DUSSEL, Henrique. Oito Ensaios Sobre Cultura Latino-Americana e Libertação

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Estes oito ensaios sobre cultura latino-americana e liber-tação (1965-1991) são fruto de trabalhos fragmentados sobreFilosofia da Cultura, elaborados ao longo de quase 30 anos.Acreditamos que esta publicação permitirá tomar consciênciada transformação do problema durante todo esse período. Des-de 1991, não escrevemos sobre o assunto, pois o que pensamosnaquele momento ainda guarda atualidade.

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PALAVRAS PRELIMINARES Estes oito ensaios sobre cultura latino-americana e libertao (1965-1991) so fruto de trabalhos fragmentados sobre Filosofia da Cultura, elaborados ao longo de quase 30 anos. Acreditamos que esta publicao permitir tomar conscincia da transformao do problema durante todo esse perodo. Desde 1991, no escrevemos sobre o assunto, pois o que pensamos naquele momento ainda guarda atualidade. Cremos que em todos os ensaios possvel ver um mesmo el, um querer dar conta da cultura latino-americana, em primeira instncia, que guarda uma certa exterioridade, como um estar "fora" da histria das culturas. Em segundo lugar, lentamente, foi-se esboando o tema da dominao cultural, isto , a cultura latino-americana como totalidade foi descoberta como dominada e excluda. Num terceiro momento, dentro do mbito latino-americano, foi-se descobrindo o bloco social dos oprimidos, o povo e sua cultura popular, tambm dominada e excluda internamente sob o poder da cultura dos "crioulos brancos". Partindo de horizontes como a civilizao universal (ou cultura imperial) e da cultura latino-americana em seu conjunto, avanamos para a cultura nacional, para diferenci-la a seguir, internamente, nas culturas das elites ou ilustradas, nas culturas imitativas e na cultura dos oprimidos. Por ltimo, a prpria cultura popular foi interpretada como ponto de partida de uma resistncia, criatividade ou libertao cultural possvel, futura, como cultura revolucionria, visto que tnhamos, naquele momento, o exemplo da revoluo cultural nicaragense da dcada de 80. Enrique Dussel Mxico, 1996

PREFCIO Nestes tempos de globalizao, muito se tem falado em integrao dos pases latino-americanos e, no Brasil, o interesse voltou-se, em especial, para o Mercosul. No entanto, o conceito de integrao supera quaisquer limitaes e interesses comerciais e polticos. exatamente esta a importncia dos artigos do dr. Enrique Dussel, professor da Universidade Autnoma do Mxico. Escritos no perodo que vai de 1965 a 1991, estes artigos e conferncias constituem-se num levantamento e discusso de pressupostos histricos, filosficos e sociolgicos que conformam o panorama da cultura latino-americana, abordando as civilizaes pr-colombianas, a colonizao luso-hispnica, o desenvolvimento e configurao das naes independentes, o processo de explorao do trabalho, a religiosidade europia e seus contornos "crioulos" e populares, e a questo da libertao. Considerado por Leopoldo Zea como um dos principais nomes de toda uma gerao de pensadores latino-americanos, Enrique Dussel, partindo de um substancioso e abrangente embasamento terico, transmite aspectos fundamentais para a compreenso do que cultura, sua filosofia e suas caractersticas, remetendo-se a Marx, Hegel e Heidegger, a autores como Ortega y Gasset, Leopoldo Zea, Merleau-Ponty, A. Gramsci, Paul Ricoeur, A. Mattelart, Max Scheler e Paulo Freire, entre outros que tratam desse tema. Um dos questionamentos mais importantes concretizados por Dussel a discusso do ponto de vista da anlise da cultura latino-americana, que muitas vezes privilegia a viso do colonizador, do elemento europeu, e exatamente a partir dessa diferenciao que o autctone, o nacional e o popular correm o risco, em todos os mbitos, de parecerem uma "cultura de segunda", sem o brilho iluminista dos "pases do centro".

Por outro lado, aqueles que defendem de forma radical a cultura popular arriscam-se a ser considerados "populistas", sofrendo crticas e caindo no desprestgio da elite de valores europeus. Para um debate mais aprofundado, Dussel busca em Facundo, o Civilizacin y barbarie, de Domingo F. Sarmiento, elementos que justifiquem a rejeio burguesa ao homem autctone ou essencialmente crioulo, ou seja, aquele que nasceu na Amrica colonizada e que incorporou traos das culturas que vivencia em seu cotidiano. A religiosidade abordada de forma clara e objetiva, traando os vnculos histricos que sustentaram a catequese e a afirmao do Cristianismo no continente americano, bem como revelando as relaes estabelecidas com as crenas indgenas que vigoravam naquele momento. Necessrio e atual, este livro abre caminho para novas perspectivas de estudo, avaliao e atuao junto a comunidades e grupos populares, estabelecendo um dilogo real de integrao histrica e social entre os pases latino-americanos. Professora Sandra Trabucco Valenzuela Mestre e doutoranda em Literatura Hispano-Americana Universidade de So Paulo

PARTE I

CULTURA, IDENTIDADE E AUTOCONSCINCIA

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Captulo 1 AMRICA IBRICA NA HISTRIA UNIVERSAL *

Podemos dizer que conhecemos algo quando compreendemos seu contedo intencional. "Compreender" significa justamente abranger tudo o que conhecido; no entanto, para essa "abrangncia", preciso situar previamente o que pretendemos conhecer dentro de certos limites. Por isso, o horizonte dentro do qual um ser se define j um elemento constitutivo de sua entidade notica. Esta delimitao do contedo intencional dupla: por um lado, objetiva, j que esse "algo" situa-se dentro de certas condies que o fixam concretamente, impedindo-lhe uma absoluta universalidade, ou seja, um ente determinado. Mas, sobretudo, o contedo de um ser est subjetiva e intencionalmente limitado dentro do mundo daquele que o conhece. O mundo do sujeito cognoscente varia segundo as possibilidades que cada um tenha tido de abranger mais e maiores horizontes, isto , segundo a posio concreta que tenha permitido a este homem abrir seu mundo, desorganiz-lo, tir-lo de sua limitao cotidiana, normal, habitual. Na medida em que o mundo de algum permanece em contnua disposio de crescimento, de ultrapassar os limites, a finitude ambiente, as fronteiras j constitudas, nessa medida, esse sujeito realiza uma tarefa de mais profunda e real compreenso daquilo que se encontra tendo um ______________*. Publicado na Revista de Occidente, n. 25, Madri, 1965, pp. 85-95.

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sentido em seu mundo; de outro modo, tudo cobra um sentido original, universal, entitativo. O que dissemos pode ser aplicado ao ser em geral, mas de uma forma ainda mais adequada ao ser histrico. A temporalidade do csmico adquire no homem a especfica conotao de historicidade. Onticamente, tal historicidade no pode deixar de ter relao com a conscincia que se tenha dessa historicidade, pois o mero transcorrer no tempo histria, somente e ante uma conscincia que julga essa temporalidade, no nvel da autoconscincia ou "conscientizao-de-si -mesmo" (Selbstbewusstsein), que constitui a temporalidade na historicidade. E enquanto a "compreenso" definio ou delimitao, o conhecimento histrico seja cientfico ou vulgar possui uma estrutura que lhe prpria, que o constitui, que o articula. Tal estrutura a periodificao. O acontecer objetivo histrico contnuo, mas em sua prpria "continuidade" ininteligvel. O entendimento necessita discernir diversos momentos e descobrir neles contedos intencionais. Quer dizer, realiza-se uma certa "des-continuidade" por meio da diviso do movimento histrico em diversas eras, pocas, etapas (Gestalt). Cada um desses momentos tem limites que so sempre, na cincia histrica, um tanto artificiais. Mais ainda, o mero fato da escolha desta ou daquela fronteira ou limite define j, de certo modo, o momento que se delimita, ou seja, seu prprio contedo. Nos Estados modernos, a histria transformou-se no meio privilegiado de formar e conformar a conscincia nacional. Os governos e as elites dirigentes tm especial empenho em educar o povo segundo seu modo de ver a histria, que se transforma no instrumento poltico que chega at a prpria conscincia cultural da massa e ainda da "Inteligncia". Os que possuem o poder, ento, tm um cuidado especial para que a periodificao do acontecer histrico nacional seja realizada de tal forma que justifique o exerccio do poder pelo grupo presente, como um certo clmax ou plenitude de um perodo que eles realizam, conservam ou pretendem modificar. A histria "consciencializada" feita presente de maneira efetiva numa conscincia dentro do curso da periodifi-

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cao. O primeiro limite do horizonte da histria de um povo , evidentemente, o ponto de partida, ou a origem de todos os acontecimentos ou circunstncias de onde, na viso de quem estuda a histria, se deve partir para compreender o que vir "depois". Assim, a histria de um movimento revolucionrio negar a continuidade da tradio para exaltar sua descontinuidade, e tomar como modelo outros movimentos revolucionrios que negaram as antteses superadas ao menos para o revolucionrio. Pelo contrrio, os grupos tradicionalistas ressaltaro a continuidade e situaro o ponto de partida ali onde a Gestalt (momento histrico) foi constituda e da qual so beneficirios e protetores trata-se dos tempos hericos e picos, nos quais as elites criaram uma estrutura que, no presente, os elementos tradicionalistas no podem j recriar. dado ainda discernir uma terceira posio existencial, a daqueles que, sem negar o passado e sua continuidade, sendo fiis ao futuro, possuem razo e fora suficientes para reestruturar o presente aqui, porm, no pretendemos fazer uma fenomenologia dessa "posio" diante da Histria. Na Amrica referimo-nos quela Amrica que no anglo-saxnica, a conscincia cultural de nossos povos foi informada por uma histria feita, escrita e ensinada por diversos grupos que no realizam apenas o trabalho intelectual do pesquisador, como um fim em si mesmo, mas que esto comprometidos na histria real e cotidiana, e deveriam imprimir histria um sentido de saber prtico, til, um instrumento ideolgico-pragmtico de ao e na maioria dos casos, como bastante justificado, de ao poltica e econmica. Voltados, ento, para "fazer cincia histrica" ou ao menos "autoconscincia histrica, a primeira tarefa que os ocupou foi a de fixar os limites e, em especial, o ponto de partida. sabido que para a conscincia primitiva, o ponto de partida situa-se na intemporalidade do tempo mtico in illo tempore, diria Mircea Eliade, no qual os arqutipos primrios regulam e justificam simblica e miticamente a cotidianidade dos fatos profanos (divinizados na medida em que so repe-

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tio do ato divino). Assim, nascem as teogonias que explicam a origem do cosmos e do fenmeno humano. A conscincia mtica no desapareceu no homem moderno e, como bem o mostrou Ernst Cassirer, em El mito del Estado, as sociedades contemporneas "mitificam" sem ter cons cincia disso. "Mitificar", na cincia histrica, fixar limites outorgando-lhes um valor absoluto e, por isso mesmo, desvalorizando "o anterior", ou simplesmente negando-o. Nisto, tanto o revolucionrio como o tradicionalista comportam-se do mesmo modo, diferindo apenas em um ponto: o revolucionrio absolutiza uma data recente ou ainda futura, enquanto o tradicionalista fixa uma data num passado menos prximo. Nas cincias fsicas e naturais, um dos fenmenos mais importantes de nosso tempo o de ter destrudo os antigos "limites intencionais" que enquadravam antes o mundo micro e o macrofsico, biolgico etc. A "desmitificao" (Entmytologisierung) do primeiro limite astronmico deveu-se especialmente a Coprnico e a Galileu que destronaram a terra de sua centralidade csmica graas prvia desmitificao do universo realizada pela teologia judaico-crist, como demonstra Duheml , para depois destronar igualmente o sol at reduzi-lo a um dimetro de mais de cem mil anos luz. A "desmitificao" biolgica deveu-se Teoria da Evoluo embora retificando os exageros darwinianos, pela qual o homem considerado "um" ser vivo na biosfera crescente e mutante. A "desmitificao" da conscincia primitiva ou a-histrica origina-se com o pensamento semita, em especial o hebreu, mas cobra toda sua vigncia no pensamento europeu em fins do sculo XVIII e incio do XIX sendo Hegel, em especial, quem iniciou com seus Vorlesungen sobre a Weltgeschichte,2 ______________1. Les systmes du monde, Paris, 1912. 2. A edio de Frommann (Smtliche Werke, t. XI) o intitula Vorlesungen die Philosophie der Geschichte (Stuttgart, 1949), enquanto que, com mais propriedade, Jos Gaos intitula sua traduo espanhola de: Lecciones sobre la Filosofia de la Historia Universal (Revista de Occidente, Madri, 1653). O prprio Hegel dizia: Der Gegenstand dieser Vorlesung ist die philosophische Weltgeschichte, die Weltgeschichte selbst (edio alem, p. 25).

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um processo de universalizao da autoviso que o homem tem de sua prpria temporalidade. "Desmitificar" em histria destruir os particularismos que impedem a autntica compreenso de um fenmeno que s pode e deve ser compreendido tendo em conta os horizontes que o limitam e que, em ltima instncia, no outro que a histria universal que, passando pela pr-histria e pela paleontologia, entronca-se com a temporalidade csmica. Querer explicar a histria de um povo partindo ou tomando como ponto de partida alguns fatos relevantes embora sejam muito hericos e que despertem toda a sentimentalidade de geraes que se situam no incio do sculo XIX ou do XVI, simplesmente "mitificar" e no "historiar". Por isso mesmo, a conscincia cultural que se forma somente diante da histria fica como que amenizada, primitiva, sem os recursos necessrios para enfrentar vitalmente a dura presencialidade do Real. Na Amrica no falamos da anglo-saxnica, muitos fixam seu ponto de partida em algumas reestruturaes que tiveram maior ou menor xito sejam as do Mxico, Bolvia ou Cuba e explicam a evoluo e o sentido de nossa histria aumentando desmesuradamente esses acontecimentos e negando o perodo anterior isto , o liberal capitalista ou da oligarquia mais ou menos positivista, no enquanto positivista, mas enquanto oligarquias. As figuras que fizeram parte ou que originaram essas revolues por sua vez, no-criticveis, e sim dignas de honra so elevadas ao nvel de "mito" e se transformaram em bandeira destes movimentos. No queremos negar a importancia da reestruturao na Amrica seja do ponto de vista poltico, econmico, cultural etc. s queremos indicar o "modo" como que esses movimentos explicam sua prpria existncia dentro do processo histrico se que empregam algum. Em primeiro lugar, eles se dessolidarizam de todo o passado e, com isso, tornam-se "inocentes" um estado anlogo impecabilidade paradisaca de todo o mal e injustia presentes e passados. Mas, ao mesmo tempo, por seu messianismo co-essencial, mostram-se como portadores de esperana de todo o bem futuro. Absolutizam ou exaltam o

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tempo da agonia inicial, do caos a partir do qual emanar a ordem, elemento essencial no temperamento dionisaco: a revoluo a morte de onde procede a vida como a semente do culto agrrio. Outros, por sua vez, lutando contra revolucionrios, edificaram sua construo sobre o confuso limite que engloba a primeira parte do sculo XIX de 1808 a 1850, aproximadamente, tempo no qual se produz a ruptura poltica e cultural com o passado colonial. Ali encontram sua origem os liberais crioulos, o capitalismo nacional, o poltico oligrquico (que produziu o to necessrio movimento de universalizao e secularizao no sculo XIX) e o intelectual positivista que d as costas ao passado hispnico. Seu tempo "mtico" no pode ser seno o da independencia, negando o tempo colonial e com isso a Espanha e o Cristianismo. Nesse espao mtico, nesse panteo, eleva-se o culto a homens hericos que foram configurados com perfis de tal perfeio que, quando o cientista historiador se atreve a toc-los mostrando os relevos autnticos de sua personalidade, julgado quase como sacrlego. O processo anlogo: absolutiza-se um momento original; sendo aqui a etapa agnica ou pica, a poca da emancipao. Tudo isto uma exigncia para dar um sentido a cada nao em si mesma, nascendo assim um isolamento das diversas repblicas americanas, enclausuradas em suas prprias "histrias" mais ou menos desarticuladas com as outras comunidades da Histria universal, as "histrias" que os estudantes recebem muitas vezes nas aulas parece muito mais um livro de anedotas que uma "histria" com sentido. que o ter escolhido um limite muito prximo impede a autntica compreenso.3 H outros que ampliam o horizonte at o sculo XVI. Quase todos os que realizaram este esforo encontraram depois ______________3. sabemos que muitos vo interpretar mal nossas palavras e acreditaro que desvalorizamos a poca da emancipao. Muito pelo contrrio, o nico modo de "valorizar" um fato histrico reduzi-lo sua temporalidade, concretude e realidade prpria, trazendo-o do "mito" para dar-lhe um sentido prximo e imitvel, verdadeiro fundamento de uma autntica "nacionalidade".

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muita dificuldade em saber integrar o sculo XIX e, sobretudo, o presente revolucionrio. que o mero tradicionalista no consegue ter a atitude histrica indispensvel para gostar e pesquisar a totalidade de um processo que no pode alcanar sentido seno no futuro. Chamaremos "colonialistas" ou "hispanistas" a todos aqueles que souberam buscar as origens da civilizao hispano-americana mais alm do sculo XIX. Para eles, o perodo pico significar a proeza de Cristvo Colombo, de Hernn Corts ou Francisco Pizarro. No se falar de um Fidel Castro, nem de um Rivadavia, mas dos reis Isabel e Fernando ou de Carlos e Filipe. o sculo de ouro no que ele tem de ouro objetivo, que muito e "mtico" (pois no se pode muitas vezes discernir em sua plenitude os fundamentos de sua decadncia, por outro lado necessria em toda atividade humana). Assim como os liberais do sculo XIX negavam a Espanha, os hispanistas negaram a Europa protestante, anglicana ou francesa. Como os revolucionrios negaram o capitalismo ou os liberais, o Cristianismo, os hispanistas negaram o Renascimento que desembocar no mecanicismo industrial aceitando e ainda dirigindo, principalmente graas a Salamanca e Coimbra, o renascimento filosfico e teolgico, at ser substitudo no final do sculo XVII. O hispanista contrrio a posio "europesta" que pretende considerar todo o fenmeno do continente no consegue explicar a decadncia da Amrica Hispnica a partir do sculo XVIII e, sobretudo, no compreende a evoluo to diversa da Amrica anglosaxnica, nem pode justificar as causas de sua rpida expanso, em seus aspectos positivos. "Mitificando" o sculo XVI, "des-realiza" a Amrica e a torna incompreensvel no presente, permanecendo como ultrapassado ou afogado nesse presente que o consterna ou, ao menos, lhe transmite a imensa distncia das "duas" Amricas no que se refere a instrumentos de civilizao e nvel de vida. Em trs sentidos, h que se ultrapassar o sculo XVI espanhol para compreender a histria da Amrica Ibrica.4 Na Espanha, preciso internar-se na Idade ______________4. Chamamos de Amrica pr-hispnica as culturas americanas que se organizaram antes da conquista hispnica; de Amrica Hispnica a civiliza-

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Mdia, descobrindo assim as influncias islmicas. Na Europa, necessrio retomar o Renascimento inicial dos Estados pontifcios e em especial o tringulo formado por Gnova- VenezaFlorena,5 que explicam j desde o sculo X e XI a civilizao tcnica universal que cresce em nossos dias. Na prpria Amrica, no devem ser deixadas de lado as grandes culturas andinas (tanto a asteca como a inca) e seus tempos clssicos (a rea maia, pr-asteca e o Tiahuanaco), que determinaro as estruturas da conquista, a colonizao e a vida da Amrica hispnica. Existem ainda as culturas secundrias, como a chibcha, ou as mais primitivas, que constituiro sempre o fundamento sobre o qual sero depositados muitos dos comportamentos atuais do mundo rural ou do urbano-popular. O historiador poderia at conformar-se com isto, no entanto, o filsofo que busca os fundamentos ltimos dos elementos que constituem a estrutura do mundo latino-americano dever ainda retroceder at a alta Idade Mdia, comunidade primitiva crist em choque contra o Imprio, at o povo de Israel dentro do contexto do mundo semita dos acdios at o Isl. Enfim, explicar a estrutura intencional (o ncleo tico-mtico) de um grupo exige uma permanente abertura do horizonte do passado para um passado ainda mais remoto que o fundamente. Em outras palavras, impossvel explicar a histria de um povo sem uma histria universal que mostre seu contexto, suas propores, seu sentido e isto no passado, no presente e no futuro prximo. Esse permanente "abrir" impede a "mitificao" e situa o pensador como ser histrico diante do fato histrico, ou seja, sempre "contnuo" e, por fim, ilimitado. Nisto reside a dificuldade e a exigncia do conhecimento histrico. ______________o que floresceu entre os sculos XVI-XVIII, e de Amrica Latina o conglomerado de naoes nascidas durante os movimentos emancipadores do sculo XIX e que, evidentemente, deixaram de pertencer Espanha (no s poltica e economicamente, mas tambm do ponto de vista cultural, abrindose para a Europa, especialmente a Frana). 5. Cf. Werner Sombart, Der Moderne Kapitalismus, Die Genesis des Kapitalismus, I, XXXIV, Leipzig, Duncker-Humblot, 1922, p. 670.

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Por ltimo, originou-se na Amrica um movimento de grande valor moral, social e antropolgico, que acabou denominando-se indigenista. No Mxico e no Peru possui fervorosos e notveis membros que, por sua cincia e prestgio, honram o continente. Entretanto, no mbito que propusemos neste breve trabalho, consideraremos apenas o aspecto mtico do indigenismo. Quando se descobre a dignidade do ser humano, de classe social, de alta cultura do primitivo habitante da Amrica, e se trabalha em sua promoo e educao, no podemos fazer outra coisa a no ser colaborar com um tal esforo. Mas ao se falar das civilizaes pr-hispnicas na poca em que a paz e a ordem, a justia e a sabedoria reinavam no Mxico ou no Peru, ento, como nos casos anteriores, deixamos a realidade para cair na utopia, no mito. Hoje sabido que as civilizaes amerndias no passaram nunca do estdio Calcoltico6 e que, pela falta de comunicao, produzia-se uma enorme perda de esforos, j que cada grupo cultural conquistava apenas uma parte da evoluo civilizadora. No final, as civilizaes corrompiam a si mesmas sem contar com a continuidade que teria sido necessria.7 O imprio guerreiro dos astecas estava longe de superar em ordem e humanidade o Mxico posterior segunda Audincia, a partir de 1530. Se o imprio inca puder servir de exemplo muito mais que o mexicano, o sistema oligrquico justificava o domnio absoluto de uma famlia, a nobreza e os beneficirios do Estado. O indigenista negar por princpio a obra hispnica e exaltar todo valor anterior conquista falamos apenas da posio extrema. A Amrica pr-colombiana tinha de 35 a 40 milhes de ndios, sendo que hoje eles no chegam a constituir 6% da populao. Na verdade, o habitante da Amrica no-anglo-saxnica no mais o ndio e sim o mestio. A cultura e a civilizao americanas no so prhispnicas, mas aquela que lenta e sincreticamente foi-se cons______________6. Pierre Chaunu, "Pour une gopolitique de l'espace amricain", in Jahrbuch fr Geschichte von Staat (Koeln, I, 1964, p. 9). 7. J. E. Thompson, Grandeur et dcadence de la civilisation maya, Paris, Payot, 1959.

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tituindo depois. Isso no significa que se deva destruir ou negar o passado indgena, mas que esse passado deve ser considerado e integrado cultura moderna pela educao, civilizao universal pela tcnica e sociedade latino-americana pela mestiagem. A partir de uma considerao do acontecer humano dentro do mbito da Histria universal, a Amrica Ibrica vai adquirir seu destaque prprio e as posies que possam parecer antagnicas tais como as captadas pelos indigenistas radicais, hispanistas, liberais ou marxistas sero assumidas na viso que as transcende, unificando-as. a Aufhebung, a anulao da contradio aparente, por positiva assuno -j que se descobre o phylum da evoluo. No se deve negar radicalmente nenhum dos contrrios que so contrrios apenas no olhar parcial daquele que ficou como que isolado no estreito horizonte de sua Gestalt (momento histrico) em maior ou menor medida artificial, mas assumi-los numa viso mais universal que mostre suas articulaes em vista de um processo com sentido que passa despercebido observao de cada um dos momentos tomados descontinuamente. Se a histria ibero-americana fosse considerada dessa maneira, adquiriria um sentido e, ao mesmo tempo, moveria para a ao. Seria necessrio remontar-se ao menos ao choque milenar entre os povos indo-germnicos, que, do Indo at a Espanha, enfrentaram os povos semitas que em sucessivas invases partiam do deserto rabe para disputar o Crescente Frtil. O indo-germano uma das chaves da Histria universal, no apenas no que se refere sia e Europa, mas porque seu mundo, de tipo a-histrico, dualista, tem muitas analogias com o do mundo extremo oriental e americano prhispnico. Pelo contrrio, o semita descobre um comportamento sui generis fundado em uma Antropologia prpria. A verdade que, paulatinamente, produziu-se a semitizao do Mediterrneo, seja pelo Cristianismo ou pelo Isl. O mundo cristo enfrentou no norte o povo semita do sul o Isl organizado em califatos nascendo assim a Europa medieval, herdeira do Imprio e que, com Carlos V, realiza seu

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ltimo esforo para depois desaparecer. A Espanha foi o fruto tardio e maduro da Cristandade medieval, mas ao mesmo tempo (talvez pelas condies de minerao ou agrcolas) ineficiente na utilizao dos instrumentos da civilizao tcnica, na racionalizao do esforo da produo de mquinas, fundamento de uma nova etapa da humanidade, especialmente no campo da Economia e da Matemtica. O nacionalismo da monarquia absoluta manteve a Amrica Hispnica unida, mas sua prpria runa significou tambm a runa das ndias Ocidentais e Orientais. O ouro, a prata e os escravos base da acumulao do poderio econmico e industrial europeu, que desorganizou e destruiu o poder rabe e turco deram a Espanha um rpido e artificial apogeu, transformando a pennsula em caminho das riquezas, em vez de ser sua frgua e sua fonte. A crise da independncia foi, por sua vez, a diviso artificial e anrquica dos territrios governados pelos vice-reinados. audincias e bispados e, por ltimo, significou um processo de universalizao cultural eliminando a vigilncia tantas vezes eludida da Inquisio e ao mesmo tempo da Universidade espanhola para deixar entrar, nem sempre construtivamente o pensamento europeu (especialmente o francs) e estadunidense. A histria da Amrica Ibrica mostra-se heterognea e invertebrada no sentido de que por um processo de sucessivas influncias estrangeiras vai-se construindo por reao uma civilizao e uma cultura latino-americanas. Essa cultura. em sua essncia, no o fruto de uma evoluo homognea e prpria, mas de uma evoluo que se forma e se conforma segundo as irradiaes que vm de fora e que, cruzando o Atlntico, adquirem caracteres mticos o laicismo de Littr, por exemplo, ou o positivismo religioso de Comte, nunca chegaram a ser praticados na Frana com a pureza e a paixo que foram proclamados na Amrica Latina. Parece que uma ideologia na Europa guarda uma certa proporo e equilbrio com outras, em um mundo complexo e fecundo porque da velhice da Europa apenas falam os que no a conhecem. Na Amrica, essas ideologias, como um eltron desorbitado, produzem efeitos negativos, ideologias utpicas e, por fim, nocivas. Isto

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uma nova prova de que, para compreender o sculo XIX e XX, essencial ter em conta o contexto da Histria universal. No existe at o presente uma viso que integre vertical (desde o passado remoto) e horizontalmente (em um contexto mundial) a histria da Amrica Ibrica. Enquanto no existir, ser muito difcil tomar conscincia do papel que nos cabe desempenhar na Histria. E mais, sem essa conscincia, a conduo da histria tarefa do poltico, do cientista etc. torna-se problemtica. Da a desorientao de muitos na Amrica Latina. Concluindo, necessrio descobrir o lugar que cabe Amrica dentro do fuso que se utiliza esquematicamente na representao da evoluo da humanidade. A partir do vrtice inferior origem da espcie humana num mono ou polifilismo por um processo de expanso e diferenciao, constituram-se as diversas raas, culturas e povos. Num segundo momento, o presente, atravs da compreenso e convergncia, vai-se confluindo para uma civilizao universal. A Amrica Latina encaminha-se igualmente para essa unidade futura. Explicar as conexes com seu passado remoto tanto na vertente indgena como hispnica e com seu futuro prximo desvelar inteligivelmente a histria desse grupo cultural longe da simplicidade do anedotrio ou da incongruncia de momentos estanques e sem sentido de continuidade ou, ainda, da inveno do poltico sem escrpulos. Existe uma Amrica pr-hispnica que foi desorganizada e parcialmente assumida na Amrica Hispnica. Esta, por sua vez, foi tambm desmantelada e parcialmente assumida na Am rica Latina emancipada e dividida em naes com maior ou menor artificialidade. Cabe ao intelectual mostrar o contedo de cada um destes diversos momentos e assumi-los unitariamente, a fim de criar uma autoconscincia que alcance, por meio da ao, a transformao das estruturas presentes. necessrio fazer tudo isto em continuidade com um passado milenar, superando os pretendidos limites mticos, opostos, e vislumbrando vital e construtivamente um futuro que signifique

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estruturar na Amrica Latina os beneficios da civilizao tcnica. Nem por isso devemos perder nossa especificidade, nossa personalidade cultural latino-americana, consciencializada na poca e pela gerao presente. Falamos, ento, de assumir a totalidade de nosso passado, mas olhando atentamente a maneira de penetrar na civilizao universal sendo "ns mesmos".

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Captulo 2

CULTURA, CULTURA LATINO-AMERICANA E CULTURA NACIONAL *A Francisco Funes e Esteban Sinfuentes, que lecionaram pela primeira vez Filosofia em Mendoza, Argentina (1757-1767), em memria do segundo centenrio. "Qual ento nossa tradio? A resposta aqui grave, porque nossa tradio, nosso passado, est formado por um contnuo indagar por nossa falta de tradio, de um contnuo perguntar por que no somos isto ou aquilo. Somos povos em suspense, expectadores de algo que no temos e que apenas podemos ter se deixarmos de lado essa expectativa, essa espera, esse duvidar de nossa humanidade, e agirmos, pura e simplesmente, em funo do que queremos ser, e s isso". Leopoldo Zea**

2.1. CIVILIZAO UNIVERSAL E CULTURA REGIONAL 2.1.1. Introduo Neste pequeno artigo, gostaramos de cumprir uma declarao que Jos Ortega y Gasset recomenda aos argentinos. Dizia ele: "No fiz nunca mistrio de que acredito e tenho mais ______________*. Este trabalho, escrito em 25 de maio de 1967, foi a conferncia de abertura ministrada pelo autor, no I Curso de Temporada da Universidade Nacional do Nordeste (Argentina). **. Zea, Leopoldo, La cultura y el hombre de nuestros das, Mxico, Unam, 1959, p. 143.

esperanas na juventude argentina do que na espanhola".l Depois de ter expressado que "apenas por completo favorvel (a impresso de uma gerao) quando suscita estas duas coisas: esperana e confiana", nosso pensador continua afirmando que "a juventude argentina que conheo inspira por que no dizer mais esperana que confiana. impossvel fazer algo importante no mundo se no se reunir estas duas qualidades: fora e disciplina. A nova gerao goza de uma esplndida dose de fora vital, condio primeira de toda empresa histrica; por isso confio nela. Porm, ao mesmo tempo, suspeito que carea por completo de disciplina interna sem a qual a fora se desagrega e se torna voltil por isso desconfio dela. No basta curiosidade para ir em direo s coisas; preciso o rigor mental para tornar-se dono delas".2 Isto o que dizia Ortega y Gasset h 40 anos e temos plena conscincia de que continua sendo verdade no presente! Por isso, pedimos que este artigo sobre cultura, cultura latino-americana e cultura nacional seja visto no sentido de que "a cincia e as letras no consistem em tomar posturas diante das coisas, mas em irromper freneticamente dentro delas, merc de um viril apetite de perfurao". Ao encararmos o homem, sempre o encontramos e j em sociedade. Entretanto, quando nos percebemos como homens, j estamos anteriormente constitudos em intersubjetividade. A intersubjetividade permite-nos perceber como um eu numa rede significativa, com sentido, em um mundo que esperou para que nascssemos para acolher-nos em seus braos e amamentar-nos de smbolos que configuram nossa conscincia concreta.3 Isto ______________1. Obras, II, in Revista de Occidente (Madri, 1946), em "Carta a un joven argentino que estudia filosofa". Nela afirma-se algo ainda inteiramente correto e atual: "Eu espero muito da juventude intelectual argentina, mas apenas confiarei nela quando a encontrar decidida a cultivar muito a srio o grande esporte da preciso mental (ibid., p. 342). 2. Ibid., p. 340. 3. Sobre a noo de mundo, ver nosso artigo "Situacin problemtica de la Antropologa filosfica", in Nordeste (Resistencia, 1967). Pode-se consultar A. de Waelhens, La philosophie et les expriences naturelles (La Haye, Nijhoff, 1961, pp. 108ss.), para quem mundo o horizonte onde um sistema intencional permite manifestar o sentido de nossa existncia.

, o mundo humano o que em certa medida uma redundncia ou tautologia societrio e, alm disso, transcorre no tempo; sua prpria finitude exige-lhe uma evoluo. O homem, a conscincia humana, como diria Dilthev, uma "realidade intersubjetiva e histrica".4 No podero ser jamais deixadas de lado estas duas coordenadas do fato humano: sua dimenso de coexistncia com outras conscincias e sua necessria inscrio na temporalidade, e ambos condicionantes, por sua vez, esto includos num mundo, em um horizonte da vida cotidiana.5 Ao falar de cultura, de nossa cultura, no podemos deixar de lado estes princpios que guiaro nossa exposio. A cultura ser uma das dimenses de nossa existncia intersubjetiva e histrica, um complexo de elementos que constituem radicalmente nosso mundo. Esse mundo, que um sistema concreto de significao, pode ser estudado, e tarefa das cincias do esprito faz-lo. "O homem afirma Paul Ricoeur aquele ser capaz de efetuar seus desejos como que disfarandose, ocultando-se, por regresso, pela criao de smbolos estereotipados".6 Todos esses contedos intencionais, esses "dolos (que a sociedade possui) como num sonho acordado da humanidade, so o objeto da hermenutica da cultura"7 Hermenutica, exegese, revelao da significao oculta nossa tarefa, e para isso indicaremos neste pequeno artigo alguns passos metdicos prvios para o estudo da cultura, da cultura latinoamericana e de nossa cultura nacional. 2.1.2. Civilizao, sistema de instrumentos Para que repetir uma proposta quando outros j a expressaram? Ouamos ento o que nos diz Paul Ricoeur: "A humani______________4. "Geschichtlich-gesellschaftlichen Wirklichkeit", in Einleitung..., "Gesammelte Schriften", I, p. 33. 5. O que a fenomenologia chama de Lebenswelt e que Husserl tratou especialmente em Die Krisis der europischen Wissenschaften, Husserliana, VI; entre outros manuscritos do mesmo filsofo citamos tambm o A-IV-4 (Die Welt des vorwissenschaftlichen Lebens). 6. De l'interpretation, essai sur Freud, Paris, Seuil, 1965, p. 164. 7. Ibid.

dade, considerada em sua totalidade, entra progressivamente numa civilizao mundial e nica, que significa ao mesmo tempo um progresso gigantesco para todos e uma tarefa imensa de sobrevivncia e adaptao da herana cultural a este quadro novo".8 Isto , parece existir uma civilizao mundial e, em contrapartida, uma tradio cultural especfica. Antes de prosseguir e para poder aplicar o que foi dito sobre nosso caso latino-americano e nacional, devemos esclarecer os termos que estamos usando. Como j esclarecemos em alguns de nossos trabalhos o significado de civilizao e cultura,9 resumiremos aqui o que j foi exposto e, ento, acrescentaremos novos elementos que at agora no havamos considerado. A civilizao10 o sistema de instrumentos criado pelo homem, transmitido e acumulado progressivamente atravs da histria da espcie, da humanidade inteira. O homem primitivo, pensemos por exemplo num Pithecanthropus h meio milho de anos, possua j a capacidade de distinguir entre a mera "coisa" (objeto integrante de um meio animal) e um "meio" (j que a transformao de coisa em utilidade possvel apenas por um entendimento universalizante que distingue entre "esta" coisa, "a" coisa em geral e um "projeto" que me permita deformar a coisa em meio-para). O homem rodeou-se desde a sua origem de um mundo de "instrumentos" com os quais conviveu e, tendo-os mo, tornou-os o contexto de seu ser-nomundo.ll O "instrumento" o meio escapa da atualidade ______________8. Paul Ricoeur, Histoire et vrit, Paris, Seuil, 1964, p. 274 (artigo publicado in Esprit, Paris, out., 1961). 9. Cf. "Chrtients latino-amricains", in Esprit, Paris, jul., 1965, pp. 3ss. (conferncia inaugural da Semana latino-americana I, Paris, 1964). Hiptesis para una Historia de la Iglesia en Amrica Latina (Barcelona, Estela, 1967 , caps. I e II, 1-2). Ver nosso curso impresso pelos alunos da Universidade do Nordeste -Argentina: "Latinoamrica en la Historia Universal", 2-5. 10. Opomo-nos a posio de Spengler (civilizao como decadncia da cultura) e, ainda, de Toynbee (como o "campo inteligvel de compreenso histrica"), adotando a posio de Gehlen (Der Mensch, Berlim, Athenum, 1940) e P. Ricoeur (op. cit.). 11. Cf. Heidegger, Sein und Zeit, 1, pp. 68- 70, o Wozu do meio que est a nosso alcance.

da coisa e se transforma num algo intemporal, impessoal, abstrato, transmissvel e acumulvel que pode sistematizar-se segundo projetos variveis. As chamadas "altas civilizaes" so supersistemas instrumentais que o homem conseguiu organizar desde o Neoltico, depois de um milho de anos de inumerveis experincias e adies de resultados tcnicos. No entanto, desde a pedra no-polida do homem primitivo ao satlite, que nos envia fotos da superfcie lunar, h apenas diferena quantitativa de tecnificao, mas no uma distino qualitativa ambas so utilidades que cumprem com um projeto ausente na "coisa" enquanto tal, so elementos de um mundo humano.12 O sistema de instrumentos que chamamos de "civilizao" tem diversos nveis de profundidade (paliers), desde os mais simples e visveis aos mais complexos e intencionais. Assim, j parte da civilizao, como a totalidade instrumental "dada mo do homem", o clima, a vegetao, a topografia. Em segundo lugar, esto as obras propriamente humanas, como estradas, casas, cidades e todas as demais utilidades, incluindo mquinas e ferramentas. Em terceiro lugar, descobrimos as utilidades intencionais que permitem a criao e acumulao sistemtica de outros instrumentos exteriores: so as tcnicas e as cincias. Todos estes nveis e os elementos que os constituem, como dissemos, no so um caos, mas um cosmos, um sistema mais ou menos perfeito, com maior ou menor complexidade. Dizer que algo possui uma estrutura ou um sistema o mesmo que indicar que esse algo possui um sentido. 2.1.3. Ethos, organismo de atitudes Antes de indicar a direo de sentido do sistema para os valores, vamos analisar a posio do portador da civilizao com respeito aos instrumentos que a constituem. "Em todo fazer e agir como tal, esconde-se um fator de grande peculiaridade; a vida como tal opera sempre numa atitude determinada, ______________12. todo o mundo dos "veculos materiais" de Pitrim Sorokin, Las filosofas sociais de nuestra poca de crisis, Madri, Aguilar, 1956, pp. 239ss.

a atitude em que se opera e a partir da qual se opera".13 Todo grupo social adota uma maneira de manipular os instrumentos, um modo de situar-se di ante da sua utilidade. Entre a pura objetividade da civilizao e a pura subjetividade da liberdade h um plano intermedirio, os modos, as atitudes fundamentais, existenciais, que cada pessoa ou povo foi constituindo. Este plano intermedirio determina, como uma inclinao a priori, seus comportamentos.14 Chamaremos de ethos de um grupo ou de uma pessoa o complexo total de atitudes que, predeterminando os comportamentos, formam um sistema, fixando a espontaneidade em certas funes ou instituies habituais. Diante de uma arma (um mero instrumento), um asteca a empunhar aguerridamente para vencer o adversrio, aprision-lo e imol-lo a seus deuses para que o universo subsista; enquanto que um monge budista, diante de uma arma, virar o rosto em sinal de desdm, porque acredita que atravs das guerras e das vitrias se acrescenta o desejo, o apetite humano, que fonte de todos os males. Vemos, ento, duas atitudes diversas ante os mesmos instrumentos, um modo diferente de us-los. O ethos, a diferena da civilizao, em grande parte incomunicvel, permanecendo sempre dentro do horizonte de uma subjetividade (ou de uma intersubjetividade regional ou parcial). Os modos que vo configurando um carter prprio so adquiridos pela educao ancestral, na famlia, na classe social, nos grupos de funo social, estvel, dentro do mbito de todos aqueles com os quais se convive, constituindo um ns. Um elemento ou instrumento de civilizao pode ser transmitido por uma informao escrita, por revistas ou documentos, e sua aprendizagem no necessita mais tempo que o de sua compreenso intelectual, tcnica. Um africano pode sair de sua tribo no Qunia e continuar seus estudos em qualquer um dos pases altamente tecnicistas, pode ______________13. Rothacker, Erich, Problemas de Antropologa cultural, Mxico, Fondo de Cultura Econmica, 1957, p. 16. 14. M. Merleau-Ponty indica isto quando diz que os objetos de uso "fazem emergir novos ciclos de comportamento" (M. Merleau-Ponty, La estructura del comportamiento, Buenos Aires, Hachette, 1957, p. 228).

voltar a sua terra natal e construir uma ponte, guiar um automvel, ligar um aparelho de rdio e vestir-se ocidental. Suas atitudes fundamentais podem ter permanecido quase inalteradas embora a civilizao modifique sempre, em maior ou menor medida, o plexo de atitudes como bem pde observar Gandhi.15 O ethos um mundo de experincias, disposies habituais e existenciais, veiculadas inconscientemente pelo grupo, que nem so objeto de estudo nem so criticadas ao menos pela conscincia ingnua, a do homem da rua e ainda a do cientista positivista como bem o mostra Edmund Husserl. Esses sistemas thicos, diferentemente da civilizao, que essencialmente universal ou universalizvel, so vividos pelos participantes do grupo e no so transmissveis, mas assimilveis, isto , para viv-los necessrio, previamente, adaptar-se e assimilar-se ao grupo que os integra em seu comportamento. Por isso a civilizao mundial e seu progresso contnuo apesar dos altos e baixos na histria universal; enquanto que as atitudes (constitutivo da cultura propriamente dita) so particulares por definio seja de uma regio, de naes, grupos de famlia e, por fim, radicalmente, de cada um (o So-sein pessoal).16 2.1.4. Ncleo fundamental de valores Tanto o sistema de instrumentos como o plexo de atitudes esto, afinal, referidos a um sentido ltimo, a uma premissa radical, a um reino de fins e valores que justificam toda ______________15. "Entrar na verdadeira intimidade dos males da civilizao ser muito difcil. As doenas dos pulmes no produzem leso aparente. (...) A civilizao uma dena deste gnero, e preciso que sejamos (os hindus) prudentes ao extremo", in La civilizacin occidental (Buenos Aires, Sur, 1959, p. 54). No aprovamos o pessimismo de Gandhi com respeito a civilizao, mas devemos aprender muito de sua atitude crtica com respeito a tecnologia! 16. Nas sociedades ou grupos, os elementos ou constitutivos do ethos exteriorizam-se por funes ou instituies sociais que fixam seu exerccio na comunidade (cf. Gehlen, Urmensch un Sptkultur, Frankfurt, Athenum, 1965).

ao.17 Estes valores encontram-se como que encobertos por smbolos, mitos ou estruturas de duplo sentido, e que tm por contedo os fins de todo o sistema intencional, que chamamos j no incio de mundo. No intuito de usar um nome, propomos o que indica Ricoeur (inspirando-se, por sua vez, nos pensadores alemes):18 ncleo tico-mtico. Trata-se do sistema de valores que, inconsciente ou conscientemente, um grupo possui, aceito e no criticamente estabelecido. " A morfologia da cultura dever esforar-se por indagar qual o centro ideal, tico e religioso";19 isto , "a cultura realizao de valores e estes valores, vigentes ou ideais, formam um reino coerente em si, que preciso apenas descobrir e realizar".20 Para chegar a uma revelao destes valores, para descobrir sua hierarquia, sua origem, sua evoluo, ser necessrio lanar mo da histria da cultura e da fenomenologia da religio porque, at poucos sculos atrs, eram os valores divinos os que sustentavam e davam razo a todos os sistemas existenciais. Com Cassirrer e Freud, Ricoeur acrescenta: " As imagens e os smbolos constituem o que poderamos chamar o sonho em viglia de um grupo histrico. Neste sentido, pode-se falar de um ncleo tico-mtico que constitui o fundo cultural de um povo. Pode-se pensar que na estrutura deste inconsciente ou deste subconsciente que reside o enigma da diversidade humana".21 ______________17. No admitimos a distino de Max Scheler, j que os fins, os autnticos fins da vontade ou tendncia, so valores ("tica", in Revista de Occidente, I, Buenos Aires, 1948, pp. 61ss.). 18. Este pensador chama "le noyau thico-mythique" (Histoire et vrit, p. 282). Os alemes usam a palavra "Kern". 19. Eduard Spranger, Ensayos sobre la cultura, Buenos Aires, Argos, 1947, p.57. 20. E. Rothacker, op. cit., pp. 62ss. 21. P. Ricoeur, op. cit., p. 284. E acrescenta: "Os valores dos quais falamos aqui residem nas atitudes concretas di ante da vida, enquanto formam sistemas e que no so questionadas de maneira radical pelos homens influentes e responsveis" (ibid., p. 282ss.); para alcanar o ncleo cultural de um povo, h que se chegar at o nvel das imagens e smbolos que constituem a representao de base de um povo" (ibid., p. 284).

2.1.5. Estilo de vida e obras de arte Trata-se agora de tentar uma definio de cultura ou, o que ainda mais importante, compreender adequadamente seus elementos constituintes. Os valores so os contedos ou o plo teleolgico das atitudes (conforme nossas definies anteriores, o ethos depende do ncleo objetivo de valores), que so exercidos ou portados pelo comportamento cotidiano, pelas funes, pelas instituies sociais. Chamaremos de estilo de vida a modalidade peculiar da conduta humana como totalidade, como um organismo estrutural com complexidade, mas dotado de unidade de sentido. O estilo de vida ou temperamento de um grupo o comportamento coerente resultante de um reino de valores que determina certas atitudes diante dos instrumentos da civilizao tudo isso e ao mesmo tempo.22 Por sua vez, prprio dos estilos de vida expressar-se e manifestar-se: a objetivao em objetos culturais, em portadores materiais dos estilos de vida, constitui um novo elemento da cultura que estamos analisando: a obra de arte seja literria, plstica, arquitetnica a msica, a dana, as modas de vesturio, comida e de todo comportamento em geral, as cincias do esprito em especial a Histria, Psicologia e Sociologia, mas igualmente o Direito e principalmente a lingua______________22. Sobre os estilos de vida, ver: FREYER, SPRANGER, ROTHACKER, HARTMANN, N., Das Problem des geistigen Seins, Berlim, Gruyter, 1933.

gem como o lugar prprio onde os valores de um povo cobram forma, estabilidade e comunicao mtua. Todo esse complexo de realidades culturais que no a cultura integralmente compreendida denominado pelos alemes de Esprito objetivo (seguindo a via empreendida por Hegel e que recentemente foi utilizada por Hartmann) e se confunde s vezes com as utilidades da civilizao. Uma casa , por sua vez, um objeto de civilizao, um instrumento inventado por uma tcnica de construo, mas, o mesmo tempo, e em segundo lugar, um objeto de arte se foi feito por um artista, por um arquiteto. Podemos dizer, por isso, que de fato todo objeto de civilizao transforma-se de algum modo e sempre em objeto de cultura e, por isso, no final, todo o mundo humano um mundo cultural, expresso de um estilo de vida que assume e compreende as meras tcnicas ou objetos instrumentais impessoais e neutros de um ponto de vista cultural. Agora podemos propor uma descrio final do que seja cultura. Cultura o conjunto orgnico de comportamentos predeterminados por atitudes diante dos instrumentos de civilizao, cujo contedo teleolgico constitudo pelos valores e smbolos do grupo, isto , estilos de vida que se manifestam em obras de cultura e que transformam o mbito fsico-animal em um mundo humano, um mundo cultural.23 Temos conscincia de que esta descrio est permanentemente situada em um nvel estrutural, que permite porm ser ainda fundado,ontologicamente. Na Filosofa da cultura, falase de valores, estruturas, contedos, ethos. Todas estas noes podem ser absolutizadas e estamos no estruturalismo como posio metafsica; podem, por sua vez, ser fundadas e nos abrimos ento ao nvel propriamente ontolgico. A fundamentao ontolgica no , no entanto, tarefa deste artigo. ______________23. As atitudes poderiam ser chamadas de "causas dispositivas" da cultura; os valores e smbolos, o reino de "fins"; o estilo, o constitutivo prprio ou "formal" da cultura; as obras de cultura, a causa material ou o onde se expressa e se comunica a cultura e, ao mesmo tempo, o efeito" da operao transitiva.

2.1.6. Tomada de conscincia da prpria cultura s vezes ouvimos dizer que no existe uma cultura latino-americana ou uma cultura nacional. claro, e isto poderamos justificar amplamente, que nenhum povo, nenhum grupo de povos pode deixar de ter cultura. No s que a cultura em geral se exera nesse povo, mas que esse povo tenha sua cultura. Nenhum grupo humano pode deixar de ter cultura, e nunca pode possuir uma que no seja a sua. O problema outro. Confundem-se duas questes: este povo tem cultura? Este povo tem uma grande cultura original? Eis aqui a confuso! Nem todo povo tem uma grande cultura; nem todo povo criou uma cultura original. Mas certamente tem sempre uma, por mais desprezvel, inorgnica, importada, no-integrada, superficial ou heterognea que seja. E, paradoxalmente, nunca uma grande cultura teve desde suas origens uma cultura prpria, original, clssica. Seria um absurdo pedir a uma criana para ser adulto; embora muitas vezes os povos passem da infncia a estados adultos doentios e no cheguem a produzir grandes culturas. Embora os aqueus, drios e jnios tenham invadido a Hlade durante sculos, no se pode dizer que tinham uma grande cultura e sim que a arrebataram e a copiaram dos cretenses. O mesmo se pode dizer dos romanos com respeito aos etruscos; dos acdios com respeito aos sumrios, dos astecas com respeito infra-estrutura de Teotihuacn. O que faz com que certas culturas cheguem a ser grandes culturas que junto sua civilizao pujante "criaram uma literatura, artes plsticas e uma filosofia como meios de formao de sua vida. E o fizeram num eterno ciclo de ser humano e de autointerpretao humana. (...) Sua vida tinha uma alta formao porque na arte, na poesia e na filosofia criava-se um espelho de autointerpretao e autoformao. A palavra 'cultura' vem do verbo latino colere, que significa 'cuidar', 'refinar'. Seu meio a autointerpretao".24 ______________24. Rothacker, op. cit., p. 29.

Isto dito de outro modo poderia ser: um povo que consegue expressar a si mesmo, que atinge a autoconscincia, a conscincia de suas estruturas culturais, de seus valores ltimos, pelo cultivo e evoluo de sua tradio, possui identidade consigo mesmo. 2.1.7. O homem culto Quando um povo se eleva a uma cultura superior, a expresso mais adequada de suas prprias estruturas manifestada pelo grupo de homens que mais consciente da complexidade total de seus elementos. Sempre existir um grupo, uma elite que ser a encarregada de objetivar toda a comunidade em obras materiais. Nelas, toda a comunidade contemplar o que espontaneamente vive, porque sua prpria cultura. O escultor grego Fdias e o Partenon ou Plato em A Repblica foram os homens cultos de sua poca que souberam manifestar aos atenienses as estruturas ocultas de sua prpria cultura. Igual funo desempenhou um Nezahualcoyotl o tlamatinime da cidade de Texcoco ou o poeta argentino Jos Hemndez e seu livro Martn Fierro.25 O homem culto aquele que possui a conscincia cultural de seu povo, isto , a autoconscincia de suas prprias estruturas, " um saber completamente preparado, alerta e pronto para o salto de cada situao da vida; um saber transformado em segunda natureza e plenamente adaptado ao problema concreto e necessidade da hora. (...) No curso da experincia, seja do tipo que for, o experimentado ordena-se para o homem culto numa totalidade csmica, articulada em conformidade com um sentido",26 o de sua prpria cultura. J que "conscincia cultural , fundamentalmente, uma conscincia que nos acompanha com perfeita espontaneidade, (...) a conscincia cultural (...) resulta ser assim uma estrutura radical e pr-ontolgi______________25. Cf. M. Len-Portilla, "El pensamiento prehispnico", in Estudios de historia de la filosofia en Mxico, Mxico, 1963, p. 44. 26. Max Scheler, El saber y la cultura, Santiago do Chile, Universitaria, 1960, p. 48.

ca" afirma Ernesto Mayz Vallenilla em seu livro Problema de Amrica.27 Vemos que h uma espcie de sinergia entre grande cultura e homem culto. As grandes culturas tiveram legies de homens cultos e at a massa possua um firme estilo de vida que lhe permitia ser conseqente com seu passado tradio e criadora de seu futuro. Tudo isto recebido pela educao, seja na cidade, no crculo familiar, nas instituies, j que "educar significa sempre impulsionar o desenvolvimento metdico considerando as estruturas vitais previamente conformadas".28 No h educao possvel sem um estilo firme e anteriormente estabelecido. 2.1.8. Tomada de conscincia da Amrica Latina O ponto de partida do processo gerador das altas culturas foi sempre uma "tomada de conscincia", o despertar de um mero viver para descobrir-se vivendo, um recuperar a si prprio da alienao nas coisas para separar-se delas e opor-se como conscincia em viglia. aquilo que Hegel magnificamente assinalou em su as obras-primas com o nome de Selbstbewusstsein, autoconscincia,29 e que em um dos seus escritos da juventude bem descrita na vida de Abrao:"A atitude que afastou Abrao de sua famlia a mesma que o conduziu atravs das naes estrangeiras com as quais criou continuamente situaes conflitivas,

______________27. Universidade Central da Venezuela, Caracas, 1959, pp. 21ss. Na verdade, no h que se falar de pr-ontolgico como o faz Heidegger mas de pr-cientfico ou pr-filosfico como fazia Husserl e bem o indica De Waelhens. O homem culto tem conscincia reflexa daquelas estruturas da vida cotidiana, do estilo de vida, dos valores, conhece os objetos de arte e tudo isto como "bebido" a partir de sua origem e como prprio por natureza (por nascimento). No se trata de um sistema elaborado (ou cientfico ou filosfico), mas daquelas atitudes prvias, as da Lebenswelt de Husserl. 28. Spranger, op. cit., p. 69. Os estilos transformam-se em instituies ou funes sociais, a educao os transmite e ainda os afiana e procria. 29. Em especial, em seu Fenomenologa del Espritu.

esta atitude consistiu em perseverar numa constante oposio (separao liberdade) com respeito a todas as coisas. (...) Abrao errava com seus rebanhos em uma terra sem limites".30

Assim, preciso que saibamos nos separar da mera cotidianidade para alcanar uma conscincia reflexa das prprias estruturas de nossa cultura. E quando esta autoconscincia efetuada por toda uma gerao intelectual, isto nos indica que desse grupo cultural podemos com tranqilidade esperar um futuro melhor. Porm, na Amrica Latina, certamente h uma gerao para a qual "di" ser latino-americano. "Quem primeiro exps com clareza a razo profunda desta preeminente preocupao ibero-americana foi Alfonso Reyes num discurso pronunciado em 1936, diante dos participantes do VII Encontro do Instituto Internacional de Cooperao Intelectual, discurso que mais tarde foi incorporado sua obra sob o ttulo de Notas sobre la inteligencia americana. Falando de uma gerao anterior sua, isto , da gerao positivista, que tinha sido europeizante, disse: " A imediata gerao que nos precede acreditava ter nascido dentro da cadeia de vrias fatalidades concntricas.31 (...) Tendo chegado tarde ao banquete da civilizao europia, a Amrica vive saltando etapas, apressando o passo e correndo de uma forma em outra, sem ter dado tempo a que madurecesse totalmente a forma precedente. s vezes, o salto ousado e a nova forma tem o gosto de um alimento retirado do fogo antes de atingir seu pleno cozimento. (...) Tal o segredo de nossa poltica, de nossa vida, presididas pela marca da improvisao".32 ______________30. Hegel theologische Jugendschriften, Tbingen, Mohl, 1907 (valemonos da traduo francesa: Paris, Vrin, 1948, p. 6). Foi j em sua juventude que Hegel descobriu a diferena entre "conscincia da coisa" que est perdida na mera coisidade" (Dingheit) e a "autoconscincia", 31. Os crculos concntricos so: o gnero humano, o europeu, o americano e latino; os dois ltimos tomados como um handicap "na corrida da vida". 32. Abelardo Villegas, citando Alfonso Reyes em Panorama de la Filosofa iberoamericana actual, Buenos Aires, Eudeba, 1963, pp, 75ss.

trgico que nosso passado cultural seja heterogneo, s vezes incoerente, dspar e que sejamos at um grupo marginal ou secundrio da cultura europia. Porm, ainda mais trgico que se desconhea sua existncia, pois o importante que, de qualquer forma, h uma cultura na Amrica Latina, cuja originalidade, mesmo que alguns neguem, evidencia-se na arte, em seu estilo de vida. Cabe ao intelectual descobrir tais estruturas, provar suas origens, indicar os desvios. Plato no criticou sem piedade a Homero? Ser que ele tinha conscincia de que sua crtica era a melhor obra de sua cultura? A gerao socrtica e o sculo de Pricles que a antecedera foi a gerao de tomada de conscincia da cultura grega. Seu passado at ento era miservel se comparado ao do Egito e ao da Mesopotmia. Eis aqui nossa misso, nossa funo. necessrio que tomemos conscincia de nossa cultura, e no apenas isso, mas que nos transformaremos em configuradores de um estilo de vida. E isto tanto mais urgente quando se compreende que "a humanidade, tomada como um corpo nico, encaminha-se para uma civilizao nica. (...) Todos experimentamos, de maneiras diversas e segundo modos variveis, a tenso existente entre a necessidade desta adaptao e progresso, por um lado, e ao mesmo tempo a exigncia de salvaguardar o patrimnio herdado".33 Como latino-americanos que somos, esta problemtica encontra-se no corao de toda nossa reflexo contempornea. Originalidade cultural ou desenvolvimento tcnico? De que modo sobreviveremos como cultura latino-americana na universalizao prpria da tcnica contempornea? 2.2. CULTURA LATINO-AMERICANA E CULTURA NACIONAL 2.2.1. Sobre a origem de nossas nacionalidades As histrias particulares de nossas naes latino-americanas so, em sua configuraes independentes, curtas. No me______________33. P. Ricoeur, op. cit., p. 274.

lhor dos casos, seu corpo de leis fundamentais acaba de fazer um sculo. O grito de independncia lanado no incio sem muita confiana foi-se arraigando pela fraqueza hispnica. Os antigos vice-reinados, s vezes apenas audincias ou capitanias gerais, autnomas mais pelas distncias que pela importncia do nmero de habitantes, de sua economia ou cultura, foram-se organizando seguindo um acontecer anlogo em naes a partir de 1822, terminando o duplo processo revolucionrio. Poucas de nossas naes tiveram em seu passado pr-histrico uma raiz suficientemente firme que justificasse uma personalidade comunitria e histrica adequada referimo-nos ao Mxico, Peru e Colmbia, mbito geogrfico das nicas trs altas culturas amerndias. A vida colonial, por sua vez, permitiria o nascimento de duas ou trs naes em torno da cidade do Mxico do sculo XVI, de Lima do sculo XVII e da Buenos Aires do sculo XVIII e, no entanto, observamos que, embora hoje sejam mais de 20 naes, nenhuma delas um "campo inteligvel de estudo histrico", segundo o historiador ingls Arnold Toynbee. Em outras palavras, nenhuma delas pode justificar e explicar sua cultura, nem sequer suas instituies nacionais, pois elas foram um todo unitrio na poca da Cristandade colonial e reaes anlogas produziram a emancipao. Pretender explicar nossas culturas nacionais por si mesmas uma tentativa impossvel, um nacionalismo que devemos superar. Contudo, no s deveremos ultrapassar as fronteiras ptrias, mas tambm certos limites histricos produtos de uma periodificao estreita em demasia. No poderemos explicar nossas culturas nacionais se nos remontarmos apenas a algumas revolues recentes ou se partirmos do incio do sculo XIX ou do sculo XVI. As prprias culturas amerndias apenas nos daro um contexto e certos elementos residuais da futura cultura latino-americana. Isto , devemos nos situar numa viso de Histria universal para conseguir desentranhar o sentido de nossa cultura.34 ______________34. Ver nosso artigo "Iberoamrica en la Historia Universal", in Revista de Occidente, n. 25, Madri, 1965, pp. 85-95. Este captulo est reproduzido nesta mesma obra, como primeiro ensaio, com o ttulo "Amrica Ibrica na

2.2.2. De nosso lugar na Histria universal Para alcanar adequadamente o sentido profundo e universal de nossa cultura amerndia, devemos incluir em nosso olhar de conjunto o homem em sua origem, devemos v-lo progredir no Paleoltico africano e euroasitico, para, depois, muito mais tarde, partir para a Amrica e ser, fato s vezes deixado de lado, o mais asitico dos asiticos, o mais oriental dos orientais tanto por sua raa como por sua cultura. Colombo descobriu efetivamente homens asiticos. Para situar e compreender as altas culturas americanas devemos partir das culturas organizadas desde o IV milnio a.C. no Nilo e na Mesopotmia, para depois avanar para o Oriente e poder, por fim, vislumbrar as grandes culturas neolticas americanas, pouco depois do incio de nossa Era Crist. Eis a nossa Pr-Histria! Nenhuma das altas culturas amerndias teve um contato direto com as culturas euroasiticas se houve algum, foi atravs dos polinsios mas foram o fruto maduro de estruturas j configuradas no Paleoltico, quando o americano habitava ainda a sia oriental e as ilhas do Pacfico. Entretanto, o mais importante que nossa Proto-Histria (nossa "primeira" constituio ou a formao dos elementos mais radicais de nossa cultura) comeou ali, nessa Mesopotmia j citada, e no nas estepes euroasiticas dos indoeuropeus. A Proto-Histria de nossa cultura, de tipo semito-crist, ______________Histria universal", p. 5. "Os novos pases latino-americanos, j no incio de sua independncia, percebiam que estavam margem do progresso, a margem do mundo que pujantemente se levantava a seu lado e que, inclusive, os ameaava com sua inevitvel expanso. Esta preocupao expressa-se j no pensamento de um libertador de povos como Simn Bolvar e nos pensadores preocupados por estruturar as naes recm-emancipadas, como Sarmiento e Alberdi, na Argentina; Bilbao e Lastarria no Chile; Jos Mara Luis Mora, no Mxico, e muitos outros. Frente ao mundo moderno, tinham que definir os pases latino-americanos os caracteres que lhes permitiriam, ou no, incorporar-se a ele como naes igualmente modernas" (Zea, Leopoldo, Amrica Latina y el mundo, Buenos Aires, Eudeba, 1965, p. 5). "Esta preocupao foi novamente a preocupao central de nossos dias na Amrica Latina" (ibid., p. 9).

origina-se no IV milnio a.C., quando as sucessivas invases das tribos semitas foram influenciando todo o Crescente Frtil. Acadianos, assrios, babilonios, fencios, arameus, hebreus, rabes e, do ponto de vista cultural, os cristos, fazem parte da mesma famlia. Esse homem semito-cristo foi quem dominou o Mediterrneo romano e helnico; foi quem evangelizou os germanos e os eslavos indoeuropeus como os hititas, iranianos, hindus, gregos e romanos. E, por ltimo, dominou igualmente a Pennsula Ibrica semita, do ponto de vista cultural, tanto pelo califato de Crdova como pelos reinos de Castilha e Arago. Os valores, as atitudes fundamentais do conquistador, se quisermos tentar uma explicao radical, remontam at onde indicamos, isto , at o IV milnio a. C., junto aos desertos srio-arbicos. Nossa Histria propriamente latino-americana comea com a chegada de um punhado de hispnicos, que, alm de seu messianismo nacional, possuam sobre os ndios uma superioridade imensa tanto em seus instrumentos de civilizao como na coerncia de suas estruturas culturais. Nossa Histria latinoamericana comea a, em 1492, pelo domnio indiscutvel do hispnico da tardia cristandade medieval, mas j renascentista, sobre dezenas de milhares de asiticos ou, de outro modo, de asiticos e australides que h milhares de anos habitavam um continente desmesuradamente grande por seu espao e terrivelmente pequeno em sua a-historicidade. O ndio no possui histria porque seu mundo o da intemporalidade da mitologia primitiva, dos arqutipos eternos.35 O conquistador comea uma histria e esquece a sua na Europa. A Amrica Hispnica parte ento do zero. Angustiante a situao de sua cultura! 2.2.3. Sentido e contexto de nossas culturas nacionais E nossas naes latino-americanas? H naes no mundo que significam uma totalidade cultural com sentido; pense______________35. Cf. Mircea Eliade, Trait d'Histoire des religions, Paris, Payot, 1957, pp. 332ss.

mos na Rssia, China e ndia. H outras que possuem uma perfeita coerncia com seu passado e que com outras naes constituram uma cultura original; tal seria o caso da Frana, Alemanha e Inglaterra. H, por outro lado, naes absolutamente artificiais que no possuem unidade lingstica, religiosa ou tnica, como por exemplo a Repblica Democrtica do Congo (antigo Zaire) ou a frica do Sul. E nossas naes latino-americanas? Parecem estar ainda no meio da caminhada. Possuem seus Estados nacionais, suas histrias autnomas h apenas um sculo e meio, certas modalidades distintivas de um mesmo estilo de vida, de uma cultura comum. Evidentemente temos nossos poetas e at nossos movimentos literrios; nossa arquitetura, nossos artistas plsticos; nossos pensadores, filsofos, historiadores, ensastas e socilogos; e o que mais importante, temos certas atitudes diante da civilizao, certos valores. Mas ser que as diferenas de nao para nao latinoamericana so to pronunciadas para que possamos dizer que so culturas diferentes? H profundas diferenas entre Honduras e Chile, entre Argentina e Mxico, entre Venezuela e Uruguai. Porm, no h maior semelhana entre os habitantes de Caracas, Buenos Aires, Lima ou Guatemala, que entre esses cidados da cultura urbana latino-americana e um gacho dos Pampas ou do Orinoco, ou um ndio das selvas peruanas ou do planalto mexicano? Nossas culturas nacionais so apenas mbitos com personalidade dentro de um horizonte que possui apenas ele certa consistncia como para pretender o nome de cultura propriamente dita. Isto , todas as nossas culturas nacionais so partes constitutivas da cultura latino-americana. Essa mesma cultura regional, original e nossa foi durante quatro sculos, de uma maneira ou outra como toda cultura germinal um mbito secundrio e marginal, porm cada vez mais autnomo, da cultura europia. Desta, contudo, a Amrica Latina, pela situao de sua civilizao das condies scio-polticas, econmicas e tcnicas do subdesenvolvimento e ao mesmo tempo pela tomada de conscincia de seu estilo de vida, tende a se tornar independente. Nossa hiptese a seguinte: ainda para a

compreenso radical de cada uma de nossas culturas nacionais deveremos contar com as estruturas da cultura latinoamericana. No se pode adiar a anlise da Amrica Latina para um futuro remoto, quando a anlise de nossas culturas nacionais tiver terminado. um absurdo em morfologia cultural, j que so as estruturas do todo as que explicam a morfologia das partes. A fisiologia estuda primeiro a totalidade funcional do corpo, o que permite depois descobrir os rgos e suas atividades complementares. Os estudos regionais, nacionais ou locais acrescentaro as modalidades prprias de viver os valores humanos comuns, as atitudes do grupo maior, os estilos de vida latino-americanos. No plano dos acontecimentos histricos, necessrio partir do local para elevar-se ao nacional e ao internacional. No plano das estruturas culturais, teremos que saber escolher alguns elementos essenciais de todos os componentes da cultura, para estudar as estruturas comuns. A partir destas estruturas comuns, as particularidades nacionais aparecero nitidamente. Do contrrio, mostrar-se- como nacional o que herana comum latino-americana e se perdero os traos propriamente nacionais. Na Argentina, por exemplo, no existe nenhuma biblioteca ou instituto que se dedique pesquisa da cultura latino-americana. Entidades como o Iberoamerikanische lnstitut de Berlim, paradoxalmente, no abundam na Amrica Latina. Assim, enquanto a Amrica Latina no encontrar seu lugar na Histria universal das culturas, nossas culturas nacionais sero como frutos sem rvore, como se tivessem nascido por gerao espontnea. Um certo "nacionalismo" cultural lanou-nos ao encontro do nacional. necessrio dar um passo a frente e descobrir a Amrica Latina para salvar nossa prpria cultura nacional. necessrio, ento, superar tal nacionalismo! Alm disso, deveremos contar com a existncia de semelhanas de mbitos situados entre a Amrica Latina como um todo e cada nao. Dessa forma, existe uma Amrica Latina do Caribe, outra dos Andes (incluindo a Colombia e o Chile), a do Amazonas e a da Prata. Esses subgrupos no podem ser deixados de lado quando se tem em conta a cultura nacio-

nal. Se quisssemos ainda simplificar mais, poderamos falar de uma Amrica Latina do Pacfico que olha para um passado pr-histrico e uma do Atlntico, mais permevel s influncias estrangeiras e europias. 2.2.4. O ncleo de valores na Amrica Latina Como efetuar ou possuir o saber culto, o que significa ter uma conscincia reflexa das estruturas orgnicas de nossa cultura latino-americana e nacional ? Deveremos proceder analisando pacientemente cada um dos nveis, cada um dos elementos constitutivos da cultura. O ncleo simblico ou mtico de nossa cultura, os valores que fundamentam todo o edificio das atitudes e estilos de vida so um complexo intencional que tem sua estrutura, seus contedos, sua histria. Como efetuar aqui uma anlise morfolgica e histrica seria impossvel,36 apenas indicaremos as hipteses fundamentais e as concluses a que chegamos. At o presente esto sendo feitos alguns trabalhos sobre a histria das idias na Amrica Latina,37 mas no nos referimos ______________36. Em nosso curso "Latinoamrica en la historia universal" (cf. nota 9), ocupamo-nos detalhadamente desta questo (ver 13 em diante desse curso). 37. Pensemos por exemplo na coleo Historia de las ideas en Amrica, publicada pelo Instituto Panamericano de Geografia e Histria e Fondo de Cultura Econmica (Tierra firme), cf. "Notas e comentrios". Esta coleo no deve faltar em nenhuma biblioteca de um homem culto latino-americano. Trata-se das obras todas publicadas pelo Fondo de Cultura Econmica, Mxico, a partir de 1956 de A. Adao, La filosofia en el Uruguay en el siglo XX; G. Francovich, El pensamiento boliviano en el siglo XX; Cruz Costa, Esbozo de una historia de las ideas en el Brasil; R. H. Valle, Historia de las ideas contemporneas en Centroamrica; V. Alba, Las ideas sociales contemporneas de Mxico; e outras. A essas podemos acrescentar ainda o trabalho de A. Salazar Bondy, La filosofia en el Per (Washington, Unin Panamericana, 1960). H livros como o de Alfredo Povia, Nueva historia de la Sociologa latinoamericana (Crdoba, Universidade de Crdoba, 1959), que abrem igualmente panoramas desconhecidos sobre a Histria das idias; o mesmo pode-se dizer do livro Las ideas polticas en Chile, de Ricardo Donoso (Mxico, Fondo de Cultura Econmica, 1946), apenas para citar dois exemplos de obras que devem ser usadas num estudo evolutivo das

s idias, aos sistemas expressos, e sim s Weltanschauugen concretas, s estruturas intencionais no dos filsofos ou pensadores, mas s do homem comum com sua vida cotidiana. E os ltimos valores da Pr-Histria, da Proto-Histria e da Histria latino-americana (ao menos at as primeiras dcadas do sculo XIX) deveremos ir busc-los nos smbolos, mitos e estruturas religiosas. Para isso, usaremos principalmente os instrumentos da histria e da fenomenologia das religies, porque, at a recente secularizao da cultura, os valores fundamentais ou os primeiros smbolos de um grupo foram sempre as estruturas teolgicas dizemos explicitamente: um logos do divino. Na Amrica, o estudo dos valores de nosso grupo cultural deve comear pela anlise da conscincia primitiva e de sua estrutura mtica amerndia,38 em cujos ritos e lendas encontram-se os contedos intencionais, os valores que buscamos como bem o sugere Paul Ricoeur39 seguindo o caminho do filsofo alemo Karl Jaspers. A Filosofia no seno a expresso racional (ao menos at o sculo XVII) das estruturas teolgicas aceitas e vividas pela conscincia do grupo.40 Num segundo momento, observaremos o choque do mundo de valores amerndios e hispnico, no no processo da conquista, mas no da evangelizao. O predomnio dos valores semtico-cristos, com as modalidades prprias do messianismo hispnico medieval e renascentista em parte, no deixa de ______________estruturas intencionais e muito mais se considerarmos que Sociologia, Filosofia, Poltica e as Letras foram em geral exercidas por personalidades polivalentes. Por acaso Echeverra, Sarmiento ou Lucas Alamn no foram tudo isso ao mesmo tempo, mesmo sem serem realmente especialistas em nenhuma dessas reas? 38. Deveremos deixar os materiais das histrias das regies (por exemplo o livro de Krickeberg- Trimborn, Die Religionen des alten Amerika. Stuttgart, Kohlhammer, 1961) por um mtodo que una as posies de Schmidt, van der Leeuw, Eliade, Otto e Dilthey, mas dentro de um mtodo fenomenolgico como o proposto por Husserl, por Max Scheler. 39. La symbolique du mal, Paris, Aubier, 1960 (Parte III de "La philosophie de la volont"). 40. Ver nosso trabalho El humanismo helnico y semita.

lado um certo sincretismo, atravs da sobrevivencia de mitos amerndios na conscincia popular. Ser preciso ver depois a configurao prpria desses valores na histria da cristndade colonial. Sua crise produzir-se- muito depois da emancipao, pelo choque de correntes procedentes da Europa a partir de 1830, que apenas conseguiro impor seus contedos com a gerao romantica e positivista entre 1870 e 1890. O fenmeno mais importante ser, ento, o da secularizao; de uma sociedade de tipo cristo o que supe valores semelhantes para todos e relativa intolerncia para com os alheios se passar a uma sociedade de tipo profana e pluralista. Entretanto, os contedos ltimos do ncleo mtico, mesmo que secularizados, permanecero idnticos. A viso do homem, da histria, da morte, da vida, da doena, do cosmos, da transcendncia, da liberdade, continuaria sendo com exceo das minoras que exercem freqentemente o poder a ancestral. Prova disso o desaparecimento total do positivismo; demonstra que os que se inspiraram ou se inspiram em modelos exclusivamente estadunidenses, franceses ou ingleses terminam por sentir-se alheios Amrica Latina, ou ainda, o que no final das contas d no mesmo, a Amrica Latina os rejeita por serem estrangeiros. De nossa parte, acreditamos que preciso, com autoconscincia, analisar esse mundo de valores ancestrais, descobrir seus contedos, aquilo que tem de permanente e essencial, e isso nos permitir sair com xito da dupla situao e necessidade de desenvolver nossa cultura e civilizao.41 ______________41. H obras interpretativas gerais que comeam a nos indicar algumas hipteses de trabalho, mas em quase todas falta uma prvia metodologia da Filosofia da cultura que Ihes permitisse avanar mais. Partamos dos que trataram primeiramente da Espanha -de onde surgir a retlexo latino-america na. No apenas Ortega y Gasset e Julin Maras, mas tambm Pedro Lan Entralgo, Espaa como problema, 1-11 (Madri, Aguilar, 1956); Claudio Snchez Albornoz, Espaa, un enigma histrico, I-II (Buenos Aires, Sudamericana, 1956), em resposta ao livro de Antonio de Castro, La realidad histrica de Espaa; Ramiro de Maeztu, Defensa de la Hispanidad (Madri, Fax, 1952). Sobre a Amrica Latina, recomendamos de Leopoldo Zea, "La historia intelectual en Hispanoamrica", in Memorias del I Congreso de Historiadores de

2.2.5. Do estudo do ethos latino-americano O mesmo pode-se dizer de nosso ethos, do organismo de atitudes fundamentais que constituem os valores.42 Aqui a situao mais delicada ainda. Ns, latino-americanos, no possumos o mesmo ethos trgico do ndio, que o leva a aceitar pacientemente um destino necessrio, e tampouco o do hispnico, que descrito por Ortega y Gasset de um modo esclarecedor: o espanhol aquele homem que tem "aquela capacidade ______________Mxico (Monterrey, Mxico, TOSA, 1950, pp. 312-9); Amrica en la Historia (Mxico, FCE, 1957); Dos etapas del pensamiento hispanoamericano (Mxico, El Colegio de Mxico, 1949). Recomendamos ainda: Alberto Wagner de Reyna, Destino y vocacin de Iberoamrica (Madri, Cultura Hisp., 1954); Pedro Henrquez Urea, Historia de la cultura en la Amrica Hispnica (Mxico, Fondo de Cultura Econmica, 1959), do mesmo autor Las corrientes literarias en la Amrica Hispnica (Mxico, Fondo de Cultura Econmica, 1954); sobre este assunto importante tambm o livro de E. Anderson-Imbert, Historia de la literatura hispanoamericana (Mxico, Fondo de Cultura Econmica, 1957); Herman Keyserling, Meditaciones sudamericanas (Santiago do Chile, L. Ballesteros, 1931); Alceu Amoroso Lima, As realidades americanas (Rio de Janeiro, Agir, 1954), e, do mesmo autor, "L' Amrique en fase de la culture universelle", in Panorama, II (Washington, 8, 1953, pp. 11-33); Vctor Haya de la Torre, Espacio-tiempo histrico (Lima, 1948); Alberto Caturelli, Amrica Bifronte (Crdoba, Universidade de Crdoba, 1962), e, do mesmo autor, "La historia de la conciencia americana", in Dinoia (Mxico, 1957, pp. 57-77); Nimio de Anqun, "El ser visto desde Amrica", in Humanitas III (8, pp. 12-27); Ernesto Mayz Vallenilla, El problema de Amrica (Caracas, Universidade de Caracas, 1959); Edmundo O'Gorman, La invencin de Amrica (Mxico, Fondo de Cultura Econmica, 1958); Jos Ortega y Gasset, "La pampa..." (in Obras, II, 1946); Antonio Gmez Robledo, Idea y experiencia de Amrica (Mxico, Fondo de Cultura Econmica, 1958); Abelardo Villegas, Panorama de la Filosofa iberoamericana actual (Buenos Aires, Eudeba, 1963); Mariano Picn-Salas, De la conquista a la independencia (Mxico, Fondo de Cultura Econmica, 1944), e outros. Ver o artigo "Filosofa americana", in Diccionario de Filosofa, de Ferrater y Mora (Buenos Aires, 1958, pp.518-522). 42. H trabalhos importantes do ethos da poca da conquista, por exemplo os de Lewis Hanke, Colonisation et conscience chrtienne au XVI e sicle (Paris, Plon, 1957), e o de Joseph Hffner, Christentum und Menschenwrde (Treveris, Paulinus, 1947). Faltam, porm, trabalhos sobre o ethos na poca colonial e depois da emancipao.

de estar sempre ou seja, normalmente aberto aos demais e que se origina no que , a meu ver, a virtude mais bsica do ser espanhol. algo elementarssimo, uma atitude primria e prvia a tudo, a saber: a de no ter medo da vida. (...) O espanhol no tem, efetivamente, necessidades, porque, para viver, para aceitar a vida e ter diante dela uma atitude positiva, no precisa de nada. De tal modo o espanhol no precisa de nada para viver, que nem sequer precisa viver, no tem grande empenho em viver e isto precisamente o coloca em plena liberdade diante da vida, isto lhe permite assenhorear-se da vida".43 Ns, por outro lado, temos outro ethos, descrito com propriedade por Mayz Vallenilla, afirmando que "diante do presente eis aqui nossa primordial afirmao sentimonos margem da Histria e agimos com uma firmeza de radical precariedade",44 e isto "apenas depois de um longo e demorado familiarizar-se e habituar-se com seu mundo em torno, atravs da firmeza de uma reiterada e constante expectativa frente do futuro".45 Ainda de maneira mais clara afirma ele que "a Amrica a imaturidade. Talvez s o fato de que um americano (e j vo mais de um) sustente isso sem ruborizar, pode ser signo de uma primeira sada deste mundo de imaturidade, porm, o que mais importante a meu modo de ver, para que essa sada seja possvel, preciso que tenhamos conscincia de tal imaturidade. Sem esta tomada de conscincia que um assumir a real situao da Amrica e da Argentina, no nos ser possvel avanar um passo".46 Ou, como nos diz o filsofo ______________43. Ortega y Gasset, Una interpretacin de la Historia Universal, p. 361. 44. El problema de Amrica, p. 41. 45. "Com efeito, que por viver de expectativa, (...) (significa que) ainda no somos? Ou ser, pelo contrrio, que j somos (...) e nosso ser mais ntimo consiste em um essencial e reiterado no-ser-sempre-ainda?" (ibid., p. 63). "Com firmeza frente ao futuro, a expectativa mantm-se em tensa prospeco, contando apenas com o fato de que isso se aproxima e nada mais. Frente inexorabilidade de sua chegada sabe que se deve estar disposto para tudo e, em semelhante situao, tambm pura expectativa e nada mais" (ibid., p. 77). 46. A. Caturelli, Amrica bifronte, pp. 41ss.

espanhol Ortega y Gasset, "a alma crioula est cheia de promessas-feridas, sofre radicalmente de um divino descontentamento como j afirmei em 1916 , sente dor em membros que lhe faltam e que, no entanto, nunca teve".47 No devemos pensar, contudo, que nosso ethos um conjunto de negatividades, j que a " Amrica Latina no tem, ao que parece, a conscincia tranqila quanto a suas sentenas".48 Nosso ethos possui indiscutivelmente uma atitude fundamental de "espera", mas que no "esperana", e por isso que os revolucionrios que vo at as ltimas conseqencias obtem algumas vitrias momentneas, pois utilizam essa dose de vitalidade espera de algo melhor. De qualquer modo, no pretendemos aqui abordar todo o plexo de atitudes que constituem o ethos latino-americano, j que para isso seria necessrio lanar mo, igualmente, de um mtodo fenomenolgico, visto que na modalidde peculiar de nosso povo se determina em geral a conscincia humana por um mundo-nosso, pelas circunstncias que so irredutveis de comunicao.49 Alm de ______________47. Ortega y Gasset, Obras, II, in Revista de Occidente (Madri, 1946, p. 633, no artigo "La pampa... promesas"). 48. H. A. Murena, "Ser y no ser de la cultura latinoamericana" (in Expresin del pensamiento contemporneo, Buenos Aires, Sur, 1965, p. 244). Este autor, que escreveu El pecado original de Amrica (Buenos Aires, Sur, 1954), chega a dizer, porm, com suma crueza: "1) a Amrica Latina carece de cultura prpria; 2) tal carncia provoca-lhe um estado de ansiedade cultural que se traduz no acmulo anormal de informao sobre as culturas alheias" (ibid., p. 252). Depois, porm, indica a grande reao a partir dos anos 1910 em diante (Rubn Daro, Csar Vallejo, Pablo Neruda, Manuel Bandeira e outros) que significou "uma sorte de contraponto do qual surge o som do americano", em especial em Alfonso Reyes ou Jorge Luis Borges. 49. Alm das obras mencionadas, deveramos lanar mo de trabalhos como os de Jos Vasconcelos, La raza csmica (Buenos Aires, EspasaCalpe, 1948); Flix Schwartzmann, El sentimiento de lo humano en Amrica, I-II (Santiago do Chile, Universidade de Filosofia, 1950-1953); Vctor Massuh, Amrica como inteligencia y pasin (Mxico, Tezontle, 1955); Manuel Gonzalo Casas, "Bergson y el sentido de su influencia en Amrica", in Humanitas, VII (Tucumn, 12, 1959, pp. 95-108); Risieri Frondizi, "Is there an Ibero-American Philosophy?", in Philosophy and Phenomenological Research, IX (Buffalo, Estados Unidos, 3, 1949), e outros.

uma pesquisa estrutural, devemos contar sempre com a evoluo dos fenmenos, e por isso seria igualmente um estudo histrico. 2.2.6. Do estilo de vida de nosso continente Por ltimo, devemos ver o terceiro aspecto constitutivo da cultura: o estilo total de vida e as objetivaes em objetos artsticos ou culturais propriamente ditos.50 Este nvel foi o mais estudado e sobre ele que possumos mais pesquisas escritas. Trata-se das histrias da arte, da literatura, do folclore, da arquitetura, da pintura, da msica, do cinema etc. Isto , trata-se de compreender a originalidade de tais expresses, que so a expresso de um estilo de vida. Evidentemente, uma compreenso clara deste estilo de vida consegue-se to-somente pela anlise do ncleo fundamental de valores e atitudes orgnicas do ethos, tarefa prvia que esboamos nos dois itens anteriores. O que falta, no entanto, at o presente, uma viso de conjunto, de maneira evolutiva e coerente, de todos os nveis das objetivaes culturais, isto , uma obra que rena todas as artes e movimentos culturais latino-americanos e mostre as vinculaes entre eles mesmos e com os valores que os fundamentam, as atitudes que os determinam, as circunstancias histricas que os modificam. Ou seja, no possumos ainda uma histria da cultura latino-americana, uma exposio de nosso peculiar mundo cultural. 2.2.7. Sobre a cultura argentina Agora sim podemos abordar o problema da evoluo, com sentido de contexto, da cultura nacional, e o que diremos a respeito da Argentina em particular pode-se aplicar analogicamente a todas as demais naes latino-americanas e dizemos analogicamente porque haver matizes, graus e planos de aplicabilidade diversos. ______________50. "Objetos materiais de cultura" no o mesmo que "cultura".

o primeiro ponto que devemos rejeitar na compreenso da cultura nacional um extremo que se denomina nacionalismo, como a posio daqueles que sustentam a utpica posio seja de direita, de esquerda ou "liberal" de absolutizar a nao; posio que, de um modo ou de outro, remonta aos idelogos franceses do sculo XVIII ou a Hegel, no incio do sculo XIX. Da mesma forma, devemos superar um certo racismo mesmo o daqueles que com um indigenismo puro chegam a dizer "pela raa..." j que o racismo, seja alemo ou amerndio, prope a primazia do biolgico sobre o espiritual e define o homem em seu nvel zoolgico. Ao mesmo tempo, porm, devemos deixar de lado um fcil europesmo, que significa adiar a tomada de responsabilidade de nossa prpria cultura e a continuidade de um j ancestral alinhamento transatlntico.51 Devemos situar, ento, nossa nao, nossa pequena ptria em nossa grande ptria, a Amrica Latina, no apenas para compreender-nos como nao, mas ainda para intervir com algum peso e sentido no dilogo mundial das culturas e ainda no desenvolvimento integral de nossa fraca civilizao. necessrio saber discernir, separar, distinguir para depois unir e integrar. Devemos saber em que nveis nossa cultura dependente histrica e estruturalmente de outros povos, e em que nveis se encontra seu estilo, sua firmeza prpria. Se quisermos autoctonizar tudo, poderemos cair em posies ridculas como a inteno de um conhecido antroplogo argentino, que expressa o desejo de objetivar a originalidade at o plano da Antropologia fsica, pretendendo uma "raa pampeana autctone"; o cmulo de um mito levado at as suas razes ______________51. Europa e Ocidente no so a mesma coisa. Quando Zea fala da "Europa a margem do Ocidente" (Amrica en la historia, pp. 155ss.), prope-nos uma interessante distino entre a "modernidade" que a Europa criou (a cultura europia) desde o Renascimento, e que ser o "Ocidente", e a Europa anterior e posterior que pode continuar sendo a produtora de cultura contempornea (pp. 167ss.). No entanto, falta a Zea fazer a distino entre civilizao (Ocidente, e neste caso no deveria falar de "cultura ocidental", pp. 158ss.) e cultura. A civilizao ocidental universaliza-se, enquanto a Europa continua sendo o bero de sua cultura.

zoolgicas! Devemos saber onde e como buscar nossa originalidade, tanto como latino-americanos, como argentinos e de outras nacionalidades. 2.2.8. Esquema de evoluo Nossa histria cultural, a que se inicia pelo choque do amerndio e do hispnico na Argentina, origina-se no norte e no oeste de nos so atual territrio. Para compreender Salta del Tucumn, Cuyo, Assuno do Paraguai em sua quase sinistra pobreza do sculo XVI devemos ir at o Peru e ao Chile, e em especial a Lima. Pouco tempo depois, sobre o sangue do ndio na mita (trabalho forado nas minas) as minas de prata de Potos (Bolvia) justificam aproximar do Prata um novo centro cultural: Chuquisaca (hoje Sucre, Bolvia). Apenas no sculo XVIII o Atlntico vencer o Pacfico e o Caribe, nascendo ento o grande porto de Buenos Aires que insensivelmente passara a ser o eixo da cultura nacional argentina, enquanto que Crdoba continuou sendo a herdeira da predominncia do Pacfico, de Lima e Chuquisaca, tradicional, posto que antiga e representativa por ocupar o centro, o primeiro reduto da cultural nacional argentina.52 O primeiro momento de nossa histria cultural , sem dvida, o da cristandade colonial.53 Nesse mesmo perodo per______________52. No Arquivo Geral das ndias (Sevilha), tivemos em nossas mos aqueles documentos simples, mas que so a expresso de um nascimento espiritual. Em carta de 15 de maro de 1614, o bispo de Santiago del Estero, de onde escreve ao Rei, dizia: "Tenho nas mos outra obra na qual gastarei o pouco que tenho, e mesmo que fosse muito, seria muito bem empregado (...) que fundar um Colgio da Companhia na cidade de Crdoba (...) que possa graduar em Artes e Teologia, porque pela pobreza desta terca e distncia de 600 lguas que h at a Universidade de Lima, ningum poder ir at l para obter a graduao" (AGI, Charcas 137). Poucos meses depois, eram j 25 os estudantes! Assim nasceu a chamada Universidade de Crdoba. . 53. Embora com as limitaes de no ter sido feita por um filsofo ou telogo de profisso, a obra de Guillermo Furlong, Nacimiento y desarrollo de la Filosofia en el Ro de la Plata, 1536-1810 (Buenos Aires, Kraft, 1947) um clssico em sua matria.

cebem-se rapidamente submomentos. Em primeiro lugar, os tempos da epopia da conquista, com La Asuncin, fundada em 1536, e La Plata de Chuquisaca, em 1538 de cujas objetivaes culturais no c