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Embrulhadapresentepa r
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Neide Soares transitava de um lugar para
outro montada na sua bicicleta. Pedalava carre-
gando pacotes, sacos, bolsas, mapas e ingre -
dien tes, amarrados por vários nós de mari -
nheiro. Tudo muito bem equilibrado em cima da
garupa, na frente do guidom, ou, de quebra, lá
no alto da sua cabeça. Um verdadeiro show de
malabarismo!
A lagartixa Neide Soares tinha três empre-
gos. O marido, há alguns anos, tinha morrido e
ela precisava sustentar a filha sozinha. Tra ba -
A LAGARTIXA NEIDE SOARES
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lha va como entregadora-de-tudo-que-se-pos sa-
imaginar, como doceira e ainda na sua profissão:
era professora de geografia.Quando dava aulas, falava sobre a devasta-
ção das florestas, sobre as mudanças de estação,lembrava da im portância de preservar, pedia cui -dado com a poluição. Falava tanto da mata emque vivia, como das outras de longe: apontandoo parecido, mostrando o diferente.
Como entregadora, Neide garantia um ser-viço de primeira. Pedido é que não faltava! Detodo tipo e para tudo quanto é bicho daquelasbandas: Osvaldo queria, rápido, remédio deenjoo depois de engolir 33 moscas, ai se arrrrre-pendimento matasse... A coruja Clô, cansada desó ser reconhecida pelos lindos olhos, tinhaencomenda do uma peruca longa e loira. Voariaa noite inteira e seria confundida com uma es tre -la cadente! Libélula Célia pedia os óculos degrau. Ana Maria, a lagarta, urgente queria tem -peros variados para dar graça às saladas quecolocava à venda na praça. Rô Ratão esperavaum dente postiço, depois que deixou o seu en -ter rado num pedaço de rapa dura.
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A Neide conferia cada pedido e entregavatodos em brulhados cuidadosamente.
Aliás, tinha semana com tanta encomendaque elas nem cabiam de segunda a sexta-feira. Alagartixa acaba va de um lado pra outro, tambémno sábado e no domin go.
Mas, se o fim de semana amanhecia folgado,era então como doceira que Neide Soares sur-gia. Atrás dela, em fila, uma boa freguesia. Umaenorme freguesia. Uma insistente freguesia deformigas animadas que aguardava ansiosa. E, aomenor sinal de pavê, pronto: gritos, aplau sos,em purra-empurra! Todas pulavam frene tica -men te! Umas apenas para soltar a felicidade,claro. Outras, mais esfomeadas, pu la vam paradentro do doce com direi to a saltos ornamen-tais, parafusos triplos e camba lho tas no ar. Maldava tempo do resto do grupo saborear calma -mente o pavê. Em poucos minutos, só se avista-va formiga redonda rolando na última camadade biscoito maisena.
Era assim que a lagartixa ia emendandoseus dias. Tão cheios que às vezes ela nem os viapassar.
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Mesmo quando não precisava, a Neide tra-
balhava.
Alguns amigos diziam que isso já tinha vira-
do ma nia. Mania de trabalhar! Ela quase não
parava para des cansar, passear um pouco, ficar
junto com a filha.
Era comum a Neide chegar e a Pepita já
estar dor mindo.
Pela manhã, quando acordavam juntas,
falavam tu do tão rápido que uma história emen-
dava na outra. De pois, a Neide saía correndo,
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MUITÍSSIMO OCUPADA
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sempre na frente, peda lando para longe do dia
da filha. A Pepita, que como a mãe era uma
lagartixa muitíssimo ocupada, saía atrás arruma-
da para a escola, logo que ouvia o grito do
Trans porte: CHE GUEIIIII!!!!!!!
Aliás, nas redondezas, ninguém ousava se
atrasar muito para embarcar. Segundo boatos,
numa espera pra lá de demorada, depois de
vários berros e umas rabadas, o tal Transporte
abriu bem a bocarra, mostrou todos os dentes
de jacaré e engoliu de uma vez só o atrasadinho.
É verdade que, para Pepita, ele esticava um sor-
riso-meio-amarelo-simpático... tinha a impres-
são de que já tinha visto aquela lagartixa em
algum lugar... era tão parecida com alguém...
talvez, só um tanto menor... Mas a Pepita mon-
tava rápido e não dava papo. Zé Jacaré, mais
conhecido simplesmente como Transporte,
ia pensativo, rebolando ida e volta pelo caminho
da escola. Três vezes por semana depois da
aula, ela também ia com ele à natação na lagoa
e ao treino de futebol feminino. Nos outros dias,
não; fazia questão de ir andando para a aula de
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desenho, para o curso de espanhol e para a aula
de teatro.
Ah!, e tinha a hora do dever de casa, quan-
do a Pepi ta, finalmente, conseguia parar. Geral -
mente quando isso acontecia, perto lá do final
do dia, ela estava exausta.
A Neide tinha colocado a filha em tantas
atividades, que a Pepita fazia o maior esforço
para dar conta de tudo. A mãe bem que gostava
de vê-la atarefada assim. Talvez porque achasse
bom que ela aprendesse muitas coisas... Talvez
achasse que a filha ia se divertir além de apren-
der. Ou, ainda, para que ela não ficasse muito
tempo sozinha. Talvez, quem sabe, para que
não sentisse tanto a sua falta.
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Sempre que sobrava caixa vazia, depois de
suas entregas, a Neide trazia de volta para casa.
A Pepita adorava usá-las feito tijolo na constru-
ção de seus inventos. Montava trens, prédios,
cidades inteiras nas horas vagas. Até que batia
uma preguiiiiiça e ela pegava no sono, dentro de
uma da quelas obras espalhadas pelo seu quarto.
Certa noite, mais uma desencontrada entre
mãe e filha, a Neide chegou devagarzinho e des-
pejou na sala alguns embrulhos. Esta cio nou tam-
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UMA CAIXA DE BOLAS
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bém uma caixa, toda estampada de bolas, ama-
rela e laranja. Parecia sol quente.
Chamou pela filha e nada. Procurou no pré-
dio, no robô e no trem desengonçado. A Pepita
estava encolhida num vagão e ai de quem a
acordasse! Ela detestava ser acor dada! Por isso,
a Neide achou melhor deixar a caixa-presente
para o dia seguinte. O sol de bolas ficou ilumi -
nan do a sala, para a cara de festa que a filha ia
fazer.
Mas foi nublada de sono e transbordada de
sede que, lá pela madrugada, a Pepita saiu do
vagão para beber um gole d’água na cozinha.
Passou pela sala e piscou intri gada: um estampa-
dão de bolas, amarelo e laranja?! Piscou de novo
e achou até que o dia já tinha amanhecido. Só
depois de mais três piscadelas, ela entendeu:
uma cai xo na enorme e linda, lindíssima... ai, ai...
na certa pre sente da sua mãe! Que bom! Ai, ai...
Pulou para dentro dela, espre guiçou... Ai, ai... e
ali mesmo dormiu.
A Neide levantou mais cedo que de costu-
me. Em algumas épocas do ano, faziam o dobro
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de pedidos. Era o dobro de trabalho! Bastava
estar chegando perto do Dia das Mães para o
pessoal começar a comprar. Além da lem -
brancinha para a mãe, de quebra, aproveitavam
para levar umas outras coisinhas: tinha pai com-
prando para filho, tinha filha comprando para ela
mesma, tinha gente que comprava para os ami-
gos e para a avó, tinha quem com pras se presen-
tes para a casa, para o namorado, pre sente de
Natal e presente para ter presente para dar. E a
Neide fazia hora extra pra entregar tudo isso.
Saía lotada! Carre gadinha de... CAIXAS! Claro,
já ia esque cendo... Jus to nessa manhã, ela preci-
sava urgente de outra caixa! Ti nha que embru-
lhar uma colcha branca, pre sente para a mãe
coruja Clô.
Olhou, olhou em volta, olhou com pena,
mas o jeito era aproveitar aquela vazia: amarela
e laranja de bolas.
A Neide nem viu a filha dormindo lá dentro.
De longe, mirou a boca aberta da caixa e
jogou a col cha. A colcha foi caindo, caindo, co brin -
do a Pepita até ela ficar totalmente escondida.
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A renda só fez balançar um pouco aquele sonho,
não deu para acordar o sono pe sado. A Neide
fechou a tampa.
O jeito era arranjar outra caixa tão bonita
assim pa ra dar à filha, pensou. Ainda bem que a
Pepita estava no vagão do quarto e não tinha
visto nada, ainda bem.
Ela nem podia esperar pelo café da manhã,
preci sava se apressar. Desejou de longe um bom
dia pra filha, amarrou tudo na bicicleta e saiu
direto para o lugar mais perto: a casa da coruja.
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A Clô ouviu a Neide chegar tocando umapito es tridente. A lagartixa deixou aquele senhorem brulho de bolas e deu depressa um adeusinho.
– Oba! Presente da minha filha! – animou-se a coruja, descendo de sua casa e abrindo acaixa de uma vez só. – Ah, que colcha tão boni-ta, rendada, tão caprichada... – Mas parou derepente. – Pena ser colcha! Eu não preciso decolchas. Não, nada contra elas, sei que as colchassão muito úteis, ótimas no inverno, acho quedeve ter alguém que ama colchas, mas... o que euvou fazer com esta aqui?
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O PRESENTE DA CORUJA
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A coruja Clô olhou, arregalada, o presente,até que viu aterrissar uma ideia...
– Essa colcha bem que podia virar outracoisa! – Ba teu asas, delirante. – Podia voar comela por aí! Fazer um vestido longo e branco, umasaia com babados renda dos... já sei!!!! Uma rou-pa de baiana!!!!!
E diante de tão grande ideia, a Clô superhipe rem po lgada puxou a colcha quase toda paraexaminar.
A Pepita, incomodada com tantas sacudi-delas, acor dou atordoada. A coruja continuavaentretida, ava lian do o presente.
– Quem sabe uso essa colcha presa naminha peruca longa e loira, escorrendo feitocachoeira?
– Vai arrastar no chão – respondeu aPepita.
A Clô levou um susto.– Tá doido! O que é isso aí dentro? – esbra-
vejou, arrancando a colcha inteira da caixa. –Uma lagartixa sono lenta? Você também é pre-sente da minha filha? Só faltava essa: além dacolcha, ganhei uma lagartixa!
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A coitada da Pepita, que não estava enten-
dendo nada, olhou assustada bem nos olhos
imensos daquela coruja. Depois se levantou e
arredondou a vista em torno:
– Que estranho! Eu não devia estar na
minha casa?
– Devia, sim, porque eu já estou tendo um
trabalho enorme pra pensar o que fazer com
essa colcha e agora, ainda por cima, preciso des-
cobrir o que eu faço com uma lagartixa de pre-
sente! Se você ao menos fosse verde, pra
combinar com as minhas cortinas, eu podia te
deixar na estante.
E, enquanto a coruja analisava cuidadosa-
mente a pos sibilidade de pintar a lagartixa de ver -
de com listras brancas, a Pepita lembrou de
tudo. Lembrou da sede, da noite, da sua entra-
da naquela caixa de bolas... Mas como é que
tinha vindo parar ali?
– Olha, mesmo que eu te colocasse pintadi-
nha na estante, você não ia ficar parada feito
estátua de lagartixa. Então pensei: que tal ser
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meu prendedor-oficial-de-col cha-em-peruca-
longa-e-loira? Simples: você só precisa fi car
agarrada lá no alto da minha cabeça, segurando
fir me a colcha presa na peruca, enquanto eu dou
uns voos ra santes, tipo estrela cadente. Pode-
mos fazer um lindo laço branco também, o que
acha? Pode dizer, não vou arrasar?
Mas a Pepita achou mesmo é que devia
estar tendo algum pesadelo.
– A senhora, por acaso, conhece minha
mãe, Neide Soares?
– Ué? Filha da Neide? Por que será que ela
me deu você de presente?
– Então foi ela quem trouxe essa caixa e a
colcha?
– Claro. E saiu apressada como sempre.
– Não disse nada?
– Nadinha. Só me deu um até logo. Talvez
não qui sesse aceitar devolução.
A Pepita se entristeceu. Será que sua mãe
tinha re solvido mesmo lhe dar de presente junto
com suas enco mendas? Mas por quê? A mãe
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nunca reclamava do tra balho que ela dava...
Nem tinha perguntado nada sobre os deveres de
casa atrasados ou dado bronca pela bagun ça do
quarto...
– Não fica assim não, acontece – quis con-
solar a coruja. – Se você não gostar de andar
pendurada na minha peruca, a gente combina e
eu te uso como brinco.
A Pepita caiu no choro.
– BUUUÁÁÁ!!!!!!!!!
– Calma, calma, vai ser um brinco bem
bonito: vo cê sorridente com a mão abanando e
o rabo em curva fa zen do um C de Coruja!
A Pepita abriu o berreiro.
– BUUUÁÁÁ!!!!!!!!!! BUUUÁÁÁ!!!!!!!!!!
BU U UÁÁÁ!!!!!!!!!!
– Que tal te levar de volta pra sua casa?
Vamos? – Não precisa – soluçou a Pepita. – Vou pra
outro lugar.
E, olhando a caixa de bolas, pediu:
– Será que a senhora podia me deixar em -
bru lhada na porta de outra casa qualquer? Vai
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ver, quando abrirem de novo essa caixona linda
e me descobrirem dentro, vão pensar que eu
posso ser um presentão!
A Clô olhou diferente pra Pepita.
– Combinado. Mas antes você fica um pou-
co aqui comigo. Aceita um café da manhã?
A lagartixa ainda soluçou duas vezes antes
de arre galar a barriga que roncava.
– Aceito. E, se a senhora quiser, eu posso
ajudar na transformação da colcha.
– Lógico que quero!
E as duas juntas traçaram horas e horas de
ótimas ideias.
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