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1 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 159, jul. 2007. EDITORIAL U m pedido de tratamento endereçado a uma instituição psicanalítica é uma demanda singular, como qualquer outra demanda de análise, e necessita ser escutado desde a posição particular daquele que o enuncia. Na APPOA, o Serviço de Atendimento Clínico tem sido responsável pelo acolhimento dos pedidos de tratamento dirigidos à instituição. Consti- tuído por uma comissão composta por Membros Praticantes da Associa- ção, este serviço tem trabalhado em torno das especificidades da clínica no interior de uma instituição psicanalítica. A partir desse debate, tem passado por modificações no seu modo de funcionamento e, também, por diferentes denominações, já tendo sido anteriormente chamado de “Fórum” e de “Se- ção Clínica”. Ao longo dos anos, esta experiência tem propiciado a discussão de uma série de questões acerca da clínica na instituição, como a especificidade da demanda, o estabelecimento da transferência e o pagamento das ses- sões. Nesse número do Correio, reunimos diversos textos produzidos a par- tir do trabalho do Serviço de Atendimento Clínico da APPOA. Com eles, procuramos levar ao debate mais amplo as interrogações que tem se produ- zido no interior do mesmo 1 . 1 Editorial escrito por Gerson Pinho.

EDITORIAL U - APPOA · interior de uma instituição psicanalítica. A partir desse debate, tem passado por modificações no seu modo de funcionamento e, também, por diferentes

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1C. da APPOA, Porto Alegre, n. 159, jul. 2007.

EDITORIAL

Um pedido de tratamento endereçado a uma instituição psicanalíticaé uma demanda singular, como qualquer outra demanda de análise,e necessita ser escutado desde a posição particular daquele que o

enuncia.Na APPOA, o Serviço de Atendimento Clínico tem sido responsável

pelo acolhimento dos pedidos de tratamento dirigidos à instituição. Consti-tuído por uma comissão composta por Membros Praticantes da Associa-ção, este serviço tem trabalhado em torno das especificidades da clínica nointerior de uma instituição psicanalítica. A partir desse debate, tem passadopor modificações no seu modo de funcionamento e, também, por diferentesdenominações, já tendo sido anteriormente chamado de “Fórum” e de “Se-ção Clínica”.

Ao longo dos anos, esta experiência tem propiciado a discussão deuma série de questões acerca da clínica na instituição, como a especificidadeda demanda, o estabelecimento da transferência e o pagamento das ses-sões. Nesse número do Correio, reunimos diversos textos produzidos a par-tir do trabalho do Serviço de Atendimento Clínico da APPOA. Com eles,procuramos levar ao debate mais amplo as interrogações que tem se produ-zido no interior do mesmo1.

1 Editorial escrito por Gerson Pinho.

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NOTÍCIAS

JORNADA DO PERCURSO VII

Um percurso de “escolha”. Um tempo que deixamos trabalhar em nóso desejo em relação à Psicanálise, no encontro com os diferentes saberes efazeres que constituem as práticas humanas.

Ao longo desta caminhada, construímos diferenças no olhar e na es-cuta dos sujeitos que fazem parte do nosso cotidiano de vida, seja no traba-lho, na rua, no lazer ou na família.

Nesta Jornada de conclusão simbólica, abriremos para discussão essetempo de construção, compartilhando com todos que nos acompanharam,em diferentes proximidades, um pouco do vivido desta experiência.

MANHÃ

9h – ABERTURA

Mesa I9h20min

Um lugar... “nenhum”. Um percurso de escola – Sonia GodinhoO Estranho – Fabíola Dutra MalaguezHipóteses em torno do abandono – Iranice Carvalho da Silva Debatedor: Robson Pereira

Mesa II10h45min

Reflexões sobre a justiça e o trabalho com adolescentes autores de atosinfracionais – Analice BrusiusConhecendo jovens, autores de atos infracionais – Miriam BurgerDebatedora: Ester Trevisan

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NOTÍCIAS

TARDE

Mesa III14h30min

Algo sobre nós – Marília Josende ChagasEstruturação psíquica na obesidade e o corte no órgão – Sandra MeurerRomaniniDor – corpo e alma – as tramas do eu – Lucia Helena ReusDebatedor: Jaime Betts

Mesa IV16h

A dialética da pulsão – André Oliveira CostaA queda do véu – Letícia Beck SaldanhaDebatedor: Rosane Ramalho17h30min – EncerramentoCoquetel

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NOTÍCIAS

GRANDES HISTÓRIAS NA CULTURA:NARRATIVAS DO ESTRANHO

PROGRAMAÇÃO26 julho – Machado de AssisMemorial de Aires – Enéas de SouzaA causa secreta – Flávio Loureiro Chaves30 agosto – Edgar Allan PoeA carta roubada e William Wilson - Robson de Freitas PereiraO coração delator – Pedro Gonzaga27 setembro – Jorge Luis BorgesPrimeiros ensaios e poemas – Luís Augusto FischerA superstição ética do leitor, O Cego e Ficções - Alfredo Jerusalinsky25 outubro – Chico BuarqueBudapeste – Marieta Madeira Rodrigues e Antônio Sanseverino29 novembro – Clarice LispectorÁgua viva e Os Desastres de Sofia – Maria do Carmo CamposA Paixão Segundo GH – Maria Cristina Poli

Dia: 28 de junho (quinta-feira)Hora: 20hLocal: Livraria Cultura (Bourbon Shopping Country – Av. Túlio de Rose, 80 –Loja 302)Realização: Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), LivrariaCultura e Pós-Graduação em Letras da UFRGSEntrada Franca

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NOTÍCIAS

SEMINÁRIO “O DIVÃ E A TELA”FILME: “MORTE EM VENEZA”, DE LUCHINO VISCONTI

COORDENAÇÃO: ENÉAS DE SOUZA E ROBSON PEREIRA

Este mês, o seminário traz para discussão “Morte em Veneza”, dorenomado diretor Luchino Visconti, vencedor nos Festivais de Cannes eVeneza.

De férias no exterior, o compositor Gustav Aschenbach (Dirk Bogarde)parece um homem reservado e civilizado aos olhos daqueles que o conhe-cem. Basta, no entanto, o início de uma paixão secreta para que comece-mos a notar o presságio de sua destruição. O diretor Luchino Visconti (Ob-sessão) transforma o romance clássico de Thomas Mann em “uma obraprima de poder e beleza” (Willian Woll). Com Aschenbach, Visconti é umartista obcecado: seus filmes são ricos em humor, detalhes de época eemoções ferventes em superfícies plácidas. Rendendo a seu executor o prê-mio especial do 25º Aniversário do Festival de Cannes, “Morte em Veneza”,com uma assustadora performance de Bogarde, é o apogeu de Visconti.

Filme: “Morte em Veneza”Direção: Luchino ViscontiElenco: Dirk Bogarde, Bjorn Andresen, Silvana Mangano, Marisa Berenson,Mark Burns, Sergio Garafanolo, Leslie French, Masha Predit, Nora Ricci,Romolo Valli, Luigi Battaglia, Carole AndreData: 11 de julho, quarta-feiraHora: 19h30min.Valor: R$15,00Local: Sede da APPOA

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NOTÍCIAS

CARTELÃO DO SEMINÁRIO A ANGÚSTIA

Em julho e no próximo mês de agosto, daremos continuidade às reu-niões de trabalho a partir do seminário “ A angústia”, de Jacques Lacan. Oscomentários seguem a seqüência das lições do seminário, para que os inte-ressados possam ter uma orientação básica de leitura. A partir delas, osresponsáveis fazem suas elaborações desde sua experiência clínica econceitual, possibilitando uma releitura dos conceitos e uma atualizaçãodeste tema tão importante para a prática. Uma bibliografia complementarencontra-se à disposição na secretaria da APPOA.

Dia 12/07/07 – quinta-feira – 21 horasLições 7 e 8 - “Ele não é sem tê-lo” e “ A causa do desejo”Apresentação de Ligia Víctora e Ana GageiroCoordenação – Robson Pereira

Dia 02/08/07 – quinta-feira – 21 horasLição 9 –“ Passagem ao ato e acting out“Apresentação de Lucia MeesCoordenação – Carmen Backes

Dia 6/08/07 – quinta-feira 21 horasLição 10 – “ De uma falta irredutível ao significante”Apresentação de Adão CostaCoordenação – Ligia Víctora

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“COMO É QUE EU VIM PARAR AQUI?”

Liz Nunes Ramos

Apergunta do título foi feita por uma analisante que procurou o Serviçode Atendimento Clínico da APPOA há algum tempo e percorreu osprimeiros anos de sua análise na instituição. Eu a tomo porque ela

serve de introdução às muitas questões que permeiam a prática em institui-ções e nos permite organizar a entrada na indagação sobre algumasespecificidades da clínica numa instituição psicanalítica.

Pela perplexidade que acompanhou a enunciação da pergunta, certa-mente a moça não esperava deparar-se com tal questão, reveladora de suairrevogável implicação neste momento de sua demanda, após longos mesesde recusa a qualquer implicação. Ela ainda vinha acompanhada de algunssignificativos acréscimos: “Como é que eu vim parar aqui? Vocês devemsaber? Justo aqui. Porque eu não procurei outro lugar em Porto Alegre? Têmtantos... Se eu soubesse o que era esse tratamento nem teria começado,agora não posso mais ir embora, tenho que ficar pensando coisas que antesnem passavam pela cabeça. Porque tu não respondes? Eu não devo ser aúnica que pergunta.”

Desdobremos algumas coisas que estas poucas frases fazem pen-sar.

Em primeiro lugar “eu” também não sabia como ela tinha ”vindo parar”na instituição. Embora houvesse investigado os motivos da procura a estainstituição, e havia muitos explicitados clara e tranqüilamente nas primeirassessões, a pergunta persistia e com vantagens para o andamento do caso.Parece ser justamente neste tipo de pendência que o desejo do analistapode sustentar-se, como elemento que do seu lado deve estar presente an-tes de qualquer enlace transferencial, como possibilidade e suporte para ele.Mas é certo que houve uma escolha e quando a questão retorna já inclui umenigma sobre o desconhecido que a comandou. Revela também sua impo-tência para sustentar-se no que conquistou e inscrever-se perante o Outro,

RAMOS, L. N. Como é que eu vim parar aqui.

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SEÇÃO TEMÁTICA

neste caso nomeadamente a cidade, cheia de lugares que poderia buscar.Poderia mas não o fez e o que fez foi sem sabê-lo – mais motivo para considerá-lo como um encontro – e correu o risco de não sustentar-se como desejo edesfazer-se pela vontade. Até aí talvez não tenhamos nada muito diferenteda clínica privada.

O elemento diferencial presente em muitos casos acolhidos pelo Ser-viço é que neste tipo de pergunta a instituição não está de fora ou de formaindiferente. Ao contrário. A jovem confirma a escolha como irrevogável, aomesmo tempo que se endereça ao analista encarregado de acolher seu pe-dido. “Porque tu não respondes?”. Um importante momento de trabalho dademanda que vem endereçada à instituição – e portanto não pode serdesconsiderada, porque é dela parte essencial, “vocês devem saber” – e oenlace dela com um analista em particular. Indagando-se sobre a instituiçãoabre-se para que se pergunte em que “outros lugares” poderia estar sem “sera única”.

Não respondo. Porque não sei o que a conduziu até aqui. Essa ques-tão é já endereçada ao Outro, e o Outro não sabe. O sujeito supõe que oOutro saiba. “O Outro é o depositário dos representantes representativosdessa suposição de saber, e é isso que chamamos de inconsciente, namedida em que o sujeito perdeu-se, ele mesmo, nessa suposição de sa-ber” 1. O Outro não é um sujeito, é um lugar ao qual nos esforçamos portransferir o saber do sujeito, e a perturbação surge dessa suposição indevida,que o Outro saiba, que haja um saber absoluto. “Esse sujeito suposto saber,temos que aprender a prescindir dele em todos os momentos” 2, porque im-plica o extravio do sujeito. E o extravio do sujeito não quer dizer sua confu-são de indivíduo, mas a perda de sua condição desejante. Refere-se a uma

1 LACAN, Jacques. A identificação. (1961-1962). Publicação para circulação interna doCentro de Estudos Freudianos de Recife – 2003, pg. 24.2 Idem. Pg 29.

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alienação e a um rompimento do sujeito com as referências que organizamseu lugar de desejante, um apartamento de seu inconsciente, o que é bemmais dramático. Eis porque um analista não responde e opta por tentar sa-ber do que, mesmo tão enigmático, ainda assim subjaz à demanda. A pró-pria analisante se pergunta por “isso”. Que tenha lugar.

Os percursos de cada um ao longo da vida perfazem uma trajetórianem sempre evidente para si mesmo ou para os próximos e, para a psicaná-lise, este pode ser um indício de que tal trajetória foi comandada por dese-jos, também por recalques. Muitos pedidos de análise vêm acompanhadosda expectativa de que numa instituição não seja cobrada implicação, o quelonge de denunciar más intenções revela a grandeza do Outro, tão sapientee poderoso que poderia dispensar a indagação sobre os significantes dosujeito, do que o trouxe até ali.

A grandeza do saber suposto à instituição, à psicanálise ou mesmo àpsicanálise lacaniana – já que nem todos os que pedem análise a APPOAsão leigos – se evidencia de muitas maneiras. Esta é apenas uma delas, aindicar a responsabilidade com a resposta, da instituição e dos analistaspraticantes que acolhem estes pedidos. Algo que não sancione um saberabsoluto, mas reverta tal suposição, que se ampara em imagens do eu ideal,em referência simbólica, na passagem pela palavra que circunscreve o realna transferência.

Não é raro que no endereçamento à instituição e na acolhida peloanalista surjam elementos que se cruzam de diversas maneiras. Por exem-plo: APPOA e analista serem designados no imaginário de entrada como“sujeitos supostos poder”. O saber institucional seria sem faltas e não have-ria corte entre ambos. O “vocês” comanda tal suposição, que não sem moti-vos evoca as piores suspeitas, num retorno paranóico devastador sobre es-tes sujeitos. Nenhum saber haveria do seu lado. Alerta aí! O analista sabeque não sabe e que nem todos os colegas reunidos saberão tanto. E não porele ser um principiante, que não leu todos os textos ou não tem o suficientede análise e formação. Sua saída está no fato de que os traços simbólicosde sua filiação institucional, operantes na formação e na prática clínica o

RAMOS, L. N. Como é que eu vim parar aqui.

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SEÇÃO TEMÁTICA

castraram para sempre e podem ser evocados. Um analista tem direito aeles, pois sabe do que o nomeia e estes significantes servem de amparo aoabsoluto, introduzem algo singular na escuta rompendo a suposta continui-dade. Portanto, tenha-os à mão, eles são uma espécie de “carta de crédito”,garantia de que castração não equivale à ignorância, ou não haverá possibi-lidades de análise para o caso e o analista corre o risco de tornar-se umdevedor para com seu analisante. E o será num plano ético.

Noutros casos: a instituição sabe, mas o analista, tão só, se deixaráenganar. Ótimo, ele se deixará mesmo. Desde que sua solidão diga de suaresponsabilidade por seu ato e não se confunda com ideal de autonomia doeu que aí ameaça – e para isso será também a consistência de sua filiação,da destituição narcísica, que operará como referência – há chances de algointeressante se desdobrar. Possibilidades podem se abrir, pois o saber po-derá se construir do lado do sujeito.

Outra situação freqüente: instituição e analista são os mais confiáveis,mas...”não posso pagar por isso e não quero prejudicar vocês”. Entretanto,vieram e continuaram vindo, o que lembra outra referência de Lacan: “O quehá de certo é que a riqueza tem uma tendência a tornar impotente” e “...introduz a necessidade de rodeios”, ...“o rico é forçado a comprar, já que érico. E para se recuperar (entenda-se, para recuperar o sujeito perante oobjeto) para tentar reencontrar a potência, ele se esforça, comprando, emdepreciar. Para isso, o modo mais simples, por exemplo, é não pagar. As-sim, ele espera provocar o que jamais pode adquirir diretamente, a saber, odesejo do Outro.” 3 Certo, mas ele não operará se não for simbolizado viaamor de transferência. O rodeio quanto ao monetário só circunscreve o pontomais aterrorizante: ser soterrado pelos objetos positivados, sem Outro. Hámuitas destas ocasiões a confirmarem que a clínica em instituições, mesmoque procurada também por pessoas com poucos recursos financeiros nãoequivale a uma clínica para pobres, nem para ricos, mas pode ser um lugarpossível para os destituídos do que mais vale: a condição subjetiva.

3 LACAN, Jacques. A transferência. Jorge Zahar Editor, 1992, Rio de Janeiro, pg. 346.

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As maneiras como se organizam as demandas são variadas e ocor-rem em muitas instituições inclusive não psicanalíticas, de qualquer formaos laços são organizados por discursos e constatamos que quando a práticase desenvolve na instituição de formação a relação do analista com ela fazparte da articulação do desejo do analista, da demanda do interessado, dafutura transferência e também do que deverá cair sem perder eficácia simbó-lica.

Neste caso a moça até poderia ir embora, mas reconhece que nãopoderia mais ir como se nunca tivesse vindo, como se suas palavras nãomais a interpelassem, como se seu ato pudesse ser anulado retornando aalgum momento anterior a seu pedido e dizer.

Não tem algo homólogo na posição do analista? Ele exerce sua práti-ca fora da sua instituição de formação, pode mesmo deixá-la, mas não pode-rá retroceder quanto aos efeitos de sua formação, da posição inconscienteque dela resultou.

Certamente esta não é a única especificidade de uma clínica que seorganiza tendo a instituição como garantia do lugar terceiro, da dessubjetivaçãodo analista e como parte integrante da transferência. Mas vemos o quantoela é convocada como testemunha de uma operação na qual o sujeito visacolocar em questão sua impotência para inscrever-se perante os demais esustentar-se nos circuitos fálicos, supondo que a instituição e seus analis-tas sabem, podem ou devem acolher sua impotência ou desamparo. Estassão análises com outros bem presentes. Os pares da instituição que, para oanalisante encarnam o âmbito do coletivo, do qual se vêm excluídos, com-pondo o jogo do singular e do conjunto onde operam as identificações.

Variantes significativas, que são movimentos resultantes da posiçãodo sujeito na atualidade, da posição da psicanálise na cultura, de um lado desujeitos que demarcam um certo movimento de parada, afinal eles vêm “pa-rar aqui”, fazer uma certa ancoragem, quase que lançados por um movimen-to desconhecido, paralelos aos movimentos de uma instituição que se pro-põe à interlocução com a pólis e à inscrição da clínica psicanalítica nela.

Que haja todo um imaginário a fragmentar suficientemente fazendo

RAMOS, L. N. Como é que eu vim parar aqui.

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SEÇÃO TEMÁTICA

uma certa dobra que permita um enlace transferencial ao lugar simbólico deonde fala o sujeito, para empreender uma análise, não chega a ser novidade,é sempre assim, a implicação nunca chega pronta. O que toma certo relevoé que na instituição isto implica também o conjunto da instituição, que preci-sa ater-se ao que cerca esta prática para intervir nela como lhe cabe, já queconvocada, mesmo que não diretamente, na transferência.

Tais pedidos permitem pensar também a demanda de analistas quequerem iniciar sua prática e também se endereçam à instituição pedindo umlugar de exercício. Elas não são endereçadas ao Serviço de AtendimentoClínico, portanto, não lhe cabe a resposta. São endereçadas à APPOA comoinstituição de formação e acolhidas como tal pelas instâncias responsáveis.Mas a recorrente suposição de que o Serviço de Atendimento Clínico poderiaconstituir um espaço de prática para os iniciantes faz que nos ocupemoscom o que há aí de comum.

Vale observar que as demandas de análise endereçadas ao Serviço eas de prática, endereçadas à APPOA como instituição de formação, preci-sem se haver com a mesma suposição imaginária de que a instituição teriao que falta, o saber e os pacientes, ambos em posição de objeto. É efeito dopróprio discurso psicanalítico que a instituição seja alvo delas, na medidaque não desconhece os enlace dos três registros. Como responder a estasdemandas é sempre uma questão delicada e exige um trabalho que implicaa sustentação de princípios gerais quanto à formação e conduções singula-res conforme se expresse cada pedido.

O engano pode ser da mesma natureza das demandas de algunsanalisantes, vêm perpassadas pela necessidade de referente, e talvez preci-se percorrer uma mesma trajetória, permitindo tal dobra, de forma a produzirinserção e possibilidades de desdobramento de um desejo, sem equivaler taloperação à conquista de um lugar que, como para todo sujeito, só se fundaráno exercício da palavra como ato singular, no tempo e lugar que cada umconstruir se encontrar um endereço.

Diz Ítalo Calvino que as cidades, como os sonhos, são feitas de dese-jos e medos, talvez por isso seja possível vir sonhar numa instituição.

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UMA EXPERIÊNCIA DE CLÍNICAPSICANALÍTICA NA APPOA

Carlos Henrique Kessler

Inicialmente vou propor uma questão acerca de uma denominação quetem recorrentemente sido enunciada, a da ‘Clínica da APPOA’. Parece-me que, a rigor, ‘A’ clínica da APPOA é aquela que todos nós, integrantes

da APPOA, fazemos. E isto não apenas nos nossos consultórios, mas nasdiversas práticas que tenham como suporte uma perspectiva clínica de tra-balho norteada pelo resto deixado pela travessia da experiência analítica decada um. Isso nos diferentes âmbitos: da saúde, educação, empresa, oumesmo a “céu aberto”. Enfim, onde haja um associado da APPOA, alguémde alguma forma atravessado pela transmissão que nela se produz, lá estaráa clínica da Associação em causa. Esta clínica seria então, desse ponto devista, tentacular: a clínica de cada um de nós, ligados à APPOA, em trans-ferência com seu ensino, transpassado pelos efeitos de transmissão e con-seqüente formação por/em (n)ela produzidos.

Passemos agora a falar de uma experiência clínica que tem se dadona sede da APPOA, e há quase tanto tempo quanto tem a instituição deexistência. Inicialmente cabe situar algo sobre os diferentes momentos queacompanham este projeto. Ele surgiu a partir de um primeiro pedido de aten-dimento que fora dirigido à instituição – não a algum analista em particular,como é usual ocorrer. Então, a partir de um primeiro pedido de análise apa-rentemente exótico, por ter tido este peculiar endereçamento, mas que é tãosingular quanto qualquer outro pedido o seria, decidiu-se buscar um modopara acolher a esta e outras futuras demandas de atendimento que fossemdirigidas à instituição. Parece-nos importante destacar essa primeira ex-pressão de um desejo formulado para a instituição, o qual por sua vez tam-bém mobilizou nela – particularmente àqueles que foram sensíveis ao cha-mado que se deu a partir desse primeiro endereçamento – um interesse emformular uma acolhida que fosse psicanaliticamente bem fundada.

KESSLER, C. H. Uma experiência de clínica...

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SEÇÃO TEMÁTICA

Havia, em função de uma inércia, tendência à adoção de uma soluçãoseguindo os moldes já estabelecidos para este contexto na cidade1, em queos atendimentos eram feitos por algum tipo de ‘aprendiz’ e por isso o fariama preços baixos e/ou pré-fixados, com objetivos ou duração limitados2. NaAPPOA, decidiu-se por outro rumo, mais trabalhoso, de buscar uma elabo-ração diversa. Entendeu-se, suponho, ao não se adotar o mesmo modelo jáconsagrado em outras instituições, que apenas as ‘boas intenções’, basea-das no bom senso e ligadas ao ideal de expansão da psicanálise para ummaior número de clínicos e analisantes, não seriam suficientes. Por sinal, foinesse contexto que se deu o estabelecimento da obrigatoriedade da análisedidática e de uma formação normatizada na IPA, a partir da já referida expe-riência de Berlim (vide GAGEIRO, 2005). É como se estas obrigações pu-dessem conter tudo o que é preciso saber para alguém se tornar analista.Lacan, não por nada, no Seminário XVII, toma a burocracia como a maispura expressão do discurso universitário. Quando se supõe que um saberpreviamente estabelecido possa dar conta de toda a verdade, tangenciamoseste rumo. Na APPOA, buscou-se então ficar atento a um mínimo de princí-pios, ética e analiticamente situados. Cabe então destacar como uma con-seqüência dessa decisão, a proposta de que o acolhimento dessas deman-das ficaria sob a responsabilidade de Membros Praticantes. Esta condiçãoinstitucional implica um passo que é preciso ser dado por aquele que assu-me essa posição: ter formulado o movimento-ato de se declarar à instituiçãocomo praticante. Implica reconhecê-la como instância legítima naquilo queconcerne a formação analítica daquele que assim se declara. Portanto, oMembro Praticante reconhece formalmente a instituição como instância le-gítima naquilo que concerne à sua formação analítica. Conforme, consta nanossa Ata de Fundação:

1 Modelo próximo das práticas universitárias-liberais, tomadas inclusive pela psicanálisedesde a experiência inaugural do Instituto de Berlim na década de 20 do século passado.2 O princípio destes atendimentos, para quem os procura, parece ser algo como: “se nãoposso me tratar com aquele reconhecido analista, escolho alguém que estude/supervisionecom ele”; ou seja, uma análise transferencialmente ‘por tabela’.

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“Assim, a Associação: (...) Admite como membro quem testemunhade um interesse pela psicanálise que a Associação reconhece como funda-do e produtivo. Um membro pode anunciar à Associação que ele clinica epedir a ser inscrito como membro praticante. É certo que relativo aos seusmembros que desenvolvem uma prática clínica (membros praticantes), aAssociação, embora não garantindo esta prática como analítica, assumeuma responsabilidade de fato que ela não pode negligenciar.”

Vemos aí inclusive outra dimensão da transferência à instituição, to-mada como local de formação e reconhecimento. Essa foi, aliás, uma dasconstatações desse tempo de trabalho: existem vários ângulos pelos quaisse dá a transferência à instituição.

Retomando, como marca inicial desta proposta surgiu esta de tentardar conta – clínica e teoricamente –, com tudo o que isso implica, destasdemandas dirigidas à instituição. Desde o início, supôs-se que outras viriame a Instituição tinha interesse em se ocupar e seguir se interrogando acercade como tomá-las. Sabendo-se que existe uma demanda na cidade que édirecionada a instituições, a APPOA se propôs a acolhê-las, sem que issoimplicasse repetir mecanicamente as soluções prontas. Muito já se andoudesde esse tempo inicial. Muitos de nossos Membros, em diferentes mo-mentos e circunstâncias dessa experiência, já nela se engajaram. O acolhi-mento desse tipo de demanda também passou por momentos variados emfunção de propostas e denominações distintas (Seção Clínica; Fórum; Servi-ço de Atendimento Clínico), conforme ia se elaborando qual o possível tipode acolhida que tal pedido deveria ter. Não irei me deter a detalhar todosestes momentos institucionais, mas sim vou procurar salientar alguns movi-mentos que tiveram desdobramentos clínicos, para compartilhar com os de-mais associados um pouco do que constituiu nossa experiência até aqui eassim permitir integrar demais interessados na sua elaboração.

Assim, passamos de um primeiro momento em que, tão logo surgis-se o pedido, este era encaminhado a um integrante da comissão responsá-vel pelos atendimentos, em seu consultório. Posteriormente, passou a sefazer a acolhida inicial na instituição, mas ainda tendo como referência idea-

KESSLER, C. H. Uma experiência de clínica...

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SEÇÃO TEMÁTICA

lizada o atendimento no consultório, sendo o final das entrevistas prelimina-res o limite para esta passagem. Naquele momento parecia inconcebíveluma análise que se desse em uma instituição. Quando decidimos que oatendimento poderia ali se dar, se operou uma alteração radical, com a con-seqüente consolidação de uma demanda estável, com atendimentos queprosseguiram. Dessa forma, o atendimento passou a ter duração indeterminadana instituição. Pois, se a pessoa procurou a instituição, por, sejam quaisforem os motivos – sempre singulares –, estes devem ser respeitados, aco-lhidos e trabalhados. Não há porque inserir aí uma questão que não é dela –passar o atendimento para o consultório – a não ser que algo específico oautorize, o que teria que ser visto em cada situação.

Uma medida aparentemente prosaica acompanha este momento: assalas foram equipadas com mobiliário próprio a uma sala de atendimento(inclusive divã), não mais àquele comum a todas as demais salas. Estamedida, que pareceria acessória, incidindo no que se costumava chamar de‘setting’, por mais que aparentemente incidisse em algum espaço entre osregistros imaginário-real, operou um deslocamento simbólico. Algo de um‘autorizar-se’ aí se inscreveu. E não só para os integrantes do Serviço, masem relação a aposta original da instituição quanto a esse tipo de atendimen-to. Em relação ao âmbito interno da APPOA, passou a haver um crescenteinteresse de outros Membros Praticantes para integrar a equipe do Serviçode Atendimento Clínico. Também temos recebido vários encaminhamentos,efetuados por associados e freqüentadores do ensino, o que são indicadoresde uma presença institucional na instituição. Em relação ao âmbito externoà instituição, já há alguns anos temos uma procura constante de mais pes-soas buscando análise, não mais uma busca esporádica. Destacam-se pes-soas indicadas por outras que já estão/estiveram em atendimento, estudan-tes universitários, moradores do bairro, etc... A APPOA aparece agora comouma opção, definida pela transferência propriamente à instituição, que sediferencia pela forma como o atendimento é realizado.

Outro elemento que também marcou esta trajetória foi a passagem daresponsabilidade pela organização dos Exercícios Clínicos para o Serviço de

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Atendimento Clínico. Isso foi importante para os integrantes da comissão,porque permitiu abrir a discussão de temas até então travados internamenteapenas; assim como também permitiu acompanharmos propostas de outrosintegrantes da APPOA, buscando sempre, em trabalho prévio junto à comis-são, acentuar o interesse clínico desse momento, levando ‘para fora’ da Ins-tituição, o Serviço de Atendimento Clínico. A circulação da palavra nestasreuniões de trabalho foi muito rica.

Esta clínica há alguns anos vem se consolidando. Tem uma presençaconstante em vários âmbitos na instituição, entre seus membros e na cida-de. Supomos que isto foi se constituindo através destes ‘atos clínicos’ queocorreram, desde que: a) houve o ato inaugural de acolher aquela primeira etalvez já mítica demanda, com a definição de quem se ocuparia de acolhê-lae as que se seguissem; b) quando ocorreu a definição das salas de atendi-mento, incluindo a mobília própria e o atendimento por tempo indeterminadona sede da Instituição; c) se assumiu a responsabilidade sobre os Exercíci-os Clínicos. A marca desses distintos momentos sendo então de um ato,onde o desejo dos analistas se inscreveu no sentido de viabilizar que, naque-las circunstâncias, análises ocorressem, o que se revelou decisivo para asituação que temos hoje. E surge agora um novo momento de concluir, inclu-sive pelos textos desse número temático, o que talvez possa vir a dar condi-ções para um relançamento desta experiência.

Assim vem sendo dado seguimento ao projeto relativo à inserção daAPPOA na cidade. Esta clínica segue disponível a quem procura atendimen-to. Um primeiro pedido foi tomado pela instituição como representante deoutros tantos que deveriam advir, só que, naquele primeiro instante assimnão se deu. Expressava mais um desejo institucional que outra coisa. Preci-samos de um tempo para compreender. Os que têm assumido o trabalho daíoriginado, de dar conta do que seria esta demanda, acolheram a tarefa –atravessados por seu desejo, evidentemente – proposta pela instituição, delidar com esta forma específica de demanda.

Para demandas singulares dirigidas à instituição, penso que estamosem um rumo correto. Isto não é contraditório, seria sim suplementar a uma

KESSLER, C. H. Uma experiência de clínica...

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outra formulação, para uma acolhida de demandas formuladas por institui-ções à nossa instituição. Para isto, o que até aqui fizemos não deu conta.Talvez agora já seja a hora de pensar nos efeitos disso e na conveniência deagudização desta direção, da tomada de outra, ou ainda uma terceira alter-nativa, dados os limites que temos obtido com esta proposta.

PS: Se muito aqui nomeei ‘a APPOA’, ‘a instituição’ é porque, confor-me tem surgido em nossas discussões, este atendimento só tem como sedar mantendo a dimensão de uma transferência com a instituição. É umacondição necessária para sua existência e ‘prestância’ que o Serviço deAtendimento Clínico esteja engajado no projeto vigente na APPOA, que oabriga, o que tem que ser ‘atualizado’ permanentemente.

REFERÊNCIAS

Associação Psicanalítica de Porto Alegre. “Ata de fundação”. Porto Alegre, 1989.GAGEIRO, A. M. “A prática da supervisão em psicanálise: uma breve história.” In:

Correio da APPOA, ano XII, nº142, dezembro de 2005.

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PINK, SUA ANALISTA E O OUTRO INSTITUCIONAL

Siloé Rey

OServiço de Atendimento Clínico da APPOA vem dedicando-se a ofe-recer análise também para as crianças. É dessa experiência quequero recortar alguns elementos que nos permitam avançar em tor-

no da ampla questão de fundo: há especificidades no exercício da práticaanalítica dentro da instituição? Questão que nos toma, entre os que estamosempenhados na experiência de acolher em análise os que se endereçam anossa instituição. Quais as especificidades dessa prática? O nome, o lugar,o saber, a produção atribuídas à instituição, que efeitos operam entre os queparticipam da experiência? E quando um dos sujeitos da questão é umacriança, será que isso produz ainda outras especificidades?

Vou defender a tese que sim, com o intuito de relançar o debate, jáque o caráter provisório é a marca de qualquer reflexão produzida no interiordo olho do furacão da experiência.

Vamos lá, então. Vamos partir de algumas especificidades da análisede crianças, campo que não cessa de interrogar os preceitos da psicanálisee de produzir aberturas para a sua interrogação. Se há uma premissa dapsicanálise que não se contesta é de que a infância é o tempo do estabele-cimento da Verdrängung. Tempo da construção da ficção do sujeito, portan-to. Assim como na análise do adulto o interesse está no reconhecimento dovalor de verdade intrínseco à ficção que o sujeito se constrói para dar contado recalcado, o trabalho da análise de uma criança está na ordem da própriaconstrução dessa ficção. Ou seja, isso que constatamos ao trabalharmosna dimensão de uma escuta em transferência, de uma captura ao interior daficção do paciente, a dita neurose de transferência, incide singularmente nacondução da análise de uma criança. Se é bem verdade que a posição daescuta analítica parte da tomada de distância para produzir a operação dedissociação entre o fático e o ficcional e, aí, interpretar ao pé da letra, comonos lembrava Jerusalinsky (2006) em uma aula sobre a transferência, tam-

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bém é verdade que isso se problematiza sobremaneira na prática com ascrianças. A tomada de distância, própria da escuta, adquire a especificidadede que, na análise de criança, o analista entra não só “falando a ela o tempotodo”, de acordo com Bergés e Balbo (1997), como com seu corpo. Decorredaí que na análise de criança o analista também é interpretado, seja porquese lança a “emprestar significantes”, seja porque entra com seu corpo ou asrepresentações de seu corpo, quando é convocado a desenhar ou modelar.

Vamos tomar um recorte clínico: trata-se de uma menina que agoraestá com sete anos, que vou chamar de Pink. Este nome parte de umareferência muito apropriada, que me ofereceu quem ocupa o lugar de“governanta” em nossa instituição ao me anunciar sua chegada, dizendo“acho que é ela doutora, pois tem um ponto cor de rosa lá no portão”. Pink éa filha que restou de um casamento desfeito. Seus pais, ao se separarem,rapidamente constituíram novas uniões, com novos filhos, e ela é tomadacomo um resto de uma relação fracassada para eles e como a representantede cada um de seus pais para seus novos companheiros. Não preciso dizerque isso a posiciona no lugar de quem sofre toda uma carga de rejeição erivalidade, bastante pesada, ao ponto do pai não poder informar a sua atualmulher que busca Pink na escola dois dias por semana, pois isso seria lidocomo facilitar a vida da ex-mulher. Pois bem, chega para tratamento aoscinco anos com uma queixa específica de se recusar a ficar na casa do paie de uma inibição na relação com os adultos, que constrangia os pais emsuas relações sociais. Descubro em seguida que também apresenta bron-quite asmática, mas os pais não conseguem ler aí algo de psíquico. Noinício esse tratamento se desdobra, além das entrevistas com o casal, emalgumas situações com a presença do padrasto, e da escuta da própriacriança, em uma intervenção de várias entrevistas com o pai, buscando sus-tentar sua posição, abalada por suas imaginarizações sobre a pregnância dapresença do padrasto no convívio com a filha.

Pink engaja-se imediatamente no tratamento: o brincar de cuidar eser cuidado num jogo especular é o que predomina. Mas ocupa-se tambémde dramatizar relações em uma grande família, com marcada presença de

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tios e seus filhos, onde a questão da circulação do dinheiro e das trocas émarcante. Pouco a pouco, percebo que um outro elemento se introduz emnosso trabalho: a figura da ”governanta” de nossa instituição foi bastanteimportante num determinado momento, já que passei a utilizar sua figurapara mediar as relações com a casa, se podíamos invadir outros espaços,se podíamos utilizar algum material emprestado da secretaria, como tesou-ras, sendo que Pink, aos poucos, vai tomando voz ativa nessas negocia-ções.

Após pouco menos de um ano, o tratamento é interrompido pelospais, sob a alegação de que ela estava muito bem e que não tinha maissintomas, e sob os protestos de Pink. Vários meses depois da interrupçãoela retorna, sua rebeldia está insuportável, queixam-se que ataca os parcei-ros dos pais e eles não sabem mais o que fazer com ela. Fora isso, há umagravamento importante em suas manifestações de asma. Em uma sessão,após uma internação hospitalar por uma crise de asma, ela chega portandouma sacola plástica, que deixa atirada em cima do divã. Pergunto sobre aexperiência do hospital, diz que foi bom, que a comida era melhor do que ada casa da avó, onde almoça diariamente e não gosta de ficar. Imediatamen-te, me convoca para fazermos uma dobradura que vai me ensinar. Construí-mos, dobrando papel, a representação de um cachorro. Cada uma faz o seu.No final ela me diz que teremos que desenhar a carinha, que faço no meucom olhos grandes e expressivos. Quando vê meu desenho reclama que osolhos que fiz não eram para ser assim, pois era a família dos olhos peque-nos. Ela havia feito a carinha de seu cachorro com apenas pontos represen-tando os olhos. Conforma-se dizendo que o meu será uma cachorra, “a es-tranha”. Quando dá por pronto o trabalho, despeja o conteúdo da sacola quehavia trazido. Para minha surpresa, não contei, mas havia umas cemdobraduras, de diferentes tamanhos, com um casal parental claramente de-finido. A partir daí desdobramos um brinquedo por toda a sessão onde, emmeio às manifestações de carinho dos pais com sua prole e do sexo entreos pais, “a estranha” tentava ser incluída na família. Em alguns momentos aproposta dos pais de origami era de “vamos enganar ela que a gente ama”,

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com dramatizações onde “a estranha” entrava no engodo, para logo após sernovamente rejeitada e se frustrar.

Deduzir o tipo de objeto partir das catexias mobilizados transferencial-mente é o que Freud já havia nos ensinado. A inclusão do analista na histó-ria, e a maneira singular como isso se opera na clínica da criança, possibilitacontar de outra maneira o quanto é difícil perder a referência do desejo dospais e continuar existindo, quando ainda se tem sete anos. Sabemos que éa partir do lugar que a criança cava no desejo dos pais que ela “se encontrarácom a estrutura, a cultura que comporá sua humanidade” (Bernardino, 2006,p.27). É desde esse lugar que poderá extrair as diversas significações quelhe permitirão decifrar tanto seu mundo interno quanto o mundo que a rodeia,e que poderá constituir sua subjetividade, seu próprio desejo.

De acordo com o raciocínio antes citado de Jerusalinsky (2006), ope-rar na transferência requer uma operação de dissociação entre o fático e oficcional, e uma depuração dos afetos, transformando-os em instrumentosinterpretativos. É justamente no exercício dessa função, que recebo o “aestranha” como minha própria mensagem de forma invertida (Lacan, 1956).Quem é essa estranha mulher, que brinca como criança e que a olha expres-sivamente? Logo para ela que, em meio à pequena morte que a crise deasma encena, acha melhor a permanência no hospital do que a dureza (dafalta) dos cuidados familiares.

Como diz Mannoni (1999)“qualquer demanda parental de cura em relação a uma criança deve

ser, inicialmente, situada no plano fantasmático dos pais, compreendida, emseguida, ao nível da criança (será que se sente concernida pela demanda decura? Como utiliza sua doença em suas relações com o Outro?). A criançasomente pode engajar-se em uma análise por si própria se estiver segura deque serve a seus interesses e não aos dos adultos” (p.80)

É certo que os pais sempre estão implicados no sintoma da criança,por sua relação intrínseca aos fantasmas parentais. A criança é produtodesse discurso coletivo que nela fala, e que nela resiste. A condução dotratamento é feita por um jogo de transferências recíprocas, buscando-se

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que a posição do analista seja “para além dos humanos, verdadeiramente a‘magia’ do verbo que age (como um oráculo) sobre a criança e os pais”(p.86). Mas, para que “sirva aos interesses” da criança, é necessário suacaptura em uma dimensão imaginária da transferência, para que, em outrotempo, o desdobramento de sua dimensão simbólica possa se efetivar. Em-bora saibamos que a experiência analítica não é uma experiênciaintersubjetiva, para que a criança não sucumba à resistência, é necessário oestabelecimento de uma relação imaginária com a pessoa do analista. E nocaso, o analista está ali, com seu corpo, se representando com seus gran-des olhos e sendo interrogado em sua estranheza.

E é justamente aí que identifico que o que é próprio disso que chama-mos de transferência institucional opera de um jeito interessante na análisede uma criança. O atravessamento do institucional na prática analítica emuma instituição situa, pelo lado da criança, o analista numa dimensão deoutro, já que ambos estão submetidos ao Outro institucional: a casa não édo analista, os brinquedos não são do analista e o analista, tanto quanto acriança, está submetido às leis do que é permitido ou não dentro da casa daAPPOA, enunciadas pela “governanta”. Pelo lado do analista, a responsabi-lidade de uma prática onde, além de seu nome, há a responsabilidade pelonome da instituição, por sua produção e pelo saber da psicanálise, tambémlhe favorece a “magia do verbo”, permitindo-lhe falar à criança e a seus paisdesde outro lugar, já que é “do lugar do pai simbólico que uma mensagempode voltar à criança e permitir-lhe situar-se, como sujeito de desejo, fora deum jogo de equívocos conduzido até então, com a cumplicidade dos adultos”(Mannoni, 1999, p.94)

REFERÊNCIASBERGÈS, J. & BALBO, G. A criança e a psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas,

1997.BERNARDINO, Leda Mariza Fischer (org). O que a psicanálise pode ensinar

sobre a criança, sujeito em constituição. SP: Escuta, 2006JERUSALINSKY, A. aula sobre a Transferência na Infância. APPOA, Jan/2006LACAN, Jacques. O seminário sobre “A carta roubada” (1956). In Escritos. SP:

Perspectiva, 1978.MANNONI, Maud. A criança, sua “doença” e os outros. SP: Via Lettera, 1999.

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TRANSFERÊNCIAS

Maria Cristina Petrucci Solé

Aprática psicanalítica do Serviço de Atendimento Clínico da Associa-ção Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) sempre me suscitou inú-meros questionamentos em decorrência da forma original como este

foi concebido. Original, pois é uma prática que não partiu de uma concepçãojá estabelecida de clínica institucional ou de uma fórmula extraída de umoutro tipo de serviço, repetindo aqueles já existentes. O modelo de atendi-mento praticado no Serviço foi se estruturando no decorrer do seu própriotrabalho. A pesquisa psicanalítica resultante da clínica praticada nos levou amontar o modo com que hoje se realizam os atendimentos.

A história do Serviço de Atendimento Clínico pode denotar as diferen-tes mudanças que ele sofreu ao longo de sua existência. Mudanças motiva-das pela escuta dos pacientes que procuraram atendimento na sede da ins-tituição psicanalítica. Uma dessas modificações realizadas no modelo deatendimento construído pelo serviço incidiu no local/lugar onde este se reali-za. Local/lugar físico aonde a análise se desenvolve mas, também, lugar nadinâmica da instituição ou da vida institucional.

Nos primeiros anos do Serviço de Atendimento Clínico, os pacientesque procuravam a APPOA para análise eram encaminhados diretamente,desde a primeira entrevista, aos consultórios dos analistas engajados nessetrabalho.

Estas demandas de análise endereçadas a instituição, desde o prin-cípio, têm como balizador a impossibilidade da escolha do analista que rece-beria o paciente. O futuro analisando não escolhe o nome a quem é dirigido.O analista que irá recebê-lo é indicado pela instituição entre aqueles quefazem parte da equipe do Serviço de Atendimento Clínico.

Os motivos que haviam levado aquela pessoa a buscar um atendimen-to psicanalítico em uma instituição eram escutados ou não a partir da clinicaparticular de cada analista.

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As dificuldades decorrentes desse mecanismo fizeram com que osanalistas que compõem a equipe de atendimento permanecessem por longotempo questionando seu funcionamento.

Esses questionamentos, sustentados na escuta clínica, levaram-nosa conclusão de que quando alguém busca uma instituição para análise, apre-senta uma transferência inicial com essa, mesmo que inicialmente possanão ficar muito clara esta relação transferencial, ela não pode ser descon-siderada.

Penso que entender esse tipo de demanda, a uma instituição, comodecorrente de uma falta de informação da pessoa que busca análise de comoescolher um analista ou a quem recorrer, ou como uma questão econômica,uma realidade de dificuldade financeira, seria simplificar algo que é bem maiscomplexo.

É bastante específica a transferência que se origina a partir de umademanda de escuta não dirigida a um analista em particular, mas a um ana-lista anônimo que faça parte da equipe de atendimento de uma instituição.Isto é, uma demanda de análise dirigida a uma instituição e não a um nomeespecífico, uma demanda de escuta dirigida a um Outro institucional.

Quais as articulações deste tipo de transferência? Como se apresen-tam as transferências dirigidas a um lugar de saber, a um discurso ou o queisso significa para cada um?

A transferência que leva alguém a buscar o Serviço de AtendimentoClinico da APPOA é sustentada no lugar que a instituição ocupa na pólis,esse lugar vai suscitar em cada sujeito um modo diferente de possíveis trans-ferências e suposições.

O suposto anonimato que a instituição proporciona para aquele quebusca, a garantia de que não estará “comprometendo-se irremediavelmente”com um nome, a garantia de que “saberá de antemão que poderá pagaraquilo que vai lhe ser cobrado” são alguns dos motivos que levam alguém abuscar análise em uma instituição.

Num primeiro momento do Serviço, quando o encaminhamento erafeito ao consultório privado, antes mesmo do analista receber esse sujeito

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na sede da instituição, a demanda não era acolhida. Nem mesmo essatransferência era privilegiada. A demanda que era dirigida à instituição nãoera escutada, e se rompia com a transferência estabelecida com essa pre-cocemente.

Supomos que em decorrência disso uma grande parte daqueles queprocuravam o serviço não davam início a uma análise.

“Maria, procura a APPOA para análise. Desde a primeira entrevistame pergunto o que a leva a buscar atendimento em uma instituição. A res-posta que aparece de imediato é uma dificuldade financeira que não meconvence nem um pouco.

Ao relatar sua história, percebo que desde que saiu precocemente dacasa paterna para estudar, esteve envolvida com instituições, nas quais sesentia sustentada: o pensionato, a escola das freiras, o emprego em umagrande empresa, a profissão paterna e a vontade de ingressar no serviçopúblico. A partir dessas informações, que não apareceram de imediato, eupercebi que Maria buscava análise em uma instituição porque supunha nelasum lugar de garantia e de acolhimento. Ficando claro para mim que não eraa carência financeira o que havia motivado sua escolha, mas o que ela supu-nha nas instituições em geral. Mesmo sendo esse o motivo alegado por elae que em nenhum momento lhe tivesse sido dito que ali ela pagaria um valormenor do que em uma clínica privada.”

As discussões do Serviço, as repercussões delas na APPOA e aescuta de várias outras Marias, levaram ao entendimento que fez com quehoje os candidatos à análise e os analisantes sejam atendidos na sede dainstituição, somente depois de transcorrido “algum tempo” de análise o paci-ente será derivado ao consultório privado. Que tempo, então, será esse?

É necessário que essa transferência com um saber, com um local/lugar de garantia, ou com um discurso, seja encaminhada para um outro aser colocado no lugar de sujeito suposto saber daquilo que me aflige. Mes-mo que a instituição seja um nome capaz de provocar a transferência, servirde suporte para uma suposição de garantia e de saber, a psicanálise só serápossível a partir da singularização de uma transferência.

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Entendo que a experiência analítica tem inicio em uma relação deamor entre o analista e o analisando e a transferência, sendo uma transfe-rência de amor dirigida a um sujeito.

“Maria tem muito medo daquilo que os vínculos podem lhe ocasionar,está sempre querendo se desfazer do emprego, desde cedo mora muitolonge da família, várias vezes foi morar no exterior, e está se separando dohomem com quem vive porque este lhe demanda ’como a uma mãe’.

Pergunto-me sobre o que a leva a buscar a APPOA para tratamento,considerando que todas suas irmãs estão em tratamento com outrosterapeutas e dessa forma ela poderia ter uma indicação de um nome. Ainstituição, a ausência de um nome, de um sujeito que acolha seu pedido,dá a garantia de que ela não precisará estabelecer vínculo com alguém, oanonimato da instituição a protegerá. A paciente é filha de um casal quepossui vários filhos, traz como relato o fato da mãe não ter podido cuidar detodos com o mesmo zelo e que em conseqüência disso sente-se meio solta,sem lugar, sem singularidade, acrescento. Não será uma repetição dissoque Maria busca ao ser atendida em uma instituição? Mais uma pacienteentre tantos, que ela supõe ser, não ser amada como filha única e estabele-cer vínculos frágeis?

A derivação para o consultório privado sem considerar essas ques-tões levará Maria a começar a faltar às sessões e a tentar ’fechar as portas’,como ela diz. Ter vontade de trancar-se em casa e, ’não ver ninguém’, omotivo pelo qual ela busca análise. Fará com ela se sinta ameaçada pelapossibilidade do amor de transferência, exatamente daquilo que ela imaginaestar protegida em uma instituição.”

Quando no consultório privado se inicia uma análise, algo já está es-tabelecido com aquele analista que o paciente procura. Ao marcar o horário,seja porque alguém nos garantiu, seja pelo que supomos, a transferênciacom ele já se iniciou. No que se refere à instituição, esta transferência preci-sa ser dirigida, redirecionada, transferida para o analista que vai atender opaciente.

Considerando esse entendimento de que alguém busca uma institui-

SOLÉ, M. C. P. Transferências.

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ção por motivos referentes ao seu fantasma e a seu mito individual, essatransferência não pode ser desconsiderada e o sujeito ser conduzido a umoutro local de atendimento na primeira entrevista, ou como acontece emalguns outros serviços, o paciente ficar atrelado à instituição mesmo quandoo terapeuta se desvincula dela.

A questão que passa a se colocar nesse modelo do nosso trabalhoserá sobre o espaço físico aonde essa análise irá se desenvolver. A institui-ção abre um lugar para que a análise ocorra, no entanto, a partir do momentoem que as questões que levaram o sujeito a buscar uma suposição na insti-tuição se modificar para uma transferência com o analista que o acolhe, elepoderá ser derivado ao consultório privado. Mas, apenas após essa viradatransferencial.

Aproveito-me do duplo sentido da palavra transferência para expor umdos problemas que essa prática acarretou a minha escuta: transferência naconcepção freudiana e transferência de local de análise, no sentido de mu-dar algo de lugar, utilizado por Freud em um primeiro momento.

A partir do entendimento de que o pedido de análise dirigido a umainstituição tem, para quem faz a demanda, um sentido na história de seusintoma, seria mais adequado acolher esse pedido respeitando o espaçofísico para o qual ele era encaminhado. No entanto, para que efetivamenteocorra uma psicanálise, será preciso que um inconsciente se dirija a outroinconsciente, assim, o paciente deve se dirigir ao analista que o recebe enão mais a instituição.

Desta forma, podemos optar por atender por um “determinado tempo”na sede da APPOA e, após esse “tempo”, transferir o paciente para o con-sultório privado.

Surgiu-me então, a partir dessa prática, o questionamento sobre qualseria o “tempo” adequado para essa transferência. Essa derivação se dariatendo como parâmetro o tempo cronológico? Isto é, depois de uma semana,uma sessão, duas horas? A partir da estrutura subjetiva do sujeito? Ou apartir do estabelecimento de uma transferência com esse analista em parti-cular? Uma demanda de escuta não mais dirigida anonimamente a uma

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instituição, mas a um outro colocado no lugar de sujeito suposto saber?A partir dessa transferência estabelecida com um analista que será

nomeado de “fulano, meu analista”, mesmo que atravessado e sustentado pelainstituição, será possível derivar o paciente ao consultório privado sem o riscode não escutar o atravessamento da instituição no fantasma desse paciente.

A essa derivação chamo de transferência de lugar, para salientar quese trata duplamente de um processo sustentado no estabelecimento da trans-ferência, que será simultâneo ao momento da entrada em análise.

Esse processo realizando-se antecipadamente, atropelado, pode rom-per a transferência com a instituição. A escolha que o paciente realiza: eu teescolho meu analista e te demando escuta, é sempre anterior a escolha doanalista: eu te aceito como paciente e te demando que me fale. Na institui-ção, cabe ao analista provocar no paciente o desejo de lhe falar e lhe dirigir atransferência, mesmo que ele tenha ido ali em busca de outro suposto saber.De outro modo, se a transferência fica dirigida à instituição e nunca édirecionada ao analista, o processo analítico fica comprometido.

Encaminhar para o consultório logo na primeira entrevista era atirar ospacientes na arena dos leões de que eles tentavam fugir. Todas as fantasiaseram ativadas e ficava no “depois eu chego lá e não tenho garantias de quepoderei pagar o preço pedido”.

A instituição e a possibilidade de poder pagar pouco pela sessão ga-rante que não estou comprometido irremediavelmente.

O paciente pode se supor não escutado em sua transferência. Emcontra partida, se a transferência não se singulariza, se o paciente continua“sendo da instituição” e não daquele que o escuta, não importa em que localfísico, o tratamento pode não se constituir em uma psicanálise, ficando atre-lado a um processo burocratizado.

“Maria me diz olhando para o divã que não se acha preparada paraestabelecer vínculos. Busca uma terapia apenas para decidir qual profissãoescolher, não para submeter-se a uma psicanálise, acha que não está pre-parada para novamente “ir tão fundo nas suas coisas”. E, apesar disso, voltatodas as semanas.”

SOLÉ, M. C. P. Transferências.

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“...Nas primeiras vezes, talvez se possa pensar que o tratamentoanalítico esbarrou numa perturbação devido a um evento casual – isto é, umevento não desejado e não provocado pelo tratamento.

Quando, porém, semelhante vinculação amorosa por parte do pacien-te em relação ao médico se repete com regularidade em cada novo caso,quando surge sempre novamente sob as condições mais desfavoráveis eonde existem incongruências positivamente esquisitas, até mesmo quandosenhoras de idade madura se apaixonam por homens de barba grisalha, atémesmo onde, conforme julgamos, não há nada, de espécie alguma, capazde atrair – então devemos abandonar a idéia de uma perturbação casual ereconhecer que estamos lidando com um fenômeno intimamente ligado ànatureza da própria doença.

Esse novo fato que, portanto, admitimos com tanta relutância, conhe-cemos como transferência. Com isso queremos dizer uma transferência desentimentos à pessoa do médico, de vez que não acreditamos poder a situ-ação no tratamento justificar o desenvolvimento de tais sentimentos. Pelocontrário, suspeitamos que toda a presteza com que esses sentimentos semanifestam deriva de algum outro lugar, que eles já estavam preparados nopaciente e, com a oportunidade ensejada pelo tratamento analítico, são trans-feridos para a pessoa do médico... Na ausência de tal transferência, ou se atransferência fosse negativa, o paciente jamais daria sequer ouvidos ao mé-dico e a seus argumentos. Aqui sua crença está repetindo a história do seupróprio desenvolvimento; é um derivado do amor e, no princípio, não precisade argumentos. Apenas mais tarde ele permite suficiente espaço parasubmetê-los a exame, desde que os argumentos sejam apresentados porquem ele ama. Sem esses apoios, os argumentos perdem sua validade; ena vida da maioria das pessoas esses argumentos jamais funcionam”. (Freud,S. conferência XXVII – Obras Completas, versão eletrônica)

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TRANSFERÊNCIA E ENDEREÇAMENTOSNA ESCRITA E NA PALAVRA

Márcia da R. Lacerda Zechin

Certamente nem todos que buscam atendimento numa instituição psi-canalítica tem uma idéia, mais ou menos acertada, acerca da escu-ta que se dará no decurso das sessões. Alguns – talvez até mais do

que pensamos – nos perguntam como se dará o trabalho, o que afinal é umaanálise, se devem dizer qualquer coisa ou algo em específico, ou ainda,apenas responder a perguntas dirigidas por quem os toma em tratamento.Fazem questões também em torno da técnica, da ética, do para que serve odivã e como se faz para chegar lá, etc...

No que diz respeito ao Serviço de Atendimento Clínico da APPOA,penso que a chegada dos pacientes inúmeras vezes também sofra esteprocesso. É igualmente óbvio que muitas pessoas não são tão desavisadasassim, e até mesmo “sabem” exatamente a que uma análise se propõe.

Coloco aspas no sabem1, porque mesmo que este saber circunscrevauma experiência anterior qualquer na psicanálise – tanto aproximativa, comonela mesma – ou ainda, de cunho informativo – porque ouviram falar sobre,estudaram a respeito, etc – sempre se procede uma nova experiência a servivida ali, na transferência, e que convocará um descompasso em torno doque realmente virá a se “saber” . De um começo a que se pensa em tratar(aquilo que traz alguém a consultar) para a continuidade do que de fato seinicia. Ademais, sabemos que a quantidade de informação não garante oinevitável do encontrar-se com o que não se sabe.

O que faz cada um aventurar-se numa análise, o modo como chegam,se permanecem muito ou pouco tempo, ou até mesmo se desistem antes

1 Grifo da autora.

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mesmo de iniciar, não são propriamente interrogações desinteressadas àpsicanálise. Também não estão circunscritos apenas aos levantamentos “es-tatísticos” de uma determinada instituição acerca da demanda de tratamen-to ou mesmo, do endereçamento que tal instituição tem no social. Estaquestão está intrinsecamente ligada, no início e em toda a sua extensão, àanálise mesma, naquilo em que ela assume enquanto aposta/proposta aacolher. È também sob muitos viéses que podemos tentar refletir/repercutir oassunto.

Tomei como eixo central a noção de transferência, já que ela é sem-pre providencial, pois como nos diz Lacan em seu seminário XI, nos dá aces-so, de maneira enigmática, a esse indeterminado de puro ser que não temacesso à determinação. Essa posição primária do inconsciente que se arti-cula como constituído pela indeterminação do sujeito.

Não será este engimático o principal responsável pelo bem sucedidode toda análise? Para entendermos isto, penso que a noção de recalqueprimordial ou originário nos é bastante esclarecedora. No dicionário de psi-canálise de Chemama, encontramos, na definição a partir da perspectivalacaniana, o recalque originário como aquele que produz um traço que nãose desfaz, que vem junto na transferência primeira, no que cola, que é pulsante,mas que não aparece, é evanescente.

Está neste ponto o foco de interesse do que pretendo articular aqui, epara pensar esta questão, trago dois textos em particular. Um psicanalítico eo outro a partir da literatura. O primeiro trata-se do ensaio sobre a transferên-cia, de Gerard Pommier, intitulado “O amor ao avesso”. O segundo, trabalha-do pelo autor no primeiro capítulo de seu livro, refere-se a um texto de ClariceLispector, “A paixão segundo G.H.”, mais especificamente a sua parteintrodutória.

Quando coloca a transferência enquanto portadora da possibilidadede lançar a outrem – este último, como uma aparência detentora do mistérioda significação fálica – um saber que escapa, porque concernido ao corpo,mas abrigado nos pensamentos, Pommier não nos deixa totalmente à vonta-de para pensarmos que tudo então está resolvido.

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Ele acrescenta que esta aparência nos é remetida, e que ela estariaao nível da transferência originária, absolutamente neutra, que segundo ele,se existisse, seria a título de uma conseqüência do recalque originário, por-tanto, problematizada na mesma condição daquele, na impossibilidade deassumir uma forma, condicionado sempre no engendramento de outra coisa:as transferências secundárias, plurais, sendo estas as que garantem a trans-ferência como mola mestra da cura analítica.

É neste ponto de intransponibilidade – pois não se trataria de outracoisa diferente disso – que avança buscando apoio na literatura, circunscre-vendo a escrita como lugar privilegiado. Sendo esta detentora de uma vanta-gem sobre a palavra, a saber, a de preservação do endereçamento anônimo,o da presença desencarnada, mesmo com o inconveniente de apagamentodesta presença.

Diz ele: “Raros são os escritores que chegam a evocar a própria coisacomo suplemento de seus resultados, que eles atualizam. (...) ClariceLispector dá ao leitor a impressão de aproximar este ponto de origem, quetoda presença esconderia” (p. ).

Mas no que diz respeito à clínica psicanalítica, mesmo com estainacessibilidade inerente, deixa entrever que um caminho existe, e que nãose trata da tentativa de homogeinização de heterogêneos (aquilo que, serealizável fosse, nos colocaria na posição do autor em relação à folha embranco, enquanto portadora de um anônimo, um sem forma e sem ros-to?), nem tampouco de fazer uma pura transposição, ou junção de um cam-po a outro. Mas apenas mais um suporte para pensarmos sobre a nossaclínica.

Ao relatar um caso, o do Sr L., Pommier também nos faz perceber oquanto a nossa escuta se faz escuta da demanda de amor. O analista, es-tando na transferência, num lugar precariamente neutro, dividido pelamultiplicidade das transferências, uma divisão que não abriga nenhuma iden-tificação em particular, mas institui força ao trabalho de análise, muitas ve-zes fica na condição de relançamento do próprio dispositivo analítico àquilo aque se pretende tratar. No caso deste paciente, as mínimas intervenções do

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analista a um lapso apontam o apoio que as transferências plurais dão àtransferência no singular.

Ao manter-se na contradição das transferências,como sujeito dividi-do, pode sustentar uma e outra face do que anima o analisante. Só isto pôdepossibilitar que o Sr. L., notavelmente, isolasse a função paterna, naquiloque encontramos no segundo tempo do Édipo: a proibição do incesto desa-lojada pela lei simbólica assegurada via desejo materno.

Ouvindo a posição deste homem diante das mulheres, a mãe e asoutras, e a figura do pai, muito mais como uma criação intelectual, do quepropriamente o da realidade, pode desnudar-se a função paterna como osalvaguardo da excessividade do amor materno e também revelar o seu pa-pel de tirano.

Voltando ao seminário XI, quando fala a respeito da presença do ana-lista, Lacan também nos avisa: “(...) a interpretação do analista não faz maisdo que recobrir o fato de que o inconsciente já procedeu por interpretação(...) o Outro já está lá, em toda abertura do inconsciente, (...) e a transferên-cia é o meio pelo qual se interrompe a comunicação do inconsciente, peloqual o inconsciente torna a se fechar. Longe de ser passagem de poderes aoinconsciente, a transferência é, ao contrário, seu fechamento” (p. ). Mascontinua, mais adiante, dizendo que o que causa radicalmente o fechamentoe que comporta a transferência, é o objeto a.

No exemplo acima, o analista ficou convocado inúmeras vezes a fazereco aos pensamentos para ele dirigidos, principalmente na posição de “acei-tar” a indeterminação do inconsciente, escapando do risco de qualquer es-forço intelectual de compreensão2, que faz barreira à desnodulação do sinto-ma.

Qual então poderia ser o ponto aproximativo, a ponte entre o lugar deum endereçamento, remetido ao que Pommier colocou como transferênciaoriginária, e o que Lispector aponta em seu texto como mais radical, a ne-

2 Grifo da autora.

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cessidade de ter alguém a quem endereçar seu escrito, mesmo que fingindodar a mão a uma pessoa qualquer, para ter a coragem de ir, ir mesmo, paraa enorme ausência de forma, lembrando o sono como lugar demonstrativodesta angústia, aquele em que, quando se perde a coragem, se sonha. Pen-so que a ligação que podemos fazer não fica resumida a uma análise dotexto, como uma escuta analítica, tampouco seria um convite a lermos omesmo como se faz na interpretação de um sonho, mas talvez, de umaleitura que possibilitaria acesso àquilo que se desfaz no momento mesmoda instauração de uma análise, mas que foi, parafraseando Pommier, numtempo edênico, o desencadeador da mesma, e que ficará ali sempre latente,nas manifestações e em seus efeitos na palavra?

Clarice Lispector apresenta já no seu primeiro parágrafo a questão daprocura ligada a uma tentativa de entender. Ambos, procura e entendimento,estreitamente vinculados a uma necessidade de dar a alguém aquilo o quese vive/viveu.

Pommier, ao tentar examinar a constância do impulso secreto queleva cada um a falar (na análise), refere-se à necessidade humana de tomarem algum semelhante o lugar de interlocutor inevitável para o endereçamentode todo e qualquer pensamento. Neste ponto de sua reflexão, analisa oassujeitamento à palavra de que ninguém escapa. Aqui começa o seu traba-lho de mapeamento da transferência. Circunscreve isto em relação à própriaformação do inconsciente à título de uma conseqüência do recalque, “resul-tante de um primeiro amor cujo trauma faltou esquecer” (p. ). Desenvolveadiante que a análise se dá graças a um inanalisável – a demande de amor– que ela não cura, mas que se interessa por suas conseqüências sintomá-ticas.

A falta convocada pelo amor é inicialmente um sem forma e sem nome.E é a partir de uma impossibilidade de representar, de nomear, que se en-gendra um amor que não concerne inicialmente a ninguém em particular, oua ninguém que permita dar-se uma forma, ou refletir-se.

Em seu texto, Lispector nos dá mostras disto de uma maneira angus-tiada, ao mesmo tempo que desejada, como num caminho sem volta, até

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mesmo como de uma necessidade pulsante, irrecusável em dar início a suaescrita. Fica cega nisto, parece demonstrar que há uma força maior impelin-do-a neste ato. E liga o ato à condição de sustentação de sua própria exis-tência, num esforço por deixar subir à tona um sentido, qualquer que seja.Aqui, nos diz que este esforço seria facilitado se personagem, e porque não,também a autora, fingisse escrever para alguém.

Lacan, ao falar acerca da imagem do corpo, afirma que é no espaçodo Outro (A) que o sujeito se vê, o ponto de onde ele se olha também estánesse espaço e é bem aqui, também, que está o ponto de onde ele fala, poisno que ele fala, é no lugar do Outro (A) que ele começa a constituir essamentira verídica pela qual tem começo aquilo que participa do desejo no níveldo inconsciente.

Bem, Lispector discorre longas páginas falando acerca de uma vonta-de incontrolável de falar, pela escrita, algo que não pode mais ser omitido,apesar de reconhecer que só perdendo o medo do feio, da falta de estética,de anunciar aquilo que mais se teme ver surgir, é que pode encontrar-se, nosentido de não sucumbir à morte de si. Acaso, não é isso que também se dáem muitos inícios de tratamento? Aqueles que escutamos talvez nem sai-bam disso e, menos ainda, de tudo o que vão ser capazes de dizer ali, massabem também que se trata de um caminho sem volta, passagem esta quedesejam percorrer, mesmo que não tenham forças suficientes.

Para terminar esta reflexão quero lembrar o que Pommier nos diz arespeito da proteção à solidão que alguns escritores fragilmente buscaramna folha de papel branco: não testemunharão com mais vantagem a origina-lidade da transferência – sua neutralidade anônima – que as falas múltiplas,a imensidade das tagarelices a renegam a partir do momento em que ela seenuncia, pois a palavra renega infindavelmente o que a leva adiante, sempreinocente de seus esquecimentos, cujos traços, em troca, a escrita permiteexaminar. Mas não esqueçamos, ele alerta que raros escritores conseguemevocar a própria coisa como suplemento de seus resultados atualizados.

Está bem, a palavra escrita, sobre a falada, leva vantagem nisso, maso desejo, em ambas, faz distinção em relação ao objeto evanescente? Mes-

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mo que por caminhos distintos e também com conseqüências outras, sejafalando a um outro, ou escrevendo esta fala, é inegável que o que propulsionaestes dois atos diz respeito àquilo que Lacan nos apontou como o desejoreferido ao que não se deixa apreender, ao nada, como sua causa única.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Chemama,R. Dicionário de psicanálise. Porto Alegre:Artes Médicas, 1995.LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jor-

ge Zahar, 1985. 125p.Lispector, C. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.Pommier, G. O amor ao avesso, ensaio sobre a transferência em psicanálise. Rio

de Janeiro: Companhia de Freud, 1998. 21p.

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SEÇÃO TEMÁTICA

ENTRE O DINHEIRO E O AMPARO:A DEMANDA PELO SERVIÇO DE ATENDIMENTO CLÍNICO

Sandra Djambolakdjian Torossian

Um texto breve, as letras custam a aparecer na tela do computador.Escrita lenta. Um desafio: escrever sobre o Serviço de AtendimentoClínico. Na tessitura do texto surgem questões várias vezes discuti-

das. Emergência de novos olhares e deslocamentos. Um trabalho cuidadosoque viemos construindo ao longo destes anos.

O vai-e-vem das discussões, as voltas e revoltas, o mesmo tema apa-recendo inúmeras vezes para o debate pelo grupo que se interroga cotidiana-mente sobre a escuta clínica que fazemos na APPOA, transforma-se numprocesso vagaroso de escrita. Desafio aceito. Estão aí, colegas leitores, algu-mas idéias iniciais, transformadas em texto por movimentos de bricolagem.

A demanda de tratamento dirigida ao Serviço de Atendimento costu-mava chegar, nos anos iniciais do meu trabalho no Serviço, organizada apartir de um pedido relativo ao dinheiro. As pessoas chegavam solicitando“pagar menos” ou “pagar pouco”. Certamente esses enunciados iniciais da-vam lugar, ao longo do processo de análise, a outras enunciações, nas quaiso “pagar”, o “menos” e o “pouco” ganhavam novos coloridos.

O pedido inicial vir em função do dinheiro, não é, como já sabemos,uma novidade para a psicanálise. Sobre isso podemos recorrer a Freud quenos lembra a temática do dinheiro ao falar sobre o início do tratamento. Onosso trabalho, no entanto, desenrola-se num cenário no qual o valor dasessão ganha um colorido especial. A dificuldade em pagar passa a ocuparum lugar central nas falas de quem nos procura. Essa fica enlaçada e seamplia a partir da inscrição cultural das instituições como locais possíveisde tratamento na cidade.

Se isso se deu num primeiro tempo do trabalho do Serviço percebe-sehoje um deslocamento nos modos de demandar: diminui-se a iluminação dodinheiro como “motivo central da procura pela instituição” para dar lugar àvalorização do estar sendo escutado/escutada numa instituição psicanalíti-ca. A ênfase começa a recair então, não sobre o valor a ser pago, mas no

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valor que a instituição tem para o sujeito. Uma volta no enlace entre pedidoinicial – inscrição cultural da instituição.

Os momentos iniciais, atualmente, vêm enunciando um pedido deacolhimento no qual a instituição tem um papel fundamental. Várias são aspossibilidades de leitura desse deslocamento, vários os sentidos que pode-riam emergir ao colocar esse deslocamento em análise.

Uma das possibilidades é olhar para a inserção dos analistas no Ser-viço e conseqüentemente para os efeitos dos debates na nossa escuta.Essa via é profícua e nos levaria, também, a perguntar o que faz laço nestegrupo de analistas que se reúnem sob o nome Serviço de Atendimento Clíni-co da APPOA. No entanto, nos desviaremos deste caminho de análise parapensar esse deslocamento da demanda, considerando a APPOA como umlugar possível de escuta analítica encontrada na cidade.

A demanda, organizada a partir de um pedido centrado no valor a serpago, pode ser tomada como um primeiro momento de transferência no qualaparece sublinhado o endereçamento institucional. Essa solicitação vemmarcar o lugar usualmente ocupado pelas instituições quando se trata dedemandar atendimento “psi”.

Se tomarmos a via empreendida por Freud ao tratar das questõesrelativas ao dinheiro numa análise, encontremos a já muitas vezes mencio-nada idéia de que o tabu em relação ao dinheiro é semelhante ao tabu sobrea sexualidade. Vale a pena, no entanto, questionar se essa afirmação conti-nua válida na contemporaneidade. Trata-se ainda de um tabu em relação aodinheiro e à sexualidade, ou essas questões estariam hoje atravessadaspela política do excesso e do desamparo? Com isso não queremos dizer queainda não permaneça um tabu, mas que a leitura pela via do tabu é, hoje,insuficiente. O “pagar”, o “pouco” e o “menos” não ganhariam novos sentidosna lógica do excesso e do desamparo?

A acolhida pela via institucional emerge não mais na valorização deum “a menos”, mas pela via do “a mais”. A APPOA apresenta-se como umlugar de reconhecida trajetória de trabalho clínico. Além disso, a demandaorganiza-se, também, em torno da formação psicanalítica. No trajeto entre odinheiro e o amparo o Serviço de Atendimento Clínico inscreve-se na cidadecomo um lugar possível de escuta psicanalítica.

TOROSSIAN, S. D. Entre o dinheiro e o amparo...

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SEÇÃO TEMÁTICA

CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO DINHEIRONA PSICANÁLISE NA INSTITUIÇÃO

Gláucia Escalier Braga

Não há lugar específico para o dinheiro numa análise. Tampouco eleocupa nela o mesmo estatuto que lhe é conferido no campo sócio-econômico.

Diríamos que o lugar do dinheiro numa psicanálise é o lugar do luto,lugar este que rememora o vazio, o nada... segundo Pierre Martin, “lugar deuma angústia”; lugar virtual de uma possível resistência do analista, na medi-da em que o gesto de corte implicado no ato de pagar, ao final de umasessão, leva cada analista a rememorar seu próprio autorizar-se, ou seja,seu confronto com a castração.

O dinheiro, como significante, comparece na direção da cura comoum elemento discursivo, pontual: como pontuação analítica se encontra najunção do real e do simbólico.

O analista, enquanto função analítica, já está presente na economiado analisando. Em todo início de uma análise o ato de pagar se comportanuma atribuição de significado, onde o dinheiro vai se travestir de signo deuma troca: nas entrevistas preliminares, o analista é o detentor, ou o supos-to detentor, de um saber, e o dinheiro se inscreverá como signo da troca dodiscurso por um saber, este suposto saber colocado no analista.

Esta é sua demanda inicial, mas, na medida em que a análise avan-ça, a moeda presente no ato de pagar ocupará um outro registro, conseqü-ência estrutural da própria simbolização que se faz presente.

O dinheiro está presente no registro do significante que representará osujeito, não para alguém ou outro sujeito, mas para outro significante.

Então, se é a lei do significante que ordena a linguagem no discurso,a relação do sujeito com o desejo e a demanda volta a ser posta em causaatravés do dinheiro.

Na situação analítica, o analisando é aquele que trabalha e, além

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disso, paga por sua própria produção. Se o analisando paga com suas pala-vras, o analista também paga com alguma coisa: o corpo que ele empresta,num silêncio em que se restaria a ser sua própria mortificação. Donde aincidência do silêncio do analista evoca, a cada mudança discursiva, aquiloque o analisando perde numa análise.

O analisando só vai à análise para perder: é o destino de uma desti-tuição subjetiva, a perda de uma subjetividade e suas certezas egóicas.Perde sempre e coleciona suas perdas para reincidir ao nada de sua deman-da e, quem sabe, a partir daí, ele possa falar como sujeito desejante. É opreço que custa uma simbolização.

Se o dinheiro é o traço de corte, é porque ele representa o próprio dosignificante mestre que resgata a castração: é o que demarcará a condiçãode uma perda. Perda esta que não é senão a resultante de um gesto que seinscreve no ato de pagar por toda uma psicanálise.

Se o que custa uma análise é o preço da emergência do desejo, quecoloca o sujeito diante do vazio de sua falta a ser, ou seja, o confronto coma castração, só resta ao sujeito pagar o preço de uma identificação com osignificante do pai simbólico, identificação esta que o remeterá, sem pieda-de, à regência da função metafórica do pai simbólico, enquanto pai morto epuro significante. Se uma análise custa caro (e aqui o preço é maior para oanalista) é que esse preço de uma análise é o preço que custa a emergênciadeste significante primordial: custa o máximo que o sujeito pode pagar.

Por isso é que cada analisando tem seu preço quanto à sua análise.Ninguém paga mais ou paga menos do que ninguém, só que sempre pagam.Não há análise gratuita e muito menos congelada. Paga-se sempre. Pagampara perder, nem que seja a obscenidade e a arrogância de serem analisandos,mas sempre pagam.

Mas e como pensar na direção de uma análise dentro de uma institui-ção? Lugar associado, em princípio, a um pagar menos. Menos... menos doquê, menos para quem? De que economia se trata?

Parece que essa busca de um pagar menos é o efeito de uma resis-tência e o resultado de um equívoco do próprio demandante de uma análise.

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SEÇÃO TEMÁTICA

O sujeito não faz a mínima idéia de que ele já entra pagando e sempre maiscaro do que ele supõe...e não importa o endereçamento que faça: nominalou institucional. O efetivo endereçamento é outro e é esse que importa.

A relação com o dinheiro passa pelo investimento, que é a forma comocada um se relaciona com sua energia libidinal. O dinheiro, fazendo as vezesdo objeto perdido, entra em cena desde a primeira hora como o que se perdepara garantir uma perda de gozo do sintoma, já em questão quando se pro-cura um analista.

É exatamente por isso que o sujeito precisa pagar, já que o dinheiroserve para amoedar o capital da libido e esse preço não pode ser negligenci-ado, questão para a qual Freud chamava atenção desde o início da psicaná-lise. Para ele, o sintoma seria uma satisfação libidinal substitutiva, aliás, omelhor investimento do capital do sujeito, para quem, ficar doente é obteralguma vantagem. Há um benefício secundário, além da satisfação pulsionalque o sintoma proporciona, onde o sujeito lucra com isso, que é o que Lacanchama de gozo do sintoma.

Dentre outras coisas, o benefício do sintoma está vinculado à questãodo dinheiro. Na análise, através da transferência de capital, do sintoma, paraum objeto que é o analista, há um corte na economia de gozo do sujeitoincluído na “doença”, e não é fácil abrir mão desse gozo, o que acarretadificuldades para o analista no manejo da resistência.

Então, se há um pagamento, ou seja, se o analisando investe sualibido, e esse valor é o que ele está podendo e devendo pagar nesse momen-to, estamos respeitando a ética da Psicanálise. O sujeito está sendo priorizadoe esse dispositivo produz efeitos.

E por que buscar uma análise numa instituição? Onde, para começode conversa, a transferência é com a instituição. Quem chega buscandonuma instituição uma análise pessoal parece estar buscando alguma garan-tia. De que garantia se trata? Parece que se alicerça numa suposição desaber que se expressa de uma forma difusa e pulverizada entre os membrosda instituição no laço social. Trata-se da busca da garantia que o nome dopai (APPOA)pode oferecer. Entretanto, me parece, a APPOA ocupa o lugar

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do pai imaginário para o tratamento analítico propriamente dito. Conforme oespaço de escuta avança, vai se processando um deslocamento da transfe-rência, que inicialmente é com a instituição, para a figura do analista, quepassa a ocupar o lugar do pai simbólico e é com este que se viabiliza efetiva-mente a análise pessoal.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BATAILLE, Laurence. O Umbigo do Sonho – por uma prática da psicanálise.Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1994.

CALLIGARIS, Contardo. Dívida e Culpa. Boletim da APPOA número5 Ano 2 Maio1991.

MILLER, Jacques – Alain. A Erótica do tempo. Seminário proferido durante o XEncontro Brasileiro do Campo freudiano: Os circuitos do desejo na vida e naanálise, abril de 2000, Rio de Janeiro.

RAPHAEL, Jackeline Kruschewsky Duarte. Psicanálise e convênio: Uma parceriapossível? 2003. 57 f. Monografia (Especialização em Teoria da Clínica Psica-nalítica) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Fede-ral da Bahia, Salvador.

QUINET, Antonio. As 4 + 1 Condições da Análise. J-Z-E Jorge Zahar Editor (OCampo Freudiano no Brasil), Rio de Janeiro,1991.

BRAGA, G. E. Considerações a respeito...

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SEÇÃO TEMÁTICA

SERVIÇO DE ATENDIMENTO CLÍNICO DA APPOA:REVISITANDO SEUS FUNDAMENTOS

Ângela Lângaro Becker

Depois de alguns anos da criação deste serviço, cabe repensar sobresua função e anunciar algumas das razões que fizeram sua fundação e que o mantêm até hoje. Freqüentemente, nos retorna a razão

fundamental de ter sido criado um atendimento clínico dentro da instituição.Seria, a princípio, para dar conta de demandas que chamamos “anônimas”,isto é, aquelas que não se endereçam a um particular, singular, mas sim aum lugar coletivo que representaria um lugar de suposto saber sobre o mal-estar do viver. Hoje talvez possamos afirmar que o coletivo de que se tratanão necessariamente é um lugar anônimo, pois, embora coletivo, ele temnome próprio. Poderíamos dizer que é a própria psicanálise que é represen-tada pelo nome da instituição. A Associação Psicanalítica de Porto Alegre éreconhecida, num território cada vez mais abrangente, pelas produções efalas de seus membros e também pelos eventos que promove buscandodialogar com várias áreas da cultura. Há um nome que a representa, umsuposto saber que gera demandas, e uma delas é a demanda de uma análi-se, dentro ou fora de um objetivo de formação. Portanto, este tipo de acolhi-mento possibilita que possamos nos ocupar com as peculiaridades de umaanálise que está atravessada pelos efeitos que a transmissão da psicanáliseproduz em relação aos sintomas sociais de nossa época.

A idéia de apostar num espaço institucional como lugar de atendi-mento clínico também é conseqüência do movimento gerado pela luta anti-manicomial. É uma das respostas aos ideais isolacionistas, nos quais aloucura não é vista fazendo parte da vida cotidiana das pessoas. Uma insti-tuição, um lugar coletivo é uma tentativa de resposta, criando um modo defazer clínica que não se afasta dos cotidianos da cidade, possibilitando quenela possam transitar também subjetividades que são o nosso “estranho-familiar”. A idéia é de uma confiança nos espaços públicos como lugares de

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melhor acolhimento das diferenças, idéia de que uma instituição não totalitá-ria oferece múltiplas possibilidades de referência simbólica; portanto, demelhores condições de escuta e de acolhimento do sujeito.

Escutando a fala de Analice Palombini sobre AcompanhamentoTerapêutico, no último encontro de Exercícios Clínicos, organizado pelo Ser-viço, é possível reconhecer as fontes motivadoras que sustentam esta clíni-ca, proposta na APPOA, clinica dentro da própria instituição. Muitos dosmembros que compõem o Serviço trazem na sua prática como analistas nacidade um genuíno interesse pelas diretrizes de uma clínica que transcendeo strictu senso, uma clínica muitas vezes chamada de clínica institucionalou social. Mas podemos pensar que a clinica psicanalítica é uma só. E é apartir desta compreensão que vai nossa preocupação em sustentar e reafir-mar a existência de um trabalho clínico psicanalítico diferenciado de outrosmodelos institucionais existentes na cidade. Na idéia de que a clinica psica-nalítica se faz, antes de mais nada, através de sua ética e não através dosetting que a sustenta.

Um dos desafios que nos move é seguir as recomendações de Freudno seu texto “O futuro da terapia psicanalítica”1, quando recomenda levar emconta as novas expressões da neurose na sociedade e fazer progredir atécnica, desde que levando em conta os princípios éticos que norteiam aclínica strictu senso. A escuta do inconsciente, o enlace transferencial e odesejo do analista são eixos norteadores da prática de cada um dos mem-bros praticantes deste Serviço, na responsabilidade da condução de umaanálise, mesmo levando em conta a necessidade de constantes criações erecriações de dispositivos analíticos. Isso exige da equipe um constanteretorno sobre sua prática. Tudo aquilo que uma burocratização poderia pro-porcionar de respostas rápidas e seguras, desde questões sobre o acolhi-mento pela secretaria e à circulação do paciente pelo espaço da instituição,até as razões de conduzi-lo, ou não, ao consultório privado, são questões

1 FREUD, S. (1910) O futuro da terapia psicanalítica.

BECKER, Â. L. Serviço de atendimento clínico...

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SEÇÃO TEMÁTICA

tomadas na responsabilidade de nossa própria formação. É preciso entãocriar as respostas a partir do desvelamento de nossa prática, na busca deum consenso; um verdadeiro trabalho de pesquisa que implica cada um denós na retomada de sua formação. É a partir de uma práxis compartilhadaque ensaiamos construir e reafirmar nossas posturas éticas para uma clíni-ca institucional. A prática compartilhada nos coloca à prova sobre o paga-mento que o desejo como analista nos impõe:

“Ele (o analista) paga com palavras – suas interpretações. Ele pagacom sua pessoa, pelo seguinte – pela transferência ele é literalmentedespossuído dela. Toda a evolução presente da análise é o desconhecimen-to disso, mas o que quer que seja que ele ache e que seja o recurso-pânicoa the Counter-Transference é bem preciso que ele passe por isso. Não éapenas ele que ali está com aquele com quem estabeleceu um certo com-promisso.”2

A demanda de análise dirigida a uma instituição pode supor uma posi-ção assistencial por parte de quem deve acolhê-la. Isto decorre dos efeitosde uma certa institucionalização do sujeito, provocada pelo engano mesmoque o movimento de des-elitizar a psicanálise produziu. A lógica de mercadositua a felicidade identificada à condição dos bens que se pode possuir. Porisso, a demanda chega com tanta freqüência (também nos consultórios)como pedido de que a instituição ou o analista mesmo pague por ele. Certa-mente que, seja lá onde esta demanda apareça, será a partir de uma deter-minada escuta que aquele que demanda poderá mudar ou não de posição.

“O sentido desse discurso (do falante) reside naquele que escuta,como também é de sua acolhida que depende quem o diz, ou seja, ou é osujeito a quem ele dá sua confiança e autorização, ou é esse outro que lhe édado por seu discurso como constituído.”

“Por conseguinte, o analista detém toda a responsabilidade, no senti-do pesado que acabamos de definir a partir de sua posição de ouvinte.”3

2 LACAN, Jacques. Sem 7. A Ética da Psicanálise. Jorge Zahar, 1988, p. 349.3 LACAN, Jacques. Variantes do Tratamento Padrão. In Escritos. Rio de Janeiro Jorge Zahar,1998, p.333.

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Nem a lógica mercantil, nem o setting de consultório, garantirão asustentação do trabalho analítico. Ela não instalará, por si só, lugares sufici-entes à enunciação e à interpretação. O trabalho do analista, dentro de umainstituição de formação, está no exercício do próprio pagamento que seudesejo de analista lhe impõe. O desafio do serviço de Atendimento Clínico daAppoa é reencontrar-se neste desejo, através das vicissitudes que uma clíni-ca institucional pode apresentar.

“Trata-se de um rigor de alguma forma ético, fora do qual qualquertratamento, mesmo recheado de conhecimentos psicanalíticos, não podeser senão psicoterapia”4.

4 LACAN, Jacques. Variantes do Tratamento Padrão. In Escritos. Rio de Janeiro Jorge Zahar,1998, p.326.

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SEÇÃO DEBATES

O HOMEM DOS RATOS,UM CASO CABEÇA1

LITERATURA DE CORDEL

Paulo Fernando Torres Veras

Inspirai-me oh! Senhor Deus,Que criou tudo o que existe,Vós que dais forças ao fraco

E alegria a quem tá triste.Nos dais até livre arbítrioE amor a quem Vos resiste.

O caso que vou contarEntre certeza e ilusão,Vai servir para mostrarA tremenda confusãoQue atormenta um pacienteQue caiu inconscienteNas garras da obsessão

Lá pra banda das Europa,Na belíssima Viena,Uma jóia primorosa,De beleza não pequena,Desenrolou-se este causoQue neste cordel se encena.

1 Cordel publicado em Fortaleza, dezembro de 2004, pela Tupynaquim Editora.

O jovem desse episódio,Do qual narrarei os fatos,Não se trata de um ladrão,Mesmo vivendo entre ratos,Pois seus “ratos” são mentaisE não seriam jamaisApanhados por mil gatos.

Primeiro é bom que se digaO nome de um figurante.Que foi um grande doutor,E nas ciências, gigante,Vasculhando a mente humanaDesde a infância mais distante.

Seu nome se escreve “Freude”Mas pronunciação,Para ser correta é “Fróide”,Pois se trata de alemão.O pai da Psicanálise.Que procura o que se passaEntre a mente e o coração.

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Quem já esteve no divãDiz que Ciência exata,Em fazendo as regressõesTodo o passado retrata,Limpando a sujeira tristeQue no presente persisteNa dor que tanto maltrata.

Doutor Freud nos relataO caso do seu clientePor nome de Ernst Lanzer,Que visto assim, de repente,Poderia ser taxadoDe abestalhado ou demente.

Mas era um jovem jurista,Nascido na burguesia,Sua família bastadaEra de origem judiaE o coitado de pequenoMuita “neura” já trazia.

Repulsava as prostitutas ...Só aos vinte e seis de idadeÉ que um ato sexualFoi praticar de verdade.Porém, já com cinco aninhos,Da babá entre os carinhosViu a sexualidade.

O garoto curiosoFez à moça seu pedidoE depois de permissão,Entre as pernas e o vestido.Foi explorar a “porteira”Donde teria nascido.

Ela, porém, lhe impôsQue nada dissesse a ninguém...Quem sabe essa condiçãoNão contribuiu, também,Para no fundo da menteAquele gesto inocenteConfundir o mal com o bem.

Depois dessa experiênciaNas regiões genitaisDa sua linda “fronlaine”Esse Ernesto nunca maisDeixou de sair “ brechando”Suas irmãs se banhando,Nisso foi perdendo a paz.

Nessa “neurose” o Doutor,Pai da Psiquiatria,Diagnostica esse malQue o paciente sofria:Desejo mórbido d’olharChama-se ESCOPOFILIA.

VERAS, P. F. T. O homem dos ratos...

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SEÇÃO DEBATES

Aos seis anos, delirando,Tendo muitas ereções,Como faz qualquer criançaNo meio das confusõesRecorreu a sua mãePedindo-lhe explicações.

Por esse tempo sofriaDramas existenciais.Tinha delírios de morteSempre envolvendo seus pais,Com medo que eles soubessemDos seus feitos imorais.

Com doze anos se enamoraPela irmã de um bom amigo,Com paixão sublime e pura,Livre de qualquer perigo,Mas a moça o desprezou,Para seu maior castigo.

Nisso chegou a pensarQue se o pai dela morresseTalvez a moça tivesseNele um pouco de interesse.Mas, logo raciocinouQue o rumo não era esse.

Aos quinze tava envolvidoCom fé na religiãoAos vinte de novo senteUma tremenda paixão,Sem dinheiro para casarPega de novo a pensar:“Meu pai morto é a solução”.

Reprime tais pensamentos,Mas o pai, muito doente,De um enfisema morreu,Quando o filho estava ausente,E por isso se culpava,Sofrendo, terrivelmente.

O pai do moço ao casarDera o “golpe do baú”.No caso a mãe de ErnstEra a dona do tutu.Agora, essa mãe, viúva,Vai por fogo nesse angu.

Arranjou-lhe um casamentoCom uma prima abastada,O jovem filho ficouDe cabeça embaralhada,Deixando a moça que amava,Na pobreza, abandonada.

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Agora, esse nosso heróiSegue o ramo militar.No quartel, outro episódioAcabou de lhe marcar.Quando um cruel capitãoFoi ao fundo do porãoMais um terror lhe mostrar.

Miseráveis condenadoss,Despidos de todos os panos,Submissos à tortura,De seus algozes insanos,“Descomian” ratos vivosEntrando pelos seus ânus.

Em sua cabeça tonta,Um turbilhão de mazela.Vi os tais ratos entrandoNo seu pai e na donzelaQue ele amava e recusouNão se casando com ela.

Já perto dos vinte e cinco,Tomado de obsessão,Pensou cortar a garganta,Mas, conteve a própria mãe.Em vez do sangue vermelho,Foi fazer frente ao espelhoMais uma masturbação.

Ernst passou, então,A visitar funerária,Tinha por tudo que morreSimpatia solidária.Apelidado de abutreDesde muito cedo nutreEssa ilusão temerária.

Estudava noite adentroAs leis e sempre absorto,Abria a porta da frentePara esperar seu pai, morto.Na profissão segue reto,No pensamento, age torto.

Mas Santo deus do Universo,Quero vos pedir perdão,Quando por mais que procureNão vejo uma solução.Para explicar os desviosEntre a mente e o coração.

Às vezes nem Freud explica,Nem a vã filosofia,O que se passa entre o céuE essa velha terra fria.Quanto mais um cordelista

VERAS, P. F. T. O homem dos ratos...

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SEÇÃO DEBATES

Só mesmo estudando muitoAs dores que a alma sente,Vasculhando desde o inícioOs labirintos da mente,Com paciência e humildade,Com ciência e bondade,É que agente entende a gente.

Nossa Psicologia,Sendo a ciência da alma,Só por isso já mereceReceber louvor e palma.Por ter os conhecimentosQue aliviam os sofrimentosNascidos de antigo TRAUMA.

FIM

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RESENHA

O SUJEITO SURDO E A PSICANÁLISE – UMAOUTRA VIA DE ESCUTA

Sole, Maria Cristina Petrucci. O sujeito surdo e a psicaná-lise – Uma outra via de escuta. UFRGS Editora, 2005.183p.

Uma das características mais marcantesda psicanálise, do meu ponto de vista, éa sua inconformidade ao óbvio. No livro

que apresentamos, encontramos um exemplotípico deste caso. Afinal, quando nos reportamosaos primórdios da psicanálise, é recorrente as-sociarmos a idéia que a cura pela fala, a talkingcure, exige a presença da palavra falada e com isso o som associado à fala.Se assim fosse, necessariamente muitos seriam aqueles que estariam alijadosdo processo analítico. Muitos dos humanos que, por algum impedimentoreal, não dispõem da fala ou da audição para poder se fazer sujeito, nãoteriam acesso, ou estariam impedidos de se submeter ao processo analíti-co, tal como formulado inicialmente.

Felizmente, desde os seus primórdios, a psicanálise vem dando mos-tras do seu vigor ao tentar avançar em pontos que parecem pouco afeitos aoseu domínio. Ou seja, a psicanálise progride justamente por meio dosimpasses que são colocados a sua práxis.

Neste aspecto, o livro de Maria Cristina Sole é, desde o seu início,bem servido de questões que impactam ao leitor, por apresentar umaespecificidade pouco discutida no campo analítico. A surdez, não em seuaspecto metafórico (fantasma que assola aos psicanalistas), mas a surdezem sua dimensão propriamente real. Este livro, fruto da tese de doutorado daautora, expõe a clínica psicanalítica, trabalho de muitos anos, conduzidacom sujeitos surdos – basicamente adolescentes ou jovens adultos que so-frem de surdez profunda, de origem congênita, filhos de pais ouvintes – de

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RESENHA

maneira muito profícua. Todos os que praticam a psicanálise sabem as difi-culdades que estão em jogo quando nela se aposta, e sob este aspecto, aautora não abdica do seu quinhão.

O livro está dividido em cinco capítulos. No primeiro deles, a autorafaz um percurso por diferentes autores, tentando identificar “o que é ditosobre a surdez”. Na verdade, a literatura a respeito do tema é abrangente,pois a surdez enquanto deficiência interroga diferentes áreas de saber –educação, medicina, psicologia – mas, no que diz respeito especificamenteà psicanálise, é bastante incipiente. E este é sem dúvida um dos méritos dolivro, pois aproxima do leitor a prática analítica realizada com pacientes sur-dos e a sua devida teorização. Na verdade, é uma das poucas obraspublicadas, no Brasil, que articula a prática analítica com a surdez.

No segundo capítulo, a autora apresenta uma das questões centraise, talvez, das mais intrigantes do seu trabalho. Como trabalhar analiticamen-te com língua de sinais? Poderia até ser óbvio, mas não é assim que ocorre.Afinal, existe, desde Lacan, uma série de interrogações sobre o estatuto dalinguagem na Psicanálise. Então, seria de se questionar qual a dimensão dalíngua de sinais? Se, por exemplo, os pais de uma criança surda não falama língua de sinais, que tipo de transmissão ocorre? Onde se situa a escutadas palavras dos pais? Um dos objetos parciais, a voz, precisaria estar pre-sente em sua dimensão sonora para a constituição subjetiva?

Já no capítulo III, é apresentada ao leitor a dimensão da voz maternacomo sendo a marca primeira que desencadearia o processo de constitui-ção subjetiva no bebê. Para sustentar tal hipótese, a autora utiliza conceitosda psicanalista francesa Piera Aulagnier, além de Freud e de Lacan, que temposicionamentos bastante promissores para o entendimento desta questão,como o prazer de ouvir, ou a sombra falada. Conceitos que de alguma manei-ra contextualizam e servem para o entendimento dos questionamentos pro-vocados pela surdez, mas que servem, também, para a sustentação do tra-balho clínico da escuta de pacientes com esta problemática.

Pois bem, num dos primeiros momentos da constituição subjetiva,quando o real da surdez se impõe, o que ocorre tanto com o bebê que nãoouve quanto com a mãe que não é ouvida? Que tipo de efeitos pode provocar

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RESENHA

esta marca que ocorre com o bebê que está privado desde seu nascimento,ou mesmo com poucas semanas de vida, de escutar o som do mundo?

Estas questões servem para se encadear com o capítulo seguinte, noqual a autora trabalha outro aspecto fundamental da clínica, qual seja: a dordo diagnóstico de surdez de um filho para seus pais e o abalo narcísicoprovocado por esta notícia. Se é verdade que qualquer tipo de “deficiência” écapaz de provocar um impacto no narcisismo dos pais, pelo movimento de“atualização” narcísica que o nascimento de um filho provoca, remetendo-osà constituição do seu próprio narcisismo, haveria que se estudar qual é aespecificidade na questão da surdez. Justamente, por ser uma problemáticaque põe em causa o objeto voz, cabendo pensar em como este objeto nãoentraria no circuito da constituição para o bebê, mas que provoca conseqü-ências, também, na mãe que sente que este objeto que ela “produz” nãoatinge sua meta. É claro que qualquer generalização desde o ponto de vistapsicanalítico seria apressada, mas de qualquer forma, não é difícil pensarnum traço depressivo preponderante entre sujeitos que estão representadoscom este tipo de déficit corporal e de investimento narcísico.

O capítulo que encerra o livro é dedicado à apresentação maisabrangente de uma analisante da autora, no qual ela examina as conseqüên-cias provocadas pela surdez, os impasses, as questões transferenciais, osmomentos resistenciais desta análise. É um capítulo extremamente rico,pois é um exercício extremamente desafiador para qualquer psicanalista re-tomar os preceitos teóricos em que se apóia para conduzir uma análise.

Não seria demais afirmar, e nesse aspecto o livro de Maria CristinaSolé é representativo, que a construção de um caso, a partir de um traço queorganiza a experiência analítica, é sempre um ato impactante. Já que colocaem jogo toda a singularidade a partir do qual o analista posiciona-se frenteaos questionamentos que o trabalho clínico com seu paciente produz. Istosignifica que, longe de implicar uma transmissão de saber, a pesquisa psica-nalítica abre espaço para o confronto com o que lhe é mais próprio, que é afalta que a impulsiona a avançar e resistir ao óbvio.

Veja, leia. Ouça, escute.Otávio Augusto Winck Nunes

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AGENDA

JULHO – 2007

PRÓXIMO NÚMERO

Reunião da Comissão de EventosDia Hora Local Atividade

Reunião da Comissão de Aperiódicos

Sede da APPOA Reunião da Comissão da Revista

A TOPOLOGIA DAS ESTRUTURAS CLÍNICAS

Reunião da Comissão do Correio

19h30min

15h30min

Sede da APPOA

Sede da APPOA

Reunião da Mesa DiretivaSede da APPOA

Sede da APPOA

21h

8h30min

20h30min05

05, 12,19 e 26

09 e 2313 e 2706 e 13

Reunião da Mesa Diretiva Aberta aosMembros da APPOA

19 21h Sede da APPOA

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EXPEDIENTEÓrgão informativo da APPOA - Associação Psicanalítica de Porto Alegre

Rua Faria Santos, 258 CEP 90670-150 Porto Alegre - RSTel: (51) 3333 2140 - Fax: (51) 3333 7922

e-mail: [email protected] - home-page: www.appoa.com.brJornalista responsável: Jussara Porto - Reg. n0 3956

Impressão: Metrópole Indústria Gráfica Ltda.Av. Eng. Ludolfo Boehl, 729 CEP 91720-150 Porto Alegre - RS - Tel: (51) 3318 6355

Comissão do CorreioCoordenação: Gerson Smiech Pinho e Marcia Helena de Menezes Ribeiro

Integrantes: Ana Laura Giongo, Ana Paula Stahlschmidt,Fernanda Breda, Márcio Mariath Belloc, Maria Cristina Poli,

Marta Pedó, Norton Cezar Dal Follo da Rosa Júnior, Robson de Freitas Pereira e Tatiana Guimarães Jacques

ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGREGESTÃO 2005/2006

Presidência: Lucia Serrano Pereira1a Vice-Presidência: Lúcia Alves Mees2a Vice-Presidência: Nilson Sibemberg

1a Secretária: Lucy Linhares da Fontoura2a Secretária: Maria Elisabeth Tubino

1a Tesoureira: Ester Trevisan2a Tesoureira: Maria Beatriz de Alencastro Kallfelz

MESA DIRETIVAAlfredo Néstor Jerusalinsky, Ana Maria Medeiros da Costa

Ângela Lângaro Becker, Beatriz Kauri dos Reis, Carmen Backes,Emília Estivalet Broide, Fernanda Breda, Ieda Prates da Silva, Maria Ângela Bulhões,

Maria Ângela Cardaci Brasil, Maria Cristina Poli, Otávio Augusto Winck Nunes,Robson de Freitas Pereira, Siloé Rey e Simone Kasper

Capa: Manuscrito de Freud (The Diary of Sigmund Freud 1929-1939. A chronicle of events in the last decade. London, Hogarth, 1992.)Criação da capa: Flávio Wild - Macchina

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S U M Á R I O

EDITORIAL 1NOTÍCIAS 2SEÇÃO TEMÁTICA 7COMO É QUE EU VIM PARAR AQUI?Liz Nunes Ramos 7UMA EXPERIÊNCIA DE CLÍNICAPSICANALÍTICA NA APPOACarlos Henrique Kessler 13PINK, SUA ANALISTA E O OUTROINSTITUCIONALSiloé Rey 19TRANSFERÊNCIASMaria Cristina Petrucci Solé 24TRANSFERÊNCIA E ENDEREÇAMENTOSNA ESCRITA E NA PALAVRAMárcia da R. Lacerda Zechin 31ENTRE O DINHEIRO E O AMPARO:A DEMANDA PELO SERVIÇODE ATENDIMENTO CLÍNICOSandra Djambolakdjian Torossian 38CONSIDERAÇÕES A RESPEITODO DINHEIRO NA PSICANÁLISENA INSTITUIÇÃOGláucia Escalier Braga 40SERVIÇO DE ATENDIMENTO CLÍNICODA APPOA: REVISITANDOSEUS FUNDAMENTOSÂngela Lângaro Becker 44

SEÇÃO DEBATES 48O HOMEM DOS RATOS -UM CASO CABEÇAPaulo Fernando Torres Veras 48

RESENHA 53O SUJEITO SURDO E A PSICANÁLISE -UMA OUTRA VIA DE ESCUTA 53

AGENDA 56

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SERVIÇO DE ATENDIMENTOCLÍNICO DA APPOA

N° 159 – ANO XIV JULHO – 2007