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e-book - linguagens.ufba.br · tar sobre “O Texto Literário e o Fenômeno da Intertextualidade”, tema ainda pouco ... A criação artística, filha do mito, homem público, com

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&Literatura intertextualidadeUm estudo sobre a resso-nância de vozes no textoliterário, que demonstra opermanente diálogo man-tido pelas obras entre si,ou pelas diversas manifes-tações artísticas, onde umtexto remete ao universode outro texto; e onde umacomposição musical evo-ca outra obra de arte.Pintura, arquitetura, cine-ma, teatro, música e lite-ratura são exemplos de ex-pressões artísticas quenão ficaram imunes ao di-álogo das obras entre si,numa cumplicidade alici-ante para com o público.A troca de experiências éuma atitude essencial dohomem, também assumi-da por uma das manifes-tações mais complexas doseu espírito: a arte.

Cid Seixas

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LITERATURAE INTERTEXTUALIDADE

(2a edição eletrônica revista)

CONSELHO EDITORIAL:

Denise Coutinho (UFSB)Denise Teixeira (LITERA)

Flávia Aninger Rocha (UEFS)Massaud Moisés (In Memoriam)Vitor Hugo Martins (UNEB)

Cid Seixas (UFBA | UEFS)

Coleçãoe-poket

Composto em Original Garamond, Corpo 12Formato 100 x 160 mm., 60 p.

Publicado em 2015e revisto em 2018

Capa sobre detalhe de afrescode Sandro Botticelli

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SUMÁRIO

Implicit .................................................... 7

Literatura e Intertextualidade ................. 9Dialética e Intertextualidade ................... 13Um Poucode História das Idéias .............................. 21Intertextualidadee Despersonalização ................................ 29A Intertextualidadecomo Fato Social ................................. 37

Apêndice .......................................... 43Anexo ..................................................... 51

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Euclides Neto é um escritor nascidono sul da Bahia e pertencente à geraçãode ficcionistas de 45, com seus tormen-tos e conquistas do após guerra. No Bra-sil, essa geração, intrinsecamente com-plexa, veio amadurecer e ampliar os re-cursos do Romance de 30 eclodido nonordeste.

No caso das obras escritas por auto-res da região cacaueira da Bahia, entre asquais fulguram as criações de Jorge Ama-do e de Adonias Filho, os romances deEuclides Neto ganham cada vez mais

Capa da primeira edição impressa, de 1994.

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IMPLICIT

Nullum est iam dicitumquod non sit dicitum prius.

Este volume reproduz, sem modifica-ções, além dos acréscimos abaixo mencio-nados, o trabalho apresentado pelo autor,em novembro de 1985, como prova escritado concurso público para professor de Te-oria da Literatura da Universidade Estadualde Feira de Santana, ao qual se submeteu.

Sorteado o ponto, foi proposto disser-tar sobre “O Texto Literário e o Fenômenoda Intertextualidade”, tema ainda poucoexplorado na bibliografia brasileira dos anosoitenta.

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Como se trata de um texto circunstanci-al, escrito em sala de aula, perante uma ban-ca examinadora, não apresenta o aparatobibliográfico, as citações e as notas usuaisem trabalhos acadêmicos. A impossibilida-de de recorrer às fontes citadas, durante aredação da prova, justifica a incompletudedos dados. Decidiu-se manter o texto naforma então apresentada, como registro deum momento; dando título a cada uma dascinco divisões originais e inserindo um “Apên-dice” – constante de um novo texto do au-tor – e um “Anexo” com exemplos de poe-mas de Drummond que serviram de pontode partida para duas composições de ChicoBuarque de Holanda. Com isso, espera-secontribuir para tornar a leitura proveitosa ea publicação menos insípida.

C . S.

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LITERATURA EINTERTEXTUALIDADE

A sociedade moderna, ao suspeitar dafalência de seus alicerces individualistas, ena-mora-se. Socializa-se. Como forma de so-brevivência.

Se o indivíduo, com tudo que dele deri-va, é o centro cósmico da sociedade bur-guesa e da sua forma de arte mais legítima,a arte romântica, o homem, enquanto indi-víduo, é derrocado do seu posto pelas rela-ções sociais que se instauram em nome dacoletividade e de uma sociedade nova, utó-pica e realista.

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A criação artística, filha do mito, homempúblico, com a propriedade privada, mulherfiel ao dono, depois de longos anos longedo pai, e de habitar a casa materna, volta-seedipianamente para o pai da horda, qual fi-lha pródiga. Em outras palavras: assimcomo, nos tempos ancestrais, o homemcompartilhava todos os bens, materiais eespirituais (ou melhor, quase todos), tam-bém a língua, o mito, a poesia, a música e adança se casavam num rito único, vislum-brado por Rousseau, na esteira de Vico.

Falar, fabular, poetar, cantar e dançareram, ao mesmo tempo, uma só coisa. Afala, fabulosa, era, a um só tempo, música,poesia e dança. O amor coletivo durou umpouco. A separação veio depois.

Enquanto mito e rito, a arte era umaconstrução coletiva, um grande sonho re-partido e uno, expressão do desejo tribal,onde as vozes e falas se harmonizavam, àsvezes em dissonâncias, fundindo váriasvertentes.

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Se o texto era de todos, a alteração, aatualização do texto, para dizer várias ver-dades em processo, se dava no âmbito dopróprio texto. Com a sua transformação empropriedade privada, as palavras não maispertencem ao vento, ou à boca de quem porelas é beijado, e a reconstrução do textoimplica sempre um novo texto, não maisinter, mas intratextual, onde o novo emissorse afirma senhor e dono.

Mas meu discurso será sempre um meroretorno do recalcado: dos discursos ouvi-dos, enquanto grito para ouvir a voz dodono. Por isso, para preservar o meu domí-nio sobre o verbo, reconheço a referênciaao verbo do outro.

Em poucas palavras, como convém à cir-cunstância, podemos compreender o con-ceito de intertextualidade, de um lado, en-quanto fato social e, do outro lado, enquan-to fato da série literária – ou artística – de-terminado pelas relações sociais.

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Este fenômeno pode ser descrito comoa ressonância de vozes no texto literário. Oucomo o permanente diálogo mantido pelasobras entre si, ou pelas diversas manifesta-ções artísticas, onde um texto remete aouniverso de outro texto; e onde uma com-posição musical evoca outra composição.

Pintura, arquitetura, cinema, teatro, mú-sica e literatura são exemplos de expressõesartísticas que não ficaram imunes ao diálo-go das obras entre si, numa cumplicidadealiciante para com o público. A troca deexperiências é uma atitude essencial do ho-mem, também assumida por uma das ma-nifestações mais complexas do seu espírito:a arte.

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DIALÉTICAE INTERTEXTUALIDADE

Comecemos nosso discurso sobre otema intertextualidade usando a dialética.Como este conceito nasceu, enquanto ob-jeto de estudos acadêmicos, do diálogo, doexercício dialógico e da polifonia de vozes,nada melhor do que a dialética, tambémnascida do mesmo tronco, o diálogo (destavez primeira, de Sócrates, não deDostoievsky), para tentar pensar o proble-ma.

Para iniciar um ritual acadêmico, ondenos é proposto discutir o texto literário e ofenômeno da intertextualidade, a dialética se im-põe como um jogo sedutor:

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– “A intertextualidade não existe. O queexiste é uma ficção (ou uma fixação) de na-tureza interpretativa e classificatória da crí-tica universitária.”

– “O texto não existe. Só a intertextu-alidade existe. O que há é o intertexto: o tex-to que é um pedaço do pretexto. O mais ésilêncio. E vazio sem vozes.”

Partindo deste diálogo verossímil, exa-minemos a questão proposta. Comecemospor suspeitar da existência do nosso objetocomo forma de busca da sua existência.

Se a literatura é um grande diálogo, istoé: se o texto A é um texto literário porquepertence a um sistema semiótico, ou estéti-co, e presentefica-se em correlação com umtexto B, é a função, no sentido algébrico ouno sentido da glossemática hjelmsleviana, queatribui valor, ou mesmo existência, comotal, a este objeto.

Se existisse um único texto tido comoliterário ou se não houvesse sempre, ad per-petuam, textos que continuam a fala iniciada

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por outros textos, ao longo da história dohomem, haveria literatura ou texto literá-rio?

O texto literário existe enquanto elemen-to algébrico, cujo valor é determinado peloconjunto, pela série; isto é, existe enquantofuntivo de uma função cujo sentido e cuja iden-tidade se originam da sua relação com osoutros termos da mesma ordem.

Por outro lado, todo texto ganha exis-tência e identidade quando rompe com umtexto já formado. Bachelard propõe a ima-ginação poética como consistindo não emformar as imagens, mas em deformá-las.Barthes acrescenta que a obra literária co-meça precisamente onde ela deforma seumodelo ou, para falar de forma mais preci-sa, seu ponto de partida.

Se para Barthes não há modelo, mas pontode partida, cada texto é sempre um novo tex-to. Se para Bachelard é deformando que aobra se faz, toda obra nasce dos escombrosde outras obras, isto é, de obras preceden-

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tes. Se o novo texto precisa que o materialde outros textos apodreça e purifique paraque, desse solo, nasça o novo, o texto B sedistingue do texto A do mesmo modo queuma planta se diferencia de outra planta quedela brota.

E se quisermos ainda ficar com Barthes,poderemos usar tais formulações para ne-gar a per tinência do conceito deintertextualidade, observando a suspeita aoque ele chamou de crítica universitária, ou crí-tica positivista. Esta, no afã de conferircientificidade ao seu método e, por exten-são imprópria, ao tratar o seu obscuro objetocomo um fenômeno objetivo, material etangível, como convém a todo objeto semdesejo, dócil e dúctil, procede investigandoas origens, construindo relações genéticas.

Diz o autor de Crítica e Verdade: “Trata-se sempre de colocar a obra estudada emrelação a alguma coisa outra, um alhures”. Ou,conforme acrescenta, no mesmo livro, “im-plica a certeza que escrever nunca é mais doque reproduzir, copiar, inserir-se em”.

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Uma criativa continuadora do pré-textobartheano (já que algo continua alguma coi-sa), Leyla Perrone-Moisés, em Falência daCrítica, livro sobre Lautreamont, reforça osargumentos anteriores de que a crítica uni-versitária, por ela chamada de crítica das fon-tes, vive da busca de encontrar algo por trásdo texto. Esta crítica, segundo Leyla, exultaao encontrar a fonte em que o autor bebeu,enquanto o crítico demonstra sua erudiçãoao surpreender a não originalidade do es-critor.

Sobre tal prazer da crítica é ilustrativo ocaso de T. S. Eliot, autor de duas obras apon-tadas nas escolas como casos comuns deintertextualidade, The waste land (ou, por fal-ta de mais expressiva tradução, A terra gasta)e os Quatro quartetos.

Quando o poema The waste land foi pu-blicado, a crítica se empolgou apontandoos “plágios” de Eliot, fato que serviu paraconstruir o prestígio de muitos eruditos.Nos Quatro quartetos o poeta deu o troco

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em milhares de moedas miúdas. Não pagouem cédulas graúdas. Fez constar do livro, atítulo de bonificação, os andaimes da obra,todos aparentes e reunidos. Anotou o seupercurso, suas referências e influências, seucampo de analogias, sem deixar lugar parao erudito deitar e rolar. Ou melhor, resol-veu suspender o gozo da crítica. Tadinha!

Como o poema não era suficientementeextenso para um volume vistoso, Eliot re-digiu longas notas relacionando seu poemaa toda uma tradição literária. Assim, alémde obter um livro com razoável número depáginas, para torná-lo editorialmente viável,comercial, portanto, o ato do voyeur estavaconcluído pelo próprio ato do prazer cria-dor do texto. E, como quase confessou opoeta, não mais haveria o gozo da crítica.

Surpreendentemente, ocorreu que asnotas sobre os Quatro quartetos, ainda segun-do o mesmo Eliot, se tornaram mais apre-ciadas do que o próprio poema. Elas entãoé que passaram a ser discutidas, citadas, ana-

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lisadas. E como as notas constituem umaescritura abertamente intertextual, foramelas o objeto do gozo acadêmico. Penetravaassim o poeta-crítico no pantheon daintertextualidade teórica, parafraseando oque era velado pela escrita criativa do poe-ma.

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Salvador Dali dialoga com Leonardo Da Vince, pintando umaMonalisa com seus olhos e seu bigode. Para situar a tela noquadro do capitalismo, carrega moedas nas mão masculinas.

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UM POUCO DE HISTÓRIADAS IDÉIAS

Enquanto a crítica burguesa tece a teiado que vive, cadastrando os bens privadose contabilizando as posses, uma pequenaparte da crítica que se pretende não-bur-guesa, de formação marxista, portanto, paraser coerente, radicaliza o processo ao vis-lumbrar a ausência de autoria; ou a criaçãosocializada.

Mas, seguindo tais caminhos, podemossuspeitar também que os argumentos arro-lados para afirmar que “a intertextualidadenão existe” podem ser usados para afirmar

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que “só a intertextualidade existe”, enquan-to texto, intertexto, que é um pedaço ou umaextensão do pretexto.

Se, por um lado, a intertextualidade é umfantasma da crítica que se materializa sobre-modo na criação do século XX (quandoganha contornos intencionalmente defini-dos), a crítica da intertextualidade é umaimposição do processo criativo da arte en-quanto fato social, isto é: fato que não per-manece alheio aos desdobramentos da his-tória; embora a ela não se submeta, meca-nicamente, mas com ela dialogue, dialógicae dialeticamente.

Tomemos, então, a outra face da meda-lha, como consequência da discussão atéaqui tecida: como elemento dialógico, ousegundo termo da suspeita de que aintertextualidade não existe, procuremos naspegadas passadas a existência do nosso ob-jeto.

Aristóteles faz a distinção, na sua Poética,entre duas espécies de mitos presentes na

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obra poética: os mitos tradicionais e os mi-tos inventados pelos poetas. Para ele nãohá nenhuma hierarquização entre estes doisprocedimentos estéticos. São igualmentepoetas tanto aqueles que produzem seuspróprios mitos, através da fabulação, quan-to aqueles que constroem o reino do veros-símil poético sobre mitos já existentes, fru-to do engenho fabulatório coletivo.

O autor da Poética e da Retórica reconhe-cia que o poder de reciclagem desses mitosnum novo sistema de significações asseguraa natureza do texto poético. Daí a impor-tância que assume a elocução, fundadora deum novo sentido, um sentido universal so-bre o particular. Desse modo, um mito am-pliando os feitos de um rei se torna poesiaquando deixa de ser particular – ou seja, dedizer respeito apenas aos fatos e circuns-tâncias deste personagem real, situado edatado – e, a partir da verossimilhança, setorna universal. Abandona seu significadooriginal em favor de todo um universo de

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sentido. O que quer dizer: aberto, aplicável aoutras situações e a outros sujeitos.

Observe-se que, para Aristóteles, mito eratanto o que hoje a antropologia compreen-de como tal, quanto era também correspon-dente a fábula, história, ou outro nome dadoaos motivos da obra. Dizia respeito a umanarrativa comum a todos os indivíduos, so-cial, portanto; e também à fabulação de umanarrativa individual.

Instaurava-se, avant la lettre, desde a anti-guidade, a discussão sobre a intertextu-alidade, embora somente anos mais tardeos olhos da teoria percebessem o fato teo-rizado. Somente com um livro publicado porBakhtin na década de vinte e descobertopela inteligentzia acadêmica nos anos seten-ta, com a tradução francesa a que todospudemos ter acesso, Problèmes de la Poétiquede Dostoievsky, o fenômeno da intertextu-alidade foi absorvido pelo “sistema da modauniversitária”. Para isso concorreu decisiva-

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mente o estudo de Julia Kristeva, um dosprimeiros a tratar do assunto.

Mas se os antigos propiciaram o diálogoentre as obras literárias, o Renascimento foio grande motor do estabelecimento siste-mático das relações entre os textos. Lem-bre-se que, segundo a estética renascentista,o verdadeiro escritor era aquele capaz deretomar os grandes modelos clássicos. Odesafio proposto consistia não apenas nodiálogo com os mestres da antiguidade, masna tentativa de superação dos seus limites.Aí a diferença entre o mero imitador,plagiador, por tanto, e o artista doRenascimento – aquele que sabia estabele-cer um diálogo criativo com os modelos ti-dos como ideais de perfeição estética.

A intercomunicação dos discursos não énada de novo, conforme Leyla Perrone-Moisés já demonstrava na Falência da crítica.O que é novo, a partir do século XIX, é queesse inter/relacionamento dos textos apa-

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rece sistematicamente e é assumido, embo-ra de forma implícita, pelos escritores.

Do mesmo modo, foi preciso o adventodo século XX, ou mais precisamente da ver-tente semiológica dos estudos teóricos, daqual Bakhtin é um dos expoentes maiores,para que a discussão do fenômeno já vis-lumbrado por Aristóteles, como tentamosfazer ver acima, tivesse circulação e visibili-dade.

No seu polêmico livro O marxismo e a fi-losofia da linguagem (publicado na Rússia deStálin com o nome de Volochinov, desapa-recido ao lado de outro condiscípulo naépoca dos expurgos ideológicos: Medvedev,que também figurou como autor de dois li-vros do mestre Bakhtin), o autor lança asbases de uma semiótica marxista livre deexpurgos, e, ao mesmo tempo, do que viriaa ser a moderna sociolinguística.

O diálogo ocupa vários capítulos do li-vro. Não é sem causa, aliás, que o diálogo sefaz objeto da sociolinguística e que, no Bra-

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sil, o diálogo literário ensejou um dos pri-meiros livros sobre esta disciplina, quandoatravessava um estágio deveras inconsisten-te. Trata-se de Sociolinguística: os níveis da fala,de Dino Preti.

Bakhtin, não nos afastemos do nossoassunto, analisa detalhadamente o diálogodo ponto de vista semiótico, estabelecen-do, ou melhor, descrevendo o funcionamen-to do que denominou “o discurso de ou-trem”. No já clássico livro Problèmes de laPoétique de Dostoievsky, ele retoma questõeslevantadas em estudo anterior, numa apli-cação dos seus conceitos à obra do roman-cista. Surge assim a caracterização do ro-mance polifônico, da construção poéticaverdadeiramente dialética: aquela que não selimita a executar movimentos de variaçãosobre um mesmo tema – o ponto de vistado autor, suas convicções, dúvidas e sua vi-são do mundo; em síntese, sua ideologia. Segrande parte das obras literárias serve para,através da máscara dos personagens, o au-

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tor camuflar sua própria fala (não esqueça-mos que Madame Bovar y c ’est moi), emDostoievsky, são várias ideologias postas emcampo que levam Bakhtin a falar em “lapluralité de voix et des consciences indepen-dants”. É precisamente esta dialética quedeixa no leitor a impressão de que não setrata de “um seul auteur-artiste qui aurraitécrit des romances, mais à toute une sériede philosophes, à plusiers auteurs-penseurs”.

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INTERTEXTUALIDADEE DESPERSONALIZAÇÃO

Mas o fenômeno não fica apenas emDostoievsky. O que acabamos de ver é umcaso típico do que na poesia moderna vaise chamar de despersonalização. Trata-se de umcorrespondente romanesco do fato queaparece no poeta apontado como iniciadordas posições constelares da modernidade,Charles Baudelaire. Enquanto os românti-cos se caracterizam pela expressão do eu,Baudelaire busca a impessoalidade, o outro,a possível objetividade, a mesma objetivi-

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dade que levou Edgard Alan Poe a se de-bruçar sobre os textos baudelaireanos.

É ainda esta despersonalização que se cons-titui em eixo basilar do diassistema poéticode Fernando Pessoa. A diversidade de vo-zes que empresta interesse ao estudo dodialogismo em Dostoievsky é a mesma quefaz o “caso” Fernando Pessoa. Se Dostoi-evsky está próximo de Shakespeare, ao darvida a personagens que falam e pensam porsi, também o poetodrama Pessoa cria umaoutra humanidade.

A intertextualidade se realiza na diversi-dade de discursos que se opõem e dialogamentre si, construindo uma unidade metafísicados heterônimos em torno do discurso im-plícito do eu oculto.

Ora é a intuição zen-budista que fala nodiscurso do mestre Caeiro, ora é a tradiçãohoraciana que impõe o clima das odes cria-das pelo latinista Ricardo Reis; ou o futuris-mo na voz de Álvaro de Campos e o sim-bolismo, o saudosismo nacionalista de Pes-

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soa ele-mesmo; ou ainda um heterônimocriando falas que ampliam o eco das falasde outro heterônimo.

Vemos, portanto, que a modernidade, aodescentrar o discurso do eu do artista paraoutros lugares, estabelece uma constelaçãoserial de exigências, possibilitando a inter-comunicação e instaurando a polifon iadialógica. Não é a polifonia musical umatécnica de composição apreciadíssima pelamodernidade? A sociedade moderna se ca-racteriza pelo paroxismo da comunicação,para se inserir no que McLuhan chamou dea galáxia de Gutenberg.

A cultura medieval é vista pela contem-poraneidade como propiciadora do isola-mento, do fechamento, por imposição daprópria realidade feudal, com nobres guar-dados em castelos e monges meditando emmosteiros. A cultura burguesa levou a umisolamento intrínseco para fugir à realidadeambiental, exterior: os românticos se isola-vam em etéreas torres de marfim do ego,

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na esperança de fugir à geléia geral da cultu-ra emergente. Já os modernos se deparamcom o constante afrontamento do outro.O outro é o espelho de Narciso do mitomoderno e redivivo. Não é apenas no ou-tro que o homem se vê, mas é através dooutro que ele se reconhece como tal. As-sim, o discurso do escritor moderno nãopoderia deixar de trazer em si essa marcado outro chamada de intertextualidade.

Mesmo que queira, o homem não podemais se transformar numa ilha. Sua fala étambém a fala dos outros homens. Pessoarespondia à crítica dos seus contemporâne-os, que o acusavam de insinceridade, afirman-do que seus poemas não cantavam o pró-prio sentimento, mas o sentimento do ou-tro. Ele não pretendia ser sincero consigomesmo, sincero, porém, com a condiçãohumana. Drummond cantou o sentimento domundo e propôs, no mesmo diapasão impes-soal de Pessoa: “Não faças versos sobreacontecimentos”, porque “a poesia elide

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sujeito e objeto”. Ainda segundo o poetabrasileiro, “os aniversários não contam”,porque os dramas individuais, enquanto sus-piros do sujeito fechado em si, não têm lu-gar perante a poesia.

É o outro, a impessoalidade – pessoal etransferível, como convém ao oxímoro quefaço – que se impõe e propõe o diálogoentre Pessoa e Cecília Meireles, na assem-bléia intertextual da língua portuguesa a ro-çar a língua brasileira de Camões, ou mes-mo de Caetano (Por que não?):

PESSOA

O poeta é um fingidor.Finge tão completamenteQue chega a fingir que é dorA dor que deveras sente.

CECÍLIA

Eu canto porque o instante existee a minha vida está completa.Não sou alegre nem sou triste:sou poeta.

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Temos aí um caso de dialogismo em que aintertextualidade aflora de forma luminosa.

Mesmo que queira, dizíamos, o escritormoderno não pode se isolar, fugir do ou-tro, nem evitar o lugar comum da intertex-tualidade. Como nos mostra Bakhtin, o es-critor nunca encontra palavras neutras, pu-ras, porque a vida lhe oferece somente “pa-lavras ocupadas” ou “palavras habitadas poroutras vozes”, palavras plenas, portanto.

Deste modo, Bakhtin leva o estudiosoda literatura a assumir a certeza de que nãoexiste um grau zero da função sígnica. Mes-mo quando ela se constitui enquanto fun-ção portadora de sentidos, os sentidos jáflutuam, impregnados da velha vida, emvolta do novo signo.

Tal constatação se opõe à proposição deGreimas segundo a qual o texto poético sefunda na anulação dos significados preexis-tentes, onde todo sentido é possível. Paraele, o objeto da semiótica poética “é indife-rente à linguagem em que é produzido”.

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Como vemos, se esta linguagem é umasemiótica literária, ela já está marcada de sig-nificações residuais. Como The waste land, deEliot, cujo purgatório civilizacional remeteao sempre citado purgatório de Dante.Greimas tem razão quando a língua do es-critor é apenas a linguagem da cultura, ape-nas a sua língua materna; mas convém dizerque ela é também a língua, ou as línguas, detodos os outros escritores presentes na suaescritura.

Se o escritor venceu a tarefa de “limparas palavras” dos resíduos deixados pela“contaminação” no uso prático, cotidiano,chegando a um signo poético constituídopelos semas de grau zero, a interação dosdiscursos poéticos no século XX repropõeo que Trotsky chamava de “o guarda roupade segunda mão das épocas”. Os romanosjá afirmavam, num adágio que cito, mesmosem saber latim (é o fim!), que nada é ditosem ter sido dito antes: nullum est iam dictumquod nom sit dictum prius.

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“O Grito” (Skrik, 1893), série de quatro pinturas do norue-guês Edvard Munch, é uma das obras que mais têm dialo-gado com novas criações intertextuais, deste telas, charges,quadrinhos e filmes.

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A INTERTEXTUALIDADECOMO FATO SOCIAL

Como insistimos na conjectura de o pa-roxismo da intertextualidade ser um fatoresultante da modernidade, o que significaconsiderá-la como um fato social, portan-to; imbricada a um conjunto de aconteci-mentos coevos, – e não apenas como ummodismo literário marcado pela construçãoartificial – convém não perder de vista aconfiguração deste mesmo fenômeno emoutras artes.

Para quem constrói, sejam edifícios deconcreto ou de idéias, nada melhor do quecomeçar pela arquitetura.

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Por um lado, as próprias condições dasociedade que, ao aproximar os homens eao impor uma constante interação com ooutro, se faz refletir criando uma nova poéti-ca do espaço: como o morar em apartamen-tos, onde o habitar contíguo tem múltiplossignificados. A porta do meu apartamentoé uma peça que se harmoniza, ou que repe-te (ou repele), a porta do vizinho.

Por outro lado, as exigências do tempofazem com que o construtor não construaapenas com materiais novos, de primeiramão. Com as ruínas e as demolições, todoo material (in)prestável é reutilizado em no-vas construções, em combinações arquitetô-nicas que propiciaram o termo reciclagem demateriais, ou o seu correlato madeira de demo-lição. O passear pelos jardins da construçãocom essas roupas velhas e puídas pelo tem-po, ou com aqueles antigos materiais quetrazem as marcas de outros usos, pode seconstituir no mais novo charme do deco-rador de ambientes.

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Também a música se ressente da tendên-cia intertextual. Villa-Lobos nos remete nãosó à tradição musical popular do Brasil, masa Bach e à história da música. Chico Buarquede Holanda ou Caetano Veloso, para não ira outros exemplos, se valem da intertextua-lidade no nível das frases melódicas ou dosenunciados poéticos. No caso de Chico,veja-se o diálogo travado com Carlos Drum-mond de Andrade, no “Anexo” posto aofinal do texto deste livro.

E mais ainda: há uma forma de intertex-tualidade que caracteriza bem as preocupa-ções intelectuais do século XX. Trata-se daintertextualidade estrutural da obra literá-ria. Como toda construção poética pressu-põe uma teoria do fazer estético, uma poé-tica, a própria estrutura da obra, a sua con-cepção, já denota uma referência a – ou umdiálogo com – uma escola, uma tendência,um discurso sobre a textura do texto.

Algumas preocupações estéticas quemarcaram o espírito renascentista voltam à

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cena nos dramas e nos questionamentos dohomem pós-romântico, o homem de hoje.Após o apocalipse da razão, encenado pe-las emoções românticas, voltamos a procu-rar o paraíso do equilíbrio perdido. Assim,uma ponte de procuras e indagaçõesreconstruídas aproxima o homem deste fi-nal de milênio do homem do final da idademédia ou do homem do Renascimento. Aalteridade assumida pelo século XVI ganhanovo significado no século XX. E dessa vi-agem pelos horizontes do outro resulta aintertextualidade, inominada no Renasci-mento, denominada no fim do milênio.

Creio que o romance de Osman Lins Arainha dos cárceres da Grécia ilustra e exemplificaa questão. O livro nos põe diante de doisamantes: um professor de São Paulo e umamulher de Pernambuco. A mulher escreveum livro, ao lado do amante, e morre antesque o livro se conclua. O livro que lemos éum ensaio do amante, do professor de SãoPaulo, uma reflexão sobre a criação da com-

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panheira de Pernambuco. É em blocos, empedaços e fragmentos que conhecemos ahistória que dá vida ao discurso do romance;entrecortada por um outro discurso sobreo processo de criação literária. O livro deOsman Lins radicaliza o processo e explicitao exercício intertextual, tornado tema e tra-ma, embora tudo se dê no plano da ficção;e não da sistemática especulativa e teórica.

Por outro lado, a intertextualidade tam-bém se faz presente numa forma criativa dediscurso teórico. Trata-se do que LeylaPerrone-Moisés prefere chamar de escritura:o texto dito crítico que toma a obra literáriacomo mero pretexto de um outro exercíciocriativo. Ou ainda, segundo ela, – com gos-to de Lautréamont, Maldoror – o textoparasitário, vampiresco: que vive de outrasveias.

Do lado contrário ao texto teórico deinspiração criativa está o texto poético deinspiração teórica, que de forma sintéticafaz crítica; que contém um discurso concei-

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tual implícito, mas intenso, como a propos-ta de Meia palavra de José Paulo Paes.

O título do poema é longo e em letrasgrandes: “FALSO DIÁLOGO ENTRE PESSOA E

CAEIRO”. O poema é pequeno. São apenasdois versos; e em letras miúdas e minúscu-las:

— a chuva me deixa triste...— a mim me deixa molhado

Ao bom entendedor.Basta.

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APÊNDICE:A POESIA COMO CRÍTICA

O leitor brasileiro passou a ter um con-tato mais estreito com o crítico norte-americano Harold Bloom a partir dosartigos republicados pela Folha de SãoPaulo, embora nos últimos anos seus li-vros também passassem a frequentar abibliografia brasileira. A Imago traduziuA angústia da influência, Cabala e críti-ca, O Livro de J e Poesia e Repressão.

Um mapa da desleitura dá continui-dade à construção do panorama críticoengendrado por Bloom para rever a for-

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mação do cânone poético de língua in-glesa a partir do estudo da influênciaexercida pelos poetas eleitos pela tradi-ção. Ele designa esses autores de poetasfortes, privilegiando o adjetivo forte comoelemento de caracterização das mais den-sas manifestações intelectuais, tanto porparte de um leitor fruidor quanto porparte de um leitor criador.

O ato de leitura, no âmbito da sua te-oria crítica, é o eixo central da obra lite-rária: é a partir dele que uma obra ou umautor adquirem permanência e transmi-gram para outras obras e para outrosautores. Ainda de acordo com HaroldBloom, não existem textos mas relaçõesentre textos. A partir de uma leitura oude um ato crítico é que se dá o que elechama de desleitura, ou desapropriação.A criação de um poeta é retomada poroutro poeta que tem a ambição de corri-gi-lo e ampliá-lo.

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A propósito, Bloom começa o quintocapítulo do livro, “O mapa da desapro-priação”, afirmando que o Novo testa-mento é uma espécie de tentativa de com-plementar o antigo, a partir dos pressu-postos e crenças daqueles que compõemas novas escrituras. O fato verificado notexto sagrado não difere muito daqueleque se dá no texto profano. A luta pelopoder sobre os precursores reafirma es-tes precursores assim como possibilita aaparição de um novo poeta.

É o que acontece com Milton, toma-do pelo autor de Um mapa da desleituracomo centro do seu foco crítico. Vistocomo um épico terciário, cujo ambicio-so projeto foi concorrer com a tradiçãogrega, representada por Homero, e coma latina, de Virgílio e Ovídio, Milton in-sere a língua inglesa nessa forte tradição.“Seu tratamento da alusão é sua defesaaltamente individual e original”, coroa-da com as ambições derradeiras do Para-

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íso perdido que o levam à tentativa deexpansão das Escrituras – segundoBloom – “sem distorcer a palavra deDeus”.

Um mapa de desleitura contém algunsnúcleos ideativos, ora voltados paraFreud, ora embebidos na Cabala; e tudoisso fortemente vincado à história da in-teligência do povo judeu. Mas o núcleocentral é o estudo da influência. Um po-eta não vê diretamente, mas através damediação do precursor, conforme de-monstra exaustivamente o livro, acom-panhando a trajetória da poesia inglesaaté os autores norte-americanos atuais.

Entre suas formulações, ele insiste quepoemas não são sobre “sujeitos” nem so-bre “si mesmos”, são sobre outros poe-mas, “do mesmo modo que um poeta éuma resposta a outro poeta”.

Observe-se a proposta teórica deHarold Bloom de ver a poesia como umgrande diálogo através dos séculos. Um

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diálogo através do qual um poeta se cons-titui como tal quando enfrenta os gran-des poetas que o antecederam. É a leitu-ra criativa transformada em desleitura,isto é, na constituição de um novo obje-to de leitura, que transporta e alimenta apoesia.

A partir daí, Bloom conclui que, atra-vés do curso da história literária, “todapoesia se torna necessariamente críticaem verso, bem como toda crítica se tor-na poesia em prosa.” Todos sabemos quecom a consolidação de uma tradição li-terária, de um cânone, o ato criativo dapoesia deixa, cada vez mais, de ser umolhar inaugural, ou um ato absoluto(como o gesto de Deus de criar o uni-verso a partir do nada), para ser um atocrítico que toma por objeto aquilo que oprecede. O escritor é o leitor da tradi-ção, o crítico capaz de refazer a obra so-bre a qual incide seu julgamento.

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Desse modo, a condição de leitorexemplar e de crítico perspicaz é apenaso ponto de partida, o degrau primeiro emínimo do artista que não foi tragadopelo tempo. A criação ingênua, acrítica edesprovida de poder reflexivo sobre aanterioridade do seu ato, se distancia cadavez mais da poesia.

O Renascimento foi um forte instan-te de afirmação dessa consciência do ar-tista. Lembre-se que aí a intertextuali-dade, o diálogo com os antepassados,adquire uma importância basilar.

As formulações de Harold Bloom são,de certa forma, uma alternativa de redesig-nação para os estudos da intertextua-lidade que ocupam grande parte da teo-ria literária mais recente. Com isto nãoquero dizer que a sua contribuição à crí-tica e a constituição de uma teoria viva eatual não seja relevante. Quero apenassituar esse crítico no âmbito de uma ten-dência geral do fim de século.

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A busca de originalidade como modode afirmação é uma exigência não só parao artista, para o criador, como tambémpara o estudioso. É isto que faz HaroldBloom, ao passar ao largo das formula-ções mais constantes, dando à sua críti-ca uma roupagem diferenciada.

A primeira epígrafe do livro é escla-recedora a tal propósito: “Como o vinhoé conservado dentro de um jarro, tam-bém a Torá está contida em uma roupa-gem exterior. Tal roupagem é feita demuitas histórias; mas é exigido de nósque rasguemos a roupagem.”

É verdade que esta epígrafe tem ou-tro sentido, muito mais apropriado, maspermita o leitor que, com inocente malí-cia, ela seja estendida à nomenclatura crí-tica de Bloom.

O artigo “A poesia como crítica” foi publicado na coluna“Leitura Crítica” do jornal A Tarde, Salvador, 9 set.96, p. 7, como recensão do livro de Harold Bloom Ummapa da desleitura. Rio de Janeiro, Imago, 1995, 236 p.

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Maurício de Souza retrata a Mônica como uma Monalisa.

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ANEXO

Como exemplo de intertextualidade ésignificativo o diálogo proposto por ChicoBuarque de Holanda com dois conhecidostextos de Carlos Drummond de Andrade.

O “Poema de sete faces” se incorpora àcanção de Chico intitulada “Até o fim”, en-quanto “Quadrilha”, de Drummond, vaiencontar correspondência em “Flor da ida-de”, cujo diálogo entre textos aparece demodo mais explícito no bloco final da letrado compositor. Vejamos, então.

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POEMA DE SETE FACES

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Quando nasci, um anjo tortodesses que vivem na sombradisse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homensque correm atrás de mulheres.A tarde talvez fosse azul,não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:pernas brancas pretas amarelas.Para que tanta perna, meu Deus, perguntameu coração.Porém meus olhosnão perguntam nada.

O homem atrás do bigodeé sério, simples e forte.Quase não conversa.

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Tem poucos, raros amigoso homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonastese sabias que eu não era Deus,se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundose eu me chamasse Raimundoseria uma rima, não seria uma solução.Mundo mundo vasto mundo,mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizermas essa luamas esse conhaquebotam a gente comovido como o diabo.

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ATÉ O FIM

CHICO BUARQUE DE HOLANDA

Quando nasci veio um anjo safadoO chato do querubimE decretou que eu estava predestinadoA ser errado assimJá de saída a minha estrada entortouMas vou até o fiminda garoto deixei de ir à escolaCassaram meu boletimNão sou ladrão , eu não sou bom de bolaNem posso ouvir clarimUm bom futuro é o que jamais me esperouMas vou até o fimEu bem que tenho ensaiado um progressoVirei cantor de festimMamãe contou que eu faço um brutosucessoEm quixeramobimNão sei como o maracatu começouMas vou até o fimPor conta de umas questões paralelas

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Quebraram meu bandolimNão querem mais ouvir as minhas mazelasE a minha voz chinfrimCriei barriga, a minha mula empacouMas vou até o fimNão tem cigarro acabou minha rendaDeu praga no meu capimMinha mulher fugiu com o dono da vendaO que será de mim ?Eu já nem lembro “pronde” mesmo queeu vouMas vou até o fimComo já disse era um anjo safadoO chato dum querubimQue decretou que eu estava predestinadoA ser todo ruimJá de saída a minha estrada entortouMas vou até o fim

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QUADRILHA

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

João amava Teresa que amava Raimundoque amava Maria que amava Joaquim que

[amava Lilique não amava ninguém.João foi para o Estados Unidos, Teresa

[para o convento,Raimundo morreu de desastre, Maria

[ficou para tia,Joaquim suicidou-se e Lili casou com

[ J. Pinto Fernandesque não tinha entrado na história.

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FLOR DA IDADE

CHICO BUARQUE DE HOLANDA

A gente faz hora, faz fila na vila do meio diaPra ver MariaA gente almoça e só se coça e se roça e só

[se viciaA porta dela não tem tramelaA janela é sem gelosiaNem desconfiaAi, a primeira festa, a primeira fresta,

[o primeiro amorNa hora certa, a casa aberta, o pijama

[aberto, a famíliaA armadilhaA mesa posta de peixe, deixe um cheirinho

[da sua filhaEla vive parada no sucesso do rádio de pilhaQue maravilhaAi, o primeiro copo, o primeiro corpo,

[o primeiro amorVê passar ela, como dança, balança,avança e recua

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A roupa suja da cuja se lava no meio da ruaDespudorada, dada, à danada agrada

[andar seminuaE continuaAi, a primeira dama, o primeiro drama,

[o primeiro amor

Carlos amava Dora que amava Lia que [amava Léa que amava Paulo

Que amava Juca que amava Dora que [amava Carlos que amava Dora

Que amava Rita que amava Dito que [amava Rita que amava Dito que amavaRita que amavaCarlos amava Dora que amava Pedro que

[amava tanto que amava a filhaQue amava Carlos que amava Dora que

[amava toda a quadrilhaQue amava toda a quadrilhaQue amava que amavaQue amava toda a quadrilha que amavaQue amava toda a quadrilha

O Autor

Cid Seixas é escritore jornalista. Atuou naimprensa como repór-ter, copy desk e editor,trabalhando em rádio,jornal e te levisão. ÉMestre pela UFBA eDoutor pela USP.

Na área de editora-ção, dedica-se a plane-jamento e projeto de li-vros, revistas e outraspublicações, além deter colaborado com pu-blicações nacionais eestrangeiras, entre asquais O Estado de S.Paulo e a Colóquio, deLisboa. Assinou, duran-te cinco anos, a coluna“Leitura Crítica”, no jor-nal A Tarde.

É Professor T itularaposentado da Univer-sidade Federal da Bahiae, atualmente, ensinana Universidade Esta-dual de Feira de San-tana.

EDITORA UNIVERSITÁRIADO LIVRO DIGITAL

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&LITERATURAINTERTEXTUALIDADE

Este estudo sobre a ressonância de vozes no textoliterário demonstra o permanente diálogo mantidopelas obras entre si, ou pelas diversas manifestaçõesartísticas, onde um texto remete ao universo de ou-tro texto; e onde uma composição musical evoca ou-tras artes. Pintura, arquitetura, cinema, teatro, músi-ca e literatura são exemplos de expressões artísticasque não ficam imunes ao diálogo das obras entre si,numa cumplicidade aliciante para com o público. Atroca de experiências é uma atitude essencial da hu-manidade, também assumida por uma das manifes-tações mais complexas do seu espírito: a arte.

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