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Edição 2015

Edição 2015 - Cultura.rj · Este texto procura refl etir sobre os diálogos possíveis entre ... sobre as contradições geradas pelos processos de globalização e sobre ... Amartya

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cultura, diversidade e desenvolvimento

disciplina 8

Cultura, desenvolvimento e sociedade

Elaboração e texto Eliane Costa

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Cultura, desenvolvimento e

sociedade

Eliane Costa

Ao fi nal da aula, você deverá ser capaz de:

• Caracterizar e articular as concepções contemporâneas de cultura e desenvolvimento.

• Identifi car as convenções internacionais que vêm sendo referenciais para a articulação do binômio cultura-desenvolvimento.

• Identifi car oportunidades de desenvolvimento em seu contexto de atuação local/regional.

Objetivos

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4disciplina 8

O que é desenvolvimento?

Este texto procura refl etir sobre os diálogos possíveis entre o campo das manifestações

estéticas e culturais contemporâneas e a questão do desenvolvimento. Nas últimas décadas,

novos territórios culturais, bem como novos protagonistas, novas linguagens e dinâmicas

de intervenção, vêm emergindo das periferias dos grandes centros urbanos instigando a

refl exão (e a ação) sobre as contradições geradas pelos processos de globalização e sobre

a desigualdade que marca o acesso às oportunidades de superação desse próprio quadro.

Como potencializar as redes cidadãs e os mutirões culturais que são, em si mesmos, o diálogo

entre as dimensões simbólica, cidadã e econômica da cultura? Como dinamizar essas novas

narrativas, solidariedades e estéticas? De que forma os paradigmas das redes e tecnologias

digitais podem contribuir para o enfrentamento da invisibilidade social e da desigualdade?

Como colocar no radar das políticas públicas as economias criativas mobilizadas por agentes

culturais, ONGs e comunidades populares que constroem, há anos, ações coletivas a partir

de capacidades e potenciais locais, gerando valor, trabalho, emprego e renda, mobilizando o

capital humano e produzindo bens de valor simbólico?

Responder a essas perguntas exige que antes se pense sobre outras questões. O que

entendemos por desenvolvimento? E que desenvolvimento queremos para nosso país? Essas

respostas se fundarão sempre na invenção de um projeto – uma visão de futuro sobre a qual

uma sociedade coloca os pilares de sua esperança e seu imaginário, isto é, de sua cultura.

Até o início dos anos 1960, desenvolvimento signifi cava crescimento econômico: afi nal,

as poucas nações desenvolvidas até então tinham enriquecido pela industrialização.

O tempo foi mostrando, porém, que, nos países subdesenvolvidos e semi-industrializados, o

crescimento econômico não chegara a trazer às suas populações pobres, necessariamente,

maior acesso aos bens materiais e culturais, à saúde e à educação, como ocorrera nos países

considerados desenvolvidos. Essa constatação despertou diversos debates internacionais

sobre a abrangência do conceito de desenvolvimento e, em particular, sobre sua relação com

a cultura.

Cultura, desenvolvimento e sociedade

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5disciplina 8

No desenrolar dessas e de outras discussões de interesse coletivo, mostrou-se essencial

o papel dos organismos multilaterais de cooperação internacional. Em seu livro Relações

culturais internacionais na Iberoamérica e no mundo, Edwin Harvey chama a atenção para o

papel do que ele identifi cou como “Diplomacia de Conferência”: a realização de convenções

internacionais que se constituíram em fóruns privilegiados para a assinatura de acordos e

instrumentos que, legitimados pelo consenso dos países participantes, passaram a assumir o

papel de “superlegislaturas internacionais”.

No contexto do pós-guerra, por exemplo, foi convocada em novembro de 1945 uma

Conferência das Nações Unidas (ONU) para a criação de uma organização educacional e

cultural, com o objetivo de encarnar uma verdadeira cultura da paz, a partir da “solidariedade

intelectual e moral da humanidade”, de forma a evitar uma nova guerra mundial. Foi criada

assim a Unesco, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, que,

desde então, vem desempenhando papel central nas discussões relacionadas ao patrimônio

e à diversidade cultural.

Em suas duas primeiras décadas de existência, a nova organização adota a Convenção

Universal sobre o Direito de Autor, enfrenta a retirada da República da África do Sul sob a alegação

de que algumas de suas publicações constituiriam uma “interferência” nos “problemas raciais”

do país (este adere novamente à organização em 1994, sob a presidência de Nelson Mandela),

capitaneia a Campanha da Núbia, no Egito, pela transferência do Grande Templo de Abu

Simbel de modo a evitar que ele fosse coberto pelo rio Nilo após a construção da Barragem

de Assuã (uma ação que já evidenciava a importância do patrimônio cultural imaterial mundial)

e organiza a primeira conferência intergovernamental com o objetivo de harmonizar ambiente

e desenvolvimento, concepção que, mais adiante seria identifi cada como “desenvolvimento

sustentável”.

Em 1972, a Unesco lança também a Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural

e Natural, reconhecendo que alguns lugares na Terra são de “valor universal excepcional”, 

e devem fazer parte de uma lista de bens que compõem o patrimônio comum da humanidade.

Seis anos depois, adota a Declaração sobre a Raça e os Preconceitos Raciais, contribuindo para

refutar os fundamentos pseudocientífi cos do racismo.

Em 1982, a Conferência Mundial sobre Políticas Culturais (Mondiacult), realizada no México,

proclama uma concepção ampliada de cultura, discutindo ainda, objetivamente, a relação

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entre cultura e desenvolvimento e esboçando de forma pioneira o princípio de uma política

cultural baseada no respeito à diversidade cultural.

Promovida pela Unesco, a Mondiacult rejeitou, por unanimidade, toda e qualquer hierarquia

entre culturas, ressaltando o respeito devido a todas, sem discriminação. Enfatizou que a

identidade cultural de um grupo social representa a defesa de suas tradições, de sua história

e dos valores morais, espirituais e éticos praticados pelas gerações anteriores, não sendo

as práticas culturais presentes ou futuras superiores às passadas. Por fi m, mas não menos

importante, recomendou que as políticas culturais fossem desenvolvidas não apenas pelos

governos, mas também pela sociedade civil.

Foi também na Mondiacult que se utilizou, ofi cialmente, a expressão “patrimônio imaterial”

para identifi car coletivamente as práticas, representações, expressões, tradições orais,

saberes e fazeres transmitidos pelas comunidades, de geração a geração, o que ratifi cou a

compreensão de que identidade cultural e diversidade cultural são questões inseparáveis.

Como já foi visto na primeira disciplina deste curso, vem da convenção, igualmente, a defi nição

de cultura que utilizamos nas políticas culturais contemporâneas:

A cultura deve ser considerada como o conjunto de traços

distintivos espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que

caracterizam uma sociedade ou um grupo social. Ela engloba,

além das artes das letras, os modos de vida, os direitos

fundamentais do ser humano, os sistemas de valores, as

tradições e as crenças.

A centralidade da cultura na discussão do desenvolvimento

Em 1988 a ONU passa a focalizar de forma mais contundente a temática que inspira a

presente disciplina: reconhecendo o diálogo cultura-desenvolvimento, anuncia a Década

Mundial do Desenvolvimento Cultural. Dois anos depois, publica o primeiro Relatório do

Desenvolvimento Humano (RDH), centrado em uma nova premissa: a de que  as pessoas

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são a verdadeira riqueza das nações, devendo, portanto, estar no centro das estratégias

de enfrentamento aos desafi os do desenvolvimento. Comissionado pelo Programa das

Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o RDH 1990 foi idealizado pelo economista

paquistanês Mahbub ul Haq (1934–1998), com a colaboração do economista indiano Amartya

Sen, que, dez anos depois, ganharia o Prêmio Nobel de Economia (1998).

O documento recomendava que o desenvolvimento passasse a ser entendido como um

processo de expansão das liberdades reais desfrutadas pelos indivíduos. Esse novo enfoque

estabelecia um contraponto à visão de desenvolvimento restrita à opulência econômica,

crescimento do produto interno bruto (PIB), aumento de renda pessoal, industrialização,

avanço tecnológico ou modernização social, que, na nova abordagem, passavam a ser vistas

como meios de expandir as liberdades desfrutadas pelos membros de uma sociedade. A ideia

de Desenvolvimento Humano nascia, assim, como o processo de ampliação das escolhas das

pessoas de forma que elas possam desenvolver capacidades e oportunidades para serem

aquilo que desejam ser.

Como consequência, o relatório recomendava que, para aferir o avanço na qualidade de

vida de uma população seria preciso ir além do viés puramente econômico e considerar outras

características sociais, culturais e políticas que infl uenciam a qualidade da vida humana. Essa

compreensão é a base e a essência do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).

A abordagem inovadora teve grande impacto nas refl exões sobre o tema em todo o

mundo, passando a inspirar todos os relatórios subsequentes da organização. O PNUD publica

anualmente um RDH Global, com temas transversais e de interesse internacional, ao lado do

ranking do IDH de grande parte dos países do mundo. Atualmente, o relatório é publicado em

dezenas de idiomas e em mais de cem países. O RDH 2014 – Sustentando o Progresso Humano:

Redução da Vulnerabilidade e Construção da Resiliência – foi lançado em Tóquio, no Japão,

destacando a necessidade de promover as escolhas das pessoas e proteger os resultados

positivos da promoção do desenvolvimento humano. Ele considera que a vulnerabilidade

ameaça o desenvolvimento humano, ressaltando que, a menos que seja abordada de forma

sistemática, pela mudança de políticas públicas e normas sociais, o progresso não será nem

equitativo, nem sustentável.

Além do RDH Global, são publicados periodicamente centenas de RDHs nacionais, incluindo

os brasileiros. Até hoje, o Brasil lançou quatro RDHs: o primeiro, em 1996, apresentava um

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8disciplina 8

panorama geral sobre as questões sociais no país; o segundo, em 2003, foi um Atlas – o Atlas

de Desenvolvimento Humano, que calculou de forma pioneira o IDH para todos os municípios

brasileiros; o terceiro, em 2005, tratou das questões relacionadas a racismo, pobreza e

violência; e o último, em 2009/2010, discutiu a importância dos valores humanos no alcance

do desenvolvimento. Todos esses documentos podem ser encontrados no site do PNUD

Brasil, em: http://www.pnud.org.br/.

Em 1993, três anos após a publicação do primeiro RDH, foi criada pela ONU a Comissão

Mundial de Cultura e Desenvolvimento (CMCD), presidida pelo ex-secretário-geral da ONU

Javier Pérez de Cuéllar e tendo como representante brasileiro o economista Celso Furtado.

A comissão tinha como objetivo a proposição de objetivos e metas para cada estado-membro,

de forma que estes efetivamente reforçassem suas políticas culturais como pontas de lança

de um desenvolvimento mais equitativo.

O relatório da CMCD, apresentado em 1996, ratifi cou como o grande desafi o da cultura

no século XXI o de se posicionar no centro do debate sobre desenvolvimento. Para tanto,

as políticas culturais deveriam assumir papel central na busca de um desenvolvimento mais

equitativo, na compreensão de que as políticas de desenvolvimento de um país devem ser

profundamente sensíveis à sua própria cultura.

Intitulado Nossa Diversidade Criadora, o documento estabeleceu cinco amplos objetivos

voltados às políticas culturais dos países signatários: a necessidade de sua articulação com o

conjunto das políticas públicas voltadas ao desenvolvimento; a ampliação de seu foco também

para as necessidades futuras, para além das necessidades persistentes; a necessidade da

apropriação das tecnologias de informação e comunicação; o estabelecimento de parcerias

com a sociedade civil para seu planejamento/implementação e a conscientização para a

interdependência entre os níveis local, nacional, regional e global. Essas recomendações foram

reforçadas na Conferência Intergovernamental de Cultura, realizada em 1998, em Estocolmo,

na Suécia.

Entre 1996 e 1997, Amartya Sen, então membro da presidência do Banco Mundial,

desenvolveu uma série de conferências, reunidas mais adiante em seu livro Desenvolvimento

como liberdade, lançado no Brasil em 2000, com refl exões e algumas respostas à pergunta

colocada no início deste texto: o que é desenvolvimento?

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Sen traz a visão de desenvolvimento orientada para o agente, na perspectiva de que, com

oportunidades sociais adequadas, os indivíduos podem efetivamente moldar seu próprio

destino, ajudando-se uns aos outros, em vez de atuar apenas como “benefi ciários passivos de

engenhosos programas de desenvolvimento”. Buscava, assim, enfrentar – com outro enfoque

– a persistência e o aprofundamento da pobreza e da desigualdade, bem como a violação das

liberdades políticas elementares que marcavam países pobres e ricos na virada para o século XXI:

O desenvolvimento requer que se removam as principais

formas de privação de liberdade: pobreza e tirania, carência

de oportunidades econômicas e destituição social sistemática,

negligência dos serviços públicos e intolerância ou interferência

excessiva dos Estados repressivos.

Sen persiste na proposição do desenvolvimento como expansão das liberdades, o que signifi ca

dirigir a atenção para os fi ns que o tornam importante, e não para os meios que desempenham

um papel relevante no processo, como o aumento de renda pessoal, o crescimento do PIB, a

industrialização, a modernização social e o avanço tecnológico.

Para o autor, as liberdades não são apenas os fi ns primordiais do desenvolvimento, mas

também os meios principais para alcançá-lo. Elas dependem ainda de outros determinantes,

como disposições sociais e econômicas, envolvendo, por exemplo, os serviços de educação

e saúde, bem como de direitos civis e culturais. O autor ressalta a vinculação das diferentes

liberdades:

Liberdades políticas (na forma de liberdade de expressão

e eleições livres) ajudam a promover a segurança econômica.

Oportunidades sociais (na forma de serviços de educação

e saúde) facilitam a participação econômica. Facilidades

econômicas (na forma de oportunidades de participação no

comércio e na produção) podem ajudar a gerar a abundância

individual, além de recursos públicos para os serviços sociais.

Liberdades de diferentes tipos podem fortalecer umas às outras.

Liberdades políticas (na forma de liberdade de expressão Liberdades políticas (na forma de liberdade de expressão

e eleições livres) ajudam a promover a segurança econômica. e eleições livres) ajudam a promover a segurança econômica.

Oportunidades sociais (na forma de serviços de educação Oportunidades sociais (na forma de serviços de educação

e saúde) facilitam a participação econômica. Facilidades e saúde) facilitam a participação econômica. Facilidades

econômicas (na forma de oportunidades de participação no econômicas (na forma de oportunidades de participação no

comércio e na produção) podem ajudar a gerar a abundância comércio e na produção) podem ajudar a gerar a abundância

individual, além de recursos públicos para os serviços sociais. individual, além de recursos públicos para os serviços sociais.

Liberdades de diferentes tipos podem fortalecer umas às outras. Liberdades de diferentes tipos podem fortalecer umas às outras.

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10disciplina 8

Em 2001, a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural da Unesco é adotada pela

Conferência Geral da ONU. Em 2003, a Unesco já havia adotado a Convenção para a Salvaguarda

do Patrimônio Cultural Imaterial, que, complementando a já mencionada Convenção do

Patrimônio Mundial, de 1972, estendera seu olhar à herança cultural da humanidade. Esses

documentos ressaltavam que, em um mundo de crescentes interações globais, a revitalização

de culturas tradicionais e populares asseguraria a sobrevivência da diversidade de culturas

dentro de cada comunidade, contribuindo para o alcance de um mundo plural.

Importante contribuição a essa discussão foi também a Agenda 21 da Cultura, aprovada em

2004 no IV Fórum de Autoridades Locais para a Inclusão Social de Porto Alegre, no âmbito do

Fórum Universal das Culturas que se realizava em Barcelona, no mesmo ano. Propondo as

cidades e territórios locais como locus privilegiado para a articulação das políticas de cultura

e desenvolvimento, a Agenda 21 da Cultura foi, em seguida, adotada como referência pelo

programa Cidades e Governos Locais Unidos (CGLU) que reúne cidades, organizações e redes.

O CGLU promove intercâmbio de informação e aprendizagem e advoga pela centralidade da

relação entre cultura, cidade e desenvolvimento nas políticas públicas. O organismo aprovou

um importante documento de orientação política – Cultura, o quarto pilar do desenvolvimento

sustentável – para difusão internacional e implementação local das recomendações da Agenda

21 da Cultura. Essa concepção, que agrega a cultura ao tripé formado pelos pilares econômico,

social e ambiental, foi ratifi cada na Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento

Sustentável (Rio+20), realizada no Rio de Janeiro em junho de 2012, que mais uma vez

recomendou a ênfase na diversidade cultural para uma ampla concepção de desenvolvimento.

Essa ênfase foi renovada na reunião do CGLU em Bilbao, em março de 2015, que teve como

lema Cultura e cidades sustentáveis.

O lançamento da Agenda 21 da Cultura coincidiu como o ano (2004) em que a Liberdade

cultural num mundo diversifi cado foi o tema do RDH anual publicado pelo PNUD.

No ano seguinte, a Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões

Culturais, adotada pela Conferência Geral da ONU, enfatizava ainda mais a questão da

diversidade cultural, tornando-se o documento referencial neste campo. A Convenção

ressaltava que a diversidade cultural:

• é uma característica essencial da humanidade;

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11disciplina 8

• constitui patrimônio comum da humanidade, a ser valorizado e

cultivado em benefício de todos;

• cria um mundo rico e variado que aumenta a gama de possibilidades e

nutre as capacidades e os valores humanos, constituindo, assim, um dos

principais motores do desenvolvimento sustentável das comunidades,

povos e nações;

• ao fl orescer em um ambiente de democracia, tolerância, justiça social

e mútuo respeito entre povos e culturas, é indispensável para a paz e a

segurança no plano local, nacional e internacional;

• é importante para a plena realização dos direitos humanos e das

liberdades fundamentais proclamados na Declaração Universal dos

Direitos do Homem e outros instrumentos universalmente reconhecidos;

• é elemento estratégico das políticas de desenvolvimento nacionais

e internacionais, bem como da cooperação internacional para o

desenvolvimento, tendo igualmente em conta a Declaração do Milênio

das Nações Unidas (2000), com sua ênfase na erradicação da pobreza.

Assinado pelo Brasil em 2006, o documento listou os seguintes compromissos:

1. proteger e promover a diversidade das expressões culturais;

2. criar condições para que as culturas fl oresçam e interajam livremente

em benefício mútuo;

3. encorajar o diálogo entre culturas a fi m de assegurar intercâmbios

culturais mais amplos e equilibrados no mundo em favor do respeito

intercultural e de uma cultura da paz;

4. fomentar a interculturalidade de forma a desenvolver a interação

cultural, no espírito de construir pontes entre os povos;

5. promover o respeito pela diversidade das expressões culturais e a

conscientização de seu valor nos planos local, nacional e internacional;

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12disciplina 8

6. reafi rmar a importância do vínculo entre cultura e desenvolvimento

para todos os países, especialmente para países em desenvolvimento,

e encorajar as ações empreendidas no plano nacional e internacional

para que se reconheça o autêntico valor desse vínculo;

7. reconhecer natureza específi ca das atividades, bens e serviços

culturais enquanto portadores de identidades, valores e signifi cados;

8. reafi rmar o direito soberano dos Estados de conservar, adotar e

implementar as políticas e medidas que considerem apropriadas para

a proteção e promoção da diversidade das expressões culturais em seu

território;

9. fortalecer a cooperação e a solidariedade internacionais em um

espírito de parceria visando, especialmente, o aprimoramento das

capacidades dos países em desenvolvimento de protegerem e de

promoverem a diversidade das expressões culturais.

Vimos até aqui os esforços de toda uma agenda política defl agrada por fóruns internacionais

na defesa do diálogo entre desenvolvimento e cultura. Esta agenda segue ativa, no sentido de

convencer gestores e agentes sociais sobre a importância do investimento na diversidade

cultural como dimensão essencial na construção de estratégias para o desenvolvimento.

O texto a seguir, extraído do Relatório Mundial da Unesco de 2009, ilustra a articulação

necessária entre as várias questões que procuramos trazer a esta disciplina:

O tema da diversidade cultural vem suscitando um

interesse notável desde o começo do século XXI e suas

interpretações têm sido variadas e mutáveis. Para alguns, a

diversidade cultural é intrinsecamente positiva na medida em

que se refere a um intercâmbio da riqueza inerente a cada

cultura do mundo e, assim, aos vínculos que nos unem nos

processos de diálogo e de troca. Para outros, as diferenças

culturais fazem-nos perder de vista o que temos em comum

na condição de seres humanos constituindo, assim, a raiz de

numerosos confl itos. Este segundo diagnóstico parece hoje

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13disciplina 8

mais crível uma vez que a globalização aumentou os pontos

de interação e fricção entre as culturas, originando tensões,

fraturas e reivindicações relativas à identidade, particularmente

a religiosa, que se convertem em fontes potenciais de confl ito.

Por conseguinte, o desafi o fundamental consistiria em propor

uma perspectiva coerente da diversidade cultural e, portanto,

clarifi car que longe de ser uma ameaça, a diversidade pode

ser benéfi ca para a ação da comunidade internacional. É

esse o objetivo essencial do Relatório Mundial Investindo na

Diversidade Cultural e no Diálogo Intercultural produzido pela

UNESCO com a colaboração de especialistas de vários países

do mundo. O estudo mostra a importância da diversidade

cultural nos mais variados domínios de intervenção (línguas,

educação, comunicação e criatividade) e oferece sólidos

argumentos para decisores e atores sociais sobre a importância

de se investir na diversidade cultural como dimensão essencial

do diálogo intercultural, na construção de estratégias para o

desenvolvimento sustentável, na garantia do exercício das

liberdades e dos direitos humanos e no fortalecimento da

coesão social e da boa governança.

Importantes avanços foram conquistados na esfera normativa, porém certamente resta

muito por fazer para que se integre completamente a cultura nas políticas internacionais e

nacionais de desenvolvimento.

A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável

O documento fi nal da Conferência Rio+20, realizada no Rio de Janeiro em 2012, dispôs

também que o desenvolvimento de objetivos e metas, tal qual aplicado em relação aos Objetivos

de Desenvolvimento do Milênio (ODM), seria útil na busca do desenvolvimento sustentável,

por meio de ações focadas. Após mais de três anos de discussão, foi aprovado, por consenso,

mais crível uma vez que a globalização aumentou os pontos mais crível uma vez que a globalização aumentou os pontos

de interação e fricção entre as culturas, originando tensões, de interação e fricção entre as culturas, originando tensões,

fraturas e reivindicações relativas à identidade, particularmente fraturas e reivindicações relativas à identidade, particularmente

a religiosa, que se convertem em fontes potenciais de confl ito. a religiosa, que se convertem em fontes potenciais de confl ito.

Por conseguinte, o desafi o fundamental consistiria em propor Por conseguinte, o desafi o fundamental consistiria em propor

uma perspectiva coerente da diversidade cultural e, portanto, uma perspectiva coerente da diversidade cultural e, portanto,

clarifi car que longe de ser uma ameaça, a diversidade pode clarifi car que longe de ser uma ameaça, a diversidade pode

ser benéfi ca para a ação da comunidade internacional. É ser benéfi ca para a ação da comunidade internacional. É

esse o objetivo essencial do Relatório Mundial Investindo na esse o objetivo essencial do Relatório Mundial Investindo na

Diversidade Cultural e no Diálogo Intercultural produzido pela Diversidade Cultural e no Diálogo Intercultural produzido pela

UNESCO com a colaboração de especialistas de vários países UNESCO com a colaboração de especialistas de vários países

do mundo. O estudo mostra a importância da diversidade do mundo. O estudo mostra a importância da diversidade

cultural nos mais variados domínios de intervenção (línguas, cultural nos mais variados domínios de intervenção (línguas,

educação, comunicação e criatividade) e oferece sólidos educação, comunicação e criatividade) e oferece sólidos

argumentos para decisores e atores sociais sobre a importância argumentos para decisores e atores sociais sobre a importância

de se investir na diversidade cultural como dimensão essencial de se investir na diversidade cultural como dimensão essencial

do diálogo intercultural, na construção de estratégias para o do diálogo intercultural, na construção de estratégias para o

desenvolvimento sustentável, na garantia do exercício das desenvolvimento sustentável, na garantia do exercício das

liberdades e dos direitos humanos e no fortalecimento da liberdades e dos direitos humanos e no fortalecimento da

coesão social e da boa governança.coesão social e da boa governança.

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14disciplina 8

o documento Transformando Nosso Mundo: a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, que

pode ser consultada em http://www.pnud.org.br/Docs/TransformandoNossoMundo.pdf.

Assim, os esforços conjuntos para o alcance dos ODM até o fi m de 2015 não mais se encerrarão

nessa data: as ações do PNUD a partir de então passarão a estar alinhadas com os Objetivos de

Desenvolvimento Sustentável (ODS) que procuram obter avanços nas metas não alcançadas e

agregar novos desafi os.

A Agenda 2030 é um plano de ação para as pessoas, o planeta e a prosperidade e, antes de

mais nada, reconhece que a erradicação da pobreza em todas as suas formas e dimensões é o

maior desafi o global ao desenvolvimento sustentável. Os ODS acabam de ser aprovados na Cúpula

das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável, realizada em setembro de 2015, e sua

implementação requererá parceria global com a participação ativa de todos, incluindo governos,

sociedade civil, setor privado, academia, mídia e a própria ONU.

São os seguintes os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, listados e devidamente

detalhados na Agenda 2030:

1. Acabar com a pobreza em todas as suas formas, em todos os lugares.

2. Acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e melhoria da

nutrição e promover a agricultura sustentável.

3. Assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todos, em

todas as idades.

4. Assegurar a educação inclusiva e equitativa de qualidade, e promover

oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos.

5. Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e

meninas.

6. Assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento

para todos.

7. Assegurar o acesso confi ável, sustentável, moderno e a preço acessível à

energia para todos.

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15disciplina 8

8. Promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e

sustentável, emprego pleno e produtivo e trabalho decente para todos.

9. Construir infraestruturas resilientes, promover a industrialização

inclusiva e sustentável e fomentar a inovação.

10. Reduzir a desigualdade dentro dos países e entre eles.

11. Tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros,

resilientes e sustentáveis.

12. Assegurar padrões de produção e de consumo sustentáveis.

13. Tomar medidas urgentes para combater a mudança do clima e seus

impactos (reconhecendo que a Convenção Quadro das Nações Unidas

sobre Mudança do Clima é o fórum internacional intergovernamental

primário para negociar a resposta global à mudança do clima).

14. Conservar e usar sustentavelmente dos oceanos, dos mares e dos

recursos marinhos para o desenvolvimento sustentável.

15. Proteger, recuperar e promover o uso sustentável dos ecossistemas

terrestres, gerir de forma sustentável as fl orestas, combater a

desertifi cação, deter e reverter a degradação da terra e deter a perda

de biodiversidade.

16. Promover sociedades pacífi cas e inclusivas para o desenvolvimento

sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir

instituições efi cazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis.

17. Fortalecer os meios de implementação e revitalizar a parceria

global para o desenvolvimento sustentável.

Embora universalmente aplicáveis (conforme premissa da Agenda), os ODS deverão

dialogar com as políticas e ações nos âmbitos regional e local.

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16disciplina 8

Brasil: políticas culturais e desenvolvimento

No Brasil, são muitos os desafi os enfrentados pelas políticas culturais, sendo o mais

estrutural deles, em nossa opinião, a falta de uma compreensão contemporânea sobre

cultura por parte dos gestores públicos dos diferentes setores, grande parte destes ainda

entendendo o campo cultural circunscrito às artes reconhecidas e ao patrimônio material.

A ideia, que infelizmente ainda persiste, da cultura como “a cereja do bolo” evidentemente

obscurece a percepção da potência de seu papel como vetor de desenvolvimento e difi culta

a conquista de espaço no contexto das prioridades das políticas públicas, emperrando, em

consequência, as possibilidades de uma sintonia mais efetiva com as recomendações das

convenções internacionais até aqui discutidas.

Ao analisar a trajetória das políticas culturais nacionais no Brasil, o pesquisador e hoje

secretário de cultura do estado da Bahia, Antonio Rubim, destaca “três tristes tradições”:

ausências, autoritarismos e instabilidades. No campo das ausências, Rubim se refere tanto a

períodos mais remotos em que elas foram inexistentes, quanto à modalidade neoliberal dessa

ausência, marcada pela substituição do Estado pelo mercado, através do recurso das leis de

incentivo. Baseadas na prerrogativa da renúncia fi scal, na qual os governos federal, estadual

ou municipal abrem mão de recolher algum tipo de imposto em troca de um incentivo a

determinado setor ou atividade, as leis de incentivo (Lei Rouanet, Lei do Audiovisual) foram

criadas como estímulo ao apoio da iniciativa privada ao setor cultural. No entanto, logo após

sua criação na década de 1990, passaram, de meros mecanismos de fi nanciamento, à principal

política do governo para o setor cultural.

Deixando de atuar como indutor direto da cultura e passando a incentivar o patrocínio privado

mediante benefício fi scal, o próprio Estado consolidou um quadro em que o recurso público

(do imposto) é aplicado de acordo com prioridades e escolhas privadas (dos patrocinadores).

A prevalência da lógica do mercado sobre o interesse público cristalizou, como era de se esperar,

inúmeras distorções e desequilíbrios regionais. Em torno de 80% dos recursos captados via

mecenato vão, a cada ano, para projetos na região sudeste (basicamente Rio de Janeiro e São

Paulo, ou, mais especifi camente, suas capitais). A região norte, a menos aquinhoada, fi ca com

cerca de 0,5%. Os projetos mais midiáticos, isto é, com maior possibilidade de veiculação da marca

de seus patrocinadores, conseguem, evidentemente, maior êxito em sua busca de recursos.

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As estatísticas apontam também a falência da ideia original, de que a Lei Rouanet (a Lei

de Incentivo à Cultura) incentivaria que as empresas passassem a injetar recursos na cena

cultural. Em 2014, por exemplo, o mecenato totalizou R$ 1,33 bilhões. Desse montante, 94,5%

corresponderam à renúncia fi scal (isto é, tornaram-se deduções no imposto de renda dos

patrocinadores), enquanto que o desembolso efetivo das empresas foi de apenas 5,5%. Esse

último percentual, que já foi de 70% em 1993, veio diminuindo ano após ano, como se pode

acompanhar no site do sistema SalicNet1, do MinC. Fica assim evidente que as empresas estão,

cada vez mais, preferindo se concentrar nos projetos 100% incentivados, o que, na prática,

signifi ca não injetar recurso algum.

Para os projetos que, por sua natureza, públicos e/ou locais de realização não se mostram

sedutores aos patrocinadores, o caminho natural seria o Fundo Nacional de Cultura (FNC), cujos

objetivos são: a) estimular a distribuição regional equitativa dos recursos a serem aplicados na

execução de projetos culturais e artísticos; b) favorecer a visão interestadual, estimulando projetos

que explorem propostas culturais conjuntas, de enfoque regional; c) apoiar projetos dotados

de conteúdo cultural que enfatizem o aperfeiçoamento profi ssional e artístico dos recursos

humanos na área da cultura, a criatividade e a diversidade cultural brasileira; d) contribuir para

a preservação e proteção do patrimônio cultural e histórico brasileiro; e) favorecer projetos que

atendam às necessidades da produção cultural e aos interesses da coletividade, aí considerados

os níveis qualitativos e quantitativos de atendimentos às demandas culturais existentes, o

caráter multiplicador dos projetos através de seus aspectos socioculturais e a priorização de

projetos em áreas artísticas e culturais com menos possibilidade de desenvolvimento com

recursos próprios.

No entanto, a exiguidade dos recursos do FNC (e da própria pasta da Cultura, que, em 2014,

foi equivalente a 0,18% do orçamento total da União) impede que, na prática, este cumpra

seu papel fundamental de promover equidade e sustentabilidade à cena do fi nanciamento

cultural.

A segunda das “três tristes tradições” das políticas culturais apontadas por Rubim diz

respeito aos autoritarismos: o autor destaca o desafi o de formular e implantar políticas

culturais em circunstâncias democráticas. Ressalta, no entanto, o enfrentamento desse desafi o

1 http://sistemas.cultura.gov.br/salicnet/Salicnet/Salicnet.php

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durante o governo Lula, durante o qual isso se deu a partir da conexão com a sociedade,

em inúmeras conferências de cultura (municipais, estaduais e nacional), fóruns e consultas

públicas na internet e pela “abertura de suas fronteiras para outras culturas: populares, afro-

brasileiras, indígenas, de gênero, de orientação sexual, das periferias, audiovisuais, das redes

e tecnologias digitais, etc.”. Rubim chama a atenção também para “o autoritarismo estrutural

que impregna a sociedade brasileira” e que a fez conceber cultura, historicamente, em uma

perspectiva restrita e elitizada, o que certamente difi culta sua compreensão enquanto motor

de desenvolvimento.

Na esfera das instabilidades, a terceira das “três tristes tradições” mencionadas, o autor

chama a atenção para o impacto das frequentes mudanças de prioridades na gestão pública

cultural, contexto que se buscou enfrentar com a construção do Sistema Nacional de Cultura

(SNC) e do Plano Nacional de Cultura (PNC), documento norteador da política cultural nacional

que estabelece objetivos, diretrizes, ações e metas para dez anos (2010–2020). Nesse sentido,

foi também dada a partida no Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais (SNIIC),

essencial e preliminar a qualquer esforço consistente de sistematização de uma política

pública para o setor.

Além dos aspectos já mencionados, são ainda muitas as difi culdades a serem enfrentadas pela

gestão cultural pública: o desenvolvimento de marcos legais adequados às especifi cidades do

campo cultural (algumas ocupações no setor cultural sequer existem para o Ministério do Trabalho

e Emprego), a difi culdade de acesso a crédito (por conta dos ativos intangíveis dos proponentes),

a burocracia, a alta carga tributária, difi culdades aduaneiras, carência de indicadores culturais

consistentes (aguardam-se ainda as conclusões do IBGE a partir da criação da conta-satélite

cultura), carência de apoio e formação para produtores culturais e empreendedores criativos

(inclusive para a gestão), necessidade de desenvolvimento de mercado interno, regional, a falta

de infraestrutura de produção, distribuição e consumo, a integração de fundos, de conselhos e

de políticas (via consolidação do SNC) são alguns desses desafi os.

Na última década, o Ministério da Cultura brasileiro vem buscando contribuir mais

efetivamente para a valorização do campo da cultura e para a maior centralidade das políticas

culturais no corpo das políticas públicas. O entendimento da cultura – como simbologia,

como cidadania e como economia – e a afi rmação dessas dimensões como indissociáveis na

elaboração das políticas culturais, ratifi ca a compreensão ampla de desenvolvimento discutida

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até aqui. Os debates contemporâneos sobre desenvolvimento têm evidenciado que crescimento

econômico é uma condição necessária, mas não sufi ciente, para o desenvolvimento do país.

O Programa Cultura Viva, consolidado como Política Nacional de Cultura Viva (PNCV) é, no

Brasil, uma das ações essenciais para o diálogo cultura-desenvolvimento. A partir da parceria

do Ministério da Cultura com governos estaduais e municipais, escolas e universidades,

tem como foco a ampliação do acesso da população aos meios de produção, circulação e

fruição cultural e tornou-se uma das políticas culturais com mais capilaridade e visibilidade.

Está presente nos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal, em mais de mil municípios e

envolvendo mais de 8,4 milhões de pessoas, de acordo com estudo realizado pelo IPEA no

fi nal de 2011. Envolve iniciativas dos mais diversos segmentos da cultura: cultura de base

comunitária, com ampla incidência no segmento da juventude, Pontos de Cultura indígenas,

quilombolas, de matriz africana, a produção cultural urbana, a cultura popular, abrangendo

todos os tipos de linguagem artística e cultural.

De acordo com o MinC, desde 2004, quando foi criado o Programa Cultura Viva, foram

implementados 4.500 Pontos de Cultura em todo o país. Até 2020, a meta é fomentar mais

10.500 Pontos de Cultura de forma a atingir a meta prevista no Plano Nacional de Cultura de

15 mil pontos em funcionamento.

Com a aprovação e regulamentação da PNCV em abril de 2015, os Pontos e Pontões de

Cultura passam a ser entendidos como instrumentos da política, atuando como elos entre

a sociedade e o Estado, com o objetivo de desenvolver ações culturais sustentadas pelos

princípios da autonomia, do protagonismo, da interculturalidade, da capacitação social das

comunidades locais e da atuação em rede, visando ampliar o acesso da população brasileira aos

meios e condições de exercício dos direitos culturais. A PNCV assegurou ainda a simplifi cação

e a desburocratização dos processos de prestação de contas e o repasse de recursos para as

organizações da sociedade civil, uma das grandes difi culdades encontradas por muitos Pontos

de Cultura até então.

Foi também atendida uma reivindicação histórica dos Pontos: a de possibilidade de

autodeclaração como Ponto de Cultura, por meio de um Cadastro Nacional que oferecerá

ferramentas de interação e comunicação e permitirá o reconhecimento, o mapeamento e a

certifi cação de entidades e coletivos culturais.

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São objetivos da nova Política Nacional de Cultura Viva:

• Garantir o pleno exercício dos direitos culturais aos cidadãos

brasileiros, dispondo-lhes os meios e insumos necessários para

produzir, registrar, gerir e difundir iniciativas culturais.

• Estimular o protagonismo social na elaboração e na gestão das

políticas públicas da cultura.

• Promover uma gestão pública compartilhada e participativa, amparada

em mecanismos democráticos de diálogo com a sociedade civil.

• Consolidar os princípios da participação social nas políticas culturais.

• Garantir o respeito à cultura como direito de cidadania e à diversidade

cultural como expressão simbólica e como atividade econômica.

• Estimular iniciativas culturais já existentes, por meio de apoio e

fomento da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

• Promover o acesso aos meios de fruição, produção e difusão cultural.

• Potencializar iniciativas culturais, visando à construção de novos

valores de cooperação e solidariedade, e ampliar instrumentos de

educação com educação.

• Estimular a exploração, o uso e a apropriação dos códigos, linguagens

artísticas e espaços públicos e privados disponibilizados para a ação

cultural.

Os Pontos de Cultura, frente principal do Programa Cultura Viva (e agora da Política

Nacional Cultura Viva) se tornaram uma referência de política cultural dentro e fora do

Brasil, tendo sido adotados em vários países da América Latina, como Argentina, Chile, Peru,

Colômbia e Costa Rica.