Editorial

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  • 199No dia 18 de abril de 2015, sbado, parti de minha casa,

    num taxi, em direo a um grande hospital em So Paulo. Era cedo e ia em busca do resultado de um Holter de 24 horas. O exame, um eletrocardiograma de longa durao, requer a instalao de um equipamento medidor no corpo. Esse incmodo objeto fora instalado, pelo laboratrio de exames clnicos do hospital, no dia 10 de abril, pela manh. Era uma 6 feira com uma defesa de tese de Doutorado na PUC-SP, na parte da tarde. Presidiria a banca de quatro doutores examina-dores e estava curioso para saber como o meu corao (rgo) iria se comportar durante as cerca de cinco horas de durao da cerimnia. Passei o dia de trabalho e a noite de suposto descanso acompanhado por esse medidor cardaco instalado em meu corpo.

    Voltei ao hospital no dia 11 de abril, sbado, e retirei, sem maiores problemas, o medidor instalado em meu peito. A enfermeira entregou um protocolo que dizia, entre outras coisas: Forma de entrega: Retirada no Hospital. Data final dos resultados: 17/04/2015.

    Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., So Paulo, 18(2), 199-203, jun.2015

    Editorial

    A questo da qualidade revisitada

    Manoel Tosta Berlinck*1

    Ana Ceclia Magtaz*2

    http://dx.doi.org/10.1590/1415-4714.2015v18n2p199.1

    *1 Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo PUC-SP (So Paulo, SP, Br).*2 Universidade de So Paulo USP (So Paulo, SP, Br).

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    Uma semana depois, no dia 18 de abril, pela manh, voltei ao hospital, antes de coordenar um Seminrio Clnico de duas horas. Estava, portanto, dentro do prazo. No balco de entrega de envelopes com exames, uma lindinha atendente procurou pelo meu e, depois de cuidadosa busca numa vasta srie de envelopes, ligou o telefone interno e teve conversa com enfermeira do setor de exames de cardiologia. Disse-me, ento, de forma sorridente e simptica, que o mdico respon-svel pelo exame esteve ausente durante toda a semana, devido a uma doena da filha, e no assinara o laudo do exame, que no poderia ser liberado.

    Respondi, de forma nem to simptica e sorridente, que a vida particular do mdico no era de minha alada, que estava ali no prazo constante no protocolo e queria saber quem iria pagar o taxi que me trouxe inutilmente ao hospital.

    Perguntei, em seguida, quando o exame estaria disponvel. Disse-me, ento, ainda sorridente e simptica, que no saberia dizer quem iria pagar o taxi e nem indicou a instncia responsvel. Disse, tambm, que o laudo s seria liberado com a assinatura do mdico ausente. Insisti em perguntar qual seria a instncia respon-svel e ela me passou duas. Imediatamente pensei: se h duas instncias respons-veis, ento no h nenhuma. Agradeci a gentileza da simptica lindinha e parti, pois sabia que, num sbado, qualquer instncia administrativa do hospital responsvel por falhas estaria desativada.

    Caminhando em direo a uma das excelentes padarias existentes em So Paulo, onde pretendia tomar um tpico caf da manh mdia e po integral light quente no forno, com pouca manteiga pensava na questo da qualidade do aten-dimento hospitalar.

    Esse no foi o primeiro episdio ocorrido comigo. H algum tempo havia recebido o resultado de um exame de sangue com valores completamente fora da curva possvel. Reclamei e fui informado que havia ocorrido um erro.

    Essas ocorrncias so completamente rotineiras no Brasil e qualquer um reconhece isso. Elas vm quase sempre acompanhadas de sorrisos e simpatia por parte dos atendentes, dizendo, dessa forma, que no tem nada a ver com isso. Procedimentos que os norte-americanos chamam de sloppy, ou seja, sujos, lodosos, malfeitos so to frequentes na sociedade brasileira que ningum considera problemas requerendo reclamao e protesto. Mesmo porque, reclamar e protestar considerado intil, j que nenhuma providncia corretora acontece.

    Fazer bem feito, com cuidado para evitar o malfeito, no uma prtica insti-tucionalizada na sociedade brasileira, ainda que exista um crescente nmero de ilhas de competncia. No h, na cultura, uma valorizao do bem-feito nem ele um ideal a ser alcanado pela via do trabalho sistemtico e persistente. Os que se empenham em ser competentes, muitas vezes so considerados excntricos, elitistas, excessivamente exigentes e severos.

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    Uma das consequncias dessa situao que o bem-feito passa a ser recurso autoritrio e imposto por organizaes que precisam da qualidade para seus produtos. Evita-se, dessa maneira, a autonomia e a criatividade voltada para o bem-feito.

    Fazer bem-feito um ideal. Todo ideal cultural. A cultura brasileira tem dificuldades em reconhecer o ideal do bem-feito; trata-se de um trao cultural presente, porm fraco, no institucionalizado. Ns, brasileiros, sabemos muito bem dar um jeitinho, improvisar, quebrar um galho. Porm, somos pobres em fazer o bem-feito.

    No incio dos anos 1960, David C. McClelland, professor de Psicologia Social da Universidade de Harvard e chefe do Departamento de Psicologia daquela Universidade durante cerca de 20 anos, publicou um livro denomi-nado The Achieving Society e, concomitantemente, Everett E. Hagen, professor da Universidade de Illinois (Urbana/Champaigne) publicou How Economic Growth Begins: A Theory of Social Change. Tanto McClelland quanto Hagen realizaram uma abordagem de inspirao freudiana para conceber aquilo que denominaram need theory, ou seja, teoria da necessidade, referindo-se ao que estava ocorrendo naquele momento em sociedades agrcolas tradicionais, como o Brasil.

    Segundo Hagen, assim como McClelland, indivduos alienados e criativos frequentemente dedicam-se a romper padres sociais tradicionais depois de serem marginalizados pelas sociedades onde vivem, por serem diferentes. Como resultado, eles se dedicam a projetos que utilizaro seus talentos criadores dando a eles poder e a retribuio que almejam em oposio sociedade elitista.

    Esses indivduos no ficam capturados por uma identificao com a perda causada pelo rompimento dos padres tradicionais e pela marginalizao que sofrem. Tambm no ficam capturados por uma eterna crtica sem qualquer outro movimento criador. Eles se dedicam a projetos construtivos almejando alterar a estrutura social. So inovadores.

    Segundo McClelland, esses sujeitos possuem caractersticas obsessivas, mas no so neurticos obsessivos. Foram, muito cedo, treinados a valorizar o controle de seus esfncteres, ao contrrio do que ocorre nas sociedades tradicionais.

    Karl Abraham, o mais conhecido estudioso do erotismo oral e anal, em Contribuio teoria do carter anal (1921/2005) afirma que esses indivduos, muito cedo, desenvolveram certas caractersticas. So distantes, reservados, conser-vadores em relao s mudanas, perseverantes, persistentes, hesitantes, teimosos, meticulosos, limpos, ordeiros e o controle esfincteriano, nesses casos, no vivido como uma perda, como ocorre com personalidades melanclicas. vivido como uma conquista. Talvez a primeira conquista da civilizao. Ernest Jones, outro estudioso do erotismo anal, em Carter e erotismo anal (1924) afirma que esses

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    indivduos possuem trs principais traos de carter: so ordeiros, parcimoniosos e obstinados.

    Esses traos so responsveis pela valorizao da civilizao que, por sua vez, baseia-se no bem-feito.

    O bem-feito , nessa perspectiva, uma combinao de uma rica imaginao compreensiva com uma perseverana prtica que combate o desleixo, o descuidado, a superficialidade.

    A cultura do bem-feito possui uma dimenso esttica (Berlinck, 2014). Ela elegante por no ser excessiva. precisa sem ser autoritria. Contm o necessrio e o suficiente e, por isso, valorizada.

    Esses so valores e normas almejados pelo conhecimento cientfico que contri-buem para a compreenso da natureza sendo, por isso, elementos fundamentais da civilizao.

    Referncias

    Abraham, K. (1921). Contribuio a teoria do carter anal. In M.T. Berlinck (Org.) (2005), Obsessiva neurose. So Paulo: Escuta.

    Berlinck, M.T. (Org.) (2005). Obsessiva neurose. So Paulo: Escuta.Berlinck, M.T. (2014). A questo da qualidade: desafio para a cincia. Revista Latinoame-

    ricana de Psicopatologia Fundamental, Hagen, E.E. (1963). How Economic Growth Begins: A Theory of Social Change. Journal

    of Social Issues, 19(1), 20-34.Jones, E. (1924). Carter e erotismo anal. In M.T. Berlinck (Org.) (2005), Obsessiva neu-

    rose. So Paulo: Escuta. Jones, E. (1948). Traos de carter anal-sdico. In M.T. Berlinck (Org.) (2005), Obsessiva

    neurose. So Paulo: Escuta.McClelland, D.C. (1961). The Achieving Society. New York: The Free Press.

    Citao/Citation: Berlinck, M.T. & Magtaz, A.C. (2015, junho). Editorial. A questo da qua-lidade revisitada. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 18(2), 199-203.

    Editores do artigo/Editors: Manoel Tosta Berlinck e Sonia Leite

    Recebido/Received: 15.4.2015/ 4.15.2015 Aceito/Accepted: 25.4.2015 / 4.25.2015

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    Copyright: 2009 Associao Universitria de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental/University Association for Research in Fundamental Psychopathology. Este um artigo de livre acesso, que permite uso irrestrito, distribuio e reproduo em qualquer meio, desde que o autor e a fonte sejam citados / This is an open-access article, which permits unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium, provided the original authors and sources are credited.

    Manoel TosTa BerlinckSocilogo; Psicanalista; Ph.D. pela Universidade de Cornell, Ithaca, N.Y., USA; Professor aposentado da Universidade Estadual de Campinas Unicamp (Campinas, SP, Br); Professor do Programa de Estudos Ps-Graduados em Psicologia Clnica da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo PUC-SP (So Paulo, SP, Br), onde dirige o Laboratrio de Psicopatologia Fundamental; presidente (2002-2014) da Associao Universitria de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, editor de Pulsional Revista de Psicanlise e da Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental; Membro da World Association of Medical Editors WAME (Associao Mundial de Editores de Medicina); Ex-diretor da Livraria Pulsional e da Editora Escuta, autor de diversos livros e numerosos artigos.Rua Tupi, 397/10301233-001 So Paulo, SPe-mail: [email protected]

    ana ceclia MagTazPsicloga; Psicanalista, Doutora pelo Programa de Estudos Ps-Graduados em Psicologia Clnica da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP/Br.), Professora do Curso de Especializao em Psicopatologia e Sade Pblica da Faculdade de Sade Pblica da Universidade de So Paulo (FSP-USP/Br.); Diretora Administrativa da Associao Universitria de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental AUPPF.Rua Monte Alegre, 523/cj.8105014-000 So Paulo, SP/Br.e-mail: [email protected]

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