assunto tão complexo. E a ousadia pode ser às vezes

10 A alusão à conhecida expressão de Lucien Febvre obviamente não é gratuita: como já notou o historiador inglês Asa Briggs, Gilberto Freyre foi “um genuíno pioneiro na elaboração do que Lucien Febvre designou, em 1949, ‘um novo tipo de história’”. No início da década de 1930, ambos trilhavam então caminhos muito próximos rumo à renovação do conhecimento histórico – e não é casual que seja justamente Febvre quem assina o prefácio da primeira edição francesa de Casa-Grande & Senzala, publicada pela Gallimard em 1952 sob o título Maîtres et Esclaves. Cf. Asa BRIGGS, “Gilberto Freyre e o estudo da história social”, in VV.AA., Gilberto Freyre na UnB. Brasília: Ed. UnB, 1981. p. 35-6. Mais recentemente, Peter Burke também tem chamado a atenção para as contribuições pioneiras de Freyre a muitos temas e aspectos que também eram ou viriam a ser caros à escola dos Annales. Cf. Peter BURKE, A Revolução Francesa da Historiografia: A Escola dos Annales. Trad. Nilo Odália. São Paulo: Ed. Unesp, 1990. p. 116. 11 Gilberto FREYRE, “Quase um prefácio à terceira edição”, in Gilberto FREYRE, Casa-Grande & Senzala. 5. Ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1946. p. 59.

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renovadora e até criadora, mas através de imperfeições e deficiências numerosas, de que só se

esquivam completamente os miniaturistas mais pechosos da história e da ciência.12

Segundo compasso: a afirmação da legitimidade

Àquela altura, a análise da formação histórico-social brasileira não era a única trincheira

em que Gilberto Freyre lutava. Se havia muito que ele andava desgostoso do tratamento editorial

que seu livro recebia de Schmidt, o lançamento de uma nova edição sem o seu consentimento

fizera com que ele levasse adiante a idéia de publicá-lo por outro selo, mais especificamente o

da prestigiosa Livraria José Olympio Editora, para a qual já dirigia a não menos prestigiosa

Coleção Documentos Brasileiros. A mudança, porém, não era tão simples, pois, por força de um

contrato equivocado, ele cedera os direitos autorais a Augusto Frederico Schmidt, que,

obviamente, não tinha o menor interesse em abrir mão daquele que era, simplesmente, o

principal título de seu catálogo. Somente depois de uma longa briga nos tribunais é que ele pôde

reaver seus direitos sobre a obra e, assim, acertar-se com José Olympio, com quem conversava a

esse respeito desde 1936. E foi em 1943, dez anos após o seu aparecimento, que Casa-Grande &

Senzala mereceu sua quarta edição, como o volume 36 da mesma Coleção Documentos

Brasileiros, então já sob a direção de Octavio Tarquínio de Sousa.13

Além da inclusão dos dois primeiros prefácios, mais o texto da Revista do Brasil a

propósito da edição “clandestina”, intitulado “Quase um prefácio à terceira edição”, o livro

trazia um novo, redigido especificamente para o relançamento, no qual, logo de saída, o autor

dizia se surpreender “de se encontrar tão de acordo com quase tudo o que escreveu em 1933”

naquele trabalho “cujas raízes estão nos seus estudos universitários e nas suas preocupações de

adolescente”.14 Segundo ele, não havia naquela edição “acréscimo ou alteração que alcance

idéia ou modo de dizer essencial”, até mesmo porque “já em notas escritas há dois ou três anos

[sic] e publicadas na Revista do Brasil o autor procurou esclarecer algumas das idéias ou

expressões mais obscuras do ensaio que se segue”. No entanto, como a seqüência do texto

demonstraria, havia algo que continuava a incomodá-lo: a velha conhecida crítica que insistia,

“ora de boa fé, ora maliciosamente, no caráter regional – ‘nortista’ ou ‘pernambucano’ – do

material reunido nas páginas que se seguem. Caráter regional que prejudicaria as conclusões –

12 Idem, p. 60-1. 13 Sobre a passagem de Casa-Grande & Senzala para a José Olympio, bem como sobre a Coleção Documentos Brasileiros, cf. Fábio FRANZINI, “À sombra das palmeiras: A Coleção Documentos Brasileiros e as transformações da historiografia nacional (1936-1959)”. Tese de Doutorado em História Social. São Paulo, FFLCH-USP, 2007. 14 Gilberto FREYRE, “Prefácio à quarta edição”, in Gilberto FREYRE, Casa-Grande & Senzala. 5. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1946. p. 69.

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aliás poucas – e as interpretações – estas numerosas – baseadas sobre o estudo do mesmo

material e as evidências e sugestões por ele oferecidas”. A sua resposta:

A verdade é que na colheita de dados para este ensaio o autor não seguiu critério rigorosamente

geográfico ou histórico, embora sempre fiel ao regional, de área de formação histórico-social do

Brasil. Dentro deste critério – ao mesmo tempo genético e regional – é que não pôde esquivar-se a

dar relevo, às vezes grande, ao açúcar e, conseqüentemente, aos agrupamentos nortistas no

desenvolvimento da família patriarcal – agrária e escravocrata – no nosso país. A influência daquela

técnica de produção e das sociedades que se desenvolveram sobre ela – no Maranhão, na Bahia, em

Pernambuco, no Rio de Janeiro – foi tão forte que, durante longo tempo, o açúcar é que deu à

sociedade brasileira, tomada no seu conjunto ou considerada sem maiores luxos de discernimento,

seus traços mais característicos, suas condições mais fortes de estabilidade econômica e social e de

vida organizada de família. Traços que, depois, se transmitiriam, às vezes com uma pureza que nos

surpreende – como o autor procurará demonstrar, ou, antes, sugerir, no seu próximo ensaio, Ordem

e Progressso – à economia do café (São Paulo e Rio de Janeiro, principalmente) e à ordem social

estabelecida sobre a mesma economia. As duas economias – a do açúcar e a do café –

condicionaram o desenvolvimento do nosso patriarcalismo agrário. Pelo menos o que o

patriarcalismo agrário, no Brasil, apresenta de essencial. E desse patriarcalismo parece ao autor

impossível separar qualquer estudo sério da formação social brasileira. [...]15

A leitores e, talvez principalmente, críticos não devia restar dúvida, portanto, de que era,

sim, do Brasil que Gilberto Freyre falava. Em outras palavras, não devia restar dúvida de que

sua história psico-sócio-antropológica tinha validade e legitimidade “nacionais”, se é que faz

sentido utilizar aqui tal termo. Ele próprio ressaltaria isso linhas abaixo, ao afirmar que,

justamente por a formação social brasileira se processar “ou dentro daquela influência [do

patriarcalismo agrário] ou contra ela”, as interpretações “baseadas sobre material colhido nos

centros da formação agrária e patriarcal do Brasil” – como o seu próprio, obviamente – tinham

“caráter brasileiro – e não apenas pernambucano, baiano ou nortista”; tanto era assim que “as

viagens de estudo ou observação do autor por áreas brasileiras menos agrárias na sua formação

do que o Nordeste – ou inteiramente pastoris ou quase industriais, como certas áreas neo-

brasileiras do sul do país – só têm feito confirmar nele as idéias e interpretações esboçadas

neste livro”.16 A grande síntese desse esforço, contudo, só apareceria três anos depois, em mais

um prefácio para uma nova edição de Casa-Grande & Senzala, a quinta: o anúncio de que este

livro, junto a Sobrados e Mucambos e aos previstos Ordem e Progresso e Jazigos e Covas

Rasas, mais dois volumes (pelo menos) de “documentos relativos à matéria”, formariam uma

15 Idem, p. 71-2 (grifo meu). 16 Idem, p. 72 (grifo meu).

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“série de estudos sobre a formação e desintegração do patriarcado escravocrata no Brasil”,

nomeada então sob o “título geral de Introdução à História da Sociedade Patriarcal no

Brasil”.17

Os críticos, por sua vez, pareceram não se convencer disso, o que obrigou Freyre a, mais

uma vez, retomar o assunto no prefácio à sexta edição, de 1949. Sem disfarçar certa irritação,

ele afirma então que “não parecem estar com a razão os que continuam a acusar um tanto

enfaticamente este ensaio – como há pouco o Professor Donald Pierson na American

Sociological Review (vol. I, n. 4, outubro, 1947) – de válido apenas para a região geográfica

onde primeiro desabrochou o sistema patriarcal, agrário e escravocrata no Brasil, e que foi a

região do açúcar”.18 Como sua defesa desfiou os mesmos argumentos que, desde pelo menos

1938, apresentava acerca do assunto, não havia qualquer novidade nesse debate – o que não

significa, em contrapartida, que não houvesse outros aspectos sugestivos em outros parágrafos

do mesmo texto. Por exemplo, o fato de que ele, Freyre, e seu livro recebiam outro tipo de

críticas: dos “entusiastas mais fervorosos da ‘nobreza rural’ no Brasil”, que viam na “falta de

respeito” do autor para com tal “nobreza” traços de “marxismo” ou “freudismo”; ao mesmo

tempo, “marxistas mais sectários” o acusavam de “burguês”, de “escriba do capitalismo”, de

“ter feito apenas obra de neto ou descendente de senhores de engenho, sem coragem ou

independência para analisar e criticar os antepassados ‘feudais’ ou ‘burgueses’”.19

Gilberto Freyre dizia-se, assim, criticado de todos os lados, o que não deixa de ser uma

forma de dizer-se único. Uma forma disfarçada, mascarada, é certo, mas que não tardaria a se

revelar por completo.

Terceiro movimento: acima do bem e do mal

Após deixar passar a sétima (1952) e a oitava (1954) edições sem novos textos de

abertura, Freyre voltaria a escrever um novo prefácio para a nona edição, lançada em 1958 –

aliás, nona edição brasileira e décima em língua portuguesa, como indicava a página de rosto.

Nele, tudo girava em torno do pioneirismo de suas análises e de sua metodologia “nada

ortodoxa”, segundo suas próprias palavras, que àquela altura, com a publicação do livro em

diversas línguas, encontrava o reconhecimento de críticos e intelectuais estrangeiros – ingleses,

franceses, norte e latino-americanos, espanhóis. Se isto também já fora apontado no prefácio

17 Gilberto FREYRE, “Prefácio à quinta edição”, in Gilberto FREYRE, Casa-Grande & Senzala. 5. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1946. p. 78-9. 18 Gilberto FREYRE, “Prefácio à sexta edição”, in Gilberto FREYRE, Casa-Grande & Senzala. 6. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1949. p. XCIX (grifo meu). 19 Idem, p. C.

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Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP-USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.

anterior, agora era o que dava o tom de todo o texto, como que a afirmar o sucesso de um

trabalho que não saíra de cena nas últimas duas décadas. Mas foi na edição seguinte, de 1961,

quase trinta anos depois da primeira, que a “atualização” do livro é posta deliberadamente de

lado em nome de algo maior, assim expresso no seu prefácio:

A presente edição de Casa-Grande & Senzala é a décima primeira em língua portuguesa; e a décima,

nessa língua, publicada no Brasil. O que significa mais de 60.000 exemplares publicados em

português.

O autor vem encontrando, através de edições noutras línguas, uma compreensão, da parte de

grandes críticos, quer literários ou filosóficos – um Jean Pouillon, um André Rousseaux, um Bertram

Wolfe, um Alfonso Reyes, um John dos Passos, um Aldous Huxley, um Ortega y Gasset, um Julian

Marías, um Roger Callois, um Roland Barthes, um Georges Gurvitch, um Roberto Caponigri, um

Leon Mathias, um Eduardo Mallea –, quer científicos – um Lucien Febvre, um Franz Boas, um

Sorokin, um Métraux, um Paul Rivet, um Evans-Pritchard, um Fernand Braudel, um Ashley-

Montagu, um Paul Trappe –, por vezes mais aguda e quase sempre mais completa que a da maioria

dos críticos nacionais ou portugueses. Mas é do público brasileiro que tem principalmente recebido

o melhor apoio, sólido e maciço, de uma aceitação, além de constante, ou renovada, sempre

entusiástica, para com o seu primeiro trabalho publicado em língua portuguesa sob a forma de livro.

[...]20

A virada assim se completava: com a compreensão dos intelectuais estrangeiros e a

aceitação do público brasileiro, Gilberto Freyre assumia uma visão “assentada” sobre seu livro e

sobre si mesmo – justamente no momento em que as críticas a seu trabalho começavam a tomar

os rumos da cientificidade histórico-sociológica tantas vezes por ele reivindicada. Mas isso,

como se costuma dizer, é outra história...

20 Gilberto FREYRE, “Prefácio à décima edição”, in Gilberto FREYRE, Casa-Grande & Senzala. 10. ed. Brasília: Editora da UnB, 1961. p. 65.