Eduardo Geada O Cinema Espectaculo 1987 Ocr

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O CINEMA ESPECTACULO

Arte e Comunicao representam dois conceitos inseparveis. Deste modo, reunem-se na mesma coleco obras que abordam a Esttica em geral, as diferentes artes em particular, os aspectos sociolgicos e polticos da Arte, assim como a Comunicao Social e os Meios que ela utiliza.

Arte e ComunicaoTtulos publicados

1. DESIGN E COMUNICAO VISUAL, Bruno Munari 2. A REALIZAO CINEMATOGRFICA, Terence Marner 3. MODOS DE VER, John Berger 4. PROJECTO DE SEMITICA, Emlio Garroni 5. ARTE E TCNICA, Lewis Mumford 6. NOVOS RITOS, NOVOS MITOS, Gillo Dorfles 7. HISTRIA DA ARTE E MOVIMENTOS SOCIAIS, Nicos Hadjinicolaou 8. OS MEIOS AUDIOVISUAIS, Marcello Giacomantonio 9. PARA UMA CRTICA DA ECONOMIA POLTICA DO SIGNO, Jean Baudrillard 10. A COMUNICAO SOCIAL, Oliver Burgelin 11. A DIMENSO ESTTICA, Herbert Marcuse 12. A CMARA CLARA, Roland Barthes 13. A DEFINIO DA ARTE, Umberto Eco 14. TEORIA ESTTICA, T. W. Adorno 15. A IMAGEM DA CIDADE, Kevin Lynch 16. DAS COISAS NASCEM COISAS, Bruno Munari 17. O CONVITE MSICA, Roland de Cand 18. A EDUCAO PELA ARTE, Herbert Read 19. DEPOIS DA ARQUITECTURA MODERNA, Paolo Portoghesi 20. TEORIAS SOBRE A CIDADE, Marcella Delle Donne 21. ARTE E CONHECIMENTO, J. Bronowski 22. A MSICA, Roland de Cand 23. A CIDADE E O ARQUITECTO, Leonardo Benevolo 24. HISTRIA DA CRITICA DE ARTE, Lionello Venturi 25. A IDEIA DE ARQUITECTURA, Renato de Fusco 26. OS MSICOS, Roland de Cand 27. TEORIAS DO CINEMA, Andrew Tudor 28. O LTIMO CAPTULO DA ARQUITECTURA MODERNA, Leonardo Benevolo 29. O PODER DA IMAGEM, Ren Huyghe 30. A ARQUITECTURA MODERNA, Gillo Dorfles 31. SENTIDO E DESTINO DA ARTE I, Ren Huyghe 32. SENTIDO E DESTINO DA ARTE II, Ren Huyghe 33. A ARTE ABSTRACTA, Dora Vallier 34. PONTO LINHA PLANO, Wassili Kandinsky 35. O CINEMA ESPECTCULO, Eduardo Geada

O CINEMA ESPECTCULO

Ttulo original: O Cinema Espectculo Eduardo Geada e Edies 70, Lda. Capa de Edies 70 Todos os direitos reservados para a lngua portuguesa por Edies 70, Lda., Lisboa PORTUGAL EDIES 70, LDA. Av. Duque de vila, 69 r/c Esq. 1000 Lisboa Telef. 57 83 65/55 68 98/57 20 01 Te le gra ma s : S ETEN TA Telex: 64489 TEXTOS P Esta obra est protegida pela Lei. No pode ser reproduzida, no todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado, incluindo fotocpia ou xerocpia, sem prvia autorizao do Editor. Qualquer transgresso Lei dos Direitos de Autor, ser passvel de procedimento judicial.

EDUARDO GEADA

O CINEMA ESPECTACULO

edies 70

1. GENRICO Todo o filme gerado e gerido corno um espectculo discurso de imagens em movimento e sons que se destina a ser observado pelo pblico em locais especializados em tempo anunciado. Os locais do espectculo so, por definio, locais de excepo onde o espao da representao e o espao da contemplao se separam segundo os moldes de uma distncia irreversvel. Ao contrrio da festa, na qual o actor e o espectador se fundem e se confundem constantemente, no espectculo reina a diviso entre aquele que v e aquele ou aquilo que visto. O cinema aprofunda esta diviso de um modo absolutamente radical, uma vez que presena do actor (nos locais de filmagem) corresponde a ausncia do espectador (nas salas) e presena do espectador corresponde a ausncia do actor e dos cenrios cristalizada nas imagens que se projectam. O cinema , pois, um espectculo no qual o espectador no tem qualquer possibilidade de interveno directa. No obstante, em funo do olhar do espectador e da sua capacidade de participao afectiva que o espectculo se organiza. O tempo do espectculo tambm ele extraordinrio, uma vez que se inclui no tempo livre do trabalho e das tarefas a que habitualmente somos constrangidos. , por assim dizer, um tempo mgico, subtrado durao do vivido, propcio crena ldica numa realidade diferente. O tempo do espectculo est do lado de l da fronteira da nossa experincia quotidiana e, enquanto tal, ocupa um 9

territrio estrangeiro povoado por seres que s a nossa imaginao e a nossa inteligncia tornam familiares. O espectculo o tempo da estranheza, da fascinao, da opulncia, do entretenimento, da clivagem entre o conhecido e o desconhecido, da irrupo do prazer e do esquecimento. Quanto mais longe do tempo e da lgica aparente do real estiver o filme mais perto se encontrar provavelmente do espectculo. Embora o espao, o tempo e as condies sociais e psicolgicas da materializao do espectculo tela brilhante, sala s escuras, espectador imobilizado permitam urna evocao analgica entre o filme e o sonho, no deixaremos de notar que mesmo no universo das mais estravagantes efabulaes o cinema persiste em nos contagiar com indcios de uma realidade que no podemos deixar de partilhar. O paradoxo do cinema e do espectculo consiste precisamente em nos abrir a porta do imaginrio habitado por objectos mentais e imagens reais, fortes e penetrantes como urna aresta de diamante, doces e fluidas como um aroma de perfume. Se todo o filme , ento, aceite dentro dos parmetros do espectculo cinematogrfico, tanto na abordagem da sua formalizao discursiva como na abordagem da sua disposio tcnico-comercial, ambas imersas no mesmo curso de mobilizao emocional do espectador, resta saber se existem e como funcionam determinados mecanismos formais e sociais, prprios de urna certa maneira de produzir e ver cinema e de urna certa classe de filmes, favorecida pela indstria cultural e propensarnente vocacionada para a intensificao aturada do puro prazer visual, para a criao do que designaremos brevemente por cinema espectculo.

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A Arte de Mostrar Na ressonncia etimolgica da palavra espectculo encontramos a noo daquilo que dado vista, que atrai a ateno das pessoas em lugares pblicos. O espectculo, arte de construir e mostrar imagens, era e uma manifestao intencional de carcter ldico ou com valor ritual, pressupondo o entendimento e uma significao simblica socialmente aceite e a experincia de emoes colectivas. Embora o sentido da vista seja predominante na origem do espectculo, o conceito de espectacular passou a aplicar-se a qualquer dos outros sentidos nomeadamente audio sempre que eles so estimulados por sensaes invulgares. Na dramaturgia clssica, o espectculo correspondia aos elementos de grandiosidade cnica que encantavam o pblico independentemente do texto da pea. Por esta razo, j Aristteles, na Potica condenava o espectculo como sendo algo se superficial e de acessrio em relao aco e ao contedo da representao. Durante muito tempo, o espectculo ficou, assim, carregado de uma conotao depreciativa. Obviamente, no foi preciso- esperar pela inveno do cinema para reabilitar a ideia de espectculo e compreender a dimenso da sua universalidade, mas talvez o cinema tenha contribudo de modo decisivo nos tempos modernos para instituir uma nova matriz na arte de mostrar.

A Imagem de Marca Acompanhado por um indicativo musical de fanfarra, o espectculo comea ainda antes do filme, com a projeco dos logotipos do produtor e do distribuidor. Mais do que em qualquer outra indstria, no de estranhar que a indstria das imagens, assente nesses autnticos complexos fabris que so os grandes estdios, atribua tanta importncia s suas imagens de marca, as quais pressupem, partida, uma sugesto acerca das qualidades e das caractersticas dos produtos apresentados. De todos os logotipos dos estdios de Hollywood, at aos anos sessenta, nenhum foi to popular corno o da M.G.M. Nem as montanhas da Paramount, nem as nuvens da Warner, nem a est.: tua irradiante da Columbia, nem os projectores da Fox, nem os globos terrestres da Universal e da R.K.O. imprimiram no pblico essa sensao simultnea de fausto e de pasmo to tpica do espectculo. certo que o rugido do rei da selva invoca de imediato o risco, a coragem e as excentricidades do que se segue, mas se atentarmos na trucagem da composio global da marca veremos que nela no faltam nem a mscara teatral da tragi-comdia, rodeada de louros (tal como a juba do leo rodeada de pelcula), nem a citao do moto latino que exige a pureza da arte, nem uma aplicao judiciosa de vrios tipos de letras antigas nos nomes prprios da firma. Est l tudo para indiciar que a maravilha e o arrojo do espectculo cinematogrfico no so incompatveis com a seriedade, a universalidade e a tradio da cultura clssica.

2. ESTRUTURAO DO CAMPO VISUAL 2.1. O Efeito de Fico As artes visuais do Ocidente assentam numa iluso reconhecida que nos permite aceitar a diferena entre o real e a sua representao como se esta fosse a garantia da existncia daquele. A imagem no a realidade mas pode dizer-se que ela sempre mais rica de sentido do que a prpria realidade na medida em que organiza o nosso campo de viso e o delimita nas margens de um quadro que se oferece como tensor da percepo e da imaginao humanas('). Por mais banal que seja, qualquer imagem desperta em ns uma resposta cultural, simultaneamente individual e enraizada no imaginrio colectivo de uma dada poca. A essa resposta, difusa e incompleta, podemos chamar efeito de fico, caracterizado pela apetncia inevitvel de outras imagens, sons e textos que o vm disseminar atravs de diversas e imprevisveis linhas de fuga. A imagem cinematogrfica s existe na posio de contiguidade e de expectativa em relao a outras imagens que a vm complementar e, porventura completar. Ao contrrio da imagem fotogrfica, isolada, plena, completa em si prpria, a imagem de cinema apenas um fragmento na sucesso de imagens que se constitui em narrativa e, portanto, em fico. O efeito de fico, enquanto caracterstica do cinema, visa, primordialmente, a constituio do real em espectculo. 15

A imagem tem a evidncia da prova e do testemunho, assume-se corno seleco, experincia, interpretao e memria do mundo, primeiro de quem a produziu e depois de quem a contempla. Se h quem prefira fruir a imagem realidade precisamente porque ela encerra, na ausncia do objecto que reproduz, um certificado de presena o tempo da Histria e o mistrio da morte, porque toda a imagem j imagem do passado e, portanto, rasto de um saber oculto. Com o advento da fotografia, o passado , a partir de agora, to seguro corno o presente, aquilo que se v no papel to real como aquilo que se toca (2). A procura insistente do efeito de fico na representao pictrica europeia, ligada figurao analgica, desenvolve-se a partir do Renascimento sobretudo com a pintura italiana do Quatrocento. De acordo com as categorias estticas da poca, cuja influncia se tem feito sentir at aos nossos dias, o ideal de beleza radicava primordialmente em trs particularidades: uma luz intensa, uma cor viva e uma proporo harmoniosa (7).2.2. Teoria das Propores

O termo proporo designa um conceito matemtico susceptvel de aplicao aos saberes quantificveis. Dado o enorme incremento mercantil das cidades italianas do Sc. XV, duas regras matemticas tornaram-se indispensveis ao comrcio, repercutindo-se de modo notvel nas representaes visuais. A primeira dessas regras a medida, atravs da qual se avaliavam as mercadorias e as especiarias. Na pintura e na arquitectura a medida traduzida em termos de leis geomtricas que orientavam a distribuio, o volume, o ritmo e a simetria dos diversos elementos das obras plsticas. Ao nvel da aritmtica imperava a regra de trs simples que permitia resolver os problemas de troca levantados pela disparidade dos produtos em circulao e pela ausncia de uniformizao dos sistemas monetrios. So os princpios geomtricos e aritmticos que permitem ainda entender o jogo subtil dos espaos e dos objectos na pin16

tura renascentista e o modo corno atravs da sua articulao se chega teoria das propores na qual o homem a medida de todas as coisas. Embora a teoria das propores humanas tenha variado ao longo da histria, possvel aceit-la corno um pressuposto racional da harmonia implcita entre o microcosmos e o macrocosmos( 4 ). A relao matafrica entre o homem e o universo tem sido uma constante da cultura ocidental, em particular nas artes visuais. Ainda hoje, a designao da escala dos planos de cinema feita tendo em conta a distncia dos actores em relao cmara de filmar. Grande plano se o actor est to perto que s lhe vemos o rosto, plano geral se o actor est colocado distncia suficiente para o vermos de corpo inteiro. Comparada com o cinema, a televiso veio confirmar que, na prtica, quanto menor o quadro (o cran) maior a escala em que, tendencialmente, se constri a imagem. o tamanho da figura humana que qualifica o plano e o devolve teoria das propores.

2.3. Percepo e Perspectiva A passagem do saber quantificvel ao saber visualizvel, tanto um como outro condicionados por urna ideologia da percepo organizada, controlada, subordinada avaliao e ao olhar do sujeito, origina o desenho em perspectiva. Se aceitarmos que a percepo faz parte integrante do modo de apropriao humana da realidade, teremos igualmente de reconhecer a subordinao cultural e social que a determina na instaurao da subjectividade. Pode ento dizer-se que a perspectiva linear uma forma simblica que define ao nvel da representao numa superfcie plana um espao tridimensional, contnuo e homogneo. Panofsky, citando Alberti, quem nos recorda a famosa analogia da janela: a pintura no seria apenas o 17

registo de urna experincia visual directa mas tambm, mais especificamente, uma representao em perspectiva, ou seja atendendo ao significado original da palavra latina uma viso atravs de algo(5). A sensao de vidraa que o cinema ir transpor da objectiva e do visor da cmara de filmar para o cran permitiu atribuir superfcie pictrica a qualidade de transparncia, para alm do seu carcter plano, o que tornou possvel conceber a ideia que quase nos parece evidente em si mesma de interpr este plano transparente entre o objecto e a vista e, assim, construir a imagem em perspectiva [---] como uma projeco central (6). A chapa imaginria de vidro, plana e transparente, actua portanto corno um autntico dispositivo de projeco informado por uma impresso de coerncia, estabilidade e realidade. A principal consequncia da perspectiva monocular constituir o olhar do espectador como o lugar privilegiado do sujeito da representao. Ver atravs de algo , em termos de cinema, enquadrar, ou seja, confinar o alcance do olhar selectivo durao do plano criando assim marcas de visibilidade no espao e no tempo que semeiam uma mais-valia de sentido no campo figurado. Tais marcas, alinhadas pela representao em perspectiva, pela teoria das propores e pelo trabalho da luz, destinam-se ponderadamente a reforar o efeito de fico. A metfora da pintura como janela aberta sobre o mundo conheceria a fortuna que se sabe, pois veio a ser sucessivamente aplicada fotografia, ao cinema e televiso.

2.4. A Soberania do Olhar No teatro, a analogia prevalecente porventura equivalente da janela na pintura a da quarta parede. A partir da cena italiana renascentista, o espectador convi18

dado a observar os personagens agirem no palco corno se a sala e o pblico no existissem, como se na boca de cena se erguesse a quarta parede invisvel que viria fechar o cubo cenogrfico sobre si prprio(7). A hegemonia da cena ilusionista do teatro italiana no espectculo europeu at finais do Sc. XIX aquando da introduo da iluminao elctrica vem mostrar que a representao em perspectiva cria no s um novo espao visual, baseado nas propriedades da geometria, como inaugura um novo espao mental assente na soberania do olhar do espectador ('). Na pera, quando os solistas se colocam no centro do palco no tanto para verem melhor a direco do chefe de orquestra como acontece nos nossos dias mas por duas ordens de razes estreitamente articuladas de modo a atingir a plena eficcia simblica. Primeiro, preciso projectar a voz no espao da sala e destacar a figura humana dos teles pintados em escala gigantesca, a contar com a distncia que os separa dos actores e, mais ainda, dos espectadores, sem dissolver o efeito de perspectiva e as zonas de iluminao frontais que disfaram muitas vezes a ausncia de volumes no cenrio ao fundo. Depois, no camarote central do primeiro balco que se senta o Rei ou o Prncipe mecenas, lugar ainda hoje reservado aos representantes do poder nas cerimnias oficiais(9). O olhar do pblico disperso pelo espao hierarquizado da sala da plateia galeria converge para o palco tal como a composio da cena converge para o olhar do Prncipe. A soberania do olhar coincide finalmente com o olhar do soberano.

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Anthony Higgings em O Contrato (P. Greenway, 1982).

A Mudana de Plano

Toda a imagem contm uma infinidade virtual de imagens. A questo crucial da prtica cinematogrfica consiste, portanto, em saber onde colocar a cmara, onde comea e quando acaba o plano, porqu urna imagem em vez de outra, qual a razo e o momento em que um plano deve ser substitudo por outro. O plano no urna imagem qualquer, urna unidade de diferena em relao a outras imagens provveis, um segmento de espao e de tempo que delimita exactamente aquilo que o espectador v e a forma como v. Qualquer plano representa simultaneamente um fragmento completo de realidade e um ponto de vista parcial dessa realidade. Enquadrar reduzir toda a extenso do visvel e do possvel aos limites do quadro ( da escala, do ngulo, da profundidade, do movimento, da durao, da luz) e valorizar essa reduo com a intensidade e a intencionalidade do sentido e do prazer. O plano de cinema inseparvel da montagem e da hiptese da mobilidade da Lamara de filmar, urna e outra aptas a desdobrarem a continuidade flmica numa sucesso conjugada de vistas que afastam radicalmente o cinema do teatro, da pintura e da fotografia, artes cuja herana de resto no denega. O cinema espectculo surgiu --provavelmente com Griffith -- no dia em que a cena dramtica (teatral e pictrica), concebida segundo o modelo do cubo cenogrfico e da perspectiva corno urna projeco central nica a sensao de vidraa -- se estilhaou numa proliferao contingente de pontos de vista dramatizados, de planos plasticamente articulados em perspectivas diferenciadas, criando assim um novo espao (flmico), um novo dispositivo (narrativo) e um novo ritmo de contemplao e fruio esttica.

2.5. O Espao Dramtico Orientado pela proporo da moldura horizontal clssica cuja transfigurao no deixar de estar presente no formato das imagens de cinema e de televiso o palco desdobra-se num espao imaginrio, dramtico. O espao cnico o espao visvel, condensado e contido perante o olhar do espectador. O espao dramtico , propriamente, um espao invisvel, fabricado pelos interstcios da fico, produzido pelo olhar e pela emoo do espectador. O lugar da objectividade aquele que pe em confronto a cena com a sala. Trata-se de um espao exterior, regulado pela carpintaria do espectculo e pelos hbitos sociais do pblico. O lugar da subjectividade aquele que pe em confronto o espectador consigo mesmo, espelhado na relao com os personagens e os actores. Trata-se de um espao interior, sem limites, marcado pela projeco do desejo, do prazer e do sofrimento, regulado pela cultura e pelo inconsciente do espectador(11. Para que o espao cnico brilhe e se demarque da realidade preciso ilumin-lo recorrendo a luzes naturais ou artificiais. bom que o espectador veja com clareza aquilo que as peripcias da fico podem tornar obscuro. A alquimia do espectculo consiste precisamente em iluminar tudo o que invisvel e indizvel atravs daquilo que se v e que s e ouve. A claridade provm da cena do palco, do cran mas a luz inefvel do drama, da fico, que ilumina a mente do espectador e o ajuda, porventura, a compreender melhor o mundo em que vive. 2.6. O Panptico O lugar do espectculo portanto um espao de legibilidade fundado no poder do olhar. Mas o olhar do poder que instaura a ordem social que desde o Sc. XVIII no tem deixado de interrogar a nossa modernidade. O princpio do panopticon, definido por Jererny Bentham, simples: numa torre central de observao cercada por urna slida construo em anel, dividida em celas22

individuais. Cada cela tem duas janelas, uma para o exterior e outra para o interior do anel, de tal modo que a luz atravessa todas as celas e as torna transparentes ao olhar do vigia colocado na torre central( "). Enclausurados nas celas vo estar condenados, loucos, doentes, soldados, estudantes ou operrios. O equivalente do sistema panptico pode encontrar-se nas prises, nos hospitais, nos asilos, nas casernas, nos colgios, nas fbricas ou nas cmaras d e t e l e v i s o e m c i r c u i t o f e c h a d o i n s t a l a d a s n o s supermercados. No tanto fidelidade ao espao arquitectnico do panptico de Bentham que importa invocar quando hoje falamos do olhar do poder que atravessa as instituies disciplinares e os meios de comunicao social, mas a permanncia dos dispositivos de vigilncia que desde ento no tm cessado de multiplicar-se. A Antiguidade tinha sido uma civilizao do espectculo. Tornar acessvel a urna multido de homens a inspeco dum pequeno nmero de objectos: a este problema responde a arquitectura dos templos, dos teatros e dos circos. Com o espectculo predominava a vida pblica, a intensidade das festas, a proximidade sensual. Nesses rituais onde corria sangue, a sociedade encontrava vigor e formava por instantes como que um grande corpo nico. A idade moderna coloca o problema inverso. Dar a um pequeno nmero, ou mesmo a um s, a viso instantnea de uma grande multido. Numa sociedade onde os elementos principais j no so nem a comunidade nem a vida pblica, mas os indivduos privados por um lado, e o Estado por outro, as relaes no podem articular-se seno de uma forma exactamente inversa do espectculo. Conclui Michel Foucault: A nossa sociedade j no a do espectculo, mas a da vigilncia (12). 2.7. O Olhar do Soberano Ser possvel formular a mesma questo de duas maneiras complementares? Poderemos considerar, nas sociedades modernas, o espectculo como um molde sofisticado de 23

vigilncia e de controlo social'? E no ser o panptico urna encenao moral da nova ordem poltica? O anel celular do panptico, onde cada encarcerado equivale a um actor com o seu lugar prprio, afinal um microcosmos social funcionando segundo um regime de representao teatral. O olhar annimo do vigilante na torre central no mais do que a forma incorporai do poder: o olhar do soberano. Ver a todo o instante tudo o que se passa, eis o objectivo do inspector, que bem podia ser a palavra de ordem de qualquer estao de televiso dos nossos dias. Ver tudo, saber tudo, numa nsia desmedida de reduzir os indivduos a objectos de informao e no a sujeitos de comunicao. Ver tudo, saber tudo, velha aspirao de timbre vagamente democrtico que acredita na sociedade transparente, simultneamente visvel e legvel na sua integridade. Ver tudo, saber tudo, destruir as frechas de segredo, ampliar a esfera do domnio pblico, subir a ribalta onde se movem os comediantes sociais e recort-los na luz da razo que j no outra seno a razo do Estado. O sonho de Bentharn no anda longe do pesadelo de Orwell. Esta Obsesso pela total visibilidade das coisas, das pessoas e dos acontecimentos, esta osmose entre o espectculo e a vigilncia, acabar por despertar a convico ideolgica de que a transformao social depende, em ltima instncia, da opinio pblica. Cada indivduo teria ento no s o direito mas o dever de interiorizar a vontade do poder e de a exercer na sua prtica quotidiana, alterando permanentemente as relaes de fora e provocando assim novas configuraes sociais, reais ou imaginrias. Nesta perspectiva, o moderno dispositivo panptico seria um espao dramtico congeminado num jogo de imagens omnipresentes implicando um efeito de fico produzido pelo olhar do soberano e destinado ocupao do tempo dos sbditos enquanto pblico. 2.8. O Tempo Livre dos Sbditos O domnio do espao e dos corpos no cruzamento dos olhares, quer se trate do puro espectculo ou de um sistema de vigilncia no possvel sem a definio de uma 24

problemtica do tempo. Fala-se hoje, vulgarmente, de entretenimento mas nunca se tratou de outra coisa que no fosse entreter, fazer passar o tempo absorvendo-o no deslumbramento do olhar. O que h de implacvel na lgica do panptico o princpio da reciprocidade, segundo o qual todo o vigia por seu turno vigiado a observao s eficaz enquanto o observador se mantiver no seu posto e toda a vtima interioriza em si a suspeita da vigilncia porque ignora exactamente quando est a ser observado. Com a fotografia e o cinema, e cada vez mais com a televiso e a publicidade, cujas mitologias contaminaram a vida pblica permitindo que se fale de uma autntica civilizao da imagem, mergulhamos no novo dispositivo, caracterstico da era ps-industrial, simbiose de espectculo e vigilncia onde o que importa assegurar a admirao, a satisfao virtual e consensual dos sbditos mantendo-os devida distncia do poder e das suas representaes ou simulacros. O Prncipe, recomendava Maquiavel, em certas pocas do ano deve distrair e divertir o seu povo com festas e jogos, e como cada cidade est dividida por ofcios ou por tribos, o Prncipe deve interessar-se por esses agrupamentos, assistir algumas vezes s suas reunies, dar exemplos de humanidade e de magnificncia -- mas que nunca rebaixe a majestade do seu posto, pois ela jamais deve diminuir (13). Ao separar o tempo produtivo do tempo livre, a civilizao industrial da qual o cinema e a televiso so os herdeiros espectaculares produziu ela prpria tcnicas de entretenimento tendo em vista a ocupao controlada e lucrativa dos tempos livres( "). A disputa pelo controlo dos meios de comunicao social deve entender-se neste contexto, como se eles nada mais fizessem do que veicular a magnificncia e o desejo do Prncipe, como se nada mais restasse aos sbditos, eternos espectadores, seno olhar fascinados para as malhas do poder e com elas enfrentar no escuro o medo de urna terrvel solido. 25

em O Segredo da Porta Fechada (Lang, 1948)

Passagem pela Porta Na cenografia do cinema narrativo clssico a porta um utenslio praticvel, aparentemente banal, que permite passar de um espao para outro espao, de um plano para outro plano, de um campo visvel para outro campo. De um ponto de vista meramente tcnico e funcional, a transposio do ngulo de viso da cmara atravs do limiar da porta, segundo a observncia das regras do raccord de continuidade, pode servir para criar um espao flmico coerente, estvel e contguo quando, por vezes, a geografia real que separa os dois lados da porta completamente distinta. A passagem pela porta permite a passagem de urna realidade visvel para urna realidade imaginria. Do ponto de vista dramtico esta passagem do que se v para o que se adivinha e se avizinha que nos interessa. Toda a porta encerra um segredo e por isso que ela constitui um to forte embraiador de fico e de suspense no cinema espectculo. A interpretao analtica frequente que relaciona o lugar interdito que a porta fecha repleto de sombras, de interrogaes, de surpresas ou de ameaas com o desejo irresistvel do olhar transgressor, tanto dos personagens como dos espectadores, aponta para a prpria natureza voyeurista do cinema. Querer saber o que se encontra por detrs de uma porta um impulso equivalente ao do querer saber o que vamos encontrar no cran.

Etienne-Jules Marey e a Espingarda Fotogrfica (1882)

3. O CINEMA DE CORPO E ALMA 3.1. Um Tiro na Cmara Escura Ao distinguir entre a aparncia e a realidade, Plato idealizou a passagem da sombra luz como a elevao do mundo sensvel ao inteligvel, configurando na alegoria da caverna o principio da cmara escura('). Nos fundamentos da mecnica e da ptica que permitiram a elaborao da perspectiva renascentista voltamos a encontrar a aplicao da cmara escura, estudada por Leonardo da Vinci e desde ento utilizada em sentido metafrico sempre que a relao entre o olhar, o conhecimento e a conscincia se torna problemtica. Para Marx a cmara escura ilustra o conceito de ideologia corno sendo uma espcie de imagem deformada ou invertida do real. Para Freud ela exprime em primazia o nvel inconsciente da actividade psquica. Cmara escura o interior da caixa de qualquer aparelho fotogrfico, corno o local do laboratrio onde se revelam os filmes, onde se passa do negativo para o positivo, na trajectria do mito que nos ensinou a aceitar os perodos negros como simples gestao da claridade onde se vai concentrar o nosso entendimento das coisas. Cmara escura ainda a sala de cinema onde a luz se projecta no olhar do espectador imobilizado. Talvez no tenha sido por acaso que Leonardo da Vinci pensou alternadamente nas imagens produzidas pela cmara escura a que a sua pintura no alheia nas 29

mquinas de guerra e nas mquinas de voar. que os instrumentos de tiro, tal como a aeronutica, tal como a cmara escura, visam o mesmo desejo de abolir uma distncia criada pela mira do homem. No devemos portanto surpreender-nos que um dos mais importantes precursores do cinema, tienne Marey ( na esteira dos estudos de Muybridge), tenha sido o inventor de urna singular espingarda fotogrfica, capaz de disparar dezenas de imagens por segundo. A finalidade do aparelho era captar insectos e aves em voo ou outros seres vivos em corrida a fim de poder analisar posteriormente, atravs da decomposio fotogrfica, todas as fases do movimento animal(?). Esta analogia entre a espingarda e a cmara de filmar, ambas alinhadas por um visor que procura neutralizar e possuir a realidade observada, ambas competindo em velocidade com os objectos em vista, no perdeu pertinncia, embora se deva dizer que o cinema se caracteriza pela preservao daquilo que as mquinas de guerra tendem a destruir: a memria viva do homem.

3.2. O Complexo da Mmia A arte no s uma memria do passado, ela sobretudo um projecto para o futuro, e um projecto srio para o f u t ur o no pode s e r out ra c oisa se n o a p ro c u ra d a eternidade. Uma psicanlise das artes plsticas podia considerar a prtica do embalsamamento como um facto fundamental da sua gnese. Na origem da pintura e da escultura descobriria o complexo da mmia. A religio egpcia, toda ela orientada contra a morte, fazia depender a sobrevivncia da perenidade material do corpo. Deste modo satisfazia uma necessidade fundamental da psicologia humana: a defesa contra o tempo. A morte no seno a vitria do tempo. Fixar artificialmente as aparncias carnais do ser salv-lo da corrente da durao: aprum-lo para a vida. 30

Era natural que tais aparncias fossem salvas na prpria realidade do morto, em carne e osso. A primeira esttua egpcia a mmia de um homem curtido e petrificado em natr o (3). Assim comea Andr Bazin um texto fundamental sobre a ontologia da imagem fotogrfica. No desenvolvimento do seu raciocnio, Bazin conclui que a evoluo paralela da arte e da civilizao destituiu as artes plsticas das suas funes mgicas (Lus XIV no se faz embalsamar: contenta-se com o seu retrato, pintado por Lebrun) (4). Do mesmo modo que hoje a imortalidade dos homens pblicos passa pela insistncia da sua imagem no cinema e na televiso e pelo respectivo arquivo em filme, quer seja a partir dos jornais de actualidades e dos documentrios quer seja a partir das fices de reconstituio histrica. Cada sesso cinematogrfica constitui virtualmente uma ressurreio, pois d a ver algo que j no existe. Se a morte sempre o n cego de qualquer espectculo no patbulo, no circo, na tourada, na pista de corridas, no cinema justamente por ser um momento nico, no qual se consuma todo o tempo de uma vida. S na morte, como no acto sexual autntico, a presena do real nos afronta com um grau de evidncia positivamente obsceno, na medida em que a representao desaparece para dar lugar verdade. Filmar algum que se encontra em perigo de morte uma experincia atroz, tanto quanto pode ser vertiginosa e incmoda a posio do espectador, uma vez que nesse instante crtico se revela a vocao simultaneamente realista e metafsica do cinema. Ver torna-se ento insuportvel, porque na morte, como no amor, o momento da verdade coincide instintivamente com o fechar dos olhos.

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Greta Garbo (pose de estdio, 1932).

A Divina Fotogenia

Ao aconchegar com as mos, a gola requintada ao rosto, Garbo afaga-se num inequvoco gesto narcisista, mostrando como a macieza da pele animal se entranha na doura da sua prpria epiderme. O tacto sensual, o porte altivo, a esfngica inexpresso do olhar e a configurao afunilada do casaco trepando pela face do figura um ar inacessvel e vagamente andrgino. Garbo pertence a uma fase de transio do cinema (do mudo para o sonoro, da moral vitoriana para a tica hedonista) em que o sentimento amoroso, tanto no cran como na adorao do pblico pelas estrelas, se redimia atravs da espiritualizao espectacular do afecto fundeado no rosto. Garbo foi o ponto mais alto dessa devoo quase mstica, ora assexuada ora ambivalente, que lhe mereceu, justamente, o eppeto de divina. O rosto de Garbo lembra Barthes nas Mitologias representa esse momento frgil em que o cinema vai extrair de uma beleza essencial uma beleza existencial e em que a claridade das essncias carnais vai dar lugar a uma lrica da mulher. A essa capacidade que o cinema tem de extrair de um rosto um ideal de beleza chamou Delluc fotogenia. No perodo em que a sensibilidade das emulses exigia uma forte iluminao dos locais de filmagem, dizia-se que era fotognico o rosto que aderia bem claridade intensa sem precisar de filtros nem de maneirismos fotogrficos. A fotogenia uma arte absolutamente depurada de olhar as pessoas e os objectos, sem os artifcios do claro-escuro e da contraluz, e de os revelar no movimento do filme no que tm de mais imperceptvel vista desarmada. Garbo a fotogenia no seu estado conceptual.

3.3. O Enigma do Rosto Enquanto linguagem absolutamente diferente, o cinema no s revigorou a nossa viso da realidade corno permitiu emprestar novos significados a velhas inquietaes. Segundo Balzs, a inveno da imprensa tornou progressivamente ilegvel a face dos homens. Durante sculos, a cultura escrita foi depositria de todas as experincias humanas. O nascimento do cinema o nascimento de uma nova forma de expresso atravessada por emoes que so irredutveis ao territrio da palavra('). Na primeira poca do filme mudo o espao e o tempo do plano concordavam sensivelmente com o espao e o tempo da cena. O cinema era um registo mecnico prximo do teatro filmado, j que o ponto de vista fixo da cmara pretendia ser semelhante ao do espectador sentado na plateia. com o recurso ao corte do plano no interior da mesma cena, com as consequentes mudanas de pontos de vista, de ngulo e de escala unificadas nas operaes da montagem alternada e paralela que o cinema se liberta do teatro e cria urna estrutura narrativa comparvel ( mas no idntica) do romance clssico(6). A potica do grande plano, cristalizada na fotogenia do rosto, imps-se desde incio como um componente especificamente cinematogrfico. A durao e a ampliao desmesurada da face humana num cran patenteiam uma dramatizao transcendente cujas razes provavelmente se podem encontrar retornando metfora do rosto como espelho da alma, tpica da tradio icnica judaico-crist. Num grande plano cinematogrfico o rosto sempre . rnetonimia do corpo e, por conseguinte,extensor da vivncia indizvel do personagem, do actor, do realizador e do espectador. Ver um rosto ver atravs dele. O que aparece na face e na expresso facial urna experincia espiritual imediatamente vizualizada sem a mediao de palavras (7). Na tipologia de Deleuze dedicada ao cinema como imagemmovimento, o rosto em grande plano aparece classificado com a designao de imagem-afecto. A um rosto, podem-se colocar dois tipos de questes segundo as cir34

cunstncias: em que que pensas? Ou ento: o que que te aconteceu, o que que tens, o que que sentes ou de que te ressentes? ( 8 ). Na resposta ao primeiro tipo de pergunta teremos um rosto reflexivo, (gnero Griffith), na resposta ao segundo grupo teremos um rosto intensivo (gnero Eisenstein). Em ambos os casos, o afecto define-se como um centro mvel de indeterminao situado no interior do sujeito, incapaz de escolher entre uma percepo inquietante e urna aco hesitante. Noutro texto, Deleuze e Guattari chegam a avanar a hiptese deveras interessante de que qualquer objecto familiar filmado em grande_ plano se torna estranho e ameaador porque como se adquirisse um rosto e como se nos olhasse, a ns que o olhamos. (9). talvez por constituir a manifestao mais subjectiva do homem que o rosto, por si s, chega muitas vezes para desencadear o espectculo ou para lhe encaminhar o sentido. Quem no se lembra do rosto daquelas actrizes h muito desaparecidas do firmamento de Hollywood mas cujo brilho, anlogo ao das estrelas variveis entretanto extintas, continua a iluminar o nosso planeta tornando as noites mais lmpidas? 3.4. Entre a Janela e a Moldura Aceitemos, paradoxalmente, que a obsesso maior do cinema no s dar a ver mais do que aquilo que mostra como, inclusive, dar a ver aquilo que no mostra. O que o cinema d a ver o espao compreendido no campo da objectiva da mquina de filmar. Porm, constantemente, o que est em causa no universo da fico o espao que se distende para fora do campo imediato da viso. Consideremos, numa primeira anlise, que o espao flmico constituido por dois tipos diferentes de espao: aquele que se v no interior do enquadramento e aquele que lhe contiguamente exterior, a todo o momento susceptvel de ser descoberto pelos movimentos da cmara ou pela alternncia dos pontos de vista calculados na planificao. 35

Imaginemos, lado a lado, uma janela e uma moldura aproximadamente do mesmo formato. Atravs da janela, o nosso campo de viso, delimitado pelo caixilho, constantemente desperto para o que passa, surge e desaparece do enquadramento fixo que a janela forma. Ao invs, a moldura contorna uma imagem esttica que nada pode vir alterar. Enquanto o sentido da imagem na moldura se concentra no interior do enquadramento, o sentido da imagem na janela intensifica-se a partir do exterior. Foi esta constatao que permitiu a Bazin retornar a frmula de Alberti e apelidar (em acepo figurada, embora ideologicamente discutvel) o quadro cinematogrfico de janela aberta sobre o mundo. Os limites do cran de cinema no so, como o vocabulrio tcnico s vezes sugere, o quadro da imagem, mas um recorte (cache) que no pode seno mostrar uma parte da realidade. O quadro da pintura polariza o espao em direco ao seu interior; pelo contrrio, tudo aquilo que o cran mostra pode-se prolongar indefinidamente no universo. O quadro centrpeto, o cran centrfugo (10) Na pintura, no teatro, na fotografia, o que se encontra fora do campo de visibilidade s pode fazer apelo ao imaginrio. No cinema o espao fora de campo permanentemente um espao imaginrio e um espao em vias de se concretizar noutras imagens ("). Ora, esta concretizao, no deixa tambm ela de ser imaginria, devido prpria natureza simulacral da representao cinematogrfica. O fora de campo seria, precariamente, um campo diferido. Digamos ento que a constituio duplamente imaginria do cinema ao nvel do que mostra, ao nvel do que sugere e ao nvel do que no mostra que proporciona a alucinao realista que o singulariza. Entre a janela e a moldura est o olhar e a vontade de saber do espectador. 3.5. O Homem Transparente entre o olhar do espectador e o olhar dos actores que se faz a travessia dramtica da fico, com a diferena que o espectador no pode olhar para fora de campo e os acto36

res podem. E portanto no cruzamento triangular dos olhares o espectador, os actores, o espao fora de campo-que se edifica a estrutura narrativa do cinema clssico, firmada na iluso de que os acontecimentos contados se oferecem sem intermedirios percepo e imaginao do espectador. O cinema espectculo esfora-se pacientemente para que nada venha perturbar a maior transparncia possvel entre o olhar do pblico e o universo da fico. O trabalho primordial do cinema espectculo consiste justamente em apagar todos os sinais do seu trabalho, em diluir todas as marcas da enunciao do discurso flmico, como se o prprio mundo estivesse ali diante dos nossos olhos falando e discorrendo por si mesmo. A ambio do espectculo atingir o grau zero da escrita cinematogrfica, esquecer e fazer esquecer que outros olhos, antes dos nossos, organizaram e desfrutaram o filme. Esquecer que um filme um filme fingir no ver que ele feito de pedaos de tempo, de espao, de movimento, de corpos artificialmente separados e artificialmente reunidos. Seja qual fr o filme, o seu objectivo dar-nos a iluso de estarmos a assistir a acontecimentos reais que se desenrolam diante de ns como na realidade quotidiana. Esta iluso resulta de um truque essencial, uma vez que a realidade existe num espao contnuo enquanto o cran nos apresenta de facto uma sucesso de breves fragmentos, chamados planos, cuja escolha, ordem e durao constituem precisamente aquilo a que se chama a planificao do filme. Se por um esforo de ateno voluntria tentarmos destrinar as rupturas impostas pela cmara ao desenrolar contnuo do acontecimento representado, e se tentarmos compreender a razo porque lhes somos naturalmente insensveis, compreenderemos que s as toleramos porque, apesar de tudo, elas deixam subsistir em ns a impresso de uma realidade contnua e homognea (12). A ideologia tpica do cinema narrativo clssico, cuja matriz passou com armas e bagagens para algumas sries de televiso, a famosa impresso de realidade, em grande parte derivada da alta definio da imagem cinematogrfica, da profundidade de campo, da restituio perceptiva 37

do movimento real, das pontes de ligao sonora e, sobretudo, dos efeitos de encenao e montagem que permitem o ajustamento do olhar do espectador com o olhar da cmara de filmar("). O segredo do cinema espectculo apostar em desvendar todos os segredos no mago das suas histrias sem limites nem de espao nem de tempo nem de movimento. Um cinema ecumnico destinado a todos os pblicos,agora e sempre, arquitectando e cimentando um sonho impossvel acalentado h sculos: o mundo transparente, a linguagem transparente, o homem transparente.

3.6. O Regresso ao Mesmo Fragmentos: escolher uma imagem de entre tantas imagens provveis, colocar a cmara de filmar num lugar e no noutro, utilizar uma objectiva que consagra a profundidade em vez de a dissolver. Interrupes: entre fotogramas, entre planos, entre cenrios, entre o argumento e a rodagem, entre a montagem e a mistura. A narrativa cinematogrfica feita de rupturas sucessivas cada uma delas incorporando na mesma fibra os princpios de identidade e de oposio. Identidade que permite a inscrio de elementos comuns na passagem de um plano a outro. Oposio que justifica precisamente a necessidade de passar de um plano a outro. Mudar de plano marcar uma diferena, descobrir um ponto de tenso, conduzir o olhar do espectador, traar os parmetros da sua leitura. Como conciliar este monte de estilhaos que um filme com a lgica da transparncia que o espectculo recomenda? Delegando no interior da prpria fico os pontos de vista da narrativa, procurando atribuir ao enunciado a responsabilidade dos actos de enunciao. Na relao triangular sensorial entre os espectadores, os actores e os espaos dentro e fora de campo, quase sem38

pre o olhar, a escuta, a voz ou um gesto dos actores que determinam a mudana dos planos. Quando algum no filme v, ouve, fala ou se desloca parece natural que a cmara o acompanhe ou mude de stio, privilegiando o melhor ngulo de visibilidade e salvaguardando a continuidade imaginria da sequncia. Cortar um plano sobre o olhar dum actor para nos dar a ver aquilo que ele v sugerir que o corte foi exigido pelo ponto de vista desse actor, lugar de um intenso investimento pulsional que coincide com o do espectador. A separao sistemtica entre os planos de ver e ser visto literalmente suturada e absorvida corno uma continuidade essencial compreenso da narrativa e constituio do sujeito ( ''). Os movimentos de cmara e as alternncias de plano -- de que a retrica do campo contracampo o exemplo mais tpico jogam-se numa combinatria por vezes complexa, pautada pela recuperao metdica dos mesmos pontos de vista que laboriosamente se tornam evidentes, transparentes, e assim vo apagando os rastos da montagem e a presena das instncias de enunciao. Trata-se de uma dupla estratgia do regresso ao mesmo: seleccionar, hierarquizar e articular os pontos de vista que denegam a encenao e a enunciao; economizar em trabalho e tempo de filmagem j que quanto menor fr o nmero e a diferena entre os planos menos dinheiro se gasta na rodagem. Eis a suprema astcia da instituio cinematogrfica, consolidada no labirinto da diferena e da repetio, capaz de conceber e pr em prtica um prodigioso mecanismo esttico, tcnico e econmico onde a distino entre a distncia espectacular e a identificao especular j no tem razo de ser.

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Dana Andrews em Laura

Grace Kelly e James Stewart em A Janela Indiscreta (Hitchcock, 1954)

A Dvida Obsessiva No interior dos planos dos filmes, os actores olham li xantentc um quadro, uma janela, um visor fotogrfico, t a l como ns, espectadores, os olhamos ver e agir dentro dos limites da visibilidade de cada enquadramento seleccionado pela cmara de filmar que implica o olhar do realizador. esta multiplicidade de olhares que funda a fico cinematogrfica. Concentrar o olhar em qualquer coisa e imaginar o que ela e ou o que ela pode conter desencadear o mais simples e o mais eficaz efeito de fico. Quem Laura, pintada no quadro? Porque a mataram? E se ela no morreu? Que se passa para alm das janelas do prdio em frente? Que relao existe entre uma janela e outra janela, entre um plano e outro planei? Que realidade muda se me aproximar, atravs da teleobjectiva, dos objectos observados? O cinema uma metfora elementar do olhar, mas no de qualquer olhar. O cinema um olhar que se interroga, que se serve da memria para proa ocar a imaginao, que oscila na curiosidade entre o passado e o futuro, que monta a seu belo prazer os fragmentos de realidade. O cinema um olhar que instaura no espectador os mecanismos da dvida obsessiva: o filme projectase no cran mas constri-se na cabea do espectador. So as obsesses do detective de Laura e do reprter de Janela Incliscrela que os inclinam ao escrpulo e teimosia de verificarem at ao fim o fundamento das suas suspeitas. O cinema espectculo sugestiona o pblico com ideias e imagens de que ele dificilmente se libertar por mais absurdas que paream. Pode haver lugar para a incredulidade mas no h lugar para o aborrecimento.

Robert Montgomery e Audry Totter em A Dama do Lago (R. M ontgomery, 1946)

O Campo e o Fora de Campo A aparente objectividade das imagens no cinema narrativo representativo deriva essencialmente da variedade de pontos de vista que, atravs das mudanas de planos, so investidos no decurso do f ilme. No e nt a nt o, a ma ior pa rt e d o s p l a n o s implica a subjectividade do olhar de algum no interior da prpria fico: a cmara raramente ocupa a posio das personagens, uma vez que, sucessivamente, as mostra a olhar e nos mostra para onde elas olham. Normalmente, quando vemos a personagem no vemos o que ela v, quando vemos o que a personagem v no a vemos a ela. Deste modo, o que est dentro de campo em cada plano inseparvel do que est fora de campo nesse preciso instante: a cena nunca se r eduz quilo que vis ve l no qua d ro a c a d a momento, pois precisamente a reversibilidade entre o campo e o fora de campo que d homogeneidade concreta e consistncia imaginria ao espao flmico como um todo. Na foto, temos um exemplo engenhoso de como se pode assinalar o fora de campo no interior do plano: o rosto masculino reflectido no espelho assume-se na superfcie rectangular polida como o contracampo virtual da seco da imagem do rosto feminino. Este efeito acentuado pela linha do olhar dela dirigido ao espelho e no posio real onde ele se encontra e pela linha do olhar dele tambm dirigido ao espelho e, por intermdio deste, ao espectador, j que o olhar do actor corresponde sensivelmente ao ponto de vista da cmara de filmar. esta colagem constante entre o objectivo e o subjectivo, o presente e o ausente, que determina os mecanismos de identificao do espectador com as personagens e com o fluxo do filme.

O Impacto da Montagem Se bem que o cinema espectculo favorea a sensao e a percepo de continuidade, tanto na ligao entre os planos (raccord) como na relao entre as imagens e a banda sonora, o impacto da montagem no deixa de estar sempre presente. justamente um aplicado trabalho de planificao e montagem que permite construir essa aparente naturalidade das sequncias cinematogrficas. Assegurar a progresso da narrativa sem que os artificios prprios da realizao saltem aos olhos do pblico a funo normal e primordial da montagem. Noutros casos, porm, a montagem impe-se como um efeito expressivo que visa tirar partido de associaes calculadas entre imagens inesperadas, entre imagens e sons capazes de produzir um sentido novo na fico ou um estado emotivo na conscincia do espectador. Em qualquer das circunstncias, quer se faa sentir como sintoma de mestria tcnica quer se apague perante a evidncia da histria, o que o impacto da montagem pretende suscitar a adeso do espectador, impr a ordem e a durao dos planos, estabelecer os parmetros do discurso flmico e apontar os limites da sua leitura.

4. EMERGNCIA E METAMORFOSE DO PBLICO 4.1. Uma Inveno sem Futuro A princpio, nem Lumire nem Edison, considerados com razo os inventores do cinema, acreditaram no fundamento e no desenvolvimento de uma nova forma de espectculo, porventura a mais caracterstica das vertigens em que o nosso sculo viria a ser frtil. Apesar do enorme potencial econmico em jogo, o que levou tanto os Lumire como Edison a aperfeioarem os mecanismos do cinematgrafo, na esteira de inmeras experincias, foi mais um interesse de ordem cientfica e industrial do que propriamente artstica ou espectacular. conhecida a anedota do primeiro encontro entre Melis e os Lumire, aps a sesso de estreia do cinematgrafo do Grand Caf de Paris, em 28 de Dezembro de 1895. Quando Melis, na altura famoso prestigitador, se props comprar uma mquina de filmar e projectar aos festejados irmos, estes teriam recusado com o argumento de que o cinema era uma inveno sem futuro. A verdade, porm, que os breves filmes dos numerosos operadores contratados pelos Lumire, alicerados na esttica do bilhete postal e dos quadros vivos ento em voga, conheceram um xito extraordinrio, impondo-se rapidamente como parte integrante dos programas de variedades ao vivo quer na revista quer nos cafs-concerto, prtica que em Frana se conservou at aos anos cinquenta. 45

Tambm em Portugal, o animatgrafo comeou por ser difundido como interldio nas sesses de teatro, de circo ou de bailado, depois do clebre fiasco que foi a primeira sesso histrica no Real Coliseu de Lisboa, em 18 de Junho de 1896, que de resto no se chegou a concretizar hora prevista porque, no escrever do jornalista do Dirio de Notcias, os dois motores fornecidos pela Companhia de Gaz e Electricidade, vergonha diz-lo, no tinham a fora necessria para a mquina trabalhar!('). Solucionado o lamentvel incidente, pode Mr. Rousby, distinto electricista de Budapeste assim se anunciava nos reclames apresentar ao pblico lisboeta a famosa mquina de Edison atravs da qual passaram pequenos filmes com os temas tpicos do catlogo dos irmos Lumire que ento qualquer aspirante a cineasta se prezava em copiar. A projeco foi saudada com exclamaes e palmas. Aqui, como em toda a parte, a nova maravilha conquistara o pblico. E o Dirio de Notcias acabaria por concluir, com a convico dos grandes momentos: indispensvel ver-se para acreditar na realizao de tal prodgio pela fotografia instantnea (2). 4.2. O cran das Iluses A rpida expanso do cinema nas principais cidades da Europa na viragem do sculo deve-se fundamentalmente ao crescimento demogrfico e econmico das grandes concentraes urbanas ligadas ao capitalismo industrial. O aumento brusco das populaes desencadeou novas formas de comrcio pblico, organizado em grandes armazns e lojas que gradualmente tornaram caducos os mercados e feiras ou os afastaram para a periferia. A produo em srie sada das fbricas passou a ter o seu equivalente no consumo em massa proporcionado pelos grandes estabelecimentos. Este processo de renovao urbana foi indissocivel da criao de um sistema de transportes que visava assegurar a circulao das mercadorias e dos trabalhadores pelas diversas zonas da cidade dispostas em torno dos centros burocrticos, financeiros e comerciais(3). 46

O declnio do espectculo de feira que na provncia seria travado precisamente pela introduo do cinema ambulante de algum modo paralelo ascenso dos filmes nas salas de entretenimento j existentes nas cidades. Impossibilitadas de frequentar os teatros, os sales e os restaurantes da aristocracia e dos novos ricos, demasiado caros para as suas posses, as classes populares entretinhamse sobretudo nos cafs e nas tabernas, afogando o cansao e a misria no apenas no vinho e na cerveja mas tambm nas baladas e nas canes entoadas em grupo. neste ambiente, ao mesmo tempo enebriante e srdido, que vamos encontrar a origem do music-hall, forma de espectculo intimamente associada apresentao cinematogrfica na Europa at finais da Segunda Guerra Mundial(4). porventura esta estreita relao entre o cinema primitivo e o music-hall, na maior parte dos casos apresentados nas mesmas salas e nos mesmos programas, que desde incio levou a burguesia culta a encarar o animatgrafo com a maior suspeio. No era tanto o alcoolismo e a prostituio, visveis nas ruas de acesso s modestas casas de bebidas e espectculos, que preocupavam os defensores da ordem pblica mas, sobretudo, o facto desses antros motivarem reunies intempestivas, conversas imprevisveis e exaltarem ocasionalmente os nimos populares at proporcionarem estados de completa anarquia a um passo da revolta social(5). neste contexto que devem apreciar-se os primeiros filmes burlescos onde as figuras pblicas da autoridade e da riqueza so cruelmente ridicularizadas pelo cmico, pobre z-ningum que por instantes, no cran das iluses, vinga os malogros de um pblico que ri e aplaude como se a sua vida se transformasse nas peripcias da projeco.

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O Riso e o Medo As primeiras reaces do pblico ao invento dos irmos Lurnire foram o medo e o riso. Medo perante a aproximao do comboio a entrar na gare de La Ciotat, no fosse a locomotiva saltar do cran, tal era o efeito de real provocado pelo cinematgrafo. Riso com o episdio do jardineiro regado, incapaz de controlar os arabescos aquticos da mangueira que se vira contra ele, tal era a cumplicidade do pblico perante as imagens em movimento. sobre estas duas emoes bsicas que assenta a estrutura dramtica do filme primitivo e, por certo, grande parte do impacto do cinema espectculo at aos nossos dias. Ao medo fomentado pelo suspense griffithiano conseguir o heri chegar a tempo de salvar a rapariga? respondia o riso do burlesco no s o cmico se salvava sempre dos apertos como ridicularizava os seus adversrios. A perseguio era urna figura tpica do discurso em ambos os gneros. No primeiro, em que os protagonistas eram vtimas de marginais, concluia-se pela necessidade de restaurao da ordem. No segundo, em que os protagonistas eram vtimas da prpria lei, concluia-se pela necessidade de pr em causa a ordem. O burlesco um cmico que se exprime sistematicamente pela irrupo de acidentes concisos e claros, por vezes brutais, na rotina do bom senso, assumindo o carcter de um protesto anrquico contra as formas consagradas da norma social e racional. Nada dava mais prazer ao pblico popular, frequentador do vaudeville de onde vinham de resto a maior parte dos cmicos do mundo , habituado a figurar no polcia a experincia directa da represso, do que ver a inocncia ou a maldade infantil do cmico triunfar sobre os prepotentes, os abastados, os hipcritas e os temveis. Qual a melhor maneira de nos livrarmos do medo da autoridade? rirmo-nos dela.

4.3 O Mudo no Surdo Foi primordialmente nos Estados Unidos da Amrica que '> cinema conheceu um crescimento prodigioso, invadindo os teatros de vaudeville, os sales populares e, algumas vezes, lojas, barraces e estbulos, onde o cran era improvisado com um lenol e os espectadores eram sentados onde calhava, a no ser que trouxessem as suas prprias cadeiras de casa (). Apesar do entusiasmo do pblico, a qualidade das projeces deixava muito a desejar. A intermitncia da luz, a rpida deteriorao da cpias e a cadncia irregular das imagens que raramente eram projectadas mesma velocidade com que eram filmadas visto que os primeiros aparelhos trabalhavam por meio de manivela - tornavam o espectculo cansativo, mesmo considerando que cada filme no durava mais do que um a trs minutos e as sesses raramente iam alm de meia hora. Nos teatros de variedades os filmes eram normalmente apresentados a fechar o programa, j que a eles se devia a afluncia crescente do pblico. Em 1900, em Nova Iorque, os artistas de variedades entraram em greve como forma de protesto contra os empresrios cobrarem do seu salrio a percentagem necessria compra e ao aluguer dos filmes. Porm, durante a greve a frequncia do pblico no diminuiu, o que convenceu definitivamente os proprietrios das salas a converterem-se explorao cinematogrfica. Foi a poca dos nickel-odeons, inaugurada em 1905 em Pittsburgh com a primeira sala exclusivamente dedicada ao cinema. Quatro anos depois haveria mais de 120 salas em Chicago, mais de 400 em Nova Iorque, cerca de 10 000 por todo o pas, sem contar com os milhares de cafs-concerto e sales adaptados integral ou parcialmente para sesses de cinema. Nessa poca, o resto do mundo no teria mais do que 3000 salas reservadas exibio de filmes('): Em Portugal a primeira sala totalmente concebida e construda para a exibio cinematogrfica data de 1904. Foi o Salo Ideal, situado na Rua do Loreto, que j ento, supreendentemente, anunciava na fachada o animatgrafo 50

falado. De facto, em grande parte dos casos, os filmes mudos eram projectados no meio de considervel algazarra. O pblico popular no fora habituado disciplina e ao silncio necessrios representao do teatro burgus, da pera e dos concertos, e por isso manifestava-se frequentemente com comentrios durante a projeco dos filmes. O acompanhamento ao piano tinha por funes, alm de enquadrar emocionalmente o ritmo da narrativa em imagens, disfarar o barulho do aparelho de projeco e conter a euforia do pblico, O falado a que referia o anncio do Salo Ideal a palavra do narrador presente na sala explicando aos espectadores atnitos aquilo que eles esto a ver no cran. A ideia do cinema como linguagem natural e universal, repisada vezes sem conta, no passa de um mito, pois antes da habituao dos pblicos morfologia narrativa do cinema que de resto se estabilizar antes do perodo sonoro foi necessrio ancor-la com o sentido do verbo. O mudo falado introduzido pelo Salo Ideal era, no entanto, bastante original, como nos descreve Flix Ribeiro com algum humor. Reunido atrs do cran, um grupo, que se tornava mais ou menos numeroso segundo as exigncias, quanto a personagens e quanto realizao de efeitos sonoros, do enredo e das caractersticas do filme, esses intrpretes engendravam com o possvel realismo, e sincronismo tambm, os rudos adequados; e com inflexes profundamente dramticas as falas, a par, quando o enredo o exigia, dos risos ou gargalhadas sonoras, em dilogos adrede preparados, elenco esse que emprestava a sua voz aos silenciosos intrpretes projectados pela mquina, mais ou menos barulhenta e tremelicante, do Ideal... ( '). Consta que um dos maiores xitos do animatgrafo falado em Portugal foi A Vicia de Cristo, escrita e comentada pelo Capelo de Caadores 5, na qual a acreditar em testemunhos da poca - at se ouviam os balidos dos cordeiros. com o aperfeioamento da banda de som incorporada nos anos trinta que o cinema se estende cada vez mais s camadas superiores do pblico, definitivamente fasci51

nado pelo prestgio, cultural e econmico que a stima arte entretanto conquistara. Ento o espectador sonoro do cinema, mudo passar a ser o espectador mudo do cinema sonoro.

Quatro facto pelo menos, foram essenciais para alargar o mbito social do pblico at transformar o cinema no espectculo de todas as famlias como recomendavam os produtores de Hollywood: instaurao de comisses de censura aceites pela profisso; garantia de receitas de bilheteira assente no siar system; condies tcnicas que permitiram a elaborao e o aperfeioamento da longa metragem; construo e manuteno de salas prprias para filmes. a articulao destes factores que vai determinar em grande medida a estrutura e o funcionamento industrial do espectculo cinematogrfico praticamente at hoje. A enorme prosperidade econmica do cinema do incio do sculo deve-se ao facto de ser um meio indito e um suporte ideal para a produo e a difuso em massa. O produtor faz um filme mas a partir do negativo pode tirar um nmero ilimitado de cpias cada uma das quais virtualmente idntica ao original. Deste modo possvel amortizar com rapidez os custos de. produo e assegurar f austosos lucr os de s de que se a la rgue o c i rc u i t o d e exibio. Quando, entre 1905 e 1908, nos Estados Unidos, o cinema comeou a sair dos recintos improvisados e das salas de vaudeville, quase sempre circunscritos aos bairros de emigrantes, para se implantar nos centros de grande circulao urbana, perto dos teatros e dos sales respeitveis, a reaco dos movimentos reformadores, no se fez esperar. O escndalo era constatar que as mulheres e os jovens iam ao cinema sem se fazerem acompanhar pelo respectivo chefe de famlia, expondo-se assim aos perigos da sala escura e ao contacto com desconhecidos. Era inadmissvel que os melhores herdeiros da classe mdia se deixassem envolver por um espectculo at ento quase s reservado 52

a frequentadores de taberna e a mulheres de m fama(9). Os resqucios da moral victoriana e os imperativos do puritanismo fizeram sentir-se por toda a parte. Discutiramse os malefcios e os benefcios do cinema at aos limites do ridculo. Um relatrio encomendado pelo Presidente Theodore Roosevelt chegou concluso que o cinema favorecia o adultrio e a corrupo das jovens. O reverso da medalha depressa foi descoberto. Se o cinema era cinco vezes mais poderoso do que qualquer outro meio de comunicao, como ento se afirmava, porque no fazer dele um precioso auxiliar da reforma social, controlando os seus excessos, colocando-o ao servio da moral e dos autnticos valores americanos? A indstria aceitou de bom grado a sugesto, desde que da adviessem, como seria de esperar, dias e noites de boa fortuna para o espectculo( No final dos anos dez esta questo que jamais deixar de acompanhar a histria da indstria cinematogrfica tornou-se premente. No novo como no velho continente, os proprietrios das salas esforaram-se em provar que o cinema era um passatempo digno. A porta passaram a estar empregados fardados, no interior guardas que intervinham no caso de algum ser molestado, nos jornais anncios lisonjeando o bom gosto da clientela. Tpica da poca foi a publicidade do Cine Ptria, sala que funcionou em Lisboa a partir de 1917. O seu cartaz apresentava-o como sendo o mais distinto cinema da cidade e, tambm, como para reforar esse aspecto de ambientao social, acentuava ainda nele se verificarem rendez-vous elegantes. E, por mais inslito que isso, hoje, parea, os anncios especificavam que a frequncia no Cine Ptria se recomendava pelo seu pessoal cuidadosamente escolhido("). Os filmes como objecto esttico, por enquanto, eram coisas de somenos importncia. Aceitava-se como natural a separao entre a arte e o entretenimento. Tarde viria a altura de compreender que toda a arte entretenimento mas nem todo o entretenimento arte. 53

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NN PA U T ROS

Programa do Salo da Trindade em Lisboa (1918).

4.5. O Controlo Social O apogeu dos nickel-odeons em 1908, o fim da guerra das patentes, que opusera os cineastas independentes ao grupo de Edison, a criao de uma comisso de censura e a constituio da associao de produtores que viria a consolidar Hollywood assinalam o comeo de uma nova era para o cinema americano, desde ento ponto de referncia obrigatrio para o desenvolvimento das outras cinematografias. At essa altura, dada a falta de importncia social do filme, os actores mantiveram-se no anonimato. Porm, com a adeso das vrias camadas do pblico, que comeou a manifestar preferncia por certos actores e a exigir uma informao mais detalhada no s sobre a sua carreira profissional como sobre a sua vida privada, os produtores viram-se obrigados a explorar o filo e a alimentar a promoo dos artistas mais comerciais(12). Nesse mesmo ano funda-se em Frana a companhia do Film d'Art que traz para o cinema nomes consagrados do palco e da literatura, tentando, deste modo, colocar o filme ao nvel dos grandes assuntos da cultura universal. O mesmo acontece em Itlia com as produes de Giovanni Pastrone, cuja influncia sobre Griffith bem conhecida. Por coincidncia, tambm em 1908 que o autor de Intolerncia se estreia como realizador contrariando, seis anos mais tarde, as normas at a vigentes, do filme no ultrapassar as duas bobinas, ou seja, sensivelmente o equivalente a vinte minutos. Ora, o lanamento da longa metragem de fico em mdia noventa minutos'- fundamentada nas modulaes do tempo narrativo romanesco, na criatividade da montagem, na presena de estrelas valorizadas pelo grande plano, na sensao dos temas, na monumentalidade e na diversidade da cenografia original, que vai chamar a ateno da critica e conquistar decisivamente o pblico mais renitente. Com o estrondoso sucesso artstico e comercial de O Nascimento de uma Nao, em 1915, pode dizer-se que estavam lanadas as bases da linguagem do cinema clssico e da sua forma privilegiada de espectculo (9. 55

Se as curtas metragens primitivas at 1914 eram sobretudo baseadas na tradio do vaudeville, do melodrama, da paixo crist e do bilhete postal, destinadas fundamentalmente ao pblico das camadas populares, as longas metragens, visaram a universalidade da audincia superando as barreiras de classe, raa, sexo ou idade. Tal propsito era no s crucial ao alargamento do mercado cinematogrfico como era igualmente indispensvel concretizao dos ideais reformadores que a comunidade se propunha cumprir. Desde ento o cinema no deixar de ser encarado pelos poderes como urna forma de controlo social do tipo persuasivo. Os filmes passaram a ter uma histria com princpio, meio e fim revelando que por detrs dos conflitos e das peripcias imperava uma ordem moral transcendente. O divertimento no era incompatvel com a educao. Os grandes clssicos da histria, do teatro, da literatura e da pintura foram convocados a participar desta sntese sublime que, no dizer do prprio Griffith, haveria de contribuir para fortalecer os valores da paz, da civilizao e da democracia, tornando todos os homens irmos (14). Os progressivos aperfeioamentos tcnicos do cinema, passando pelo som e pela cor, contribuiram por certo para ampliar as potencialidades de expresso do desejo e dos fantasmas do espectador. Para os mais radicais, o cinema irremediavelmente nas mos do poder econmico ou poltico agindo ao nvel do inconsciente no seria seno uma espcie de psicanlise do pobre: perante o cran, o espectador nem sequer fala, o filme fala em seu lugar, mostra-lhe o que ele deve desejar ver e ouvir, tornando-se a s sim uma giga nt e s c a m quina de mo d e l a r a l i b i d o social(15). 4.6. As Catedrais e o Culto Entre 1908 e 1914, enquanto Griffith inventariava com gnio todas as capacidades expressivas da narrativa cinematogrfica, comearam a aparecer as primeiras salas de cinema construdas com imponncia e luxo, porventura 56

adequadas curiosidade e ao interesse do novo pblico mais abastado. Situados nos bairros populares, os nickel-odeons raramente suportavam mais de trezentos lugares. As novas salas, construdas nos bairros elegantes e na baixa citadina, ofereciam lotaes superiores a mil cadeiras, dispostas em plateia, balco e, por vezes, galeria. Os prodgios da electricidade permitiam agora condies aceitveis de projeco dos filmes, garantindo melhor estabilidade s imagens, e faziam descobrir a magia da vida nocturna derramando luz de diversas cores pelas ruas e pelas fachadas onde o espectculo se insinuava. Ir ao cinema passou a significar muito mais do que ir ver um filme, uma vez que a prpria sala j fazia parte do espectculo. Palcios, templos e catedrais do cinema lhes chamaram, fazendo simultaneamente justia aos novos deuses as estrelas de cinema -- e a um estranho culto -a cinefilia. Uma caricatura dos anos vinte mostrava uma criana em frente a um magestoso cinema perguntando me: aqui que mora Deus? ( "). No foi certamente por acaso que a concepo das salas de cinema erguidas nos Estados Unidos nos anos vinte e trinta se inspirou maioritariamente na arquitectura religiosa da antiguidade e nos edifcios clssicos do renascimento europeu, tornando-se provavelmente, a par do arranha-cus, o fenmeno mais interessante da arquitectura americana na primeira metade do Sc. XX. O gigantismo como factor de espectculo, tanto na sala de cinema como no arranha-cus, derivava da convico elementar de que quanto maior a construo maior a multido que comporta e quanto maior for a multido maior ser o seu poder de atraco(17). Parte da atraco dos espectadores pelas catedrais de cinema residia tambm na aparncia de igualdade social que a sua integrao num pblico heterogneo e desconhecido, comungando do mesmo deslumbramento, do mesmo entusiasmo e dos mesmos valores, lhe conferia ("). Ao contrrio do que acontecia nas salas de teatro do sc. XIX e nos recintos de exibio dos filmes primitivos, a partir dos anos vinte toda a gente se podia encontrar nas 57

salas de cinema. Os preos eram acessveis e as formalidades de vesturio dispensveis, excepto nas estreias reservadas a distintos convidados e aos representantes da indstria, ocasio em que as estrelas em pessoa desciam fulgurantes do Olimpo para se mostrarem nos locais nobres que os fiis, a partir da sesso seguinte, podiam frequentar com a maior comoo ou vontade. A sala de cinema constitua, portanto, uma extenso material do prprio universo de fantasia engendrado pelo filme. Na decorao extica e luxuosa do bar, do foyer, das escadarias e dos corredores que davam acesso sala, no faltavam os espelhos onde cada um podia ver a sua imagem misturada com a dos outros, como se no meio do anonimato do pblico houvesse um lugar reservado individualidade de cada espectador, tambm ele agora includo na magia do espectculo. Na projeco, o piano fora substitudo pela orquestra e muitos realizadores, como Griffith, exigiam trechos escolhidos de msica clssica para acompanhar determinadas passagens dos seus filmes. Os melhores cinemas tinham pois orquestra privativa e maestros responsveis pelas adaptaes musicais, pelo roteiro das partituras, ou pela composio de peas originais(19). Na dcada de vinte o nmero de salas exclusivamente dedicadas a cinema passou de 21 000 para 28 000 nos Estados Unidos, de 2826 para 5000 na Alemanha, de 1500 para 3900 em Frana, isto apesar da Guerra Mundial ter naturalmente abalado a economia dos pases europeus( 20 ). Por toda a parte o cinema confirmou-se como um fenmeno caracteristicamente urbano, visto que a maioria da frequncia e das salas se localizou nas cidades, mesmo nos pases ou nas regies em que parte substancial da populao vivia ainda em zonas rurais.

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Estreia em Hollywood do filme

A

1949)

O Contador de Histrias Tal como a criana que pede me para lhe contar uma histria h muito ouvida, e repetida vezes sem conta com pequenas variaes, tambm o espectador se dirige amide ao cinema para ver filmes diferentes que contam histrias bem semelhantes. a compulso repetio, to caracterstica das vibraes que ecoam entre o desejo e o prazer, que fundamenta na indstria a produo em srie dos gneros cinematogrficos. O filme de gnero uma garantia mnima de espectculo porque obedece a regras formais e narrativas que o espectador conhece de antemo. So as leis do gnero que permitem o reconhecimento e a aceitao dos padres de verosimilhana de cada filme, prolongamento virtual de tantos outros filmes que se inscrevem no mesmo modelo de representao. Antes ainda de vermos um filme, j vimos provavelmente anncios, fotografias, cartazes, trailers que nos informam acerca do seu universo ficcional, que criam a expectativa e nos propem uma interrogao essencial acerca do provvel desenrolar da sua intriga. Julgamos saber mas no sabemos ao certo o que vamos ver. Todo o mistrio, condio de um conhecimento adiado, comea antes do filme e intensifica-se na teia do seu dispositivo pictrico e narrativo at que o desfecho nos venha tornar disponveis para outros filmes. O cinema espectculo um portentoso contador de histrias.

5. O BRILHO DAS ESTRELAS 5.1. A Mercadoria e o Acontecimento Quando, para o pblico em geral, o nome dos actores se tornou mais importante do que o nome das personagens e, por assim dizer, mais estimulante do que as histrias, os gneros ou a imagem de marca dos estdios de produo, pode afirmar-se que a indstria encontrou um elemento singular de sedimentao do consumo do espectculo cinematogrfico sem o qual no teria provavelmente conseguido impor-se com a eficcia com que o fez. Ao distinguir alguns dos actores, ao querer saber mais sobre eles, ao seguir as atribulaes da sua carreira de filme para filme, o pblico desenvolveu uma expectativa que os produtores no podiam deixar de aproveitar e de incentivar. Desde os anos vinte, a estrela de cinema tornou-se porventura o factor mais constante do valor de troca dos filmes e da imprensa sensacionalista que lhe adjacente, uma vez que no apenas o trabalho especificamente cinematogrfico da estrela que se encontra imbudo de mito e transformado em mercadoria mas tambm a sua vida privada (1). Como assinala Morin, o star system uma instituio caracterstica da civilizao capitalista: as normas industriais de racionalizao e de estandardizao impregnam a estrela com as virtudes do produto de srie destinado ao consumo das massas, com a vantagem de que a estrela mercadoria no se gasta nem se estraga no acto de con61

sumo. A multiplicao das suas imagens, longe de a alterar, aumenta o seu valor, torna-a mais desejvel(2). Exactamente porque a proliferao da imagem, da palavra e do nome da estrela garante a sua popularidade e, consequentemente, o alargamento e a estabilidade do mercado, os produtos depressa a aceitaram e lanaram como o principal investimento da sua actividade. O corpo da estrela tornou-se o foco central da publicidade dos filmes e o esteretipo da sua personalidade no cran, estilizado em cartazes de grafismo engenhoso, informava imediatamente o pblico acerca da natureza do espectculo proposto. Ao nvel da preparao das pelculas e da exequibilidade dos projectos foi ainda o nome da estrela que se encontrou quase sempre na primeira linha de argumentos para a obteno de crditos bancrios e de garantias de exibio, tendncia que se manteve preponderante embora no exclusiva at aos dias de hoje('). Dentro e fora dos estdios, impulsionada pelo discurso dos meios de comunicao social, a estrela de cinema configurou-se por excelncia como a matriz contempornea do pseudo-acontecimento. Tudo o que a estrela faz, em pblico e em privado, susceptvel de ser publicitado, no porque seja importante mas, pelo contrrio, porque na total irrelevncia da sua existncia a estrela famosa. Uma vez que o pseudo-acontecimento organizado em funo dos meios de comunicao com o nico objectivo de ser registado, reproduzido, repetido e comentado, a medida do seu sucesso ser directamente proporcional medida da sua difuso. Ora, como a celebridade parece contagiosa, o pseudo-acontecimento pode ser, por exemplo, um simples encontro mundano preparado entre duas ou vrias estrelas, facto tanto mais notvel e ambguo quanto desse encontro nada resultar seno o entretenimento da curiosidade e da imaginao insaciveis dos jornalistas e dos seus leitores ( 4). O princpio da actraco pela acumulao levar os empresrios a reunir um nmero cada vez mais elevado de estrelas e de valores de produo num mesmo filme com o fito de criar, pelos meios prprios do espectculo, o acontecimento. O filme acontecimento encontra-se para alm 62

do bom e do mau, do verdadeiro e do falso, do poltico e do esttico, porque na conjugao encantatria das estrelas com o seu universo mtico s conta o sucesso, como se nada pudesse impedir o fascnio irresistvel das multides em direco s bilheteiras das salas de cinema. 5.2. O Diferente, o Diferido, a Deferncia Ser estrela implica ser mais. Mais falada, mais vista, mais talentosa, mais cara, mais rica, mais elegante, mais bonita, mais amorosa, mais poderosa, mais sedutora. A existncia desse factor mais no possvel sem a criao de um hbil equilbrio entre a distncia social que separa a estrela do pblico e a manuteno das determinantes espectaculares que impelem esse mesmo pblico a unir-se pelo imaginrio na identificao com a estrela. Sem distncia social no h diferena e a estrela, pela sua natureza mtica e pelo lugar central que ocupa no espectculo, diferente. Quanto maior for a distncia, real ou simblica, entre a estrela e o pblico maior ser a deferncia deste em relao quela, maior ser a magia e o poder do espectculo ( s). Para que o diferente e a deferncia que a estrela proporciona sejam totalmente eficazes, a bem dizer espectaculares, conveniente que a relao entre a estrela e o pblico seja uma relao constante diferida, isto , urna relao sempre adiada, mediatizada pelas imagens e pelas representaes do cinema e dos meios de comunicao social sem que o encontro e o conhecimento tenham lugar, sem que a relao pessoal jamais se concretize a no ser, esporadicamente, sob a forma de encenao que so as sesses de autgrafos, as festas, as entrevistas e os banhos de multido. Andy Warhol, fabricante de filmes, de artefactos e de estrelas, sintetiza o fenmeno com um exemplo extrado da sua vida quotidiana. S podemos ver a aura de, pessoas que mal conhecemos ou que no conhecemos de todo. Uma noite estava a jantar com o pessoal do meu estdio. Os tipos l do estdio tratam-me como uma porcaria porque me conhecem e vem-me todos os dias. Ento 63

apareceu um amigo simptico que algum tinha trazido e que nunca me tinha encontrado. O tipo mal podia acreditar que estava a jantar comigo! Toda a gente me estava a ver mas o que ele estava a ver era a minha aura (6). A noo de aura, que Walter Benjamim aplicou aos objectos histricos e artsticos como critrio de autenticidade e de valor cultural, talvez ajude a compreender a ambiguidade fundamental da estrela de cinema. Segundo Benjamim poder-se-ia definir a aura de um objecto precisamente em funo da sua singularidade e da distncia humana para que remete o observador por mais prximo que este julgue estar. A reproduo mecnica da obra de arte, nomeadamente atravs da fotografia, contribuiria para a decadncia da aura na medida em que aproxima e familiariza os observadores com as cpias do objecto ao mesmo tempo que deprecia a autenticidade e a unicidade do original('). Fenmeno tpico do cinema, a estrela s existe enquanto reproduo. O que empresta aura ao corpo real da vedeta no tanto a sua raridade como a sua invisibilidade. Ao contrrio da estrela de teatro, que podemos ver ao vivo em cima do palco, da estrela de cinema s vemos a sua imagem projectada no cran. O objecto original do cinema no o corpo dos actores mas o negativo do filme que o espectador nunca v-- levando portanto aceitao de que todas as cpias tecnicamente correctas em relao aos negativos de imagem e de som so legtimas e autnticas. O carcter diferido, diferente e deferente da nossa relao com a estrela cinematogrfica passa ainda por outra componente essencial que a grandeza da escala das imagens. Dificilmente vemos a estrela em tamanho natural, numa escala humana, porque ela to depressa se encontra no gigantismo do cran e das fachadas de rua como aparece miniaturizada nos cartazes, nas fotografias, nas revistas e nas engenhocas(8). No por acaso que o perodo ureo do star system coincide com a expanso das catedrais de cinema e que o declnio dos monstros sagrados acompanha o encerramento das salas maiores e assiste ao triunfo da televiso. A 64

enorme popularidade das estrelas de televiso no tem paralelo com a dimenso mtica das estrelas de cinema, pontualmente por trs ordens de razes. Primeiro, o princpio da distncia no funciona como no cinema, j que as estrelas de televiso acabam por nos ser familiares, no s porque o televisor , antes de mais, um aparelho domstico mas tambm porque a repetio diria ou semanal dos programas televisivos atinge facilmente a saturao e o desgaste. Segundo, no h comparao possvel entre a escala do cran de cinema, o seu isolamento na sala s escuras, e o tamanho do pequeno cran arrumado entre o mobilirio da casa. Terceiro, qualquer programa de televiso , por definio, efmero, enquanto que o filme tem uma durabilidade praticamente ilimitada. A estrela de televiso depende das flutuaes da moda enquanto que a estrela de cinema eterna.

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Marlene Dietrich em O Expresso de Xangai (Sterberg, 1932)

A LuzeoVu

Em que fundo negro se recorta este vulto? No negro da noite e no fundo do estdio, onde a mulher se torna estrela irradiando luz e erotismo sua volta. Mas de onde vem essa luz que a acaricia e nos deslumbra, que -a imobiliza num instante de glria, que a molda em contrastes de violncia contida? Qual a fonte dessa luz inacessvel que transforma os grandes planos da estrela em quadros de genuna conternplaco fetichista que quase paralizam a narrativa e nos devolvem abstraco do prazer de olhar a harmonia de um rosto e, por metonimia, a transcendncia de um corpo? O inexplicvel dessa luz provm de ela no ser nem uma extenso do real (vertente naturalista) nem uma metfora da razo (vertente simbolista) mas o produto de uma pura paixo tornada espectculo. A luz penetra nos interstcios do vu, esbarra na malha que oculta parte do rosto tornando-o ainda mais enigmtico: vela o olhar que se dirige objectiva e que reflecte a conscincia do olhar do espectador. como se o vu aprisionasse a actriz na rede do nosso prprio olhar e simultaneamente a protegesse dessa tenso insuportvel. A luz e o vu recobrem, pois. o rosto de Marlene proporcionando uma sensao de mscara que nos inquieta e fascina, que nos provoca e perde. A mscara remete a actriz para uma cultura, uma histria, uma mitologia. A mscara o efeito de fico inscrito no rosto.

onroe (pose de estdio, 1953)

O Sexo e o Dinheiro o ouro que escorre dos cabelos loiros pelas jias dos brincos para as alas do vestido dourado, decotado, pregueado, contornando as formas do fsico. O que se oferece ao olhar do espectador a posse de uma riqueza redobrada: o corpo corno valor de troca do espectculo; a mulher como equivalente do tesouro. No clebre filme de Hawks, Os Homens preferem as loiras (1953), a personagem interpretada por Marilyn diz a certa altura: uma mulher bonita vale tanto como um homem rico. decerto esta circulao singular entre o desejo, o sexo e o dinheiro que as novas deusas do cran, no ps-guerra, vieram tornar explcita. to difcil pensar no corpo de Garbo como difcil no pensar no corpo de Marilyn, A pin-up dos anos cinquenta obedece a um modelo de erotismo funcional, susceptvel de consumo em larga escala (nos filmes, nos posters, nos calendrios, nas revistas, na publicidade) e de imitao acessvel. Todos os contornos do corpo se podem acentuar e tornar sinais de sexualidade, logo ncleos de prazer, fontes de rendimento. Na exibio-ocultao da anatomia pneumtica, de aspecto saudvel, o lugar para a preverso ainda reservado, uma vez que se trata de conciliar o sonho do luxo e da independncia (os diamantes so os melhores amigos da mulher, canta Marilyn no filme citado) com a segurana burguesa do casamento. Marilyn retocou ao exmio esse equilbrio de tonalidade entre a inocncia e a experincia, entre a infantilidade e a provocao, entre a angstia de agradar e a alegria de viver que se tornou a bitola da mulher espectculo.

5.3. Os Heris do Consumo Nem todos os actores so estrelas mas todas as estrelas so actores. Justamente, o que marca a estrela ela no conseguir desfazer-se da sua condio de comediante e de representante no momento em que abandona o local de filmagem. A personalidade da estrela prolonga-se nas personagens que interpreta do mesmo modo que estas se reflectem na identidade da estrela. nesta simbiose entre o actor e as personagens que a estrela alcana o plano mtico ('). Ser estrela implica viver como uma estrela, ou seja, transformar a vida em espectculo de acordo com a imagem verdadeiramente fabulosa que o mundo do cinema prope para alm do cran. A asceno do vedetismo cinematogrfico nos anos vinte, nos Estados Unidos, coincide com o desenvolvimento do consumo de massa e com a distribuio alargada de mercadorias at ento consideradas de luxo que o incremento da publicidade e a institucionalizao do crdito ajudavam a vender. Assiste-se passagem da tica protestante, baseada no trabalho e na poupana, a uma tica hedonista centrada no prazer imediato ( '). Sendo o espectculo um momento desejado de prazer, rodeado de aparato, apreciado nas horas e nos lugares de lazer, no admira que a estrela surja, neste contexto, como o prottipo do modelo humano de luxo: a estrela aquela que se faz pagar melhor, aquela que gasta e se desgasta, d e recebe prazer. O pblico queria que vivessemos como reis e rainhas. E assim fizemos porque no? Estvamos apaixonados pela vida. Ganhvamos mais dinheiro do que alguma vez sonhramos poder existir e no havia qualquer razo para acreditar que acabasse. Quem fala assim Gloria Swanson, vestida pelos melhores costureiros internacionais, maquilhada ao milmetro, fotografada carregada de jias e de peles, imobilizada em poses galantes cuidadosamente iluminadas a fim de garantirem a devoo dos fiis. Ganhar o mais possvel, despender o mais possvel, fazer circular o dinheiro, o olhar e o espanto, tal parece ser a inteno da lenda e o dever da estrela sintetizado na fr70

mula optimista de Joan Crawford. Eu acredito no dlar. Tudo o que ganho, gasto!("). Casas sumptuosas, carros, iates, jias, roupas, festas, viagens e romances compem o pano de fundo da imagem de felicidade da estrela de cinema cujo lema implcito, na prtica, emoldurar o corpo, preencher o espao com objectos caros mas inteis e preencher o tempo com actividades interessantes mas desligadas da esfera do trabalho. Esta indiferena entre o excesso e o desperdcio que na indstria cinematogrfica assumiu sempre a feio conjunta do investimento e da delapidao espectaculares no anda longe do conceito de consumo ostentatrio proposto por Veblen no final do sculo passado. O privilgio dos ricos, entre os quais se destaca agora a estrela graas sua fama, afirma-se inequvoco na estravagncia das despesas e no elogio do cio como efeitos da demonstrao visvel da sua superioridade (12). O vedetismo configurou-se assim como um processo de personalizao tpico da sociedade de consumo e de abundncia porque o que a estrela representa, em permanncia, o desejo colectivo de gratificao individual inexcedvel apenas concretizvel no seio de um sistema social estruturalmente desigualitrio. Esta talvez a razo primordial porque as estrelas do espectculo se tornam os dolos do nosso tempo e o tema preferido da cultura de massa, como muito bem sublinha Baudrillard. Pelo menos, no Ocidente, as biografias exaltadas dos heris da produo sucumbem hoje, por toda a parte, diante dos heris do consumo. As grandes vidas exemplares.de self made man e de fundadores, dos pioneiros, de exploradores e de colonos, que continuavam a dos santos e dos homens histricos, tornaram-se as de vedetas de cinema, do desporto e do jogo, de uns quantos prncipes doirados ou de feudais internacionais, em suma, de grandes esbanjadores (embora, muitas vezes, e por inverso, o imperativo ordene que os mostrem na sua simplicidade quotidiana, fazendo compras, etc.). Todos os grandes dinossauros que entretm a crnica das revistas ilustradas e da TV so sempre celebrados pela vida de excesso e pela virtualidade de despesas monstruosas. A sua qualidade sobre-humana constitui o seu perfume 71

de potlatch. Cumprem assim uma funo social muito precisa: a da despesa sumpturia, intil, desmedida. Desempenham semelhante funo por procurao, em vez do corpo social, como os reis, os heris, os sacerdotes ou os grandes arrivistas das pocas anteriores. Como eles, tambm nunca se revestem de grandeza a no ser que, maneira de James Dean, paguem com a vida semelhante dignidade (n).

5.4. Vitalidade, Velocidade,Violncia O culto da estrela e o triunfo da tica hedonista na sociedade moderna remetem constantemente para a evidncia do corpo como receptculo de prazer e como forma apurada do capital. no corpo que se inscreve o desejo, ele que ajuda a vencer, ele que ajuda a vender. No h vedetismo sem sublimao da imagem do corpo. Em qualquer actividade pblica no cinema, no desporto, na msica, na poltica a estrela irradia sempre uma imagem de optimismo e de confiana em si prpria. Veremos que o optimismo e a confiana no so possveis sem a aparncia de boa forma fsica com a qual a estrela contagia o espectculo de vitalidade, de velocidade e de violncia. Tomando letra a definio lapidar de que o filme composto por imagens em movimento, as estrelas de cinema revelai-se-o impulsionadas por uma energia aparentemente sem limites. Douglas Fairbanks, por exemplo, criou a partir dos anos dez um paradigma fundamental da personalidade mtica cinematogrfica ao defender com um sorriso nos lbios as personagens que interpretava, lanando-as sem remisso na audci