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LUIZ MEIRELLES A IDÉIA DE JUSTIÇA NA OBRA DE ENRIQUE DOMINGO DUSSEL Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em FILOSOFIA, sob a orientação do Prof. Doutor Benedito Eliseu Leite Cintra. FILOSOFIA PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO São Paulo 2005

A IDIA DE JUSTIA NA OBRA DE ENRIQUE DOMINGO DUSSEL · Filosofia da Libertação: ... FL = Dussel, Enrique. Filosofia da libertação. São Paulo: ... atacar a origem implica atingir

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LUIZ MEIRELLES

A IDÉIA DE JUSTIÇA NA OBRA DE

ENRIQUE DOMINGO DUSSEL

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em FILOSOFIA, sob a orientação do Prof. Doutor Benedito Eliseu Leite Cintra.

FILOSOFIA PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

São Paulo

2005

2

LUIZ MEIRELLES

A IDÉIA DE JUSTIÇA NA OBRA DE

ENRIQUE DOMINGO DUSSEL

Banca Examinadora:

São Paulo

2005

3

DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho ao meu pai, Antonio

Meirelles (in memoriam) e à minha mãe,

Maria Emília, que me deram a vida.

4

AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Doutor Benedito Eliseu Leite

Cintra, pela orientação segura e decisiva

para a realização deste trabalho.

Aos amigos pelo constante incentivo.

A todos os professores e professoras que

têm me conduzido pelo mundo fascinante

do conhecimento.

Ao mundo, que tão bem tem me acolhido.

5

RESUMO

A presente dissertação apresenta a idéia de Justiça na

obra de Enrique Dusel, destacando seu método analético

de destruição da história da Ética, o qual parte do resgate

dos conteúdos de eticidade existentes nas altas-culturas,

anteriores ao mundo helenístico, atinge a Grécia Antiga, o

medievo, o mito da Modernidade e a contemporaneidade,

sempre tendo em vista a responsabilidade diante do

Outro, fundamento da Ética da Libertação e da Justiça.

Na parte final apresenta sua proposta para uma

sociedade fundada no amor-de-justiça, a partir das

categorias humanas fundamentais, Erótica, Pedagógica e

Política, ressaltando os desvios que essas categorias têm

sofrido ao longo dos séculos, a necessidade de

reestruturação e os caminhos possíveis para alcançar

esse fim.

PALAVRAS-CHAVE: Dussel, Filosofia, Libertação, Ética,

Justiça, Metafísica, Outro, Infinito, Analética, Erótica,

Pedagógica, Política, Vitimação.

6

ABSTRACT

This dissertation presents the idea of Justice at the

Enrique Dussel’s work , by highlighting your own analectic

method of destruction of the history of the Ethic, which

begins from the recuperation of the ethics content existing

at the high-cultures, previous to the Hellenistic world,

reaches the Classical Greece, the medieval period, the

myth of the Modernity and the Contemporary world,

always in view of the responsibility for the Other, which is

the basis of the Ethics of the Liberation and of the Justice.

In the final part it presents Dussel’s proposal for a

association founded at the love-of-justice from the basal

categories humans, Erotic, Pedagogical and Political, the

deflections than those categories have suffered

throughout the centuries, the need of their restructuration

and the possible ways for ranging that aim.

Words: Dussel, liberation, ethics, justice, analectical,

destruction, Other, erotic, pedagogical, political,

metaphisics, infinite; exclusion

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EPÍGRAFE

“Justiça é o hábito que dispõe e tende a dar efetiva e ôntico-

serviçalmente ao Outro o que lhe corresponde, não pela lei do Todo, mas

enquanto Tal - enquanto Outro, enquanto pessoa inalienável, enquanto

origem de todo direito positivo. Justiça é disponibilidade diante dos entes,

não fetichismo nem absolutização das possibilidades do pro-jeto de

Totalidade, é um colocar à disposição do Outro os entes que podem

saciar sua fome, mediar sua libertação cultural e humana integralmente.

Justiça é desapego à liberdade, é ‘pobreza’ como atitude libertadora, que

permite entregar ao Outro o que é seu.”

Enrique Dussel

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ....................................................................................12

1 – DA NECESSIDADE DE UMA FILOSOFIA AUTENTICAMENTE LATINO-AMERICANA OU PERIFÉRICA.........19 1.1 - UMA NOVA IDÉIA DE JUSTIÇA .................................................................. 20

1.2 - ARGENTINA: BREVES CONSIDERAÇÕES................................................ 21

1.3 - ENRIQUE DUSSEL: DA ARGENTINA PARA O MUNDO ............................ 25

1.4 - EMMANUEL LÉVINAS: FONTE DE INSPIRAÇÃO PARA ENRIQUE

DUSSEL ............................................................................................................... 28

1.4.1 - DESEJO E MOVIMENTO METAFÍSICO ................................................... 30

1.4.2 - RELAÇÃO METAFÍSICA E IDÉIA DO INFINITO....................................... 32

1.4.3 - O MANDAMENTO ÉTICO COMO FONTE DA JUSTIÇA .......................... 35

1.5 - DE-STRUIÇÃO DA HISTÓRIA DA ÉTICA: SENTIDO E MÉTODO...............38

1.5.1 - O MÉTODO ANA-DIA-LÉTICO.................................................................. 43

2 – O NASCIMENTO DA FILOSOFIA E O MITO DA MODERNIDADE .................................................................................45 2.1 - O ESTÁGIO I: EGÍPCIO MESOPOTÂMICO..................................................47

2.2 - O ESTÁGIO II: INDO-EUROPEU ..................................................................49

2.3 - O ESTÁGIO III: ASIÁTICO-AFRO-MEDITERRÂNEO ...................................53

2.4 - ESTÁGIO IV: O SISTEMA MUNDO ..............................................................57

2.4.1 - INVENÇÃO E DESCOBRIMENTO: PRIMEIRO PASSO

CONSTITUTIVO DA INJUSTIÇA NA AMÉRICA LATINA ..................................... 58

2.4.2 - DA CONQUISTA À COLONIZAÇÃO: SEDIMENTAÇÃO DA

INJUSTIÇA NA AMÉRICA LATINA....................................................................... 59

3 – DE-STRUIÇÃO DA ÉTICA OCIDENTAL......................................61 3.1 – GRÉCIA ANTIGA: O DESVIO ORIGINÁRIO ................................................62

3.2 – A ÉTICA NO PERÍODO MEDIEVAL .............................................................66

9

3.3 – O PERÍODO MODERNO..............................................................................67

3.3.1 - RENÉ DESCARTES E A MODERNIDADE: DO “EGO CONQUIRO”

AO “EGO COGITO” .............................................................................................. 68

3.3.2 - A SEPARAÇÃO ENTRE FORMAL E MATERIAL EM KANT E SUAS

CONSEQUÊNCIAS .............................................................................................. 70

3.3.3 - HEGEL: O FIM DA ALTERIDADE ............................................................. 71

3.4 – O FIM DO HOMEM: UMA DISTINÇÃO RADICAL ENTRE

HEIDEGGER E DUSSEL.......................................................................................73

3.5 – A CRISE DA MODERNIDADE E O PROBLEMA DAS ÉTICAS

CONTEMPORÂNEAS ...........................................................................................80

3.5.1 - TAYLOR E O PROBLEMA DA JUSTIÇA................................................... 82

3.5.2 - COMO A NEGAÇÃO DA RAZÃO EM RORTY LEVA À

PERPETUAÇÃO DA INJUSTIÇA ......................................................................... 84

3.5.3 - A IMPOSSIBILIDADE DO CONTRADISCURSO DA PERIFERIA NA

TEORIA DE HABERMAS ..................................................................................... 86

3.5.4 - O ENSEJO À INJUSTIÇA N A TESE DE KARL-OTTO APEL ................... 89

4 – PROPOSTA DE UMA ÉTICA MUNDIAL: FUNDAMENTO PARA JUSTIÇA..................................................................................92 4.1 – O HOMEM COMO FUNDAMENTO DA ÉTICA E DA JUSTIÇA ...................92

4.1.2 - AS POSSIBILIDADES ÔNTICAS: ABERTURA PARA REALIZAÇÃO

HUMANA NA JUSTIÇA ........................................................................................ 95

4.2 – DA DE-STRUIÇÃO DA ERÓTICA VIGENTE À RELAÇÃO DE AMOR-

DE-JUSTIÇA..........................................................................................................97

4.2.1 – A IDÉIA DE JUSTIÇA NA ERÓTICA DA LIBERTAÇÃO ......................... 101

4.2.2 – CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS EM RELAÇÃO À ERÓTICA

DUSSELIANA ..................................................................................................... 105

4.3 – PEDAGÓGICA: INSTRUMENTO PARA REALIZAÇÃO DE JUSTIÇA .......107

4.3.1 – A LEITURA DUSSELIANA DA REALIDADE PEDAGÓGICA

VIGENTE ............................................................................................................ 107

4.3.2 – A DE-STRUIÇÃO DAS PEDAGÓGICAS ONTOLÓGICAS DESDE A

GRÉCIA ANTIGA................................................................................................ 111

4.3.3 - A PROPOSTA DE JUSTIÇA NA PEDAGÓGICA DA LIBERTAÇÃO ....... 113

10

4.3.4 - CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS ACERCA DA PEDAGÓGICA

PROPOSTA POR ENRIQUE DUSSEL............................................................... 115

4.4 – A POLÍTICA COMO LIBERTAÇÃO E JUSTIÇA .........................................117

4.4.1 - A POLÍTICA NA LEITURA DUSSELIANA .............................................. 117

4.4.2 - A CRÍTICA AOS SISTEMAS POLÍTICOS TOTALITÁRIOS..................... 121

4.4.3 - PROPOSTA PARA UMA POLÍTICA DE LIBERTAÇÃO .......................... 125

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..............................................................128

BIBLIOGRAFIA.................................................................................132

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LEGENDA

CIE = Dussel, Enrique. Filosofia da Libertação: Crítica à ideologia de

Exclusão. São Paulo: Paulus, 1995.

DHE = DUSSEL, Enrique. Para una de-strucción de la História de la

Ética. Buenos Aires, Ser y Tiempo, 1972.

ELL = DUSSEL, Enrique. Para uma ética da libertação latino-

americana. São Paulo, Piracicaba, Loyola, UNIMEP, sd., 5 volumes.

EL = DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação, na idade da globalização e

da exclusão. Petrópolis, Vozes, 2000. FL = Dussel, Enrique. Filosofia da libertação. São Paulo: Loyola,

1977.

MFL = Dussel, Enrique. Método para uma Filosofia da Libertação. São

Paulo: Loyola, 1986

12

INTRODUÇÃO

O mundo de hoje está cada dia mais violento. Em todos os lugares o

desrespeito ao outro se faz cada vez mais grave. Até pouco tempo, essa guerra

se fazia com maior evidência nos países mais pobres, mas hoje a situação é

diferente. O isolamento do homem o está levando ao extremo da violência e

mesmo à loucura, e até nos países ricos vêm-se ampliando focos de violência,

considerados às vezes mais absurdos do que nos demais, pois na periferia a

violência sempre foi mais aceita em razão dos vários fatores sócio-econômicos.

Em todos os setores sociais o desequilíbrio se faz presente. A família é

um dos núcleos que vêm sendo agredido de modo contumaz. A relação entre

marido e mulher se faz mais e mais tênue e quase já não há laço que a segure.

Entre pais e filhos a situação não é diferente. Cada vez mais cedo os filhos

alçam vôo em direção à liberdade1, e, paradoxalmente, estatelam-se no chão

duro da vida. Os vizinhos já não são conhecidos, e, mesmo no trabalho, as

relações são apenas profissionais...

Pense-se na situação de um trabalhador ou trabalhadora que sai de

casa às 4 horas da manhã, viaja cerca de 04 horas, em várias conduções, para

chegar ao trabalho e dali sair somente quando a noite cai. Então são mais

quatro ou cinco horas de volta para casa... Ali encontra, se tanto, alguns de sua

família em frente a um aparelho de televisão. Não lhe resta alternativa, soma-

se ao grupo, pois do contrário será dele excluído. E logo vem o sono,

incompleto, interrompido pela necessidade do trabalho. Assim a humanidade

vai-se destruindo aos poucos, transformando homens em autômatos. Essa é

apenas uma dentre as várias situações em que vivemos, direta ou

indiretamente.

O problema existe e todos reconhecem, uns mais outros menos. Mas,

por onde começar a solucioná-lo?

Preliminarmente, é preciso ressaltar a imperiosidade de se atacar a

questão em seu fundamento. Não se pode querer tratar uma doença

1 “Liberdade”, aqui, entenda-se como abandono da proteção paterna e materna em nome de

uma vida supostamente “livre” no mundo.

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eliminando seus sintomas, é preciso extinguir a sua causa. Mas, um

problema social de revestimento mundial é de difícil enfrentamento. Tem sido

mais fácil àqueles que conduzem as nações adotarem paliativos, até porque

atacar a origem implica atingir as colunas de sustentação do poder

estabelecido.

Nesse contexto de desestabilidade social, de esvaziamento do ser

humano, encontra-se o filósofo, aquele que ainda resiste ao sufocamento

produzido pelos instrumentos do poder, aquele que ainda insiste em pensar

livremente, que teima em propor uma sociedade justa, equilibrada, onde

ninguém tenha tanto a ponto de obrigar muitos a nada terem, e onde todos

possam ser humanos, livres, conscientes. Mas, posicionar-se dessa forma

exige renúncia e, sobretudo, coragem e firmeza, pois a máquina do progresso

busca, em cada recanto, esses focos de resistência com intuito de extingui-los,

não pela força física, demasiadamente visível e ultrapassada, mas pela

sedução, que embebe os incautos e os arrebata para a ciranda consumista,

privando-os de condições para reflexão.

Ao longo da história da humanidade, encontram-se muitos pensadores

de grande valor, mas não podem ser colocados todos no mesmo pedestal.

Existem aqueles que serviram ao sistema – com suas teorias totalitárias ou que

permitiram interpretações nesse sentido – e aqueles que sempre resistiram ao

jugo - e por isso foram ficando na poeira da história, esquecidos, como filósofos

de menor importância. Poderiam ser elencados vários nomes, várias teorias,

muito brilhantes e corajosas. Contudo, o trabalho requer uma abordagem

específica. Por isso, essa reflexão, do ponto de vista filosófico, isto é, do ângulo

fundamental, decidiu-se selecionar um filósofo, primeiramente que pertencesse

à linhagem dos libertacionistas; depois, que fosse contemporâneo, para que se

pudesse caminhar junto no tempo, refletir e buscar uma proposta de justiça

para nossa sociedade. Além disso, que fosse um filósofo intimamente ligado à

realidade latino-americana, pois, do contrário, correr-se-ia o risco de se

fazerem conjecturas com fundamento em outra realidade, díspare e distante.

Dessa forma, chegou-se a Enrique Domingo Dussel, filósofo argentino,

radicado no México, e fundador da Filosofia de Libertação Latino-Americana.

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Evidentemente, esse caminho começou bem anteriormente, talvez

mesmo inconscientemente. O questionamento do sistema2 vigente é muito

comum entre os adolescentes, mas poucos levam consigo o sonho de ver um

mundo melhor e raros decidem estabelecer um projeto de vida contemplando

esse fim. Desde os tempos do curso de Direito, na “Casa Amarela”, em Santos,

mais acentuadamente a partir do segundo ano, um pequeno grupo de

companheiros de turma ficou marcado pela afinidade especial quanto à

irresignação frente ao sistema competitivo em que estávamos inseridos. As

questões que mais inquietavam eram as de fundamento, e o grupo 3, pequeno,

composto de pessoas e diversas classes sócio-econômicas e faixas etárias,

destoante da maioria, sempre se interessava muito mais pelas discussões

filosóficas do Direito do que propriamente pela sua técnica. Nesse sentido, a

tônica foi o constante questionamento dos métodos utilizados e da validade dos

conteúdos apresentados pelos professores, sobretudo com a preocupação de

conhecer o sistema jurídico desde a prática processual até os últimos

fundamentos, quais sejam, os fundamentos filosóficos do Direito. No curso de

Letras, o laço com a Filosofia se estreitou, e muitas vezes trabalhei com a

Filosofia em aulas Literatura, o que se, para muitos era e é até óbvio, para

outros, causa estranheza. É que algo havia que me causava insatisfação,

talvez a idade ou mesmo a pouca experiência de vida não me permitia ver com

menos obscuridade a importância da Filosofia em minha vida. Mas, um dia,

ainda concluindo o curso de Letras, um amigo bateu à porta e disse: – Vamos

fazer Filosofia? A resposta não demorou e parti para um novo desafio:

compreender o mundo do ponto de vista filosófico.

2 “Sistema” aqui e em toda a dissertação deve ser entendido como a totalidade sócio-

econômico-política em que o homem se insere. 3 Importante lembrar que desse grupo, firmamos uma amizade fundamental com o Ricardo e a

Soninha, os quais tem acompanhado, inclusive, o processo de realização deste trabalho,

enquanto seguem suas vidas, o primeiro trabalhando também no judiciário e dirigindo uma

entidade espiritualista e a segunda, auditora aposentada, cuidando de quase uma centena de

alunos do ensino fundamental de uma escola pública de periferia, mais do que ministrando

aulas de língua portuguesa, plantando sempre a idéia de que eles podem ser os autores de um

mundo melhor.

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Foi durante a Licenciatura em Filosofia, com a oportunidade de

conhecer mais propriamente o pensamento filosófico ocidental, que, apesar

das magistrais e numerosas aulas sobre os pilares da filosofia ocidental

encontrei no pensamento de Enrique Dussel eco para os meus

questionamentos, apesar das poucas aulas. Daí começaram a surgir o trabalho

de conclusão do curso de licenciatura e a indicação para a pesquisa de

mestrado. Isso porque sua filosofia está fortemente vinculada à práxis,

sobretudo à práxis latino-americana, numa luta contra a elitização do

conhecimento, em que mostra com propriedade, ao meu ver, a necessidade de

se estabelecer uma filosofia autenticamente latino-americana, livre do

pensamento totalizador e dominador europeu e norte-americano. Da leitura de

suas obras, depreende-se facilmente que o filósofo já não pode mais ficar

enredado numa elite, servindo aos dominantes e deles se servindo. Ao

contrário, diante da massificação imposta por europeus e norte-americanos,

que exclui o pobre – e isso vale para toda a América Latina e outras regiões

periféricas –, cabe ao filósofo o papel de trabalhar para que as pessoas

possam ter uma consciência crítica mais sedimentada e, por conseguinte,

possam atuar de forma mais eficaz diante da realidade de que fazem parte. O

filósofo deve, pois exercer o papel de pedagogo da cidadania.

A presente dissertação tem por fim apresentar a idéia de Justiça

constante na obra de Enrique Domingo Dussel, bem como sua proposta para

uma sociedade mais justa a partir da restruturação das categorias

fundamentais, Erótica, Pedagógica e Política.

No primeiro capítulo serão dedicadas algumas páginas para tratar de

aspectos que são sumamente importantes para uma compreensão mais

abrangente do trabalho. Serão tratadas as questões indicativas do tema

propriamente dito, além de uma breve apresentação da estrutura desta

dissertação.

Ainda nesse capítulo serão abordados os fatos mais importantes que

contribuíram decisivamente para a escolha do tema e do autor, sobretudo no

que diz respeito aos caminhos que me levaram até a Filosofia, mostrando,

16

ainda, alguns pontos demonstradores da necessidade de se trazer à tona

essa discussão.

Considerando a importância do contexto social argentino em que o

pensamento de Enrique Dussel floresceu, serão expostas também breves

considerações acerca da formação Argentina até 2ª Guerra Mundial, para,

então, ser apresentada, já contextualizada, uma biografia incompleta de

Dussel, a fim de que possam ser delineados, então, os sempre presentes

cruzamentos entre a vida e a filosofia do autor escolhido.

A parte final do primeiro capítulo tratará das duas chaves principais para

o entendimento da filosofia dusseliana, o sentido de de-struição empregado

pelo autor e o método por ele empregado, qual seja a ana-dia-lética,

demonstrando a intrínseca e necessária relação com a Justiça, dedicando-se,

ainda, um item especialmente a Emmanuel Lévinas, filósofo fundamental para

a libertação filosófica de Enrique Dussel.

O trabalho de Enrique Dussel envolve uma nova proposta de sociedade

livre, justa e solidária, e propostas com esses objetivos sempre estiveram

presentes na história da humanidade. Entretanto, a coragem de Dussel não se

limita a apresentar uma alternativa ao sistema vigente. Ele pretende, de fato,

uma sociedade estruturada em novos fundamentos. E isso significa falar em

de-struição da história da Ética, cujo sentido será explicado mais adiante, ainda

no capítulo inicial, por ser o caminho que constitui o eixo central de todo o

pensamento dusseliano.

Os temas abordados por ele envolvem vários aspectos da sociedade,

mas, fundamentalmente, a Ética é o principio norteador de seus estudos, como

será visto ao longo do trabalho. Sua busca de um sistema social justo tem em

pauta sempre a necessidade de o homem ser sujeito em condições iguais a

todos, independentemente de sua cor, raça, sexo, religião, história ou

geografia.

Por essas razões, o estudo da idéia de justiça proposta por Enrique

Dussel exige a compreensão dos caminhos por ele percorridos estudando a

formação da cultura ocidental, desde as primeiras sociedades até os dias de

hoje.

17

É imperioso demonstrar como e porquê Dussel procede à de-struição

da Ética Ocidental, e, por conseqüência, os fundamentos da nova Ética de

Libertação proposta por ele, em que o Outro assume papel fundamental, e

constitui o ponto de partida e de chegada de todas as demais reflexões.

Não se pode pensar a filosofia sem pensar a história. Com esse marco,

será delineada no segundo capítulo do trabalho a releitura crítica da história da

filosofia4 segundo Dussel, o qual vai muito além da Grécia Antiga, buscando

conteúdos filosóficos nas civilizações anteriores que contribuíram para a

formação do pensamento filosófico e da cultura ocidental, e vem até o

momento contemporâneo, com a globalização.

No terceiro capítulo será abordado o processo de-struição e,

considerando que a intenção de Dussel não é apenas uma proposta superficial,

calcada nos mesmos princípios que sustentam o sistema vigente, mas a de-

struição da Ética no sentido filosófico do termo, isso implica na busca do desvio

originário, que, segundo o filósofo, está na Grécia Antiga. Nesse sentido, aliás,

ele compara o ethos helênico e o ethos judaico, a fim de apontar o que se pode

denominar como origem da implantação da injustiça na sociedade ocidental.

Uma vez estabelecida a de-struição inicial, será apresentada sua crítica às

principais teorias que ensejaram os fundamentos dos sistemas que conduziram

o homem ao longo de sua história, demonstrando a influência do desvio

originário e o distanciamento do homem dos princípios de justiça, incluindo

uma reflexão acerca da história da América Latina, principalmente sobre a

forma pela qual se deu a descoberta e a colonização, do ponto de vista

filosófico, o que é de fundamental importância, posto que marca a expansão

dos fundamentos europeus de exploração do outro, e diz respeito intimamente

à nossa realidade atual.

Em função das peculiaridades do período contemporâneo, bem com de

sua complexidade, o último tópico da terceira parte contemplará o diálogo

estabelecido entre Dussel e as principais correntes filosóficas atuais, sempre

tendo em vista aclarar a importância da reflexão sobre a Ética e a Justiça.

4 Para Dussel, tratar de Filosofia significa tratar de Ética e tratar de Ética significa tratar de

Justiça.

18

O quarto capítulo mostrará, enfim, as propostas da Ética de

Libertação, as quais indicam a necessidade de reestruturação da sociedade

mundial a partir das relações humanas fundamentais, bem como a correlação

necessária com a idéia de Justiça. Para isso, a proposta de resgate da

alteridade e de re-construção das relações humanas, a partir das categorias

fundamentais, a Erótica, a Pedagógica e a Política, por serem os pilares para a

realização da justiça.

E, finalmente, serão apresentadas algumas considerações finais no

sentido não de expor conclusões, apenas, mas, sobretudo de apontar algumas

questões que devem ser postas em face do trabalho desenvolvido por Enrique

Dussel.

19

1 – DA NECESSIDADE DE UMA FILOSOFIA AUTENTICAMENTE LATINO-AMERICANA OU

PERIFÉRICA O primeiro ponto que chama a atenção é a luta de Enrique Dussel contra

a exploração do pobre, a sua luta pela afirmação de uma filosofia

autenticamente latino-americana. Esse trabalho é sumamente dificultado em

razão de a América Latina constituir um objeto de dominação dos povos do

hemisfério norte, mais precisamente dos europeus desde 1492 e, depois da 2ª

Guerra, também dos E.U.A. Mesmo assim, é preciso se propor a pensar e

estabelecer uma filosofica autêntica. Mas, para isso, não se pode ficar limitado

a estudar os pensamentos europeu e norte-americano, pois estão

fundamentalmente vinculados às suas realidades. É necessário ir além,

ultrapassar os limites do pensamento dominante e informar um novo

pensamento, intrinsecamente ligado à realidade Latino-Americana, e, portanto,

erigir a fundação de uma nova Filosofia — Filosofia Latino-Americana, ou

Filosofia da Periferia —, que atenda às expectativas das imensas maiorias

vitimadas pelo sistema vigente.

A necessidade ocorre porque, ao estudar a Filosofia européia, corre-se o

risco de se criarem filósofos latino-americanos inautênticos, isto é, integrantes

de uma realidade, mas discursando com fundamento em outra. Para perceber

tal situação basta se observar que temos sido nascidos e criados, gerações

após gerações, dentro de uma mentalidade enaltecedora e repetidora dos

pensamentos europeus e norte-americanos (estes mais a partir do século XX)

enquanto nossa cultura vem se formando por muitos outros fatores estranhos

ao europeu ou mesmo norte-americano, os quais vêm se somando ao longo

dos anos e constituem verdadeiramente o homem latino-americano. Isso

evidencia claramente o descompasso entre o que podemos chamar de

“pseudo-pensamento” e a prática do homem latino-americano, estabelecendo

uma inautenticidade quase imperceptível. Mas, não se poderia, ingenuamente,

a partir dessa constatação, pretender-se criar uma filosofia latino-americana ou

periférica totalmente liberta da já existente e historicamente impingida ao

homem latino-americano; seria impossível, pois tal filosofia está inserida nessa

20

realidade desde o período de sua formação. Por isso a necessidade, a partir

da imersão total no mundo filosófico existente, de se começar a emergir, buscar

a superfície e lançar-se ao movimento livre de um novo pensamento.

1.1 – UMA NOVA IDÉIA DE JUSTIÇA

Dentro da obra dusseliana, um dos temas mais importantes é a sua idéia

de Justiça. É que todas as batalhas travadas por Enrique Dussel buscam

estabelecer um estado de justiça desde uma atitude ética entre os seres

humanos, sem privilégios. E mais, ao defender que aquele que tem mais deve

servir àquele que tem menos, Dussel expressa aí a premissa fundamental da

justiça, a qual define como

o hábito que dispõe e tende a dar efetiva e ôntico-serviçalmente ao Outro

o que lhe corresponde, não pela lei do Todo, mas enquanto Tal - enquanto

Outro, enquanto pessoa inalienável, enquanto origem de todo direito

positivo. Justiça é disponibilidade diante dos entes, não fetichismo nem

absolutização das possibilidades do pro-jeto de Totalidade, é um colocar à

disposição do Outro os entes que podem saciar sua fome, mediar sua

libertação cultural e humana integralmente. Justiça é desapego à

liberdade, é ‘pobreza’ como atitude libertadora, que permite entregar ao

Outro o que é seu. (ELL II 149-150)

Para se chegar à compreensão dessa idéia de justiça, faz-se necessário

todo um trabalho de pesquisa no sentido de sua fundamentação. O

pensamento de Dussel é de fato muito valoroso, porquanto vai buscar as raízes

do pensamento ocidental que disseminou a idéia de dominação e, a partir daí,

apontar um caminho distinto para a ética mundial, mostrando que, para se

fundar a justiça, é preciso reconstruir o paradigma ético vigente.

Desse modo, para expor e fundamentar o pensamento de Dussel a

respeito de Justiça, faz-se necessário apresentar os aspectos principais de

todo o processo efetivado por ele para de-struição da ética ocidental e a

proposta de uma nova ética, livre, não-opressora e ensejadora de uma

sociedade justa.

21

1.2 ARGENTINA: BREVES CONSIDERAÇÕES Segundo Enrique Dussel, para fazer Filosofia, é preciso começar pela

história, posto não haver como separar o homem do mundo em que está

inserido. Assim, antes de ingressar no foco central do trabalho, faz-se

importante expor alguns aspectos históricos que envolveram a Argentina, seu

berço originário. Dussel nasceu em plena crise econômica mundial resultante

da superprodução norte-americana e européia. Naquela época, a Inglaterra

exercia forte influência política sobre a Argentina, enquanto os EUA

controlavam o comércio local.

Para melhor entender aquele contexto, é preciso rever alguns dos

principais pontos da história Argentina. A partir de alguns dos mais importantes

historiadores estudiosos da Argentina, como Roberto Cortes Conde, Ezequiel

Gallo, Oscar Cornblit, Claudio Veliz, Ricardo levene, Gino Germani e até

mesmo do ex-presidente Artur Frondizi, pode-se começar a entender o

processo de conquista implantado pelos europeus, os quais buscaram sempre

a máxima extração de riquezas naturais ao menor custo possível, sem

qualquer preocupação com a civilização preexistente a sua chegada. É um dos

aspectos que Dussel ressalta como origem do "mito da modernidade". Quadra

sublinhar a ingerência estrangeira, principalmente da Inglaterra, França,

Alemanha e EUA, perdurante mesmo depois de declarada a independência

Argentina, sendo certo que cabia à primeira o controle absoluto de todas as

ações político-econômicas no país, tendo exercido papel marcante na história

Argentina. Após 1880, com a adesão de Buenos Aires ao sistema federativo,

aquele domínio indireto deu-se em razão dos empréstimos de capital,

sobretudo, para a construção de ferrovias, pois a Argentina estava em

formação e não possuía meios nem tecnologia para fomentar a produção. A

partir daquele momento a Argentina passou a ocupar papel destacado no

mercado mundial como exportador agrícola, e a “injeção” de capital feita pela

Inglaterra tinha claramente o fim de perpetuar seu domínio sobre o país, posto

que favorecia, com seu comportamento, os latifundiários argentinos,

investidores na agropecuária de exportação e produção de matérias-primas

voltadas para o mercado europeu, o qual obtinha, assim, bons produtos por

preços insignificantes.

22

Durante o governo de Roca (1880 - 1886), foram feitos ajustes para

possibilitar o desenvolvimento comercial do país, voltado para a exportação.

Foi a entrada do “sertão” argentino no ciclo produtivo. Veja-se, a propósito, que

em 1879, ocorrera a Guerra do Deserto, que eliminou as aldeias indígenas e

preparou a colonização pelos imigrantes.

Com o capital estrangeiro5, a Argentina aumentou a rede ferroviária de

1.000 Km, em 1871, para 12.000 Km, até a 1ª Guerra Mundial, direcionada

sempre para os portos, com o objetivo de exportação.

De 1885 a 1889 foram mais de 700.000 imigrantes, fluxo esse que

perdurou até a 1ª Guerra. Córdoba, por exemplo, foi um centro recebedor de

imigrantes, em sua maioria com conhecimentos técnicos mais avançados do

que os argentinos, o que colaborou decisivamente para que aquela região

tenha se tornado grande produtora de trigo, um dos importantes produtos do

país. Todavia, os imigrantes eram instalados como meeiros no processo

produtivo e não tinham propriedades, e diante dessas discriminações,

consequentemente tinham poucos direitos e nenhum poder político.

O interesse da classe dominante, no entanto, não se fez inteiramente

bem sucedido, pois 70 por cento dos imigrantes preferiram ocupar os centros

urbanos e não os rurais. Isso provocou uma autêntica invasão estrangeira,

sobretudo espanhola e italiana, das cidades argentinas, posto que a população

nata estava equilibrada entre a área rural e a cidade, o que significava

aproximadamente 1.500.000 habitantes em cada setor , ao passo que os

estrangeiros, que naquele período - 1900 a 1930 - eram em número

semelhante ao dos argentinos - aproximadamente 3.000.000, dividiam-se em

cerca de 2.100.000 nas cidades e apenas 900.000 na área rural.

Essa preponderância de estrangeiros em Buenos Aires e regiões

vizinhas provocou grandes transformações socioculturais na sociedade local. A

produção artesanal entrou num processo de extinção em face do surgimento

dos operários industriais estrangeiros, que dominaram amplamente aquela

atividade econômica, vez que tanto o setor econômico secundário quanto o

5 Todos os dados estatísticos referentes à Argentina foram extraídos das obras dos autores

citados no início deste capítulo.

23

terciário foram tomados por eles, vindos da Europa, onde já haviam obtido

esses conhecimentos.

A partir de 1918, com o fim da primeira Guerra Mundial, a Inglaterra

começou a perder importância em face dos EUA; a indústria frigorífica, o

transporte automotor e as primeiras indústrias químicas, propulsores do

mercado nacional, assim como os empréstimos governamentais e as

instalações de bancos, entre outros, já foram frutos do investimento norte-

americano. Nesse período, os grupos empresariais procuraram se concentrar

em Buenos Aires e Rosário, na tentativa de influenciar o governo, mas pouco

conseguiram porque não conseguiram estabelecer fortes ligações com o

Partido Radical, da elite política, governante no interregno de 1916 a 1930 e

que não discriminava os imigrantes industriais.

Esse quadro de predomínio norte-americano prosseguiu até 1930,

quando assumiu a presidência da Argentina o General Agustín Justo, que

promoveu mudanças na estrutura jurídico-econômica conforme os interesse

ingleses, que passaram a controlar as ações políticas na tentativa de retomar o

poder econômico, que continuava, entretanto, com os EUA.

No período da 2a Guerra (1943/1945), a Inglaterra perdeu seu

poder para os EUA e também para a Alemanha. Nesse período, o mercado

internacional praticamente estagnou, propiciando aos países em formação,

inclusive a Argentina, o desenvolvimento da economia própria, sempre com a

ajuda dos EUA.

O desenvolvimento industrial da Argentina revela-se claro ao se

comparar a participação desse setor no PBN (Produto bruto Nacional) no

começo do século, pois em 1900 era de 13,8%, enquanto em 1925 já contava

17,7% e em 1955 passava de 23%. É imperioso registrar que, em 1935, mais

de 60% das atividades industriais cabiam aos estrangeiros. Mas, se de um lado

os imigrantes dominavam a economia, de outro não tinham influência na

política, porquanto como estrangeiros seus direitos eram demasiadamente

restritos, o que permitiu governos sucessivos desinteressados da proteção da

indústria Argentina e apenas voltados para os interesses europeus.

24

Havia, nesse período, início do século, quatro grandes grupos

políticos razoavelmente estáveis: Unión Cívica Radical; Democratas

Progressistas; conservadores e Socialistas.

A Unión Cívica Radical era um grupo popular, que tinha o apoio das

massas e buscava, assim, a liberdade eleitoral. Com esse pensamento, liderou

a Revolução de 1905, fracassada quanto aos objetivos de poder, mas

detonadora do processo concluído em 1912, com a aprovação da lei Sáenz

Peña, que estabeleceu o voto universal, secreto e compulsório, fato que

ampliou consideravelmente a base eleitoral de 20%, em 1910, para 60%, em

1916. É de fundamental importância destacar que, mesmo formado pelas altas

classes econômico-sociais ligadas à agropecuária, oligarquias e famílias

tradicionais, os radicais tinham o apoio popular.

O Partido Conservador, por sua vez, nada apresentava de

conservadorismo nacional, como seria de se supor, mas era sim, subserviente

aos interesses europeus, e suas decisões políticas baseavam-se em acordos

dos grupos dominantes. Esse grupo permaneceu no poder por 30 anos, e foi

marcado como progressista, reformador, centralista e aristocrático, opondo-se

aos radicais. Isso se evidenciou nas eleições de 1916, quando houve a

coligação entre o Partido Conservador, de Buenos Aires, a Liga der Sur (Liga

Sulina) e demais partidos conservadores, formando o Partido Democrata

Progressista.

O Partido Socialista, criado em 1894 por refugiados socialistas

franceses, alemães e italianos, com base na capital federal, ligado também a

bases populares trabalhistas, conseguiu melhores resultados a partir de 1916.

Sua ideologia programática era trazida do centro europeu, habilitando-o, assim,

naturalmente, a liderar o contingente imigrante, razão pela qual era defensor da

naturalização dos estrangeiros. Apesar dos movimentos anti-estrangeiros, nas

eleições nacionais de 1914, os Socialistas obtiveram vitória na Câmara dos

Deputados.

O crescimento dos movimentos nacionalistas naquele período,

acoplados sempre aos partidos políticos radicais, formavam, então, a Unión

Cívica Radical, na incessante oposição aos conservadores, reunindo as

classes média e baixa, tradicionalistas e nacionalistas. Contudo, apesar da

25

grande discussão travada entre o Partido Socialista, o Conservador e o

Radical, a classe industrial Argentina, que surgira com o século XX não tinha

defensores, posto que os protecionistas pensavam na agropecuária e não na

indústria, formada por estrangeiros.

A partir de 1945, os EUA passaram a ter influência decisiva no

comportamento político-econômico da Argentina, afastando o domínio inglês

definitivamente. Começou, então, a preocupação do bloco capitalista, liderado

pelos norte-americanos, em preservar o sistema vigente e impedir quaisquer

ameaças, sumamente advindas do bloco comunista, liderado pela URSS.

As “marchas” “contra-marchas” da política e da economia argentinas

seguem até os dias de hoje, como toda a América Latina, sofrendo as

ingerências estrangeiras. O ponto que culminou com o exílio de Dussel no

México foi o retorno de Perón em 1973, conforme se verá adiante.

1.3 – ENRIQUE DUSSEL: DA ARGENTINA PARA O

MUNDO Enrique Domingo Dussel Ambrosini nasceu numa pequena aldeia

chamada La Paz, a 150 Km de Mendoza, Argentina, no dia 24 de dezembro de

1934, dentro de um contexto de exploração e vitimação dos argentinos6, os

quais eram desprezados em nome de um mercado de exportação. Durante sua

infância acompanhou frequentemente seu pai pelas montanhas em visitas

médicas a vilarejos pobres e desprovidos. De 1953 a 1957 cursou Licenciatura

em Filosofia na Universidade de Cuyo, Mendoza, tendo sido aprovado com a

monografia La problemática del bien común en el piensar grego hasta

Aristóteles. Em seguida viajou para a Europa, onde permaneceu de 1957 a

6 Dussel ressalta sempre a triste lembrança que tem dos rostos enrugados e sofridos, de

homens e mulheres moradores de palhoças paupérrimas, que via quando fazia visitas

acompanhando seu pai, médico.

26

1967, quando conheceu, então, os principais países pesquisando as origens

dos povos latino-americanos.7

Nos primeiros dois anos de Europa, estudou em Madrid, tendo-se

doutorado na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade Central

(Complutense) com a tese El bien común. Su inconsistência teórica, sob a

orientação de A. Millan Puelles

Depois foi para Israel, onde morou em Nazaret, com Paul Gauthier,

tendo trabalhado como carpinteiro na construção civil. Foi naqueles dois anos

em Israel (1959-1961) que Dussel despertou para a situação de opressão que

o pobre vive. Conforme ressalta Mariano Moreno Villa, in Obras Completas de

Enrique Dussel, CD-ROM 2004, “desde então o pobre será o principal

paradigma hermenêutico de suas reflexões filosófica, histórica e teológica”.

Ainda em 1961 viajou para França, onde trabalhou como bibliotecário e

estudou Teologia e História na Sorbonne.

Em 1963 foi para a Alemanha, onde começou seus estudos para o

doutoramento em história da Igreja. Depois, de 1964 a 1966, esteve na

Espanha, estudando os Arquivos das Índias de Sevilha. Doutorou-se na

Sorbonne em 1967 em História.

De volta para a América Latina, Dussel foi para o México, graças a uma

bolsa, para estudar com Leopoldo Zea. Em 1968 retornou à Argentina para ser

professor de Antropologia e de Ética na Universidad Nacional Resistencia

(Chaco), tendo assumido também o cargo de professor de Ética na Universidad

Nacional de Cuyo (Mendoza). A Argentina sob a ditadura de Ongania, apoiado

por Dussel no seu discurso de resistência à dominação estrangeira. Naquele

momento, Dussel despertou para a necessidade de uma Filosofia da Libertação

Latino-Americana e passou a trabalhar com tal objetivo.

Ricoeur, Husserl e Heidegger exerceram grande influência em seu

pensamento naquela primeira fase. Em 1970 publicou Lições de Ética

Ontológica e em 1972, Para uma de-strucción de la historia da la ética.

Emmanuel Levinas, mais tarde, proporcionou os indicadores para Dussel 7 Sua viagem à Europa deu-se principalmente porque os centros de pesquisas mais completos

sobre a América estavam naquele continente, conforme o próprio autor ressalta em várias de

suas obras.

27

encontrar a superação da primeira fase – de interiorização – para expandir

rumo à exteriorização e encontro do outro.

Na década de 70, conseguiu sedimentar sua teoria e publicar sua

grande obra "Para uma ética da libertação latino-americana", em 5 volumes, os

dois primeiros editados pela Siglo XXI, o terceiro pela Edicol e os dois últimos

pela Universidade de Sto. Tomás de Aquino.

Naquela obra, além de estruturar toda a sua filosofia, demonstra uma

preocupação histórico-filosófica fundamental com a América Latina.

Diante da volta do peronismo, em 1973, Dussel passou a ser perseguido

tanto pela direita peronista, que via nele um perigo aos seus ideais de poder

populista, quanto pela esquerda oposicionista, que exigia o seu engajamento

na luta ideológica. O filósofo, contudo, manteve-se fiel aos seus ideais

filosóficos8, atuando tanto nas universidades como nas ruas. Por isso acabou

por sofrer um atentado a bomba, lançado pela extrema direita através dos

membros do sindicato metalúrgico e do Comando Ruci, na noite de 2 para 3 de

outubro de 1973, que destruiu praticamente metade de sua casa. Sob as

acusações de “marxista” e “corruptor da juventude” as ameaças de morte e a

repressão contra suas ações prosseguiram até 1975, tendo sido, inclusive,

expulso na Universidade de Cuyo. Em 15 de agosto daquele ano partiu,

forçado, para o México, onde estudou com pensadores como Leopoldo Zea, A.

Villejas, León Portilla e outros, que lhe somaram novos pensamentos e

contribuíram para a superação dos pressupostos peronistas e fundamentação

de sua Filosofia inovadora.

Percebeu, definitivamente, a imanente conexão entre a teoria e a

realidade, da qual não poderia o filósofo se afastar, sob pena de prejuízo

irreparável à sua formação.

Ainda em 1975 assumiu o cargo de professor no Departamento de

Filosofia da Universidad Autônoma Metropolitana-Iztapalapa (México) e em

1976, na Universidad Nacional Autônoma de México (Unam).

A partir daí aprofundou suas leituras de Marx, tendo publicado algumas

das mais importantes obras sobre o aquele pensador, como o comentário sobre

28

os “Grundrisse”, “Hacia um Marx desconocido”, comentário sobre os

manuscritos de 61-63, “El último Marx(1863-1882) y la liberación

latinoamericana” e “Las metáforas teológicas de Marx”.

Dentre as suas várias obras, merece destaque ainda “Filosofia da

Libertação” (1977), escrita de memória, logo após seu exílio no México;

“História Geral da Igreja na América Latina” (1983); “Ética Comunitária” (1986);

“1492: o encobrimento do Outro” (1992) e “Ética da Libertação na Idade da

Globalização e da Exclusão”(2000), sua mais recente obra.

Continuando seus estudos, no momento exerce diversas atividades de

cunho filosófico. É um dos coordenadores de projetos do CEHILA – Comissão

de Estudos da História da Igreja na América Latina, do qual foi um dos

fundadores e presidente; membro fundador da Association of third World

theologians (AETWOT) e do Comitê Ejecutivo de la International Association of

the Mission Studies (IAMS); fundador e Coordenador Geral da Associação de

Filosofia e Libertação (AFYL); membro fundador da Revista de Filosofia

Latinoamericana (Buenos Aires); tem proferido cursos e conferências em

vários países, tanto nas Américas como na Europa, além de África e Ásia.

No tocante ao Brasil, é membro do conselho editorial da revista

Lbertação-Liberación (CEFIL, Campo Grande/MS) e além de várias palestras

em universidades, tem participado ativamente dos Fóruns Sociais Mundiais

realizados no Brasil, em Porto Alegre/RS.

1.4 – EMMANUEL LÉVINAS: FONTE DE INSPIRAÇÃO

PARA ENRIQUE DUSSEL Antes de se abordar propriamente o tema do trabalho sobre o

pensamento dusseliano, qual seja, a idéia de justiça, mister se faz uma breve

exposição do pensamento de Emmanuel Lévinas, sobretudo no tocante à sua

concepção de metafísica, a qual culminará com a elevação da ética à condição

de filosofia primeira, fator fundamental para compreensão também do

pensamento de Dussel.

8 Zimmermman ressalta que enquanto a direita preferia a categoria “nação” e a esquerda a

categoria “classe”, Dussel defendia a categoria “povo”.

29

No prefácio de Totalidade e Infinito encontra-se uma exposição clara

da leitura que Emmanuel Lévinas faz da realidade e a sua fundamentação da

defesa da ética como filosofia primeira, a qual será demonstrada ao longo da

obra. Aqui, serão abordados apenas alguns aspectos essenciais.

Inicialmente, é importante trazer à tona que, para Lévinas, a sociedade,

ao longo da história, tem estado sempre em estado de guerra. Os conflitos

constantemente vêm dominando as relações sociais:

A lucidez – abertura de espírito ao verdadeiro – não consiste em

entrever a possibilidade permanente de guerra? (Lévinas 1980 9).

Em conseqüência, a paz que se mostra é apenas aparente, vez que está

fundada na força da violência; e uma paz verdadeira, legítima, não pode estar

sustentada pela força da espada. De fato, pode-se ver facilmente que os

poucos momentos de paz que se consegue neste planeta fundam-se no

poderio bélico das grandes potências, que buscam cada vez mais aumentá-lo

para garantir a não-guerra. E mesmo já tendo passado, se é que passou, o

período nefasto da Guerra Fria.

De fundamental importância para o aclaramento da questão também é a

afirmação a que Lévinas chega a respeito da política. Para ele, o que sustenta

esse estado de tensão social é a própria política. É por meio da política que o

homem e os Estados mostram seus argumentos que, no fim, sustentam-se pela

força bélica. A política, afirma Lévinas, é “a arte de prever e de ganhar por

todos os meios a guerra”. (Lévinas 1980 9).

É a mesma política fundada na ontologia da guerra que desestabelece

os preceitos morais; que dita as normas das relações humanas. E é esta

política, aliás, que incute no homem o pensamento de que deve trabalhar cada

vez mais para ter e consumir cada vez mais. Assim é a política dos Estados, a

política de consumo e aniquilamento do homem. E a moral permanece

relativizada segundo o tempo e o espaço, de forma a atender aos interesses

dos grupos dominantes. E Lévinas, que viveu os horrores da Guerra, que

sentiu na pele esta política, não poderia ficar alheio. Defende o rompimento

com a ontologia bélica e procura o caminho para o estabelecimento de uma

paz autêntica, jamais fundada na guerra.

30

Lévinas pretende um caminho que leve ao encontro da identidade

perdida na guerra e na pseudopaz que permeia a sociedade, como assevera:

A paz dos impérios saídos da guerra assenta-se na guerra e não

devolve aos seres alienados a sua identidade perdida. (Lévinas 1980 10).

É preciso resgatar a identidade do ser humano para que ele possa

deixar de ser um mero joguete nas mãos daqueles que defendem a Totalidade

e fazem a história. O homem precisa tomar consciência de sua importância e

de sua responsabilidade diante da história e, para isso, deve assumir sua

própria identidade, o que só é possível por meio de uma “relação originária e

original com o ser”. (Lévinas 1980 10).

Essa relação, enquanto originária, consiste no estabelecimento de uma

relação ética, respeitando a identidade e a alteridade, e assim promotora da

Justiça. Enquanto original, significa dizer uma relação única, individual, em que

o Eu é chamado à responsabilidade diante do Outro e dos Outros.

1.4.1 – DESEJO E MOVIMENTO METAFÍSICO

’A verdadeira vida está ausente’. Mas nós estamos no mundo. A

metafísica surge e mantém-se neste álibi. Está voltada para ‘outro lado’,

para o ‘doutro modo’, para o ‘Outro’. (Lévinas 1980 21).

Com a afirmação supra começa Lévinas o capítulo “Metafísica e

Transcendência” em Totalidade e Infinito. Sua concepção de metafísica tem

uma abordagem muito particular, posto pensá-la inserida no mundo, fundada

no homem e não em um Deus perfeito ou alguma transcendência inexplicável,

como se encontra comumente em outros pensadores.

Deparando-se o Eu diante do estranho, do Outro, segundo Lévinas

surgem duas opções: dominar o Outro, fazê-lo representado no mundo egoísta

ou preservá-lo, mantendo a distância9, o afastamento. No primeiro caso ter-se-

á fundado uma totalidade, anulando completamente a alteridade. No segundo

caso, ter-se-á uma relação estabelecida no face-a-face e sustentada pelo

discurso, o qual mantém a distância e preserva tanto o Mesmo quanto o Outro. 9 A distância é fundamental para que o Outro não seja tido como objeto e absorvido pela

mesmidade do Eu. É a distância que permite a preservação da alteridade.

31

É nessa segunda alternativa, na relação entre o Eu e o Outro, que a

metafísica levinasiana encontra sustentação. É o movimento da interioridade

para a exterioridade, do familiar para o estranho.

Todo movimento é provocado por uma força. Para Lévinas, o que

impulsiona o movimento metafísico é o desejo, mas não um desejo que leve à

mera satisfação de uma necessidade, porquanto se assim o fosse, levaria à

absorção do Outro pelo Eu, como no “alimentar-me”, e permaneceria na

totalidade do Mesmo.

Lévinas entende que se trata de um desejo que preserva a alteridade do

Outro, sem qualquer expectativa por parte do desejante de reciprocidade. É o

desejo que não pretende aproximação ou posse; ao contrário, supõe o

afastamento, a alteridade. É o Desejo metafísico:

O desejo metafísico tem uma outra intenção – deseja o que está

para além de tudo o que pode simplesmente completá-lo. É como a

bondade – o desejado não o cumula, antes lhe abre o apetite. (Lévinas

1980 22).

O Desejo metafísico só pode ser, pois, o desejo do outro “absolutamente

outro” e, portanto, do invisível, como explica o autor:

O desejo é absoluto se o ser que deseja é mortal e o Desejado,

invisível. A invisibilidade não indica uma ausência de relações; implica

relações com o que não é dado e do qual não temos idéia. A visão é uma

adequação entre a idéia e a coisa: compreensão que engloba. A

inadequação não designa uma simples negação ou uma obscuridade da

idéia, mas fora da luz e do escuro, fora do conhecimento que mede seres,

a desmedida do Desejo. O Desejo é desejo do absolutamente Outro.

(Lévinas 1980 22-23).

Assim, o Desejo do Invisível provoca um movimento do Eu em direção à

exterioridade do absolutamente Outro e promove uma ruptura da totalidade,

caracterizando esse movimento como transcendente e, ainda, uma separação

absoluta:

A transcendência pela qual o metafísico o designa tem isto de

notável: a distância que exprime – diferentemente de toda a distância –

entra na maneira de existir do ser interior. A sua característica formal – ser

32

outro – constitui o seu conteúdo, de modo que o metafísico e o Outro

não se totalizam; o metafísico está absolutamente separado. (Lévinas

1980 23).

1.4.2 – RELAÇÃO METAFÍSICA E IDÉIA DO INFINITO

Diante de uma relação do Mesmo com o Outro em que não há absorção,

preservação da alteridade significa dizer uma relação em que o Eu sai de sua

interioridade em direção à exterioridade manifesta pelo Outro, num movimento

transcendente e, pois, metafísico.

O Mesmo, na visão de Lévinas, não se reduz à mera tautologia “Eu sou

Eu”, mas principalmente se refere à relação de posse estabelecida entre o Eu e

o mundo em que está, ou seja, ao domínio egoísta do Eu sobre o mundo. “A

possibilidade de possuir, isto é, de suspender a própria alteridade daquilo que

só é outro à primeira vista e outro em relação a mim é a maneira do mesmo.”

(Lévinas 1980 25).

Considerando, então, que nessa relação o Outro não é compreendido –

do latim comprehendere, significa conter em si; constar de; abranger – pelo Eu

e não faz parte do Mesmo, fica evidente que o movimento do Eu desejante do

Outro invisível, ao romper a totalidade enseja uma relação de natureza

transcendente, isto é, metafísica.

Para além da fome que se satisfaz, da sede que se mata e dos

sentidos que se apaziguam, a metafísica deseja Outro para além das

satisfações... Desejo sem satisfação que, precisamente, entende o

afastamento, a alteridade e a exterioridade do Outro. Para o Desejo, a

alteridade, inadequada à idéia, tem um sentido... Morrer pelo invisível –

eis a metafísica. (Lévinas 1980 22-23).

Mas não é só. Essa relação não é unicamente um ato mental. A fala, o

diálogo deve ser estabelecido entre o Eu e o Outro como único meio de contato

em tal afastamento e sustentação dessa relação.

A ruptura da totalidade não é uma operação de pensamento, obtida

por simples distinção entre termos que se atraem ou, pelo menos, se

alinham. O vazio que a rompe só pode manter-se contra um pensamento,

33

fatalmente totalizante e sinótico, se o pensamento se encontrar em face

de um Outro, refratário à categoria. Em vez de constituir com ele, como

com um objeto, um total, o pensamento consiste em falar. (Lévinas 1980

27-28).

O diálogo é o fio tênue que mantém essa relação sem que haja união

total entre o Mesmo e o Outro e, ao mesmo tempo, sem deixar que ela se

desfaça. É a manutenção da ligação entre o finito e o infinito.

A relação do Mesmo com o Outro, sem que a transcendência da

relação corte os laços que uma relação implica, mas sem que esses laços

unam num Todo o Mesmo e o Outro, está de fato fixada na situação

descrita por Descartes em que o ‘eu penso’ mantém com o Infinito, que

ele não pode de modo nenhum conter e de que está separado, uma

relação chamada ‘idéia do infinito’... (Lévinas 1980 35-36).

Lévinas credita a Descartes essa forma de compreender a idéia de

infinito, cujo esquema encontramos em seu pensamento, tal como nas

Meditações:

Não devo imaginar que não concebo o infinito por uma verdadeira

idéia, mas somente pela negação do que é finito, do mesmo modo que

compreendo o repouso e as trevas pela negação do movimento e da luz:

pois, ao contrário, vejo manifestamente que há mais realidade na

substância infinita do que na substância finita e, portanto, que, de alguma

maneira, tenho em mim a noção do infinito anteriormente à do finito, isto

é, de Deus antes que de mim mesmo. Pois, como seria possível que

pudesse conhecer que duvido e que desejo, isto é, que me falta algo e

que não sou inteiramente perfeito, se não tivesse em mim nenhuma idéia

de um ser mais perfeito que o meu, em comparação ao qual eu

conheceria as carências de minha natureza?... E isto não deixa de ser

verdadeiro, ainda que eu não compreenda o infinito... pois é da natureza

do infinito que minha natureza, que é finita e limitada, não possa

compreendê-lo. (Descartes 1973).

Tanto Descartes como Lévinas pensam o infinito a partir de uma relação

do Eu com algo que não pode ser contido na razão humana.

34

Mas, Lévinas estabelece um outro entendimento para a origem da

idéia do infinito, diferentemente de Descartes, atribuindo-a à própria relação

metafísica do Mesmo com o absolutamente Outro, exterior ao mundo do Eu,

irredutível à representação e do qual só se pode ter a idéia de Infinito, posto

que o conteúdo do infinito transborda os limites de toda compreensão.

Mas a idéia do infinito tem de excepcional o fato de o seu ideatum

ultrapassar a sua idéia...O infinito é característica própria de um ser

transcendente, o infinito é o absolutamente outro. O transcendente é o

único ideatum do qual apenas pode haver uma idéia em nós: está

infinitamente afastado da sua idéia – quer dizer, exterior – porque é

infinito. (Lévinas 1980 36).

Discordando, pois, de Descartes quanto à origem da idéia de Infinito,

qual seja, Deus, vez que estaria fadado a admitir uma totalidade fundada em

Deus e, por conseqüência, uma superioridade mística ou mesmo a morte como

via de acesso à verdade absoluta, também não aceita a intencionalidade

husserliana para relação com o Outro, tendo em vista que isso levaria à

exclusão da alteridade, ensejando a absorção do Outro pelo Eu, o que

consistiria também numa Totalidade. Desse modo, Lévinas pretende uma

filosofia que respeite a alteridade e, sobretudo, estabeleça uma relação ética e

justa entre os homens. Qualquer outra via que não privilegie essa relação

levará à injustiça.

Entre uma filosofia da transcendência que situa alhures a

verdadeira vida à qal o homem teria acesso, evadindo-se daqui, nos

momentos privilegiados da elevação litúrgica, mística, ou ao morrer – e

uma filosofia da imanência em que captaríamos verdadeiramente o ser

quando inteiramente ‘outro’ (causa de guerra), englobado pelo mesmo, se

desvaneceria no termo da história, propomo-nos descrever, no desenrolar

da existência terrestre, da existência econômica como a denominamos,

uma relação com o Outro, que não desemboca numa totalidade divina ou

humana, uma relação que não é uma totalização da história, mas a idéia

do infinito. (Lévinas 1980 39).

A situação estabelece o face-a-face, numa relação em que o Outro é

irredutível ao Mesmo, mantendo-se absolutamente separado, embora na

35

experiência do face-a-face, que é a própria experiência da transcendência e

da separação, impedindo dessa forma a formação de uma Totalidade (absorção

do Outro pelo Mesmo). É o Infinito que sustenta a alteridade, pois entre o Eu e

o Outro haverá sempre uma distância insuperável.

As nossas análises são dirigidas por uma estrutura formal: a idéia

do Infinito em nós. Para ter a idéia do Infinito, é preciso existir como

separado. Esta separação não pode produzir-se como fazendo apenas

eco à transcendência do Infinito. Senão, a separação manter-se-ia numa

correlação que restauraria a totalidade e tornaria ilusória a

transcendência. Ora, a idéia do Infinito é a própria transcendência, o

transbordamento de uma idéia adequada. Se a totalidade não pode

constituir-se é porque o Infinito não se deixa integrar. Não é a insuficiência

do Eu que impede a totalização, mas o Infinito de Outrem. (Lévinas 1980

66).

Lévinas defende, portanto, que idéia de infinito está no homem como

uma estrutura formal, posto que o homem existe sempre separado do Outro.

Mas tal separação não pode ser meramente espacial ou temporal. A separação

de que fala Lévinas é transcendental, é o transbordamento constante do Outro,

que não é adequado jamais ao meu pensamento. Se não fosse a capacidade

de o Outro transbordar toda e qualquer representação que se faça dele, a

alteridade estaria fadada se exaurir, pois o Eu se completaria do Outro.

1.4.3 – O MANDAMENTO ÉTICO COMO FONTE DA

JUSTIÇA Lévinas ressalta na relação metafísica a vigência do imperativo ético:

A relação com Outrem ou o Discurso é uma relação não-alérgica,

uma relação ética... Enfim, o infinito extravasando a idéia do infinito põe

em causa a liberdade espontânea em nós. Dirige-se, julga-a e condu-la à

sua verdade. A análise da idéia do Infinito, à qual só se tem acesso a

partir de um Eu, culminará com a ultrapassagem do subjetivo. (Lévinas

1980 38).

36

Verifica-se, portanto, que toda relação com o Outro é uma relação

ética, razão pela qual a Ética é a Filosofia Primeira, visto que, sendo a Ética o

pressuposto da relação metafísica, também ela tem esse caráter.

Destaca-se, por conseguinte, a distinção fundamental operada por

Lévinas em relação à grande maioria dos pensadores ocidentais, pois

enquanto os pensadores ontológicos buscam sempre a unidade do discurso, a

Totalidade e a compreensão do Outro pelo Eu, fundados na unidade da Razão,

Lévinas pretende preservar a interioridade e a exterioridade, rompendo com a

visão totalitária de unidade e, enfim, antes da ontologia supõe a metafísica

como única forma de se pretender a Justiça.

O esforço deste livro vai no sentido de captar no discurso uma

relação não alérgica com a alteridade, descobrir nele o Desejo – onde o

poder, por essência assassino do Outro, se torna, em face do Outro e

‘contra todo o bom senso’, impossibilidade do assassínio, consideração

do Outro ou justiça. (Lévinas1980 34).

A preocupação com o não assassinato do Outro, com a preservação da

alteridade é, de fato, a preocupação maior, tanto de Dussel quanto de Lévinas.

Somente assim poder-se-á alcançar a tão desejada JUSTIÇA.

A Justiça, ante o expendido, caracteriza-se intrinsecamente ligada à

Ética. Na relação ontológica, o Eu tem a liberdade absoluta para usar de sua

inteligência com o fim de conhecer o objeto, seja ele qual for. Na Metafísica,

por outro lado, a liberdade do Eu é questionada diante do Outro, a

espontaneidade é chamada à responsabilidade e o Mesmo não se assenhora

do Outro; ao contrário, diante da estranheza de Outrem, o Mesmo o acolhe,

preservando sua alteridade e, numa atitude discipular, dispõe-se a aprender

com o Mestre ao invés de impor a ele sua palavra. É a superação da ontologia

pela metafísica.

A metafísica, a transcendência, o acolhimento do Outro pelo

mesmo, de Outrem por Mim produz-se concretamente como a

impugnação do mesmo pelo Outro, isto é, como a ética que cumpre a

essência crítica do saber. E tal como a crítica precede o dogmatismo, a

metafísica precede a ontologia. (Lévinas 1980 30).

37

Nesse sentido, a responsabilidade pelo Outro é anterior à liberdade do

Eu. O processo de conhecimento deve, então, estar condicionado à

responsabilidade pelo Outro, o que significa dizer que conhecer não é apenas

constatar, mas sobretudo responder ao Outro enquanto acolhimento e não

redução.

Assim, a verdade, embora não separada da inteligibilidade, tem como

ponto fundamental o acolhimento do Outro:

A verdade não se separa, de fato, da inteligibilidade. Conhecer não

é simplesmente constatar, mas sempre compreender. Diz-se também,

conhecer é justificar, fazendo intervir, por análoga com a ordem moral, a

noção de justiça. (Lévinas 1980 69)

A justificação do fato põe sob crivo a espontaneidade, questionando a

liberdade de todos os atos. A liberdade deve se pautar pela crítica dos próprios

atos. Somente assim a liberdade será justa, isto é, repugnando a indignidade

que reveste a espontaneidade acrítica. A moral se funda, portanto, no instante

que se instaura a vergonha da espontaneidade, isto é, quando a liberdade

absoluta, arbitrária e violenta, deixa de se fundar em si mesma e passa a ter o

Outro como referência da sua justificação.

A consciência moral acolhe Outrem. É a revelação de uma

resistência aos meus poderes que, como força maior, não os põe em

xeque, mas que põe em questão o direito singelo dos meus poderes, a

minha gloriosa espontaneidade de ser vivo. A moral começa quando a

liberdade, em vez de se justificar por si própria, se sente arbitrária e

violenta. A procura do inteligível, mas também a manifestação da essência

crítica do saber, a subida de um ser aquém da sua condição, começa ao

mesmo tempo. (Lévinas 1980 71)

Lévinas pensa a realidade não como liberdade absoluta, mas investida

de liberdade. A distinção é fundamental porque uma vez sujeita à crítica, a

liberdade enseja não o saber originário de um processo de redução objetivante,

tal como em Husserl, o que culminaria na redução do Outro, mas

fundamentalmente o saber fundado no desejo do outro invisível, que não pode

ser objetivado porque sobre ele o Eu não tem poderes. Do Outro é que se

38

origina o mandamento “não matarás” e, assim, supera toda idéia que dele se

possa ter.

A relação com Outrem não se transmuda, como o conhecimento,

fruição e posse, em liberdade. Outrem se impõe como exigência que

domina essa liberdade e, portanto, como mais original do que tudo o que

se passa em mim. Outrem, cuja presença excepcional se inscreve na

impossibilidade ética em que estou de o matar, indica o fim dos poderes.

Se já não posso ter poder sobre é porque ele ultrapassa absolutamente

toda a idéia que dele posso ter. (Lévinas 1980 74)

Para Lévinas, a ontologia está para a injustiça assim como a metafísica

está para a justiça. A ontologia não põe, definitivamente, em questão o Mesmo

e permite o domínio do Outro, encetando-o numa totalidade, constituindo uma

injustiça. Já a metafísica estabelece como princípio fundamental, anterior a

qualquer manifestação do Eu, o respeito ao Outro e o questionamento do

mesmo, buscando assim uma relação justa em que sejam preservadas as

características essenciais tanto do Eu como do Outro.

Enfim, escreve Lévinas:

A essência da razão não consiste em assegurar ao homem um

fundamento e poderes, mas em pô-lo em questão e em convidá-lo à

justiça. (Lévinas 1980 75).

1.5 - DE-STRUIÇÃO DA HISTÓRIA DA ÉTICA:

SENTIDO E MÉTODO Enrique Dussel, ao escrever Para una de-strucción de la história de la

ética10, pretendia estabelecer uma ética universal ontológica. Embora tenha

renunciado posteriormente ao projeto ontológico, pela sua própria

impossibilidade lógica, manteve o intento de alcançar uma ética universal, sem

abandonar a forma de-strutiva de sua análise, como se evidencia em seu

último livro Ética da Libertação na idade da globalização e da exclusão 11.

10 Buenos Aires: Ser y Tiempo, 1972. 11 Petrópolis: Vozes, 2000.

39

É necessária uma precisa compreensão do termo de-struição,

empregado por Enrique Dussel, para definir a natureza de sua crítica à filosofia

tradicional, assim como do método por ele adotado.

O sentido do termo de-struição foi inspirado notadamente nas palavras

de Martin Heidegger, o qual é citado por Dussel:

De-struição não significa aniquilar, mas desarticular, separar e pôr

de lado... De-struição quer dizer: abrir nosso ouvido, libertá-lo para aquilo

que na tradição se nos coloca como ser do ente. (DHE 6).

O termo de-struição carrega a idéia de uma análise rigorosa de seu

objeto, a Ética em sua História, com a liberdade de não se restringir às

significações já estabelecidas tradicionalmente. Não é intenção, por

conseguinte, arruinar, desprezar, aniquilar os sistemas éticos conhecidos ao

longo história: “A de-struição significa um desarmar o dito pelos filósofos a

partir de seus pressupostos não pensados, e por isso mesmo não ditos.” (DHE

170).

Verifica-se assim o sentido preciso do termo de-struição, de desmontar

os argumentos filosóficos tradicionais mediante a indicação de fundamentos

anteriormente não explicitados pelos filósofos que pensaram a ética. A intenção

é historiográfica, mas de cunho filosófico. Pode-se também afirmar que a

Filosofia da Libertação exige, por conseguinte, de antemão a libertação da

Filosofia.

Etimologicamente o termo vem do latim struere, o qual significa “edificar,

fabricar, preparar, aparelhar, ordenar, arranjar, traçar, idear, dispor, acrescentar,

aumentar, tecer etc”, acrescido do prefixo de, o qual possui o propósito de

negação ou privação. Destarte, de-struir significa des-fazer, des-atar, des-

montar, visando à re-construção da Ética, como Filosofia, desde sua História,

tendo em vista uma Ética de conteúdo material universal, que vá além dos

limites espaço-temporais estabelecidos pela história.

Assumindo o emprego etimológico e filosófico do termo, Dussel o

emprega como sinônimo de crítica. Porém, de uma forma radical, desmontando

os vários sistemas desde a Grécia Antiga e propondo a Ética ou Filosofia da

Libertação, atribuindo ao homem papel fundante na História. Assim, é inevitável

a de-struição também no tocante ao período moderno e contemporâneo. Essa

40

é uma das primeiras des-articulações, uma releitura do papel cabente ao

homem na história.

Quando Dussel propõe a de-struição da História da Ética, na verdade,

está pretendendo a de-struição da própria Ética, sempre histórica, visto que o

homem é um ser pela história e não apenas um ser na história. O homem faz a

história e se faz pela história. A história verifica-se verdadeiramente no ser do

homem. A historicidade é condição do homem, sua temporalidade. Essa

indicação é importante, vez que muito comumente se fala da história como algo

exterior ao homem, algo de que o homem faz parte. Em verdade, “não é que o

homem seja histórico porque está na história. O homem é histórico, porque a

historicidade não é senão um modo de viver a temporalidade inerente à

essência do homem.” (DHE 7).

Para realizar um trabalho autêntico, é preciso libertar-se dos sistemas

construídos ao longo do tempo porque somente assim o filósofo terá condições

de ter uma visão liberta das verdades preestabelecidas e estará apto para,

então, estabelecer livre e historicamente o homem em seu papel fundamental:

ser ético.

“Des-atar os nós” da história da ética é mais do que simplesmente

analisar os sistemas passados ou presentes. Assim, Dussel faz divisão da

história da Ética analisando de-strutivamente cada um dos sistemas

estabelecidos desde a Grécia antiga, ao apontar os limites histórico-concretos

que pautaram o pensamento de autores como Aristóteles, Tomás de Aquino,

Kant e Hegel, entre outros.

Por outro lado, a de-struição da história da ética não é apenas uma

análise do passado, mas, a partir do passado, liberto de seus dogmas, é,

sobretudo, uma busca do ser presente livre:

A de-struição da história não é senão a atitude apropriada pela qual

se reconquista, contra a en-cobridora interpretação vulgar da história, o

sentido esquecido que foi instaurado pelos grandes gênios culturais do

passado; isto é, desde onde esses homens eram-no-mundo. A

historicidade autêntica é concomitante à tarefa de-strutiva, e somente

começa quando alguém des-cobre que seu acontecer é histórico, porque,

livre, e deixa manifestar-se às coisas. (DHE 7).

41

Dussel propõe construir a Ética da Libertação a partir do modelo

passado destruído. Antes, “esses homens eram-no-mundo” (“os grandes

gênios culturais do passado”). Agora, a Ética “somente começa quando alguém

des-cobre que seu acontecer é histórico, porque livre, e deixa manifestar-se às

coisas”.

Fica claro, portanto, que a História da Ética para Dussel deve ser

entendida como a manifestação da própria ética. Mas qual a sua acepção de

Ética?

A Ética não deve ser vista apenas como conjunto de normas morais

vigentes em algum tempo ou espaço. Muitas discussões existem ainda, na

filosofia, sobre o conceito de Ética e de Moral. Muitos afirmam mesmo não

haver diferenças ou confundem um com o outro. Para Dussel, contudo, é

imperioso notar a distinção, vez que propõe uma Ética Perennis, isto é, uma

ética duradoura e imutável ao longo do tempo e do espaço. Logo, não pode

estar se referindo à moral, a qual é vigente em função de determinados grupos

e determinadas épocas.

O termo “ethos” é transliteração dos dois vocábulos gregos: êthos (com

éta inicial) e éthos (com épsilon inicial). E, conforme explica também Dussel, o

primeiro vocábulo refere-se à morada habitual, enquanto o segundo refere-se

ao agir habitual. Em ambos os sentidos, entretanto, não se compreende o

sentido dusseliano de ética, qual seja, o momento temático ou explícito daquilo

que já foi vivido no aspecto do éthos. É o princípio que norteia o

comportamento humano e não se refere ao hábito particular nem ao coletivo. É

o oráculo que em Delfos foi proferido pela sacerdotisa a Sócrates: “Conhece-te

a ti mesmo”.

Todavia, esse ainda não é o sentido filosófico do termo, porquanto se

refere notadamente ao sentido comum. A reflexão metódica sobre essa ética

resulta na ética filosófica, a qual surge na Grécia, sem dúvida. Porém, essa

ética filosófica que se prolongou no tempo e no espaço, de diversos modos,

não é a ética buscada pelo nosso autor, posto que embora já traga em si a

intenção de universalidade e o sentido destrutivo, essas reflexões sempre

tiveram seu fundamento na realidade particular dos vários grupos dominantes

ao longo da história.

42

A ética pretendida por Dussel é a ética destrutiva das éticas

filosóficas. É o pensar crítico dos sistemas estabelecidos.

As éticas grega, cristã ou moderna sempre foram críticas, é verdade,

mas nunca se libertaram dos aspectos contingentes que as sustentaram.

Evidentemente, Aristóteles, por exemplo, e muitos outros filósofos, por certo

pretenderam estabelecer uma ética universal. Incorreram, entretanto, no

equívoco intransponível de se pautarem apenas pelo mundo que os cercava.

Somente no século XX, depois de ter passado por vários sistemas, em plena

globalização, o homem alcançou a condição suficiente para estabelecer uma

Ética Universal, mediante radicalização suficientemente crítica e ampla. Essa é

a tarefa do filósofo da libertação: De-struir a História da ética ocidental e,

concomitantemente, con-struir uma ética Universal, descobrindo, para isso, os

fundamentos das éticas filosóficas passadas e despojando-se do que há de

particular em cada uma delas. Apenas mediante esse processo poder-se-á

estabelecer a ethica perennis, aproveitando-se o que há de bom ao longo da

história, inclusive na modernidade, e assim con-struir a ética ontológica.

Nossa tarefa é descobrir o fundamento e os grandes temas da ética

ontológica entre os muitos mais numerosos temas acerca dos quais

tratam as éticas filosóficas tradicionais... É necessário deixar o grego das

éticas gregas, o cristão das éticas cristãs, o moderno das éticas

modernas, e ante nossos olhos aparecerá uma antiga e sempre fundante

ethica perennis a qual é necessário hoje descobrir, pensar, expor. (DHE

10).

Ao filósofo da libertação concerne, pois, conhecer, des-montar, analisar,

excluir o particular, reunir o que é comum a todos os sistemas e então fazer

uma reflexão crítica com o intuito de encontrar uma Ética de validade universal.

Enrique Dussel, ao pretender descobrir uma éthica perennis, voltou-se

para a ética ontológica. No entanto, como bem alerta o professor Eliseu Cintra,

como poderia Dussel visar a uma “ética universal, ethica perennis ou ética

ontológica fundamental”, se também, nessa tarefa posterior, honestamente seu

“pensar filosófico” tem “como ponto de partida a finitude”? A “finitude”, como

ponto de partida necessário de todo “pensar filosófico” é a própria

43

impossibilidade da “ética universal, ethica perennis ou ética ontológica

fundamental”.

A solução encontrada por Dussel surgiu pouco tempo depois de ter

escrito “Para una de-strucción de la historia de la ética”. Foi a partir seu

encontro com Emmanuel Lévinas, cujo pensamento ganhou fundamental

importância na sua obra, que o segundo tomo prometido naquela obra deu

lugar à grande obra filosófica, “Para uma ética da libertação latino-americana”,

editada em cinco volumes. E naquele texto, Dussel reconhece, ainda que

implicitamente, a existência do referido paradoxo:

O segundo momento, em verdade o terceiro (já que o primeiro é

ôntico-ontológico dialético; o segundo, ontológico-ôntico dedutivo), é o

salto meta-físico ao Outro. Este método meta-físico nos permitirá expor

uma filosofia latino-americana ... Este método parte de Lévinas, embora

vá além e o escrevemos depois de uma nova estada na Europa em

1972... (ELL II 155)

Assim fica creditado ao filósofo judeu-lituano-francês o momento

epifano-filosófico, de amadurecimento do pensamento filosófico de Enrique

Dussel. Acolhendo a tese levinasiana, exposta principalmente em “Totalidade e

Infinito”, Dussel reformulou o paradigma sobre ética e, sem abandonar a idéia

de estabelecer uma ética de validade universal, libertou-se da ontologia

heideggeriana e voltou-se para a ética metafísica da alteridade, com

fundamento no pensamento de Lévinas, o qual foi ainda a grande indicação

teórico-filosófica para os ideais dusselianos.

Destarte, fundado ultimamente em Lévinas, ainda que com algumas

divergências, Dussel firmou-se em sua reflexão filosófica, estabelecendo, de

início, o método para a de-struição da ética ocidental, o método para a Filosofia

da Libertação.

1.5.1 - O MÉTODO ANA-DIA-LÉTICO

Em face da nova proposta filosófica de Lévinas, Dussel conseguiu

desvencilhar-se do paradoxo em que se encontrava e estabeleceu o método

Ana-lético, concluindo que o homem, ou mais precisamente o outro é o ponto

44

fundamental a ser pensado, e o método dia-lético, restrito à totalidade

hermética, em que o outro faz parte do mesmo mundo do Eu, não satisfaz à

necessidade da razão humana. Isso porque a dialética consiste no raciocínio

argumentativo que vai dos entes ao fundamento e do fundamento aos entes,

encerrando-se numa totalidade em que a dis-tinção do outro é esquecida.

Lévinas mostrou bem que o outro não faz parte do meu mundo e, logo,

não faz parte dessa totalidade dialética, concluindo que se exige a

consideração do outro como fundamental para a realização da justiça.

Dussel, atento à questão, estabeleceu o que denominou o método Ana-

dia-lético, isto é, o método que vai além da dialética, ou precisamente, o

método que parte do outro como fundamento.

O método do qual queremos falar é Ana-lético, vai mais além,

acima, vem de um nível mais alto (ana-) que o do mero método dia-lético

... Agora se trata de um método (ou do explícito domínio das condições de

possibilidade) que parte do Outro como livre, com um além do sistema da

Totalidade; que parte então de sua palavra, da Revelação do Outro e que

confiando em sua palavra age, trabalha, serve, cria. (ELL II 200)

Por isso, tratando-se de um método que parte do outro, considerando-o

como além da Totalidade, não reduzido à compreensão do Eu, e, portanto, livre

e distinto, o método analético é intrinsecamente ético e não apenas teórico ou

ôntico ou ontológico.

E essa característica indica que o filósofo deve ser, desde o início ético,

o que implica em ser um servidor do Outro, ou mais precisamente, um servidor

da liberdade do Outro.

O método ana-lético inclui então uma opção prática histórica

prévia. O filósofo, aquele que quer pensar metodicamente, deve já ser um

“servidor” comprometido na libertação. (ELL II 203)

Ao estabelecer a Filosofia da Libertação, Dussel parte do pressuposto de

que a justiça é filosofia primeira, posto que a política é o centro da ética

metafísica, tal qual ensina Levinas. A filosofia da Libertação está além da

ontologia e da fenomenologia.

45

2 - O NASCIMENTO DA FILOSOFIA E O MITO DA MODERNIDADE

Ao longo dos últimos séculos, a teoria predominante é a de que a

modernidade começou com os avanços ocorridos na Europa a partir do século

XV, os quais determinaram sua superioridade diante das demais nações, e

justificaram, portanto, a mundialização de sua cultura. Dussel destaca a teoria

de Max Weber, como uma das sustentações desse paradigma, diante da

pergunta delimitadora da questão:

Que encadeamento de circunstâncias conduziu a que,

precisamente no solo do Ocidente e só aqui, se produzissem fenômenos

culturais que - pelo menos tal como nós costumamos representá-los para

nós - estavam numa direção evolutiva de significação e validade

universais? (EL 51).

A pergunta de Weber parte do pressuposto de que os fatos culturais

ocorridos na Europa naquele período tiveram validade universal. Contudo, uma

análise mais detida da história mostra que outras regiões eram mais avançadas

do que a Europa, a qual se caracterizava como periferia, fechada em si

mesma, de fora para dentro, tentando uma via de acesso ao centro comercial.

A Filosofia dusseliana da Libertação consiste numa releitura crítica da

história, do ponto de vista filosófico, divergindo da perspectiva universalista de

cultura, estabelecendo um novo parâmetro para a Modernidade, evidenciando

mais claramente, em face desse novo paradigma, os problemas do

pensamento ontológico europeu sustentador do sistema de exclusão da

periferia.

É importante sempre realçar que para Dussel, assim como para Lévinas,

a Ética é o aspecto fundamental da filosofia, a qual deve ser pensada a partir

de uma reflexão crítica acerca da realidade na qual o homem está inserido.

Esse é o sentido da Filosofia para Dussel, também uma Pedagógica que leve o

46

homem a libertar-se da opressão exercida pelos centros do sistema12, de

forma a possibilitar relações as mais justas possíveis.

A exposição da Histórica de Dussel, uma análise que faz história, é

imprescindível para a compreensão do ponto constitutivo da injustiça na

América Latina, e, por extensão, de todas as periferias: a Modernidade 13.

Segundo Dussel, a primeira libertação deve se referir à própria filosofia,

O filósofo deve primeiro libertar-se do pensamento ontológico tradicional para

então proceder a uma filosofia da libertação. Destarte, o primeiro passo é

libertar-se das visões helenocêntrica e eurocêntrica; somente assim o filósofo

poderá pensar livremente e, diante de uma visão mundial, buscar mais

amplamente a origem da eticidade ocidental. Com essa liberdade, Dussel

encontra o nascedouro da filosofia não apenas na Grécia, como é cediço, mas

desde as civilizações mais antigas, como a egípcia e a mesopotâmica, vez que

os textos gregos considerados precursores do pensamento filosófico são,

segundo o autor, tão míticos quanto os dessas outras civilizações. O que deve

ser chamado de filosófico naquele momento histórico, nos textos gregos, é o

“método filosófico formal”, ao passo que o seu conteúdo ético, tradicionalmente

colocados como filosófico, possui as mesmas características míticas dos textos

egípcios também de conteúdo ético. Conclui Dussel: “podemos abordar aqui

filosoficamente textos míticos de todas as culturas da história da humanidade,

de grande importância para interpretar os conteúdos éticos da eticidade atual”

[EL 19].

Fica, desta feita, operada a primeira grande de-struição necessária - a

do mito do nascimento da filosofia na Grécia antiga. Agora, conseqüentemente,

torna-se impendente a inclusão dos sistemas anteriores ao grego para o estudo

12 Para Dussel, a sociedade ocidental se estabelece com o centro vitimário e a periferia

vitimada. Desde meados do século XX o centro está articulado entre Europa Ocidental e EUA,

restando às demais nações a situação periférica, onde a estrutura “centro-periferia” se repete e

as elites locais praticam a vitimação das periferias em benefício dos centros maiores. 13 O terceiro volume de Para uma Ética da Libertação Latino-Americana abre-se com “A

histórica latino-americana”, com dois grandes parágrafos: “40. Para uma pré- e proto-histórica

latino-americana” e “41. Para uma histórica latino-americana”. Estas reflexões de Dussel são

amplamente retomadas e reformuladas na “Introdução: História mundial das eticidades” de

Ética da Libertação (2000).

47

filosófico. Eis a tese dusseliana: “foi preciso tempo para se poder atingir um

grau de complexidade civilizatório suficiente que permitisse que a ‘ética’ e a

‘moral’ alcançassem graus mais abstratos de universalidade e chegassem

assim a níveis evolutivos crescentes de criticidade” (EL 20). Para ele, a Ética

formou-se paulatinamente, tal como os agrupamentos sociais organizados, aos

quais denomina sistemas, partindo de situações regionais até tornar-se um

complexo mundial, com princípios de validade universal.

2.1 - O ESTÁGIO I: EGÍPCIO MESOPOTÂMICO

O primeiro sistema inter-regional começa aos 4000 anos a.C., época em

que a Grécia era ainda, na sua própria terminologia, um mundo bárbaro. Nesse

momento histórico, encontramos a civilização formada no oriente mediterrâneo,

o mundo egípcio da África bantu, entre o rio Nilo e o rio Tigre:

O mundo da África bantu, negro (kmt em egípcio), hoje ao sul do

Saara, é uma das origens da cultura egípcia - primeira coluna da

revolução neolítica. No oitavo milênio a.C., o Saara úmido era

atravessado por rios e habitado por numerosos plantadores bantus. A

partir do sexto milênio começou o processo de seca e a origem do

deserto; muitos povos bantus emigraram para o Nilo. A influência cultural

do leste do Nilo será muito posterior. A alta cultura egípcia tem sua origem

massiva no Alto Egito. A partir do quinto milênio a.C., grandes tumbas

podem ser observadas entre a segunda e a terceira catarata no Sudão.

(EL 26).

Naquele período em que floresceu a cultura egípcia, encontra-se já uma

eticidade, uma regra universal: maat, que é a “verdade” ou a “lei natural” em

seu sentido prático. A valoração da vida terrestre e vários outros princípios daí

decorrentes sedimentaram-se, conforme mostra a leitura do Livro dos Mortos:

Não cometi iniqüidade contra os homens... Não empobreci um

pobre em seus bens... Não fiz padecer fome... Não acrescentei peso à

medida da balança... Não roubei com violência... Não roubei pão... Satisfiz

a Deus cumprindo o que ele desejava. Dei pão ao faminto, água ao

sedento, vesti o que estava nu e uma barca ao náufrago... Fazei-o vir,

48

dizem os deuses falando de mim. Quem és tu? Me dizem. Qual é o teu

nome? Me perguntam. (EL 27).

É a responsabilidade diante do outro que Dussel desde sempre assumiu

com fundamento de sua reflexão.

Essa foi a primeira coluna cultural. A segunda coluna surgiu no “mundo

sumério, mesopotâmico, semita. No VIII milênio a.C., na Anatólia, e desde o IV

milênio a.C., em cidades como Uruk, Lagash, Kish ou Ur...” [EL 28]. Quanto à

eticidade formada nessas sociedades, ressalta-se a importância do princípios

contidos no código de Hammurabi, como por exemplo:

Naquele dia Anum e Enlil pronunciaram o meu nome... Hammurabi,

o príncipe piedoso, temente a deus, para fazer surgir justiça na terra e

eliminar o mau e o perverso, para que o forte não oprima o fraco [...] Para

que o forte não oprima o pobre, para fazer justiça ao órfão e à viúva..., na

Babilônia, a cidade cuja dignidade realizaram Anum e Enlil. Que o

oprimido afetado num processo venha à frente de minha estátua de Rei

da Justiça e se faça ler a minha estela escrita. (EL 28).

Pode-se verificar nessas duas passagens a relevância que se dá à

proteção do fraco diante do mais forte, do desfavorecido diante do privilegiado,

colocando-se a não opressão de um pelo outro como condição “sine qua non”

para realização da justiça.

Entre essas duas “colunas culturais” estavam outros povos de menor

expressão, como os fenícios, púnicos, hebreus ou moabitas, os quais

absorviam parte da cultura egípcia e parte da mesopotâmica.

A terceira coluna cultural ergueu-se com a Índia, do rio Indo até o

Pendjab, desde 2500 a.C., ao passo que a quarta coluna firmou-se com a

China, ladeando o rio Amarelo, desde 2000 a.C., aproximadamente. Aquelas

civilizações estavam, todavia, distantes dos centros daquele sistema inter-

regional.

Naquela época, as civilizações originais do continente que virá depois a

ser chamado América também floresceram distante do eixo principal,

procedentes, defende Dussel, da Ásia desde mais de 50 mil anos, vindos pelo

estreito de Behring.

49

A cultura meso-americana, Maia-Asteca, deve ser vista, entende o

filósofo, como a quinta coluna de alta cultura. A sexta é o mundo inca-quíchua,

firmado sobre três pilares éticos: não mentirás, não deixarás de trabalhar, não

roubarás.

Os Astecas, por sua vez, fundaram sua cultura no profundo humanismo,

conforme mostra Dussel ao citar o Códice Florentino, livro III, p. 67:

Mesmo que fosse pobre ou miserável

Mesmo que sua mãe e seu pai fossem os pobres dos pobres...

Não se via a sua linhagem,

Só se atendia ao seu gênero de vida,

À pureza de seu coração,

A seu coração bom e humano, firme,

Dizia-se que tinha o divino em seu coração,

Que era sábio nas coisas divinas. (EL 32).

Para eles, a vida advém de um sacrifício anterior, mas não em razão de

alguma falta, e sim de uma doação. Por isso aquele que vive tem o dever de

gratidão à comunidade em que vive:

Desta maneira, cada ser humano é um ‘merecido’ (macehual)... a

‘macehualidade’ é um ‘modo de existência’, o viver positivamente desde a

gratuidade não merecida e originada na ‘alteridade’. A justiça para com os

membros da comunidade é um ato de exigida gratificação. (EL 32).

Dussel destaca a importância para os Incas da vida terrena, a qual surge

a partir do Outro e por isso deve ser tida como uma dádiva pela qual nada se

fez para merecê-la. Por isso a comunidade deve ser respeitada e todos os seus

membros devem ser tratados com justiça, promovendo-se a vida de todos.

2.2 - O ESTÁGIO II: INDO-EUROPEU

O segundo estágio ocorreu a partir do séc. IV a.C. Foi a época dos

grandes impérios, como o hindu, o persa, o grego, o romano o budista e o

taoista e o confunciano na China.

A concepção sobre a vida passou a ser dualista, encerrando um sentido

negativo enquanto terrestre e positivo após a morte, nascimento para a vida

50

verdadeira. Daí estabeleceu-se, por conseguinte, a negatividade do corpo e

a positividade da alma, a negação do valor do corpo e das suas sensações em

benefício da vida pós-morte. Tudo porque no horizonte racional está o Uno.

Os centros eram a região persa e o mundo helenístico, cujos valores

começaram a se impor diante das demais regiões. No extremo oriental está a

China; ao sul-oriental estão os reinos da Índia e no ocidente encontra-se o

mediterrâneo.

Num segundo estágio, o ‘sistema inter-regional’ cresceu,

abarcando desde o Mediterrâneo e o norte da África até o Oriente Médio,

a Índia e a China através das estepes eurasiáticas (as regiões

influenciadas pelo ‘indo-europeus’), hegemonizando ou tendo como

centro de ligação o mundo persa ou o helenístico dos Selêucidas ou dos

Ptolomeus. (EL 631).

Aquele período caracterizou-se pela sua grande complexidade e

pluralidade. Contudo, Dussel destaca “uma certa constante ontológica”(EL 33):

a unidade absoluta como fundamento do mundo, uma visão de que para além

de toda multiplicidade com que nos deparamos em nossa realidade há o “Uno”

absoluto. A multiplicidade era considerada inferior à unidade absoluta e, por

isso, a vida terrena, temporal, passou a ter menos valor do que a vida pós-

morte, pois se estabeleceu que o corpo é o “mal” e a alma é o “bem”. A

adoração aos deuses prevalece e os povos possuidores do domínio da

manufatura do bronze e do ferro dominaram os demais povos agricultores.

Assim surgiram os grandes impérios.

Eles organizaram os primeiros grandes impérios, culturas ou

‘visões e mundo’ tais como as hindus na Índia, persas no Irã, gregas e

romanas no Mediterrâneo, budistas desde o Nepal, e, por influência

indireta, taoísta e confuciana na China. (EL 32).

Estabeleceu-se também a fundamentação teórica da dominação da

mulher pelo homem, posto que é a mulher que traz ao mundo o homem e a

vida terrena era considerada negativa. Seguiu-se ainda a visão negativa da

relação sexual e de toda corporalidade. A abstinência sexual foi pregada

extensivamente, e a vida contemplativa, afastada da manifestação sócio-

política, foi defendida como a positividade a ser praticada e sem qualquer

51

referência ao pobre, ao excluído. Ao contrário, foi plenamente justificada a

exploração de escravos e de grupos menos favorecidos.

O fato de se considerar a vida temporal, entre o nascimento e a

morte empírica, negativamente, tem importância para a ética. O

nascimento empírico é “queda” (por uma falta ética anterior ao

nascimento), e a morte empírica é interpretada como “nascimento” para a

verdadeira vida. Isto acarreta um juízo ético negativo da corporalidade e

da sexualidade, é dominação da mulher, negatividade da pluralidade, da

historicidade, e, pois, a justificação de toda dominação ou exclusão dos

escravos, servos, camponeses, ‘castas’ ou estratos sociais explorados.

(EL 34).

Dussel vê uma demonstração clara da visão de mundo daquele período,

em se tratando de ética, na Enéada de Plotino, para quem o “Um” é o princípio

ontológico absoluto. “Um” que desde Heráclito já era reverenciado. Todavia,

lembra-nos ainda que foi com o Zoroastro de Zaratustra que o “Um” começou a

ser colocado como princípio absoluto. E também é encontrado com os

Upanixades e com Lao-Tse, no taoismo chinês.

Mas se o primeiro momento foi de estabelecimento do “Um”, o segundo

momento explica a multiplicidade como decadência desse “Um”, originando a

diferença entre corpo e alma, sendo o corpo a multiplicidade e a alma a

unidade. Daí o corpo passou a ser considerado a origem do Mal e a alma o

Bem.

E é assim que a alma do universo, que é uma, cai num corpo, e

esse corpo, por ser matéria, é a origem do mal no ser humano ... O corpo

é mau, então, por ser material. O nascimento é ‘morte’ para a verdadeira

vida divina. (EL 34).

Veja-se que a expressão “cai”, utilizada por Dussel, remete à

superioridade da alma em relação ao corpo, tal como o pensavam os gregos.

E Dussel destaca outros pensadores que consideravam o corpo como

fonte do mal para o ser humano, tais como Heráclito, Platão, Mahabarata,

Buda, Mani – o poeta do Irã Sassânida – , dentre outros, naquele período,

todos defensores daquela visão dualista.

52

A concepção dual alcançou os dias atuais, perpassando desde as

tradições gnóstico-romanas, o maniqueísmo latino, até Descartes e mesmo

Kant.

O dualismo antropológico, com o correspondente desprezo pelo

corpo, pela sensibilidade, pelas paixões, pela sexualidade, penetrará

posteriormente nas tradições gnóstico-romanas, no maniqueísmo latino,

entre os albigenses e cátaros, até culminar em Descartes ou Kant. (EL

35).

Há ainda um terceiro momento, nesse sistema inter-regional, que diz

respeito à idealização da forma de retorno do múltiplo ao uno. É a tentativa de

libertação do mundo terreno, decaído, em direção ao mundo eterno, perfeito,

uno. Para obter êxito, o homem deveria, segundo essa visão, afastar-se do

mundo corporal, voltando-se fundamentalmente para a vida contemplativa.

Somente negando o corpo, que por sua vez é negação da perfeição, o homem

poderia voltar à vida eterna, escapando do eterno retorno. A morte representa,

pois, a libertação da alma de um corpo imperfeito.

A morte empírica é, para esta visão do mundo o “nascimento” para

a vida verdadeira. A vida terrestre é um tempo negativo da dor, do

sofrimento. Para merecer uma morte que liberte o ser humano do “eterno

retorno” da reincorporação, é necessário cumprir com a “lei natural”

(phisicon nomon), com a “ordem”, com as instituições como a das “castas”

com a ética estabelecida, com o status quo. (EL 36).

Dessa forma, com o estabelecimento da unidade como a perfeição do

mundo, o múltiplo como a realidade decaída desse “Uno” e a vida

contemplativa como forma de alcançar a unidade novamente, criou-se uma

moral formal, sem nenhum princípio material que pensasse todas as camadas

sociais. A ordem, nessa visão, está acima de tudo e de todos.

É uma moral formal que consolida a eticidade existente; justifica a

institucionalidade, a organização política, a econômica, a pedagógica e o

domínio entre os gêneros existentes (do varão sobre a mulher). Não há

um princípio de materialidade e negatividade que possa subverter a

‘ordem’ em nome das vítimas, os pobres, explorados ou excluídos. (EL

36-37).

53

Dussel ressalta que a eticidade helenística é formal e por isso não

admite qualquer negação da ordem estabelecida segundo as classes

dominantes. As vítimas, segundo essa ordem, jamais teriam condições de

levantar-se contra as injustiças e reclamar seus direitos.

2.3 - O ESTÁGIO III: ASIÁTICO-AFRO-

MEDITERRÂNEO O estágio III do sistema inter-regional desenvolveu-se desde o séc. IV

d.C., com a queda do império romano, e durou até o séc. XV. Deve ser

ressaltado, contudo, que suas raízes remontam há tempos bem mais distantes,

como, aliás, destaca Dussel:

Num terceiro momento, terceiro não de um ponto de vista

meramente temporal, mas pela natureza da estrutura destes povos,

aparecem os povos semitas. /.../ Os acádios são os primeiros semitas que

a história conhece (aparecem invadindo as zonas da cultura suméria no

século XXV a.C.). Virão depois os cananeus (séc. XXIV a.C.), os fenícios

que já no ano 3000 a.C haviam fundado Biblos. Os babilônicos reinarão

sob Hamurabi (1792-1750 a.C.). Semitas são todos os árabes

especialmente com o Islão, desde a morte de Maomé (632 d.C.).

Necessário é não esquecer que o cristianismo tem laços de parentesco

cultural com estes povos. (MFL 227).

No extremo oriente destaca-se a China tentando dominar a rota da seda

para o Ocidente; mais ao sul, a África bantu; no ocidente, o mundo bizantino-

russo; no oeste a Europa ocidental e a Índia como grande centro produtivo.

Foi um momento histórico com características bem distintas das do

primeiro estágio, embora a concepção de mundo daquele tivesse voltado a

vicejar, posto que o expansionismo deveu-se aos desejos hegemônicos

religiosos, tanto do cristianismo como do islamismo, bem como, ainda,

provavelmente, em razão da opressão estabelecida pelos grandes impérios do

estágio II.

54

O retorno da concepção ético-mítica do primeiro estágio do sistema

inter-regional foi a grande mudança estrutural que demarcou esse terceiro

estágio, embora tenha sido amplamente tomada pela idéia expansionista e

dominadora norteadora do segundo estágio. Dussel aponta duas prováveis

razões para essa retomada:

A visão do mundo do primeiro estágio do sistema inter-regional, o

egípcio-mesopotâmico-semita, voltará a se fazer presente, embora

realizando, por seu lado, um desenvolvimento universalizador expansivo

(tanto pelo fenômeno do cristianismo como pelo do islamismo) e, talvez,

como vimos acima, pela insuportável situação dos oprimidos dos

impérios. (EL 37).

Na periferia do império romano, do lado oriental, os povos quase

esquecidos, mas sempre explorados e excluídos dos privilégios do império,

formaram o “mundo” bizantino, enquanto do outro lado o norte da África e a

região persa transformaram-se em muçulmanos, criando-se barreiras religiosas

e culturais existentes até hoje.

A grande questão daquele momento era o domínio da região central,

Turan-Tarim, posto que era o ponto de comunicação entre a Índia, Antioquia, Irã

e Mesopotâmia, estabelecendo um ponto de distribuição da chamada “rota da

seda”, que vinha da China.

Aquela região foi controlada principalmente pelos bizantinos que

paulatinamente ocuparam toda a Mesopotâmia (Séc. VII).

A divergência no tocante aos princípios éticos que desprezavam a vida

terrena ficou marcada em vários momentos, dentre os quais com Taciano e

Justino. Evidentemente esse resgate não foi feito a partir do pensamento

grego, e nem poderia, mas desde suas origens afro-asiáticas. Constantinopla

(desde 425) transformou-se então no grande centro cultural, lembrando que as

escolas de Atenas foram fechadas desde o séc. VI, assim como a de

Alexandria no séc. VII. Constantinopla, mesmo com a derrocada do império

bizâncio, resistiu até 1453, tomada por Maomé II.

Do outro lado, aproveitando a pacificação entre o império bizâncio e o

persa ou mesmo os respectivos enfraquecimentos enquanto perdurou a guerra

entre eles, os muçulmanos, sobretudo árabes, começaram a expandir seu

55

domínio e direção àquele território, liderados por Maomé inicialmente e

depois por seus sucessores, Abu Beker, Omar e Otman, os quais

estabeleceram amplo domínio na Síria, Palestina, Pérsia e Egito. Avançaram

também sobre outras regiões, principalmente a da Espanha, onde floresceram

mais tarde grandes centros de cultura muçulmana, mantendo-se até o séc. XII.

No campo da filosofia, são célebres os filósofos árabes, principalmente

no tocante à relação entre filosofia e religião, pois foram eles que tornaram a

filosofia liberta da teologia, embora sejam confundidos usualmente com

defensores da revelação positiva.

Foram os pensadores muçulmanos que tiveram contato com as filosofias

anteriores, isto é, dos gregos, dos judeus e dos helenistas cristãos. E,

sobretudo, diante do pensamento de Aristóteles, preciso e rigoroso

formalmente, conseguiram estabelecer um pensamento filosófico distinto do

teológico.

Assim nasce o Kalam propriamente dito, ou o uso da filosofia como

método hermenêutico no desenvolvimento de um discurso racional

construído a partir do texto ‘revelado’ e, ao mesmo tempo, como cultivo

autônomo de uma filosofia secularizada enquanto tal. (EL 42).

Os conhecimentos no centro do sistema, o mundo muçulmano, estavam

muito mais avançados do que na Europa ocidental. Para Dussel, se fossem ser

considerados os fatos defendidos por Max Weber como indicadores da

Modernidade, independentes da região em que aconteceram, certamente a

Modernidade seria indicada desde alguns séculos antes do que se costuma

indicar. É que os muçulmanos já conheciam, por exemplo, todos os

instrumentos de crédito e formas de associação comercial. O comércio era

amplamente desenvolvido, assim como os centros culturais. Deve-se notar,

ainda, apenas para ilustrar, o tratado de álgebra de Mohamed Ibn-Musa, de

820, que foi traduzido na Europa no século XVI e considerado como um

progresso na matemática.

Durante todos esses séculos, a Europa ocidental ficou afastada do

sistema inter-regional e, portanto, continuou numa situação periférica.

De início, era apenas parte do Império Romano ocidental. Depois,

desde o sec. VII, a Europa continental latino-germana foi isolada do

56

mediterrâneo oriental e, pois, ficou à parte do sistema. Começou então a se

estabelecer o feudalismo, um regime fechado de fora para dentro e não por

opção própria. Assim, isolada do “mundo”, a Europa tentou num terceiro

momento, se integrar ao sistema inter-regional mediante as cruzadas,

parcialmente bem-sucedidas, dando apenas início, pois, ao fim desse sistema

e não o determinando.

A Europa latino-germânica não deixou, por isso, de ser uma cultura

secundária, regional e periférica do mundo muçulmano, já que ainda em

1532 os turcos estão junto à muralha de Viena. Nada, desde dentro dela

mesma, faz pressagiar uma nova idade nem nenhum esplendor futuro.

Em nada é superior ao mundo muçulmano; muito pelo contrário, guardava

posição complexada de inferioridade, isolada, verdadeiro ‘finis terrae’ (no

extremo ocidental do continente asiático-afro-europeu), com total

desvantagem comercial com respeito às áreas ‘centrais’ muçulmanas do

estágio III do sistema inter-regional. (EL 44).

A Europa Ocidental, desde o séc. XIII esteve buscando um caminho para

chegar ao centro produtivo, a Índia. Por isso, dentre outros fatores,

desenvolveram-se as cruzadas, numa tentativa de religar aquela parte da

Europa ao centro, fato que, por sinal, somado à emigração dos gregos de

Constantinopla para a península, resultou no renascimento intelectual helenista

italiano. Contudo, uma vez fracassadas as cruzadas, não restou alternativa

senão tentar chegar ao centro pelo ocidente, isto é, pelo Atlântico. Assim

acabam chegando ao novo continente, fato que revolucionou completamente

as concepções de mundo e provocou o fim do centro do terceiro estágio.

Curiosamente, contudo, a chamada Idade Média é assim denominada,

dentro de uma visão eurocêntrica e provinciana, a partir dos fatos ocorridos

nessa região. Mas esse estágio do sistema inter-regional só encontrou

definitivamente sua derrocada com as novas terras descobertas no novo

continente, em razão da riqueza ali encontrada. E assim também acabou o

próprio sistema inter-regional, dando ensejo ao sistema-mundo.

57

2.4 - ESTÁGIO IV: O SISTEMA MUNDO O quarto estágio começou com a descoberta do novo continente, em

1492. O mundo deixou de se encerrar num sistema inter-regional para ser um

sistema-mundo. O primeiro centro foi a Europa Ocidental e, atualmente,

somam-se EUA e Japão. Enquanto isso, a periferia foi-se constituindo com a

América Latina, África bantu, mundo muçulmano, Índia, Sudeste Asiático,

Europa Oriental e, numa situação mais afastada, a China e a Rússia (desde

1989).

Esse foi o ponto constitutivo também da Modernidade. A concepção de

Max Weber, difundida e aceita tradicionalmente, não pode prevalecer, posto

tratar a história apenas do ponto de vista europeu ocidental, e o mundo naquele

instante ia muito além da Europa ocidental, a qual na verdade era apenas

periferia de um centro formado na Índia e, depois, do mundo árabe.

Para Weber a Modernidade deveria ser apontada a partir de

circunstâncias que resultaram em “fenômenos culturais” com validade e

características “universais”, ocorridas no solo do ocidente. Essa visão é

declaradamente eurocêntrica, posto que considera apenas as condições do

ocidente, isto é, da Europa ocidental. Assim é também a visão de Hegel,

defensor do Espírito germânico, o “Eu absoluto”, como espírito do novo mundo.

Por isso, a partir desses princípios, todas as divisões históricas redundam

numa “organização ideológica e deformante da história” [EL 51].

A condição de centro conquistada pela Europa não se deveu apenas à

sua superioridade diante das outras nações, as quais, aliás, naquele momento,

em nada perdiam para a Europa. O fator preponderante que levou ao fim do

centro inter-regional foi a exploração do novo mundo, que deu à Europa

ocidental a superioridade em relação ao mundo otomano-muçulmano, à Índia e

à China.

No desenrolar desse sistema-mundo, Dussel detecta os seguintes

momentos:

1 - Espanha hegemônica, ainda ligada aos princípios do estágio III,

fazendo prevalecer a sua língua, cultura, religião e política;

58

2 - Ascensão da Holanda, tornando-se o “centro do centro”, diríamos,

de onde surgiram as teses modernas reducionistas.

A Modernidade, assim, constitui-se no efeito dessa conquista, no

primeiro momento, e não na sua causa. Foi em razão da exploração da

Ameríndia que a Europa conseguiu deslocar o centro do estágio III, culminando

com os avanços científicos e culturais em seus domínios, mas que, na verdade,

já vinham desdobrando-se desde o estágio anterior.

No segundo momento, mais de um século depois da mudança de

paradigma, formaram-se as teorias de sustentação do novo sistema e com a

sedimentação do centro hegemônico europeu surgiram as “formações sociais

periféricas”, com a colonização e exploração dessas regiões, que atualmente

compreendem a América Latina, África Bantu, Mundo Muçulmano, Índia,

Sudeste Asiático, China e também, desde 1989, parte da região oriental da

Europa, face à queda do socialismo.

O paradigma norteador de toda a Modernidade surgiu ali, na Holanda,

com Descartes, reconhece Dussel, o que não invalida a sua tese de que a

Modernidade surgira um século antes. É que, embora o sistema tenha se

modificado desde a incorporação do novo continente, somente no séc. XVI,

com a tese cartesiana, o modo gerencial daquele sistema foi estabelecido

desde a Grécia antiga até o período moderno.

2.4.1 - INVENÇÃO E DESCOBRIMENTO: PRIMEIRO PASSO CONSTITUTIVO DA INJUSTIÇA NA AMÉRICA

LATINA Na obra “1492: o encobrimento do outro. A origem do mito da

modernidade”, Dussel descreve a descoberta da América Latina por Colombo,

explicando que Colombo tinha a consciência de estar descobrindo um novo

caminho para as Índias. Por isso, a conclusão de Dussel “invenção”, porquanto

Colombo “inventou” o “ser-asiático”, existente somente em sua imaginação. A

“Santíssima Trindade geográfica continuou existindo (Europa, África, e Ásia).

Identifica, ainda, a visão mercadora de Colombo com a visão do homem

59

moderno, “se encher de ouro, de dignidade e além disso, honestamente,

expandir a fé cristã”.

Essa invenção é que confere supedâneo à negação do “índio” como

“Outro”, e a afirmação como “si-mesmo” já conhecido (asiático) e “re-

conhecido”, “Em-coberto”.

O descobrimento é posterior. Uma experiência quase científica, estética

e contemplativa.

Assim, a Modernidade nasce histórico-existencialmente

aproximadamente em 1502, com Américo Vespúcio, ao relatar que a “quarta

para da Península da Ásia como acreditava Colombo, é a parte antípoda da

Europa do Sul, uma quarta parte da Terra”. Foi a primeira manifestação

consciente na história da Europa da descoberta de um novo mundo.

Esse “des-cobrimento” ontológico-historicamente é apenas a “matéria

onde é pro-jetado o “si-mesmo” europeu, resultando daí o encobrimento do

Outro, posto que a matéria é potência, não-ser, conforme entende Habermas, e

por isso não tem importância, assim como para Hegel.

E esse processo de descoberta foi concluído somente em 1520, com a

circunavegação da América por Sebastião Eleano.

Com a visão de “matéria”, a Europa transformou os “índios” em objeto

“lançado” diante dos seus olhos. O “coberto” foi “des-coberto”, mas

imediatamente “en-coberto” como Outro”. É apenas “massa rústica para ser

civilizada pelo “ser” europeu da “Cultura Ocidental”, mas “encoberta em sua

alteridade”.

2.4.2 - DA CONQUISTA À COLONIZAÇÃO:

SEDIMENTAÇÃO DA INJUSTIÇA NA AMÉRICA LATINA Passados os primeiros momentos: invenção e descobrimento, o homem

moderno passou ao terceiro e decisivo: a conquista, “prática, relação de pessoa

- pessoa, política, militar”. A conquista dominadora que anula o Outro e o

integra à totalidade dominante como instrumento, tal como sempre o fizeram os

europeus.

60

Para exemplo de “conquistador” – homem moderno, Dussel cita

Fernando Cortês, explorador de índios desde 1504 até 1510, que descobriu as

primeiras culturas urbanas voltadas para o Pacífico - Maia e Asteca, enriqueceu

e chegou a capitão.

Cortês foi tido como Deus para os Astecas e assim tratado inicialmente

por Quetzalcohuatl, Imperador, por causa das previsões de adivinho deste.

Depois, começou a provocá-los para guerra, que foi recusada. Então, começou

a conquista militar. A superioridade de sua violência era “quase-divina”, pois os

Astecas ou Mexicanos não se prepararam para tal relação, enquanto o europeu

vinha de sete séculos de experiências militares. O mexicano, dominante na

região era, contudo, honesto e, mesmo, ingênuo. O fim do mundo esperado

pelos mexicanos aconteceu. Cortês foi declarado então Senhor de México.

Acima dele só Carlos V.

O “eu-conquistador” (ego-conquiro) pode ser considerado, pois, o

modelo histórico do “ego cogito”, revelado na “vontade de poder”.

61

3 - DE-STRUIÇÃO DA ÉTICA OCIDENTAL

A crítica aos fundamentos ético-filosóficos estabelecidos ao longo da

história, a partir da Grécia Antiga, consiste num reexame dos fundamentos da

Ética, promovendo a de-struição da Ética Ocidental e, conseqüentemente,

apresentando a proposta de uma nova Ética, a Ética da Libertação ou Filosofia

da Libertação; sempre em busca de um sistema possibilitador da adequação

entre teoria e práxis, em que o homem possa ser sujeito, independentemente

de sua raça, cor, sexo ou situação geográfica, em igualdade de condições com

o outro, numa relação ética e justa.

O primeiro momento fundamental para este estudo diz respeito aos

fundamentos da sociedade grega antiga, considerada tradicionalmente como o

berço da filosofia. Parmênides, influente pensador daquela época, contribuiu

para a formação da base teórica necessária aos ideais gregos, estabelecendo

que “o mesmo é pensar e ser”, “o Ser é, o não-Ser não é” e “tudo é uno”,

princípios que nortearam o pensamento filosófico grego e sustentaram toda a

sua organização cultural, enraizando-se na história ocidental até os nossos

dias.

O segundo momento concerne ao mundo europeu medieval, período

compreendido entre o século IV e o século XV, quando mesmo pensadores

grandiosos como Agostinho e Tomás de Aquino não foram capazes de libertar-

se dos aspectos historicamente relativos da moral cristã e, portanto,

contribuíram para a sedimentação das injustiças praticadas pelos governantes

da época.

O terceiro momento compreende a questão ética no período moderno,

que será analisada a partir de três dos grandes pensadores modernos,

Descartes, Kant e Hegel.

O quarto momento trata da abordagem do pensamento heideggeriano e

sua superação por Enrique Dussel tendo em vista uma nova idéia de Justiça, a

qual passa necessariamente por uma nova Ética, a Ética da Libertação.

E, finalmente, a abordagem da crítica dusseliana às éticas

contemporâneas, acompanhando a divisão por ele estabelecida entre aqueles

62

que defendem a realização do sistema e aqueles que negam, embora

sempre do ponto de vista eurocêntrico, apresentando o debate com Taylor,

Rorty, Habermas e Apel.

Dada a pluralidade de pensamentos desde fins do século XIX, o diálogo

de Dussel com essas éticas exigiria um trabalho específico, pontual, pois ainda

está em “ebulição”. Neste trabalho, contudo, será apresentada a crítica

dusseliana a quatro dos mais importantes filósofos contemporâneos, dois

negadores e dois defensores de uma solução dentro do próprio sistema, sendo

materialistas e formalistas, respectivamente, como forma de evidenciar os

pontos fundamentais que norteiam a crítica da Filosofia da Libertação às éticas

contemporâneas.

Deve ser ressaltado, portanto, que filósofos como Nietzsche, Marx,

Marcuse e John Rawls, dentre tantos outros, também contribuíram em muito

para esse diálogo.

3.1 - GRÉCIA ANTIGA: O DESVIO ORIGINÁRIO

O início da análise da questão remete à Grécia Antiga, o berço da

civilização ocidental, porquanto Enrique Dussel vê nesse período o desvio

originário de fundamento que conduziu o Ocidente a uma história de exclusão,

vitimação e, pois, injustiça.

Há dois problemas fundamentais em relação ao pensamento grego

antigo. O primeiro refere-se à fundamentação da prática sócio-política em que

somente os homens adultos gregos livres podiam participar da vida política,

enquanto as demais pessoas eram tolhidas desse direito. Podemos dividir essa

questão em duas fases.

A primeira fase, a partir do século VII a.C., quando surgem alguns

pensadores que buscam explicar a natureza a partir da razão, sem recorrer aos

deuses mitológicos. São os chamados filósofos da natureza, destacando-se

nesse cenário Parmênides e Heráclito, ainda que desde Tales e Anaximandro

ou mesmo Homero e Hesíodo, já se possa encontrar o questionamento

filosófico. É um caminhar do pensamento grego que se livra, aos poucos, das

concepções míticas, das opiniões do vulgo, para chegar à questão principal, o

63

ser, do ponto de vista estritamente racional. O grego Parmênides de Eléia,

que viveu na primeira metade do séc. V a.C., é um dos principais pensadores

que nortearam o pensamento grego, o qual influencia, até hoje, a Filosofia

Ocidental. De seus escritos, restaram apenas fragmentos, mas suficientes para

enraizar a clássica concepção de que “Tudo é uno” (fragmento 50), o “Ser é, o

Não-Ser não é” e “ser e pensar são a mesma coisa” (fragmentos 6 e 3

respectivamente).

Mediante a identidade entre “ser” e “pensar”, estabelece-se, por

conseqüência, a idéia de que somente “é” o homem que “pensa”, os demais

“não são”. Assim os gregos assumem o fundamento teórico para a práxis de

exclusão política de estrangeiros, escravos, mulheres e crianças, considerando

que somente os homens adultos gregos livres são “pensantes”, enquanto os

estrangeiros, as mulheres e as crianças são considerandos “não-pensantes”. É

a partir desse modo de pensar e viver que se começa a sedimentar o estado de

injustiça, considerando a importância da Grécia em relação aos povos não-

gregos daquela época.

A segunda fase pode ser considerada principalmente com Sócrates,

Platão e Aristóteles. Inicialmente, com a concepção de que o verdadeiro ser é o

eidos, Platão desfaz a unidade do Ser da maneira como pensada pelos pré-

socráticos, e o homem passou a ser considerado como “alma” que habita um

“corpo”. Porém, mantém a concepção de unidade, então deslocada para o

eidos, tido por ele como o verdadeiro Ser.

Para Platão, igualmente, a alma do mundo é mais antiga que o

corpo; a alma não nasceu, é imortal, eterna. O nascimento empírico é

uma queda num corpo, que é seu cárcere. (EL 34).

E se para Parmênides o Ser é presença, com Platão a questão passa a

ter relação com a visibilidade ou não-visibilidade, considerando, ainda, que a

desocultação do ser somente seria possível pela idéia.

A desocultação do ser será mera exatitude, e a com-preensão do

lógos em relação ao ser é agora considerada como idéia (que vem de

eidos = o visto, percebido). (DHE 29).

Com a posição adotada por Platão, estabelece-se, então, a

desvalorização da presença, da concretude. Mais ainda, essa concepção

64

atinge o valor da vida terrestre, sempre enaltecida nas civilizações anteriores

à grega, visto que a vida terrestre está calcada nas coisas fenomênicas, ao

passo que para Platão a verdade absoluta está no ideal e não nas coisas

aparentes. O ser deveria ser alcançado apenas pela idéia e não pela presença

fenomênica. O real, para Platão é o ideal, enquanto as coisas vistas são

apenas aparências. Seguindo nesse raciocínio, Platão entendeu o Mal como

ignorância do Bem, ou do Ser, o que o levou à separação entre Metafísica e

Ética, devendo a primeira tratar dessa transcendência enquanto a segunda, da

vida prática:

Prosseguindo-se por este caminho chegar-se-ia a separar a

metafísica da ética, por uma parte, e o mundo ontológico do empírico, por

outro. Nesta interpretação têm caído inumeráveis platônicos da história.

(DHE 30).

Aristóteles reafirma a posição grega de exclusão, porquanto ainda que o

Ser deva ser buscado a partir da phýsis e nela encontrado, somente pelo lógos

será possível alcançá-lo, o que o insere no mesmo plano de Platão em relação

a essa questão.

Para Aristóteles há transmissão ou causação formal (trans-

formação) (um movimento “horizontal” dentro da espécie eterna). O

Estagirita reuniu em um só horizonte (o mundo da percepção sensível) a

presença do ser; porém não por isso desejou reduzir ao ser unicamente

ao nível eidético. O ser como para os pré-socráticos e Platão é o

permanente, a presença do presente (em última análise, a ousía), o

alcançado exatamente pelo logos. (DHE 32).

A Ética aristotélica, distinta da metafísica, por sua vez, consagra-se

como uma teoria da eudaimonía, isto é, que tem como fim último a felicidade

do homem. Mas a felicidade, para Aristóteles, encerra a idéia de “boa vida”, a

qual, considerando-se que a eudaimonía é própria do espírito, remete a idéia

de felicidade à vida contemplativa; vida essa que somente poderá ser

alcançada pelos gregos, surgindo daí, então, o “direito” de escravizar os

“bárbaros”. É de se ressaltar, aqui, que a Ética aristotélica, embora pretenda

um princípio universal - “vida boa” -, encerra-se no regionalismo grego, um

mundo particular e restrito.

65

Esta suprema “vida boa” só podia ser vivida na pólis grega,

porque os bárbaros, os asiáticos ou os escravos não eram humanos em

sentido estrito. É uma ética material ontológica..., mas ainda regional,

particular. Define uma vida boa com pretensão de universalidade, mas cai

num particularismo convencional que deverá ser superado. (EL 125).

Assim confirma-se a sociedade grega, com todas as suas virtudes, mas

calcada na visão totalitária, encerrada em si mesma, sem abertura para o

diferente, preocupada com uma “justiça” formal, em que cabe ao homem a

obrigação fundamental de obedecer à ordem estatal tendo em vista o fim de

não quebrar a ordem. Isso explica, de certo modo, a idéia do homem grego

como o único ser pensante e de todos os estrangeiros como “objetos” para

servir ao grego. E não bastasse tal distinção, distinguem mesmo os cônjuges

varões dos demais gregos, constituindo os primeiros os únicos “pensantes”,

enquanto mulheres e crianças, apenas serviam para propiciar o alcance dos

fins desejados. Com o fundamento unívoco fortalece-se o éthos grego,

dominador, escravista e flagrantemente injusto, posto que o Outro, o dis-tinto

não tem sequer o status de cidadão e daí não poderá, mesmo, possuir

qualquer direito:

Para Aristóteles, o grande filósofo da época clássica, de uma

formação social escravista autocentrada, o grego e o homem; não o é o

bárbaro europeu porque lhe falta habilidade, como também não o é o

asiático, porque lhe falta força e caráter; também não são homens os

escravos; as mulheres o são ás meias e a criança o é em potência.

Homem é o varão livre das polis da Hélade. (FL 11).

O segundo problema está no sentido de lógos para os gregos. Esse

termo, que abriga a com-preensão do Ser, constitui-se no fundamento maior de

todo o sistema helênico tendo em vista a concepção de unidade do Ser. Isso

porque no sentido grego, esse termo significa, radicalmente, co-letar, re-unir,

de-finir, como, aliás, bem retoma o grande filósofo Heidegger em Ser e Tempo.

Daí, surge a grande fundação do pensamento totalitário grego regido

inicialmente pelo pensamento parmenidiano, porquanto a com-preensão do Ser

encerrava re-união, co-leta, isto é, um fechamento hermético, sem abertura

para o Outro.

66

No entanto, considerando o correspondente hebraico, dabar, percebe-

se que o termo ganha um sentido muito diferente.

Mas a palavra Lógos traduz ao grego o termo hebraico dabar, que

inversamente significa: dizer, falar, dialogar, revelar e ao mesmo tempo

coisa, algo, ente. Lógos é unívoco. Dabar é Aná-logo. (MFL 199).

Para a totalidade grega, lógos traduz perfeitamente o sentido de unidade

do Ser e a exclusão do di-ferente. Por outro lado, considerando o sentido

hebraico, encontramos fundamentalmente a idéia do Outro, do dis-tinto 14.

Enquanto prevalecer o entendimento grego, é evidente que nenhuma ética

encontrará sustentação teórica suficiente para estabelecer uma proteção justa

ao Outro, pois estará fundada numa concepção que desde o ponto de partida é

fechada ao Outro e por isso leva inexoravelmente à injustiça.

Dussel vai além do ponto originário a que a maioria dos filósofos

europeus se refere, e procede, então, à de-struição da ética ocidental desde o

seu maior fundamento, o Lógos grego, para a partir daí, lançar a proposta de

uma ética de libertação que dê ensejo à realização da Justiça tendo como

escopo não a totalidade do Eu, mas a necessidade do Outro.

3.2 - A ÉTICA NO PERÍODO MEDIEVAL

Durante a Idade Média, o princípio ético continua sendo a busca da

unidade, porém fundada em Deus. Da mesma maneira, a felicidade continua

sendo o fim a ser atingido. Contudo, a eudaimonia consiste na posse ou uso de

riquezas. Trata-se de uma Ética material:

Para os filósofos medievais a beatitudo (a eudaimonia aristotélica)

consistia objetivamente em bens (em última análise no próprio Deus como

pessoa, como aquilo de que se participa no Reino de Deus). É a riqueza

formal ou subjetivamente em sua posse ou uso (distributivamente

obtidos): o gozo. Todos os filósofos muçulmanos ou cristãos praticaram

uma ética material - com elementos formais monológicos, pré-críticos. (EL

126).

67

Contudo, a felicidade somente poderá ser alcançada mediante o bem

comum, segundo o pensamento de Tomás de Aquino, determinando, pois, ao

mesmo tempo, uma ética comunitária.

Por outro lado, essa ética que se pretende universal não supera as

características regionalistas, encerrando-se numa Europa periférica e alijada do

centro, conforme explica Dussel:

Seja como for, o universalismo medieval da cristandade germano-

latina (como antes a do mundo romano-bizantino ou o muçulmano

correspondente) não passa de um particularismo da Europa, secundária e

periférica, que, não obstante, pretendia uma universalidade efetiva. (EL

126).

Conclui-se que, embora no período medieval europeu tenha se

estabelecido uma Ética comunitária, a visão regional impediu a universalização

de seus princípios, tornando-a uma ética tão vitimária quanto à grega.

3.3 - O PERÍODO MODERNO

A crítica de Enrique Dussel ao pensamento moderno envolve análises

detalhadas e profundas das várias teorias que dão suporte às organizações

sociais daquele período, principalmente tendo em vista tratar-se do momento

histórico que marca definitivamente o estabelecimento do sistema-mundo e o

desenvolvimento das sociedades atuais, cujos centros são opressores e

vitimários. É fundamental apresentar as críticas a Descartes, a Kant e a Hegel,

os quais exerceram, papel precípuo na formação da sociedade

contemporânea, no tocante ao suporte intelectual oferecido por eles,

principalmente quanto às idéias de Justiça e de Ética, categorias que se

mostram, ao longo da história, como dois dos pilares que sustentam todas as

sociedades.

14 Dussel destaca a etimologia dos dois termos para justificar a sua preferência pelo uso de dis-

tinto e não de di-ferente, conforme veremos mais adiante.

68

3.3.1 - RENÉ DESCARTES E A MODERNIDADE: DO “EGO CONQUIRO” AO “EGO COGITO”

O início do período Moderno dá-se com a descoberta da América, em

1492, no plano fático. Todavia, o fundamento para a concepção moderna de

mundo começou a ser fixado somente no séc. XVII, século em que a Holanda

era o centro pensante da Europa.

René Descartes é o principal filósofo que marca o início da Modernidade

na Filosofia. Sua preocupação sempre foi a relação do homem com o mundo.

Por isso, as explicações obtidas na escola não lhe foram suficientes. A teoria

aristotélica, tradicionalmente ensinada naquela época, não lhe bastou. Sua

decisão foi dedicar-se a constituir sua própria teoria.

Descartes estabeleceu, em princípio, que para alcançar o fim desejado

com precisão e celeridade, deveria seguir sempre o mesmo caminho “reto”, da

razão, determinando quatro regras para seguir a sua investigação científica:

1 - “Jamais aceitar como verdadeira coisa alguma que eu não

conhecesse à evidência como tal, quer dizer, em evitar, cuidadosamente, a

precipitação e a prevenção, incluindo apenas nos meus juízos aquilo que se

mostrasse de modo tão claro e distinto a meu espírito, que não subsistisse

dúvida alguma”;

2 - “Dividir cada dificuldade a ser examinada em tantas partes quanto

possível e necessário para resolvê-las”;

3 - “Pôr em ordem em meus pensamentos, começando pelos aspectos

mais simples e mais fáceis de serem conhecidos para tingir, paulatinamente, o

conhecimento das coisas complexas, e supondo ainda na ordem entre os que

se precedem normalmente uns aos outros”;

4 - “Fazer para cada caso, enumerações tão exatas e revisões tão gerais

que estivesse certo de não ter esquecido nada”.

Para alcançar seus fins, Descartes não arriscou, jamais, negar todo o

sistema vigente em sua época, principalmente diante do destino que tiveram

muitos que se puseram contra o poder estabelecido, condenados e mortos.

Assim, procurou estabelecer normas de moral provisória para que pudesse

69

continuar vivendo na sociedade e, ao mesmo tempo, construir sua filosofia

tão inovadora. Nesse sentido, estabeleceu três normas:

1 - Obedecer às leis e aos costumes de seu país;

2 - Ser o mais firme e o mais resoluto possível em suas ações e não

seguir menos constantemente do que se fossem muito seguras as opiniões

mais duvidosas, sempre que tivesse decidido a tanto;

3 - Vencer antes a si próprio do que à fortuna e também antes modificar

seus desejos do que a ordem do mundo.

Considerando, sobretudo a primeira regra cartesiana, observa-se a forte

influência do pensamento grego totalizante e egocêntrico, defendendo o sujeito

como constituinte do Ser e concluindo “cogito ergo sum”. Descartes defendeu

ainda, a dualidade do ser humano: res extensa e res cogita. E no tocante à

Ética, embora tenha pretendido construir uma moral definitiva - e, portanto,

universal -, limitou-se a estabelecer uma moral provisória, a qual acabou por se

tornar definitiva. Nada indica, no entanto, que Descartes tenha pensado o latino

americano como sujeito pensante; ao contrário, naquele momento histórico o

sujeito resumia-se ao europeu, pois os outros povos estavam sendo

descobertos e, conforme se depreende considerando a forma como foram

tratados, tidos apenas como coisas úteis ao ser pensante europeu.

Dussel conclui que a realidade fática do ego cogito é que serviu para

fundamentar o ego conquiro concretizado na conquista e exploração,

sobretudo, da América Latina, do que se pode observar que o Outro continuou

sendo excluído do mundo egocêntrico cartesiano, o qual permitiu o suporte

teórico para a injustiça no período moderno.

Para romper com a idéia cartesiana é preciso, portanto, perceber que

embora tenha mudado o eixo do pensamento europeu com o seu novo método,

não se libertou da noção de dualidade do homem, que antes era “corpo” e

“alma” e com Descartes passou a ser “res extensa” e “res cogita”,

respectivamente. Mais uma vez o concreto ficou relegado a um segundo plano,

em privilégio do abstrato, a razão, ou como diriam os gregos, o “lógos”. A

perfeição que para os gregos era estabelecida com o “Ser uno”, em Descartes

passa a ser encontrada em “Deus”, fundamento absoluto de sua tese. O

homem – e sua vida terrena - está num plano de inferioridade, em busca da

70

perfeição, a qual deve ser alcançada mediante o uso da razão, único

instrumento de certeza de que o homem dispõe, segundo Descartes. Assim, a

pergunta que se impõe é: “Quem era o homem cartesiano?” Evidentemente,

considerando a sua tese, no que concerne à vida prática, responde-se

facilmente que era o “europeu”, pois somente ele era considerado “pensante”,

enquanto os povos das novas terras eram tidos como primitivos, sem qualquer

cultura.

O pensamento de Lévinas é de fundamental importância para superação

do pensamento cartesiano, pois somente mudando o termo da idéia de Infinito

para o Outro pode-se romper com a totalidade criada por Descartes e libertar-

se do pensamento eurocêntrico possibilitando, assim, a proposta de uma Ética

que tenha como fundamento principal o Outro e realize a justiça tal qual pensa

Dussel.

3.3.2 – A SEPARAÇÃO ENTRE FORMAL E MATERIAL

EM KANT E SUAS CONSEQUÊNCIAS O segundo momento do período moderno diz respeito à ética kantiana.

Dussel considera a possível unidade entre o material e o formal na Ética

entabulada por Kant como absolutamente necessária para a validez de uma

Ética universal.

Kant admite a dualidade humana, mas estabelece que o princípio ético é

próprio da razão e não dos sentimentos. Daí segue-se que um ato formal

moralmente correto é um ato perfeito, independentemente de seu conteúdo,

pois o aspecto material não se coaduna ao formal. Negou, portanto, Kant, o

aspecto material, sensível, empírico, em favor do juízo abstrato, tendo criado a

moral moderna formal.

A etapa transitória [de Kant] se situa então até 1770, quando de

modo definitivo propõe as hipóteses de uma moral formal moderna,

separando-a da ética material do ‘bem’. (EL 172).

Impera, por isso, despertar desse vazio criado por Kant ao estabelecer

dois mundos para o homem - o racional e o sensível. Dussel defende a

articulação entre esses dois aspectos considerando que o material não se

71

reduz ao corporal, ao sensível, que não deve ser tido como irracional e

negador do homem, mas envolve a vida concreta humana. E mais, que

nenhuma obrigação concreta pode derivar senão de um princípio material,

ainda que não demonstrável.

A conexão entre o formal e o material é imprescindível, o que naquela

época não o admitiu Kant, entretanto, tendo em vista que compreendia material

como o aspecto irracional, sentimental, do homem.

Mas Dussel, atento a essa necessidade, busca uma nova compreensão,

de forma que possibilite essa articulação e de-strua o vazio criado entre a

razão e o sentimento, entre o formal e o material. A solução é estampada ao

compreender o material como a própria vida humana, devendo-se, pois, pensar

o aspecto racional sempre em função da situação histórico-cultural do homem,

isto é, em função da sua vida. Assim, a Ética da Libertação se define como

Ética da vida.

3.3.3 - HEGEL: O FIM DA ALTERIDADE

Depois da proposta moral de Kant, é Hegel quem vai retomá-la com o

objetivo de conferir-lhe validade universal, dentro de seu sistema dialético.

Hegel construiu um sistema filosófico fechado, talvez o último grande

sistema. Está fundado em premissas que sustentam toda a sua teoria. Para

entendê-la, é necessário, pois, compreender seus Princípios de forma a

construir o arcabouço que irá sustentar toda a teoria hegeliana.

Para Hegel, o ponto de sustentação do universo é a idéia, que faz a

passagem da representação abstrata para o conceito claro e concreto através

do acúmulo de determinações, conforme se depreende do seguinte trecho:

A idéia é o conceito pleno, o qual se completa consigo mesmo. Ela

é o conceito que põe a si mesmo cheio de conteúdo, que se dá sua

realidade. Posso muito bem dizer “conceito (ou noção) de alguma coisa”,

mas não posso dizer “idéia de alguma coisa”, porque esta tem seu

conteúdo em si mesma. A idéia é a realidade em sua verdade (HEGEL,

1986, 14).

72

Tudo advém da idéia, que é absoluta e independente. A idéia se

manifesta no mundo, que é originário da própria idéia, por meio da história,

num constante processo de mudanças, o que constitui o processo dialético,

que envolve a tese, antítese e síntese. Assim, esse processo demonstra que

tudo está em constante contradição, vez que “produz-se a contradição por meio

do pensar” (HEGEL, 1986, 16), o que nos remete, forçosamente, a Heráclito,

pois, diz Hegel:

...É importante fazer notar que tais contradições não existem

somente na filosofia, antes, se encontram em toda parte, ocorrem em

todas as representações dos homens. Só que estes não têm consciência

delas. (HEGEL, 1986, 27).

E, considerando que “a realidade está sempre em dependência da idéia,

não existe por si” (HEGEL, 1986, 27) e que o conteúdo da idéia “é seu infinito

relacionar-se consigo mesma, para que ela se determine só desde si mesma”

(HEGEL, 1986, 29), conclui-se obrigatoriamente que o que existe,

efetivamente, segundo Hegel, é o devir, pois o pensamento está sempre em

movimento, e ele é a única verdade. Assim, a identidade estática está afastada

no pensamento de Hegel. O processo demonstra que tudo está em constante

contradição. Por isso contesta a lógica aristotélica, que repele a contradição e

se fundamenta na identidade. Prevalece, portanto, a identidade entre o ideal e

o real e, pois, o princípio da contradição.

Mas a maior gravidade não, contudo, a identificação entre a

subjetividade e o ontológico (pensar e ser). É o fato de que esse pensamento

permitiu a perpetuação da subjetividade européia de conquista e dominação

dos não-europeus imposta desde o séc. XV e, portanto, a continuidade de

exploração das novas nações americanas.

O ser é a razão européia, o não-ser são os outros humanos. A

América Latina e toda a “periferia” ficam, por isso, definidas como o puro

futuro, como o não-ser, como o irracional, o bárbaro o inexistente.

(FL124).

Assim, o pensamento hegeliano fundamenta, mais uma vez a

exploração da periferia, porquanto elimina todo e qualquer resquício de

alteridade, vez que ao afirmar a identidade entre o real e o ideal, também

73

estabelece, forçosamente, a identidade entre sujeito e objeto. E o que havia,

a periferia sendo tratada como objeto de exploração, com Hegel deixa de ser

objeto para ser considerada mesmo apenas parte do sujeito explorador. A partir

de então, tendo-se em mente a sua noção de história mundial, a Europa ficou

legitimada para fazer o que bem entender com os demais povos. Em vista

disso, escreve Dussel:

À diferença dos filósofos pré-modernos, Hegel tem clara

consciência da história mundial, mas a interpreta eurocentricamente (a

pretensa universalidade não é mais que a imposição dominadora da

particularidade européia; trata-se de uma péssima solução do

universalismo material em ética). (EL 127).

3.4 – O FIM DO HOMEM: UMA DISTINÇÃO RADICAL ENTRE HEIDEGGER E DUSSEL Heidegger exerceu influências marcantes na filosofia dusseliana e a

superação do pensamento heideggeriano, somente se deu após o contato com

a filosofia de Lévinas. Encontra-se, ainda assim, uma grande proximidade entre

Dussel e Heidegger no tocante à conceituação de homem. Contudo, há uma

distinção radical que deve ser destacada. Para isso, é imperioso que sejam

mostrados preliminarmente alguns aspectos fundamentais do pensamento de

Martin Heidegger para, em seguida, demonstrar a superação encetada por

Enrique Dussel.

3.4.1 – O SER

Para Heidegger, a filosofia perdeu-se ao longo dos séculos em questões

que não pertencem propriamente ao seu fundamento. É preciso resgatar as

teorias dos filósofos pré-socráticos, os filósofos da natureza, vez que eles

foram os primeiros e mais profundos perquiridores do Ser, objeto fundamental

da filosofia. Nesse sentido, temos:

No que se refere à posição grega a respeito da compreensão do

ser, não só veio-se formando o dogma de uma pretensa essencialidade

74

do problema do sentido do ser como também foi sancionado o seu

esquecimento. O conceito de ser é o mais universal e vazio de todos e,

como tal, contrário a qualquer tentativa de definição; enquanto universal e,

portanto, indefinível, nem chega a ter necessidade de definição. Todos o

usam continuamente e compreendem o que ele significa. (Heidegger, Ser

e Tempo).

Consoante o entendimento de Heidegger, impende Ter-se em mente a

compreensão do que é Ser. Essa compreensão, que parece fácil, de fato, tem

trazido muitas discussões acadêmicas, pois a forma peculiar com que

Heidegger aborda o problema quase não permite uma conceituação fechada.

Para ele, Ser é “presença-ausência”, é “des-velamento e velamento”, é

“essência”, é “quididade”. Seu des-velamento ocorre no que podemos traduzir

como “clareira”, “luz”.

Para explicar o Ser, Heidegger retoma, fundamentalmente a teoria de

Parmênides: “O Ser é uno”. “O mesmo é pensar e ser”.

Para Heidegger, Ser é “estamento”, isto é, é aquilo que está, que é, que

existe. Daí, a preocupação da metafísica deve ser com o “estar no mundo”, e,

mais precisamente, com o “estar do homem-no-mundo”.

Está aí, portanto, o problema ontológico proposto por Heidegger. A

maneira de o homem se encontrar no centro da procura é inteiramente ditada

pela pergunta: “Que é Ser?”

Para tratar a questão, é preciso fazer a distinção entre ente e Ser. O

ente recobre todos os objetos, todas as pessoas, todas as coisas, enfim. O Ser,

mesmo sendo o que faz com que todos sejam, não se identifica com nenhum

objeto particular, nem com a idéia geral de todos. Curiosamente, não se pode

afirmar que o Ser “é”, pois se assim fosse, seria um ente e não é o caso.

Mas nós chamamos “ente” a muitas coisas e em sentidos diferentes.

Ente é tudo aquilo de que falamos, tudo aquilo a que, de um ou de outro modo,

nós nos referimos; é também o que nós somos e como o somos (...) Qual é o

ente do qual poderemos extrair o sentido de ser? Qual é o ente no qual deve

ter início a abertura do ser? O ponto de partida é indiferente ou existe um ente

que pode reivindicar a primazia? (Heidegger, Ser e Tempo).

75

Na filosofia tradicional, como lembra Lévinas, é comum a ligação, a

conexão entre Ser do ente e o próprio ente, o que leva, geralmente, a ter-se o

Ser como Deus, ou como Ser absoluto. Para Heidegger, não é assim. O Ser é

o objeto da ontologia, enquanto o ente é o das ciências ônticas.

A grande questão, então, para Heidegger, é compreender o Ser, e, para

isso, é preciso alguém que tenha essa capacidade. Em seu entendimento, o

homem é o único ente capaz de compreender o Ser.

3.4.2 – O HOMEM O homem, segundo Heidegger, é o ente a quem cabe “des-velar” o Ser,

que se pergunta acerca do sentido de Ser “e esse ente, que nós mesmos já

somos sempre e tem, entre as outras possibilidades de ser, de buscar, nós o

indicamos com o termo Ser-aí (Dasein)” (Heidegger, Ser e Tempo).

É importante ressaltar que o homem não apenas existe, ele co-existe,

razão pela qual toda ação pressupõe uma convivência. Nesse sentido cabe

ressalvar, está a ética como fundamento prático de sua metafísica, pois o ser-

aí-no-mundo é responsável por si e pelos demais entes no mundo, vale dizer,

pelo próprio mundo.

Mas, se o homem é quem questiona o sentido de ser, também é aquele

que não se deixa reduzir à objetivação do Ser. Todos os objetos são redutíveis,

mas o homem não. Ele não é simples-presença. Ele é o fim para que todo o

mundo existe.

O homem é o “pastor” do Ser, como dizia Heidegger. Para compreender

o Ser, então, é necessário compreender o homem.

Este ente se caracteriza pelo fato de que, através do seu ser, o

próprio ser lhe está aberto. A compreensão do ser é, ao mesmo tempo,

uma determinação do ser do homem. (Heidegger, Ser e Tempo).

E, para isso, é fundamental colocar-se em suspensão todo o

conhecimento que já se tem a seu respeito dado pelas demais ciências. É

preciso realizar a époché de todas essas informações, como ensina Husserl.

76

A compreensão do homem deve partir, portanto, de sua manifestação

tal qual ele é. Compreender o homem é compreender a sua maneira de ser-aí,

o seu modo existencial.

A primeira constatação é que o homem é ser-no-mundo.

Esse ser-no-mundo é um constante transformar-se em algo novo. E

esse algo novo é o futuro. O homem, conclui-se, secundado por Heidegger, é o

único ente que existe, que se pro-jeta no futuro, vez que sua existência

presente está sempre em função do futuro, do que ainda não é. Essa

existência é sua essência.

Como se depreende do exposto, o homem existe no tempo. E esse é o

terceiro aspecto existencial do homem. Ele é o único que é passado, presente

e futuro. “A temporalidade torna possível a unidade de existência, ser de fato e

ser decaído, e por isso, ela constitui originariamente a totalidade das estruturas

do homem” (Heidegger, Ser e Tempo). Essa categoria temporal corresponde,

no campo do conhecimento, ao sentir, entender e discorrer.

Enfim, no tocante à existência humana, Heidegger entende que a vida

inautêntica é aquela ligada ao ser-no-mundo, isto é, aquela limitada à relações

materiais, servindo-se do mundo e pensando mundo em função apenas dessa

relação.

A vida autêntica, ao contrário, é aquela voltada para a existência, ou

seja, voltada para os projetos existenciais. E aí também está a morte, o quarto

aspecto existencial, é a última possibilidade e ao mesmo tempo a mais

presente.

3.4.3 – O AFASTAMENTO DE DUSSEL DO PENSAMENTO HEIDEGGERIANO

Dussel, a partir do pensamento de Heidegger, chega à conclusão de que

a melhor escolha do homem é aquela voltada para a realização do projeto do

outro.

O pensamento filosófico ocidental está embasado, desde os gregos

antigos, na concepção totalitária de logos, o que se constituiu num dos

principais fatores que levaram ao fechamento dos sistemas organizacionais da

77

sociedade, desde a pólis grega até o Estado moderno. No decorrer dos

séculos, conquanto alguns sistemas hajam sido mais herméticos e outros não,

a tônica sempre foi a separação e classificação dos seres humanos consoante

sua condição de pertença ou não a determinado grupo social. Assim foram os

gregos que enalteciam apenas os homens gregos adultos, varões e livres, e

posteriormente, até os dias de hoje, a norma sempre foi a solidificação das

camadas sociais internas e a discriminação dos estrangeiros em geral.

Verifica-se ao longo dos séculos o constante individualismo, que se

transferiu, com o passar do tempo, do homem para o Estado, em detrimento do

Outro. Diante desse comportamento totalitário, tornaram-se cada vez mais

acentuadas as diferenças entre os homens, levando, então, à exclusão dos

menos favorecidos sócio, econômico e politicamente.

Contra essa mesmidade totalitária dos sistemas, Enrique Dussel põe-se

na defesa do outro, principalmente o excluído, e busca um caminho alternativo

a essa rota assassina da alteridade. Vale-se, dentre tantos outros filósofos,

destacadamente de Martin Heidegger, a quem enaltece por haver centrado seu

pensamento na necessidade de abertura para um âmbito possibilitador da

ultrapassagem dos limites ontológicos mundanos. Mas, consciente de seu

papel de filósofo, apresenta um caminho próprio, fundado na realidade latino-

americana, como, aliás, ressalta no seguinte parágrafo:

Veremos como para Heidegger era necessário tentar ir além do

horizonte ontológico do mundo, tal como tinha sido expresso em Ser e

Tempo, para abrir-se a um novo âmbito, onde será necessário também

um método mais radical e uma nova linguagem. Queremos deter-nos

agora mais demoradamente na questão e descobrir nela a intenção

concreta desse movimento do penar heideggeriano, para tentar uma

resposta que o supere, abarcando-o, realizando sua vocação entrevista,

mas jamais expressa. (ELL I 94).

Explica Dussel que, para Heidegger, o âmbito é o centro “onde a

essência do ser e a essência do homem se com-implicam” (ELL I 95). E a

superação do horizonte compreende o além dos aspectos cotidianos da vida

humana, uma autêntica “abertura diante do mistério” (ELL I 95), o que já

direciona para fora da circularidade hegeliana, vez que fica estabelecido um

78

além-de, que significa, necessariamente, rompimento dessa circularidade.

Outro ponto fundamental é a distinção entre o mesmo e o igual, pois, explica,

secundado por Heidegger, que o mesmo admite diferenças, enquanto o igual

não as admite.

A partir dessa concepção, já se pode notar que deve ser estabelecido o

diálogo e não apenas ficar restrito no monólogo, porquanto ainda que mesmo,

os dis-tintos se mostram e exigem, desde ontologicamente, no momento de

encontro no âmbito, que sejam ouvidos. A dialética está, portanto, presente,

mas não monologicamente, e, sim, dialogicamente. Assim, instaurada a dis-

tinção, restam duas opções: a separação ou a conversão. A primeira leva à

exclusão, ao passo que a segunda, à solidariedade, conforme expõe Dussel:

“O mesmo” e “o Outro” dis-tintos podem, por sua parte, em seu

curso paralelo (diverso), advertir-se como si mesmos, e retraindo-se sobre

si, afastar-se ou fugir do Outro (a-versio), ou, pelo contrário, mudar-se,

trans-duzir-se ou convergir para o Outro, na solidariedade ou circularidade

aberta do movimento do diálogo (cum ou circum-versio). (ELL I 98).

O pensamento dialético heideggeriano é suficiente para levar ao

horizonte do mundo, ao ponto de acesso ao ser, formando, entretanto, uma

totalidade. Dentro dessa totalidade é que se dão os movimentos dialéticos, os

quais são, todavia, sempre “o mesmo”; as diferenças evidenciadas numa

totalidade são apenas di-ferenças e não dis-tinções:

A palavra portuguesa “di-ferença” nos remete à latina composta

de dis-(partícula com a significação de divisão ou negação) e ao verbo

ferre (levar com violência, arrastar). O diferente é o arrastado desde a

identidade, in-diferença originária ou unidade até a dualidade. A di-

ferença supõe a unidade: o Mesmo. Ao passo que o dis-tinto (de dis-, e

do verbo tinguere: pintar, por tintura), indica melhor a diversidade e não

supõe uma unidade prévia: é o separado, não necessariamente

procedente da identidade que como Totalidade os compreende. (ELL I

97-98).

Por conseguinte, surgem duas situações bem claras: o outro

considerado como di-ferente e o outro considerado como dis-tinto. Ao primeiro,

79

pensamos, cabe o papel de se conformar na totalidade em que está inserido;

ao segundo, o papel de interferir nessa totalidade a que é exterior.

O mesmo, portanto, encerra a idéia de circularidade fechada, tal como

pensava Hegel. A Ética, nesse sentido é como se não existisse, posto valer

apenas a ordem natural ou divina ou histórica.

O entendimento de Dussel, coadunando-se a Heidegger, é de que em “o

mesmo”, o ente traz em si a “vontade de poder” e o “eterno retorno do mesmo”;

o primeiro aspecto diz respeito à sua própria constituição, enquanto o segundo

refere-se ao seu modo de ser, conforme escreve:

A Vontade de Poder como a constituição do ser, e este mesmo no

modo de eterno retorno do mesmo, é a moderna expressão da relação

homem-ser que desde sempre está na base de toda metafísica. (ELL I

94).

Dussel entende, também, como Heidegger, que é preciso ir além desse

horizonte de “o mesmo”. Contudo, Heidegger entende que a atitude diante do

âmbito é a serenidade, a contemplação, o deixar-ser:

Dessa forma, só tendo-nos libertado (Gelassennsein) do horizonte

mundano como totalidade última, e que podemos simplesmente esperar.

“De nossa experiência do esperar, do esperar que se abra por si mesmo

(schoeffnen) o âmbito, e na relação a uma tal espera, designamos a

espera com a palavra gelassenheit (serenidade)”. (ELL I 95).

Essa conclusão resulta da concepção de que o Ser e o ente se dão a

partir de “o mesmo”, e, pois, são di-ferentes, mas conciliatórios no “âmbito

trans-ontológico de espera” e na “abertura do ente ao mistério” (ELL I 97).

Nesse momento, a discussão ganha novo contorno, porquanto Dussel

discorda da idéida de Heidegger quanto à atitude de “espera”, bem como de

que esse “âmbito” seja o final desse movimento dialético. É que para ele, esse

movimento dialético entre “o mesmo” e “o outro” tido para Heidegger como di-

ferente, deve ser considerado no outro sentido, de dialético dialógico, em que o

outro seja tido como dis-tinto, pois somente assim poderá ser instaurado o

diálogo originário entre “o mesmo” e “o outro”, numa condição de alteridade

autêntica e, por conseqüência, numa atitude de con-versão ou de a-versão ao

Outro. Este é o ponto crucial da Ética dusseliana, vez que somente essa con-

80

versão propiciará uma conduta ética que tenha como fundo o respeito à vida

do outro.

3.5 - A CRISE DA MODERNIDADE E O

PROBLEMA DAS ÉTICAS CONTEMPORÂNEAS Transcorridos cinco séculos, a Modernidade, guiada, dentre outros, pelo

paradigma de Descartes, encontra-se em profunda crise. A forma idealizada e

praticada desde a Grécia Antiga, passando pelos modelos medieval e moderno

está em seu limite.

Para Dussel, são dois os limites que marcam o fim desse sistema:

1 - o aniquilamento do planeta, do ponto de vista ecológico e

2 - o aniquilamento da própria humanidade, do ponto de vista

antropológico.

O planeta está sendo destruído cada vez mais rapidamente, existindo

estudos científicos que apontam para o esgotamento dos recursos naturais e

das condições de vida em um futuro não muito distante.

O quadro se desenhou mais acentuadamente em virtude do ideal

moderno de acumulação de riquezas e exploração dos recursos

indiscriminadamente. A natureza nesse longo período constituiu-se apenas

como fonte de matéria-prima ou meio de produção. Nunca houve uma

preocupação efetiva com a manutenção do habitat natural do homem,

principalmente no que diz respeito às nações mais poderosas.

O final do presente estágio civilizatório se deixa ver no presente em

dois limites absolutos ‘sistema dos 500 anos’ – como o chama Noam

Chomsky. Estes limites absolutos são: a) Em primeiro lugar a destruição

ecológica do planeta. Desde sua origem a modernidade constituiu a

natureza como u objeto ‘explorável’ com vistas a aumentar o lucro do

capital. (EL 65).

Já não se detecta facilmente a autonomia que lhe devia ser inerente. O

domínio de uma minoria privilegiada sobre a maioria vitimada pelo processo de

acumulação de riquezas tem provocado o aumento da miséria das maiorias

tanto quanto da riqueza dessas minorias. Essa é a conseqüência do sistema

81

produtivo desenvolvido desde o início do sistema-mundo, totalitário e

excludente.

O segundo limite absoluto da modernidade é a destruição da

própria humanidade. O ‘trabalho vivo’ é a outra mediação essencial do

capital como tal; o sujeito humano é o único que pode ‘criar’ novo valor. O

capital, que vence todas as barreiras, põe cada vez mais tempo absoluto

de trabalho ... diminui a proporção do trabalho humano; há assim

humanidade sobrante (desprezada, desempregada, excluída) ... É a

pobreza, a pobreza como limite absoluto do capital. Hoje constatamos

como a miséria cresce em todo o planeta. Trata-se da ‘lei da

modernidade’. (EL 66).

Como se pode ver, não há possibilidade, a continuar nesse caminho, de

se estabelecer uma situação de justiça em qualquer de suas concepções e

ainda menos na de Enrique Dussel, que pretende o atendimento prioritário das

necessidades das vítimas excluídas por esse processo capitalista.

Com sua nova concepção - mundial - Dussel pretende, então,

estabelecer uma Ética de conteúdo material universal, livre do reducionismo

praticado por Weber e outros. Sob essa ótica, Dussel deixa de considerar a

Europa como autônoma e autora dos valores universais para considerá-la

apenas parte do sistema que se formou desde o séc. XV.

Somente assim a periferia, que vem sendo vitimada desde muito tempo,

poderá ter condições dignas de vida, passando a integrar uma sociedade ética

e, portanto, justa.

Diante dessa situação, o questionamento do sistema é inevitável. Nesse

panorama surgiram as filosofias do séc. XX, as quais pretendem uma saída

para o sistema, mas sempre, salvo raras exceções, do ponto de vista euro-

norte-americano.

De um lado estão os filósofos que analisam a questão do ponto de vista

eurocentrista, e se dividem em duas alternativas. Uns defendem a realização

total do sistema. Outros são críticos radicais e mesmo adotando um discurso

dentro dos limites postos não acreditam na viabilidade do sistema, negando-o

inteiramente.

De outro lado está a Filosofia da Libertação, fundada a partir da periferia

e não do eurocentrismo, e pretendendo a reestruturação do sistema vigente

82

com o fim da dominação e vitimação que se impõe no sistema-mundo atual.

A Filosofia da Libertação põe-se em defesa das imensas maiorias vitimadas

pelo sistema, apresentando uma proposta de superação da razão vitimária,

desde a Erótica, a Pedagógica, a Política e a Econômica até a Ecologia,

estabelecendo-se desde a negação da origem da Modernidade.

Dussel procede à de-struição das teses enquadradas no primeiro grupo,

isto é, dos eurocentristas, ainda que ressaltando a importância e as

proximidades com a própria Filosofia da Libertação, abordando desde os

autores de éticas formais até os pensadores de ética materiais, demonstrando

como a Ética Formal não coloca a vida humana no vértice principal e por isso

permite a vitimação, bem como indicando porque as éticas materiais, quando

pensadas a partir da visão eurocêntrica, também acabam por possibilitar as

injustiças do gerenciamento da periferia pelo centro. Por isso, o caminho

apontado por Dussel é no sentido de fundação de uma ética material a partir da

periferia, livre da visão eurocentrista, constituindo a única alternativa possível

para a realização de uma justiça que prime pelo atendimento às necessidades

do pobre excluído e vitimado pelo sistema vigente, colocando o princípio

fundamental no surgimento, reprodução e desenvolvimento da vida humana,

não apenas em seu sentido físico, mas em todas as suas plenitudes.

3.5.1 - TAYLOR E O PROBLEMA DA JUSTIÇA

Dentre os que negam radicalmente o sistema, encontra-se Charles R.

Taylor, canadense, o qual pretende redesenhar a identidade moderna, mas

incorre no equívoco de se fundar nas teses eurocentristas e, por conseqüência,

delas não se livra. Dussel ressalta a natureza de sua crítica a Taylor:

Na verdade, o que desejamos foi mostrar, metodicamente, a

maneira como Taylor tenta realizar sua análise histórica do

desenvolvimento da identidade moderna levando em conta as fontes do

Eu. Para esse empreendimento, ele conta, quase que exclusivamente,

com obras de filósofos (Platão, Agostinho, Descartes, Locke...)

repensados a partir de seus próprios discursos... É essa limitação

metodológica que mais tarde irá impedir que o autor alcance resultados

mais críticos. (CIE 81).

83

Assim, Taylor permanece mergulhado na filosofia pré-existente e não

encontra o meio de libertar-se. Percorrendo a história da filosofia desde Platão

até Descartes e deste até Hegel, ele parte do helenocentrismo e chega ao

eurocentrismo.

O problema avistado tem sua origem desde o seu ponto de partida –

Platão – ou a filosofia grega. Já vimos o quão totalitária era aquele sistema e

porque não pode ser tomado como ponto de apoio único para o pensar

filosófico.

Uma segunda observação servirá para ressaltar que Taylor toma

Platão como ponto de partia para a sua reconstrução da identidade

moderna. Com isso, ele está renovando uma ampla e longe tradição da

filosofia ocidental_ a de aproveitar os gregos não apenas como ponto de

partida para o método filosófico, mas também como exemplo privilegiado

para a análise dos conteúdos concretos da nossa própria cultura. Trata-se

de um helenocentrismo de graves conseqüências. (CIE 81).

Deve ser destacado o fato de Taylor não ter recorrido a fontes fora do

âmbito filosófico tradicional, ignorando, por exemplo, o Livro dos Mortos ou

mesmo o Código de Hamurabi, aos quais, aliás, já nos referimos nessa

dissertação e tocam muito mais de perto a qualquer pessoa de qualquer região

do planeta do que as teses gregas, vez que tratam de questões afeitas

diretamente à vida terrena, à práxis cotidiana do homem.

O propósito de Taylor, de expor a crise de identidade do “Eu” moderno e

encontrar uma solução horizonte concreto em seu comportamento voltado para

o bem é exaltado por Dussel.

Na década de 60 tive a intenção de descrever os ‘conteúdos

materiais’ da cultura latino-americana. Por razões metodológicas este

projeto se transformou em uma descrição ‘histórica’ – de maneira análoga

à que foi tentada por Taylor. É por isso que tenho extrema simpatia pelo

de projeto de Taylor. (CIE 80).

Assim, tanto quanto Dussel, Taylor pretende resgatar a positividade da

vida concreta voltada para o bem. No entanto, seu percurso o leva a aderir a

Hegel, excluindo da questão toda a periferia, inclusive a América Latina.

Taylor prevê a necessidade de se resgatar a identidade do “Eu”,

admitindo mesmo a oposição às leis vigentes. Todavia, pensa nos povos

84

excluídos como parte integrante da totalidade estabelecida, o que vai

diametralmente contra a posição de Enrique Dussel, que parte da alteridade

enquanto exterioridade.

Tudo isso permite a Taylor fazer uma bela descrição de

autenticidade como sendo o direito á criação, à descoberta, à

originalidade e à oposição ás regras da sociedade ... Na Filosofia da

Libertação, todos esses temas não são afirmados a partir da

‘autenticidade’ atomizante, mas a partir do direito à dignidade, negado ás

pessoas de comunidades majoritárias da humanidade, ás classes

oprimidas, à mulher oprimida pelo machismo à criança sem direitos

perante a cultura adulta etc. É algo mais profundo, mais importante

eticamente... (CIE106)

Em Taylor não há a compreensão do Outro enquanto Outro exterior,

mas, ao contrário, dentro da mesma totalidade dominante, ressaltando-se que

a dominação injusta é tida apenas como fator histórico dentro da concepção

desenvolvimentista eurocêntrica e, pois, perfeitamente aceitável e natural. Por

isso, seguindo o seu pensamento não há como viabilizar a realização de

Justiça nos termos dusselianos.

O projeto de Libertação dos oprimidos e dos excluídos é aberto,

partindo da exclusão do Outro e indo mais além de qualquer situação

apresentada. A estruturação de alternativas não consiste na ‘aplicação’ de

algum modelo ou situação ideal ou transcendental, nem tampouco na

execução autêntica de um determinado’mundo da vida’ ... mas deverá ser

uma’des-coberta’ responsável, como resposta à ‘interpelação’ do Outro...

(CIE120).

3.5.2 – COMO A NEGAÇÃO DA RAZÃO EM RORTY LEVA À PERPETUAÇÃO DA INJUSTIÇA

Outro pensador contemporâneo cuja teoria se aproxima da Filosofia da

Libertação, mas não pode se confundir com ela é Richard Rorty. A negação do

sistema mais uma vez é a tônica, mas não do mesmo ponto de vista. Rorty

parte do sofrimento, mas tendo em consideração apenas o eixo central do

sistema, Europa-EUA. E essa opção o coloca ao lado dos pensadores

85

inseridos na totalidade, embora negue, como veremos, a validade do sistema

vigente.

Rorty admite mesmo que os povos excluídos não devem ser

considerados apenas como “seres humanos”, posto que essa expressão não

os designa dignamente, adequadamente e suficientemente. E contempla a

possibilidade de esses povos virem a integrar o “Nós” que se manifesta no eixo

central (Europa-EUA). Contudo, deve ser ressaltado o fato de que essa

inclusão para Rorty é “contingente e histórica”.

No máximo, o que Rorty consegue é apontar para uma

solidariedade ad intra, mas nunca ad extra desse ‘we-intentions’ ... Até

mesmo o ‘negro’ é considerado como ‘um dos nossos: um norte-

americano’ ... É possível estender a um povo antes designado como ‘eles’

esse horizonte, antes mencionado, do ‘Nós’: será acontecimento

contingente e histórico. (CIE 142).

E, finalmente, deve ser trazida a questão da razão. Dussel concorda

com Rorty quando afirma que as regras não devem ser obedecidas quando

houver uma situação de exploração. O real e o universo moral dos dominantes

não pode valer para as vítimas excluídas desse sistema. Mas Rorty defende

que a solução é a negação completa da razão e coloca a imaginação como a

faculdade humana central, vez que entende a razão como fundada e limitada à

totalidade vigente. Evidentemente Dussel não pode concordar com essa

posição, pois pensa uma razão presente e fundada na exterioridade, na

periferia. Uma é a razão manifesta, vigente na totalidade, outra é a razão

mesma (racionalidade), própria de todo homem, a qual pode se verificar tanto

na totalidade quanto na exterioridade. Por isso, deve-se negar sim a razão

modelada na totalidade, mas não a razão por ela mesma.

É toda aquela questão que, na filosofia da Libertação, nós

enquadramos sob o tema da ‘Totalidade-Exterioridade’. Por isso, penso

eu, Rorty está extrapolando os limites da crítica ao rejeitar toda razão

possível ou todo senso de realidade. Os ‘limites de seu universo moral’,

suas ‘razões’ ou as suas descrições ‘do real’ não poderão ser confundidas

com o ético, com o racional, nem com a realidade em seu sentido crítico...

(CIE 145).

86

É importante lembrar que ao negar a validade da razão, Rorty exclui a

própria filosofia como instrumento de descoberta do Outro.

Ocorre, todavia, que a arma fundamental para o fim da vitimação é a

própria Filosofia. Se não pela consciência crítica autônoma, por qual caminho

poderia haver a libertação d homem e o conseqüente estabelecimento de uma

situação justa entre todos? Não há como seguir o pensamento de Rorty

sobretudo por esse aspecto, pois levaria a perpetuar a injustiça vitimária contra

a qual luta Enrique Dussel.

Diga-se de passagem que é esse mesmo discurso filosófico que

nos arrebata esta arma da nossa libertação. (CIE 137).

3.5.3 – A IMPOSSIBILIDADE DO CONTRADISCURSO DA

PERIFERIA NA TEORIA DE HABERMAS Dentre os filósofos que defendem a realização do sistema vigente,

encontra-se notadamente Habermas, encerando-se num discurso eurocentrista

ao admitir que o contradiscurso à razão centrada no sujeito é uma

manifestação “imanente à modernidade”. Assim como outros pensaram a

modernidade como um fenômeno tipicamente europeu, Habermas vê o

contradiscurso a essa modernidade a partir do próprio sistema. Talvez, se

observasse com olhar mais liberto, visse que o contradiscurso ao sistema

moderno iniciou-se desde 1500, quando os primeiros europeus chegaram à

Ameríndia, tal como o de Antonio de Montesinos, como lembra Dussel, que

atacou a injustiça que se fazia com o índio e dali chegou às aulas de

Salamanca e não apenas com Kant.

Habermas situa no tempo o começo desse ‘contradiscurso’: trata-

se de Kant. Ora, num-a história com perspectiva mundial, numa visão não

eurocêntrica da modernidade, esse contradiscurso vai fazer cinco séculos:

começou na ilha Hispaniola quando Antonio de Montesinos atacou a

injustiça que se fazia com o índio e dali chegou às aulas de Salamanca ...

nas lições unviersitárias de Francisco de Vitória sobre De indis. (EL 70).

Para pensar o contradiscurso como imanente à modernidade, Dussel

considera que esta deveria ser admitida como manifestação mundial, incluindo

a alteridade da periferia exterior ao centro europeu e não como objeto de

87

domínio e exploração. Mas não é o que ocorre no pensamento de

Habermas, o qual entende a modernidade como tipicamente européia, fazendo

com que a periferia não tenha qualquer caráter de autonomia pensante e não

se reconheça qualquer manifestação teórica sem que seja referendada pelo

centro. Assim o discurso da periferia esbarrará sempre nas teses européias ou

norte-americanas e não terá como mostrar a contradição desse sistema, posto

que deverá valer-se dos fundamentos preceituados pelos dominantes.

De fato, ao se definir a modernidade exclusivamente a partir do

horizonte europeu, pretende-se que o dito ‘contradiscurso’ também seja

um fruto exlusivo da Europa. Desta maneira, a própria periferia, para

criticar a Europa, dever-se-ia europeizar, porque deveria usar um

contradiscurso europeu para mostrar à Europa a sua contradição, sem

poder, mais uma vez, trazer nada de novo, devendo negar-se a si mesma.

(EL 71).

Torna-se, portanto, inviável qualquer contradiscurso livre, autêntico,

porquanto a verdade estará sempre com o centro. Nenhum reclamo por justiça

será ouvido se não estiver dentro dos preceitos estatuídos pela lei ditada pelo

centro. O contradiscurso à modernidade só pode vir de fora. É da periferia tida

como exterioridade que pode brotar esse movimento.

É bem possível que seja fora da Europa o lugar onde esse

contradiscurso pode ser desenvolvido de maneira mais crítica, e não

como continuação de um discurso estranho ou exclusivamente europeu,

mas como continuação de uma atividade crítica que a periferia já deixou

estampada no contradiscurso produzido na Europa e em seu próprio

discurso periférico, que se constrói com o periférico ou dominado no

sistema-mundo e desde a afirmação da exterioridade do excluído. (EL

72).

Não obstante, Habermas pretende estabelecer seu contradiscurso desde

a Europa. Assim, naquela que Dussel denomina como primeira fase, Habermas

funda sua crítica à razão instrumental, objeto próximo à Filosofia da Libertação

e poderia também levá-lo a um contradiscurso livre. Porém, isso não acontece.

E o maior problema, segundo Dussel, é sua interpretação da tese marxista

acerca do “critério material universal de vida do sujeito humano”. Critério esse

que Dussel adotará como um de seus fundamentos para a Ética da Libertação,

88

uma Ética da vida humana. Habermas compreende o aspecto material na

tese de Marx apenas como trabalho, sobrevivência. Todavia, a idéia marxista

vai muito além, pois refere-se precisamente ao princípio ético universal de

surgimento, reprodução e manutenção da vida humana.

Aqui podemos considerar que, para Habermas, o aspecto material

(com ‘a’) em Marx só consiste no trabalho, na sobrevivência físico-animal

(com ‘e’), e não tem em vista o princípio ético universal de reprodução ou

desenvolvimento da vida do sujeito humano, que Marx sempre tem como

horizonte de sua economia política ... Penso que Habermas não suspeita

da importância do texto que ele mesmo cita e que nesta Ética da

Libertação se transforma em uma tese fundamental. (EL 192).

Em conseqüência da negação do critério material, Habermas limita-se

apenas ao aspecto formal, enquanto Dussel tem como foco central o aspecto

material.

A partir da divergência de fundo, não há como a filosofia dusseliana

caminhar com Habermas. Centrando-se no formal, Habermas reduz seu

discurso ao interior da totalidade, posto que se limita a analisar as relações

entre as regras vigentes e a legitimação do comportamento humano diante

delas. Deste modo, fica impedido teoricamente de libertar-se das âncoras do

sistema vigente e embora pense nas vítimas das injustiças praticadas contra os

mais pobres, não consegue propor uma tese que solucione a questão.

Habermas colocou alguns dos temas que ocupam a Ética da

Libertação. A única diferença é que, sendo a Ética do Discurso

meramente formal, não tem como entrar em um debate racional-filosófico

do conteúdo. Habermas, então tem consciência dos problemas e da

impossibilidade de abordá-los, porque a função moral procedimental

articulada a uma ética matéria é a de aplicar os conteúdos e, se

previamente os eliminou, como no caso da Ética do Discurso, fica como

uma lógica vazia. (EL 200).

Destarte, também a Ética de Habermas não atende aos princípios da

Ética da Libertação e não enseja a realização de uma justiça tal como

preconizada por Dussel, vez que admitindo o pensamento de Habermas a voz

do Outro só seria ouvida se estivesse conforme à normas da totalidade, e

89

essas normas implicam em miséria e fome de muitos como condição

necessária para o “desenvolvimento” de poucos.

3.5.4 – O ENSEJO À INJUSTIÇA NA TESE DE KARL-

OTTO APEL Karl-Otto Apel propõe uma ética discursiva, com suporte de fundo na

pragmática da linguagem, na tentativa de estabelecer o consenso entre o

verdadeiro e o correto.

Uma de suas preocupações centrais é com o procedimentalismo, que

diz respeito às relações entre a ética discursiva e a práxis. Seu ponto de apoio

é a diferenciação estabelecida por Kant entre entendimento e razão. Com esse

parâmetro, Apel faz a distinção dentre os vários tipos de racionalidade e propõe

uma fundamentação última da ética.

Apel viveu o tempo da transformação social. Passou pela 2ª Guerra

tendo sido voluntário no exército nazista, inclusive. Um de seus primeiros

estudos foi exatamente sobre Heidegger, cuja polêmica envolvendo sua

relação com o nazismo ainda aquece muitos debates. Seu contato com a

filosofia da linguagem deu-se um pouco mais tarde, nos 50 e 60, e desde então

encontrou um posicionamento filosófico praticamente definitivo.

Nesse trabalho são destacados os aspectos principais considerados

necessários para compreensão da crítica de Dussel a Apel, centrando a

atenção para os fatores que impedem Apel de pensar uma ética material

fundamental e o coloca no quadro dos formalistas e, portanto, torna seu

pensamento incompatível com a Filosofia da Libertação.

O primeiro aspecto a ser destacado é a compreensão reducionista de

Apel sobre a ética de conteúdo, isto é, material.

Apel interpreta redutivamente o âmbito material (de conteúdo) da

ética exclusivamente como sendo apenas um horizonte cultural, particular

ou meramente ontológico – como condição de possibilidade. Não percebe

que todas as culturas, também a moderna pós-convencional, são modos

concretos de organizar historicamente (sem porém nunca esgota) a

‘reprodução e desenvolvimento da vida de cada sujeito humano em

comunidade. (EL 184).

90

Desse modo, Apel não percebe que há várias culturas, e portanto

vários modos ético-práticos. O princípio material universal da ética diz respeito

a todas as culturas naquilo que elas têm de universal. No entanto, em face da

redução operada, Apel detém-se na dimensão formal da Ética, pensando ser

essa a única forma de obter um princípio universal.

O princípio material ou de conteúdo universal da ética, assim como

o definimos, constitui todas as culturas por dentro a partir de sua

universalidade [...] Diante de uma interpretação redutiva do princípio

material não resta outra possibilidade à universalidade prática senão a

sua dimensão deôntica, formal e vazia – caso se pretenda partir de ‘único

princípio. (EL184-5).

Assim Apel se vê diante da questão de como tornar aplicável a ética

formal ao plano conreto da vida humana. Notadamente percebe a necessidade

de uma mediação, isto é, de algo que indique a aplicabilidade da norma

abstrata ao caso conreto. Para ele, a “auto-reflexão” é o único caminho, ou

seja, estabelece uma ética de responsabilidade como âncora de sua filosofia.

Descartado o âmbito material da vida real, resta apenas um

caminho a Apel para fundamenta a sua ética (a partir da “norma básica”

“para dentro”): a “auto-reflexão” diante do cético. (EL 185).

Aclara-se deste modo o fundamento da ética de Apel em um único

princípio universal formal que confere validade às demais normas. Faz um

caminho tanscendental desde o concreto até o formal. Mas não lhe é possível

traçar o caminho de volta desde essa norma fundamental até a situação

concreta sem uma mediação. Nesse plano estabelece a “norma básica de

responsabilidade”.

Ao pensar a aplicação das normas, se convence de que em razão da

assimetria existente entre os argumentantes, as pessoas de uma sociedade,

não se pode aplicá-las indistintamente a todos os integrantes da comunidade.

É preciso um instrumento que tornem simétricos os sujeitos.

Assim a ética do discurso revela-se reconhecidamente por Apel sem

condições de estabelecer a simetria desejada, posto que não possuir meios de

conectar o real e o formal. Fica, portanto, adstrita à ética da responsabilidade, a

qual por sua vez atua no campo das estratégias e instrumentos, tornando-se

91

muitas vezes a arma da totalidade para justificar a exclusão dos menos

favorecidos.

Para isso [estabelecer a simetria entre os argumentantes], Apel

propõe o princípio de complementação ou de extensividade [...] Essa ética

da responsabilidade não dispõe de normas que se possam deduzir ou

fundar-se na ética do discurso, mas só dispõe de normas estratégicas ou

instrumentais. Assim se cai em uma contradição, já que a ética do

discurso terá que esperar e confiar, pois não conta com recursos próprios

para efetuar concretamente a simetria entre os argumentantes reais, em

uma ética estratégica e instrumental, e, muitas vezes, cínica. (EL 187-

188).

Ao contrário, se Apel admitisse a ética material, teria condições de

estabelecer os fundamentos da norma básica e daí os pressupostos

necessários para se fundar o modo de sua aplicação prática. Em último

recurso, concebe então os procedimentos estratégico-instrumentais vinculados

a um “princípio de conservação”, isto é, à sobrevivência, à vida humana.

Ocorre, entretanto, um deslocamento do princípio da vida humana,

fundamento da Ética da Libertação, e “aquilo que para nós é um princípio ético

material universal, fundamental (a reprodução eo desenvolvimento da vida de

cada sujeito humano em comunidade), para Apel é só ‘condição deduzida’”.

(EL 189).

Desta forma, fica evidente a fissura em seu pensamento, possibilitando a

manutenção da exploração e vitimação, porquanto as estratégias é que vão

delimitar a aplicação da Ética e, evidentemente, os instrumentos estão, via de

regra, nas mãos do poder estabelecido.

Importa ressaltar, finalmente, que se por um lado a ética de Apel se

preocupa com a simetria dos argumentantes e com um estado de justiça, por

outro não apresenta um critério que seja capaz de garantir tal situação e, por

isso, abre espaço para a continuidade da injustiça legalizada impingida à

periferia pelo eixo central europeu-norte-americano.

92

4 – PROPOSTA DE UMA ÉTICA MUNDIAL: FUNDAMENTO PARA JUSTIÇA

A preocupação de Enrique Dussel é sempre com a vida humana,

buscando constantemente uma Ética de conteúdo material de validade

universal que possibilite ao homem uma vida em justa harmonia com seus

semelhantes.

Neste capítulo, serão abordadas as relações humanas fundamentais,

com o intuito de mostrar a importância de uma revisão dessas relações para a

proposta dusseliana de Libertação e Justiça.

Preliminarmente, posto tratar-se de noções fundamentais para

compreensão do sentido de sua proposta de Ética e Justiça, é de especial

relevância apresentar a concepção antropológica de Enrique Dussel, bem

como a sua proposta de realização humana no mundo. Com isso, ficará clara a

fundamentalidade do Outro para a realização da Justiça.

Na seqüência, serão apresentadas as questões principais no tocante à

Erótica, à Pedagógica, à Econômica e à Política, destacando seus problemas

fundamentais e a proposta de Enrique Dussel para a reestruturação das

referidas categorias.

4.1 – O HOMEM COMO FUNDAMENTO DA ÉTICA

E DA JUSTIÇA Para compreender o pensamento de Dussel acerca de Justiça, é

importante observar sua compreensão do ser do homem, posto que o

considera como um pro-jeto e como uma supra-stância.

O processo de construção de uma nova Ética e de um novo conceito de

Justiça envolve a preliminar compreensão do ser do homem no sentido que

brota da nova idéia, aberto para o diálogo com o outro, numa atitude de

respeito e disposição para servir-lhe em suas necessidades.

93

O fundamento a priori da ética e da própria praxis cotidiana é o

ser do homem com-preendido dia-lética, existencial e pro-jetivamente,

principalmente como poder-ser ad-veniente, quem em seu último

horizonte é o télos mesmo da humanidade como história universal. (ELL I

63).

De-struição não significa, para Dussel, o desprezo absoluto do antigo,

mas sim a sua desmontagem para aproveitamento do que nele há de melhor

na construção do novo. Assim é que reconhece o mérito dos gregos por terem

inaugurado a ontologia do ser, colocando o homem como o único capaz de

compreendê-lo. E é nessa situação, colocado o homem no mundo como o

único ente capaz de ter acesso ao Ser, que Dussel aponta, em consonância

com Heidegger, dois instantes capitais:

Em primeiro lugar, a abertura fundamental existenciária ao mundo

como tal. Em segundo lugar, e derivadamente, a captação daquilo com

que deparamos dentro do mundo como possibilidades na consecução

existencial ou prática do nosso ser previamente compreendido de maneira

fundamental. (ELL I 47).

No primeiro momento, o homem percebe o mundo, que lhe é anterior, e

se abre, então, num segundo momento, para a perspectiva de acessar e

compreender o seu próprio ser. Dessa forma, o homem, que não pode deixar

de ser o que é, pode, todavia, promover alterações que o levem a ser mais do

que é mediante a práxis, num leque de possibilidades que se lhe apresentam.

Sedimenta-se, com esse pensamento, a responsabilidade do homem pelo

caminho a ser escolhido e, por conseguinte, a fundamentação da Ética no ser

do homem, como explica Dussel:

Na compreensão que interessa à ética como seu fundamental

acesso trata-se do ser do homem, o ser em cada caso meu. Ou seja, se o

fundamento significa que é a priori, que quando fui lançado no ex-sistir já

me fora dado. É que o começar a ex-sistir não é mais do que o começar a

“encarregar-me” do meu ser recebido sob a minha responsabilidade

(“responsabilida-de” não vem de responder a, mas responder por-diante

de). (ELL I 47).

94

Portanto, a compreensão do ser do homem é de fundamental

importância para a Ética. O homem está acima das demais substâncias ou

entes porque é o único que possui a capacidade de perceber o mundo e se

perceber. É uma supra-stância. Assim, embora sua essência seja anterior à sua

existência, seu ser somente se manifesta na sua existência.

O homem é responsável pelo caminho adotado em seu comportamento,

vez que lhe é inerente o poder-ser. E justamente em razão desse poder-ser, é

que o homem jamais pode ser tido como totalidade, dado que a sua

incompletude advém desde o início de sua existência. Assim, entre o que o

homem é e o que pode-ser há todo o mundo em que está inserido. Esse poder-

ser, conforme as opções adotadas, poderá se tornar um não-poder-ser. O

homem é, por conseguinte, um ser aberto ao mundo e a si mesmo, na

constante tentativa de superação dos limites que se lhe apresentam.

É importante destacar que o poder-ser não é apenas a dýnamis natural a

que todas as coisas estão sujeitas. No caso do homem, ele é o sujeito, é ele

quem opera a dýnamis, em busca da totalidade.

Como se pode observar do exposto, o poder-ser é referente sempre ao

futuro. É, por isso, um pro-jeto adstrito à temporalidade. É uma presença-

ausente que se mostra a cada momento em que vai sendo, num processo

dialético existencial, isto é, num processo de interação do homem com o

mundo, com o outro e consigo mesmo. Para Dussel, esse poder-ser é o próprio

dever-ser; para que o homem faça ser o poder-ser deve realizar algo que,

necessariamente, implicará nessa interação. E, portanto, para alcançar o fim

desejado, o homem deverá agir diante das possibilidades que se lhe

apresentam no mundo.

Está, assim, lançado o fundamento da Ética segundo Enrique Dussel,

que propiciará uma nova visão de mundo e a concretização da justiça em cada

caso de cada homem, independente de suas condições pessoais.

95

4.1.2 - AS POSSIBILIDADES ÔNTICAS: ABERTURA PARA REALIZAÇÃO HUMANA NA JUSTIÇA

O homem está lançado no mundo diante de uma infinidade de

possibilidades e no intento de realizar-se enquanto ser. Diante dessa condição,

percebe-se de imediato a distinção entre o que ele é e o que pode ser, num

movimento dialético-existencial. Esse processo é o que Enrique Dussel

denomina práxis, o modo de ser do homem no mundo. Essas possibilidades,

vale ressaltar, nunca se apresentam como necessárias, mas quando muito

como obrigantes, ficando ressalvada ao homem sempre a liberdade de

escolha.

A liberdade está fundada na indeterminação das possibilidades ou, mais

precisamente, no próprio ser, ao contrário do que pensava Kant, para o qual a

liberdade é o fundamento do sistema racional humano, ou mesmo do que

defendia Sartre, para quem “A liberdade é o fundamento de todas as

essências, porque é transcendendo o mundo para suas possibilidades próprias

que o homem descobre as essências intramundanas” (Sartre. O Ser e o Nada).

O fato de o homem ser incompleto e incapaz de realizar todas as suas

possibilidades o coloca à frente de um leque de opções que o obrigam a

proceder à escolha, evidenciando, assim, que a liberdade se constitui a partir

daquela impossibilidade humana. Por isso não é fundante, mas fundada no ser

do homem. Já o grau de liberdade do homem, é importante ressaltar, está

ligado não à maior ou menor quantidade de possibilidades, mas, onticamente,

à sua maior ou menor capacidade de compreensão de seu próprio ser. Por

estar vinculada à compreensão do ser e sua realização, a liberdade é a grande

expressão da finitude do homem. E não é absoluta, porque o homem não pode

alterar o seu estar originário no mundo, mas apenas se conduzir na busca de

uma totalização que também não será alcançada. A liberdade é, portanto, a

própria possibilidade de se compreender o ente humano, como se entende das

palavras de Dussel, secundado por Heidegger:

Por isso, a liberdade primeiramente mais do que nota positiva é

negatividade: negação da imediatez. O que a com-preensão é para o

poder-ser, a liberdade é para as possibilidades: condição de possibilidade

da desvelação do ente. (ELL I 78).

96

Abre-se, então, a problemática dos valores, em razão da necessidade

de opção por umas possibilidades em detrimento de outras.

Para isso, é necessário que se saiba diferenciá-las, evidentemente,

tornando a possibilidade que promove o poder-ser muito valiosa. Mas, para que

seja valiosa, é necessário que a possibilidade esteja no processo de realização

do poder-ser, e não fora dele, até porque, fora, não é possibilidade. O valor

está, por conseguinte, no fundado e não no fundante, isto é, o homem não é

quem constitui o valor, mas o descobre no mundo enquanto possibilidade

realizadora. Essa é a razão pela qual o valor não pode ser o fundamento da

moral; toda possibilidade tem seu valor, conforme o momento e as

circunstâncias. Assim, o valor não é puramente axiológico, mas

intrinsecamente ligado à compreensão e interpretação do homem em sua

existência mundana. O valor é, portanto, a posteriori e não a priori.

[...] nesse caso a ética não é doutrina da arte nem a práxis

existencial uma invenção, mas muito pelo contrário, a ética seria um

pensar descobridor acerca de um cotidiano desocultar existencialmente

possibilidades. O valor de um evidente absoluto em si é agora situado

como a possibilidade qual possibilidade fundada no ser. (ELL I 73).

O homem atribui maior valor às opções que melhor possibilitem,

segundo seu pensar, a sua realização e a de seus grupos sociais, tais como

familiar, profissional, educacional, erótico, político etc. Nesse sentido, torna-se

imperioso pensar nas categorias fundamentais do ente humano. A Erótica, que

o constitui e se cristaliza sobretudo no núcleo familiar; a Pedagógica, que

contribui fundamentalmente para a sua formação e amadurecimento, expressa

principalmente nos núcleos família e escola; e a Política, que concerne à sua

relação de poder em face do Outro, concretizada desde no bairro em que vive

até no mundo como um todo.

A relação homem-mulher é a que parte de uma dis-tinção máxima, isto

é, um é estranho ao outro, sem nenhum vínculo originário, e, após, o encontro,

na vigência da experiência erótica, guarda o mínimo de alteridade.

A relação irmão-irmão, ao contrário, parte de uma dis-tinção mínima,

posto que surgem os dois no seio de uma mesma família, ligados a uma

mesma totalidade pré-constituída, embora, ressalte-se, desde o início sejam

97

dis-tintos e não apenas di-ferentes, porquanto não estão encerrados numa

mesma totalidade, apenas conectados a ela. Após o encontro, contudo, o grau

de alteridade fixa-se no máximo durante toda a vida, pois a relação entre eles

será, sobretudo, política.

Quanto à relação pais-filhos, Dussel entende ser intermediária, vez que,

desde o início, tem um nível de dis-tinção médio e guarda essa

intermediaridade mesmo durante a relação, que, predominantemente, diz

respeito à pedagógica.

Por isso ganha importância capital a proposta dusseliana de realização

de Justiça nessas três categorias.

4.2 – DA DE-STRUIÇÃO DA ERÓTICA VIGENTE À

RELAÇÃO DE AMOR-DE-JUSTIÇA A primeira categoria fundamental na visão de Enrique Dussel é a Erótica.

Isto porque o homem, fundamento da Ética, tem sua origem a partir da relação

erótica:

O primeiro modo de relação da alteridade, do Eu-o Outro, do “face-

a-face”, é a do homem-mulher: relação esponsal que pro-cria e alberga

toda outra possível alteridade humana. (ELL I 121).

Na Grécia Antiga, o éros era concebido como um retorno a “o mesmo”.

Para os grandes filósofos gregos como Platão e Aristóteles, partindo de uma

diferença natural entre os homens, pela qual uns nascem escravos e devem

ser escravos, enquanto outros nascem livres e assim devem continuar, também

no aspecto erótico a concepção é de que a mulher foi criada para servir ao

varão. Aliás, esclarecedor nesse sentido é o mito do Andrógino trazido, por

exemplo, no Banquete, de Platão.

De-struindo a concepção de unidade, de mesmidade, ali estampada,

Dussel evidencia porque para Platão a relação entre os iguais, isto é, entre os

varões é que era valorizada, enquanto a relação homem-mulher servia apenas

para a perpetuação da espécie. É que dentro dessa ontologia totalitária,

recorda-nos Enrique Dussel, o éros refere-se a “o mesmo” e, portanto, a

98

relação privilegiada só pode ser a homossexual, relegando a relação

heterossexual ao fim tão somente da procriação:

Para Platão e Aristóteles – ontólogos inequívocos da Totalidade – o

éros em seu sentido próprio e pleno é tendência de “o mesmo” para “o

mesmo”. A ontologia da Totalidade valorizará o éros homossexual (éros de

“o mesmo” para “o mesmo”) e aceitará o éros heteressexual somente

como mediação instrumental para a geração do filho. (ELL I 122).

Quanto a Aristóteles, Dussel assevera que essa ontologia totalitária é

ainda “tanto ou mais vigente do que em Platão” (ELL I 122), remetendo ao livro

Política para comprovação de sua afirmação.

Ali fica claro que a relação homem-mulher é de amizade, constituindo-se

numa união aristocrática, ao passo que entre os homens existe o Eros. Vale

citar as passagens trazidas por Enrique Dussel:

Para Aristóteles, a finalidade da geração do filho é um “deixar atrás

de si outro (héteron) que seja o mesmo (autó)”... Essa geração é fruto da

unidade do homem e da mulher, entre os quais há um tipo especial de

amizade [...] Seja como for, “a comunidade que formam o marido e a

mulher é evidentemente de tipo aristocrático”, sendo o homem “o melhor”

(áristos) e ao qual corresponde por natureza conduzir a casa. No éros, e

na amizade “o mesmo” ama “o mesmo”. (ELL I 123).

Na Idade Média, a concepção totalitária continua em voga, atingindo seu

ápice no plano teórico com Tomás de Aquino, ao afirmar que “a mãe só

administra a matéria, mas é o pai que dá o ser ao filho”. (FL 86).

Na modernidade, a mulher passou a ser objeto, instrumento de

realização do próprio homem. A mulher, nesse período, continuou a ser

dominada pelo homem e sempre ocupou posições inferiores, como amante ou

mulher de algum nobre ou burguês. O seu campo de atuação esteve sempre

restrito ao lar, à criação dos filhos dentro da moral machista estabelecida.

Devemos ressaltar, conforme explica Dussel, que a dominação já não era,

nessa época, em função de uma cosmologia ou divindade, como na Idade

Antiga e Idade Média, mas, sim, em razão da subjetividade do homem

moderno.

99

É pela própria ontologia da Totalidade (não já cosmológica, mas

moderno-subjetual), que a mulher passou a ser objeto do homem e

pessoa à sua disposição, instrumento doméstico do varão. (ELL I 123).

Na Modernidade, o ego conquiro, validado pelo ego cogito cartesiano

encontrou sua extensão na teoria freudiana do Ich wünsche (Eu desejo). Isso

porque, apesar de sermos inegavelmente devedores de Freud no tocante à

valorização da vida erótica, o fato é que mesmo a sua interpretação não

escapou à visão ontológica totalitária. É que Freud estabeleceu a existência do

Eu desejo considerando-o apenas como característica do varão, relegando à

mulher uma condição inferior, de invejosa do órgão sexual masculino. Freud

criou, então, com esse pensamento, o que Maryse Choisy denominou como

falocracia, conforme escreve Dussel, somando-se à interpretação de Jacques

Lacan:

Se for verdade que Freud descobre que além do “eu penso”

(descrição redutivamente racionalista do homem) existe um “eu desejo””

(Ich wunsche), não é menos certo que esse “eu” é, primeira e

substancialmente de um varão; isto é, o enunciado ontológico

fundamental diria “Eu sou corporeidade fálica”, já que “o falo é – para

Freud – o significante privilegiado [...] o significante mais saliente daquilo

que se pode captar no real da copulação sexual. (ELL III 71).

Muitos se opuseram criticamente ao pensamento discriminatório de

Freud. Entretanto, para Dussel, nenhum conseguiu atingir o fundamento

ontológico freudiano:

Se for verdade que surgiram novos temas críticos, nem por isso

foram superados, na análise efetuada por mulheres, os fundamentos

ontológicos do freudismo. O fundamento fica intacto já que se aceitam

muitos pressupostos. Isso exige que questionemos mais radicalmente o

fundador da psicanálise. (ELL III 75).

Freud, considerando que a satisfação inteira do prazer levaria o homem

à morte, interpretou o trabalho como uma forma de o homem economizar

prazer e, destarte, retardá-la.

O “princípio da realidade” é uma econômica já que “sem abandonar

o fim de uma posterior consecução de prazer, exige e consegue o

100

aprazamento da satisfação e a renúncia a alguma das possibilidades de

alcançá-la, e nos força a aceitar pacientemente o desprazer durante o

longo rodeio necessário para chegar ao prazer, frUto do trabalho e da

civilização”. (ELL III 78).

Assim, estabeleceu dois princípios que impulsionam o homem, o

princípio do prazer e o da realidade. Nesse sentido, Freud observa que “sob o

influxo da pulsão de conservação do eu é substituído o princípio de prazer pelo

princípio da realidade” (ELL III 78).

Essa dualidade de princípios, no entanto, está fundada numa mesma

totalidade, a natureza, que se cinde e dá origem ao homem e à mulher. Então,

a vida humana, seguindo-se a teoria freudiana, está voltada para a morte, em

busca do retorno ao mesmo. Por isso, também, o prazer é auto-erotismo e não

satisfação mútua. “O fim da vida não pode ser um estado nunca alcançado

anteriormente, porque estaria em contradição com a natureza, conservadora

das pulsões [...] A meta da vida é a morte”. (ELL III 79).

Esse é o nível ontológico do pensamento de Freud. O fundamento é

sempre a identidade e, pois, não há dis-tinção, na acepção dusseliana, mas

apenas di-ferença, como escreve:

Em conclusão: Freud enuncia implicitamente um fundamento

ontológico de sua interpretação psicanalítica, isto é, a Totalidade como

“natureza” opera pulsionalmente segundo um duplo princípio. O dualismo

ôntico é a única solução da qual pode lançar mão o monismo ontológico.

A “lógica da Totalidade” volta a cumprir-se em Freud. Se o fundamento é a

Identidade indiferenciada, os entes são diferença ou determinação. (ELL

III 81).

Pode-se compreender, então, que, por um lado, o pensamento freudiano

foi fundamental para o resgate do valor da vida concreta, em especial, da vida

erótica. Todavia, não superou a ontologia clássica, o que o levou a prosseguir

com a idéia da inferioridade feminina diante do masculino e a não determinar

condições para uma relação de justiça entre os dois.

Fica delineada, portanto, a impossibilidade de se dar uma relação ética

de justiça entre o homem e a mulher em nossa sociedade atual, porquanto o

101

homem esteve sempre, ora por um motivo, ora por outro, em situação de

predomínio sobre a mulher.

Em face da situação real de flagrante injustiça na relação erótica,

Enrique Dussel, fazendo uso de seu método analético, propõe, então, a

reestruturação da Erótica, estabelecendo como fundamento maior o amor-de-

justiça, com o objetivo de se alcançar a Justiça.

4.2.1 – A IDÉIA DE JUSTIÇA NA ERÓTICA DA LIBERTAÇÃO

Para ser acessada a idéia dusseliana sobre essa reestruturação,

preliminarmente, importa dar relevo aos níveis detectados na relação erótica,

tendo em vista o grau de dis-tinção anterior e de alteridade posterior (ou mais

precisamente, durante).

Feitas essas ponderações, Dussel passa, então, à questão propriamente

dita, a Erótica. Ao contrário do que pensavam os gregos, ele entende que a

visão tem pouca ligação com o éros, porquanto o tato, a ternura, a respiração,

o calor etc. têm função muito mais importante e são os constituintes próprios da

relação erótica, a qual supera a ótica e se define melhor por amar. “Esta

experiência erótica que vai além da óptica, em sua exterioridade, recebeu na

tradição judia o nome do verbo iadáh (saber, saborear, sentir, amar, conhecer)”

(ELL I 125).

Em uníssono com Lévinas, Dussel faz uma descrição dessa relação.

Nesse caminho, lembra-nos que éros é equívoco, visto que pode ser voltado

para o Mesmo egótico ou para abertura ao Outro (ágape).

Essa abertura, no entanto, adverte Enrique Dussel, ainda assim tende à

constituição de um mesmo. Por isso, aliás, ele vê um grau de alteridade

mínimo na relação homem-mulher. Esse mesmo é a formação do casal, ou, em

outras palavras, um atenuamento da ex-sistência do Eu e do Outro em

benefício da preponderância do Nós. Ressaltamos, aqui, a permanência do

Outro, da alteridade, posto que um casal autêntico é aquele em que a

alteridade é respeitada e servida como um do Nós.

102

Tudo deve começar por uma descrição da relação erótica. O

éros é equívoco, pode ser éros ao Mesmo egótico, ou pode ser abertura

ao Outro (ágape), o que não evita a posterior tensão a uma reconstituição

de um novo “o mesmo” abrangente sem alteridade real; deseja-se e ama-

se o Outro para constituir um só ser (a unicidade fecha a trans-

versalidade da relação ao Outro como outro, e o constitui como “um de

nós”). Mas embora unívoco, não é univocamente Totalidade que se deve

abrir à Alteridade (“o Outro” será o filho ou tudo o que está além da “porta”

da casa: a exterioridade do lar). (ELL I 125).

Nessa relação de amor em que o outro é respeitado como outro dis-tinto

é que pode ocorrer uma relação erótica justa, equilibrada.

A experiência erótica plena do casal conduz ao que Dussel, lembrando a

Bíblia, denomina como uma só carne (Gênesis 2, 24). Para isso, impende

aclarar, Dussel supera radicalmente a dualidade corpo-alma, preferindo a

terminologia carne ao invés de corpo, também para evitar a equivocidade

desse outro termo, esclarecendo, ainda, que assume o significado de carne no

sentido hebraico (Basár), rejeitando o grego sôma. “O Outro não é um “objeto”,

mas é um “rosto”, uma “carne”, (evitando assim a equivocidade dualista da

categoria “corpo”; referimo-nos então à basar hebraica e não ao sôma grego)”

(ELL III 91).

Mais ainda, esse desejo pelo outro não pode ser objetivante, isto é, não

se pode ter o outro como objeto, sob pena de cairmos novamente na

homossexualidade, já que se terá auto-erotismo. “Se o Outro é constituído

como mero “objeto” sexualizado por uma intenção erótica do sujeito, o ato já é

homossexualidade e alienação do Outro como mera mediação do auto-

erotismo” (ELL III 91).

É preciso em vez de ob-jetivação, pro-posta ao Outro. Em vez da

certeza da dominação, temos, então, a insegurança do risco da negativa. É aí

que se instaura o respeito pelo Outro.

Instaurada essa relação, estabelece-se a proximidade, pois o Outro não

é incluído no mesmo mundo, mas, sim, atendido em sua necessidade de

satisfação erótica ao mesmo tempo em que o Eu também é satisfeito.

103

Isto é, o rosto, a carne do Outro é desejada na proximidade, mas

não como mero auto-erotismo ou satisfação realizada por mediação de

algo, e sim como a satisfação concomitante originada no dar ao Outro a

satisfação a ele devida. É um sentir o Outro como outro, mas um sentir

que exige ao mesmo tempo que o Outro se experimente sentido. (ELL III

91).

Essa proximidade, paradoxalmente, implica na distância. Assim como o

próprio ato sexual envolve a proximidade-distância, a continuidade dessa

relação exige a distância, porquanto é ela que possibilitará ao casal o alcance

das condições necessárias para manter a relação. E dentre essas condições

está, evidentemente a economia.

Morreriam dois amantes se o face-a-face não fosse ritmicamente

adiado para o simples e cotidiano ato de comer, e, portanto de trabalhar

para comer e o trabalho se realiza com respeito á natureza. Vive-se a

proximidade humana a partir da distância da “economia” que a torna

possível. (ELL III 96).

O casal, então, constituindo o seu lar, está apto a desenvolver nesse

âmbito não apenas a mesmidade do casal, mas também preservar a identidade

de cada integrante desse lar, envolvendo-se na proximidade-distância.

O maximamente dis-tinto (homem-mulher) vem unir-se no

minimamente alterativo (o casal) para acolher-se num âmbito de

mesmidade: “ao estar-em-casa” (chez soi, beisichsein). “Em-casa” (o

âmbito ontológico ou o mundo doméstico) talvez habitem muitas pessoas

(pai, mãe, filhos, filhas), mas como domínio privado a partir do qual é

possível o trabalho e a posse (o econômico: oikia, “casa” em grego) e

onde a pessoa pode ser ela mesma na segurança e no calor do lar. (ELL I

126).

Mas se o éros assim concebido implica em proximidade-distância para

sua continuidade, também tende para a fecundidade. Deve ser lembrado que

uma das tarefas para manutenção da vida envolve a própria reprodução. Em

razão disso, fica justificada a visão dusseliana de que, numa relação de amor-

de-justiça, o casal tende para a fecundidade como realização máxima desse

amor.

104

“Mas o éros também deve terminar no “outro”, não já o Outro

como quem com-verge a partir da dis-tinção máxima como beleza erótica

(como varão e mulher), mas no “outro” nunca pensado pelos gregos (ou

que só o pensaram como perpetuação de “o mesmo”): O FILHO DA

FECUNDIDADE. (ELL I 127-128).

Mesmo com a constante participação do Outro, quer seja do cônjuge na

relação interna do casal, quer seja do filho em relação ao pai, à mãe ou ao

casal, não deve haver nesse ambiente uma situação de competitividade, mas

sim de pleno equilíbrio, atendimento e respeito mútuo, em situação de justiça,

até porque o Outro, nesse caso, significa para o Eu a sua plena possibilidade

de realização metafísica.

A sexualidade é um momento constitutivo da perfeição ética e seu

exercício na justiça é bondade libertadora serviçal. O Outro, a mulher para

o homem, o homem para a mulher, o filho para o casal, não vem interpor-

se, nem negar sadicamente o pai ou cometer o incesto com a mãe, nem

masoquisticamente se experimentar como castrada. O Outro, pelo

contrário, é o âmbito da Exterioridade que permite a plena expansão e

desdobramento da sexualidade como “pulsão alterativa” ou meta-física.

(ELL III 135).

A manutenção da relação erótica pela distância implica numa casa, num

lar, em que o casal possa conviver e realizar-se inclusive com o filho.

A casa serve como uma extensão do próprio homem e é ela que o

protege das intempéries exteriores. É a mediação para o exterior.

A casa rompe o conjunto dos elementos onde o homem estaria na

“intempérie”, inospitamente acossado pelo cosmos. Ao contrário, da casa,

“utopia onde o eu mora hospitaleiramente”, é possível contemplar o

“exterior”. As paredes da moradia são o prolongamento da carnalidade, do

vestuário, como a carne, a casa está aberta à exterioridade. (ELL I 127).

Importa, enfim, salientar a importância fundamental do filho numa

relação erótica, vez que representa a continuidade da vida, mas não no sentido

grego de eterno retorno ao mesmo, e, sim, no sentido de inovação, criação. É o

amor-de-bondade que gera o filho, a novidade, jamais uma mesmidade.

105

Destarte, o filho é o Outro dis-tinto (e não di-ferente) que se põe como

alteridade para o casal, posto ser um novo ex-sistente, não apenas no sentido

heideggeriano, de ser-no-mundo, mas como adverte Dussel, no sentido de pro-

criado.

“Outra” pessoa, “outro” destino, não querido como perpetuação de

si mesmo, mas por outro amor que não erótico, um amor que parte da

carnalidade erótica: a paternidade, a maternidade, o amor de pura

bondade, amor de liberdade paterna-materna: o nada do filho de onde é

avançado para a ex-sistência: pro-criado. (ELL I 128).

4.2.2 – CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS EM

RELAÇÃO À ERÓTICA DUSSELIANA Diante de todo o acima exposto, deve-se considerar, primeiro, que o

homem está em constante relação com o outro, e que nessa convivência

necessária a primeira relação que se avizinha é a relação entre o homem e a

mulher, isto é, a relação erótica. Segundo, também é importante ter em mente

que essa é a relação originária que possibilita o surgimento do outro. Assim, é

imperioso que seja pautada pela justiça entre pessoas livres e não entre livres

e dominadas.

A ontologia da totalidade, desde os gregos, eliminou a possibilidade de

alteridade na relação sexual, privilegiando sempre a mesmidade, do que adveio

a exclusão da mulher enquanto ser livre, e sua consideração apenas e tão

somente como procriadora, isto é, objeto utilizado pelo homem para a

perpetuação da espécie. Também na Modernidade a mulher cumpriu o mesmo

papel de objeto sexual, servindo aos nobres, no início e depois aos burgueses.

Ocupou sempre o papel de dominada, oprimida pelo homem, que lhe permitiu,

num gesto que podemos dizer astuto, o domínio da criação do filho, mas que,

na verdade, serviu para a perpetuação do pensar totalitário e dominador, vez

que o filho, crescendo dominado, num determinado momento passava a

dominador, imitando, então, o comportamento do pai.

Assim, Dussel defende a tese de que é necessário pensar o outro na

relação sexual não como continuidade de si mesmo, mas como ser autônomo,

106

como novidade que deve ser amada por bondade e não como possibilidade

de eterno retorno ao mesmo, e jamais o filho poderá ser dito meu.”A

fecundidade do eu não é causa nem dominação. Eu não possuo meu filho, não

sou meu filho”. (ELL I 128).

Essa relação deve ser fundada no amor-de-justiça, em que o outro deve

ser sempre respeitado enquanto ser autônomo e livre, envolto em certo

mistério incompreensível do seu ser, mesmo no ato sexual propriamente dito,

em que o contato carnal é máximo, como que formando um só corpo, mas

mantendo, todavia, cada um, sua autonomia.

Entretanto, mesmo passados os momentos do helenismo, em que o

amor perfeito somente seria possível entre os iguais e, portanto, entre os

varões; e da modernidade, em que a mulher não conseguiu superar o

pensamento machista suportado pela subjetividade cartesiana e hegeliana,

verifica-se, ainda hoje, o domínio do homem sobre a mulher, agora expresso

pela superioridade econômica, principalmente, atribuindo-se também uma

fealdade ao pobre e à sua dor e elegendo o rico como a beleza a ser imitada.

Na América Latina, originariamente, encontram-se diversas sociedades

onde a mulher ocupava papel fundamental na organização social, ao contrário

do que ocorria na Europa. Diante da conquista européia, contudo, a cultura

machista e dominadora se infundiu na nossa América, e a opressão da mulher

vem-se firmando a cada dia, e constituindo a mulher latino-americana a

periferia da periferia. Por isso irrompem os movimentos libertários, que buscam

a autonomia devida da mulher.

Importante ressaltar, finalmente, que os movimentos de libertação

feminina não devem se fundar nos mesmos pilares totalitários vigentes na

sociedade atual, sob pena de somente se inverterem os pólos de dominação. É

fundamental o surgimento de uma nova relação entre homem e mulher, em que

se respeite, fundamentalmente, a alteridade, a autonomia e liberdade do outro,

e, por conseqüência, seja feita Justiça.

107

4.3 - PEDAGÓGICA: INSTRUMENTO PARA REALIZAÇÃO DE JUSTIÇA

A questão Pedagógica na obra de Enrique Dussel envolve uma condição

necessária para a realização da Justiça.

A primeira relação fundamental para a Ética e, pois, para a Justiça é a

Erótica. Em seguida, tem-se a Pedagógica, para, num terceiro instante

encontrar-se a Política. Essa seqüência, notadamente, não é cronológica,

posto desde o seu nascimento o homem estar em relação nesses três âmbitos.

Contudo, a ordem diz respeito à própria importância para a constituição do

homem.

A leitura da crítica dusseliana da estruturação das relações Pedagógicas

vigentes é o primeiro passo para compreensão de sua filosofia no tocante a

esta questão. O segundo é a sua reflexão histórico-crítica dos sistemas

pedagógicos que ensejaram a constituição das sociedades contemporâneas. O

terceiro, enfim, é assimilar a proposta de Enrique Dussel para uma Pedagógica

da Libertação como atitude de amor-de-justiça.

4.3.1 – A LEITURA DUSSELIANA DA REALIDADE

PEDAGÓGICA VIGENTE Preliminarmente, cumpre-nos esclarecer o significado do termo

Pedagógica. Segundo Dussel, não se pode confundir a Pedagógica com a

pedagogia. Esta última, aduz, é a ciência que estuda o ensinamento e a

aprendizagem, estuda, pois, o método, o processo educacional, refere-se, por

conseguinte, ao momento concreto da relação pedagógica. Por outro prisma, a

Pedagógica diz respeito à reflexão filosófica quanto às relações entre pais e

filhos, entre mestre e discípulo, político e cidadão etc, isto é, a Pedagógica trata

do aspecto pedagógico presente nas relações em função dos princípios que

tais relações devem seguir, bem como seus fundamentos, sempre em busca de

uma relação ética que enseje a realização da Justiça entre todos, sem

exclusão. A questão preliminar fica bem clara na seguinte passagem:

108

A Pedagógica latino-americana continua o discurso

empreendido; o varão agora é o pai, a mulher a mãe, o novo ou o Outro é

agora o filho. A Pedagógica não deve ser confundida com a pedagogia.

Esta última é a ciência do ensinamento ou aprendizagem. A Pedagógica

ao contrário, é a parte da filosofia que pensa a relação face-a-face do pai-

filho, mestre-discípulo, médico-psicólogo-doente, filósofo-não-filósofo,

político-cidadão etc. Ou seja, o pedagógico neste caso tem uma ampla

significação de todo tipo de “disciplina” (o que se recebe de outro) em

oposição à “invenção” (o que se descobre por si mesmo). A Pedagógica,

além disso, tem a particularidade de ser o ponto de convergência e

passagem mútua da erótica á política. (ELL III 153/4).

Dois aspectos ainda merecem ser destacados nessas palavras. O

primeiro, porque entende o filósofo que há uma diferença entre “invenção” e

“disciplina”, cabendo à Pedagógica o estudo dessa última, de forma a propiciar

uma pedagogia possibilitadora da invenção. Fica nítido que o autor admite,

portanto, a possibilidade de se aprender pela própria razão,

independentemente de um mestre que perpetue seus ensinamentos. O outro

aspecto é o papel de elo de ligação e trânsito entre a relação erótica e a

política. Vislumbramos, aí, a fundamentalidade da Pedagógica no processo de

formação do homem, posto servir como verdadeira “ponte” entre o núcleo

familiar e o amadurecimento do homem, possibilitando-lhe o exercício de sua

cidadania e estabelecimento de uma relação erótica adulta, autêntica e justa,

sem exploração ou objetualização do Outro. É o que se depreende da obra de

Enrique Dussel, bem ilustrada aqui:

Com efeito, a Pedagógica parte do filho do lar erótico para concluir

sua tarefa no adulto na sociedade política; por outro lado, parte da criança

na instituição pedagógica-política para terminar sua função no varão ou

mulher formados para a vida erótica fecunda. (ELL III 154).

Encontram-se quatro pólos na relação pedagógica: o núcleo familiar (1)

que deve conduzir o filho a uma postura adulta madura para a erótica homem-

mulher(2) e também para sua atuação como cidadão(3); e o núcleo escolar(4),

que deve propiciar à criança e ao jovem as condições também para o exercício

de sua cidadania e uma relação erótica justa. Em suma, tanto o núcleo familiar

109

quanto o escolar devem conduzir o outro para vida adulta plena, no sentido

político e erótico. Devem formar adequadamente o adulto-ético-erótico-político.

Estabelecidos tais pressupostos, a questão que se impõe é se a

Pedagógica vigente cumpre satisfatoriamente esse papel. Em caso negativo,

onde se encontra o problema-raiz?

Para Dussel, considerando a América Latina como um todo, a

Pedagógica vigente não cumpre essa missão, pois está contaminada desde a

Erótica, categoria que se funda numa falocracia, consoante já anteriormente

exposto. É que o pai, dominador da mãe, expande seu “micro-império” sobre o

filho também na categoria Pedagógica, domínio que se sedimenta pela

formação escolar ditada pelas classes opressoras. Assim, o domínio interior ao

núcleo familiar expande-se na Pedagógica e assassina o Outro na relação

política:

O pai [...] prolonga sua falocracia como agressão e dominação do

filho: o filicídio. A morte do filho, da criança, da juventude, das gerações

recentes por parte das gerontocracias ou burocracias é física [...]

simbólica ou ideológica, mas é sempre um tipo de alienação, dominação

aniquilação de Alteridade. (ELL III 155).

Na simbólica, a mãe equivale à cultura popular, e o pai ao sistema

político dominador. Adotando essa simbólica, o autor corrobora suas

afirmações pela descrição do próprio processo de conquista e exploração da

América, em que os colonizadores mataram os índios e aproveitaram-se

sexualmente das índias impunemente, dando origem aos filhos órfãos e

mestiços, os quais vieram, depois, a formar o povo latino-americano. Vale citar:

O homem conquistador se transformou em pai opressor, em mestre

dominador, já “comumente não deixam na guerra a vida senão os jovens

e mulheres – nos dizia Bartolomé de las Casas. A mulheres índias serão

as mães violadas do filho: órfão ou mestiço latino-americano. (ELL III 159-

160).

Destarte, no âmbito familiar, a Pedagógica latino-americana está viciada

desde a sua origem, em razão da Erótica e da Política, porquanto essas três

categorias são intimamente conexas.

110

Mas o assassinato se fez também pela Pedagógica no âmbito escolar,

vez que essa população foi arrancada de sua cultura milenar para ser inserida

no mundo fundado pelos princípios totalizadores do homem europeu moderno.

Se o processo erótico latino-americano se origina pela dominação

que o conquistador exerce sobre a índica, ou o processo político pelas

matanças ou a dominação do espanhol sobre o índio, a dominação

Pedagógica propriamente dita começa pelo adoutrinamento que antecede

o segue a conquista [...] o mundo amerindiano deixa lugar, pela pregação

dos últimos fundamentos da cultura da cristandade hispânico-européia, a

novos conteúdos históricos. (ELL III 160-161).

Em vista disso, a possibilidade do exercício da cidadania e de uma

relação erótica em condições de Justiça foi completamente tolhida.

No começo do séc XIX, houve até uma ruptura com o sistema

colonialista, diante dos processos de independência. No entanto, as

sociedades que se formaram a partir daí foram sempre voltadas para a cultura

européia e economia norte-americana. Foi como se as nações novas tivessem

um pé fincado no séc. XII, na Idade Média, com os ensinamentos religiosos e

culturais trazidos da Europa principalmente pelas ordens religiosas, e outro pé

apoiado no séc. XIX, na doutrinas ilustracionistas predominantes naquele

momento. Dussel resgata brilhantemente as palavras de Sarmiento para

corroborar esse entendimento:

Em nossa América Latina “vêem-se” ao mesmo tempo duas

civilizações diferentes num mesmo solo: uma nascente, que sem

conhecimento daquilo que tem sobre a cabeça está imitando os esforços

ingênuos e populares da Idade Média; outra, que sem cuidar do que tem

a seus pés tenta realizar os últimos resultados da civilização européia. O

século XIX e o século XII vivem juntos; um dentro das cidades e o outro

nos campos. (ELL III 163/4).

Tem-se, portanto, uma sociedade outrora arrancada de seu mundo e

agora sem saber a qual mundo pertence e que sentido dar ao mundo novo.

Já no séc. XX, novos movimentos populares e libertacionistas eclodiram

na América Latina, cada um a seu modo, mas sempre perpassando pelo

resgate da cultura popular. Essas rebeliões equivalem, na simbólica

111

dusseliana, à luta do filho contra o pai, isto é, contra a sociedade dominadora

capitalista, mas, novamente, o pai venceu a mãe, e a sociedade excludente e

vitimária firmou-se ainda mais, com esse assassinato denominado por Dussel

como filicídio, qual seja, a morte cultural da nossa juventude, que pode ser

traduzida com o gamin de Bogotá, que o autor lembra nas palavras de Octávio

Paz:

O gamin é o menino da rua. Que não tem pais ou quem responda

por ele. Que anda esfarrapado, sujo, faminto e que às vezes pede ajuda

para subsistir. Que rouba e comete todas as classes de atos ilícitos. Que

vivem em bandos temidos pelas pessoas de bem [...] (ELL III 167).

Esse gamin é o centro temático da reflexão Pedagógica de Enrique

Dussel, porquanto representa simbolicamente toda a América Latina.

4.3.2 – A DE-STRUIÇÃO DAS PEDAGÓGICAS ONTOLÓGICAS DESDE A GRÉCIA ANTIGA

A crítica de Enrique Dussel aos sistemas ontológicos totalizadores,

desde a Grécia Antiga, fica também consubstanciada na abordagem da

Pedagógica.

Observando o pensamento de Platão, Dussel encontra ali a concepção

do eterno retorno ao mesmo, concluindo que a teoria da reminiscência não é

mais do que a confirmação daquela tese, consistindo, a recordação de que nos

falou Platão, em um processo de trazer à luz o que já estaria dado no plano da

perfeição da idéia. O filho representaria, nesse caso, a continuidade do pai,

único ser pensante. Assim também é o método da maiêutica socrática: o

mestre permanece calado, apenas com a função de fazer o discípulo lembrar o

mesmo absoluto, unívoco, desde sempre existente. Embora esse processo

seja fascinante, considerando assumir o mestre uma posição de não ensinar,

deixando ao discípulo a descoberta do conhecimento, na verdade é

maliciosamente totalizador e conservador do status quo, vez que a verdade a

que o aluno deve chegar é sempre aquela que o mestre induz e reconhece

como válida.

112

Na ontologia da totalidade, a dialética do ensino pode resumir-se

assim (especialmente em Platão): o mestre, o filósofo, o político ou ou pai,

que compreende o discípulo (o filho) como “o Mesmo” ... Para Sócrates, é

como a parteira, a filosofia é apenas maiêutica; ou seja, a obra já é dada,

falta apenas fazer com que venha à luz. (ELL I 130-1).

E vale também transcrever a passagem seguinte, por ser extremamente

elucidativa quanto ao pensamento de Enrique Dussel:

Para Platão, e possivelmente para Sócrates, a aprendizagem é

“reminiscência” (anámnesis), Menon 81 a 82; Fédon 72 e 73a; Fedro 249

b-c; República 476a, 507b, que se alcança em última análise pela

dialética-ontológica. É um recordar “o Mesmo” (tó autó) que já se tinha

visto entre os deuses (teeteto 191-195; Filebo 34). “O Mesmo” [...] é

divino: as idéias, mas ao mesmo tempo o é a cultura grega.

Pedagogicamente, Sócrates, por seu método maiêutico, leva o discípulo à

resposta grega daquilo que pergunta e lhe fazer crer que são idéias

divinas; ou seja, divina a cultura grega. Sutil dominação pedagógica! Além

disso, o pedagogo, que não é o pai do filho, toma-o sob a sua

responsabilidade e ocupa o lugar do pai. (ELL III 168).

Torna-se, desta forma, límpida a divergência crítica do pensamento de

Dussel em face do pensamento grego, sobretudo pela noção de O Mesmo.

Quanto ao período medieval, Dussel traz à tona a teoria de Agostinho,

principalmente a exposta em De Magistro. Ali, Agostinho adota uma “posição

existencial alterativa”, mas continuou dentro do sistema ontológico totalizante.

Ocorre que apontou para o problema na direção certa, a questão da linguagem

como âmbito da Pedagógica; porém, tomado pela ontologia, concluiu que toda

fala é um ensinar, e mais, que esse ensinar é, em última análise, divino, uno,

pois só Deus poderia tocar o íntimo de cada um. A visão de Dussel é exemplar

nesse trecho:

Agostinho, a partir de uma posição existencial alterativa contou

somente com uma ontologia da Totalidade, o que o levou a formular mal o

próprio fato alterativo [...] Começa adequadamente por indicar que é em

torno da linguagem, da palavra, que se coloca a questão Pedagógica [...]

Mas imediatamente Agostinho pensa que somente falamos para ensinar e

113

que em última análise se pode ensinar pela recordação (per

commemorationem), ou como Deus o faz [...] (ELL I 132)

A tônica da Idade Média,segundo Dussel, foi uma Pedagógica voltada

para o aspecto divino, em que a alteridade humana foi dizimada.

No período Moderno, a Pedagógica caminhou em direção contrária à do

medievo:

Diante do ego pontifício ou paterno feudal e rural das instituições

da autoridade censora medieval [...] levanta-se uma nova Pedagógica que

nega seu antecedente como seu inimigo. O novo sujeito educante é a

autoconsciência constitutiva da burguesia em ascensão, em expansão.

(ELL III 170).

Passado esse primeiro momento de negação da Pedagógica feudal,

contudo, a Pedagógica instaurada foi a eurocentrista. Uma Pedagógica

contrária ao sistema anterior, mas voltada para o homem burguês.

Nesse sistema também ocorreu o que indica Dussel em relação à

América Latina. O burguês, sustentado pelo Estado burguês, dominou a sua

mulher, a qual dominou o filho. Aqui também é válida a simbólica expressa em

pai-Estado / mãe-cultura / filho-criança-povo. Dessa forma surgiu a revolta do

filho-povo contra o Pai-Estado. E, como na América Latina, o Pai-Estado

prevaleceu e ditou as regras da Pedagógica moderna.

Na atualidade, essa falocracia continua dominando o campo

pedagógico, disseminando suas verdades não apenas pelas escolas e

universidades, mas, sobretudo, pensamos, em consonância com Dussel, pelos

meios de comunicação de massa.

Enfim, todos os valores ensinados são os dos EUA e Europa. A realidade

cultural latino-americana é esquecida na poeira do tempo.

4.3.3 – A PROPOSTA DE JUSTIÇA NA PEDAGÓGICA DA

LIBERTAÇÃO A Justiça, para Dussel, é justiça na vida.

114

No tocante à Pedagógica, importa precipuamente a exterioridade do

filho e, subseqüentemente, uma Pedagógica anti-sistêmica. Isso se explica

porque o filho deve representar, numa Erótica justa, o Outro exterior ao casal,

uma abertura consistente na transcendência verdadeiramente meta-física, em

que pai-mãe constituam um novo alguém. O filho é um projeto, como todo

humano, mas é um projeto, importa relevar, não pertencente aos pais. Por isso,

suas possibilidades dizem respeito ao seu mundo e não ao mundo dos pais.

O “ser” do filho e realidade além do “ser” da ontologia. O filho é o

Outro: o outro que não os progenitores; desde sempre “outro”. Não pode

ser possibilidade dos pro-çgenitores porque não se funda no pro-jeto

deles, mas os transcende. (ELL III 185).

Assim considerando, a relação pedagógica já não pode mais ser voltada

para o passado, tendo nele o ponto de partida e o ponto de chegada. Deve,

sim, ser pro-jetada no futuro, em função do novo que é o filho. Essa é a

Pedagógica fundada no amor-de-justiça, aquela que possibilita e fomenta esse

pro-jeto.

A relação pedagógica assim estabelecida deve envolver, segundo

Dussel, dois momentos, o primeiro, ele denomina ensinante, em que o pai-

mestre deve criar no filho-discípulo as condições para que ele encontre o

sentido das coisas existentes em seu mundo; o segundo, é aquele em que o

filho-discípulo passa a inventar seu próprio mundo, então livre. O processo

estabelecido mediante esses princípios é o que Dussel traduz como a analética

Pedagógica, um processo no qual

“o Outro” (o mestre, o pai, o filósofo) deve levar em consideração

duplamente “o Mesmo” (o aluno, o filho, o não-filosófico): primeiro,

radicalmente e com amor de justiça, prque é “Outro” dis-tinto (pólo livre);

e, ao mesmo tempo, historicamente, culturalmente e com amor de

amizade análogo, porque já tem em sua posse um certo “o Mesmo”

semelhante (enquanto fazendo parte de um mesmo mundo cultural: o nós

familiar, da comunidade Pedagógica, nacional, humana). (ELL III 132-

133).

Impende o respeito mútuo, porquanto se por um lado o filho-aluno é “o

sagrado diante do qual nenhum amor é suficiente, nenhuma esperança

115

excessiva, nenhuma fé adequada” (ELL III 189), por outro o pai-mestre é “o

anterior, presença epifenomenal criadora originária, a quem se deve o ser

como realidade, e diante do qual o pagar a dívida é meta-fisicamente

impossível” (ELL III 189).

Dussel resgata o sentido da macehualidade dos Astecas, de suprema

gratidão pela vida.

A Pedagógica da libertação, é preciso sublinhar, envolve uma recíproca

aprendizagem e um recíproco ensinar. O mestre fala ao discípulo com palavras

proféticas que serão aceitas desde que sirvam ao mundo dele, e, para isso,

deve o mestre reciprocamente ouvir o discípulo acerca de sua realidade. Como

se pode subsumir, a Pedagógica estará assim, fundada sempre no outro:

Com efeito, a Pedagógica se desenvolve essencialmente na

bipolaridade palavra-ouvido, interpretação-escuta, acolhimento da

Alteridade para servir o Outro como outro. (ELL III 191).

Deve-se ressaltar, finalmente, que a relação pedagógica deve ter por

objeto não apenas uma mera transmissão de conhecimentos ou verdades pré-

estabelecidas, mas, fundamentalmente, a exposição da maneira crítica como o

conhecimento em pauta foi sedimentado, estimulando novas reflexões e

propiciando novas criações, dentro da realidade de cada um, promovendo, por

conseqüência, a constituição de um novo mundo.

4.3.4 – CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS ACERCA DA

PEDAGÓGICA PROPOSTA POR ENRIQUE DUSSEL A relação pedagógica surge em seguida à relação erótica. É que desta

surge um novo ser que, inserto na sociedade, deverá ser conduzido para a

abertura de suas possibilidades, as quais serão realizadas paulatinamente,

segundo o seu próprio novo mundo constituído. Mas essa liberdade de

possibilidades começa a encontrar obstáculos diante da criação dominadora a

que é submetido pelos pais, a começar pelo dizer meu filho.

Cabe relevar o entendimento de Enrique Dussel no sentido de que a

criança vem ao mundo como uma tabula rasa, e, durante o processo de

ensinamento, percorre todo o tempo de existência do homem na terra, não num

116

processo de repetição ou recordação, mas de inovação, aprendizagem

verdadeiramente dita, manifestando-se aí as possibilidades de se fazer ele

mesmo e, portanto, Outro.

Desde a Grécia Antiga até os dias atuais, os sistemas pedagógicos

sempre buscaram a manutenção dos sistemas vigentes na sociedade e, mais

propriamente, os sistemas dominadores. É o que se constata ao ser analisado,

por exemplo, o método maiêutico de Sócrates, em que o seu discípulo é

sempre levado a concordar com o mestre, num processo em que o novo

pensamento é sempre rejeitado em benefício do pensamento vigente. O

mesmo ocorre também conforme o pensamento de Platão, segundo o qual o

processo pedagógico consiste num recordar o mesmo para que se manifeste

atualmente. Na modernidade, a subjetividade admitiu a tabula rasa, mas se

desviou para afirmar que o ensinamento constitui-se, por exemplo, no

“esclarecer” o ignorante ou no reencontro do mesmo na dialética hegeliana.

Nesse processo, pode-se perceber, mais uma vez, o sufocamento do

ser, do outro, que acaba sendo instrumento do dominador privilegiado, e

formado para servir-lhe, tanto na produção como na consumação. É o

esmagamento da autonomia, da liberdade e da alteridade do ser.

Um processo pedagógico autêntico e livre deve partir de uma analética

de libertação, conduzido por um mestre crítico que atue com o discípulo num

serviço mútuo, movido por um amor pedagógico, em direção à liberdade e

autonomia, formando um outro livre e capaz de escolher criticamente seus

caminhos diante das possibilidades que se lhe apresentam no mundo.

O autêntico mestre começa um novo processo, o caminho inverso

da decadência ou da degradação, inicia um caminho que destrói as

ataduras da liberdade do outro e que em posição crítica o chama a

recupera a sua atitude pessoal. (ELL I 134).

117

4.4 – A POLÍTICA COMO LIBERTAÇÃO E JUSTIÇA

Após a reflexão sobre a proposta dusseliana para a Erótica e a

Pedagógica, importa expor a Política, aquela estabelecida “no face-a-face do

irmão diante do irmão, o cidadão diante do cidadão, o operário diante do

operário” (ELL I 136).

A seqüência expositiva coincide propositadamente com o crescente grau

de alteridade presente durante o “encontro” entre dois seres humanos ou entre

o “Eu” e o “Outro”, mais propriamente dito. A relação que começou com o

amor-de-justiça erótico chega, agora, ao amor-de-justiça político. Assim, Ter-

se-á completada a exposição do processo analético proposto por Dussel.

A categoria Política está presente em todas as relações. É “primeira

condicionante condicionada das demais...” (FL 73). Dussel defende que a

manifestação política ocorre desde o mamar, particular, indivíduo até as

relações entre Estados e sempre, por conseqüência, dentro de totalidades

estruturadas (desde a família até o Estado). É a forma por excelência de

dominação do oprimido, do mais fraco, do mais pobre. Desde a família até o

Estado. Os pais dominam e exploram os filhos, as classes sócio-econômicas

privilegiadas dominam as mais pobres e fracas, o Estados mais ricos e

potentes dominam os mais pobres e de menor poder bélico. Mesmo dentro das

nações periféricas está impregnada essa corrente. Tudo isso fundamentado,

filosoficamente, pela ontologia clássica totalizadora europeu-norte-americana.

O trabalho seguirá a linha adotada até então: a exposição da leitura

crítica de Dussel acerca da realidade, no caso, a política vigente; a de-struição

dos fundamentos dessa política e, finalmente, a apresentação da sua proposta

para uma Política da libertação, vez que “é na política que o face-a-face

adquire sua última significação humana ou sua mais perversa posição.” (ELL IV

32)

4.4.1 – A POLÍTICA NA LEITURA DUSSELIANA A exposição da leitura crítica de Enrique Dussel acerca das condições

políticas vigentes no mundo, sobretudo na América Latina segue sempre tendo

118

em mente a necessidade se fazer uma filosofia autenticamente latino-

americana e mais, uma Filosofia da Libertação.

Enrique Dussel retroage inicialmente às origens das formações políticas

da América Latina, primeiro ponto de partida da reflexão. Importa relevar que,

para ele, deve-se distinguir a política de dominação da política antiimperialista,

ou política da libertação, vez que a primeira, defende adotando as palavras de

Lévinas, “é a arte de prever e de ganhar por todos os meios a guerra” (ELL IV

56), entendendo, ainda, que, na América Latina, o Estado Moderno foi

constituído pelo ego europeu, conforme explica:

A tese fundamental da ontologia política latino-americana formula-

se da seguinte maneira: a totalidade do ‘sistema’ político de nossas

dispersas nações latino-americanas, assim como da América Latina como

Totalidade, foram constituídas pelo ‘eu’ europeu (e por seu

prolongamento geopolítico do ‘centro’). (ELL IV 58).

Aliás, como em outras civilizações, na América Latina “o relato da

origem do sistema político é uma expressão mítica do fundamento ontológico

do próprio sistema” (ELL IV 34).

Também como as demais culturas, na América Latina pré-colombiana, o

centro do mundo era a “Totalidade Política, o sistema organizativo humano”

(ELL IV 34). Mas nem toda a América Latina, como bem o sabemos, tinha essa

organização, sendo encontrados facilmente exemplos de sociedades ainda não

organizadas politicamente em torno de centros, como por exemplo, os tupi-

guaranis, os nômades do Sul, entre outros.

A constituição em torno de um centro e, portanto, identificada com as

altas culturas, só foi verificada nas sociedades Azteca e Inca. “Na Índia

ocidental só foram descobertos dois reinos ou impérios fundados, que é o dos

aztecas na Nova Espanha e o dos Incas no Peru” (J. de Acosta, in ELL IV 35).

Dussel atenta, ainda, para o fato de que nessas sociedades organizadas

politicamente já havia a relação de dominadores e dominados, conforme

escreve:

Nestas totalidades políticas havia, como é de supor, dominadores e

dominados. A dialética do senhor e do servo se apresenta sempre ‘Quem

és tu? Não é meu irmão nem meu parente. Quem és? Agora mesmo te

matarei. Imediatamente encheu-se de espano (Tolgom) [...] Nós te

119

castigaremos, beberemos o teu sangue, disse a Tolgom. Em seguida

se rendeu, capturaram-no, foram prendê-lo e chegaram com ele’

(Memorial de Solalá, I, 35, p. 76. in ELL IV 36).

O europeu, inflado pelo “ego conquiro”, chegou à América e se deparou,

entre outras, com essa organização. Recebidos como deuses, os espanhóis

facilmente dominaram a todos e concretizaram sua façanha. Para os

ameríndios, contudo, o processo foi tido com um rito representativo de um

desastre cosmológico:

É por isso que “viver a história como um rito é nossa maneira de assumi-

la; se para os espanhóis a conquista foi uma façanha, para os índios foi um rito,

a representação humana de uma catástrofe cósmica. Entre estes dois

extremos, a façanha e o rito, sempre oscilaram a sensibilidade e a imaginação

dos mexicanos”. (Octávio Paz, Posdata, in ELL IV 40).

Para Dussel, o face-a-face originário entre o europeu e o índio fez-se,

por um instante, mais do que com respeito, com a própria admiração. Todavia,

essa relação extinguiu-se rapidamente diante das ações de conquista e

exploração.

Para Dussel, o “Eu” europeu formador dos Estados na América Latina,

fora constituído, contudo, de uma categoria alijada do centro, isto é, vieram

aqueles que não podiam contar nem com os privilégios do cristianismo nem da

honra, restando-lhes apenas o ideal de riqueza:

Juntamente com o cruzado partiu também o homem do burgo –

afastado da Igreja e do âmbito feudal -, um ‘terceiro homem’, que, não

podendo ter seu pro-jeto nem na santidade nem na honra, teve que

contetar-se com um ‘estar-na-riqueza’. (ELL I 142).

Assim formou-se a sociedade latino-americana e, mesmo depois das

declarações de independência, o que se viu foi a sedimentação da

dependência em função da Europa.

Foi com essa consciência mítica real do nativo americano que ocorreu o

verdadeiro cataclismo. Assim se estabeleceu a formação política do povo

latino-americano, vencido desde o início, oprimido e explorado:

A visão dos vencidos é da mais alta significação simbólica. Virá a

constituir a compreensão histórica, primeiro dos índios oprimidos, depois

dos mestiços, empobrecidos e imigrantes, camponeses e operários, povo

120

latino-americano por fim. É a visão da história sofrida desde baixo,

visão de um povo que no fim sempre esteve em guerra, mas para lutar

por outro. (ELL IV 40).

A política latino-americana começou, pois, subjugada aos interesses

europeus, estabelecendo-se uma “ordem de dependência e dominação

imperial – a cristandade das Índias” (ELL IV 43).

Diante desse processo, formaram-se, paulatinamente, três ciclos de

resistência, representados por Enrique Dussel dessa forma:

Primeiro, o ciclo do campo, em que a luta foi constituída entre camponês

e oligarquia latifundiária.

Segundo, o ciclo da cidade, onde os operários urbanos lutam contra a

oligarquia nacional.

Terceiro, o ciclo revolucionário, em que os movimentos populares lutam

contra o imperialismo, perpassando os dois anteriores.

É nesse terceiro ciclo que Dussel identifica o movimento propriamente

de libertação. “O terceiro ciclo simbólico atravessa os outros dois, que são de

dominação. É o ciclo simbólico da guerra, ou melhor, da revolução, melhor

ainda, da libertação” (ELL IV 52).

Refletindo sobre os dois primeiros ciclos, pode-se perceber que são

limitados por sua própria natureza e expressam mais a dominação e

exploração de uns sobre os outros do que propriamente um movimento

libertador, o qual, por sua vez, Dussel entende dar-se mais efetivamente na

revolução. Nesse âmbito, ocorre a disputa entre o todo e a parte, entre o

homem e o Estado totalitário. No entanto, é nesse cenário de derrotas e

decepções, de agonia incessante, de vitimação constante do pobre que

começa a surgir o caminho da libertação, e a Filosofia da Libertação tem o

escopo de ajudar a conduzir o povo nesse novo caminho.

Na avaliação dusseliana quanto à política vigente no séc XX, fica muito

evidente que ele vê o mundo organizado pelo sistema centro-periferia, em que

os EUA são o centro principal, unidos à Europa, ao Japão e ao Canadá. O

restante forma uma imensa periferia a serviço do centro.

Na fronteira internacional, e graças à teoria da dependência e do

desenvolvimento desigual, podemos descobrir que há um sistema mundial

cujo centro são os Estados Unidos, e com a interdependência relativa a

121

Europa, o Japão e o Canadá. O resto é a periferia (incluindo também a

África do Sul e Austrália por enquanto) oprimida; o povo do mundo atual

(FL 76).

4.4.2 – A CRÍTICA AOS SISTEMAS POLÍTICOS

TOTALITÁRIOS

Enrique Dussel, em face da flagrante situação de injustiça, de

dominação e vitimação a que a América Latina foi e está exposta, procura

encontrar a origem do desvio que levou as sociedades a esse fechamento

excludente. Por isso, vai até a Grécia Antiga, em busca das primeiras teorias

políticas ocidentais que mais influenciaram a formação do mundo

contemporâneo, nosso segundo e mais radical ponto de partida.

Em Aristóteles, o autor vislumbra o ápice da formação política grega, ou

seja, de sua política totalitária.

Para Dussel, a política da Grécia Antiga é um projeto de auto-realização,

posto que, segundo o pensamento aristotélico, “a pólis é por natureza anterior

à família e a cada um de nos. O todo (tò hólon) é anterior à parte”. (ELL IV 62)

Não bastasse a primazia do Estado sobre o cidadão, ressalta Enrique

Dussel, a tese defendida por Aristóteles de que enquanto uns homens nascem

para ser livres, outros nascem para ser escravos, chegando o estagirita mesmo

a concluir que não são homens (ser pensante) os nascidos fora da Grécia, o

que corrobora a dominação do homem pelo homem. Vale citar:

O ser humano, a Totalidade da humanidade, o horizonte

antropológico chega até os muros da cidade; nem os bárbaros nem os

orientais são homens. A helenidade é o fundamento ontológico do mundo

humano. (ELL IV 62).

Diante desse quadro já se pode antever a dominação do interior da pólis.

No tocante ao regime de governo, Aristóteles defende a democracia, não

porque seja o melhor, mas porque é o menos sujeito à revolução:

Aristóteles, como conservador da ordem vigente, quer encontrar o

regima mais duradouro, e por isso propõe ‘a democracia (porque) é mais

segura (asfalestéra) e menos exposta à revolução (astasíastos)’ Não há

122

exterioridade nem possível práxis libertadora. A Totalidade política é

natural, divina, eterna, helênica. (ELL IV 63).

Dussel aponta, ainda, a pseudo-democracia grega, ressaltando que,

mesmo defendendo a democracia, Aristóteles considerava apenas os “varões

livres helenos” com direito à cidadania, o que corresponde no contexto grego, a

cerca de 10% da população.

Naquele sistema, portanto, a alteridade está anulada e o projeto pessoal

de cada um não tem guarida, cabendo a todos buscarem o bem comum, qual

seja, o bem da pólis, o que, evidentemente, não pode ser considerado justo.

O segundo momento de crítica à política totalitária diz respeito ao

pensamento moderno.

O Estado Moderno, segundo Dussel, encontrou sua maior expressão

teórica em Hegel. Todavia, é importante ressaltar que aquele filósofo, conforme

entende Dussel, inspirou-se em muito na teoria hobbesiana. Por isso, a crítica

ao pensamento hegeliano envolve, preliminarmente a crítica ao Hobbes, a qual

tem como questão central a expressa individualidade absoluta do homem em

estado natural, fundamento da teoria hobbesiana. O segundo problema é o

Estado, que, para Hobbes, é a única solução para os conflito permanente do

estado natural e deve ser absoluto, consoante expressa em suas obras.

O Estado hobbesiano, por esse caminho, funda uma totalidade voltada

para si mesma, com o fim de evitar a guerra interna entre os indivíduos, mas no

tocante ao exterior, ao “outro”, esse Estado preocupa-se em vencer a guerra

com o inimigo. Aqui, o Estado hobbesiano volta, conclui Dussel, ao estado de

natureza, pois não há nenhum limite para suas ações, desde que seja para

defender a consecução de seus fins. Assim explica Dussel:

O pro-jeto ontológico de tal Estado funda o sistema político vigente

que tem os que pacturaram por centro e fim, mas ao mesmo tempo, não

nenhum limite fora de si e se comporta, com relação aos outros Estados,

como na ‘condição natural’, isto é, podendo ‘usar seu próprio poder

[imperial] como quiser’. Em sua essência, a racionalidade da política

hobbesiana pode ser definida como o pacto para não fazer a guerra entre

si a fim de qe na paz do Estado se possa ganhar a guerra contra o inimigo

exterior. (ELL IV 64-65).

123

O Estado Moderno, pois, formou-se totalitário e imperialista, com a

influência marcante de Hobbes e tantos outros contratualistas. Ficam, assim,

demonstradas duas vertentes de dominação desse Estado: a primeira, de

caráter interior; e a segunda, exterior. Basta atentarmos para o sistema político

grego e concluiremos que essas são as mesmas características da Totalidade

política na Grécia antiga, com uma roupagem moderna. Essa totalidade

encontrou seu grau máximo na teoria de Hegel, posto que até então, o Outro

era objetivado e servia ao Mesmo, mas ainda era considerado Outro. Com

Hegel, essa alteridade foi extinta definitivamente, como desdobramento do seu

princípio de que “o real é o racional e o racional é o real”, pois diante dessa

concepção, que pode ser expressa também como a identidade entre

pensamento e objeto, o Outro deixou de ser Outro (homem objeto-útil latino-

americano) para ser parte do Mesmo (ser pensante europeu).

O primeiro princípio da teoria hegeliana é a liberdade absoluta do

espírito, que se identifica com a “vontade livre” do ego europeu.

A ‘vontade livre’, horizonte ontológico originário e fundante da

totalidade da política é o ego europeu, subjetividade conquistadora,

dominaodra e imperial desde o século XV – se não recuarmos até o

século XI com as Cruzadas. (ELL IV 68).

Essa vontade livre, todavia, é abstrata e sua realização exige uma

manifestação concreta, a qual ocorre mediante a posse do que lhe é exterior:

Para o ego sem limites, ontológico, do europeu moderno, para a

subjetividade constituinte originária, a relação primeira que pode encher-

se de conteúdo é a relação econômica homem-natureza. (ELL IV 69).

Retornando ao contexto sócio-econômico daquela época, verifica-se que

a relação econômica estava expressa no “ideal de riqueza” do homem moderno

e, sobretudo, no “terceiro homem” que vieram para a América Latina. Os

europeus superaram, então o contrato político-guerreiro de Hobbes para fundar

o contrato econômico-burguês. Em sua crítica, afirma Dussel:

É a determinação primeira do homem burguês europeu, dominador

do índio, africano e asiático por seu afã de riquezas [...] A posse da coisa

(e seu universal abstrato como valor de troca: o dinheiro) é a primeira

determinação do homem burguês. (ELL IV 69-70).

124

O referido sistema é contraditório em si mesmo, pois como o próprio

Hegel previu, a acumulação de riquezas por uns implica na ampliação da

miséria e dependência dos demais, condição necessária para a realização de

um Estado absoluto.

Para controlar essa contradição, Hegel propôs duas medidas que em

última análise afirmam a exclusão: primeiro, a manutenção da ordem com o

policiamento e proteção do universal contra o particular; segundo, a exportação

da mão-de-obra e dos produtos europeus para as colônias. Mas, para

concretizar esse plano, sobretudo no segundo aspecto, seria preciso que as

colônias fossem livres. Por isso Hegel vê com “bons olhos” a libertação das

colônias, vez que a “libertação das colônias se manifesta como o maior

benefício para a metrópole assim como a libertação dos escravos é o melhor

benefício para o senhor”. (HEGEL, in ELL IV 75).

Essa “libertação”, consoante se depreende do exposto, justifica-se, no

pensamento hegeliano, apenas e tão somente para o benefício maior da

metrópole. E para evitar o risco de o Estado absoluto vir a se realizar na

América Latina, Hegel defende, então, a criação de Estados liberais nas novas

nações, ao contrário do que pensa em relação à Europa, conforme explica

Dussel:

Ou seja, na Europa se passa ao Estado absoluto graças às

contradições da sociedade burguesa, ao passo que nos Estados

neocoloniais não podem produzir-se a tal ponto tais contradições, e por

isso, na melhor das hipóteses, chegarão ao Estado exterior da sociedade

civil, mas não ao “Estado orgânico”. (ELL IV 75).

Dessa forma, Hegel reconhece o Estado absoluto somente na Europa,

com a clara divisão das classes, produzindo a contradição necessária. Já nos

Estados neocoloniais essa contradição não se cristalizaria, segundo Hegel, em

razão, também, da existência de muito espaço para ser explorado, o que

impediria um choque de classes.

E assim chega-se à situação política atual, seguindo sempre o modelo

europeu imperial, dominador, de exclusão da alteridade e, pois, de profunda

injustiça.

125

A proposta de Enrique Dussel trata dessa questão, a práxis da

dominação que se estabeleceu pela exploração econômica e pela política

voltada para essa exploração:

A práxis de dominação do imperialismo se realiza em dois níveis:

no econômico, pela extração de uma plusvalia mundial neocolonial de

segundo tipo; e ao qual se endereça o poder político respaldado pelo

controle militar. (FL 78).

4.4.3 – PROPOSTA PARA UMA POLÍTICA DE

LIBERTAÇÃO Enrique Dussel, considerando a injustiça política em que vivem os latino-

americanos e outros povos periféricos, bem como a insuficiente e mesmo

perversa fundamentação filosófica ontológica de todo esse sistema, propõe

uma Filosofia da Libertação política do povo. Para isso, começa por admitir que

“todo sistema político tem um projeto, um fim, o ser da ordem vigente” (ELL IV

120).

Preliminarmente, é preciso esclarecer a distinção entre ‘interesse’

comum ou ontológico de um sistema politizado é o ‘bem’ comum metafísico de

uma ordem futura de libertação ainda não realizada, porque advém daí um

sistema totalitário ou comunitário, conforme o caso.

O primeiro envolve um projeto dialético com fim na totalidade do

sistema, negando e excluindo o Outro. O segundo, sim, trata-se de um projeto

analético de realização do homem, sempre voltado para o respeito ao Outro,

seja como nação, classe ou pessoa:

Um pro-jeto é eticamente “justo”, quando se trata do horizonte de

com-preensão de uma nova ordem futura na qual o Outro político, a

nação dependente, a classe ou pessoa oprimida, é um momento livre na

solidariedade da nova Totalidade política adveniente. (ELL IV 121).

O projeto político de dominação compreende o Outro como parte do seu

próprio projeto; por isso também funda a dominação e conquista. Já o projeto

político existencial de libertação não compreende em si o Outro. Ao contrário, é

voltado para a realização do projeto do Outro, que lhe é exterior. Esse projeto

vai, pois, além da totalidade.

126

Nesse distanciamento, parte-se do irmão e se chega ao mais dis-tinto

e dis-tante, o inimigo, o estrangeiro, o pobre. É, portanto, um processo de

abertura da totalidade, um caminho que vai do mesmo para a máxima

alteridade. E é nessa situação limite, em que alguém se abre ao inimigo que

necessita de ajuda, que vem à tona o amor-de-justiça. É ir além do horizonte

da visão, numa abertura ao misterioso, ao incompreensível. E a instauração do

diálogo é o que permitirá essa superação do visível, que exige,

necessariamente a con-fiança metafísica no outro, que se traduz pela

benevolentia , isto é, o querer bem ao outro. Para que isso seja possível, é

fundamental o respeito ao outro enquanto tal, com seus pro-jetos e dis-tinções,

bem como servir-lhe sem esperar qualquer benefício em troca, sem esperar

que o outro lhe preste algo de sua alteridade. Por isso, pode-se inferir, é

fundamental ouvi-lo para poder servi-lo. Assim, o processo metafísico altérico

funda a paz, o amor, ao contrário do sistema totalitário, que funda o domínio, a

escravidão e as culturas dependentes.

Destarte, para que se possa encontrar uma sociedade em que impere a

justiça e a paz, impende a adoção de uma metafísica da alteridade, que supere

o mesmo e sua totalidade dominadora, fundando a amizade, o amor-de-justiça.

Caso contrário, perdurará sempre o sistema totalitário que divide o mundo em

centro e periferia, dominantes e dominados, exploradores e explorados,

opressores e oprimidos.

Para abrir o sistema totalitário vigente, entende Dussel que é necessário

um processo de conscientização das classes operárias das nações periféricas,

as quais devem-se unir e trabalhar para romper essa totalidade alienante e,

assim, poderem manifestar sua liberdade real de escolha de suas

possibilidades ônticas.

A ontologia da Totalidade e de “o Mesmo” é uma filosofia da

guerra; pretendemos aqui, ao contrário, propor os fundamentos de uma

meta-física ou ética da paz; mas não há paz sem alteridade, e não há

alteridade autêntica sem a violência justa que abre a Totalidade fechada e

injusta à Alteridade negada. (ELL IV136).

A América Latina, conclui Dussel, foi a primeira situação de

manifestação, na Modernidade, da “vontade de poder” do homem europeu,

advindo do cogito ergo sum, e que se traduziu pela vontade conquistadora ou

127

dialética. Obviamente para a realização dessa vontade, alguém deve ser o

dominado, o conquistado, e não foram outros senão os povos latino-

americanos, que acabaram por formar culturas dependentes do europeu, ou

seja, num movimento opressor de fora para dentro.

Para estabelecer um projeto de libertação efetiva, entende Dussel que

“somente os socialismos democrático-populares mostram ser um modelo real

de libertação, de autonomia de eleição para a periferia” (FL 81). E ressalta,

ainda, que o projeto de libertação não pode se estruturar em frentes

interclassistas, pois enquanto luta de classes, o que ocorre é a união das

classes dominantes nacionais à multinacionais, e, por conseqüência, o

esmagamento das classes operárias.

Para por um fim a esse círculo vicioso, Dussel propõe, finalmente, a

“libertação das nações periféricas e tomada do poder das classes populares,

para organizar realmente a formação social. A filosofia da libertação em seu

nível político, deve ter isso bem claro, do contrário se transformaria novamente

numa ontologia ideológica, confusa, encobertadora, reformista e pequeno

burguesa” (FL 82).

128

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nestas considerações finais deve ser colocada em destaque,

preliminarmente, a importância de Enrique Dussel para a América Latina e, por

extensão, para todas as periferias. Seu trabalho não encerra apenas a

coragem de se levantar contra a vitimação imposta pelas elites dominantes,

mas, sobretudo, envolve pesquisas histórico-filosóficas rigorosas, as quais

fundamentam sua leitura e justificam suas críticas e também suas propostas.

Em sua formação filosófica é evidente a influência de filósofos como

Heidegger e Lévinas, dentre outros, além é claro de Karl Marx. Em sua primeira

fase, Dussel adota a filosofia ontológica de Heidegger, chegando a escrever

“Para una de-strucción de la história de la Ética” com a idéia de estabelecer

uma Ética ontológica, embora já no final daquela obra reconheça essa

impossiblidade. A partir do encontro com Lévinas, seu pensamento voltou-se

para uma Ética metafísica e assim encontrou o fundamento definitivo para sua

Filosofia. Em seu momento atual, diante de sua mais recente obra “Ética da

Libertação na Idade da Globalização e da Exclusão”, não abandona sua

concepção de Ética, mas propõe e fundamenta uma Ética material com

conteúdo de validade universal, o que talvez possa vir a ser considerada uma

conciliação entre as duas etapas anteriores.

A Justiça é, sem dúvida, um dos focos centrais de seu pensamento,

perpassando todas as suas obras. Todo o seu trabalho filosófico busca

encontrar uma solução que ponha fim à exploração sofrida pelas vítimas do

sistema vigente. Por isso sua Ética é material e não meramente formal. De fato,

se não se tiver como princípio a vida terrena do modo como pensa Dussel,

sempre haverá a permissão para a perpetuação da dominação.

Dussel, mesmo sendo também teólogo, não se rende à saída natural

encontrada pela maioria dos filósofos teístas – Deus – e busca em Levinas o

princípio fundamental de sua filosofia, o Outro metafísico. A vida terrena é a

situação que deve ser protegida, e a Justiça é a categoria fundamental que

deve reger as relações humanas. O projeto pessoal de cada um deve estar

pautado na responsabilidade pelo Outro, o qual se constitui na pedra angular

da teoria dusseliana.

129

A única forma de sustentação de sua teoria é entender o Outro tal

qual Levinas, como além da minha capacidade de compreensão, exterior ao

meu mundo. Mas o próprio Levinas já ressaltava que do encontro com o Outro

podem se estabelecer dois tipos fundamentais de relação: de dominação ou

responsabilidade. Para Dussel, o sistema vigente está fundado na primeira

situação. Sua proposta trata de uma mudança de concepção de vida a partir de

cada um. O que deve ser pensado, nesse sentido, é como transformar o

homem do século XXI, o qual tem a concepção enraizada, há mais de 2.500

anos, do egoísmo e da competição.

Para mudar um hábito, existem dois caminhos. Ou se muda pela força –

e nesse caso temos a dominação. Ou se muda pelo convencimento, cuja

etimologia indica bem o significado do termo: vencer com, vencer junto. Nesse

caso tem-se a mudança do pensamento, consistindo, pois, em uma mudança

autêntica, legítima. Nesse sentido Dussel propõe as mudanças nas categorias

fundamentais da Erótica, da Pedagógica e da Política, pretendendo convencer

de que há uma possibilidade de Justiça para esse mundo. Mas cabe a cada um

começar a torná-la realidade.

A Erótica é a categoria fundamental mais importante, posto que dela se

origina a vida, mas está viciada desde muitos séculos e precisa ser repensada

urgentemente. Somente a partir de uma relação de respeito entre homem e

mulher o mundo poderá começar a melhorar. Mas até que ponto uma proposta

calcada na visão ocidental pode servir a todas as culturas, mesmo às mais

distantes? Deve ser ressaltada, nesse sentido, a questão das várias culturas

que colocam a mulher em condição de vítimas, aos olhos ocidentais, mas como

julgar costumes milenares que são tão respeitados e sagrados? Essa é uma

questão que merece um estudo mais detido, sem dúvida, em pesquisas

futuras.

No tocante à Pedagógica, importa notar a proximidade da teoria

dusseliana com a teoria pedagógica de Paulo Freire, posto que ambas criticam

o desvinculamento existente entre a prática pedagógica e a realidade dos

alunos, defendendo processos pedagógicos que sejam fundados nos valores

culturais locais e não, como tem sido, privilegiando valores europeus e

estadunidenses.

130

Em relação à Política, Dussel propõe uma sociedade fundada no

amor-de-justiça, em que os projetos atendam às necessidades das vítimas,

defendendo, mesmo, a tomada de poder pelas classes populares. Contudo,

uma questão fica para ser repensada, pois todo o seu pensamento parece

indicar a exigência de uma nova organização política, a qual, entretanto, não é

esboçada em suas obras, mesmo as mais recentes.

Evidentemente, para chegar à conclusão de que é necessário

reestruturar a sociedade a partir de um novo paradigma ético, Dussel dedicou

boa parte de sua vida às pesquisas histórico-filosóficas. E uma de suas

inovações em termos metodológicos é a analética, que vai além da dialética,

posto que parte do Outro considerado exterior à totalidade. E é mediante esse

método, esse prisma, que Dussel encontra o nascedouro da Filosofia desde as

sociedades anteriores à Grécia Antiga, mostrando que o conteúdo ético-

filosófico faz parte de todo agrupamento humano.

A análise histórico-filosófica das altas-culturas realizada por Dussel

cumpre o papel suficiente para desfazer o mito do nascimento da Filosofia na

Grécia Antiga, bem como para fundamentar sua proposta de resgate do valor

da vida terrena. Porém, talvez seja necessário ainda um estudo mais detalhado

de outras sociedades distantes para uma proposta de efetiva Justiça mundial,

de conteúdo ético de validade universal, tal qual proposto por Dussel. De toda

sorte, abriu-se uma nova visão filosófica a partir de Dussel, apresentando uma

alternativa à sociedade vitimária.

A sua crítica aos mais importantes filósofos ocidentais desde a Grécia

Antiga apresenta os aspectos que mais influenciaram a formação da sociedade

atual. E Dussel é veemente contra aqueles que não apresentaram propostas

contra a vítimação e a exploração do Outro, pois isso permitiu a ampliação da

violência contra as periferias.

Mas, ao contrário de muitos outros pensadores contemporâneos,

que negam totalmente o sistema vigente, como por exemplo, Marcuse, Dussel

assume a impossibilidade de se estabelecer uma nova sociedade, descartando

tudo o que já foi construído. Por isso, a de-struição dos sistemas que existiram

ao longo dos séculos envolve não o aniquilamento, mas o desmonte das

muitas teorias que influenciaram a formação do mundo contemporâneo,

131

sempre com o fim claro de aproveitar o que há de melhor para uma nova

proposta libertadora e fomentadora da Justiça.

132

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