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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE
HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL (CPDOC)
Proibida a publicação no todo ou em parte; permitida a citação. A citação deve ser textual, com indicação de fonte conforme abaixo.
ANDRADE, Eduardo Gonçalves de. Eduardo Gonçalves de Andrade (depoimento, 2012). Rio de Janeiro, CPDOC/FGV, 2013. 48 p.
EDUARDO GONÇALVES DE ANDRADE (depoimento, 2012)
Rio de Janeiro 2013
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Nome do entrevistado: Eduardo Gonçalves de Andrade (Tostão)
Local da entrevista: Belo Horizonte, Minas Gerais
Data da entrevista: 25 de outubro de 2012
Nome do projeto: Futebol, Memória e Patrimônio: Projeto de constituição de um acervo
de entrevistas em História Oral.
Entrevistadores: Bernardo Buarque de Hollanda e Bruna Gottardo
Transcrição: Letícia Cristina Fonseca Destro
Data da transcrição: 19 de novembro de 2012
Conferência da transcrição : Maíra Poleto Mielli
Data da conferência: 28 de novembro de 2011
** O texto abaixo reproduz na íntegra a entrevista concedida por Eduardo Gonçalves em 25/10/2012. As partes destacadas em vermelho correspondem aos trechos excluídos da edição disponibilizada no portal CPDOC. A consulta à gravação integral da entrevista pode ser feita na sala de consulta do CPDOC.
Bernardo Hollanda – Tostão, boa tarde, gostaria de começar agradecendo por nos
receber em sua casa com tanta generosidade e acolhimento. Tostão, para começar: a
infância, suas lembranças. Você é natural aqui de Minas Gerais, Belo Horizonte, certo?
Eduardo Andrade – É isso. Grande abraço. Eu nasci em Belo Horizonte, morei ali
dois anos na Floresta que é um bairro tradicional de Belo Horizonte. Fui, com dois anos,
para o IAPI que era um bairro na Lagoinha, tem um conjunto de nove prédios. Para você
imaginar, são novecentos e noventa e nove apartamentos interligados por pontes e no
centro desse conjunto tinham vários campos de futebol, tinha campos gramados, campos
cimentados. Então, isso tudo propiciou que eu caminhasse para o futebol, gostasse de jogar
futebol e me tornasse jogador. Então, foi nesse ambiente. Somos quatro irmãos, eu o mais
novo. O meu pai era bancário, trabalhava noInstituto de Aposentadoria e Pensões
Bancárias, esse prédio, construído para os bancários morarem. E, então, morei ali dez anos.
Um lugar ótimo para uma criança porque além dos campos de futebol, um lugar amplo que
eu tinha total liberdade, desde pequeninho, de descer as escadas. Eu morava no terceiro
andar, sair para rua, brincar e jogar futebol. Estudei normalmente, tinha um grupo público,
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que era muito bom, próximo. Então dava tempo de estudar e brincar de jogar bola e se
divertir lá.
B.H. – Só para registro histórico, sua data de nascimento?
E.A. – Eu nasci em vinte e cinco de janeiro de 1947.
B.H. – Você teve irmãos?
E.A. – Éramos quatro, eu o mais novo. Isso também me ajudou a ir para a carreira de
futebol, porque os três eram mais velhos, todos os três trabalhavam para ajudar os meus
pais a ter uma renda melhor e eu ali pequeno fui protegido tanto emocionalmente como
também materialmente para que eu pudesse ali brincar, não precisar trabalhar tão cedo
como eles fizeram e poder estudar, aí mais tarde encaminhar para o futebol.
B.H. – Podemos dizer, então, que os irmãos pavimentaram seu caminho?
E.A. – Ah, não tenho dúvida. E do ponto de vista também de cidadania, pessoas bem
instruídas, cidadãos conscientes, responsáveis. Isso foi importante na minha formação.
Bruna Godatto – E você começou a jogar bola nesse conjunto? Junto com as
crianças? Como se dava?
E.A. – Justamente. Então, muito pequeno eu já brincava de bola. Diz o meu irmão
mais velho que daí nasceu o apelido de Tostão, porque tostão era um centavo, a moeda, o
menor valor de uma moeda, então como eu era muito pequeninho e tinha hábito de estar
sempre jogando e brincando com os mais velhos. Dizem eles que não só no futebol, em
outras coisas eu gostava de ficar com os meninos maiores e comecei a jogar com
eles.Então eu era o menorzinho, e daí nasceu o Tostão.
B.H. – Fala um pouquinho da sua mãe, você falou do seu pai que era bancário, agora
fala um pouquinho da sua mãe.
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E.A. – A minha mãe trabalhava em casa durante muito tempo, mas depois também
trabalhou fora. A minha mãe foi funcionário dos Correios em Belo Horizonte para também
aumentar a renda familiar. Ela trabalhava ali no centro da cidade e eu tenho uma grande
lembrança: eu era muito pequeno – não me lembro a idade, mas muito pequeno – como ela
não tinha ninguém para me deixar, os meus irmãos já saíam, tinham seus compromissos,
eu ia com ela para o Correio. Então, enquanto ela trabalhava durante o dia, acho que na
época era um horário só, no outro eu estudava, eu ficava ali quatro, cinco, seis horas com
ela acompanhando. Inclusive tinham aquelas máquinas para selar as cartas e a máquina
tinha que carregar, levar não sei onde, lá no próprio correio para carregar. Então eu levava
a máquina, descia elevador, subia, bem pequeninho ficava ali ajudando ela.
B.H. – Pequeno assistente.
E.A. – É. [riso]
B.H. – E seus avós maternos e paternos, você conheceu?
E.A. – Não, não conheci. Todos morreram. Um morreu eu tinha dois anos, mas não
tenho nenhuma lembrança porque era muito pequeno. Então, a minha convivência era com
meus irmãos, com meus pais. Nesse local ali tinha torneios de futebol desde torneios para
meninos muito pequenos, para os meninos médios, maiores. No final de semana
campeonatos. Então, eu cresci ali jogando bola e sempre com a companhia dos meus
irmãos.
B.H. – Mas seus avós já eram de Belo Horizonte? Porque Belo Horizonte é uma
cidade planejada, uma das primeiras do Brasil, em 19001 é fundada.[INAUDÍVEL]. Eles
vinham de algum outro lugar...?
E.A. – Minha mãe nasceu em Barão de Cocais, município de Santa Bárbara, interior
de Minas, e meu pai nasceu em São Bartolomeu que é um distrito de Ouro Preto, que é
1 A cidade de Belo Horizonte foi fundada em 1897.
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uma cidade histórica famosa. Então, eles vieram para Belo Horizonte e se conheceram em
Belo Horizonte. Então os meus avôs faleceram onde moravam os meus pais quando
nasceram.
B.H. – Bom, esse interesse pelo futebol, crescendo com os irmãos, já tinha algum
clube? Como foi sua relação não apenas como jogador, mas como alguém que
acompanhava o futebol e apreciava?
E.A. – Além dos meus irmãos gostarem de jogar, já jogavam nos times lá
uniformizados do bairro, o meu pai foi apaixonado pelo futebol. O meu pai, na época do
amadorismo, jogou no América Mineiro, era torcedor do América. Então, a partir aí dos
sete anos ele me levava para ver os jogos do América, até treinos do América. Então, eu
tenho muita lembrança dessa época. Depois do treino tinha um café ali na cidade, o café
Pérola, no centro de Belo Horizonte onde se reunia os americanos. O meu pai ia para lá
para discutir o futebol e eu ficava no meio da turma, não é? E com sete anos eu já jogava
em times uniformizados e com chuteira, com camisa, com campos de tamanho
profissional. Ali perto do bairro tinha vários campos, tinha o campo ali do Pitangui, onde
se tinha grandes campeonatos de futebol amador. E todo domingo, lembro bem disso, onze
horas, era alugado para o nosso time o campo e nós jogávamos, tinha o time do bairro, e aí
que eu comecei a me destacar no futebol, porque todo mundo falava que eu tinha jeito para
ser um grande jogador. Então nós tínhamos um time organizado com chuteiras, o meu pai
era quase o patrono do time. Lembro até, é interessante, que antes do jogo o meu pai
passava no mercado, comprava muitas bananas e levava, distribuía no intervalo para os
meninos e falava: “Banana tem muito potássio”. E é verdade, para evitar câimbras e esses
problemas musculares.
B.G. – E esse time tinha um nome?
E.A. – Tinha, era Industriários, porque o conjunto era IAPI – Instituto de
Aposentadoria e Pensões Bancárias. O bairro Industriários e IAPI o... Então, nós fizemos
um grande sucesso no bairro, espalhou por toda cidade porque não era só eu, vários
meninos ali eram muito bons de bola. Então fizemos um grande time de garotos que faziam
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um grande sucesso na cidade. Jogamos uma vez contra o time infantil do Atlético e
ganhamos. Isso foi maior festa na cidade, porque era ganhar do infantil de um time
profissional. Eu lembro que eu fui carregado do campo do Atlético, que é aqui próximo de
onde nós estamos lembrando esses fatos, e fomos até o IAPI que é bem longe, a pé pelas
ruas e eu carregado nos ombros das pessoas e tal, porque era uma festa ter vencido o time
infantil do Atlético.
B.H. – Tostão, então o nome Industriários era uma alusão ao conjunto habitacional,
não era um time operário, um time de fato?
E.A. – Não, não. Era do bairro.
B.H. – Porque no Brasil a gente teve essa tradição de times operários... No caso era
residencial.
E.A. – É. O técnico do nosso time, me lembro bem do Itaíbes que já morreu, o
Itaíbes era um dos maiores publicitários da nossa época aqui de Belo Horizonte e ele
adorava. Ele que era o técnico do time e ele falava sempre para a gente: “Está proibido dar
chutão. Tem que jogar futebol com a bola no pé”. [riso]
B.H. – Quando menino você era torcedor americano por conta do seu pai?
E.A. – Era torcedor do América. Eu fiquei no bairro até os doze anos jogando, nesses
campeonatos internos que tinha. E justamente mais ou menos nessa época, com doze anos,
eu fui para o futebol de salão do Cruzeiro, porque eu tinha um primo - que, aliás, foi
jogador do Atlético, um jogador muito conhecido no Brasil porque foi campeão brasileiro
várias vezes, o Ronaldo que jogou no Atlético, jogou no Palmeiras. Aliás, eu acho que ele
é o único jogador, se não me engano, que foi campeão brasileiro três vezes seguida com
times diferentes: pelo Atlético em 71, depois Palmeiras, e depois... E o Ronaldo já jogava
futebol de salão e me levou para lá, para o futebol de salão do Cruzeiro. Aí eu joguei no
futebol de salão no Cruzeiro. Aí foi a época justamente que eu mudei do IAPI. Tinha um
conjunto de bancários aqui no bairro próximo onde hoje... Agora me esqueci o nome. Eu
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passei a morar lá. Foi nessa época que eu passei a jogar no futebol de salão do Cruzeiro. Aí
passei a jogar futebol de salão e futebol de campo, os dois juntos, depois fui para o
Américo e depois voltei para o Cruzeiro. Eu comecei a minha carreira profissional no
Cruzeiro com dezesseis anos. Com dezesseis anos eu já era titular no primeiro time do
Cruzeiro.
B.H. – Tem algum momento que você se recorda como divisor de águas, que você
toma consciência: vou ser jogador, é essa carreira que vai...?
E.A. – Eu sempre estudei. E quando era essa fase de bairro, mesmo no Cruzeiro, no
futebol de salão, mesmo no juvenil do América, a minha visão de vida era formar, ser um
profissional liberal. O futebol eu via apenas como uma diversão. Não tinha nenhuma ideia
fixa de ser jogador apesar de todo mundo dizer que eu tinha tudo para ser um bom jogador.
Então, eu joguei... Quando eu assinei o contrato de profissional com o Cruzeiro, com
dezesseis anos, eu estava já no primeiro ano do científico do colégio estadual, que era
colégio público também. Durante três anos – primeiro, segundo e terceiro ano – eu era
jogador do Cruzeiro e estudava. A minha preocupação não era ser um jogador de futebol, o
meu pensamento era ser um profissional liberal; um engenheiro, médico, na época não
sabia ainda. Aí com dezoitos anos eu já estava começando a jogar na seleção brasileira.
Quando eu terminei o curso cientifico, para fazer o vestibular, eu tinha que tomar a
decisão, não é? Como eu já era um jogador conhecido nacionalmente, já estava na seleção,
todo mundo dizia que eu ia ser um grande jogador. Já jogando no Cruzeiro. Isso antes do
Mineirão, prestes começar o Mineirão. Aí que eu tomei a decisão, terminei o curso, não fiz
o vestibular e falei: “Vou me dedicar a carreira de jogador”. Eu parei de estudar. Então
com dezoito anos, eu ainda no Cruzeiro... Na verdade foi uma carreira curta, porque com
vinte e seis anos eu estava parando de jogador por causa de problemas que eu tive na vista
e tive que parar. Joguei durante dez anos. Quando eu parei de jogar futebol eu retomei o
sonho de adolescente de voltar estudar e ter uma outra profissão. Foi aí que eu comecei a
estudar para fazer vestibular, entrei na faculdade de Medicina e me tornei médico.
B.H. – Tostão, nesse momento de tomar a decisão perto dos dezoitos anos, qual foi a
reação da sua família, eles apoiaram?
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E.A. – Eles achavam que seria um loucura eu não dedicar ao futebol, porque eu já era
um jogador da seleção brasileira, já estava ganhando bem – não como ganham hoje os
grandes jogadores, mas para época era um salário muito bom. Próximo da Copa de 66, em
65, eu estava na seleção, disputando uma Copa do Mundo. Então eu não tinha como... Não
tinha como conciliar as duas. A ideia era conciliar, mas eu tinha que viajar e eu falei: “Não,
como é que eu vou...? Posso até conseguir formar, cursar a faculdade, mas eu teria que
faltar da aula”. Eu acho que, na minha vida toda, tudo o que eu peguei para fazer, eu
peguei para valer, para fazer bem. Não dava para fazer as duas coisas. Então, eu parei de
estudar, na época, e passei a me dedicar ao futebol integralmente.
B.G. – Mas você sabia que em algum momento você poderia retomar isso, não é?
E.A. – Era claro isso para mim: o futebol era uma carreira curta. Só que normalmente
um jogador para de jogar com, vamos colocar aí, uns trinta e cinco anos em média. Isso é
interessante porque se eu parasse com trinta e cinco anos certamente eu não teria ânimo,
entusiasmo para entrar em uma faculdade, estudar mais seis anos em uma faculdade, um
ano de preparação para vestibular mais seis anos de faculdade. Então o fato de eu ter
parado muito cedo, com vinte e seis anos, de jogar futebol – eu tive que parar por causa do
problema que eu tive na vista – isso teve um lado bom porque dava tempo ainda de eu
estudar, apesar de normalmente as pessoas entrarem na faculdade com dezoito anos, não é?
Mas não era tão velho assim. Com vinte seis anos eu voltei a estudar, com vinte e sete eu já
estava na faculdade. Então isso eu acho que foi bom para recomeçar a minha vida.
B.H. – Esse série que estamos colhendo depoimentos dos jogadores, muitos se
referem às dificuldades do início, especialmente por isso eu perguntei para você, muita
resistência à própria imagem do jogador. Segundo muitos depoimentos, a imagem do
jogador que se tinha era de vagabundos, então era discriminado até. Quer dizer, no seu
caso essa resistência não aconteceu talvez pelo próprio fato de seu pai ter sido jogador
amador.
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E.A. – É, não havia essa resistência dentro de casa, foi uma coisa que eu tive de
pesar, eu pensava nisso. Não há dúvida que o jogador era visto como uma coisa meio
marginal da sociedade, quem jogava futebol (isso diminuiu, mas até hoje ainda tem esse
tipo de preconceito) era uma pessoa de nível cultural baixo, uma pessoa com pouca
formação cidadão e até hoje isso ainda existe. Como o meu sonho de adolescente era
estudar, então isso... Eu acho que houve até aí uma conduta, uma coisa prática, não me
lembro de materializado isso, racionalizado, de ter falado: “Não, eu vou... A carreira é
curta de futebol, vou jogar aí uns dez, doze, quinze anos...”. Tinha uma chance de ganhar
um bom dinheiro com isso que eu não teria em outra profissão, como médico, ainda mais
sendo jogador da seleção e tudo. Isso para um jogador de primeiro nível, não é? Como eu
tinha chances de me tornar um jogador de primeiro nível, um jogador conhecido no Brasil
todo, seria lógico que eu pensasse assim: vou fazer uma coisa, depois eu volto. Porque o
meu meio de relacionamento era um meio de um nível cultural mais alto. Os meus irmãos
são intelectuais, são bancários, não tem um nível universitário, mas são pessoas que vivem
em um mundo de cidadão bem diferente, não é? Eram pessoas muito bem constituídas. Eu
tinha outros relacionamentos de um nível cultural melhor. Então havia essa divisão, não é?
B.G. – Essa vontade de sempre estudar era uma coisa sua?
E.A. – É. Quando eu decidi jogar futebol eu tinha consciência que era uma
passagem, que eu ia me dedicar a ela e que depois eu voltava a ter uma outra vida, e foi
mais ou menos o que aconteceu. Agora, não foi uma coisa assim... Precisa ver os riscos,
não é? Eu já estava me destacando tanto como jogador, que era uma coisa quase... Seria
estranho demais se eu: “Vou largar tudo, vou entrar na faculdade para começar a estudar”.
Não era uma coisa prática, seria meio maluquice se eu fizesse isso. Tanto que quando eu
larguei o futebol por causa do problema na vista e entrei na faculdade, houve muita
curiosidade sobre o meu comportamento porque eu larguei aquele mundo do futebol, era
uma estrela do futebol e eu me afastei totalmente, não porque eu tinha raiva, que eu não
gostava, apenas queria voltar ao mundo e ter uma vida como uma outra
independentemente... Eu queria viver um outro mundo, uma outra vida, com a minha
família, com os meus amigos. Muitas pessoas não compreenderam isso, acharam que eu
tinha raiva do futebol e aí eu larguei o futebol, porque eles me chamavam para participar
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de coisas de futebol e eu não participava, eu estava envolvido com o meu... Tanto que teve
um período nessa época que eu nem via futebol porque eu estava tão envolvido com a
Medicina, eu me dediquei mesmo como médico. Tem pessoas que acham que eu fui
médico de final de semana, para conseguir o diploma e tal, enganar um pouquinho ali. Eu
me dediquei demais, modéstia a parte eu estudei muito, eu acho que fui um ótimo médico,
estudante, fui um dos melhores alunos da faculdade. Quer dizer, eu fiquei por conta disso,
então o meu mundo mudou e as pessoas não entendiam muito isso não.
B.H. – Ainda nesse período pré-profissional do futebol, você disse que torcia para o
América um pouco pelo elo afetivo com o pai. Você acompanhava o futebol de clubes
brasileiros? Você tinha identificação, referências de jogadores, ídolos? Você
acompanhava...?
E.A. – Acompanhava, acompanhava com meu pai muito. Eu ia muito ao
Independência ver os jogos. O meu pai era americano, mas ele gostava de futebol, todo
jogo bom ele ia e me levava. Eu me lembro que eu gostava de ficar na primeira fila do
Independência, na parte mais embaixo, porque aí logo, um metro, mais embaixo já estava o
campo. Então eu gostava de ficar ali porque eu via o campinho de perto, os jogadores de
perto. E ali eu acompanhava, eu via o América. O América, na época, tinha um ótimo time.
Essa época eu era menino, o grande clássico em Minas Gerais não era o Cruzeiro, era
América e Atlético, não é? O América tinha um grande time, o Atlético também, o
Cruzeiro também tinha bons jogadores. Eu via ali jogar no Independência, eu me lembro
de ver o Botafogo – Didi2, Nilton Santos -, os maiores times do mundo. Eu vi o Pelé, no
início da carreira, jogando ali no Independência, eu vendo o Pelé jogar, o Pelé com
dezesseis, dezessete anos quando começou no Santos. Então eu acompanhava. Em 58 eu
tinha onze anos, não tinha televisão, eu me lembro perfeitamente, nós no bar do bairro, o
bar super lotado, e todo mundo no bar escutando o rádio. E lembro depois que o Brasil foi
campeão, saímos pelas ruas dançando, eu no ombro do meu pai, do meu irmão fazendo o
maior carnaval pela cidade. Então eu acompanhei e interessante que eu gostava de ser um
observador de futebol desde muito pequeno; de ver como os times jogavam, as
características dos jogadores, eu entedia já muito. Eu era considerado não só um menino
2 Valdir Pereira, ex-futebolista brasileiro.
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que sabia jogar futebol, mas que gostava de discutir futebol, entendeu? Tanto que eu acho
que isso hoje me ajuda na minha atual profissão de cronista de futebol. Porque tem
jogadores que passam a vida toda jogando, foram grandes craques, mas nunca foram
observadores do futebol não, sabiam jogar, mas nunca tiveram... E isso acontece muito isso
hoje. Aliás, o mais comum dos grandes jogadores é eles não serem bons observadores de
futebol.
B.H. – Então você se lembra da comemoração da Copa de 58 em Belo Horizonte, e
62?
E.A. – Em 62 eu já tinha quinze anos, não é? Foi também pelo rádio. Aliás, a
primeira Copa que teve transmissão ao vivo foi a que eu joguei, em 70. Quer dizer, eu
joguei em 66 também, mas em 70 foi a primeira... Então, eu lembro também a mesma
festa.
B.H. – Havia essa mobilização...?
E.A. – É, minha família era muito envolvida com o futebol, os meus irmãos, o meu
pai, então era... Comemoramos muito. A gente era envolvido. Eu conseguia ter dois
mundos paralelos ali. Eu era um jovem que estudava, queria ter uma profissão liberal, era
uma pessoa meio sonhadora, tendendo à filosofia de botequim, essa coisa e ao mesmo
tempo eu adorava ver futebol, detalhes de futebol. Quer dizer, eu cresci com esses dois
mundos na minha...
B.H. – Você fala dos estudos, você tinha um interesse mais focado na área de
Humanas, na área de Exatas, na própria área Biológica? Como era seu interesse?
E.A. – Quando eu estudei... Eu parei de estudar com dezesseis anos, quando fui ser
jogador de futebol. Quer dizer, eu fiz o grupo, o ginásio e o científico. Quando eu terminei
o científico e decidi jogar futebol, eu já tinha mais ou menos a ideia de que eu queria fazer
na área de Ciências Humanas, tanto que quando eu decidi entrar na faculdade depois que
eu parei de jogar, eu fiquei na dúvida se eu fazia psicologia ou medicina. Eu fiquei até a
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última hora com essa dúvida. Eu optei por medicina porque eu imaginei que a medicina
seria uma coisa mais completa, que eu poderia entender mais da alma humana e mais do
corpo. Seria uma coisa mais completa. Eu até fiquei um pouco decepcionado nisso porque
a formação médica é puramente técnica, não tem nada de... Tanto que a Medicina... Depois
eu fiz residência, eu era médico clínico, eu passei a me especializar... Não me tornei um
especialista. Eu era professor lá da faculdade e médico do hospital da faculdade e eu
comecei a me hipertrofiar na área de psicologia médica sem fazer o curso de psicologia. Eu
fiz o curso de Medicina Psicossomática, fiz Psicanálise, então eu era tido lá dentro, no
meio da turma, como um médico que gostava de ouvir os pacientes e conversar sobre os
problemas e tal. Então eu acho que se eu voltasse, se eu tivesse essa decisão hoje de
escolher a minha profissão, eu não tenho dúvida que eu escolheria a Psicologia pelo foco
mais... Apesar de eu gostar... A Medicina para mim foi uma... Quer dizer, conhecer
detalhes do corpo humano, isso foi fantástico, foi como eu viajar em uma coisa fantástica,
mas eu queria entender um pouco mais. Eu gostava mais da alma humana, e gosto mais, do
que do funcionamento biológico das coisas.
E.A. – Tostão, agora falando da sua carreira profissional, a sua firmação no Cruzeiro
acontece em um momento que parece especial, porque nós temos a inauguração do estádio
do Mineirão, o agigantamento do próprio público frequentador de estádio, a entrada do
Cruzeiro nesse cenário de rivalidade que antes, como você disse, ficava pautado entre
Atlético e América, e a própria criação de um campeonato nacional de clubes que começa
a se esboçar nos anos 60. Como foi para você se afirmar tão rapidamente em meio a esse
fenômeno, vamos dizer, tríplice?
B.H. – Justamente, foi isso. Então, em 63 eu comecei, com dezesseis anos, a jogar no
Cruzeiro, a gente jogava no Independência e no campo do Cruzeiro, não é? Então, quando
chegou o Mineirão, o Cruzeiro tinha menos prestígio do que o Atlético e até do que o
América. O Atlético era o de mais prestígio. E com a inauguração do Mineirão
rapidamente houve uma grande transformação. Quer dizer, o Cruzeiro fez um grande time
no Mineirão. Foi uma coincidência porque apareceram vários jogadores novos de grande
talento: eu, Dirceu Lopes, Piazza, Zé Carlos, Natal, todo mundo junto. E o Mineirão
ganhou uma notoriedade não só em Minas Gerais como em todo o Brasil. O Mineirão
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passou a ser uma grande atração da cidade, as famílias todas iam... O programa de
domingo era ir ao Mineirão. E coincidiu com esse crescimento do Cruzeiro. O Mineirão foi
inaugurado em 65, inclusive eu joguei pela seleção mineira que jogou o jogo da... Apesar
de eu ter na época só dezoito anos, fui titular da seleção mineira. E em 66 teve a Copa do
Mundo que eu fui pela seleção. O Cruzeiro virou um grande time no Brasil,porque tinha
um ótimo time e principalmente porque ganhou do Santos e foi campeão do Brasil - o
Santos que era o melhor time do mundo, com Pelé e tudo. Então aquilo foi um boom no
futebol mineiro, principalmente no Cruzeiro, não é? Então o Cruzeiro foi lá em cima, virou
um clube nacional e o Atlético ficou em uma posição inferior. Depois as coisas se
equilibraram. Mas o Cruzeiro virou um time nacional, o Brasil todo falava do Cruzeiro.
Nós tínhamos convites para jogar no Brasil todo, em todos países da América do Sul. O
Cruzeiro virou um time de grande prestígio e isso formou uma torcida enorme. O Cruzeiro
passou a ser um clube de grande prestígio e em Minas Gerais, fora de Belo Horizonte, é
disparado o clube que tem mais torcida, em Belo Horizonte eu acho que ainda é do
Atlético. Não tenho dúvida que é do Atlético. Mas há uma discussão em Minas Gerais,
segundo as estáticas aí, os estudos, o Cruzeiro tem uma torcida maior do que a do Atlético,
alguns discutem isso. Mas então o Cruzeiro virou... E coincidiu tudo com o Mineirão, o
Mineirão deu um prestígio muito grande... E depois com as transformações no futebol,
hoje Cruzeiro e Atlético fazem parte da elite do futebol brasileiro, os melhores times do
futebol brasileiro.
B.H. – Mas para você como um jogador que está se iniciando, se afirmando muito
rapidamente, jogar no Mineirão, jogar diante das multidões, como é do ponto de vista
psicológico lidar com isso?
E.A. – Foi uma... Quer dizer, como o time era muito bom e só ganhava... Nós fomos
cinco anos seguidos campeões mineiros, campeões brasileiros. Quer dizer, eu me adaptei
rapidamente a esse mundo. E logo nessa época eu fui para a seleção e nunca mais deixei de
ser convocado. Passei a ser um jogador de todas as seleções que se convocava. Eu me
adaptei a essa realidade e me dedicava muito, era profissional apesar da época não ser... O
futebol não era tão profissional como é hoje, mas o Cruzeiro era, não é? Então eu me
adaptei a essa... Era uma carga emocional muito grande você lidar com um público
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enorme, responsabilidade, você passa a ser cobrada, essa pressão que o jogador sente... Os
jogadores vão ficando com mais prestígio e a pressão vai aumentando, e isso hoje é uma
das causas... De vez enquanto você vê: “Ah, Fulano tinha tudo para ser um grande jogador
e não foi”. Uma das causas é essa: incapacidade de lidar com o sucesso, com a fama, com a
pressão, com tudo em volta, compromissos que passam a ter, compromissos sociais em
volta disso. Desde aquela época até hoje sou tido como uma pessoa arredia, porque eu
sempre me isolei de tudo isso. Como se diz, eu criei o meu mundo... Uma coisa é a
profissão, vou lá jogo, hoje vou lá e escrevo, outro coisa é... Então eu sempre tive um
mundo totalmente à parte que não tinha nada a ver com aquela... Então isso eu acho que foi
muito bom também para eu jogar melhor. Isso me ajudou a lidar com essa pressão.
B.G. – Mas como você se estruturava psicologicamente? Você tinha apoio da tua
família, mas você buscava isso aonde, esse equilíbrio? Você jogava em um time com
grandes jogadores,não sei como era a relação com o grupo, a pressão, como funcionava
isso psicologicamente. Queria saber como você se estruturou. Você se estruturou sozinho,
até, às vezes, você fala que você era seu próprio técnico, alguma coisa assim.
E.A. – É, é isso. Eu tinha uma formação familiar muito boa. Eu tinha um preparado
intelectual razoável de conhecimento das coisas para lidar com isso, tinha uma capacidade
de me isolar, de não misturar as coisas, uma coisa é o trabalho e outra coisa é a minha vida
– fazia muita questão de manter esse distanciamento. Então isso foi fundamental para que
eu pudesse ter uma carreira curta, mas vitoriosa e ter me saído bem no futebol.
B.H. – Você já estava casado quando você começa no Cruzeiro ou não, foi mais
tarde?
E.A. – Não, eu casei mais tarde. Eu casei em 72 e tenho dois filhos hoje.
B.H. – Nesse time do Cruzeiro, como você se lembra desse momento? Quer dizer, o
grupo você conheceu ali no Cruzeiro mesmo? Havia jogadores que você já tinha tido
contato... Você gosta de frisar nas suas crônicas que não se trata de escolhas, ou é o futebol
arte ou o futebol força, mas justamente a qualidade, técnica, eficácia. Todos esses
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elementos se amalgamam para explicar esse sucesso de um time. No caso do Cruzeiro,
como é que você...?
E.A. – Eu acho que primeiro eu coloco uma pura coincidência, não é? Eu cheguei,
logo depois chegou o Dirceu Lopes lá do Pedro Leopoldo com dezessete anos, para jogar
no juvenil do Cruzeiro. Depois de dois jogos lá no juvenil... Eu lembro até hoje, nós
estávamos assistindo o jogo, eu já era do time profissional, eu falei com o técnico: “Traz
ele para cá. Ele já tem condição de jogar no time de cima”. Aí foram chegando, foram
formando... Por acaso formou e coincidiu com o Mineirão, isso deu prestígio,não é? Eu
bato muito que muitas das coisas acontecem por acaso, nossas vidas e tudo. Quer dizer, as
coisas são encaminhadas. Claro que tem as escolhas, mas as escolhas vêm... As coisas são
encaminhadas e depois você define, você escolhe. O Santos formou o Pelé, Coutinho,
aquilo surgiu, não tem nada de planejamento não. Aí as coisas acontecem. Agora, quando
acontecem as pessoas têm fazer as escolhas certas, merecer aquilo e ir atrás daquilo, dar
duro para a coisa funcionar bem, não é?
B.H. – E a sua posição ali naquele time já vinha de uma... A sua posição já estava
definida desde antes ou você, com o grupo,foi encontrando seu espaço, sua característica?
E.A. – Fui encontrando. Quando eu era menino e jogava no time de meninos até ir
para o time profissional, eu jogava mais recuado, era um jogador de meio campo, depois eu
fui me adiantando porque eu gostava de fazer gol. [riso] Então, eu me adiantei um pouco e
passei a jogar um meia mais avançado. No Cruzeiro eu era um meia avançado que dava
muitos passes e fazia muitos gols. Quer dizer, eu tinha as duas qualidades, por isso que eu
fui um jogador de seleção, titular e tudo. Quer dizer, eu fazia as duas coisas: eu era o
artilheiro do Cruzeiro e ao mesmo tempo eu fazia muita armação de jogadas. Na seleção,
as pessoas mais jovens que vêem os tapes da seleção, da Copa de 70, elas me vêem como
um jogador, um centroavante que ficava lá na frente do Pelé e na verdade eu nunca joguei
daquele jeito no Cruzeiro. Então, na verdade, aquilo foi uma adaptação porque eu não
podia jogar no lugar do Pelé, tinha que ser reserva dele, eu falei: “Não, para não ser reserva
dele eu vou me adaptar em uma função diferente”. Então eu me adaptei a uma posição
diferente na seleção para poder jogar, mas a minha posição real no Cruzeiro era como um
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16
meia avançado, eu jogava do meio campo para frente. Eu me lembro de uma passagem que
eu não esqueço... O meu pai além de gostar de futebol ele entendia de futebol, ele
acompanhava detalhe de futebol e ele era apaixonado pelo Di Stéfano3. Eu acho que ele viu
o Di Stéfano jogar uma vez, porque na época não passava jogos na televisão, mas não sei
porque... Eu acho que ele viu uma vez e ficou encantando. Então ele falava, quando eu
estava jogando já no profissional do Cruzeiro, que o Di Stéfano era mais completo do que
o Pelé porque o Pelé só sabia jogar do meio campo para frente e o Di Stéfano jogava
demais desde a defesa até a frente, ele era um jogador que jogava no campo todo. Aí eu
falei assim: “Eu vou tentar jogar como o Di Stéfano”. Mas aí não deu certo não porque
quando eu vinha muito atrás, quando eu chegava na frente eu já estava cansado já. [riso]
Não dá para ser o Di Stéfano não.
B.H. – Mas em campo você gostava de falar, orientar ou era mais calado?
E.A. – Fora de campo eu sempre fui uma pessoa mais calada, mas eu falava, não
demais, mas eu falava muito, eu gostava de discutir as coisas dentro de campo. No
Cruzeiro, eu e o Piazza4 éramos como técnicos do time em campo porque o Piazza também
tinha esse espírito de liderança, de falar muito. Piazza falava até demais, ele é desses que
fala... Principalmente fora de campo, fala o tempo todo, não para de falar. Então eu e o
Piazza éramos, dentro de campo, como técnicos do Cruzeiro. Eu não esqueço até hoje que
o Dirceu Lopes era desses jogadores fenomenais, mas que joga com a bola, ele não era um
observador do jogo, entendeu? As qualidades individuais fabulosas mais do que eu tinha,
mas ele não tinha essa capacidade de ver o jogo como um conjunto. Eu lembro uma vez
que eu e o Piazza... O Dirceu não fazia as coisas... Ele não ocupava uma posição, por
exemplo, que precisava ocupar em termos de defesa, de marcação e tal, era o jeito dele. Aí
eu lembro até hoje de um dia, eu conversando com o Piazza, falei assim: “Vamos fazer o
seguinte, esquece o Dirceu e deixa ele fazer o que ele quiser porque ele joga muito. Então
deixa ele ficar a vontade, nós tomamos conta do coletivo”. Então, eu e o Piazza éramos os
coordenadores e o Dirceu era como um passarinho, ele fazia o que queria. E aí que era bom
para o time porque ele fazia maravilha, não é?
3 Alfredo Estéfano Di Stéfano Laulhé, ex-futebolista e treinador argentino. 4 Wilson Piazza, ex-futebolista brasileiro.
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17
[FINAL DO ARQUIVO I]
B.H. – Tostão, do Cruzeiro para a seleção, a primeira convocação para você foi um
espanto ou foi uma consequência de algo que você já imaginava que fosse o seu percurso?
E.A. – Mais ou menos imaginava, mas na época foi uma grande coisa: foi ir para a
Copa de 66, não é? Só que o detalhe é o seguinte, antes, quando foram convocados os
jogadores, então havia, inclusive, uma grande discussão: “será que de Minas vai ter algum
jogador? Quem vai ser: o Tostão ou o Dirceu Lopes?”. Nós dois éramos os principais
jogadores. “Qual dos dois ou não vai ser nenhum?”. Como foram convocados quarenta e
quatro jogadores, eu fui convocado. Provavelmente se fosse convocado vinte e dois, como
é hoje, eu não seria chamado. Inclusive, na época, se falava no Brasil todo, principalmente
no Rio e São Paulo, que eu, o único jogador de Minas Gerais, o Alcindo5, o único jogador
do Rio Grande do Sul, e o Nado6, único jogador de Pernambuco, que nós fomos
convocados apenas porque questão política, porque era para agradar os estados, mas não
estaríamos na lista dos vinte e dois que iria para a Copa. Essa era a conversa. Aí, como eu e
o Alcindo fomos muito bem nos treinos, jogos e amistosos e tudo, nós conquistamos o
lugar e nós dois fomos para a Copa. O Nado foi cortado. Para mim foi um grande
acontecimento porque, eu lembro, eu cheguei na seleção e estava lá a turma de 58 e 62
com mais o Pelé, Garrincha, aquela turma toda. Aliás, foi o grande erro da seleção, porque
com exceção do Pelé, os outros todos não tinham mais condições de jogarem na seleção,
na Copa do Mundo, jogadores em final de carreira, decadentes. Garrincha, então, nem se
fala e ainda levaram o Garrincha. Então, esse foi um dos motivos do Brasil ter sido um
grande fracasso, não é? Tiveram outros também, como... Era uma fase de transição, os
grandes jogadores e os novos, que estavam aparecendo, que é o meu caso, estavam ainda
começando a carreira na seleção. Então o Brasil não formou um time e não tinha grandes
jogadores na verdade, porque os grandes jogadores já estavam decadentes. E, além disso,
na época, como eram menos equipes na Copa do Mundo, eram apenas dezesseis... Tem
chave de quatro, não é? Agora, na chave de quatro tem dois muito ruins, um mais ou
menos e um bom. Na época, quando era chave de quatro, tinha três muito bons e um mais
ou menos, porque os ruins não participavam, eram menos times. Havia uma seleção antes. 5 Alcindo Martha de Freitas, ex-futebolista brasileiro. 6 José Rinaldo tasso Lasalvia, Nado, ex-futebolista brasileiro.
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Então o Brasil caiu em um chave que tinha duas seleções, além do Brasil, que era muito
forte: era Portugal, na época foi a melhor fase do futebol português com Eusébio7, outros
jogadores que eram grandes jogadores, o Eusébio foi um dos grandes jogadores do mundo,
próximo do Pelé. E a Hungria tinha um timaço, na época a Hungria era uma força dentro
do futebol europeu, hoje não é mais. Então o Brasil caiu em uma chave com duas seleções
fortes, então as duas seleções eram melhores que o Brasil e ganhou. O Brasil só ganhou da
Bulgária que era a única mais fraca. Foi um fracasso. Quer dizer, a primeira Copa para
mim foi... Eu não me esqueço de quando eu cheguei de volta da Copa... Hoje tem
jogadores do Brasil todo que são convocados, jogadores de Minas, Rio Grande do Sul, não
tem essa diferença mais, mas na época era... Futebol era Rio e São Paulo; Minas Gerais, a
não ser o Cruzeiro por causa do boom do Mineirão, era como se fosse futebol de segunda
divisão pela mídia nacional. Então quando eu cheguei da Copa, eu achei interessante, não
esqueço, porque eu voltei me sentindo o maior fracassado do mundo, uma tristeza
profunda, me sentindo o maior fracasso, Brasil eliminado na primeira fase, aí chego em
Belo Horizonte e tinha a maior festa, carro para me carregar, Corpo de Bombeiro, por
causa da importância de um jogador mineiro ter jogado uma Copa. Acho que foi o primeiro
que jogava no estado, teve jogador mineiro mas que não jogava, na época, no estado. Foi a
primeira vez que um jogador mineiro, jogando em um time de Minas Gerais, tinha ido para
uma Copa do Mundo. Aí foi a maior festa, como se eu fosse o grande herói, o Brasil
tivesse ganhado a Copa e eu tinha sido o melhor jogador da Copa. Eu me senti ali
querendo... Eu estava em uma tristeza enorme, e não sabia se ficava triste ou ficava alegre.
[riso] Cheio de homenagens.
B.H. – Mas nos jogos você teve expectativa de entrar?
E.A. – Joguei contra... Porque na época era o seguinte, eu era o reserva do Pelé por
causa da mesma posição. Então, no primeiro jogo eu fiquei na reserva, foi contra a
Bulgária, que era o jogo mais fraco. O segundo, contra a Hungria, o Pelé machuco e então
entrei no lugar do Pelé, fiz um gol, fui até considerado pela crônica como um dos poucos
que atuaram bem. E no terceiro jogo contra Portugal, o Pelé voltou – eu tinha esperanças
de jogar eu e ele juntos – mas aí fiquei na reserva, porque era da mesma posição, e jogou o
7 Eusébio da Silva Ferreira, ex-futebolista português.
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Pelé. Esse tipo de problema eu tive durante alguns anos: o negócio de ser o reserva do
Pelé. Até antes de começar a Copa de 70 era a mesma dúvida, não é?
B.H. – Mas então estão justificados os festejos, porque você fez um gol.
E.A. – É. [riso] Foi o gol mineiro na Copa.
B.H. – Esta trajetória no Cruzeiro você tinha esse entendimento que para ter
visibilidade no futebol nacional teria que ir forçosamente para o eixo Rio-São Paulo ou
não, você acreditava que jogando pelo Cruzeiro você conseguiria conquistar esse espaço?
E.A. – Não. Porque o Cruzeiro se tornou uma grande equipe nacional. Então podia
ficar em Minas Gerais por causa do Cruzeiro. Se não fosse o Cruzeiro eu teria que ir para...
Eu já estava jogando na seleção, era um jogador que tinha um prestígio nacional se não
fosse com o Mineirão, com o Cruzeiro formando um ótimo time... Tanto que quando eu fui
em 72 eu me transferi para o Vasco, porque foi uma fase que o Cruzeiro caiu de produção,
estava, assim, uma baixo astral total, aí eu fui vendido para o Vasco. Quando cheguei no
Vasco eu fiquei assustado porque o Cruzeiro era mil vezes melhor que o Vasco.
B.G. – Em que sentido que era?
E.A. – No sentido técnico, em todos. Primeiro em qualidade de jogadores, segundo
pelo profissionalismo; no Cruzeiro todo mundo treinava muito, era um time muito
organizado, profissional, sério. O Vasco era uma bagunça total. [riso] Todo noite tinha
aquela farra no Rio, ir para desfile de escola de samba, jogador não treinava. Era uma
coisa... E eu fiquei assustado com aquilo.
B.H. – Na sequência, Tostão, da Copa de 66, você continuou sendo convocado
mesmo com a mudança de técnico...?
E.A. – Eu passei a jogar em todas as seleções, nunca houve uma seleção, a partir de
66, que eu não fui convocado. Fui convocado para todas as seleções e quando o Pelé não
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jogava, eu era o titular. Em 69, quando teve as eliminatórias para a Copa, foi o grande
momento meu, foi o momento técnico melhor que eu tive na seleção, no futebol, que me
deu mais prestígio. Em 69, não me esqueço do primeiro dia que o Saldanha 8chegou na
seleção ele me chamou e falou: “Qual o problema?” – o Saldanha era meio engraçado. Eu
falei assim: “Não, não tem problema. O único é que eles acham que eu tenho que ser
reserva do Pelé e eu posso ser jogador ao lado dele, não vejo nenhum problema”. Aí o
Saldanha falou assim: “A partir de hoje você é titular absoluto, pode jogar até mal quantas
vezes você quiser que você não sai do time”. E chamou a imprensa, falou: “O Tostão é
titular, não falo mais disso, não pergunta mais. Titular absoluto é o Tostão”. O Saldanha
me deu um prestígio. O interessante que isso me fortaleceu emocionalmente, foi o melhor
período que eu tive no futebol, foi justamente nessas eliminatórias com o Saldanha jogando
ao lado do Pelé, nós dois juntos.
B.H. – Você passou a ser uma das feras do Saldanha. Justamente essas eliminatórias
que em termos de público...
E.A. – Foi o maior o público contabilizado da história do Maracanã, foi Brasil e
Paraguai o último jogo... Pagantes foram quase cento e noventa mil pessoas. Eles
calcularam mais de duzentas mil pessoas no Maracanã. Talvez na Copa de 50, final, tenha
tido o mesmo número de pessoas, mas não foi contabilizado, o público contabilizado foi
muito menor.
B.H. – No delicado momento que houve a passagem do Saldanha pra o Zagallo, você
viu a sua posição...
E.A. – Ameaçada novamente. Aí entra o Zagallo9 e aconteceu justamente o contrário
quando entrou o Saldanha. O Zagallo entrou, o Zagallo tinha as ideias dele e a primeira
coisa que ele falou foi: “O Tostão é reserva do Pelé porque ele joga na posição do Pelé”.
Aí foi quando ele convocou dois centroavantes para jogar... Ele gostava de um
centroavante finalizador que ficasse mais na frente, convocou o Roberto que era jogador do
Botafogo – o Zagallo era técnico do Botafogo, costumado a jogar com Gérson e com 8 João Alves Jobim Saldanha, foi jornalista e técnico da seleção brasileira. 9 Mário Jorge Lobo Zagallo, ex-futebolista e treinador brasileiro.
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Jairzinho. Aí colocou o Roberto e o Dario do Atlético, que tinha sido o artilheiro do
campeonato brasileiro, como reserva e eu seria o reservado Pelé. Nessa época eu estava em
recuperação por causa do problema no olho que tive, fui operado, fiquei seis meses parado.
Quando o Zagallo falou isso eu achei até bom porque eu não estava ainda em condições de
jogar, falei: “Deixa eles jogando, depois eu vou...”. Eu tinha muita confiança que o lugar
era meu: “Deixa eles jogando que depois eu entro, quando chegar perto da Copa”. E foi o
que aconteceu.
B.H. – Embora tenha sido um momento muito duro, o lance que causou o lance do
olho foi em setembro de 69...
E.A. – Foi em setembro, no jogo do Cruzeiro contra o Corinthians. O Ditão10, o
zagueiro, chutou uma bola - o campo estava molhado, encharcado, a bola pesada... Eu
estava caindo e ele chutou um metro de baixo de mim com toda força, a bola pegou no
meu olho direto. Então eu tive um deslocamento de retina, fui operado, inclusive, lá nos
Estados Unidos, na época eles achavam que as condições lá eram muito melhores, e fiquei
seis meses totalmente sem fazer nada. E quando teve a convocação para a Copa eu estava
sem fazer nada, parado. Então, se não fosse o Saldanha, talvez o técnico não ia acreditar
que eu pudesse jogar. Quando eu fui para os Estados Unidos, não esqueço, quando eu fui
para os Estados Unidos, quando eu cheguei ao aeroporto estava cheio de repórteres lá e o
Saldanha foi lá, porque ele era o técnico da seleção, não é? O Saldanha daquele jeito, ele
era exagerado, aquela coisa toda...
B.H. – Performático.
E.A. – É. Aí o Saldanha falou para os repórteres da minha vista: “O único jogador
que está escalado para a Copa é o Tostão. Então eu espero ele até a hora dele entrar no
campo. Ele vai ter o tempo que ele quiser para recuperar”. O Saldanha gostava muito de
mim, eu acho até que parte dessa admiração que ele tinha como jogador era um pouco... O
Saldanha era uma pessoa humanista, era uma pessoa que tinha uma... Era muito culto,
participou do Partido Comunista, era muito politizado, não é? E o Saldanha gostava de
10 Geraldo de Freitas Nascimento, ex-zagueiro.
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mim, de conversar sobre política, sobre outras coisas. Então, um pouco dessa admiração
que ele tinha como jogador era um pouco da nossa relação como... Não vou dizer que nós
éramos amigos porque a gente só encontrava quando reunia, mas pelas conversas que a
gente gostava de ter, bater papo. Ele também me admirava pelo meu comportamento.
B.H. – Havia uma identificação.
E.A. – É, havia uma identificação que era recíproca.
B.H. – Imagino que apesar de ter a vaga garantida no grupo do Saldanha, a
passagem, a vivência desses seis meses de recuperação...
E.A. – Ah, foi um tempo... Porque eu fiquei seis meses totalmente parado, não podia
fazer exercício nenhum. Havia, na época, muitas pessoas que davam opiniões de que eu
não teria condições mais de jogar futebol, não é? Então havia essa grande dúvida: se eu
poder jogar futebol. Aí o médico comentou, me autorizou e disse que eu podia jogar. O
médico que me operou nos Estados Unidos era um médico brasileiro e mineiro, não é? Ele
continua até hoje trabalhando como... Ele voltou para BH. Então ele falou: “Não, você
pode... Você tem condições de jogar, já está operado”. Então, foi nenhum ato heróico não,
fui pela palavra dele na frente. Mas isso me trouxe além das dificuldades, dos problemas
físicos – eu não tive a mesma preparação que os outros jogadores – técnica também,
porque eu fiquei muito tempo sem jogar. Eu tinha consciência que eu tinha condição de
jogar, que eu podia jogar, mas é claro que havia um certo temor, que passava um
pensamento que eu estava arriscando muito a minha saúde, que não ia dar certo, aquela
coisa toda.
B.G. – E esse tempo que você ficou em recuperação você investiu em que, você
estudava?
E.A. – Eu ficava lendo, eu podia ler, pelo menos eu tinha um olho bom. [riso]
B.G. – Mas sobre o futebol também?
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E.A. – Não, eu fiquei nesses meses totalmente afastado, lendo, em repouso. Eu tinha
milhões de [INAUDÍVEL], depois foi diminuindo as restrições de início. Não podia viajar
de carro porque o carro podia balançar, não podia não sei o que, não podia correr, não
podia... Então foi um período difícil, da incerteza, não é? E para agravar isso tudo, uns dez,
quinze dias antes de começar a Copa, foi quando o Zagallo já tinha definido que eu ia ser o
titular, ele voltou atrás, não é? Ele falava que ele queria o Dario11 e o Roberto. Depois ele
viu que os dois não eram jogadores para jogar ao lado do Pelé, do Gérson12 e acabou me
colocando em uma posição diferente que eu jogava no Cruzeiro, não é? Aí que eu falei que
eu fui jogar em uma posição mais na frente, de centroavante. Eu lembro até hoje, em um
treino, ele estava morrendo de dúvida e aí teve um jogo treino contra um time do México,
nós estávamos no México, mas eu joguei muito nesse treino junto com o Pelé, junto com o
Gérson. Nós fizemos um jogo que todo mundo ficou extasiado. Aí acabou o jogo e o
Zagallo chegou perto de mim com um sorriso de todo tamanho como quem diz: “Você que
vai jogar”. [riso] Aí dias depois disso, quer dizer, eu estava naquele auge, para complicar,
para virar um drama a coisa, eu apareço com hemorragia no olho, a conjuntiva toda
vermelhar igual a uma pasta de sangue. Aí o médico veio lá, ele trabalhava em Houston,
coincidência perto do México, ele foi lá me examinar, lá na concentração. Eu lembro que
ele falou que gasto dois dias para chegar... Dois dias não, não era tanto. Nós estávamos em
Guanajuato, que era um lugar longíssimo da Cidade do México, ele ficou o dia todo
viajando de carro para chegar lá e tal. E aí me examinou e falou: “Não, o problema é
puramente da conjuntiva. A cirurgia lá dentro”- que é a retina, a parte interna – “essa está
intacta, curada, está normal, não tem nenhum problema. Isso é apenas um esforço aí, os
vasos dilataram e sangrou pela conjuntiva. Mas isso não impede nada”. Mas mesmo assim
ficou um zum zum danado, o médico da seleção, o técnico, a comissão técnica, todos eles,
assim, em uma... Fizeram reunião: “Será que confiamos nessa palavra do médico, esse
negócio está meio... Vai começar a Copa...”. Então foi aquele drama, não é?
B.H. – Isso para a imprensa deve ter sido como um prato cheio.
E.A. – É, um prato cheio. Eu lembro que o Gérson, assim, inocentemente falou para
um repórter: “Quando eu passo na frente do Tostão eu fico em pânico, porque eu vejo o 11 Dario Santos, Dadá Maravilha, ex-futebolista brasileiro. 12 Gérson de Oliveira Nunes, ex-futebolista brasileiro.
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olho dele todo vermelho”. [risos] Aí saiu um dia na imprensa. Foi um drama a minha
escalação. [riso] E o médico, em todo jogo da seleção, era convidado da seleção, ele saía lá
de Houston, chegava na véspera, dormia na concentração junto com todo mundo, me
examinava, assistia ao jogo, às vezes me examinava depois do jogo e ele voltava para
Houston. Aí em outro jogo ele voltava. Então foi uma coisa assim meio...
B.H. – Tostão, pode se conjecturar que esse drama pessoal que você atravessou de
alguma maneira o sensibilizou mais tarde para a própria carreira da Medicina ou seria...?
E.A. – Não, eu acho que não. É interessante que quando eu comecei a estudar
Medicina as pessoas sempre achavam que eu ia ser oftalmologia ou então ortopedista;
ortopedista porque médico de futebol é ortopedista, ou então, a maioria achava,
oftalmologista. Eu falei: “Não, esta é a última coisa que eu vou ser”. [riso]
B.H. – A Copa de 70 é muito atribuída essa imagem do triunfo do futebol arte. Hoje
em dia a gente tem uma consciência de que houve ali toda uma preparação física que de
alguma maneira permitiu com que essa habilidade pudesse aflorar. Como foi esse período
de preparação?
E.A. – Isso que é o mais interessante, porque o futebol brasileiro até a Copa de 70 era
tido como um futebol de habilidades, de malabarismo mas que não tinha consistência como
futebol de eficiência e tudo. Era um futebol só de diversão, de show, de exibição, mas que
não tinha consistência para ganhar. Depois de 1962 até 1970 o futebol europeu deu uma
evoluída enorme, principalmente a Inglaterra. E o futebol brasileiro em 66 perdeu, estava
em baixa, não é? E todo mundo só falava na objetividade do futebol europeu, que o futebol
brasileiro não tinha objetividade, não tinha reparação física, não tinha força e tal. Foi
quando o Nelson Rodrigues, que era contra tudo isso, chamava os jornalistas de idiotas da
objetividade, porque os jornalistas ficavam falando dessa objetividade. Então houve uma
grande preparação para a Copa de 1970, preparação física. Você sabe que eles pegaram
estudiosos em preparação física, fizeram programas para altitude do México, foi uma
coisa, assim, extremamente tecnológica, moderna para época. Então o Brasil além de
ganhar, mostrou um futebol de grande conjunto, futebol coletivo – todo mundo falava que
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o futebol brasileiro não tinha conjunto, era só individualidade. Então foi justamente o
contrário. O mundo todo ficou extasiado. O cineasta Pasolini 13escreveu e na época todo
mundo ficou só falando nisso: “o Brasil juntou a poesia com a prosa. Antes era só futebol
de poesia”- coisas desse tipo. Então houve uma organização e um preparo físico
exuberante, todo mundo extremamente bem preparado. Foi uma revolução no futebol
brasileiro. Isso é interessante porque paradoxalmente, a partir daí, houve uma hipertrofia...
Quer dizer, ao mesmo que a seleção de 1970 foi um marco no futebol bem jogado no
Brasil, coletivo e individual junto, houve uma supervalorização da preparação física, da
tática. Quer dizer, foi para o outro lado; o que era antes de 1970 foi para o outro extremo.
Então eu acho que houve uma supervalorização dos técnicos, da preparação física, jogo
tático, organizado, planejado e isso tirou um pouco da beleza do futebol brasileiro. Então
houve os dois lados. E com o tempo as coisas foram se ajeitando, mas o Brasil ficou vinte e
quatro anos sem ganhar Copa do Mundo e não é só que não ganhou, com exceção de 1982
que tinha grandes craques, o Brasil não ganhou porque as outras seleções eram melhores
do que a do Brasil. Houve uma queda no futebol brasileiro nesses vinte e quatro anos aí, de
1970 até 1994, não é?
B.H. – Tostão, e 1970, quando essa concepção de treinamento, de uma adequação de
modernos padrões foi adotada, por parte dos jogadores como isso foi concebido, foi aceito,
houve resistência?
E.A. – Foi aceito.
B.H. – [INAUDÍVEL].
E.A. – Também. Todo mundo ficava assustado porque nós estávamos tendo ali um
tipo de preparação que ninguém conhecia nos seus clubes, nem na seleção antes de 1970. E
houve tempo para isso também, nós ficamos quase quatro meses, três meses e meio
treinando, então foi muito tempo. Quer dizer, houve tempo para fazer isso. Então foi uma
revolução tecnológica no futebol e influenciou o mundo todo. Aí coincidiu com o período
de desenvolvimento da ciência em todas as atividades cientificas, o mundo ficou mais... O
13 Pier Paolo Pasolini, foi um cineasta italiano.
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mundo em pouco tempo, em cinquenta anos, teve um desenvolvimento tecnológico que é
uma coisa impressionante. Também aconteceu isso no futebol, não é?
B.H. – Você disse que nos anos 1960 houve uma elevação do padrão de qualidade no
futebol europeu possível até em função dos campeonatos de clubes no continente europeu,
times como o Real Madri, com o Di Stéfano14... Grandes times que tinham status e
qualidade de seleções nacionais. Isso de alguma maneira culmina com em 1974 com a
revolução tática feita pela seleção portuguesa que tinha por base o time do Ajax15.
E.A. – É. Só que em 1974 a diferença é a seguinte... Não foi bem uma revolução, foi
uma inovação factual porque o Cruijff16 conta que quinze dias de começar a Copa de 74
eles se reuniram, o técnico Rinus Michels17 que virou uma lenda não só por causa 74,
depois com o Ajax... Eles se reuniram e o... O holandês é muito ousado e criativo, então
eles se reuniram e falaram assim: “Não temos chances nenhuma de ganhar a Copa, então
vamos fazer uma coisa diferente, vamos tentar assustar todo mundo. Pode ser o maior
fracasso, mas pode, quem sabe, dar certo?”. Aí criaram um jeito de jogar, assim, em quinze
dias que foi um assombro no mundo todo. Foi a única vez que alguma coisa surpreendeu...
Única fez que houve uma grande surpresa: de repente aparece uma coisa que ninguém
conhecia. Mas só durou durante a Copa, porque depois, aquele jeito de jogar, foi
abandonado. Os times que tentava fazer igual era um fracasso. Então foi uma coisa
espetacular mas que durou pouco tempo. Diferente, eu acho, dessa seleção de 1970, ela foi
o início de uma mudança profissional no futebol, o futebol que era uma coisa amadora
tanto fora quanto dentro de campo, a partir de 70 passou a ser uma coisa profissional. As
pessoas entusiasmaram tanto com aquilo, com a ciência aplicada ao futebol, que eu acho
que exageraram: começou gente demais que entende de ciência mas não entende de futebol
a comandar o futebol e tirou muito da beleza, da espontaneidade da... Evidentemente que
sempre houve tentativas de conciliar as duas coisas que é o ideal. Um grande time é
quando você concilia um jogo organizado, coletivo com improvisação individual, foi o que
a seleção de 70 fez. Ela é considerada o melhor time - para a maioria, nem todos – de
futebol de todos os tempos porque ela fez essa conciliação entre o jogo coletivo, 14 Alfredo Estéfano Di Stéfano Laulhé, argentino, ex-jogador de futebol e treinador. 15 Clube de Futebol de Amsterdã Ajax é um clube de futebol de Amsterdã, Países Baixos. 16 Hendrik Johannes "Johan" Cruijff, treinador e ex-futebolista dos Países Baixos. 17 Marino Jacobus Hendricus “Rinus” Michels, foi um jogar e treinador de futebol holandês.
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organizado, com preparação física com improvisações espetaculares, individuais. Quer
dizer, quando você tem um time de grandes jogadores, mas muito individualistas, cada um
tentando fazer, não forma um grande time. A mesma coisa o contrário, não adiante ter uma
super organização coletiva sem ter qualidade individual.
B.H. – Esse apoio da torcida mexicana foi algo surpreendente para vocês?
E.A. – Eu acho. A vida mexicana, até hoje, é muito identificada com a vida
brasileira; o tipo de cidade, o tipo de comportamentos coletivos. Tem muita coisa,
inclusive as nossas coisas ruins que emperra o crescimento humano do país, o crescimento
social acontece a mesma coisa no México. Então o mexicano gostava do Brasil e gostava
muito do futebol brasileiro. Então ele adotou o futebol brasileiro como... Tanto que até
hoje, apesar de ultimamente eles estarem ganhando muito do Brasil, o Brasil foi sempre
para eles uma referência; eles sempre tentaram jogar como os times brasileiros. Pior que os
três últimos jogos eles ganharam os três, no momento eles estão melhores que o Brasil.
[riso]
B.H. – Eles agora são referência para a gente. [riso] E das partidas disputadas nessa
Copa, qual – além, obviamente, da final contra a Itália – ficou mais cravada na sua
lembrança pela sua atuação ou pela atuação do grupo como um todo?
E.A. – Eu me orgulho do seguinte... Eu acho que na Copa eu joguei menos do que eu
jogava no Cruzeiro por dois motivos: primeiro porque eu joguei fora da minha posição; e
segundo que eu não estava - por causa desse problema todo da vista, ter ficado muito
tempo parado - com as mesmas condições que outros jogadores. Esse preparo fenomenal
físico que o Brasil tinha, eu não era o modelo para isso, pelo contrário. Mas eu me orgulho,
assim, que os meus grandes lances na Copa foram os grandes momentos que eu acho mais
importante da seleção, no sentindo seguinte: nos dois jogos que o Brasil correu riscos de
perder foram os jogos que eu mais contribui para a seleção; foi no jogo contra o Uruguai
que eu dei dois dos melhores passes que eu já dei na minha vida; e o jogo contra a
Inglaterra que eu também construí o lance que deu a vitória ao Brasil. Na média eu estive
muito aquém do que eu poderia jogar, mas nesses jogos que foram os de maiores riscos
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foram os jogos que eu joguei bem, que eu fui protagonista do jogo. Mas na média eu acho
que eu poderia ter jogado melhor.
B.H. – Você comentou um pouco o seu estilo um pouco mais fechado, um pouco
mais arredio até como uma forma de se proteger do sucesso, da fama, da dificuldade de
manter o equilíbrio que o prestígio traz. Mas na véspera de final de Copa de Mundo, que
você está ali imerso na concentração, toda aquela expectativa, assédio da imprensa, como é
você conseguir ali o seu espaço se concentrar e se preparar para o jogo? Você se lembra da
véspera do jogo contra a Itália?
E.A. – Muito. Na minha carreira toda, eu sempre fiquei muito tenso antes dos jogos,
tenso no sentido... A ansiedade até certo limite é benéfica, você fica concentrado, tenso,
pensando naquilo. Isso eu acho importante, com algumas exceções; o Garrincha18 virou
folclore porque ele ia jogar e ele não sabia nem contra que time ele ia joga. Eles contam
que ele – em parte é isso e em parte é folclore – entrava no jogo como se tivesse jogando
uma pelada lá de Pau Grande, onde ele morava. É claro que tem essas exceções, mas eu
acho que o jogador tem que ficar concentrado. Eu era muito tenso, eu não dormia bem
antes dos jogos, eu ficava pensando no jogo, não é? Então isso eu acho que me ajudava. E
na Copa mais ainda, no final da Copa mais tenso, não dormi bem, fiquei preocupado, não
é? A pessoa que eu tinha mais...
B.H. – E você dividia quarto com quem na época?
E.A. – Na época com o Piazza. O Piazza é uma pessoa muito social, fala muito.
Então isso era bom porque tirava um pouco da tensão. Mas eu fiquei muito tenso, muito
preocupado e todos ficaram. Até um fato engraçado é que o jogo foi meio dia, porque no
México... Acho que até por causa da tourada que o jogo foi meio dia, tradição da tourada
domingo a tarde lá no México. Nós acordamos para tomar café de manhã e estava uma
tensão enorme, todo mundo calado na mesa de café e aí o Dario – o Dario é o sujeito mais
espalhafato que existe no mundo, o mais engraçado – pediu a palavra, ficou na cabeceira
como se tivesse... E falou: “Eu quero comunicar uma coisa importante: sonhei essa noite
18 Manuel Francisco dos Santos, ex-futebolista brasileiro.
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que eu joguei e eu fiz três gols, pode me escalar que eu garanto”. [risos] Aí todo mundo
começou a rir, ele descontraiu o ambiente. Nem na reserva ele ficou. Mas então foi uma
tensão enorme. Eu normalmente já ficava tenso em jogo do Cruzeiro, qualquer jogo, até
amistoso, ainda mais na final da Copa do Mundo.
B.H. – Esse tipo de preparação quem tem hoje de ver o vídeo tape do outro time, de
estudar o outro time, tinha isso?
B.H. – Preleção...
E.A. – Não. Para você imaginar, a final da Copa, o Parreira19, que se tornou técnico e
foi campeão do mundo pelo Brasil, era auxiliar da preparação física na época, novinho e,
além disso, como ele entendia e gostava da parte do jogo, ele foi ver a Itália jogar, viajou
para ver a Itália jogar, para dar as informações. A Itália jogou contra a Alemanha na
semifinal. O Parreira fez uma preleção na véspera do jogo, nós nos reunimos para falar do
jogo, discutir o jogo, os detalhes do jogo na véspera. O Parreira tirou milhões de
fotografias, colocou todas em sequência, colocou umas cinquentas fotografias no quadro,
por exemplo, para mostrar o Facchetti20, que era uma lateral que marcava... Eles marcavam
homem a homem. Então o jogador que ia marcar o Jairzinho21 ele mostrava que se o
Jairzinho fosse para o outro lado, esse jogo ia acompanhar o Jairzinho. Então ele mostrou o
jogo contra a Alemanha, o posicionamento de cada jogador, os movimentos dele em
campo com fotografia sequencial. Uma coisa quase absurda você imaginar que seja
possível fazer isso hoje com tanto recurso tecnológico. [riso] Para você ver como era a
diferença. E muitos dos detalhes que discutimos aconteceram no jogo, assim, do ponto de
vista tático do jogo. Na época, para o Brasil, tática era uma coisa... Hoje não, o dia inteiro
fica falando de tática na televisão, os técnicos e tudo. Antes da Copa, no futebol brasileiro,
tática era uma coisa totalmente desprezada, coisa menor. E esse jogo foi um jogo muito
tático. Quer dizer, foi um avanço da seleção, um avanço muito importante. Várias coisas
que nós imaginamos foram discutidas e aconteceram dentro de campo. Tanto que nesse
jogo... A Itália tinha quatro jogadores de defesa e atrás dos quatro tinha um líbero que fazia
19 Carlos Alberto Parreira, ex-treinador brasileiro de futebol. 20 Giacindo Faccheti, ex-futebolista italiano. 21 Jair Ventura Filho, ex-futebolista brasileiro.
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a cobertura dos outros quatro. Então nós combinamos que eu jogaria atrás dos quatro. Quer
dizer, eu me sacrifiquei individualmente para jogar perto do líbero, para o líbero me
marcar. Por exemplo, nos gols do Brasil o líbero deveria fazer a cobertura e não fez porque
ele estava me marcando. Quer dizer, foi uma coisa combinada, não é? Foi combinado, por
exemplo, no quarto gol do Brasil que quando o Jairzinho viesse para o meio e o cara o
acompanhasse, o cara fazia marcação individual, o Carlos Alberto22 ia entrar por aquele
setor e quarto gol assim: o Carlos Alberto entrando livre para fazer o gol. Esse foi um
exemplo do jogo de como a seleção de 1970 foi avanço. Mesmo assim, hoje, a geração - o
que se fala aí nas televisões, nos bares e tal - é uma coisa totalmente equivocada; há um
conceito que a seleção de 1970 foi espetacular porque os jogadores tinham liberdades em
campo de fazer o quisessem e cada um... E não era assim, era um jogo completamente
coletivo, organizado, não é?
B.H. – Mas isso que você fala da combinação que foi feita entre você e os jogadores
ou isso foi da parte do técnico?
E.A. – Conjunto, com o técnico, e o Zagallo foi importantíssimo nisso. Aliás, o
Zagallo era já técnico do Botafogo, campeão carioca, era ainda novo, tinha pouco tempo de
técnico. O Zagallo, para a época, estava mil anos na frente dos outros técnicos porque,
além de ter sido um jogador muito inteligente, ele era extremamente obsessivo com a parte
tática, que era uma coisa deixada para segundo plano na época. Então os técnicos não
tinham essa... Com o tempo ele até ficou ultrapassado, mas na época de 1970 ele foi um
técnico extremamente importante e inovador.
B.H. – A gente falou dessa ansiedade da véspera, do dia jogo, tensão para entrar em
jogo, disputa, preparo para enfrentar a Itália, no jogo, a vitória. E vocês imaginavam que
haveria uma comemoração daquela maneira com a torcida mexicana – falávamos da
torcida mexicana – invadiu campo e deixaram você de sunga, aquela euforia toda, vocês
podiam imaginar que seria daquela forma?
22 Carlos Alberto Torres, ex-futebolista brasileiro.
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E.A. – Nem tanto, aquele final não foi programado não. [riso] Por pouco eu não
fiquei completamente pelado dentro da... Eu fiquei de sunga e já estava vindo alguém para
tirar a sunga e aí eu comecei a gritar apavorado, chegou a polícia e me achou. [risos] O
Rivelino23 desmaiou, aquela multidão em volta dele.
B.G. – Todo mundo queria um pedaço.
E.A. – É, uma loucura aquilo.
B.H. – Imagino que essa comemoração de vocês se prolongou ali, começando meio
dia foi até meia noite.
E.A. – É, a noite houve uma grande festa fechada, com os jogadores, nem lembro,
um lugar fechado. Eu lembro até que eu estava nessa festa e queria falar com algumas
pessoas no Brasil, na época era difícil a comunicação. Aí eu consegui uma pessoa,
abandonei a festa, que me levasse até o hotel, entendeu? Cheguei ao hotel lá, fiquei
quietinho lá, abri um cerveja e fiquei ali em uma alegria enorme, chorei sozinho, liguei
para as pessoas que eu queria falar e tal.
B.H. – Imagino também depois, o retorno ao Brasil.
E.A. – Ah é, foi uma loucura, porque nós chegamos ao Rio, a maior festa no Rio,
bombeiros, aquela coisa toda. Aí fomos para Brasília, bombeiros, aquela loucura. Aí
tivemos que aguentar lá o ditador Médici24 ainda, fazer cara boa para ele. Na época, eu me
lembro, me incomodava estar ali, mas tinha que estar porque não podia ser diferente. E
depois para Belo Horizonte foi uma outra festa, aí que foi a festa maior de todas. [riso]
B.H. – Em 66 eles já tinham comemorado...
23 Roberto Rivelino, ex-futebolista brasileiro. 24 Emílio Garrastazu Médici, militar e político brasileiro, presidente do Brasil entre 1969 e 1974.
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E.A. – É. Você imagina, ganhou... E tinha quatro jogadores mineiros: eu, o Piazza, o
Fontana25 que era o zagueiro do Cruzeiro e reserva da seleção, e o Dario que era do
Atlético e que foi reserva da seleção. Quer dizer, foi uma festa inimaginável.
B.H. – Ainda em 1970, é lançado o filme: Tostão, a fera de ouro.
E.A. – Foi em 69, um ano antes, inclusive não tem cenas da Copa, termina falando...
Não me lembro como termina, mas alguma coisa desse tipo: “continua na Copa”.
B.H. – Como foi a produção desse filme?
E.A. – Eram cineastas... Eram mineiros, mas eram cineastas de prestígio, o Ricardo
Leite... Eram vários irmãos Leite.
B.H. – Paulo Laender...
E.A. – Paulo Laender, não sei o que Leite26... Eram dois irmãos que tinham
experiência de cinema. Então fizeram um documentário. Eles me acompanharam ali
durante uns seis meses, por exemplo, época da eliminatória ficava concentrado ali no Rio...
Então eles me acompanhavam... Quer dizer, não fiz nenhuma participação especial não,
eles foram filmando aquilo que acontecia: eu no jogo, eu no treino, aí tem umas
entrevistas, não é? E construíram o documentário bem feito. Isso foi em 69. E o melhor do
documentária é a música do Milton Nascimento, inclusive tem uma música que virou
sucesso independentemente no filme, tem uma música que chama...
B.H. – Foi produzida para o filme?
E.A. – Foi feita para o filme e virou... Eu sabia cantarolá-la, faz muito tempo que não
a escuto. Está vazia a tarde de domingo...
B.H. – Brasil está vazio na tarde de domingo... 25 José de Anchieta Fontana, ex-futebolista brasileiro. 26 Ricardo Gomes Leite.
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E.A. – A música era mais bonita do que a letra. A música era espetacular. E tinha
outra, não era só essa não. Tinha umas duas dele27, mais uma do Pacífico Mascarenhas que
é uma tradicional pessoa aqui de Belo Horizonte que era músico também.
B.H. – Tinha em 62 o filme sobre o Garrincha, não havia muitos filmes sobre
jogadores e você ganhou...
E.A. – Tinha muito pouco, na verdade, filmes sobre futebol, não é?
B.H. – Imagino que na época, mais um motivo para...
E.A. – É, ele passou no cinema, depois virou DVD... DVD não, fita cassete, não é?
B.H. – A Globo Vídeo lançou, não é
E.A. – Eu até outro dia... Parece que nem acha, mas existe ainda. Outro dia eu
perguntei aqui em baixo na... Se eles tinham, eles falaram que não tem mais não, virou
vídeo, não é? Eles passaram para DVD.
B.G. – É difícil de encontrar.
B.H. – Então, fim da Copa de 1970 a consagração total, geral, vamos dizer assim,
mas um tricampeão do mundo. Como foi voltar para o Cruzeiro e viver os últimos
momentos aí...?
E.A. – Aí veio o meu lado final. Eu tive tanto coisa boa, tanta glória... Com o final da
minha carreira muito curta, parei de jogar com vinte e seis anos, não é? Se você imaginar
hoje, vinte e seis seria o auge da carreira de um jogador. Apesar de eu ter começado com
dezesseis, então eu joguei dez anos. Então de 1970 a 1972 eu joguei pelo Cruzeiro
normalmente, participei de tudo jogando. Quando foi em 1972, eu tinha sido operado em
27 Milton Nascimento.
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1969, de repente voltaram os problemas, eu tive que voltar para os Estados Unidos... Não,
isso foi em 1973. Então em 1972, eu joguei durante dois anos... Aí o Cruzeiro teve milhões
de problemas, estava com um time ruim, caiu, uma fase ruim, estava tudo dando errado, aí
foi quando eu fui vendido para o Vasco. Inclusive, o que precipitou a minha saída foi que o
Cruzeiro contratou o técnico Yustrich28, o Yustrich era considerado um sujeito mais
violento, um técnico bruto e o Cruzeiro era um time de paz e tal. A razão deles terem
contratado o Yustrich era que os jogadores estavam desinteressados por causa da má fase,
perdendo, e que precisavam de um técnico bruto, um técnico para colocar todo mundo na
linha. Eu me senti me ofendido com isso e isso me precipitou a saída. Então eu fui vendido
para o Vasco. Fui para o Vasco em 1972, antes de ir para o Vasco... Como eu tinha tido
problema em 1969, o Vasco reuniu lá no Rio uns três ou quatro grandes especialistas da
oftalmologia para me examinar, para ver se estava tudo certo. Todos eles falaram que
estava tudo normal, que eu não tinha problema, que podiam me contratar e tal. Aí eu fui
contratado pelo Vasco. Joguei um ano no Vasco com altos e baixos porque o time era
fraco, e como eu falei um time sem o mínimo de profissionalismo, umas coisas assim... Era
uma bagunça total. E aí de repente eu apareço com problema de novo no olho. Voltei para
os Estados Unidos e a retina tinha descolado de novo. Aí foi uma cirurgia mais... Quer
dizer, tentando corrigir um problema, mais problemática. Aí o médico falou: “Não, você
não pode mais jogar futebol. Não tem condições de jogar mais”. Então eu tive que
abandonar o futebol em 1973 com vinte e seis anos. Aí encerrei a minha carreira foi nessa
época.
B.H. – Nesse período que você se afasta do Cruzeiro e é um momento também que o
próprio Atlético Mineiro vai reconquistando a sua posição.
E.A. – Justamente, quando eu falo que o Cruzeiro estava ruim, o problema maior era
que o Atlético estava muito bom. O Atlético foi campeão brasileiro em 71, foi quando o
Atlético formou um grande time. E aí continuou. O Atlético, logo depois... Nessa época o
Reinaldo29 não jogava. Eu não peguei o Reinaldo, quando eu parei o Reinaldo ainda não
jogava no Atlético. Então o Atlético emendou uma sequência de bons times, foi quando o
Atlético ficou melhor do que o Cruzeiro - naquele período de 1970 e 1971. Como o 28 Dorival Knipel, ex-futebolista e ex-técnico brasileiro. 29 José Reinaldo de Lima, ex-futebolista brasileiro.
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Atlético estava bem e o Cruzeiro mal, o pessoal do Cruzeiro acostumado a só ganhar,
entrou em pânico, não é? Isso precipitou a minha saída.
B.H. – O Atlético formado sob direção do Telê Santana.
E.A. – Do Telê que era um técnico especial, não é?
B.H. – E a sua venda para o Vasco foi considerada uma das maiores transações...
E.A. – Na época sim.
B.H. – A sua chegada também foi uma festa.
E.A. – Uma grande festa no Rio. Eu fiquei um ano só e não tive condições de jogar o
que eu queria, o que eles esperavam que eu jogasse.
B.H. – Para você, quando isso se sacramentou, quer dizer: “Não posso mais jogar
futebol”, foi uma frustração?
E.A. – Nesses seis meses o médico foi me preparando e eu também. Ou seja, eu
fiquei seis meses depois da cirurgia... Ele falou: “Daqui uns seis meses a gente te dá uma
definição”. Mas ele foi me preparando que o problema agora era diferente, porque além do
risco físico, de boladas, de levar um chute, uma cotovelada no olho; eu, por causa da
segunda cirurgia que foi uma complicação da primeira, passei a ter um déficit importante
de visão. Mesmo se eu desse uma de doido e resolvesse jogar, eu não conseguiria jogar
com a mesma qualidade porque a visão dupla, a visão de movimento... Por exemplo, você
pegar uma bola e jogar a bola como uma velocidade para uma outra pessoa segurar, ela
precisa de ter uma visão dupla correta e eu não tinha mais essa visão dupla correta, porque
eu perdi muito da visão do olho esquerdo. Quer dizer, para qualquer outra atividade não
tinha problema porque o olho direito estava bom, mas para jogar futebol que você precisa...
Essa capacidade de um tenista dar uma raquetada e outro saber o momento exato de pegar
na bola, isso precisa de uma visão dupla perfeita que eu não tinha perfeita. Então eu ia
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matar a bola de canela, dominar a bola... [riso] Não tinha condição nenhuma de jogar bola
mais. Então eu parei de jogar.
[FINAL DO ARQUIVO II]
B.H. – E essa opção que muitos jogadores assumem no final da carreira, ainda que a
sua carreira tenha terminado prematuramente, de se tornaram técnicos, treinadores. Você
chegou a considerar em algum momento? Você era muito novo, vinte e seis anos, mas até
por essa qualidade sua de observador, e alguém que tinha essa sensibilidade de estudar o
conjunto, você chegou a considerar em algum momento?
E.A. – Não, na época era uma coisa que nem passava pela minha cabeça. Na hora
que eu fui sentindo que eu não ia jogar mais, até o médico dar o veredicto final, eu fui me
preparando para voltar a estudar. Só pensava na minha volta a estudar, fazer vestibular,
começar a estudar de novo e entrar na faculdade. Quer dizer, aquilo que eu sonhava
quando adolescente, ter uma profissão, cresceu dentro de mim de maneira avassaladora.
Então eu falei: “Eu vou voltar a estudar”, e fui me preparando para isso. No dia que o
médico, que eu já sabia que ele ia falar, mas na hora que ele falou e escreveu que eu não
podia jogar mais futebol, no outro dia eu já estava telefonando para cursinho para voltar
estudar. Quer dizer, eu não sofri, não fiquei com aquela... Eu fiquei angustiado durante o
tempo todo, aquela coisa: minha vida, como vai ser, pensando nisso, pensando naquilo,
coisas práticas e tal, não vou poder jogar mais futebol e tal. Mas eu não fiquei sofrendo,
angustiado: “E agora, o que vou fazer da vida?”. De jeito nenhum. Eu já comecei, no outro
dia, a providenciar, a pensar em uma outra carreira, uma outra vida.
B.G. – Nesses seis meses que você ficou na dúvida talvez tenha te preparado. Você
já tinha esse pensamento de voltar em um outro momento...
E.A. – Quando eu defini com dezoito anos: “Não, agora eu vou parar de estudar, vou
jogar”. Eu já estava premeditado que quando eu parasse de jogar, eu não sabia quando, eu
ia tentar uma outra vida ligado àquilo que eu pensava, ligado à alguma coisa mais cultural,
mais ligado à área de intelecto, de uma carreira, uma outra profissão. Eu já tinha essa ideia.
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Então, como eu parei com vinte e seis anos, eu falei: “Eu vou entrar na faculdade. Eu
formo com trinta e cinco e ainda posso começar uma carreira com trinta e cinco anos” -
trinta e cinco não, com trinta e três anos. Então eu fiquei um ano estudando vestibular...
B.G. – Foi pouco tempo de recuperação desse tempo todo...
E.A. – Foi, porque eu fiquei dos dezoito aos vinte e seis anos, oito anos sem nenhum
contato com matéria de... Então eu tive que entrar... Por isso que eu falei; fazer vestibular
porque eu precisava de um lugar que eu pegasse do início até o fim, coisinha por coisinha.
Então vestibular que é um ano... Primeiro dia, sentei na sala, me preparei. E era curioso
porque de vez em quando aparecia um fotógrafo lá, um jornalista para tirar foto, aquela
coisa toda. Isso foi um dos motivos... Quando eu me afastei totalmente das coisas e as
pessoas ficavam: “Ah, o Tostão tem raiva do futebol...”, umas coisas desses tipos, era
porque eu precisava fazer esse corte. Se eu não fizesse esse corte eu não conseguiria
estudar, ter outra profissão. Mesmo assim eu não consegui, na verdade, totalmente, porque
na Faculdade de Medicina de vez em quando aparecia gente lá. Então aquilo me
incomodava muito. Depois eu formei, fiz dois anos de residência e comecei a dar aula, eu
era professor assistente lá na Faculdade de Ciências Médicas e os alunos ficavam curiosos
me olhando. Eu acho que eles já sabiam... Criaram o negócio de que eu não gostava de
falar de futebol, mas na verdade, com as pessoas próximas, eu adorava falar de futebol.
Mas eles criaram, assim, uma barreira: “Ah, não pode falar de futebol com ele não porque
ele não gosta”. [riso] Então eles não falavam. Quer dizer, no final acabava sendo bom.
Depois no hospital, trabalhando com os médicos, enfermeiros, paciente, de vez em quando
aflorava as coisas. Então eu ficava ali meio dividido.
B.H. – Eles te chamavam de professor Eduardo ou professor Tostão?
E.A. – Eles chamavam de professor Eduardo. Mas de vez em quando soltava algum
paciente: “Oh Tostão”. [riso]
B.G. – Você não teve vontade de jogar bola nesse período?
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E.A. – É. Como eu tinha uma recomendação de não jogar, isso eu cortei também.
Porque se eu não tivesse essa proibição, certamente eu ia acabar, mesmo se não quisesse,
jogando, pelo menos em brincadeira. Mas como havia essa proibição, eu fiz um esforço
para me afastar disso. É claro que de vez em quando dava uma saudade, uma lembrança,
mas não era uma coisa que me incomodava não.
B.H. – A sua relação com o futebol, de acompanhar o futebol, era como torcedor ou
como interessado por futebol que acompanhava o campeonato, ou mesmo isso você se
afastou?
E.A. – É, então eu fiquei em um período... Eu formei em 1981, entrei na faculdade
em 1974, 1975... Eu parei de jogar em 1973, aí no final do ano... É, eu entrei em 1975 e
formei em 1981. Quer dizer, de 1975 até 1994, foram dezenove anos, eu me dediquei
inteiramente à Medicina: os primeiros seis anos como estudante, depois mais quinze como
médico, trabalhando como médico o dia todo. Eu fiquei vinte e um anos envolvido com a
Medicina.
B.H. – Mas, por exemplo, os seus amigos do futebol...
E.A. – De vez em quando encontrava, mas não era com frequência não. Por eu ter
feito esse corte, as pessoas também se afastaram de mim. Elas também achavam que eu
não queria muito esse contato, e na verdade, quando eu tinha chance, eu tinha o prazer de
encontrá-los. Mas houve um afastamento, a não ser com um ou outro. O Piazza, até hoje a
gente encontra sempre... Sempre não, mas de vez em quando. Aí fui me afastando. Então
eu passei de 1975 até 1994, dezenove anos, envolvido com a Medicina. Nesse período eu
acompanhava o futebol assim: domingo, quatro horas da tarde, [INAUDÍVEL], quarta-
feira à noite. Mas não ficava lendo páginas de esporte, quem vai jogar, quem não vai,
acompanhando detalhe. Tanto que quando eu parei... Voltei a escrever sobre o futebol, eu
fiz um esforço para tentar recuperar esse tempo através de tape, através de histórias,
através de informações. Até hoje eu não recuperei. Uma coisa é você ouvir os outros falar,
ler, outra coisa é você viver aquilo, não é?
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B.H. – Por exemplo, em 76 o Cruzeiro tem aquele desempenho na Libertadores,
chega à final do Mundial...
E.A. – Disputa lá... Eu me lembro desse jogo... Aí eu via. O Cruzeiro vai jogar com o
Bayern. Claro que eu sentei lá e fiquei atento, mas não acompanhava detalhes como uma
pessoa do meio. Copa do Mundo eu assistia. Mas fora isso não.
B.H. – Copa de 1982...?
E.A. – 1982... A decepção de perder a Copa. Mas não acompanhava o dia a dia, não
participava de nada. E havia também...
[INTERRUPÇÃO NA GRAVAÇÃO]
B.H. – Essa reaproximação com o futebol se deu aí em meados dos anos 90, a Copa
nos Estados Unidos, como isso foi para você: uma proposta de uma emissora ou foi algo
que você pouco a pouco recobrou seu interesse pelo assunto?
E.A. – Só voltando um pouco atrás. Quando eu fui me dedicar à Medicina, além da
questão prática – eu precisava fazer esse corte para eu poder me identificar com a minha
nova vida, não misturar as coisas, eu não queria que misturasse de jeito nenhum - havia
também um desejo, uma coisa meio estranha, de voltar a ser um cidadão comum. Até hoje
é uma das coisas que eu faço questão absoluta, de não perder a minha identidade como
cidadão comum. Uma coisa é o trabalho, vou lá, faço o meu trabalho, como hoje, escrevo a
minha coluna; mas fora disso eu sou um cidadão que não quero ter compromissos sociais
em decorrência da profissão, do nome. Eu não tenho nenhum prazer, não gosto disso, eu
queria viver como cidadão. Então, havia um certo prazer quando eu me ausentei do futebol
e fui ser médico porque ali eu podia viver como cidadão, apesar de que eu não conseguia
viver totalmente porque as pessoas me conhecem e acabava sendo alvo de curiosidade, não
é? Então, como eu me afastei totalmente do futebol, as pessoas também acharam estranho
quando eu voltei para o futebol. [risos] É interessante isso. O que aconteceu foi o seguinte,
depois dos anos 90 eu comecei a pegar mais gosto de ver futebol, comecei a me interessar
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mais. O meu filho gostava de futebol, era menino, gostava de jogar futebol, comecei a ir ao
futebol com ele, comecei a me interessar mais. Além disso, na minha carreira de médico,
eu passei a me dedicar inteiramente... Eu cheguei até ter até consultório durante um ano,
mas eu passei a me dedicar inteiramente ao trabalho na faculdade. Então eu me dedicava
24 horas, tempo integral à faculdade: ia de manhã para o hospital, atendia os pacientes com
os alunos, vivia em função dos alunos, até de noite que voltava para casa. E foi chegando
um ponto que esse trabalho começou a ficar muito frustrante, a Faculdade uma ineficácia
total, pobreza total em termos de recursos, o médico passou a ser, via faculdade, médico do
INSS. A Faculdade, para receber do governo, tinha que colocar os médicos a disposição o
dia todo para atender. Então o médico passou a trabalhar e a ensinar ao mesmo tempo em
condições que não tem nada a ver com o que ele deveria ensinar o aluno. Era um contraste
absurdo, você chegar ao ponto de atender um paciente com um aluno e ter, daqui uns
quinze minutos, outro. Quer dizer, você ensinar isso na Faculdade é uma coisa criminosa: o
médico a serviço de um trabalho precário e ao mesmo tempo ensinando o aluno a fazer
errado. Aquilo para mim era um erro, uma coisa frustrante. Então eu estava em um período
assim; não queria voltar para a Medicina particular, ter consultório e tal, não queria dar
plantão a noite. E a Faculdade desse tipo... Então coincidiu de eu estar em uma fase de
frustração com o meu trabalho. Quando chegou a Copa de 1994, me convidaram para ir
para a Copa.. Então eu tirei férias na Faculdade, eu tinha direito a férias, e fui para lá e tal.
Aí me envolvi emocionalmente com aquilo. Então esse envolvimento emocional me
empurrou de novo para... Aí eu passei uns dois anos meio dividido, quer dizer, eu continuei
na Faculdade, mas... As pessoas gostaram muito do meu trabalho, o meu comentário de
futebol, e começaram a me convidar demais, a me propor contrato e não sei o quê. Aí eu
fiquei dividido. Durante uns dois ou três anos eu tentei fazer as duas coisas até chegar um
ponto que eu falei: “Não, tem que fazer uma coisa bem feita. Uma coisa ou outra”. Aí
resolvi dar uma parada e essa parada se prolongou até hoje. Peguei gosto depois de
escrever, aí eu vi que eu gostava muito mais de escrever do que ir para a televisão
trabalhar, a televisão me dava muito angústia. A televisão é muito chato no sentido de que
você está ali se mostrando, muita questão de aparência, o jeito que você fala, cheio de
frescura, cheio de coisa. Então não pode fazer isso, tem que ser assim e tal. Então eu
peguei gosto de escrever, eu acabei virando colunista, e já estou aí quase uns quinze anos
escrevendo sobre futebol.
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B.H. – Ainda uma curiosidade, desde que você parou como jogador, naquele
momento você poderia ter sua independência financeira independente de uma nova
profissão, ou você precisava ter uma nova profissão?
E.A. – Precisava ter uma nova profissão, claro. Para eu manter o padrão de vida que
eu tinha, eu tinha que continuar trabalhando. Sem dúvida nenhuma. Porque o que eu
ganhei no futebol como jogador, eu ganhei bem para época, mas foi muito pouco tempo.
Você ter um apartamento aqui e outro ali alugado não te dá condição nenhuma de viver.
Você precisa trabalhar, precisava ter rendimento. E como médico eu praticamente não
tinha rendimento nenhum, porque noventa e cinco por cento do tempo que eu me dediquei
à Medicina eu fui professor da Faculdade, era professor auxiliar, ganhava pouquíssimo
como qualquer trabalhador de nível médio e me dedicava o dia inteiro à Faculdade. Quer
dizer, ajudava a manter um padrão de vida. Como a minha esposa trabalhava e ganhava
bem também, então eu podia manter um padrão de vida bom. Mas eu não podia deixar de
trabalhar. Podia viver da renda, mas para manter o padrão de vida tinha que continuar
trabalhando e precisa até hoje.
B.H. – O Tostão disse que para o novo escritor, um dos primeiros requisitos, é ser
também um bom leitor. O gosto por ler sempre te acompanhou, se intensificou em uma
fase da vida, como é a sua relação com a leitura?
E.A. – Eu sempre gostei. Tive fases de gostar mais. Vamos supor aí, desde os doze,
treze anos que eu tenho o hábito de sempre estar lendo um livro. Alguns clássicos da
literatura eu li muito sobre eles. Mas nunca fui um leitor voraz. Eu hoje até leio menos, até
por causa do trabalho de escrever, você acaba ocupando o tempo todo, com menos tempo
para ler. Mas continuo lendo... Nunca fui e nem tive pretensão de ser um intelectual. Como
o meio do futebol é um meio muito simples do ponto de vista cultural e eu tinha um nível
diferente, criou-se também uma lenda de que eu sou uma pessoa intelectual, culta, porque
eu estudei psicanálise. Nada, eu apenas sou uma pessoa de nível médio do ponto de vista
cultural. Acompanho as coisas, leio o básico. Os autores que eu gosto, eu releio. Eu gosto
muito de reler as coisas, sou muito de reler. Então não li muitas variedades de livros não,
mas li muitas vezes várias coisas.
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B.H. – Como cronista esportivo, tem algum cronista que você aprecia e que você
tinha como referência, ou...?
E.A. – Ah, sim. Têm vários. Na verdade, os que ficaram... O futebol tem duas coisas:
os cronistas que são cronistas esportivos mesmo no sentido amplo e tem os... Agora menos,
mas no passado havia muitos escritores que fazia do futebol uma literatura como Nelson
Rodrigues, o próprio João Saldanha, Armando Nogueira. São pessoas extremamente cultas,
escrevem bem...
B.H. – Mário Filho...
E.A. – Mário Filho. Mas não eram cronistas do dia a dia do futebol, não entendiam
dos detalhes técnicos e táticos do futebol. Então eu sou um cronista que talvez misture um
pouco as duas coisas. Eu sou um cronista que gosto dos detalhes do futebol, técnicos e
táticos do jogo, de falar do jogo, do futebol, da essência do técnico - pouca gente que gosta
disto. Interessante que os cronistas geralmente não gostam de detalhes do jogo, gostam do
que está em volta do futebol. E gosto de divagar, gosto de misturar a literatura com a parte
técnica. Então eu fico indo para um lado e para o outro. Eu tenho leitores que chegam perto
de mim e falam assim: “Eu gosto muito do que você escreve, só detesto quando você
começa a entrar em detalhes técnicos de futebol”. E têm outros que gostam da parte do
futebol em si e acham às vezes até... Eu já recebi críticas de querer, às vezes, fazer um
pouco de literatura e sair do lugar, porque eu não vou fazer literatura como Nelson
Rodrigues fazia, como Armando Nogueira, mas eu gosto de ficar divagando. Então, de vez
enquanto, eu fico aí com as filosofias de botequim, ficar contando umas abobrinhas, lorotas
e ligar o futebol com outras coisas, fazer uma associação. Então eu acho que sou um
cronista meio eclético, vamos dizer.
B.G. – É, mas eu acho que o diferencial é justamente que você tem esse olhar
apurado de dentro, porque você já foi jogador, e tem essa outra sensibilidade que é essa
coisa de observação. Você sempre teve uma relação saudável com o futebol. Então eu acho
que aí é o diferencial. Você consegue juntar isso, não é?
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E.A. – É, eu gosto de juntar.
B.G. – Isso é muito rico.
E.A. – Agora, você perguntou o negócio de cronista... Por exemplo, eu não sou
jornalista, e, aliás, isso também é um fator meio de... Você sabe que tem muito jornalista
que... A maioria não fala não, mas não concorda que alguém que não seja jornalista
escreva sobre qualquer coisa, ou fale sobre qualquer coisa que não tenha diploma. Eu acho
uma grande besteira. Claro que não vou me envolver com trabalho jornalístico que é para
jornalista, agora cronista é uma coisa diferente, comentarista. Você pega o mundo todo,
liga a televisão, programa de esporte, está transmitindo boxe, esqui, sei lá o que, futebol,
está lá um comentarista que foi um atleta daquilo, um jogador. Claro que isso não quer
dizer que para ser comentarista precisa ter sido jogador. Mas existe um preconceito
inverso, os dois lados. Tem um preconceito de ex-atletas, que eu não partilho, de que quem
não jogou futebol não entende de detalhes do jogo – o que é uma besteira, o cara não
precisa ter jogado para entender – e o preconceito do jornalista formado que acha que
quem não cursou faculdade não pode falar das coisas, não pode... Porque ele não teria
preparado técnico, cultural da área. Como eu fui médico, tenho curso superior, comigo isso
é menos. As pessoas reconhecem o meu valor como cronista. Mas há muito preconceito
dos dois lados. Evidentemente que eu sou apenas um cronista, não tenho pretensões...
Agora, jornalista mesmo, completo, claro que não...Nós temos aí... Disparado, o melhor de
todos é o Juca Kfouri. Você pode não gostar de algumas coisas que ele fala, de algumas
opiniões, de um jeito dele, mas como conhecimento e eficiência... No sentido amplo do
jornalista, ele não é um... Eu entendo muito mais que ele de detalhe de futebol, claro que
eu entendo, ele sabe disso, mas ele é um jornalista completo. Eu não sou jornalista, eu sou
cronista. E têm alguns outros como Juca, na mesma linha, mas ele é além do mais
competente é o mais fanático com a profissão, que se envolve mais, vinte e quatro horas
ali, o tempo todo, preciso, em detalhes, em tudo; faz jornalismo investigativo. Então ele é
um jornalista nota dez, mesmo que alguém discorde da opinião dele sobre várias coisas. E
assim tem vários jornalistas na mesma linha do Juca Kfouri. Agora, cronistas têm os mais
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variados: têm que falam de detalhes de futebol, têm cronistas que falam de coisa políticas,
têm cronistas que faz mais literatura, que faz mais notícia de fofoca.
B.H. – E você tem um método para escrever suas crônicas? Existe uma certa
regularidade? Como é o seu processo?
E.A. – Eu fico às vezes divido entre a coisa factual ou não, não é? Como eu escrevo
normalmente, como rotina, duas vezes por semana – apesar de fazer coisas avulsas, mas de
rotina eu escrevo duas vezes por semana. Então, hoje, com a multimídia que existe em
todos os sentidos, o fato que acontece domingo, segunda ele foi tão sugado que na quarta
todo mundo já não quer saber daquilo, não é? Então eu tento fazer uma coisa não tão
factual, mais conceitual, reflexiva, pego um assunto que foi tema domingo e faço... Eu
tento fazer uma coisa desse tipo. Geralmente, no dia anterior, eu penso o que seria
interessante falar. Às vezes eu não acho nada interessante, eu descubro na hora, começo a
escrever, faço uma coisa associativa, vou associando na cabeça. Eu noto que estas são as
melhores, porque eu não premeditei. E os assuntos também... O cronista começa a sentir
que a gente está muito repetitivo. Então eu estou em uma fase de achar que eu estou
repetindo demais, porque, na hora de fazer uma coisa, eu gosto de falar dos conceitos que
eu tenho, que já falei outras vezes, mas voltou o assunto, pede que eu volte a esse
conceituação. Então eu fico aí, nesse jogo. E ainda tem o problema do tamanho, fica ali um
espaço reduzido. O maior trabalho que eu tenho no final é o que vai sair, porque sempre
passa, não é? Então o que eu vou cortar, não é?
[INTERRUPÇÃO NA GRAVAÇÃO]
B.H. – Tostão, estamos chegando ao final do depoimento. Nessa série, com
jogadores que participaram de seleção e copas do mundo, a gente sempre pergunta das
perspectivas e de como o jogador está vendo a preparação do Brasil para a Copa de 2014
quer seja do ponto de vista da preparação da organização do país, sua preparação para
acolher agora o que é um mega evento midiático, com todas as transformações que as
décadas fizeram com que esse evento sofresse; quer seja o Brasil, o time, os onze
jogadores que vão estar lá daqui a dois anos. Como você está acompanhando essa
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preparação do Brasil? Não é para fazer prognóstico, a gente não pede prognóstico, mas um
pouco a sua sensibilidade do que vai ser o Brasil daqui dois anos.
E.A. – Do ponto de vista de organização eu acho que o principal, o mais importante,
vai estar pronto. Eu acho até que vai ser uma Copa organizada, o brasileiro tem capacidade
para fazer isso. Evidentemente com limitações de um país que tem milhões de problemas,
nós não podemos querer uma Copa no nível que foi na Alemanha, na França e tudo, mas
uma Copa no nível que foi na África do Sul. Eu estive lá e tinha milhões de pequenos
problemas, mas os grandes problemas não tinham... Pequenos problemas, alguns até
grandes, mas inevitáveis em um país que não tem os recursos, conhecimentos para fazer
uma... Então nós temos que fazer uma Copa igual o melhor do que a da África do Sul, não
podemos querer fazer uma Copa igual à Alemanha. O que eu acho extremamente danoso é
que o Brasil vai gastar um dinheiro absurdo, há muito desperdício, há muita falcatrua para
fazer essa organização toda, isso é evidente, excesso de gastos. Eu estou vendo aí, o preço
dos estádios, absurdo os preços que vão ficar os estádios. Quer dizer, problemas graves
de... E isso que é triste. Para ser assim é preferível não fazer, mas existe o compromisso,
vai fazer e... Agora, do ponto de vista de organização e de coisas essenciais... Os estádios
vão estar prontos, a organização vai ser boa, os turistas vão ser muito bem atendidos.
Agora, claro que vai ter problema de aeroporto, de transporte público, isso aí é o país...
Isso não vai resolver de uma hora para hora. Lamentável só é o desperdício, o dinheiro
gasto em excesso e também a Copa não está cumprindo aquilo que foi dito quando o Brasil
se propôs a fazer a Copa de que seria uma Copa que não teria dinheiro público. O dinheiro
público seria apenas para obras de infraestrutura, mesmo porque é uma coisa que vai ficar
para toda a vida, mas não é a realidade, porque o dinheiro público está sendo gasto e muito.
O BNDES é o grande financiador, isso é até discutível se é dinheiro público ou não. Eu
acho que é dinheiro público porque esse dinheiro poderia estar financiando outras coisas.
Mas mais do que isso, gasto direto do governo para coisas que deveriam ser da iniciativa
privada. Então todos os estádios vão estar prontos, vão estar tudo bonitinho lá, vai
acontecer, vai ter problemas, mas problemas... Na África do Sul teve tantos problemas...
Quer dizer, o Brasil vai ter também, são inevitáveis alguns problemas. Agora, o jogo eu
vou torcer para o Brasil ganhar. Eu tenho sido muito crítico com o futebol brasileiro
ultimamente. O Brasil criou um... Não é nem com resultado, o Brasil já perdeu as últimas
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Copas, o Brasil perdeu Copa América, o Brasil está tendo maus resultados, sempre quando
joga contra uma seleção boa ele perde. É o jeito de jogar o futebol brasileiro que foi
desvirtuado, foi dilapidado. Quer dizer, o jogo no Brasil é extremamente na média, claro
que tem jogos diferentes, mas na média são jogos... O futebol brasileiro virou um jogo
tumultuado, virou uma briga dentro de campo, é falta o tempo todo, é jogador que não sai
do chão, cai, brigas, um fica querendo enganar o árbitro, simula, os jogadores discutem o
tempo todo, é chutão para cima, é chutão para baixo, a bola vai e volta. Quer dizer, isso
nunca foi o futebol brasileiro. Agora, isso não é recente, essa transformação vem de muito
tempo, progressiva, e cada vez... Agora, cria-se esperanças, não é? Você vê um Neymar
jogar... O Neymar tem tudo... Ele ainda não é porque ainda está em formação, mas ele tem
tudo para se tornar um dos maiores jogadores da história do futebol. Então surge um
Neymar para... Têm outros jogadores jovens bons, a seleção, nesse momento, deu uma
certa esperança nos últimos dois jogos mas não sei se vai continuar. Se você imaginar que
nesses últimos três anos o Brasil perdeu ou empatou, não ganhou de nenhuma seleção
considerada primeiro nível, isso dá um pouco de desesperança para a Copa do Mundo. Mas
eu acho que em dois anos as coisas começam a melhorar. Nesse momento eu não sei se vai
continuar... Tem um momento bom da seleção, surgiram alguns jogadores bons, a Copa vai
ser no Brasil, o que pode ser extremamente benéfico para o Brasil, ou também não porque
às vezes os jogadores ficam tão tensos, a responsabilidade tão grande, a pressão vai ser tão
grande, não é? O futebol, eu acho, no Brasil atinge uma conotação absurda, fora da
realidade, que não devia existir. Uma coisa é você ter gana de ganhar, de ser sempre o
melhor, mas é uma coisa, parece uma guerra, uma coisa doentia, não é? Quer dizer, se o
Brasil não ganha uma Copa do Mundo acontecem até crimes, brigas, é uma coisa... Futebol
não pode ser assim não. E essa pressão para atrapalhar os jogadores também, não é? Ao
invés de ser uma pressão positiva... Normalmente, se você pensar no mundo todo, na
média, os times que jogam em casa levam uma grande vantagem. Isso estatisticamente é
óbvio. Então as chances do Brasil, mesmo não tendo uma grande seleção, aumentam
muito. Mas isso também não dá garantia nenhuma, não é? Não tem jeito de fazer nenhum
tipo de... Eu sou dos que preocupa com a qualidade do jogo, eu gosto de futebol, e
infelizmente isso está acabando no Brasil, ninguém preocupa com a qualidade, quer dizer:
“foi bom o jogo? O espetáculo foi bonito?”. Toda vez é uma briga para ganhar de qualquer
jeito, é o uso de tantas malandragens, de coisas. Quer dizer, virou um jogo... O Brasil que
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criou fama no mundo todo de ser o futebol mágico, o país do futebol, está indo para um
lado totalmente errado eu acho. Então eu acho que a Copa no Brasil, tanto do ponto de
vista de organização quanto do ponto de vista técnico do jogo, do resultado, da atuação do
Brasil, pode provocar grandes mudanças para melhor ou para pior até. O que vai acontecer
pode ser um divisor de mudanças no futebol brasileiro tanto fora de campo, do ponto de
vista administrativo, começar uma nova mentalidade administrativa, e dentro de campo
também, uma mudança no jeito de jogar o futebol brasileiro. Pode até também ser um fator
negativo para perpetuar coisas erradas, quer dizer, se o Brasil ganha, isso pode... Cada vez
eu encontro mais na rua gente que fala assim: “Eu vou torcer para perder, porque o único
jeito de melhorar é perdendo”. [riso] Eu sei que não é por aí, mas essa é uma... Eu acho que
cresceu muito, nos últimos dez anos, o número de pessoas indiferentes ao futebol; não
estão nem aí na verdade, só querem saber se o Cruzeiro ganhou, se o Atlético ganhou, para
a seleção não está nem aí. E mesmo os clubes, você pega um campeonato brasileiro, a
média de público nos estádios é ridícula. Quer dizer, o país com essa imensidão de clubes,
de torcedores, ninguém quer ao estádio mais não porque o jogo é ruim, por causa da
insegurança, por causa de briga, por causa da violência, por causa da falta de conforto,
ingresso caro para o nível da... Eles estão querendo fazer no Brasil uma higienização, uma
coisa que fez na Inglaterra: transformar o futebol em um espetáculo de teatro. O povo
mesmo vai assistir futebol na televisão, na internet, não vai ao campo mais não.
Higienização, no sentindo que eu falei, não de elitizar... É uma elitização do futebol, mas é
no sentido de que eles querem colocar uma coisa... Como se o culpado da violência, da
confusão no futebol, seja o pobre, o pobre não tem nada a ver com isso não. Tem uma
turma de marginais... Mas não é o pobre que gosta de futebol não vai assistir futebol mais
porque não tem condição de pagar, não é?
B.H. – Bom, chegamos ao final do depoimento. Eduardo Gonçalves Andrade,
Tostão, em nome do Museu do Futebol e da Fundação Getúlio Vargas, queremos te
agradecer imensamente por nos acolher aqui nessa tarde em sua casa, essa tarde de calor
que faz aqui em Minas Gerais, Belo Horizonte. Foi um imenso prazer e para nós um
privilégio, uma honra, dois fãs, estarmos aqui, diante do ídolo.
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E.A. – O prazer foi meu, adorei o papo, a conversa.
[FINAL DO DEPOIMENTO]