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Companhia do Latão mistura Brecht e Marx nos palcos Pág. 12 São Paulo, de 1º a 7 de janeiro de 2009 www.brasildefato.com.br Ano 6 • Número 305 Uma visão popular do Brasil e do mundo Circulação Nacional R$ 2,50 ISSN 1978-5134 Em 2009, José Serra duplicará gastos com publicidade Este ano, o governador de São Paulo, José Serra, terá à sua disposição R$ 313 milhões para o setor de comunicação social – quase o dobro do valor gasto nessa área em 2008. O aumento da verba de publicidade no ano que antecede as eleições presidenciais não é coincidência. De acordo com o deputado Raul Marcelo (Psol/SP), os números deixam claro “que isso tem um componente eleitoral para 2010” . Além disso, o dinheiro está sendo investido no lugar errado, garante ele. “O Estado possui 1 milhão de terras devolutas. Esses recursos poderiam ser utilizados para fins de reforma agrária” , analisa. Pág. 3 Afro-bolivianos têm seu próprio rei Julio Pinedo não é so- berbo. Sua casa, um sobra- dinho, é simples. A roupa que veste é surrada, o boné, velho. Seu trabalho? Agricultor. Mas, antes de tudo, Julio é rei. Seu rei- nado vale para todo o ter- ritório nacional. Mas não para todos os bolivianos. AFOGANDO EM NÚMEROS Meio século depois de Fidel Castro e os guerri- lheiros de Sierra Maes- tra deporem Fulgêncio Batista, a Revolução Cubana ainda é referên- cia para a esquerda. Em entrevista, o jornalista britânico Richard Gott aponta, de forma crítica, as principais conquistas cubanas. Pág. 10 O legado da Revolução Cubana após 50 anos Na visão de dom Pedro Casaldáliga, “só a partici- pação ativa dos movimen- tos sociais pode mudar o rumo de uma política “Onde não há utopia não há futuro”, diz Casaldáliga Foram cinco anos de ocupações, marchas e pro- cessos na Justiça, mas fi- nalmente parte da fazenda Southall, no município de São Gabriel (RS), foi desa- propriada. O latifúndio era de interesse das transna- cionais de celulose, mas, com a crise, desistiram da terra. Para o MST, essa é a maior conquista do movi- mento, nos últimos anos, no Estado do Rio Grande do Sul. Pág. 7 MST conquista desapropriação histórica no RS Ele exerce poder sobre um povo esquecido, quase invisível, que soma 35 mil pessoas, 0,4% da popula- ção da Bolívia. Pág. 9 US$ 18 bilhões por ano é o custo que Cuba paga em função do bloqueio econômico, financeiro e comercial imposto pelos EUA. Com esse valor, poderiam ser compradas 171 milhões de cestas básicas. Ou seja, 15 cestas básicas para cada um dos 11 milhões de habitantes da ilha caribenha. excludente”. Em entrevis- ta ao Brasil de Fato, o bispo também manda sua mensagem ao MST, que completa 25 anos. Pág. 3 O governo de José Serra (PSDB) tem criado difi- culdades para implantar o projeto do Centro de Edu- cação da Unesp na zona leste da cidade de São Pau- lo. Essa é a análise do pa- dre Antônio Marchioni, um dos principais responsáveis pela implementação da USP Leste. Se tivesse sido aprovada em 2008, a uni- dade da Unesp entraria em funcionamento no bairro de Itaquera em 2010. Pág. 6 Governo de São Paulo atrasa Unesp na zona leste da capital Para 2009, o Ministério da Cultura prepara uma reforma na Lei Rouanet. Para especialistas, a reforma não altera o aspecto mais problemático dela, que é o incentivo fiscal a empresas privadas. Hoje, o Estado deixa de cobrar parte do Im- posto de Renda de empresas que façam projetos culturais. Na prática, ele transfere à iniciativa privada a gestão da cultura no país. Pág. 8 Mudanças na Lei Rouanet não alteram seu caráter Lenise Pinheiro Sergi Bernal Reprodução Igor Ojeda A população negra boliviana vive, principalmente, na região dos Yungas, a cerca de três horas de La Paz Michael Barrett

Edição 305 - de 1º a 7 de janeiro de 2009

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Uma visão popular do Brasil e do mundo US$ 18 bilhões por ano é o custo que Cuba paga comercial imposto pelos EUA. Com esse valor, em função do bloqueio econômico, financeiro e da ilha caribenha. Ele exerce poder sobre um povo esquecido, quase invisível, que soma 35 mil pessoas, 0,4% da popula- ção da Bolívia. Pág. 9 ISSN 1978-5134 Michael Barrett

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Page 1: Edição 305 - de 1º a 7 de janeiro de 2009

Companhia do Latãomistura Brecht e Marx nos palcos Pág. 12

São Paulo, de 1º a 7 de janeiro de 2009 www.brasildefato.com.brAno 6 • Número 305

Uma visão popular do Brasil e do mundoCirculação Nacional R$ 2,50

ISSN 1978-5134

Em 2009, José Serra duplicará gastos com publicidade Este ano, o governador de São Paulo, José Serra, terá à sua disposição R$ 313 milhões para o setor de comunicação social – quase o dobro do valor gasto nessa área em 2008. O aumento da verba de publicidade no ano que antecede as eleições presidenciais não é coincidência. De acordo com o deputado Raul Marcelo (Psol/SP), os números deixam claro “que isso tem um componente eleitoral para 2010”. Além disso, o dinheiro está sendo investido no lugar errado, garante ele. “O Estado possui 1 milhão de terras devolutas. Esses recursos poderiam ser utilizados para fins de reforma agrária”, analisa. Pág. 3

Afro-bolivianos têm seu próprio reiJulio Pinedo não é so-

berbo. Sua casa, um sobra-dinho, é simples. A roupa que veste é surrada, o boné, velho. Seu trabalho?

Agricultor. Mas, antes de tudo, Julio é rei. Seu rei-nado vale para todo o ter-ritório nacional. Mas não para todos os bolivianos.

AFOGANDO EM NÚMEROS

Meio século depois de Fidel Castro e os guerri-lheiros de Sierra Maes-tra deporem Fulgêncio Batista, a Revolução Cubana ainda é referên-cia para a esquerda. Em entrevista, o jornalista britânico Richard Gott aponta, de forma crítica, as principais conquistas cubanas. Pág. 10

O legado da RevoluçãoCubana após 50 anos

Na visão de dom Pedro Casaldáliga, “só a partici-pação ativa dos movimen-tos sociais pode mudar o rumo de uma política

“Onde não há utopia não há futuro”, diz Casaldáliga

Foram cinco anos de ocupações, marchas e pro-cessos na Justiça, mas fi-nalmente parte da fazenda Southall, no município de São Gabriel (RS), foi desa-propriada. O latifúndio era de interesse das transna-cionais de celulose, mas, com a crise, desistiram da terra. Para o MST, essa é a maior conquista do movi-mento, nos últimos anos, no Estado do Rio Grande do Sul. Pág. 7

MST conquista desapropriação histórica no RS

Ele exerce poder sobre um povo esquecido, quase invisível, que soma 35 mil pessoas, 0,4% da popula-ção da Bolívia. Pág. 9

US$ 18 bilhões por ano é o custo que Cuba paga

em função do bloqueio econômico, financeiro e

comercial imposto pelos EUA. Com esse valor,

poderiam ser compradas 171 milhões

de cestas básicas. Ou seja, 15 cestas básicas

para cada um dos 11 milhões de habitantes

da ilha caribenha.

excludente”. Em entrevis-ta ao Brasil de Fato, o bispo também manda sua mensagem ao MST, que completa 25 anos. Pág. 3

O governo de José Serra (PSDB) tem criado difi-culdades para implantar o projeto do Centro de Edu-cação da Unesp na zona leste da cidade de São Pau-lo. Essa é a análise do pa-dre Antônio Marchioni, um dos principais responsáveis pela implementação da USP Leste. Se tivesse sido aprovada em 2008, a uni-dade da Unesp entraria em funcionamento no bairro de Itaquera em 2010. Pág. 6

Governo de São Paulo atrasa Unesp na zona leste da capital

Para 2009, o Ministério da Cultura prepara uma reforma na Lei Rouanet. Para especialistas, a reforma não altera o aspecto mais problemático dela, que é o incentivo fiscal a empresas privadas. Hoje, o Estado deixa de cobrar parte do Im-posto de Renda de empresas que façam projetos culturais. Na prática, ele transfere à iniciativa privada a gestão da cultura no país. Pág. 8

Mudanças na Lei Rouanet não alteram seu caráter

Lenise Pinheiro Sergi Bernal

Reprodução

Igor Ojeda

A população negra boliviana vive, principalmente, na região dos Yungas, a cerca de três horas de La Paz

Michael Barrett

Page 2: Edição 305 - de 1º a 7 de janeiro de 2009

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Marcelo Netto Rodrigues, Luís Brasilino • Subeditora: Tatiana Merlino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sa-les de Lima, Igor Ojeda, Mayrá Lima, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper,

João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – [email protected] • Gráfi ca: FolhaGráfi ca • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou [email protected] Para anunciar: (11) 2131-0800

2009 e o novo ciclo que iniciaremos

HÁ POUCO tempo, o jornalista Zue-nir Ventura escreveu um livro recons-tituindo o ano de 1968, quando uma intensa efervescência política eclodiu no Brasil e no mundo, mobilizando a juventude, estudantes, artistas, inte-lectuais, operários, mulheres etc.

Num momento em que se buscava reinventar o Brasil coletivamente, o Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro, baixado pela ditadura militar, truncou brutalmente um rico movimento e marcou aquele ano de 1968 com o gosto amargo de um ano que não acabou. Quarenta anos depois, no dia 10 de dezembro de 2008, voltamos a ter essa mesma sensação, do ponto de vista das lutas dos povos indígenas.

Neste dia, o Supremo Tribunal Fe-deral voltou a se reunir para debater e decidir a respeito da manutenção ou não da homologação da terra indígena Raposa Serra do Sol. Foram 8 votos dos ministros favoráveis aos povos indígenas e nenhum voto favorável aos invasores ou à revisão da homo-logação feita, porém o pedido de vista do ministro Marco Aurélio de Mello impediu que ocorresse o que seria uma vitória completa e defi nitiva dos povos indígenas de Raposa Serra do Sol e de todo o país. Assim, fi camos com uma vitória verdadeira, mas para ser confi rmada no futuro.

Um ano difícil2008 foi fértil de lutas dos povos

indígenas: retomadas, mobilizações, articulações, preparação e realização do Abril Indígena, interlocução com setores responsáveis pelas políticas públicas, participação na CNPI, pre-sença nos meios de comunicação so-cial, denúncias de violências, alianças com movimentos sociais, principal-mente com a Via Campesina etc.

O Abril Indígena foi, novamente, a grande referência para a mobilização conjunta dos povos indígenas em defesa de seus direitos e na constru-ção de suas propostas, além de ser o grande espaço para avaliação dos desafi os que se apresentam para a articulação do movimento indígena em âmbito nacional.

Neste mesmo mês teve início a Operação Upatakon 3, de retirada dos invasores da terra indígena Ra-posa Serra do Sol.. A suspensão dessa operação pelo STF e o debate sobre a constitucionalidade da demarcação daquela terra pela Suprema Corte foram a senha para a manifestação violenta de todos os setores conserva-dores e antiindígenas do país.

Vivemos, de maio até dezembro de 2008, um crescendo de posicio-namentos racistas, que há muito tempo não eram tão explicitamente expostos no Brasil. Militares e con-servadores de todas as origens e ma-tizes ocuparam canais de televisão, telejornais, programas de rádio e inúmeras páginas de jornais diários destilando desconfi ança, desinfor-mação e preconceito com relação aos índios e suas culturas.

Frases como “os índios ainda vi-vem no paleolítico” ou “a necessária integração dos índios à sociedade na-cional e ao mercado” se tornaram cor-rentes e nem chamavam mais a aten-ção, dada a sua freqüência na escala-da racista. Setores militares pregaram ininterruptamente o fi m da política indigenista no que ela pode ter de coerente com a Constituição de 1988 e o regresso aos tempos pré-cons-titucionais; setores do agronegócio defenderam os fazendeiros invasores como “patriotas injustiçados”, supos-tas “vítimas do excesso de direitos e de terras” dos povos indígenas.

O tom cada vez mais agressivo esta-va por colocar em risco a vida de in-dígenas que se arriscassem a circular sozinhos nas cidades do interior do país, de qualquer Estado ou região.

O primeiro julgamento do caso Ra-posa Serra do Sol, em 27 de agosto, resultou no importante voto favorável do ministro relator Carlos Ayres Britto e no pedido de vista do próximo mi-nistro a votar, Menezes Direito, com a conseqüente suspensão da sessão.

Após o julgamento do caso Raposa Serra do Sol tivemos, no mesmo STF, o julgamento do caso Pataxó Hã Hã Hãe, da Bahia. Este se refere à lega-lidade ou não dos títulos de posse incidentes em terra indígena, distribu-ídos pelo governo daquele Estado aos invasores. Desta vez também o minis-tro relator, agora Eros Grau, votou de forma consistente favoravelmente ao povo indígena. Mais uma vez, a sessão foi interrompida por um pedido de vista do ministro Menezes Direito.

Este novo julgamento manteve a questão indígena nos meios de comunicação e no debate da socie-dade, de maneira um pouco mais branda do que no caso Raposa Serra do Sol, mas avivando os mesmos preconceitos com relação à cultura e ao modo de vida e trabalho daquele povo indígena.

De forma simultânea a esses dois casos, a questão Guarani Kaiowá apa-receu com força, principalmente no Estado do Mato Grosso do Sul. Tendo suas terras demarcadas em “ilhas”, modelo para o agronegócio, aquele povo continua sofrendo um processo de etnocídio facilmente verifi cável pe-los alarmantes números de suicídios e assassinatos, além de sinais claros de desagregação social e familiar.

A busca de recuperação territorial, única garantia para a existência de um futuro para os Guarani-Kaiowá,

teve como resposta a mesma onda racista e preconceituosa que agrediu os povos indígenas de Raposa Serra do Sol. Ocorreu aqui uma articulação política entre os invasores de Roraima e do Mato Grosso do Sul, brandindo as mesmas frases de efeito contra os indígenas, seus aliados e a Funai, veiculando as mesmas mentiras a respeito das ameaças dos indígenas à soberania nacional e à economia do Estado. Fato inédito, a “causa anti-indígena do agronegócio” contou com a contribuição de “intelectuais orgâ-nicos”, assessores de multinacionais bem pagos por seus empregadores e bem aceitos nas páginas de opinião dos grandes jornais diários.

O julgamento do anoApós mais de três meses de espera,

o caso Raposa Serra do Sol voltou ao plenário do STF no simbólico dia 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos e dia em que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada em 1948, completava 60 anos.

Expectativas acumuladas pelos po-vos indígenas e seus aliados, por um lado, e pelos invasores e seus defen-sores, por outro, fi zeram as páginas de jornais e os noticiários das rádios e televisões serem inundados de opini-ões e especulações das mais diversas, na sua ampla maioria anunciando a derrota dos povos indígenas e a preva-lência dos interesses do agronegócio.

Nas últimas semanas e dias que precederam a sessão de julgamento, gestos de solidariedade aos índios de Raposa Serra do Sol se multiplicaram, tanto por parte de movimentos so-ciais como por parte de outras entida-des da sociedade civil.

O dia 10 de dezembro chegou, com ele o salto de 1 para 8 o número de votos dos ministros favoráveis aos povos indígenas de Raposa Ser-ra do Sol, mesmo que com discutí-veis condicionamentos. Era para o ano de 2008 das lutas indígenas ter-minar ali, com uma vitória indígena histórica e inquestionável.

Porém, o pedido de vista do minis-tro Marco Aurélio de Mello truncou este fi nal de ano e o transferiu para um futuro ainda incerto.

2008 ainda não acabou (Artigo pu-blicado no Jornal Porantim, do Con-selho Indigenista Missionário).

Paulo Maldos é assessor político do Con-selho Indigenista Missionário (Cimi).

debate Paulo Maldos

2008 – outro ano que não terminoucrônica Luiz Ricardo Leitão

A CRISE já tem alcance global e im-pacto econômico, político, ambien-tal e ideológico. Suas características recessivas e depressivas já permitem sustentar que causará efeitos pro-longados, inaugurando um novo período na luta de classes.

Este ano, promete um cenário inédito, com inúmeras possibili-dades para a esquerda e as forças populares em todo o mundo. Os desafi os serão imensos. Enfrenta-remos as tentativas capitalistas de aumentar, ainda mais, a exploração sobre os trabalhadores para recom-por as taxas de lucro. Estaremos diante de um cenário mundial de desemprego, falta de alimento e agravamento súbito das condições de vida. É previsível que as classes dominantes acirrarão os mecanis-mos repressivos e criminalizadores dos movimentos sociais.

Porém, simultaneamente, esta crise proporciona alterações na dinâmica da luta de classes e pode criar um novo ciclo do reascenso da luta de massas. Além disso, abre uma oportunidade histórica na me-dida em que altera o quadro geopo-lítico internacional, determinando o rearranjo dos países e da ordem econômica mundial, abalando a

hegemonia econômica e política do imperialismo.

O abalo da hegemonia imperialis-ta e a fratura dos setores dominan-tes abrem uma brecha fundamental para a superação deste último perío-do histórico, marcado pela ofensiva capitalista e o conseqüente descenso da luta de massas. O quadro histó-rico iniciado no início dos anos 90 chegou ao fi m!

O elemento decisivo para que essa oportunidade converta-se em saídas socialistas é a capacidade da classe trabalhadora em construir alternati-vas de poder, articulando o conjunto das forças populares em cada país.

Em nosso caso, a burguesia bra-sileira, cada vez mais integrada e associada à burguesia internacional, ao contrário de outros momentos históricos, não apresentará qualquer proposta de alternativa que impli-que em soberania e enfrentamento de nossos problemas estruturais. Portanto, a crise torna ainda mais nítida a disjuntiva entre uma su-

peração que agravará nossos pro-blemas sociais e destruirá nossos últimos resquícios de soberania na-cional ou uma saída que coloque em cena o povo brasileiro como princi-pal ator político.

Este é o contexto que abre uma oportunidade inédita para as forças capazes de construir um projeto po-pular para o Brasil. A nova conjun-tura da condições para que o projeto popular se constitua enquanto uma alternativa de poder. Na verdade, es-te período histórico que se inaugura com a atual crise exigirá o confronto entre a alternativa política das for-ças populares e toda a barbárie que implica uma saída capitalista.

Aos lutadores populares, incumbe a tarefa de utilizar todos os recur-sos pedagógicos disponíveis para explicar as causas, efeitos e saídas para esta crise. Os grandes meios de comunicação explicam a crise como uma catástrofe da natureza, que exigirá uma postura passiva ante seus inevitáveis e terríveis efeitos.

Nosso papel será explicar sua causa, apontar os responsáveis e propor as soluções que interessam ao povo.

Assume especial importância a tarefa de construir unidade de ação das forças populares e possibilitar que assumam um programa unitá-rio, colocando-se no plano político como uma alternativa do projeto popular. Para tanto, no interior da classe trabalhadora será necessário intensifi car esforços pela retomada da capacidade de luta do proletaria-do industrial, sujeito social decisivo na construção da unidade entre as forças populares.

O proletariado industrial, que ainda sofre o impacto deste perío-do de descenso, segue anestesiado no Brasil, sufocado por uma estru-tura sindical engessada, que não incorpora nem estimula o surgi-mento de novos quadros e lideran-ças, enfrentando um arcabouço de medidas jurídicas que blindam e difi cultam a greve e a organização no local de trabalho. Contribuir

na superação desses desafi os, re-tomando lutas que impeçam que a burguesia solucione a crise através do desemprego e da superexplora-ção é a primeira das grandes tare-fas de todos os lutadores do povo. Isso signifi cará compreender a importância de lutar contra as demissões e gerar respostas, cada vez mais ousadas, para enfrentar a crise.

Mais do que nunca é necessário estimular as lutas sociais. Em cada luta surge a oportunidade de cons-truir a unidade das forças popu-lares. Construir uma unidade em torno de um programa político, que contemple as principais ques-tões do projeto popular, é o outro desafi o primordial dos lutadores do povo.

Somente com uma unidade construída em torno de lutas con-cretas, em torno de um programa que cada força social reconheça como seu, será possível avançar para o necessário passo de uma alternativa política do projeto po-pular, da classe trabalhadora.

Esses são os desafi os que nos esperam em 2009. Um ano que pro-mete ser o início de um novo ciclo histórico de lutas.

de 1º a 7 de janeiro de 20092

editorial

Algumas lições de 2008 O ANO de 2008 ficará marcado por certas imagens emblemáti-cas da aguda perversão social de Bruzundanga, ainda que alguns episódios queiram talvez nos sugerir que nem tudo está perdido nesta província periférica do capitalismo globalizado. Cito, de imediato, o triste caso dos roubos de doações às vítimas das en-chentes de Santa Catarina, em que soldados do “glorioso” Exér-cito tupiniquim e madames de classe média foram fl agrados por “câmeras indiscretas” furtando – ou, até mesmo, saqueando – peças de roupa e outros itens destinados aos milhares de desabri-gados que as chuvas, a tragédia ambiental e a caótica urbanização do século 20 produziram numa das regiões mais ricas do país.

Confesso que as cenas divulgadas pela TV me pareceram uma versão ainda mais grotesca do BBB, aquele pseudoprograma de “entretenimento” que a Globo importa, repagina e oferece ao público idiotizado com uma pitada de tempero nacional, devida-mente orientada pelas pesquisas de “mercado” da emissora. O incidente com os recrutas é a ilustração mais eloqüente da medio-cridade banalizada em que estamos mergulhados: os gracejos sem graça dos soldadinhos revelam apenas estereótipos arraigados que a Paidéia audiovisual reproduz diariamente. Um deles, por exemplo, segura um avantajado soutien e diz que a peça caberia muito bem em sua mãe, provocando risos na pequena tropa que o rodeia. Não houve sequer tempo para as velhas metáforas zoo-lógicas, mas a vulgaridade é a mesma que a telinha nos empurra há décadas, seja nos surrados humorísticos herdados da rádio Na-cional, seja nos bizarros programas de auditório comandados por Ratinhos, Faustões e outros fanfarrões de plantão na corte.

Contudo, não crucifi quemos a esmo os valorosos voluntários da pátria. Se suas tardes de ócio não são preenchidas por aca-lorados debates sobre a política mais adequada à preservação da Amazônia ou apreciações ponderadas sobre os méritos e deméritos da minissérie Capitu (recentemente exibida pela mesma rede do BBB, em sua cota reservada à “alta cultura na-cional”), não pense o leitor que os ofi ciais que os comandam e, sobretudo, a burguesia que os sustenta representam uma casta mais ‘nobre’ ou ‘refi nada’. Para que se tenha uma visão irre-tocável das ditas elites tropicais, basta vê-las reunidas no Mo-rumbi (SP) alguns dias após a tragédia do rio Itajaí, durante o último show da popstar Madonna (aquela que um dia profa-nou o moralismo burguês e hoje é apenas uma competente – e musculosa – mascate da felicidade enlatada de Tio Sam).

Imagine o leitor o que é um camarote vip em eventos tão trans-cendentais... Ali estão os grandes empresários da S/A Brasil, os parlamentares mais notórios de todos os partidos, os artistas e jogadores de futebol mais badalados pela mídia, dentre outras fi guras emblemáticas do poder de Bruzundanga. Seus gestos e chistes ilustram outro reles BBB, mais caro e pomposo, mas com a mesma banalidade da caserna. Que o diga Constantino Neto, dono da Gol (as “linhas aéreas inteligentes”...), ao ouvir a cantora gritar a palavra Macho (ela confundiu o nome de um fã chamado Márcio): “Macho? Acho que ela está querendo homem. A gente devia ir lá e se apresentar para ela”. Esse valente varão estava ao lado de gente como ACM Neto e Paulo Bornhausen, dois notáveis deputados do DEM que aguardavam ansiosos, no camarote de uma certa empresa de telefonia, notícias sobre a aprovação, pela Anatel, da Brasil Telecom pela concorrente Oi/Telemar, uma das maiores maracutaias empresariais do fi nado 2008.

Didático e edifi cante, hein, meu caro eleitor? A esta altura, o amigo decerto já me indagará sobre as boas lições do ano, até agora esquecidas pelo cronista. Pois lá mesmo no Sul, uma velha senhora ensinou à própria fi lha que ainda há luz no fi m do túnel, ao dar-lhe um sermão em regra e mandá-la devolver, peça por peça, tudo quanto a criatura e o marido haviam sur-rupiado das doações, inclusive vários pacotes de fraldas geriá-tricas que a generosa fi lhinha trouxera para a mãe. A imagem da ladra envergonhada retornando ao local do crime, com um carrinho de supermercado repleto de objetos roubados, me-rece entrar para a nossa galeria 2008. Ela está em vários jor-nais, com legendas que exaltam a sobrevivência das “virtudes cristãs” em um mundo já “desprovido de valores”. No álbum deste cronista, porém, ela traduz bem mais do que o discurso burguês busca recalcar: é um ícone patético da crise inelutável desta era de hedonismo vulgar e consumo desvairado ditada pelo capitalismo neoliberal.

Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Literatura Latino-americana pela Universidade de La Habana, é autor de

Lima Barreto: o rebelde imprescindível (Editora Expressão Popular).

Valter Campanato/ABr

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USO DA MÁQUINA

de 1º a 7 de janeiro de 2009 3

brasil

Com esse dinheiro, seria possível a construção de 156 escolas públicas, ou 6 hospitais de grande porte, ou ainda 10 mil moradias populares

Quanto

da Redação

A assessoria da banca-da petista destaca que o Projeto da Lei Orçamen-tária – que prevê arre-cadação de R$ 99, 7 bi-lhões –, omitiu aproxi-madamente R$ 16 bi-lhões. Dessa forma, os seqüentes governos tu-canos no Estado de São Paulo “estão sempre su-bestimando os orçamen-tos”, diz Eduardo Mar-ques. “O governo po-de canalizar esse exces-so de arrecadação pa-ra as obras e eu não du-vido que isso também vá para a comunicação”, acrescenta.

Somado aos R$ 16 bi-lhões, existe também o índice de remaneja-mento dos recursos es-taduais, que fi ca em tor-no de 40%. Para Rober-to Felício, líder do PT na Assembléia, é neces-sário existir tal fl exibi-lidade no orçamento do governo, mas ele vê um índice exagerado por parte da administração paulista. “Mesmo con-siderando normal e até útil o remanejamento para que o Estado tenha como enfrentar impre-vistos, como no caso de Santa Catarina, a mar-gem aqui em São Paulo é muito grande”, lem-bra. (ESL)

Eduardo Sales de Lima da Redação

ESTE ANO a publicidade do-bra, o transporte terá mais di-nheiro e a educação, menos. À primeira vista, é isso que salta aos olhos de quem lê o Proje-to da Lei Orçamentária do Es-tado de São Paulo para 2009, proposto pelo governo Jo-sé Serra à Assembléia Legis-lativa do Estado de São Pau-lo (Alesp). Atendo-se à publi-cidade, o governo tucano te-rá a sua disposição R$ 313 mi-lhões para o setor de comuni-cação social no ano que ante-cede a eleição para presiden-te. Quase o dobro do valor de R$ 166 milhões gastos em 2008 nessa área.

O líder do governo tucano na Assembléia Barros Mu-nhoz justifi cou publicamente que o dinheiro não será em-penhado para gastos pesso-ais do governador, mas sim para campanhas publicitá-rias que têm a intenção de divulgar ações governamen-tais que necessitam da parti-cipação direta do contribuin-te, como a Nota Fiscal Paulis-ta. Segundo o deputado, uma iniciativa que vai gerar uma receita de R$ 4 bilhões, a partir de sua arrecadação.

Mas o deputado Raul Mar-celo (Psol/SP) discorda. “Confi gura-se de forma cla-ra que isso [o excesso de ver-bas para a publicidade] tem um componente eleitoral pa-ra 2010”, afi rma.

Ele pondera ainda que, eti-camente, além do objetivo eleitoral, o dinheiro está sen-do investido no lugar erra-do. “Só a cidade de São Pau-lo tem 1,3 milhão de desem-pregados; além disso, o Esta-do possui 1 milhão de terras

Serra vai dobrar gastos com publicidade em 2009Governador tucano de São Paulo, utiliza dinheiro público em 2009 de olho no pleito eleitoral do ano seguinte

devolutas, e esses recursos poderiam ser utilizados pa-ra fi ns de reforma agrária”, analisa o deputado.

Já o economista Eduardo Marques compara os núme-ros: são R$ 313 milhões em-penhados somente para o se-tor da publicidade em 2009. Com esse dinheiro, seria pos-sível a construção de 156 esco-las públicas, ou 6 hospitais de grande porte, ou ainda 10 mil moradias populares. Marques fez parte da assessoria técni-ca da bancada estadual do PT na Alesp, que apresentou, no dia 9 de dezembro, uma análi-se crítica sobre o total da peça orçamentária para 2009.

Marques, que também inte-gra o Fórum Paulista de Or-çamento Participativo, criti-ca – além do excesso de gas-tos para o setor da publicida-de – a ausência da população na elaboração das diretrizes orçamentárias para o Estado. Uma ausência, segundo ele, induzida pelo próprio gover-no. “Esse governo não fez na-da próximo à participação po-pular, não tem essa caracte-rística; e promove audiências públicas com, no máximo, 20, 30 pessoas; e sempre com di-fícil acesso”, lembra ao Brasil de Fato.

Obras à vista Ano a ano, o Estado de São

Paulo quebra recordes de ar-recadação, e isso refl ete dire-tamente no orçamento. Para

2007, foram R$ 85 bilhões; no ano seguinte, R$ 98 bi-lhões; e para 2009, R$ 115 bi-lhões. Os investimentos pas-saram de R$ 7,3 bilhões em 2007 para R$ 18,5 bilhões em 2009. O que signifi ca que, com a aproximação das elei-ções presidenciais de 2010, obras em diversos setores se-rão tocadas, sobretudo no dos transportes.

Conforme a análise do or-çamento feita pelos petis-

tas, o governo de José Serra não incluiu nenhuma previ-são de aumento para o fun-cionalismo público, e a edu-cação perderia espaço na dis-tribuição dos recursos para o setor dos transportes. Dados internos do PT prevêem, por exemplo, menos 26% para a manutenção do ensino fun-damental e menos 80% para o ensino médio.

O PT aponta que os recur-sos obtidos com o aumen-

Omissão no orçamento

to da arrecadação estão sen-do revertidos principalmen-te para obras na área de transportes na capital – co-mo na ampliação do Metrô e na construção do Rodoanel. “Aumentam a quantidade de publicidade e a de obras de transportes, diminuindo as despesas sociais”, critica o líder da bancada do partido na Alesp, o deputado Rober-to Felício. Como Raul Marce-lo, Felício não tem dúvidas de que a atitude do governo pau-lista “é um indicativo de que o orçamento do ano que vem está bastante direcionado pa-ra o objetivo eleitoral”.

Exagero serristaO aumento dos gastos com

publicidade não é novidade em governos tucanos. No iní-cio de 2008, o gabinete do Executivo enviou à Assem-bléia Legislativa de São Paulo, como parte do seu Plano Plu-rianual (PPA), uma previsão de R$ 720 milhões para a área de comunicação social a se-rem gastos entre 2008-2011.

Tal dotação é cinco vezes maior do que os R$ 122 mi-lhões que o governo Alckmin havia previsto gastar com co-municação no PPA referente ao período de 2004 a 2007 – e que, de fato, ao fi nal do seu mandato, acabaram atingindo R$ 193,7 milhões para o setor.

Nilton Vianada Redação

DOM PEDRO Casaldáliga tem sido uma voz fi rme na defesa de que, para o socialismo no-vo, a utopia continua. E es-clarece: a utopia de que fala-mos, a compartimos com mi-lhões de pessoas que nos pre-cederam, dando inclusive o seu sangue, e com milhões que hoje vivem e lutam e mar-cham e cantam. Para ele, esta utopia está em construção, so-mos operários da utopia.

Mesmo convivendo com o “irmão Parkinson”, como ele mesmo defi ne a doença de Parkinson – uma enfermida-de neurológica que afeta os movimentos da pessoa, cau-sa tremores, lentidão de movi-mentos, rigidez muscular, de-sequilíbrio além de alterações na fala e na escrita – carinho-samente respondeu às nos-sas perguntas. E, nesta entre-vista ao Brasil de Fato, Ca-saldáliga fala do “absurdo cri-minal de constituir a socieda-de em duas sociedades de fato: a oligarquia privilegiada, into-cável, e todo o imenso resto de humanidade jogada à fome, ao sem-sentido, à violência en-louquecida”. Defende que, ho-je, só a participação ativa, pio-neira, de movimentos sociais pode retifi car o rumo de uma política de privilégio para uns poucos e de exclusão para a desesperada maioria. E adver-te: o latifúndio continua a ser um pecado estrutural no Bra-sil e em toda Nossa América.

Brasil de Fato – Como o senhor tem visto a devastadora crise que já afeta todos os países e principalmente a classe trabalhadora? Dom Pedro Casaldáliga –Com muita indignação e re-volta; com uma sensação de impotência e ao mesmo tem-po a vontade radical de de-nunciar e combater os gran-des causadores dessa cri-se. Esquecemos fácil demais que a crise fundamentalmen-te é provocada pelo capitalis-mo neoliberal. Irrita ver go-vernantes e toda a oligarquia justifi cando que as economias nacionais devam servir ao ca-pital fi nanceiro. Os pobres de-vem salvar economicamen-te os ricos. Os bancos subs-tituem a mesa da família, as carteiras da escola, os equipa-mentos dos hospitais...

Eu estava comentando on-tém [19 de dezembro] com uns companheiros de mis-são que a avalanche de de-missões acabará justifi can-do uma avalanche de assal-tos, por desespero. Está cres-cendo cada dia mais o absur-do criminal de constituir a sociedade em duas socieda-des de fato: a oligarquia pri-vilegiada, intocável, e todo o imenso resto de humanidade jogada à fome, ao sem-sen-tido, à violência enlouqueci-da. Fecham-se as empresas, quando não conseguem um lucro voraz, e se fecha o futu-ro de um trabalho digno, de uma sociedade verdadeira-mente humana.

Como o senhor analisa o papel dos movimentos sociais frente à atual conjuntura?

Já faz um bom tempo que, sobretudo no Terceiro Mundo (concretamente no nosso Bra-sil, na Nossa América), se vem proclamando por cientistas sociais e dirigentes populares que hoje só a participação ati-va, pioneira, de movimentos sociais pode retifi car o rumo de uma política de privilégio para uns poucos e de exclu-são para a desesperada maio-ria. Os partidos e os sindica-tos têm ainda sua vez; devem conservá-la ou reivindicá-la. Sindicato e partido são me-diações políticas indispensá-veis; mas o movimento social organizado, presente no dia-a-dia do povo, é sempre mais urgente, como uma espécie de “vanguarda coletiva”.

Diante deste cenário, na sua avaliação, quais são as alternativas para os pobres do mundo hoje?

A alternativa é acreditar mesmo que “Outro Mundo é Possível” e se entregar indivi-dualmente e em comunidade ou grupo solidário e ir fazen-do real esse “mundo possível”. O capitalismo neoliberal é raiz dessa crise e somente há um caminho para a justiça e a paz reinarem no mundo: sociali-zar as estruturas contestando de fato a desigualdade socio-econômica, a absolutização da propriedade e a própria exis-tência de um Primeiro Mun-do e um Terceiro Mundo, para

ir construindo um só Mundo, igualitário e plural. Com fre-quência respondo a jornalistas e amizades do Primeiro Mun-do que somente a construção de um mundo só (e não dois ou três ou quatro) poderá sal-var a humanidade. É utopia, uma utopia “necessária como o pão de cada dia”. Onde não há utopia não há futuro.

No próximo mês de janeiro o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) completa 25 anos. O senhor, como incansável defensor dos camponeses pobres e inspirador do movimento, vê hoje a luta pela terra de que maneira?

O MST completa, então, seus 25 anos de luta, de enxa-da, de poesia, de profecia ao pé da estrada e da rua. Segun-do muitos analistas o MST es-tá sendo o movimento popu-lar melhor organizado e mais efi caz “de fato”. Sabe mui-

to bem o MST que “a terra é mais que terra”, e por isso es-tá se volcando, pertinaz, es-perançado, na conquista co-munitária da terra, na edu-cação de qualidade, na saú-de para todos, numa atitude permanente de solidarieda-de, em colaboração gratuita e fraterna com todos os outros movimentos populares.

Que mensagem o senhor diria hoje para os milhares de trabalhadores e militantes do MST espalhados por todo o país?

Os 25 anos do MST são uma data a celebrar, dando graças ao povo da terra e ao Deus da terra e da vida, reafi rmando os princípios que norteiam o ob-jetivo e a prática do MST. Re-cordando a palavra de Jesus de Nazaré: “não podeis ser-vir a Deus e ao dinheiro”; não podeis servir ao latifúndio e à reforma agrária. O latifúndio continua a ser um pecado es-

trutural no Brasil e em toda Nossa América.

O senhor tem dito que “Para um socialismo novo, a utopia continua”. Quais devem ser os caminhos (ou o caminho) para seguirmos na construção desse socialismo novo e garantir sempre que a utopia continue?

Que o MST continue a ser um abanderado desse “socia-lismo novo” e de uma verda-deira reforma agrária e agrí-cola, inserido na Via Campe-sina, na procura e no feitio de uma nova América. Que man-tenha viva e produtiva de es-perança a memória dos nos-sos mártires, sangue fecundo, os melhores companheiros e companheiras da caminha-da. Que siga entrando, plan-tando, cantando, contestan-do, com aquela esperança que não falha porque tem inclusi-ve a garantia do Deus da Ter-ra, da Vida, do Amor.

Onde não há utopia, não há futuroENTREVISTA Para dom Pedro Casaldáliga, somente a construção de um mundo só (e não dois ou três ou quatro) poderá salvar a humanidade. Segundo ele, é utopia, mas uma utopia “necessária como o pão de cada dia”

“O latifúndio continua a ser um pecado estrutural no Brasil e em toda Nossa América”

Pedro Casaldáliga,bispo emérito da Prelazia de São Félix do Araguaia

O governador José Serra

Reprodução

José Cruz/ABr

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brasil

Adunesp, que integra tam-bém o Conselho Universitá-rio da universidade.

Força “caipira”Padre Ticão contra-argu-

menta, afi rmando que exis-tem muitas propostas de cria-ção de escolas técnicas na zo-na leste, mas vê a necessidade de existir uma referência edu-cacional do porte da Unesp na região, somada, é claro, com as instituições públicas.

A Unesp possui 33 uni-dades espalhadas em 23 ci-dades. Ele critica que a au-sência da universidade nazona leste se deve ao fatode que os parlamentaresda Assembléia Legislati-va do Estado de São Paulo(Alesp) que vêm da capitalpossuem mais entraves polí-ticos e não agem em conjun-to. Diferentemente daque-

les oriundos do interior, quese articulam mais rápido,pois fazem o “meio-cam-po” entre o governo estadu-al com os prefeitos locais demodo suprapartidário.

“Não tem aqui uma arti-culação de um grupo de par-lamentares suprapartidá-rio que defenda a zona leste.No interior, eles tem umaorganização mais forte. Pa-ra lá, os parlamentares agemem bloco”, destaca. Para Ti-cão, fora o empenho de par-lamentares progressistas ede esquerda, é necessáriouma maior necessidade departicipação popular na re-gião para que o sonho donovo campus da universi-dade seja realizado. “Temmuita gente lutando, masnão é sufi ciente para fazer oconfronto”, fi naliza.

Eduardo Sales de Lima da Redação

NOS ANOS de 2000, o pro-gresso educacional pare-cia enfi m ter chegado na zo-na leste paulista. Em 2002, foi inaugurada a Faculdade de Tecnologia (Fatec). Em 2005, um campus da Uni-versidade de São Paulo – que fi cou conhecido como USP Leste – começou a fun-cionar no bairro de Ermeli-no Matarazzo. Em 2010, se-ria a vez da Unesp entrar em funcionamento no bairro de Itaquera. Isso se, no segun-do semestre de 2008, o go-vernador José Serra tivesse aprovado o projeto que prevê a instalação de um Centro de Educação Profi ssional vincu-lado a essa universidade.

“O governo do Estado está criando muita difi culdade pa-ra implantar o projeto”, afi r-ma o padre Antônio Marchio-ni, conhecido como Ticão, um dos principais responsá-veis pela implementação da USP Leste, com um históri-co de quase 30 anos de mobi-lização junto a pastorais e ou-tras organizações sociais.

E não é por falta de re-cursos. “Em 2008, o gover-no paulista arrecadou R$ 10 bilhões acima do orçamen-to previsto para o ano. E pa-ra 2009, o governo terá R$ 18 bilhões para aplicar em novas obras. Vamos fazer uma divi-são justa”, exorta o padre.

Ticão cita uma conversa que teve com o vice-gover-nador de São Paulo Alber-to Goldman (PSDB), na qual ele o questionou com cer-ta ironia: “Sabe quanto cus-ta um estudante universitá-rio? R$ 30 mil por ano”. Ti-cão lembra que o orçamento para a implantação do Cen-tro Educacional da Unesp na zona leste é de R$ 273 milhões, e que os gastos com publicidade do governo Ser-

ra para 2009 estão orçados em R$ 313 milhões. “Eu ve-jo uma insensibilidade do governo Serra em relação à zona leste.”

DesempregoFato é que as duas univer-

sidades públicas na região, Fatec e USP Leste, além de não atenderem a deman-da formada pelos estudan-tes pobres da região, estão imersas dentro de uma rea-lidade que abarca os pio-res índices educacionais e de emprego da cidade. Pa-dre Ticão é enfático no diag-nóstico: “Temos uma massa de jovens fora da escola e sem trabalho”.

Os números falam por si. O conjunto de bairros for-mado por Cidade Tiradentes, Guaianases, Itaquera, Itaim Paulista, São Miguel Paulista e Ermelino Matarazzo, todos da zona leste paulista, possui o pior índice de desemprego da cidade de São Paulo, com 21,4 %. Isso é quase o dobro de desempregados da região da Sé, com o melhor indica-dor, 12,48%, de acordo com

Lucas Silva, 20 anos Eu já estava sabendo desse projeto e acho uma idéia

muito bacana. Acho necessária porque muitos jovens não têm faculdades como a Unesp perto de casa. Acho que facilitaria mais as coisas. Em relação aos cursos, teria que haver uma grande variedade para atender a todos da comunidade. Eu particularmente gostaria de poder cursar Designer, Publicidade e Propaganda, Mú-sica. Sobre o perigo de entrar mais estudantes que pos-suem um poder aquisitivo maior, é um risco que se corre. Mas também acho que dá para atender a quem realmente quer e precisa estudar e não tem condições fi nanceiras para isso.

Luana Silva, 20 anos Eu acho bem legal ter uma universidade dessas aqui

na zona leste, mas corre o perigo sim de entrar pesso-as de um nível aquisitivo bom porque, por mais que se-ja no bairro de Itaquera, nem todas as informações che-gam às pessoas que realmente necessitam. Nós já temos os exemplos da USP Leste e da Fatec, que são públicas, boas, mas mesmo assim são poucos da periferia que co-nhecem e sabem como fazer para ingressar em uma de-las. Normalmente, as pessoas dessas regiões mais peri-féricas não têm estudo completo e também têm vergo-nha disso. Seria somente uma localização mais perto re-almente, mas acho necessário sim incentivar a educação de qualidade nas áreas de nível acadêmico baixo e longe do centro da cidade.

dados do Movimento Nossa São Paulo.

Ao tentar dialogar com as necessidades do mercado de trabalho e com os jovens da região, o projeto da Unesp é baseado em grades curricu-lares ligadas ao cotidiano do estudante, com cursos inter-mediários e profi ssionalizan-tes. No nível do ensino mé-dio, seriam criados cursos técnicos como o de agente de turismo, eletrônica, mecâni-ca, desenho e hotelaria. Nu-ma segunda fase da implan-tação do centro educacional, é prevista a criação de cursos tecnológicos e acadêmicos de nível superior.

Uma das idéias, mencio-nadas até mesmo pelo reitor da universidade, Marcos Ma-cari, é que os alunos do en-

sino médio do novo centro possam ingressar para o ní-vel superior sem passar pelo vestibular convencional.

Hoje, o ensino médio na região, que é gerido pelo go-verno estadual, tem no bair-ro do Itaim Paulista segundo o Movimento Nossa São Pau-lo, a maior taxa de reprova-ção, com 18,67%. Em segun-do lugar vem outro bairro da zona leste, Guaianases, con-tabilizando 17,67%. O me-lhor índice de São Paulo é o de Pinheiros, com 8,09%.

ObscuroDe acordo com o projeto,

a unidade da Unesp na zo-na leste é uma parceria en-tre a universidade, que cede-ria corpo docente; o governo estadual, que fi nanciaria o

desenvolvimento e a manu-tenção da unidade; e o go-verno municipal, que daria o local e a infra-estrutura. A previsão é de que a unida-de tenha, inicialmente, 5 mil vagas por ano.

Mas esse e outros detalhes não fi caram tão claros pa-ra o presidente da Associa-ção dos Docentes da Unesp (Adunesp), João Chaves. Ele faz parte dos 3,5 mil profes-sores que trabalham na uni-versidade. Chaves afi rma que o projeto precisa vol-tar ao Conselho Universitá-rio da instituição e passar pelo crivo dos docentes para que seja, de fato, implemen-tado. “Esse projeto foi colo-cado no Conselho Universi-tário (C.O.) e foi duramente criticado”, afi rma.

Um dos problemas, segun-do ele, seria a forma como os docentes da Unesp partici-pariam do projeto. “Isso fi -cou obscuro. De que manei-ra eles participariam? Seria como extensão universitá-ria?”, questiona. Ele lembra que foi sugerido aos docen-tes uma remuneração seme-lhante a um salário adicio-nal para participar do pro-jeto. Segundo ele, “isso não nos parece algo eticamente defensável”.

Há outra questão: existe no Estado de São Paulo o Centro Paula Souza, que é uma en-tidade vinculada ao ensino técnico tecnológico. “O Cen-tro sequer foi mencionado no projeto e ele tem, inclusive, uma relação estatutária com a Unesp”, diz o presidente da

Uma das idéias, mencionadas até mesmo pelo reitor da universidade, Marcos Macari, é que os alunos do ensino médio do novo centro possam ingressar para o nível superior sem passar pelo vestibular convencional

Periferia de São Paulo reivindica universidade pública na zona leste EDUCAÇÃO Desarticulação política de parlamentares e insensibilidade do governo tucano difi cultam implementação do projeto

Ofi cialmente denominada Escola de Artes, Ciências e Hu-manidades (EACH), localizada no bairro de Ermelino Mata-razzo, a USP Leste entra em 2009 no seu quinto ano de fun-cionamento. Conta com cerca de 4 mil alunos.

Dados da universidade revelam que no ano de sua inau-guração, em 2005, 42% dos estudantes eram da região, in-cluindo a cidade de Guarulhos (SP). Dos matriculados, 44% provinham de escolas públicas. Entre os cursos oferecidos pelo novo campus, estão: Gestão Ambiental, Gerontologia, Obstetrícia, Marketing, Tecnologia Têxtil e da Indumentária, Ciência da Atividade Física e Ciências da Natureza. (ESL)

USP Leste

“O governo do Estado está criando muita difi culdade para implantar o projeto”, afi rma o padre Antônio Marchioni, conhecido como Ticão, um dos principais responsáveis pela implementação da USP Leste

Felipe Soares, 22 anosAcho importante a proposta, idéia ou projeto de uma

Unesp na zona leste de São Paulo. Uma grande universi-dade pública contribuirá muito para o desenvolvimento da região, tanto educacional quanto sociocultural. Não considero necessária, e sim importante. Cursos que en-globam arte e mídia, meio ambiente, tecnologia, de ex-tensão, pós-graduação seriam excelentes opções pa-ra o público local e para a região. Acredito que uma no-va unidade da Unesp não deve apenas complementar outros campus da universidade, e sim ampliar a atua-ção da mesma para um público maior, o que não me pa-rece ser o interesse da USP Leste. O bairro de Itaquera é uma boa opção de sede para a universidade, assim como os bairros próximos, São Miguel, Ermelino Matarazzo, Itaim Paulista, entre outros.

Vinícius Guimarães, 20 anos Eu me pergunto: “Como fazer um curso integral do

outro lado da cidade, como no Butantã, sem trabalhar e sem condições de ser sustentado pelos pais?” Acho ótima a idéia de ter um campus da Unesp aqui, pois is-so nos aproxima do progresso educacional que eu só passei a conhecer de fato a alguns quilômetros da mi-nha casa. Acredito que a zona leste precisa de investi-mentos de toda e qualquer espécie, principalmente na cultura e na educação. Os cursos que eu gostaria que ti-vessem são Artes Cênicas, Arquitetura, Moda, Música, Comunicação Social. (ESL)

A repercussãoAbaixo, quatro jovens que moram no bairro de São Miguel Paulista comentam a possível implantação do Centro Educacional da Unesp na zona leste da cidade de São Paulo

Fachada da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH), localizada na zona leste de São Paulo

Reprodução

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brasil

Miguel Enrique Stédile de São Gabriel (RS)

A PLACA é erguida por apoia-dores da reforma agrária. No centro, a bandeira do Mo-vimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o nome do novo assentamento: Conquista do Caiboaté. Em seguida, um trator lavra sim-bolicamente a terra e semen-tes são plantadas em sinal de compromisso. Poucos metros atrás, onde era a antiga sede da fazenda, são dados os últi-mos retoques da pintura on-de se vê um povo em marcha com bandeiras e ferramen-tas e, no alto, as palavras “re-forma agrária”. Não é apenas a comemoração de um no-vo assentamento. A desapro-priação da fazenda Southall, em São Gabriel (RS), é pro-vavelmente a maior conquis-ta do MST em terras gaúchas dos últimos anos.

O complexo Southall se tor-nou conhecido por sua exten-são – maior, por exemplo, do que o município de Canoas, na região metropolitana, com o segundo maior PIB do Esta-do e quarta maior população e por suas dívidas com bancos públicos. Em 2002, a vistoria de produtividade da área por técnicos do INCRA foi impedi-da por um movimento de lati-fundiários da região, chamado “Vistoria Zero”. Os servidores públicos sofreram ameaças de seqüestro e só puderam con-cluir seu trabalho com auxí-lio policial. No ano seguinte, a área deveria ser o primeiro as-sentamento do governo Lula.

Contra marchaO anúncio da desapropria-

ção, em 2003, resultou numa marcha dos trabalhadores sem-terra em direção à fa-zenda conquistada. Da parte dos fazendeiros, um panfl e-to que incitava o assassinato dos trabalhadores rurais foi distribuído na cidade. Uma contra marcha de latifundiá-rios também partiu do muni-cípio para impedir a entrada em São Gabriel.

“O que mais me marcou em 2003 é que ali estava exposta claramente a luta de classes, entre os setores mais atrasa-dos da sociedade e os trabalha-dores” lembra o Frei capuchi-nho Wilson Zanatta. Durante a marcha, alegando problemas técnicos na vistoria e ignoran-do os obstáculos criados pelos fazendeiros, a ministra do Su-premo Tribunal Federal, juíza Ellen Gracie, cancelou a desa-propriação da área.

Na época, o então deputa-do Estadual Frei Sérgio Gör-gen denunciou os laços de parentesco entre o proprie-tário da área e a ministra do STF, também afi lhada políti-ca do atual ministro da Defe-sa, Nelson Jobim.

da Redação

No mesmo dia em que o Movimento dos Traba-lhadores Rurais Sem Ter-ra (MST) tomava posse da fazenda Southall, uma tris-te fi gura do governo Yeda saía, por hora, dos holo-fotes da política gaúcha. E da pior maneira. Dia 18 de dezembro, o Coronel Pau-lo Roberto Mendes, princi-pal agente da repressão aos movimentos sociais no Es-tado, deixou o Comando da Brigada Militar sob acusa-ções de prevaricação e vín-culos com suspeitos de cor-rupção.

A saída do Coronel Men-des já era prevista desde o fi nal do primeiro semestre, pois o regimento da corpo-ração prevê a aposentado-ria compulsória e periódi-ca de coronéis.

Com isso, Mendes será nomeado para o Tribunal Militar. Porém, no mesmo dia em que sua exoneração foi anunciada, foram reve-ladas gravações da Polícia Federal nas quais o então subcomandante da Bri-gada Militar pedia ajuda à Chico Fraga, secretário da prefeitura de Canoas, para que apoiasse seu no-me para o comando jun-to à governadora do Esta-do. Fraga é um dos princi-pais investigados por des-vios de recursos públicos e fraudes em licitações pela Operação Solidária da PF, que envolve ainda o atual

presidente da Assembléia Legislativa e “caciques” políticos, como os depu-tados federais Eliseu Padi-lha (PMDB) e José Otávio Germano (PP).

Desvio de recursosNas gravações, Mendes

também pede que Fraga in-terceda junto ao jornalis-ta Políbio Braga para que “plante” uma nota afi rman-do que apenas o coronel po-deria impedir as ocupações de terra pelo MST.

Segundo o relatório da Polícia Federal, o surpre-endente não é que o Coro-nel articule “lobby” em tor-no de seu nome, mas que mantenha relações com um suspeito em duas opera-ções policiais. Chico Fraga também é investigado pela Operação Rodin, que apura o desvio de recursos do De-tran para a campanha elei-toral da governadora.

Em menos de um ano no

O agronegócioCom o recuo na implanta-

ção dos assentamentos na re-gião, o latifúndio ganhou um novo fôlego, com a chegada das empresas papeleiras no Rio Grande do Sul, como a Votorantim, Aracruz Celulose e Stora Enso.

“Essa região sul do Estado, onde predominava o latifún-dio de grande extensão para pecuária, com a incorporação do capital fi nanceiro interna-cional na agricultura, passou a ter as terras apropriadas pa-ra a monocultura do eucalip-to, com mudanças drásticas no bioma pampa”, explica Ce-denir de Oliveira, da coorde-nação estadual do MST.

O avanço das papeleiras sobre a região infl acionou o

MST derruba última fronteira do latifúndio no Rio Grande do Sul

preço das terras, criando no-vos obstáculos para a reforma agrária, uma vez que, derro-tado pelo STF, o governo fe-deral desistiu das desapro-priações e passou a apostar apenas na compra de terras para assentamentos.

Empresas estrangeirasO Rio Grande do Sul amar-

gou os menores números de assentamentos desde a dita-dura militar, ao mesmo tempo em que as papeleiras preten-diam incorporar cerca de um milhão de hectares no Estado. A própria fazenda Southall es-teve próxima de ser adquiri-da pela Aracruz Celulose há dois anos.

“Com isso, mudou também a qualidade da luta pela re-

REFORMA AGRÁRIA Depois de cinco anos de ocupações e marchas, parte da fazenda Southall, em São Gabriel (RS), é desapropriada. Para o MST, essa é a maior conquista do movimento em terras gaúchas dos últimos anos

Símbolo da repressão, coronel Mendes deixa a Brigada Militar

comando da Polícia Mili-tar gaúcha, Mendes ganhou notoriedade pela violência com que reprimiu os movi-mentos sociais e pelas opi-niões em defesa de “uma limpeza social” no Estado. Mais de uma vez, o coronel se referiu à Brigada Militar como responsáveis por lim-par o “lixo social”.

“Depois de acusar tra-balhadores de baguncei-ros, baderneiros, ele pró-prio virou ‘quadrilheiro’, porque teve negociações com uma quadrilha. La-mentamos essa forma de fazer política que tomou conta desse governo, atra-vés da corrupção, da troca de cargos”, declarou Celso Woyciechowski, presiden-te da CUT-RS.

CorrupçãoA Via Campesina tam-

bém se manifestou sobre as denúncias por meio de nota onde afi rma que as

revelações “comprovam que a violência é a ferra-menta utilizada para de-fender os interesses polí-ticos e pessoais dos inte-grantes desse governo”. Na nota, a Via também iro-niza que “a mesma força e intransigência com que combateu os movimentos sociais não foi usada pa-ra combater a corrupção e a prevaricação”.

Os deputados estaduais Elvino Bohn Gass e Dionil-son Marcon, ambos do PT, anunciaram que irão tomar medidas para impedir a posse de Mendes no Tribu-nal Militar. Os deputados pretendem acionar o Mi-nistério Público Estadual e a Corregedoria da Briga-da Militar. O ex-comandan-te da Brigada Militar de-verá receber um salário de R$ 20 mil no Tribunal.

Na avaliação dos movi-mentos sociais, a saída do coronel Mendes não deve-rá alterar a política de re-pressão aos movimentos sociais do Governo Yeda. Com as mudanças no co-mando da polícia gaúcha, o coronel Lauro Binsfi eld foi promovido à subcoman-dante. Binsfi eld foi respon-sável pela ação contra as mulheres da Via Campesi-na em março de 2008, que resultou em centenas de fe-ridas e processos na Orga-nização dos Estados Ame-ricanos, na Comissão de Di-reitos Humanos do Senado e na Secretaria Especial de Direitos Humanos. (MS)

forma agrária no Estado”, analisa Cedenir: “Passamos a enfrentar o latifúndio e as grandes empresas estrangei-ras que se apropriaram das terras e da riqueza”.

Novos acampamentos fo-ram montados em torno da fazenda Southall, outras mar-chas foram realizadas e, em abril deste ano, pela primei-ra vez, a fazenda foi ocupa-da. No mês seguinte, famí-lias assentadas em outras re-giões do Estado distribuíram alimentos em bairros pobres de São Gabriel.

Dia 5 de novembro de 2008, parte do complexo Southall foi desapropriado novamente, desta vez através de um acor-do entre o proprietário e o IN-CRA. Além de parte da Sou-

thall, outros quatro assenta-mentos foram criados na re-gião, assentando 665 famílias.

“Este foi um ano de muito enfrentamento para nós, co-mo parte da articulação entre essas transnacionais, o poder Judiciário e a burguesia polí-tica, na fi gura da Governado-ra Yeda [Crusius], por meio de tentativas de criminaliza-ção do nosso movimento”, diz Cedenir de Oliveira. “Toda es-sa resistência está sendo coro-ada com a desapropriação da fazenda Southall”, conclui.

“Nós viemos para fi car”Impedidos de marchar há

cinco anos em direção à fa-zenda, os trabalhadores sem-terra decidiram comemorar a desapropriação com uma no-

va marcha, partindo, no dia 16 de dezembro, de Santa Mar-garida do Sul, mesmo local onde a caminhada foi inter-rompida em 2003. No segun-do dia, entraram na cidade de São Gabriel, onde a receptivi-dade dos moradores surpre-endeu mesmo os mais otimis-tas. “Diziam que não íamos entrar na cidade, que não serí-amos bem recebidos, mas nós entramos e agora viemos pa-ra fi car, para fazer parte des-sa comunidade”, comemora-va Ana Hanauer, coordenado-ra estadual do MST.

Segundo o superintendente Estadual do INCRA, Mozart Dietrich, nos próximos meses, mais 10 mil hectares deverão ser desapropriados na região, assentando outras 720 famí-lias. O superintendente esti-ma que apenas as famílias as-sentadas agora deverão inje-tar cerca de R$ 20 milhões no comércio local.

“Nós vamos construir esco-las, postos de saúde, vamos precisar comprar eletrodo-mésticos... alguém sabe de al-guma escola que a Aracruz te-nha construído aqui?”, com-para Hanauer.

Perda de empregosO anúncio de novas áreas de

assentamentos coincide com a derrocada dos projetos de mo-nocultivo de celulose. Amar-gando prejuízos com a especu-lação fi nanceira, Aracruz e Vo-torantim Celulose e Papel sus-penderam a aquisição de áreas

e a implantação de fábricas no Estado. “As estimativas são de que entre 400 a 1.000 traba-lhadores tenham perdido seus empregos na celulose aqui nos últimos meses”, afi rma Ha-nauer. “O projeto da celulose é temporário e só traz preju-ízos, a reforma agrária é uma política de geração de empre-gos e alimentos permanente”, compara. Para a coordenadora estadual, no entanto, o maior impacto da presença dos as-sentados na região será na produção de alimentos. Atual-mente, 90% do que é consumi-do em São Gabriel são impor-tado de outras regiões.

Os assentamentos de São Gabriel não signifi cam ape-nas a vitória de uma lu-ta de cinco anos. Na práti-ca, o MST derrubou a últimafronteira do latifúndio no RioGrande do Sul, única regiãoonde ainda não havia assen-tamentos massivos.

A conquista também ga-nha um outro signifi cado his-tórico: há 250 anos, foi nes-sa região que os índios Gua-ranis liderados por Sepé Tia-rajú foram expulsos de suasterras e massacrados, na ba-talha do Caiboaté, dando iní-cio à concentração de terrasno Estado. Em 2003, a mar-cha dos sem-terra foi chama-da de “Sepé Tiarajú” em refe-rência ao fato e, agora, a anti-ga fazenda Southall foi reba-tizada como AssentamentoConquista do Caiboaté.

O avanço das papeleiras sobre a região infl acionou o preço das terras, criando novos obstáculos para a reforma agrária, uma vez que, derrotado pelo STF, o governo federal desistiu das desapropriações e passou a apostar apenas na compra de terras para assentamentos

O Rio Grande do Sul amargou os menores números de assentamentos desde a ditadura militar, ao mesmo tempo em que as papeleiras pretendiam incorporar cerca de 1 milhão de hectares no Estado.

Os trabalhadores sem-terra deram o nome de Conquista do Caiboaté à antiga fazenda Southall

Comunicação MST

O coronel Paulo Roberto Mendes e Yeda Crusius

Jefferson Bernardes/Palácio Piratini

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de 1º a 7 de janeiro de 20098

brasil

Dafne Meloda Redação

IMAGINE QUE o Estado bra-sileiro tenha dado ao Grupo Itaú, em 2007, R$ 47 milhões para que, segundo os critérios da empresa, ela destinasse es-se dinheiro público para ações de marketing cultural do ban-co, patrocinando peças tea-trais, mostras, concertos e es-petáculos. Pois essa situação é real. E piora bastante. Somen-te em 2007, o Estado brasi-leiro, por meio da chamada Lei Rouanet, deu R$ 1,184 bi-lhão para a iniciativa privada por meio de isenções fi scais, o que corresponde, em média, a 80% do parco orçamento do Ministério da Cultura (MinC). Em 2008, a estimativa é de que a lei tenha movimentado R$ 1,4 bilhão.

Embora as críticas ao meca-nismo tenham crescido muito nos últimos anos – até mes-mo em algumas matérias da imprensa corporativa –, mu-danças profundas não estão no horizonte. Após a saída de Gilberto Gil do MinC, seu su-cessor, Juca Ferreira, afi rmou que uma reforma na Lei 8.313 (ver box) seria uma de suas primeiras iniciativas. Cum-priu a promessa. No fi nal de novembro, o Ministério apre-sentou um diagnóstico da lei, detectando distorções, estabe-lecendo metas até 2012 e de-lineando o conteúdo da refor-

da Redação

“Essa lei foi feita na onda neoliberal e tem a seguinte proposição: o Estado deixa de se envolver com a ativi-dade cultural e deixa que as forças do mercado cui-dem disso”, resume Iná Ca-margo Costa, professora da Faculdade de Letras da USP. O Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pro-nac) foi esboçado ainda durante o governo de Jo-sé Sarney, porém, tomou corpo somente em 1991, no governo Collor, e acabou sendo apelidada com o so-brenome do então minis-tro da Cultura, Sérgio Pau-lo Rouanet.

Para Iná, a alternativa é o Estado justamente recupe-rar o papel de gestor des-sas verbas. “O imposto de-ve ser destinado para pro-gramas públicos de cultura, para a produção cultural que não interessa ao mer-cado. O mercado, ele que se vire. Não vivem de bilhe-teria, da circulação de seu produto? O capital que se divirta com o mercado que já tem e o Estado que des-tine os impostos para seus equipamentos, para ativi-

- O Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac) é substituído pelo Programa de Fo-mento e Incentivo à Cultura (Profi c). A pro-messa é orientar as políticas para democrati-zar o acesso e distribuir melhor os recursos.

- Em 2007, o MinC teve um orçamento de R$ 2 bilhões: 73% em incentivos fi scais; 10% da administração direta; 5% da inicia-tiva privada; e 12% do Fundo Nacional de Cultura (FNC). Para , a meta é dobrar o or-çamento, e que cada um desses segmentos tenham 25% de participação.

- O Fundo Nacional de Cultura (FNC) se-rá dividido em fundos setorias (audiovisu-al, livros e leitura, patrimônio, artes e diver-sidade cultural) para a melhor execução dos recursos. O Ficart e parcerias público-pri-vadas também estão previstos como formas de fi nanciamento.

O relatório do MinC aponta que apenas 3% das empresas detêm 50% dos recursos. A maioria dessas estão na região mais rica do país, a Sudeste, que capta 80%, sendo que Espírito Santo fi ca com apenas 1% desse montante

Reformar a Lei Rouanet para não mudarCULTURA Governo faz proposta de reformar lei que permite incentivo fi scal, mas, para especialistas, ela deveria ser extinguida

- Apenas 13% dos brasilei-ros freqüentam cinema al-guma vez por ano

- 92% dos brasileiros nun-ca freqüentaram museus

- 93,4% dos brasileiros ja-mais freqüentaram algu-ma exposição de arte

- Mais de 90% dos municí-pios não possuem salas de cinema, teatro, museus e espaços culturais multiuso

- 73% dos livros estão con-centrados nas mãos de apenas 16% da população

- 56,7% da população ocupada na área de cultu-ra não têm carteira assi-nada ou trabalha por con-ta própria

- Apesar da exclusão, exis-te uma forte demanda re-primida, dado que a mé-dia brasileira de despe-sa com cultura por família é de 4,4% do total de ren-dimentos, acima da edu-cação (3,5%), não varian-do em razão da classe so-cial, ocupando a 6ª posi-ção dos gastos mensais da família brasileira.

Cultura para poucos

Fonte: Ministério da Cultura

ma, que não questiona o in-centivo fi scal, mas apenas es-tebelece novas regras para ele. A previsão é que o projeto se-ja submetido ao Congresso em fevereiro de 2009.

DistorçõesPara o autor e diretor de tea-

tro do grupo Engenho Teatral Luiz Carlos Moreira, não inte-ressam reformas na lei, já que ela tem um erro de concepção, pois concede dinheiro públi-co a empresas privadas. “Es-se dinheiro não é pra cultu-ra, é pra negócio e marketing. É dinheiro público adminis-trado de forma privada, isso é roubo, não tem outro nome”, protesta.

Iná Camargo Costa, profes-sora do Departamento de Le-tras da Universidade de São Paulo (USP) reitera a opinião de Moreira. “O essencial é a renúncia fi scal, ela deve aca-bar”. E emenda: “A conse-qüência é que só o lixo cultu-ral circula desfrutrando dos benefícios da renúncia, por-que é esse lixo cultural que in-teressa aos departamentos de marketing que decidem a des-tinação de verbas”, pontua.

Para além desse problema de fundo, a lei sequer conse-guiu concretizar o que pro-punha, a saber, consolidar o mercado das artes no país. Is-so segundo o próprio MinC, no diagnóstico apresen-tado, ao afi rmar que o Pronac “não fortale-ceu a sustentabili-dade do mer-

cado cultural”. De acordo com Moreira, a prática inclusive desincentiva o mercado, “pois ensina ao empresário a usar

“Esse dinheiro não é pra cultura, é pra negócio e marketing. É dinheiro público administrado de forma privada, isso é roubo, não tem outro nome”, protesta Luiz Carlos Moreira, do grupo Engenho Teatral

dinheiro público ao invés de correr

risco e usar dinheiro do bolso dele”.

Mais equívocosOs problemas da Lei Roua-

net não acabam por aí. O rela-tório do MinC aponta que ape-nas 3% das empresas detêm 50% dos recursos. A maioria dessas estão na região mais ri-ca do país, a Sudeste, que cap-ta 80%, sendo que Espírito

dades culturais públicas e democráticas”, resume.

Luiz Carlos Moreira, do Engenho Teatral, acredi-ta também que, no tocan-te ao fi nanciamento, ao in-vés de abir mão de parte do imposto de renda, essa ver-ba deveria ser deixada no Fundo Nacional de Cultu-ra (FNC). “Qual o problema de pegar todo dinheiro, co-locar no FNC e administrar através de editais públicos? Aí vamos quebrar o pau po-liticamente para ver o ti-po de edital que vai sair”, opina.

Do pouco que hoje fi -ca no Fundo, pouco se sa-be do seu destino. Moreira afi rma que não há normas claras. “Ele não é adminis-trado de forma transparen-te, com programas e edi-tais. Vira dinheiro de bar-ganha política e de favo-recimento. E o governo não precisa ir ao Congres-so ou mexer no Pronac pa-ra transformar o FNC nu-ma coisa decente; não fez isso até agora porque não quis”, avalia. Para Moreira, a saída são políticas públi-cas que defi nam programas que devem ser debatidos e criados em diálogo com a sociedade. (DM)

- A renúncia fi scal de pessoa física poderá atingir 10% (hoje são 6%); a de pessoas ju-rídicas deve se manter em 4%.

- A renúncia fi scal de um projeto, ho-je, fi ca entre 60% e 100%. O MinC afi rma que os critérios mudarão: quanto mais orientado às políticas públicas, à demo-cratização de acesso, maior a renúncia. Se a empresa fi zer editais, a renúncia também aumenta.

- O MinC também promete mais transpa-rência e divulgação de informações a res-peito da lei e criará um sistema de informa-ções. Também ampliará as maneiras que hoje as empresas têm de fazer marketing institucional: fará o ranking das empresas que mais investem, dará visibilidade para maior participação privada e criará um selo de responsabilidade cultural. (DM)

A chamada “Lei Rou-anet”, na verdade, é um dos mecanismos de im-plementação do Progra-ma Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), institu-ído pela Lei nº 8.313, de 1991, concebida pelo en-tão ministro da Cultura do governo Fernando Collor, Sérgio Paulo Rouanet. Pe-lo mecanismo, o Esta-do brasileiro abre mão de parte da arrecadação do imposto de renda de pes-soas físicas e jurídicas, sendo que essa quantia – o incentivo fi scal – deva ser direcionada ao fi nan-ciamento de projetos cul-turais. O valor deduzido pelas empresas não pode exceder 4% do total do im-posto; já para as pessoas físicas, esse valor é de 6%. O Pronac também institui outros dois mecanismos, os de Investimento Cultu-ral e Artístico (Ficart) que, de acordo com o próprio MinC, nunca saiu do pa-pel, e o Fundo Nacional de Cultura (FNC), que con-siste em recursos da admi-nistração direta, geridos pelo MinC. As autoriza-ções para a execução dos projetos passam pelo crivo do Ministério da Cultura, que, por meio da Comis-são Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC), aprova ou rejeita a isenção fi scal. (DM)

Entenda a Lei RouanetLei é manifestação legal

do neoliberalismo nacultura, diz professora

Santo fi ca com apenas 1% des-se montante. A região Norte não chega a obter nem 1% do valor. Números que mostram os riscos do Estado abrir mão de ser o gestor de políticas pú-blicas para o área cultural do país e entregá-la a empresas privadas que, objetivam lucro.

“Costumo dizer que, na ex-pressão ‘marketing cultural’, o ‘marketing’ é o substanti-

vo, ‘cultural’ é adjetivo”. Se eu sou um gerente

fi nanceiro ou um ge-rente de marketing, eu vou por dinheiro num grupo de teatro da Vila Iocuné ou no Chitãozinho e Xororó, que me dá retorno garantido?”, exemplifi ca Moreira.

O MinC observa também que os preços da maioria dos projetos fi nanciados tem “preços elevados e baixa de-mocratização do acesso”, e que há “falta de percepção de que são recursos públicos”, o que permite que as empresas invistam numa imagem insti-tucional de patrocinadores da arte e incentivadores da cul-tura, quando muitas vezes não estão tirando um único centavo do bolso para tocar seus projetos.

Diretrizes e mudanças da reforma, segundo o MinC

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américa latina

Igor Ojedade Mururata (Bolívia)

JULIO NÃO é soberbo. Tam-pouco pomposo. Sua casa, um sobradinho, é simples. Até de-mais. Um tanto deteriorada: os cômodos no andar de ci-ma, uma vendinha no de bai-xo. A roupa que veste é surra-da, o boné, velho. Julio é fe-chado, seco, desconfi ado. La-cônico. Seu trabalho? Agricul-tor. De sol a sol.

Mas, antes de tudo, Julio Pinedo é rei. Em plena Bolí-via de quase dois séculos de história republicana. Seu rei-nado vale para todo o terri-tório nacional. Mas não para todos os bolivianos. Na ver-dade, Julio exerce poder so-bre um povo esquecido, qua-se invisível, que soma pou-co mais de 35 mil pessoas, 0,4% da população do país: os afro-bolivianos.

Sim, a Bolívia também é negra.

E a Bolívia negra planta co-ca, cítricos, café. Habita, prin-cipalmente, a região dos Yun-gas, a cerca de três horas ao norte de La Paz. Zona quen-te, úmida, de vales profundos e vegetação densa. No meio do caminho entre os Andes e a Amazônia boliviana.

A Bolívia negra é pobre. Não tem serviços como saúde, educação e saneamento. É ru-ral, mas também urbana. E é na cidade onde sofre mais dis-criminação. Por isso, luta para ser reconhecida e respeitada. Como qualquer boliviano.

A “corte” chega à AméricaOs primeiros africanos que

chegaram no país governa-do por Evo Morales foram levados a Potosí para traba-lhar como escravos nas mi-nas e na Casa da Moeda, co-mo acunhadores. “E não deu certo”, explica o rei. “Mor-reu quase a metade. Porque eles eram acostumados com um clima cálido, e em Poto-sí é um pouco frio. Com o es-forço no trabalho, não pude-ram agüentar.” Assim, foram vendidos para as haciendas – organização do latifúndio na América espanhola – locali-zadas na região subtropical dos Yungas.

Numa das levas de escravos, vinda do atual Congo Kinsha-sa, estava a família de Julio. “Foram buscados para traba-lhar nas minas de Potosí. De-pois os trouxeram para cá em Mururata, para as haciendas. Os patrões os faziam cultivar sempre a coca”, conta.

Só que, entre seus fami-liares que foram trazidos da África, havia um rei. “Estou herdando o título que era an-terior ao meu avô. De mui-tos anos atrás. Cerca de 500 anos, mais ainda. Da época que os espanhóis invadiram a Bolívia. Então, na família, sempre houve um rei.”

No entanto, o último a exercer o cargo antes de Ju-lio havia sido seu avô, Bonifa-cio Pinedo. “Quando ele fale-ceu, em 1954, não houve mais rei. E fi cou assim, até 1992, quando veio um senhor, um dos netos do proprietário da hacienda em que Bonifa-cio trabalhava, e disse: ‘Olhe, seu Julio, seu avô foi rei, você tem que seguir com essa car-reira, você tem que ser o rei, tem que exercer o cargo que era dele’. O homem o via co-mo parte de uma linhagem nobre. Seu Julio aceitou, e o coroaram em seguida”, lem-bra Angélica Larrea de Pine-do, a esposa real.

de Mururata e La Paz

Representando apenas 0,4% do total da popula-ção da Bolívia, a comuni-dade afro-boliviana sofre um processo de exclusão ainda mais acentuado do que o vivido pela maioria indígena originária. “O Es-tado boliviano nunca reco-nheceu o povo afrodescen-dente. Essa é uma das difi -culdades mais intoleráveis. Por isso, passamos desper-cebidos. Isso gerou pobre-za e falta de educação, saú-de, serviços básicos, infra-estrutura”, denuncia Jorge Medina, diretor-executi-vo do Centro Afro-bolivia-no para o Desenvolvimen-to Integral e Comunitário (Cadic), entidade com se-de em La Paz.

De acordo com Antonia Pinedo, dona-de-casa, pro-motora de saúde e cate-quista de Mururata, na re-gião dos Yungas, as comu-nidades negras possuem

poucos recursos econômi-cos. “Não podemos fazer os fi lhos estudarem. Mui-tos não são profi ssionais, são mães solteiras, jovens que se dedicam somente à

agricultura. A folha de co-ca, nosso produto, não tem muita garantia. Não dá pra viver assim.”

À pobreza, soma-se a discriminação. Segundo

Os afro-bolivianos foram declarados tesouros humanos vivos pelo departamento de La Paz, que ainda coroou ofi cialmente o rei Julio Pinedo, em dezembro de 2007

A busca pelo reconhecimento Antonia, além do racis-mo, os negros bolivianos sofrem, por exemplo, com a falta de oportunidade de obter um diploma e com a “proibição” de participar de espaços de discussão, como assembléias de mo-radores de alguma comu-nidade ou bairro.

Atuação políticaPara Jorge Medina, es-

sa situação piorou com o início do processo de mi-gração dos afro-bolivia-nos para as cidades, prin-cipalmente La Paz. “Che-gamos a uma cidade con-sumista, marginalizadora. Tínhamos que nos acos-tumar a uma realidade bem diferente.”

Diante de tamanhas di-fi culdades, decidiu-se criar o Cadic, com o objetivo de atuar politicamente junto ao governo nacional. O tra-balho deu frutos. Os afro-bolivianos foram declara-dos tesouros humanos vi-vos pelo departamento

de La Paz, que, ainda, co-rou ofi cialmente o rei Ju-lio Pinedo, em dezembro de 2007. Além disso, a saya, ritmo afro, foi reconheci-da como patrimônio cultu-ral da Bolívia. Para comple-tar, o trabalho político jun-to à Assembléia Constituin-te garantiu a inclusão da comunidade negra na no-va Constituição, cujo refe-rendo aprovatório será re-alizado no dia 25.

“Você, como estrangei-ro, sabe que, no seu país, vê-se a Bolívia como indí-gena. E, quando vem, se dá conta de que não é to-talmente. Evidentemente, os povos originários são maioria, mas as minorias não deixamos de ser im-portantes, porque também contribuímos com o desen-volvimento desta nação. Esperamos que, um dia, a Bolívia entenda que somos multiétnicos, multicultu-rais e que há um cantinho da África neste país”, con-clui Medina. (IO)

PobrezaJulio exerce sua realeza na

pequena comunidade de Mu-rurata, onde nasceu, há 66 anos. Chegando ao povoa-do, após cerca de meio hora de táxi de Coroico, a “capital” dos Yungas, percebe-se logo sua precariedade. Uma úni-ca rua de terra, casas bastan-te humildes, uma escola sim-ples, uma praça malcuidada, uma pequena igreja. Não há hospital ou posto de saúde. A população que caminha para lá e para cá é majoritariamen-

te negra, mas percebe-se uma quantidade considerável de indígenas da etnia aimara.

Sentado numa calçada ele-vada, observando a movi-mentação, está Pedro Reyes Pinedo, um “quase primo do rei” (em uma comunida-de tão pequena, quase todos seus habitantes parecem ter algum grau de parentesco). Chapéu preto na cabeça, sor-riso no rosto, uma bengala se-gurada entre as pernas.

De aparência bastante ido-sa, Pedro não lembra sua

idade: “já tenho vários anos”. Confi rma seus 81 anos mos-trando a carteira de identi-dade. Há cinco, fi cou viúvo. Há três, foi operado da prós-tata, deixando-o impossibili-tado de trabalhar. Seus três fi lhos já não moram em Mu-rurata. “Sou sozinho. Como jogado fora.”

ServidãoAté os 78 anos, Pedro traba-

lhava na agricultura, assim co-mo a maior parte dos afro-bo-livianos. “Plantava coca, me-

xerica, laranja... O trabalho era muito duro. Tem que ca-var, plantar. É muito sacri-fi cante.” Hoje, vive apenas com os 200 bolivianos (cerca de R$ 70) que ganha mensal-mente através da Renda Dig-nidade, uma bolsa concedida pelo governo Evo: “Não dá pra viver com isso”.

Durante boa parte da sua vida, Pedro sentiu na pe-le os resquícios da opressão colonialista, que perduram até hoje em alguns lugares da Bolívia. Antes da Revolu-

ção de 1952, Pedro trabalha-va no sistema de pongueaje,como era chamado o regimede servidão imposto aos indí-genas bolivianos. “Tinha queatender o patrão. Por uma se-mana, tinha que trabalhar naterra dele, ir na casa da ha-cienda”, lembra.

A vida difícil dos afro-bo-livianos é contada, também,por Antonia Pinedo, outraprima do rei Julio. Aos 55anos, essa dona de casa, pro-motora de saúde e catequistade Mururata recorda as histó-rias que seu avô lhe contava,como, por exemplo, a proibi-ção de estudar que os brancosimpunham aos negros que vi-viam nos Yungas.

“Um dia, meu vôzinho medisse: ‘fi lhinha, aprende aler, não seja como nós quenão sabíamos. Antigamen-te, os patrões não deixavamo negro aprender a ler. Fo-mos escravos, não conhecía-mos médico... quando doía omolar, o arrancávamos comalicate. E, se estragávamosalgo, nos batiam. Não haviasapato. Se a mulher paria seubebê, tinha três dias de des-canso. Se não pudesse traba-lhar, era chicoteada. Você es-tá agora na glória.”

“Pouco trabalho”Sobre Julio, Antonia diz

que ele é o eixo principal dacomunidade negra: de toda aBolívia, não apenas a de Mu-rurata. “Todo afro o reco-nhece e aceita sua forma deser”, referindo-se ao jeitãoreservado. “Eu estou tentan-do abri-lo. Agora, pelo me-nos ele fala, responde. Euconheço os tios do rei. Nãofalam, nem sequer riem. Suafamília é muito seca. É dife-rente do resto da comunida-de, que é aberta.”

Quando a reportagem che-gou a Mururata, por volta das 8 horas da manhã, não pô-de ser atendida pelo rei, mes-mo após alguma insistência. O motivo não era nenhuma ati-vidade “ofi cial”, algum proble-ma a resolver em seu reino. A explicação era simples e, cla-ro, seca: estava na hora do iní-cio da jornada de trabalho. Ju-lio tinha que ir a seu pedaço de terra, onde cultiva folha de co-ca e alguns cítricos.

No fi m da tarde, no novo ho-rário marcado, após voltar da roça, o rei atende o Brasil de Fato. Sempre lacônico, se diz orgulhoso pelo título, por se-guir os passos de seus ante-passados. No entanto, mini-miza sua importância. Segun-do ele, os antecessores cum-priam mais funções e eram mais reverenciados.

“Para os primeiros afro-bo-livianos, um rei era muita coi-sa, porque haviam vivido na África e já sabiam o que isso signifi cava. Então, o respeita-vam muito. Meu avô, duran-te os três anos que pude ver, resolvia os problemas da co-munidade. Então, se era pre-ciso castigar, castigava... fazia obedecer. Fazia cumprir. Ago-ra não existe isso. Diminuiu o trabalho”, explica.

Resolução de problemasJulio lembra que, hoje, a

função real é dividida: nos po-voados, há autoridades, sindi-catos, corregedor, associação de vizinhos... “Então, é pou-co trabalho para um rei. Pou-co atendimento.”

No entanto, chama a aten-ção para o fato de que, ao con-trário de, por exemplo, um corregedor, a máxima autori-dade dos afro-bolivianos tem alcance nacional.

É sua esposa, Angélica, que conta com mais detalhes as atribuições reais: “É uma au-toridade para qualquer oca-sião. Para ver o que está bom, o que está mal. Dizer que algo tem que ser assim ou de outro jeito. Tomar medidas drásti-cas. Por exemplo, se há uma briga, fazer os dois lados sabe-rem que as coisas não podem ser assim. E eles respeitam”.

Sobre o futuro da dinastia Pinedo, nem Julio nem An-gélica estão preocupados. Afi -nal, os dois têm um fi lho de 12 anos. “Acho que ele será o her-deiro da coroa”, prevê, quase envergonhado, o rei.

A Bolívia também é negra. E tem um reiRESISTÊNCIA Com apenas 35 mil pessoas, comunidade afro-boliviana reconhece seu próprio monarca e luta contra invisibilidade e discriminação

A partir do alto, em sentido horário, o rei Julio Pinedo, sua casa e seu “quase primo” Pedro Reyes Pinedo

Fotos: Igor Ojeda

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américa latina

Igor Ojeda e Tatiana Merlino

da Redação

CONTRARIANDO muitos prognósticos, especialmen-te os elaborados pela mídia ocidental e seus analistas, a Revolução Cubana comple-ta meio século de existência. Mesmo depois de tanto tem-po, o desgaste do regime da ilha caribenha, tão esperado e previsto, não é uma realidade: o apoio popular ao sistema so-cialista permanece em níveis bastante elevados.

Richard Gott, jornalista bri-tânico, dá algumas explica-ções para isso: “Cuba é uma sociedade que tem desfruta-do de meio século de paz in-terna, incólume a ditaduras militares (como na maioria da América Latina) ou assassina-tos políticos (como nos Esta-dos Unidos)”

Em entrevista por correio eletrônico ao Brasil de Fato, Gott ainda cita, entre outros, os padrões de saúde e edu-cação oferecidos ao povo e a igualdade racial, conquistada após séculos de escravidão e colonialismo.

No entanto, existem pro-blemas e desafi os a serem enfrentados. E muitos. O jor-nalista britânico elenca al-guns exemplos, como a falta de liberdade de expressão, a manutenção da pena de mor-te e a relativa ausência de di-versifi cação da economia cubana, causada, principal-mente, pelo acordo de expor-tação de quase toda sua pro-dução de açúcar à ex-União Soviética.

Na entrevista a seguir, Gott ainda fala sobre Fidel Castro, Che Guevara, Barack Oba-ma, as mudanças promovi-das por Raúl Castro, e cri-tica a grande mídia: “A im-prensa internacional (de viés ocidental) foi educada para acreditar que somente as so-ciedades liberais do ocidente têm o direito de descrever a si mesmos como ‘democrá-ticos’. Todas as outras socie-dades são consideradas ‘au-toritárias’ ou ‘ditatoriais’”.

Brasil de Fato – Após 50 anos de vigência da Revolução Cubana, quais são seus principais legados?Richard Gott – O lega-do permanente da Revolu-ção Cubana é a criação de uma sociedade onde negros e brancos vivem juntos co-mo iguais, superando a he-rança racista da escravidão e do colonialismo. Isso é uma conquista única nas Améri-cas, seja do Norte, seja do Sul. Cuba é uma sociedade que tem desfrutado de meio século de paz interna, incó-lume a ditaduras militares (como na maioria da Amé-

rica Latina) ou assassinatos políticos (como nos Estados Unidos). Além disso, Cuba é uma sociedade intacta em relação ao consumismo: os cubanos não são persuadi-dos pela publicidade a que-rer o que eles não precisam. E, por último, a população do país desfruta de padrões de serviços de saúde e educa-ção que ainda são um sonho distante para os demais po-vos da América Latina.

Em sua opinião, quais foram os principais erros ou decisões equivocadas durante esses 50 anos?

Tem sido um erro Cuba manter a pena de mor-te, pôr o país no mesmo ní-vel dos Estados Unidos, que também mantém essa prá-tica bárbara. Também é um equívoco se recusar a per-mitir uma certa liberdade de opinião na discussão po-lítica. Cuba tem uma popula-ção educada e com capacida-de de argumentação, portan-to, ao povo cubano deveria ser permitido debater seu fu-turo de um modo mais inte-ressante e aberto, através da criação de jornais e revistas.

Muito se discute a real importância da fi gura de Fidel Castro e de sua liderança para a sobrevivência da Revolução Cubana nessas cinco décadas. Qual sua opinião sobre isso?

A liderança de Castro e sua personalidade carismá-tica têm sido, sem dúvida, de grande importância na sus-tentação da Revolução du-rante tantos anos. Castro tal-vez possa ser visto, agora, co-mo a fi gura latino-americana do século 20 de maior desta-que, no mesmo nível dos lí-deres das lutas de indepen-dência do século 19. Sua ha-bilidade militar, exemplifi ca-da durante a guerra revolu-cionária, assim como nas lu-tas tardias na África, é legen-dária, do mesmo modo que sua habilidade política, di-plomática e estratégica.

Após cinco décadas, o apoio popular a Fidel Castro e sua Revolução parece ser muito forte. É isso mesmo? Por quê?

Castro continua tremenda-mente popular em Cuba. Es-sa popularidade existe, prin-cipalmente, porque ele e a Revolução se tornaram in-delevelmente marcados na mente popular.

Alguns analistas avaliam que Che Guevara deixou Cuba na primeira metade da década de 1960 devido a certos desapontamentos e desacordos com a condução do processo revolucionário. Isso de fato aconteceu? Se sim, quais eram esses desapontamentos e desacordos?

Não há nenhum tipo de evidência de que Che Gue-vara tenha deixado Cuba de-vido a desacordos com a li-derança cubana. É verdade que ele pode ter fi cado frus-trado pelo ritmo lento das mudanças em Cuba nos pri-meiros anos após a Revolu-ção, mas não há dúvida de que sua ambição maior era lançar uma guerra revolu-cionária na América Latina, começando por seu país na-tal: a Argentina. Nessa ambi-ção, ele teve o respaldo total de Fidel.

Se ele fosse vivo, quais elogios e quais críticas o senhor acredita que ele faria ao regime cubano?

Essa é uma pergunta di-fícil, já que, hoje, ninguém

pode falar em nome de Che Guevara. Ele sempre foi um apoiador leal dos irmãos de Castro, e não há dúvidas que ele continuaria apoiando-os em seus esforços em manter a Revolução.

A forte aproximação econômica do regime cubano à União Soviética se deu, principalmente, como resultado do embargo imposto pelos Estados Unidos. No entanto, quais foram os erros na maneira como essa relação foi estabelecida?

O principal signifi cado do acordo econômico entre Cuba e a União Soviética diz respei-to à produção sucessiva de açúcar: depois que os Estados Unidos se recusaram a conti-nuar adquirindo o produto, os soviéticos assumiram essa compra (em termos vantajo-sos). Se isso não tivesse acon-tecido, Cuba poderia ter se be-nefi ciado da diversifi cação de sua economia e, assim, teria parado de contar apenas com a produção de açúcar durante tantos anos.

Em sua campanha, Barack Obama sugeriu que ele poderia abrir um diálogo com Raúl Castro. Porém, em outras ocasiões, discursando à comunidade cubana nos EUA, ele criticou Cuba e anunciou a manutenção do embargo. O que esperar, de fato, da política de Obama em relação à Cuba?

Obama tem uma oportu-nidade única de estabelecer uma nova política em rela-ção à Cuba. As amarras pa-ra uma ação estadunidense nesse sentido não existem

mais. A comunidade cuba-na nos EUA não é mais uma força política infl uente. Cuba é a única área da política ex-terior onde um novo presi-dente pode fazer a diferença (e causar um impacto mais facilmente do que no Orien-te Médio ou Afeganistão). É legítimo esperar que Obama feche o campo de detenção em Guantánamo, e que res-taure as relações diplomáti-cas e comerciais com Cuba. Isso é o que o resto do mundo espera do governo Obama.

Por que há um consenso, mantido pela imprensa internacional, de que em Cuba há uma ditadura?

A imprensa internacional (de viés ocidental) foi edu-cada para acreditar que so-

mente as sociedades libe-rais do ocidente têm o di-reito de descrever a si mes-mos como “democráticos”. Todas as outras sociedades são consideradas “autoritá-rias” ou “ditatoriais”. O go-verno revolucionário cubano foi estabelecido durante um período em que a maioria da América Latina era governa-da por ditadores militares, e os cubanos, com difi culdade, criaram uma forma de práti-ca democrática que era mar-cadamente contrastante com as ditaduras que prevaleciam no resto do continente. Ao longo dos anos, os cubanos não viram razões para ajus-tar sua própria democracia, no sentido de se adequar ao modelo aprovado pelos Es-tados Unidos.

Uma das maiores críticas que se faz ao regime socialista é a falta de liberdade de expressão e de participação política. É possível conciliar o respeito a esses direitos com a manutenção do socialismo cubano, que sobrevive sob um duro embargo econômico?

A participação política exis-te, sob certas regras e condi-ções estabelecidas pelos pró-prios cubanos. Já a liberda-de de expressão, como usual-mente é entendida no ociden-te, não existe. Nesse aspecto, o governo cubano é incomu-mente hesitante. Sem dúvida, ele poderia ser mais corajoso em permitir revistas ou jor-

Os legados e as contradições de meio século de Revolução CubanaSOCIALISMO Em entrevista, o jornalista britânico Richard Gott analisa as conquistas, problemas e desafi os do regime implantado na ilha caribenha a partir de 1959

“Tem sido um erro Cuba manter a pena de morte, pôr o país no mesmo nível dos Estados Unidos, que também mantém essa prática bárbara. Também é um equívoco se recusar a permitir uma certa liberdade de opinião na discussão política”

O britânico Richard Gott é escri-tor, jornalista e historiador. Tra-balhou, por muitos anos, no jornal inglês The Guardian, como redator, correspondente e editor. Esteve por diversas vezes em Cuba, país sobre o qual escreveu o livro Cuba: Uma Nova Historia. É autor, ainda de diversos livros sobre os movi-mentos revolucionários na América Latina, como Guerrilla Movements in Latin America (Movimentos guerrilheiros na América Latina) e Hugo Chavez and the Transfor-mation of Venezuela (Hugo Chávez e a transformação da Venezuela). Atualmente, é pesquisador do Ins-tituto para o Estudo das Américas da Universidade de Londres.

Quem é

nais para incentivar o deba-te e a discussão sobre o futu-ro. Os cubanos são um povovivo, politizado, e possui fa-miliaridade com o que acon-tece no resto do mundo,portanto é um erro proibi-lode discutir abertamente so-bre o que está acontecendo.Uma discussão livre não iriapôr em risco a Revolução.Ao contrário, iria aumentarsua popularidade.

Quais são as mudanças mais signifi cativas que estão sendo promovidas por Raúl Castro?

Até agora, as mudanças não têm sido signifi cativas. O acesso a novas tecnologias,como internet e celulares, pa-rece ter melhorado. O aces-so limitado à terra tambémse tornou possível. O que es-tá faltando até agora, embo-ra talvez esteja sendo plane-jado, é uma abertura em re-lação ao emprego de peque-na escala para empresas pri-vadas. Se os indivíduos po-dem abrir pequenos restau-rantes, por que a eles não de-veria ser permitido trabalharcomo construtores, carpintei-ros, pintores etc.?

Quais são os principais desafi os para a manutenção do regime socialista?

O principal desafi o para o atual sistema está no cresci-mento das expectativas. Não importa o que for dado às pessoas: elas sempre querem mais. Por razões históricas, os cubanos tendem a se com-parar com os Estados Unidos. Eles se percebem como em pior condição que os estadu-nidenses. No entanto, Cuba é uma ilha do Caribe e, compa-rada com as outras ilhas da re-gião, para não mencionarmos as nações vizinhas da América Central, ela é um farol de es-perança, prosperidade e jus-tiça econômica. Os próprios cubanos não vêem isso. Eles só se comparam aos Estados Unidos. Isso cria um com-plexo de inferioridade per-manente, que é um problema perene com o qual o governo tem que lidar.

“Castro talvez possa ser visto agora como a fi gura latino-americana do século 20 de maior destaque, no mesmo nível dos líderes das lutas de independência do século 19. Sua habilidade militar, exemplifi cada durante a guerra revolucionária, assim como nas lutas tardias na África, é legendária, do mesmo modo que sua habilidade política, diplomática e estratégica”

“Os cubanos, com difi culdade, criaram uma forma de prática democrática que era marcadamente contrastante com as ditaduras que prevaleciam no resto do continente. Ao longo dos anos, os cubanos não viram razões para ajustar sua própria democracia, no sentido de se adequar ao modelo aprovado pelos EUA”

Menino atravessa rua de Havana; ao fundo, o prédio do Capitólio

Francis Larrede-CC

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américa latina

Waldo Lao Fuentes e Anna Feldmann

da Cidade do México (México)

HÁ DOIS anos, no Estado de Oaxaca nascia um movimen-to que hoje é conhecido co-mo a Assembléia Popular dos Povos de Oaxaca (APPO). Es-se movimento reúne centenas de organizações, setores e co-munidades indígenas. A AP-PO surgiu a partir do confl ito ocorrido em junho de 2006, quando o governo de Ulises Ruiz (PRI), diante da falta de solução das reivindicações da Sessão 22, reprimiu professo-res que estavam instalados no centro da cidade. Foi ao lon-go dos próximos meses que a APPO foi se organizando e so-mando novas demandas, ain-da que a principal fosse a re-núncia do governador. A en-trevista a seguir foi realizada com Dolores Villalobos Coa-matzi, colaboradora do Con-selho Indígena Popular de Oa-xaca Ricardo Flores Magon (CIPO-RFM), nas instalações da entidade, no bairro de San-ta Lucia del Camino.

Brasil de Fato – Como defi ne a APPO dois anos após sua formação?Dolores Villalobos Coa-matzi – O que se pretendia fazer da APPO era a criação de um movimento que unis-se todos os povos, as organi-zações e as forças que exis-tiam em Oaxaca para lutar por democracia, igualdade e justi-ça. Um movimento de todo o povo para poder ter o que até agora nenhum povo tem, que é justiça e liberdade.

Sabemos que a luta dos povos oaxaquenhos é bastante antiga e que, nos últimos anos, os governadores que passaram pelo Estado – todos do Partido Revolucionário Institucional (PRI) – pouco fi zeram pelas reivindicações populares, em especial pelas demandas dos professores. Quais são os antecedentes que deram origem à APPO?

Muito se tem dito que a AP-PO é um movimento espon-tâneo, mas nós dissemos que não. Oaxaca é um Estado que tem uma história de luta. Des-de antes, com os governadores Diódoro Carrazco (de 1992 a 1998) e José Murat (de 1998 a 2004) – ambos do PRI – tem-se essa história de repressão.

Oaxaca é um Estado com muitos recursos naturais e com uma grande diversidade cultural, que abriga 16 povos indígenas. Existem muitas co-munidades que sofrem margi-nalização e exploração das po-líticas de governo, a partir da aplicação do Tratado de Li-vre Comércio. Diante disso, os povos exigem justiça, eqüi-dade, saúde, educação, demo-cracia, porque durante todo esse tempo o PRI sempre go-vernou Oaxaca.

Por sua parte, o movimento dos professores tem no Estado sua única sessão democrátrica em nível nacional. O magisté-rio de Oaxaca é como uma pon-ta de lança. Isso é produto de uma longa luta que os profes-sores têm feito desde os anos de 1980 pela democratização do sindicato e pela fundação da Coordenação Nacional de Trabalhadores da Educação. Oaxaca sempre tem estado em luta, mas também sempre tem estado sob o jugo do PRI.

Como se organiza e se consolida a APPO?

Com o governo de Ulises Ruiz, sempre houve repres-são, despejos, encarceramen-to. Depois do 14 de junho de 2006, quando os professores – que contam com cerca de 70 mil trabalhadores sindica-lizados – sofreram a repres-são, decidimos dar um basta

diante de tanta impunidade. Depois desse dia, as pessoas respondem a um chamado fei-to pela rádio Plantón. As orga-nizações estavam acampadas com o magistério, a CIPO ti-nha o seu acampamento, o Co-mitê de Defesa dos Direitos do Povo tinha o seu, todos tínha-mos um acampamento, todos participamos da defesa nesse dia. A mesma indignação do povo fez com que se realizasse uma assembléia muito gran-de, na qual todos decidimos que era necessário fazer uma aliança, deixar de lado as di-ferenças que existiam dentro das organizações para poder destituir Ulises Ruiz. Assim começa tudo. No dia 22 de ju-nho, se discute formalmente a criação da Assembléia Popular dos Povos de Oaxaca e se tem que ter alguns representantes. A proposta foi que cada região nomearia os seus representan-tes para ingressar na APPO. Nesse momento, não se falava em Conselho, só se falava de representantes. Conselho só aparece quando se faz o Con-gresso de outubro de 2006. Depois, em 25 de novembro, vem a grande repressão.

A APPO tem um conselho que é formado por representantes de todas as comunidades de Oaxaca?

Nem todos participaram dessa primeira reunião de 22 de junho, muitos fi caram de fora. Nesse dia, estavam pre-sentes 385 organizações e re-presentações, entre comuni-dades e outros sindicatos, co-mo o da saúde, por exemplo; havia também uma série de representantes de bairros.

Você crê que a maioria das comunidades participam da APPO?

Pouco a pouco, durante to-do o ano de 2006, foram se agregando mais organizações. As comunidades têm uma longa tradição de luta e sa-bem que tudo é um processo. O processo da APPO foi muito rápido. Um processo de liber-tação tem seus tempos e as co-munidades indígenas sabem disso há bastante tempo: 500 anos de luta é todo um pro-cesso de resistência. Os povos têm aprendido a caminhar ao seu próprio passo. Houve soli-dariedade e ajuda nas regiões, fechavam as estradas para im-pedir que chegassem os priis-tas ou que acontecessem as manifestações que o partido de Ulises convocava.

Como são tomadas as decisões?

Convocavam-se assembléias. Se usava o voto, mas isso de-pende de cada organização. Nós [referindo-se ao Cipo] não usamos votação, usamos o consenso. Nós dizemos que devem haver coincidências e sobre estas vamos trabalhan-do. Depois do Congresso, as resoluções da APPO estabele-cem que as decisões devem ser tomadas por consenso. Diga-mos que não existem dirigen-tes, apesar de os meios de co-municação dizerem que sim. À época, eram Flavio Soza e Ru-da Pacheco porque eram eles que apareciam mais. Agora, identifi cam Florentino López Martínez como porta-voz. Di-zemos que é uma forma que usa o governo para focar em um só fi gura ou pessoas.

Existem partidos políticos dentro da APPO?

Sim. Digamos que Flavio Soza representa uma parte do Partido Revolucionário De-mocrático (PRD), uma sessão chamada nova esquerda. Tam-bém estão presentes represen-tantes do FPR, além de ou-tras organizações como os da Outra Campanha, os punks, os anarquistas, os que falam de poder popular. O objetivo principal era dizer que não ha-via governabilidade em Oaxa-ca e conseguir a destituição de Ulises Ruiz e a partir disso ir construindo um congresso no qual todos tivessem voz para poder dizer o que se passa com a economia, com as comuni-dades, esse era o plano.

Retomando os acontecimentos ocorridos em 2006, quais foram os setores da cidade de Oaxaca que se uniram ao movimento?

Primeiro foram as organiza-ções. Depois, chegam os estu-dantes. Quando cortam o si-nal da rádio Plantón, são eles

quem imediatamente tomam a rádio Universidade. Depois, com toda a difusão, chegam os pais de família, as donas de casa. E o apoio se estende até aos punks. Como os professo-res são em maior número, vi-nham de todas as regiões. Nas megamarchas, via-se gente de outros lugares. Existem co-munidades que levam um dia para chegar até a cidade.

Qual tem sido a participação das mulheres no movimento?

Creio que hoje em dia a par-ticipação tem sido cada vez maior. Se nós, mulheres. não participamos, não é completo. Neste movimento, muitas do-nas de casa se deram conta de que tinham participação, que não era só levar o café, mas que também podiam dizer como é que queriam que fos-sem as coisas. Por exemplo, no Congresso se discutiu e se disse que teria que ser meta-de e metade, isso também es-tá dentro das resoluções dos Congressos. Mas não se cum-priu, porque nem mesmo no congresso éramos 50 e 50, éramos menos mulheres, éra-mos menos da metade.

Poderia nos falar sobre esse fenômeno que se chamou de a “Comuna de Oaxaca”?

Em 2006, antes da entrada da polícia, o governo do Es-tado não tinha nenhum po-der sobre a população de Oa-xaca, os escritórios não esta-vam abertos, não havia polí-cia, nem trânsito, a gente ti-nha o controle da cidade e de suas comunidades, muitas comunidades expulsaram os priistas. Não havia poder es-tatal, Ulises Ruiz fi cava mais na cidade do México do que em Oaxaca. Se vigiavam as ru-as, barricadas foram levanta-das, se tinha o controle, houve uma solidariedade... por isso, se chamou a “Comuna de Oa-xaca”. Falou-se em se tomar o Palácio e dali fazer o governo popular, mas a sessão 22 com Rueda Pacheco [um dos trai-dores] não quis. Já estava tu-do pronto para tomá-lo, os advogados já estavam conos-co, mas Rueda Pacheco disse que a Assembléia do Magisté-rio não estava de acordo, en-tão, não entramos.

Atualmente como está a situação dos desaparecidos, quais são os movimentos e órgãos que estão colaborando com essa tarefa?

Naquela época houve mui-tos rumores sobre pessoas de-saparecidas. Encontraram-se tumbas clandestinas no pan-teão Jardín, mas as autorida-

des não disseram nada. Na-quela época, havia rumores de que no anfi teatro haviam mui-tos cadáveres. Existem mui-tas histórias, apesar de não te-rem sido confi rmadas porque as autoridades têm ocultado essa informação. Os únicos que puderam ter um pouco de acesso e que documentaram foram as organizações de di-reitos humanos. As ONGs aju-daram; a comissão estadual de Oaxaca não fez nada. De fa-to, eles diziam que havia uma unidade móvel para denún-cias, mas nós nunca a encon-trávamos. Não havia um lugar para fazer as denúncias. Aqui há muita impunidade, houve aproximadamente 27 mortos e 1 desaparecido.

Como foi o apoio nacional e internacional durante o confl ito?

Sem o apoio dos meios de comunicação, a polícia teria entrado antes e teriam come-tido coisas mais arbitrárias do que as que cometeram, mais desaparecidos e assassinados. Internacionalmente, houve o apoio da CGT da Espanha, além do apoio da Inglaterra e do Canadá. Houve manifes-tações em outros países. Tive-mos conhecimento de eventos que aconteceram em São Pau-lo, em frente à embaixada me-xicana, e também de alguns atos realizados na Argentina.

Qual é a relação da APPO com outros movimentos sociais, em especial com os zapatistas?

O único contato que se fez com os zapatistas foi através dos que somos da Outra Cam-panha, que são poucos em Oa-xaca. Nós temos essa relação com eles. A Outra Campanha tenta solidarizar-se com as lu-

tas que são justas, que são do povo. Houve esse apoio, de fa-to, uma vez vieram Las Ave-jas – uma organização da so-ciedade civil que luta pelos direitos dos povos indígenas e que tem sua sede em Chia-pas – para fazer um ato de so-lidaridade em Oaxaca, e quan-do a polícia entrou, os zapatis-tas fecharam as estradas em Chiapas em apoio e solidari-dade ao povo de Oaxaca.

O que a APPO conseguiu nestes dois anos?

Creio que o que se viveu em 2006 não será esquecido pela gente, vai demorar muito para que se destrua a memória que existe, por isso, o movimento continua. Antes, ninguém se solidarizava. Hoje, é distin-to. Há muitos aliados nas ru-as, entendeu-se que as mobi-lizações são feitas pelos direi-tos e que de alguma maneira todos se benefi ciam. Muitas pessoas que eram priistas dei-xaram de ser.

Em 2007, por exemplo, muitos decidiram não votar. Só uns 30%. Os outros 70% se abstiveram. Isso nos diz algo: que as pessoas já não creêm nas instituições, que elas já não têm nenhuma credibili-dade, e se elas seguem gover-nando só é por causa da polí-cia e da repressão. Oaxaca não é a mesma de antes de 2005. É outra; as pessoas, as crianças, os jovens também têm outra idéia, participaram do movi-mento, reconhecem quem são os opressores. A repressão fez com que as pessoas tomassem mais consciência.

Já se passaram dois anos desde os atos de repressão e das contínuas perseguições. Neste panorama, como está a situação da APPO no momento?

Está dividida, não há uma reconciliação nos interesses. Agora, se fala de interesses muito particulares. Existem organizações que estão nego-ciando e outras que dizemos que não vamos negociar nada com Ulises Ruiz. Aí está a rup-tura. Como dizem das Vozes Oaxaqueñas Construyendo Autonomía y Libertad (VO-CAL) – dos jovens grafi teiros, que são a ala mais radical – mas que na realidade estão lu-tando por outro ideal.

Fazendo uma breve análise, quais foram os erros da APPO?

Que tenha havido alguns grupos que se apropriaramda APPO, que tinham inte-resses bem claros. Outro er-ro foi que a gente que se so-lidarizou – levando coisas, fe-chando as ruas, enfrentandocom os priistas, paramilita-res e até com a polícia chega-va com poucas idéias nas as-sembléias. Como temos di-to, o problema foi pensar queresolveríamos tudo com umanegociação. Se forma a Co-missão Única Negociadora, eeles eram os que falavam como governo federal. O magisté-rio, acostumado a negociar ea fazer mobilizações, fez comque esse modelo fosse levadoa todo o movimento.

Quais são as demandas atuais?

A libertação dos três com-panheiros que continuampresos e justiça para os assas-sinados. Ainda existem mui-tos processados, quase todossaíram sob fi ança. O próprio magistério tem muitos pro-fessores com processo. Ou-tra demanda é a libertaçãodos presos políticos que estãohá anos na prisão. Outra, é ocancelamento dos processos.O caso de Brad Will – jorna-lista estadunidense do MídiaIndependente morto no dia27 de outubro de 2006 en-quanto gravava uma mobili-zação em Oaxaca – ainda estápendente. Ainda há ameaçasaos companheiros.

Líder indígena faz balanço dos 2 anos daAssembléia Popular dos Povos de OaxacaMÉXICO Dolores Villalobos Coamatzi, colaboradora do Conselho Indígena Popular Ricardo Flores Magon, analisa a APPO

Muito se tem dito que a APPO é um movimento espontâneo, mas nós dissemos que não. Oaxaca é um Estado que tem uma história de luta. Oaxaca é um Estado com muitos recursos naturais e com uma grande diversidade cultural, que abriga 16 povos indígenas

Em 2006, antes da entrada da polícia, o governo do Estado não tinha nenhum poder sobre a população de Oaxaca, os escritórios não estavam abertos, não havia polícia, nem trânsito, a gente tinha o controle da cidade e de suas comunidades

Marcha organizada pela APPO no último dia 25 de novembro reuniu mais de 100 mil na capital

S.Scott-CC

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cultura

Há 5 anos, surgiu o Filhos da Mãe... Terra, no Assentamen-to Carlos Lamarca, Sarapuí (SP), com o intuito de reorgani-zar os jovens que viviam distantes devido à estruturação do assentamento, dividido em lotes individuais, o que impediu a continuidade das reuniões semanais realizadas pelo grupo de jovens desde o período de acampamento.

Junto com cerca de 35 grupos do MST, integram a Brigada Nacional de Teatro “Patativa do Assaré”, que surgiu em 2001, por meio de uma parceria com o Centro do Teatro do Oprimi-do (CTO). Atua no sentido de intervir diretamente no MST, pautando a visão do movimento a partir das pessoas que dele participam e o constroem e sua criação faz parte de um con-junto de novas refl exões realizadas dentro do movimento, cujo objetivo é o ataque ao monopólio da cultura.

A partir de tímidas atividades teatrais, o grupo passou a de-senvolver um método de trabalho coletivo e, com o estudo e apropriação de diversos materiais veiculados em jornal im-presso e outras mídias, montou sua primeira produção, a pe-ça Posseiros e fazendeiros, baseada em Horácios e Curiácios, de Brecht.

Apresentando-se de início apenas para os moradores do próprio assentamento, com o tempo o grupo passou a perce-ber o teatro como um espaço de diálogo importante. Com is-so, transgrediram os limites do assentamento e chegaram a escolas, universidades, sindicatos e à II Mostra Latino-ameri-cana de Teatro de Grupo, em março de 2007. (JC e VR)

Jonathan Constantino e Vanessa Ramos

da São Paulo (SP)

NO PALCO, personagens que não têm terras, cuja força de trabalho é explorada e a li-berdade, usurpada por ou-trem. Personagens fi ctícios que retratam a realidade dos que, sentados, assistem e se reconhecem. Ao fi nal, desce do palco, despe-se do fi guri-no, retira a maquiagem e tro-ca de roupas. Toma a criança no colo e se prepara: no outro dia bem cedo retomará o tra-balho em outro palco: de vol-ta ao assentamento.

Reinventando as relações de produção teatral, buscan-do construções coletivizadas que favoreçam a percepção e assimilação da fi nalidade do trabalho por todos, levando em conta que trabalho braçal e intelectual tenham o mes-mo valor e importância. En-xergando e construindo a ar-te dramatúrgica comprome-tida com a realidade e numa perspectiva dialética. O tea-tro, pois, como ferramenta de refl exão política crítica e cria-tiva, numa busca constante de novas formas que visam a in-terlocução de debate, mas dis-tante de modelos extremos de hermetismo esotérico e de fa-cilitação populista. É desse modo que tem sido construí-da a prática do grupo Compa-nhia do Latão.

Dentre as últimas ativi-dades realizadas pelo gru-po, houve a participação no evento Machado de As-sis Leitor do Brasil, realiza-do no Sesc Consolação, com a exibição do fi lme Entre o céu e a terra, uma produção dramatúrgica coletiva, coor-denada por Sérgio de Carva-lho. O fi lme mudo conta com a participação de mais de 20 atores convidados, e combi-na linguagens de vídeo, mú-sica e teatro. Os escritos ba-seiam-se em fragmentos de obras de Machado de Assis (A Cartomante e A Cena do Ce-mitério) e do crítico Rober-to Schwartz (As idéias fora do lugar e Duas notas sobre Machado de Assis).

Além disso, em agosto úl-timo o grupo lançou o livro Companhia do Latão: 7 pe-ças, no qual é apresentada uma parte do trabalho cons-truído ao longo dos 11 anos de sua existência e sua ex-periência de trabalho coleti-vo e repolitização da arte te-atral. Uma história de mil fa-ces e mil jeitos de ser conta-da, mas cujo norte é o diálogo com o público. Diálogo dialé-tico que permite às pessoas perceberem as contradições que se descortinam diante de seus olhos cotidianamente enquanto encenam sua exis-

“Reativar a percepção das contradições que pautam a vida sob o capitalismo”, este seria o objetivo principal do trabalho da Cia. do Latão, de acordo com Iná Camargo, crítica teatral e professora da Universidade de São Paulo (USP)

A fl or subversiva dos palcosTEATRO ÉPICO Companhia do Latão mistura Bertolt Brecht e Marx em seus trabalhos; parceria com o MST gerou o grupo Filhos da Mãe... Terra

tência num palco sem holofo-tes: a vida.

Contradições“Reativar a percepção das

contradições que pautam a vida sob o capitalismo”, es-te seria objetivo principal do trabalho da Cia. do Latão, de acordo com a crítica teatral e professora da Universidade de São Paulo (USP) Iná Ca-margo. Segundo ela, esse tra-balho tem alcance muito am-plo, mas, observando-se a construção dramatúrgica do grupo, percebe-se que os tex-tos trabalhados trazem à to-na as diversas faces presen-tes na vida das pessoas, pos-sibilitando a percepção des-sas contradições.

No espaço do teatro, então, as pessoas se defrontam com a ambigüidade que existe entre a idéia de liberdade em con-fronto às inúmeras coerções que sofrem devido às relações capitalistas de produção, bem como se dão conta de contra-dições mais sofi sticadas “en-tre discurso e ação, entre in-tenção e resultado da ação, entre desejo inconsciente e desejo pautado pela mercanti-lização da vida”, acrescenta.

Entretanto, salienta que o trabalho do grupo vem mos-trando que a relação entre ar-te e politização não é direta. “O desenvolvimento de uma arte politizada depende de um processo prévio de politi-zação que, depois de se encon-trar com a arte, pode ter de-senvolvimento mais amplo e mais exigente.”

Dialeticamente coletivoSegundo o diretor Sérgio de

Carvalho, o trabalho coletivo tem sido um dos principais nortes do trabalho da compa-nhia. “Mesmo antes do conta-to com a obra de [Bertolt] Bre-cht, nosso trabalho já tentava pôr em prática uma atitude de trabalho coletivo, em que to-dos entendem a fi nalidade das coisas, em que o trabalho bra-çal e o intelectual têm a mes-ma importância e valor”, diz.

O contato com a obra de Brecht, então, possibilitou aproximação com a dialéti-ca materialista de Marx, uma aproximação ocorrida devi-do a uma necessidade prática, mas que respondia à necessi-dades do grupo.

“Procurávamos peças que não fossem baseadas na for-ma dramática, sem o mora-lismo burguês, mais experi-mentais do ponto de vista da narrativa”, acrescenta Carva-lho. Essa premissa tem inspi-rado o grupo a encenar temas e formas de oposição ao pen-samento dominante, buscan-do reativar simbolicamente a luta de classes, uma realidade dentro do sistema capitalista.

Ainda de acordo com o di-retor, a importância do tra-balho também está no fato de que muitos jovens artistas se politizam pelo contato com o trabalho do Latão, o que os ajuda a enxergar a cons-trução cultural de outro mo-do, desenvolvendo o poten-cial politizante da arte, que pode ocorrer através do ofe-recimento de novas imagens do mundo, o despertar dos sentidos, da imaginação e do pensamento crítico do espec-tador, e da própria constru-ção de atitudes coletivas.

Acrescenta que o teatro é um campo de ação importan-te porque não se pode “des-prezar que a burguesia for-taleceu muito o campo da dominação cultural nas úl-timas décadas”. Porém, sem se prender ao idealismo, re-conhece que apenas o traba-lho artístico não desencadeia transformações sociais e que “a luta anticapitalista depen-de de movimentos de massa,

da ida às ruas, de organização política, de ações materiais”.

Parceria com MSTNessa perspectiva de mobi-

lização social, o diretor reme-mora a parceria com o Movi-mento dos Trabalhadores Ru-rais Sem Terra (MST). Segun-do Carvalho, ela tem ocorrido de modo episódico e é de gran-de importância para o grupo. A maior aproximação se dá com o grupo teatral Filhos da Mãe... Terra, do assentamen-to Carlos Lamarca, de Sara-puí (SP). Porém, sempre que o MST convoca a companhia, ela procura atender ao chama-do, como ocorreu em julho úl-timo, na ocupação da sede do INCRA, em São Paulo (SP).

A aproximação com outros grupos de luta ou movimen-tos sociais acontece com me-nor freqüência e um dos maio-res empecilhos decorre do fa-to de o Latão ser uma compa-nhia que busca viver de seu trabalho teatral, o que causa

inúmeras difi culdades. Devi-do a isso, os membros do gru-po têm outras ocupações, co-mo aulas e trabalhos de enco-menda. “Essa situação econô-mica precária difi culta nossos intercâmbios”, completa.

Apesar das difi culdades, o diretor mostra otimismo. “Isso deve mudar nos próximos me-ses, pois ganhamos um edital da Petrobras que nos dá con-dições de trabalho muito boas e nos libera tempo para o mais importante, o contato com os insatisfeitos, a experimenta-ção de novas formas”, diz.

Devido a difi culdades econô-micas para a manutenção do trabalho, alguns grupos se dei-xam cooptar. “O capitalismo é uma força de inclusão vio-lenta: a Coca-Cola chega a to-das as periferias do mundo e, de certo modo, seu modelo es-tético chega a todas as consci-ências”, alerta Carvalho. Com a fi nalidade de enfrentar essa realidade, o Latão tem inves-tido na produção de modelos artísticos diferentes que pri-vilegiem relações de trabalho igualitárias e criativas, fugindo de fato dos padrões e formas convencionais, através de uma postura consciente e diária de atitude anticapitalista.

Completando 11 anos em ju-lho último, de acordo com o diretor, a meta é persistir, se-guir em frente. Contudo, sa-lienta que é necessário es-tar ciente para o fato de que a abertura de novos espaços traz consigo maiores oposi-ções. Lançando-se ao desa-fi o, o Latão pretende retomar o trabalho sobre Os Dias da Comuna e O Manifesto Co-munista, iniciado no ano pas-sado. Além disso, têm a inten-ção de desenvolver um núcleo de produção audiovisual para tentar levar nossa experiência com formas épicas e dialéticas para outros campos.

De um círculo de gizA partir do auxílio no pró-

logo da peça O círculo de giz caucasiano, de Bertolt Brecht, se torna mais íntima a relação entre o Latão e o grupo Filhos

da Mãe... Terra (ver box). An-tes disso, o grupo já havia fei-to uma ofi cina com o Latão da qual resultou a construção da peça A farsa da justiça bur-guesa, que se tornou a últi-ma parte do Teatro Procissão, que foi uma apresentação rea-lizada com mais de 270 mili-tantes na chegada da Marcha Nacional do MST à Brasília, em 2005.

Segundo o grupo, a parce-ria com Latão tem sido algo de extrema importância, pro-porcionando trocas de expe-riências de vida e da vivên-cia adquiridas no dia-a-dia de um movimento como o MST, e dos aprendizados “que vão desde o técnico ao político, no aprofundamento da lin-guagem teatral, na aposta, de ambos os lados, da potencia-lidade da força produtiva de conhecimento e intervenção nessa linguagem”.

Acrescentam que o teatro tem assumido papel de for-mação, informação e trans-formação no MST. Essa im-portância instrumental vem do fato dos trabalhadores te-rem de pesquisar e compre-ender elementos de sua reali-dade específi ca e da socieda-de em geral, à medida que se apropriam dessa ferramenta e se desafi am a montar peças, indo em busca também de di-ferentes técnicas e gêneros te-atrais, por meio de cursos, se-minários, ofi cinas. “Há nes-se processo uma elevação do nível de consciência, na qual os artistas-militantes se assu-mem e se percebem em con-dições de produzir arte, fazer teatro e valorizar sua cultura”, diz o grupo.

Essa percepção surgiu à medida que se empenharam e se apropriaram das ferra-mentas, técnicas e linguagens teatrais, descobrindo sua im-portância para a discussão no MST, seja com a militân-cia nos acampamentos, as-sentamentos e encontros, ou com a sociedade de modo ge-ral. A proximidade com o La-tão permitiu, então, a com-preensão e aprofundamento da consciência de que o teatro é um meio de enfrentamento no campo ideológico, de ocu-pação de um espaço controla-do por uma minoria que de-tém os meios de produção.

A troca feita num processo de diálogo e de constante de aprendiado e ensino tem da-do ferramentas que permi-tem transgredir as fronteiras para novos espaços através da organização de debates, ofi -cinas, apresentações e atua-ções em lutas de ação direta. Nesse sentido, o trabalho to-ma outro aspecto importante de construção em conjunto na qual todos aprendam ao mes-mo tempo que ensinam.

“Estar dispostos a intercam-biar experiências, com con-tinuidade, é de fundamental importância para que consi-gamos de fato trabalhos que estejam voltados à interven-ção na luta concreta da classe trabalhadora”, concluem.

Os Filhos da Mãe... Terra

Zeca Baboin

Arquivo Brasil de Fato