555
Educação e Ideologia Portugal, pátria de heróis: a figura histórica em contexto educativo (1926-1974﴿ Olga Maria Pereira Ribeiro Martins Pinto Tese de Doutoramento em História Especialidade de História Contemporânea Volume I março 2014

Educação e Ideologia Portugal, pátria de heróis: a ... Doutoramento... · A construção das tipologias “ideais” do regime situava-se numa conceção pré ... O regime empreende

  • Upload
    dinhnhu

  • View
    218

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

  • Educao e Ideologia

    Portugal, ptria de heris: a figura histrica em contexto

    educativo

    (1926-1974

    Olga Maria Pereira Ribeiro Martins Pinto

    Tese de Doutoramento em Histria

    Especialidade de Histria Contempornea

    Volume I

    maro 2014

  • Modelo Formal de Apresentao de Teses

    e Dissertaes na Faculdade de Cincias Sociais e Humanas

    Olga Maria Pereira Ribeiro Martins Pinto

    Tese de Doutoramento em Histria

    Especialidade de Histria Contempornea

    Volume I

    maro 2014

  • i

    DECLARAO

    Declaro que esta Tese de Doutoramento o resultado da minha investigao pessoal e

    independente. O seu contedo original e todas as fontes consultadas esto devidamente

    mencionadas no texto, nas notas e na bibliografia.

    A candidata,

    _______________________________________________

    (Olga Maria Pereira Ribeiro Martins Pinto)

    Lisboa,..........de....................de 2014

  • ii

    DECLARAO

    Declaro que esta Tese de Doutoramento se encontra em condies de ser apreciada

    pelo jri a designar.

    A orientadora,

    ___________________________________________________

    (Maria Cndida Ales Mouro Dias Barroso Proena)

    Lisboa, .de..de 2014

  • iii

    AGRADECIMENTOS

    A realizao do presente trabalho tornou-se possvel graas ajuda de vrias pessoas,

    ligadas a entidades e instituies. Deste modo queremos agradecer, em primeiro lugar,

    Professora Doutora Maria Cndida Proena, que acedeu gentilmente a ser orientadora deste

    estudo para alm de nos ter incentivado para o investimento no tema desta dissertao.

    Apresentamos, ainda, o nosso sincero reconhecimento pelo auxlio prestado ao

    Professor Doutor Fernando Rosas, docente da Universidade Nova de Lisboa.

    Expressamos, tambm, o nosso agradecimento aos Conselhos Executivos das Escolas

    Secundrias: Passos Manuel; Cames; Pedro Nunes; Filipa de Lencastre e Maria Amlia Vaz

    de Carvalho que disponibilizaram os seus recursos materiais e pessoais para tornar possvel

    parte da investigao realizada. Aqui queremos expressar o nosso especial agradecimento ao

    Dr. Fernando Faria (Escola Secundria Passos Manuel) que nos ajudou imenso na pesquisa

    solicitada bem como a Dra. Manuela Sena (Escola Secundria Filipa de Lencastre) e a Dra.

    Ftima Cristo (Escola Secundria Maria Amlia Vaz de Carvalho).

    Tambm queremos agradecer ao Padre Francisco Rodrigues (Vice-Postulador da

    Causa da Canonizao do Beato Nuno) que nos facultou informao importante; ao pessoal

    auxiliar do Arquivo Histrico da Educao e Centro de Documentao do Ministrio da

    Educao que manifestaram a sua total disponibilidade para colaborar na pesquisa documental

    onde destacamos, de forma especial, o apoio dado pela D. Maria do Cu Miguel Teixeira e a

    Dra. Anabela do , Coordenadora do j extinto Instituto Histrico da Educao, sem o qual a

    investigao em arquivo ficaria muito aqum das expetativas. No arquivo fotogrfico da Torre

    do Tombo queremos fazer um especial agradecimento ao Dr. Fernando Costa pelo apoio e

    pela ajuda demonstrados. Um muito obrigada ainda Dra. Ana Lopes, Coordenadora da

    Sociedade Histrica da Independncia de Portugal que nos ajudou na pesquisa de fontes e

    tambm no queremos deixar de expressar o nosso agradecimento ao alfarrabista Antnio

    Brando pela aturada diligncia que realizou a nvel nacional para encontrar as obras em falta

    da coleo Grandes Portugueses e tambm ao Professor Manuel Caixaria que nos ajudou na

    reviso da anlise literria das colees que foram objeto de estudo neste trabalho.

    Por fim dedico esta dissertao minha filha e restante famlia que me auxiliou no

    meu percurso de vida, em especial ao meu marido que desde sempre me demonstrou o seu

    apoio incondicional em mais uma das etapas decisivas da minha vida profissional e aos

    colegas de profisso e amigos que sempre acreditaram na realizao deste longo trabalho.

  • iv

    RESUMO

    A presente dissertao foi elaborada no mbito do Curso de Doutoramento em

    Histria, especialidade de Histria Contempornea. objetivo deste estudo analisar o

    discurso histrico e ideolgico por detrs da tica e mentalidade que caraterizaram a escola e

    o ensino no perodo que medeia entre 1926 e 1974.

    O quadro conceptual do regime foi marcado por um forte pendor ideolgico que

    influenciou a historiografia oficial do regime. Esta formou durante dcadas a mentalidade

    histrica das geraes desse perodo direcionada para valores morais que tinham em vista a

    promoo de atitudes e comportamentos tendentes ao patriotismo. Nesta perspetiva,

    assumiram um papel de extrema relevncia no processo de ensino/aprendizagem da Histria,

    um conjunto de figuras histricas cuja ao refletia os princpios ideolgicos que o regime

    pretendia transmitir e fazer prevalecer.

    A ideologia do Estado Novo produzia as suas prprias representaes das figuras

    histricas. A construo das tipologias ideais do regime situava-se numa conceo pr

    concebida das figuras. O Estado Novo lanou mo de um investimento mtico e imaginrio

    relativamente a vrias figuras histricas que deram o seu contributo em perodos decisivos do

    percurso da Histria nacional, promovendo o seu engrandecimento.

    O sistema educativo do Estado Novo empreende um tipo de socializao poltica que

    se baseava essencialmente no processo de identificao do aluno com as figuras heroicas da

    nao, da a necessidade de questionar as vrias imagens que os portugueses foram criando de

    si prprios e a importncia do conhecimento dos mitos histricos como meio de auto

    conhecimento de uma comunidade nacional e da sua personalidade cultural para compreender

    o tipo de sociedade que pretendia o regime construir.

    O regime empreende uma estratgia de camuflagem idealista dos seus heris

    imaculados que os torna nicos, aureolados por uma aura de herosmo e santidade que lhes

    permitia ascender a um plano superior, sacralizando-os, tornando-os exemplos para o futuro,

    nos quais as geraes vindouras se deveriam rever, por um lado para venerar o passado

    histrico nacional e, por outro, para desejarem imitar o modelo comportamental destas figuras

    que colocam Portugal no caminho do progresso. Desta forma, estes heris tornaram-se cones

    na Histria e na mentalidade histrica e cultural da sociedade do Estado Novo, onde a

    educao dirigida em prol deste fim ideolgico e nacionalista omitia uma vertente relevante

    da memria histrica da nao.

  • v

    Para a realizao deste estudo foi delimitado um corpus constitudo por diplomas

    legais, programas, manuais escolares e colees de literatura infantojunenil que foi objeto de

    anlise. Este corpus foi analisado segundo a seguinte matriz:

    - a tipologia dos contedos abordados,

    - o discurso histrico e a forma como este apresentado ao aluno,

    - o aproveitamento ideolgico da figura histrica no mbito escolar.

  • vi

    Tese

    Educao e Ideologia

    Portugal, ptria de heris: a figura histrica em contexto educativo

    (1926-1974

    Autor

    Olga Maria Pereira Ribeiro Martins Pinto

    PALAVRAS-CHAVE: Ideologia, (ensino da) Histria, identidade nacional, memria

    histrica, smbolo

  • vii

    ABSTRACT

    This dissertation was prepared under the PhD course in History, specializing in

    Contemporary History. The objective of this study is to analyze the historical and ideological

    discourse behind the ethics and mentality that featured the school and teaching in the period

    between 1926 and 1974.

    The conceptual framework of the regime was marked by a strong ideological bias that

    influenced the official historiography of the system. This formed during decades of historical

    mentality of the generations of that period directed to moral values that were intended to

    promote attitudes and behaviors leading to patriotism. In this perspective, took an extremely

    important role in the teaching/learning of the History, a set of historical figures whose actions

    reflected the ideological principles that the regime intended to convey and enforce.

    The ideology of the Estado Novo produced their own representations of historical

    figures. The building typologies "ideals" of the system was in preconceived conception of

    characters. The Estado Novo resorted to a mythical and imaginary investment in a range of

    historical characters whom have contributed in decisive periods of the course of national

    history, promoting their aggrandizement.

    The educational system of the Estado Novo embarks on a new kind of political

    socialization based essentially on the process of student identification with the heroic figures

    of the nation, hence the need to question the various images that the Portuguese were creating

    for themselves and the importance of knowledge of historical myths as a means of self-

    knowledge of a national community and its cultural values to understand the kind of society

    the system wanted to build.

    The system undertakes a strategy of concealment of its immaculate idealistic heroes

    that makes them unique, haloed by an aura of heroism and holiness that allowed them to

    ascend to a higher level, sacralizing them, making them examples for the future in which

    generations to come should review, on firstly to honor the national past, and secondly, to wish

    to imitate the behavioral model of these figures that put Portugal in the way of progress. Thus,

    these heroes became icons in history and historical and cultural mindset of the society of the

    Estado Novo, where education directed towards this end and nationalist ideological omitted

    an important part of the historical memory of the nation.

  • viii

    For this study a corpus was delimited by legislation, programs, textbooks and youth

    and childrens literature collections that were analyzed. This was analyzed according to the

    following matrix:

    - the type of content covered,

    - the historical discourse and how it is presented to the student,

    - the use of ideological historical figure in the school.

  • ix

    Thesis

    Education and Ideology

    Portugal, land of heroes: a historical figure in the educational context

    (1926-1974)

    Author

    Olga Maria Ribeiro Pereira Pinto Martins

    KEYWORDS: Ideology, (teaching) history, national identity, historical memory, symbol

  • x

    NDICE

    Volume I

    INTRODUO ...................................................................................................................................................... 1

    CAPTULO I: ESTUDO DE CASO ...................................................................................................................... 5

    I.1. FORMULAO DO PROBLEMA ....................................................................................................................... 5 I.2. OBJETIVO DO ESTUDO ................................................................................................................................. 19 I.3. ESTADO DA QUESTO ................................................................................................................................. 20 I.4. DESCRIES DE TERMOS ............................................................................................................................. 22

    CAPTULO II: ESTRUTURA CONCEPTUAL ................................................................................................. 23

    II.1. DEFINIO DA PROBLEMTICA .................................................................................................................. 23 II.2. DEFINIO DO OBJETO .............................................................................................................................. 35

    CAPTULO III: METODOLOGIA ..................................................................................................................... 37

    III.1. SELEO DE TCNICAS ............................................................................................................................. 37 III.2. SELEO DE TEMAS .................................................................................................................................. 38 III.3. RECOLHA DE DADOS ................................................................................................................................. 38 III.4. ANLISE DOS DADOS ................................................................................................................................ 39

    CAPTULO IV: RESULTADOS E DISCUSSO ............................................................................................... 41

    IV.1. DESCRIO DOS RESULTADOS.................................................................................................................. 41 IV.1.1. As concees ideolgicas do Estado Novo ...................................................................................... 41

    IV.1.1.1. A escola nacionalista e o Homem Novo ................................................................................................ 41 IV.2. O IMPRIO: A MENINA DOS OLHOS DO REGIME ...................................................................................... 86 IV.3. O PAPEL DA PROPAGANDA ....................................................................................................................... 98

    IV.3.1. As Organizaes Paramilitares e a Educao: MP, MPF e OMEN ............................................... 98 IV. 3.2. As Comemoraes Centenrias .................................................................................................... 124

    IV.4. A FIGURA HISTRICA ............................................................................................................................ 148 IV.4.1. A explorao da figura histrica em contexto educativo ............................................................... 148

    IV.4. 1.1. Os mitos fundadores e (re)fundadores .................................................................................................... 174 IV.4.1.2 Os construtores do imaginrio imperial .................................................................................................... 195 IV.4.1.3. Mrtires, santos e exemplos de moralidade ............................................................................................. 224 IV. 4.1.4. Os heris da Restaurao da Independncia ........................................................................................... 231 IV.4.1.5. As figuras mticas do Estado Novo ......................................................................................................... 233 IV.4.1.6. As figuras femininas ................................................................................................................................ 262

    IV. 5. A IDEOLOGIA E O ENSINO DA HISTRIA ................................................................................................. 264 IV. 5.1 As reformas programticas............................................................................................................ 291 IV.5.2. Anlise de resultados ..................................................................................................................... 329

    IV.6. MANUAIS ESCOLARES ............................................................................................................................ 336 IV.6.1. Introduo...................................................................................................................................... 336 IV. 6.2. Anlise dos resultados .................................................................................................................. 345

    IV.7. LITERATURA INFANTOJUVENIL .............................................................................................................. 373 IV.7.1. Breve enquadramento da sua evoluo ......................................................................................... 373 IV.7.2. A biblioteca escolar como instrumento educativo ......................................................................... 388 IV.7.3. Anlise das Colees Ptria, Grandes Portugueses e Grandes Portuguesas .................. 391

    CONCLUSES .................................................................................................................................................. 460

  • xi

    Volume II

    BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................................................ 475

    OBRAS DO PERODO CRONOLGICO EM ANLISE ............................................................................................. 476 OBRAS DE CONSULTA ...................................................................................................................................... 501 OBRAS RELATIVAS EDUCAO..................................................................................................................... 518

    LEGISLAO SIGNIFICATIVA ..................................................................................................................... 528

    LISTA DE ANEXOS .......................................................................................................................................... 538

  • Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris

    1

    INTRODUO

    A abordagem que fazemos no nosso trabalho insere-se no contexto da Histria das

    Mentalidades que retrata a evoluo do quadro mental da sociedade, num esforo de

    reconhecimento da identidade nacional ou conscincia da alteridade numa esfera que modela

    a conceo que ns, portugueses, temos sobre ns prprios, ou seja, as imagens dominantes

    que os portugueses traaram de si mesmos ao longo dos tempos.

    O sentido da nacionalidade e do nacionalismo uma questo que se coloca atualmente

    como uma questo relevante cada vez mais pertinente no contexto da identidade nacional e da

    memria coletiva. Todas as sociedades precisam de ter smbolos que funcionem como

    referncias que lhes deem continuidade e ligao a um passado.

    A memria nacional que exprime ideologias presentes na ao do Estado incutida

    desde muito cedo na escola atravs do ensino. A escola a mentora do pensamento e da

    conscincia abstrata do aluno e tem uma funo fundamental na construo das

    representaes e do simbolismo, fatores estruturantes da memria coletiva.

    A formao das mentalidades est intimamente relacionada com a cultura escolar, mais

    concretamente com os programas escolares, porque desde sempre foi atribudo escola o

    papel de instrumento privilegiado nesta funo. Neste sentido, a anlise dos contedos

    programticos bem como dos manuais escolares constitui a base para avaliar o discurso

    escolar e as orientaes que prevaleceram no ensino ao longo do tempo. Esta questo remete-

    nos para a construo do imaginrio nacional que est intimamente relacionado com a funo

    que a cultura escolar desempenha, especialmente a disciplina de Histria precocemente

    introduzida nos currculos escolares por apresentar um papel determinante na formao da

    conscincia nacional.

    O entendimento que temos do mundo est ligado causalmente a situaes do passado

    uma vez que este influencia a nossa vivncia do presente, por isso difcil omitir o passado

    do nosso imediato. Segundo Paul Connerton, as experincias do presente dependem das

    memrias que temos do passado e estas justificam os acontecimentos do presente1.

    A memria um conceito muito lato e complexo na medida em que congrega formas de

    representao que se interligam entre si mas que nem sempre se orientam no mesmo sentido.

    A memria coletiva e a memria histrica comportam smbolos e cdigos de representao

    dos factos. No entanto, a memria coletiva () o que fica do passado na vivncia dos

    1 CONNERTON, Paul, 1993, Como as sociedades recordam, trad. de Maria Manuela Rocha, Oeiras, Celta

    Editora, p.2.

  • Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris

    2

    grupos ou aquilo que os grupos fazem do passado. () Evoluem juntamente com os grupos

    para quem so um bem simultaneamente inalienvel e manipulvel, um instrumento de luta e

    de poder ao mesmo tempo que um valor afetivo e simblico. Por sua vez, a memria

    histrica () fruto de uma tradio sbia e cientfica, ela prpria a memria coletiva do

    grupo dos historiadores. () Analtica e crtica, precisa e distinta, tem a ver com a razo que

    instri sem convencer. Esta filtra, acumula, capitaliza e transmite; a memria coletiva

    conserva por um momento a recordao de uma experincia intransmissvel, apaga e

    recompe a seu gosto, em funo das necessidades de momento, das leis do imaginrio e do

    retorno dos recalcamentos2.

    A afirmao da memria nacional fundamenta-se em representaes construdas ao

    longo do tempo atravs das continuidades e descontinuidades, tal como defende Claud Gilbert

    Dubois: La conscience nationale n`est pas un fait universel et elle n`a rien d`inn. Elle est le

    fruit d`une longue laboration historique : elle ne se trouve pas au dbut de l`histoire, comme

    rfrence une commune naissance ou une race, mais encours d`histoire, comme tape

    d`une prise de conscience de la socialit humaine. Elle n`est pas non plus en bout d`histoire,

    comme le thorisent les idologies nationalistes3.

    A identidade nacional construda atravs de processos de identificao dos cidados

    de um pas e de diferenciao, relativamente aos outros que se traduzem na produo de

    imagens de representaes refletindo-se nos vrios tipos de discursos culturais, mas sobretudo

    no discurso pedaggico. No que respeita ao discurso histrico veiculado pela escola, este

    prende-se com os elementos subjetivos que caraterizam essa identidade. A psicologia coletiva

    expressa em termos de atitudes, comportamentos e valores apresentada como marca

    identificadora de um povo e de uma nao.

    A questo da identidade nacional um tema atual porque levanta problemticas

    relacionadas com a ideia que temos de ns prprios, com o conjunto de valores pelos quais

    nos regemos, e com aquilo que entendemos ser um esforo de conservao da memria

    nacional. Este conceito explorado desde h sculos est na base da atualidade cultural e tem

    vindo a evoluir e a ganhar novos contornos ao longo dos vrios perodos da histria, pois

    elaborado atravs de uma construo que se faz por meio de contradies e antagonismos e,

    nem sempre de uma forma contnua.

    2 LE GOFF, Jacques e, Chartier, Roger (dir.), 1990, A nova Histria, trad. de Helena Arinto e Rosa Esteves,

    Coimbra, Almedina, p.p 451-452. 3 DUBOIS, Claud G., 1991, Mythologies des origines et Identit National in: BETHENCOURT, Francisco e

    Curto, Diogo Ramada, 1991, A memria da Nao, Colquio do Gabinete de Estudos de Simbologia, Lisboa,

    Livraria S da Costa, p.43.

  • Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris

    3

    A segunda metade do sculo XX marcou a evoluo das sociedades e a importncia do

    papel que a memria coletiva desempenhou nesse processo evolutivo. Esta constitui a

    temtica das sociedades desenvolvidas ou em vias de desenvolvimento. A memria um

    elemento fundamental da identidade coletiva, cuja busca uma das principais atividades das

    sociedades atuais, talvez num esforo de compreender essa identidade que simultaneamente

    um instrumento e um objetivo de poder.

    O conceito de identidade nacional apresentou uma tendncia para evoluir no sentido de

    uma transformao significativa, sobretudo a partir dos anos 70 com a introduo do conceito

    de globalizao proporcionada pelo surgimento do ciberespao inicialmente nos pases mais

    desenvolvidos e, mais recentemente, divulgado em grande escala por todo o mundo. Mas, se a

    transformao do conceito de identidade um sinal de evoluo dos tempos tambm um

    sinal de alterao de valores e da memria nacional de um pas. As vantagens e desvantagens

    desta evoluo s o tempo nos dar a conhecer talvez num futuro no muito longnquo. A

    questo que se coloca que no presente o conceito de identidade uma noo muito

    abrangente que no se restringe ao nosso pequeno espao nacional, a ns prprios ou ao

    nosso ser portugus.

    Atualmente fala-se de uma crise da memria coletiva e histrica, fruto de uma mudana

    da vida atual, da forma como o homem moderno organiza e vive o tempo. As causas dessa

    crise podero estar relacionadas com as transformaes sociais que trouxeram consigo um

    sentimento de descontinuidade, compartimentao relativamente ao tempo histrico que leva

    a esquecer a memria, o passado como conceito intimamente ligado ao futuro. Quanto a ns

    esta crise poder antes ser uma afirmao de novas formas de socializao e de experienciar

    memrias.

    A identidade nacional um instrumento de autognose prprio de um pas. O conceito de

    identidade nacional, a construo do Estado-Nao e a escolarizao so processos histricos

    que esto e sempre estiveram intimamente ligados, passando por fases em que, por um lado, o

    Estado exerce domnio sobre a escola e outras em que a escola o motor de novas relaes de

    cidadania. A relao entre estas duas estruturas poltico-sociais converge para a imagtica que

    melhor carateriza a modernidade atravs da narrativa histrica.

    Se por um lado pertencemos a um espao global, com fronteiras imaginrias e se est

    ultrapassada a ideia de espao nacional, tambm no podemos deixar de nos interessar pelo

    estudo da nossa memria histrica, numa busca constante pela nossa identidade nacional que

    cada vez menos se aprende a preservar.

  • Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris

    4

    inegvel que a memria histrica e o aproveitamento que dela foi retirado teve um

    peso fundamental e repercusses visveis na formao do imaginrio histrico e na afirmao

    das mentalidades das geraes escolarizadas durante o perodo que objecto de estudo no

    presente trabalho. Esta problemtica afigura-se bastante atual, uma vez que a evocao das

    figuras histricas materializa um sentimento de pertena capaz de mover uma sociedade.

  • Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris

    5

    CAPTULO I: ESTUDO DE CASO

    I.1. Formulao do Problema

    O que uma nao? Quem o povo que nela habita? O que um hino? O que uma

    bandeira? Todas as questes colocadas tm uma resposta comum: todos fazem parte da

    identidade de um territrio que se constri custa de realidades mas tambm de mitos.

    O conceito de identidade nacional surge na Europa no perodo do Renascimento4 mas

    refunda-se com o advento das Luzes atravs das teorias de Montesquieu e Rouseau.

    sobretudo uma noo de carter poltico e cultural que implica uma conscincia coletiva, uma

    memria que surge associada s razes histrico-simblicas e s tradies de um povo.

    uma definio complexa, abstrata e pluridimensional porque atua em muitos domnios

    atravs de uma reatualizao da histria e de uma nacionalizao da escola, podendo dizer-se

    que () a partir do sculo XVIII, e no quadro histrico-cultural das Luzes, nos contextos da

    afirmao do Estado-Nao, de legitimao histrica das revolues liberais e do

    republicanismo, os textos de natureza histrica - vidas de heris, pequenos factos, narrativas

    de natureza lendria e efabulosa - no s passam a integrar, como tendem a constituir-se na

    principal substncia e argumento da cultura escolar5.

    Em Portugal, a formao do conceito de identidade nacional aliada noo de unidade e

    independncia remota, podendo ser datada praticamente do incio da nacionalidade o que

    lhe atribui o estatuto de pioneira na construo deste conceito no mbito europeu e para a qual

    contriburam os conflitos de 1383-85.

    A exaltao e evocao de figuras histricas bem como a sua influncia no

    engrandecimento da dimenso do Estado portugus remontam aos primrdios da nossa

    nacionalidade, sobretudo atravs da literatura publicada. Basta pensar nas obras de autores

    como Ferno Lopes, Zurara, Damio de Gis, Gil Vicente, Cames, Padre Antnio Vieira, D.

    Francisco Manuel de Mello, Rui de Pina, Germo Galharde, Fr. Jernimo de Ramos, s para

    citar alguns. A estes conceitos alia-se a criao de uma mitologia fundadora da identidade

    nacional divulgada pelos cronistas rgios a partir do sculo XV. Estes mitos que

    correspondiam a figuras histricas fundamentais no desenrolar do processo histrico, eram

    4 esta poca moderna que coloca a nao como principal base do Estado. Esta modernidade que arrasta consigo

    o progresso cultural e econmico, culminando com os processos de descolonizao e, consequentemente com a

    queda do imperialismo. 5 ARAJO, Alberto F. e, Magalhes, Justino, 2000, Histria, Educao e Imaginrio - Actas do IV Colquio,

    Braga, Universidade do Minho, p.36.

  • Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris

    6

    tomadas como modelos de referncia obrigatrios sempre que a nao passava por momentos

    de crise. Estes tornavam-se necessrios para estimular a fora anmica do povo ou para

    encorajar a iniciativa de conquista de novos espaos. Estes mitos remetiam para um povo

    remoto de caratersticas guerreiras, decidido e forte, protegido pela providncia, do qual

    emergiam determinadas figuras enquadradas na esfera mitolgica e que ainda so vistas assim

    atualmente. Estes mitos constituram matria de doutrinao nacionalista atravs dos tempos

    acabando por chegar ao sculo XIX completamente consolidados, constituindo a parte

    fundamental da historiografia oficial durante os quatro regimes polticos que vigoraram em

    Portugal durante o sculo XX: Monarquia Constitucional, I Repblica, Estado Novo e II

    Repblica.

    Em Portugal, no sculo XVII com a afirmao da lngua materna como reforo da

    portugalidade no contexto da restaurao da independncia, inicia-se uma pedagogia escolar

    com base nos valores axiolgicos da moral, da tica, da ordem cvica e humanista, uma

    pedagogia que tinha como finalidade a modelao da mente do aluno atravs de mensagens

    que visavam orientar e formar o processo de personificao do aluno.

    A pedagogia jesutica caraterizada pela universalidade e latinidade baseava-se sobretudo

    no pressuposto pedaggico do mtodo catequstico, ou seja, a educao baseava-se

    essencialmente na memorizao de mensagens escritas com valor axiolgico. A modelao da

    conscincia dos alunos era conseguida atravs de expresses escritas com representao

    personalizada.

    A afirmao e construo dos Estados-Nao, que marcam a segunda metade do sculo

    XVIII caraterizam-se por uma refundao das nacionalidades e consequentemente, um reforo

    de uma memria comum, passando a escolarizao a desempenhar um papel fundamental

    como promotora de uma razo de Estado atravs do fomento de um dever cvico e de

    cidadania. A escola passa a ter uma funo de informadora do suporte memorial atravs da

    recriao da cultura nacional, nacionalista e historicista.

    No sculo XVIII desenvolveu-se uma racionalidade pedaggica que encarava a escola

    como referente fundamental e concebe o sistema educativo simultaneamente como estrutura e

    como educao, viso oposta at ento aceite que concebia a educao como uma estrutura

    clerical e familiar. A escola passa assim a ter uma estrutura prpria assumindo-se como um

    espao de simbolizao.

  • Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris

    7

    No entanto, a pedagogia oratoriana6 que vai desbravar caminho no sentido de uma

    textualidade pedaggica e didtica permitindo o ensino de um historicismo nacionalista e de

    memrias e narrativas nacionais e ptrias. A pedagogia oratoriana inscrevia-se no mbito de

    uma valorizao das aprendizagens de tudo quanto respeitava ptria e no ensino dos feitos

    fundadores das nacionalidades. Com os oratorianos o estudo da lngua latina passou a estar

    intimamente relacionado com a Histria de Portugal e no apenas centrado no estudo da

    latinidade e dos marcos da civilizao latina como fora apangio da pedagogia jesutica. Com

    os oratorianos a escola e, sobretudo, a cultura escolar surgem como vetores principais para a

    implantao do conceito de portugalidade. este contexto que proporciona a criao de uma

    memria escrita, de uma gesta ptria e de uma genealogia rgia que marcou um ponto de

    viragem na educao em Portugal no sculo XVIII e influenciou a pedagogia escolar at

    poca contempornea.

    A partir dos finais do sculo XIX acentua-se o carter positivista e nacionalista da

    educao, passando a cultura escolar e a sua ao educativa a constituir uma representao e

    adequao do sujeito realidade. no sculo XIX, com o Romantismo que se criam os

    smbolos nacionais e se constri a simbologia da nao e do ser portugus. Almeida Garrett

    e Alexandre Herculano foram duas figuras fundamentais para o desenvolvimento deste

    movimento em Portugal. As suas obras contriburam para a divulgao do amor ptria e do

    ruralismo bem como a exaltao da religiosidade.

    A Histria comea a ser vista como o veculo de reencontro com a ptria, um meio de

    conhecimento e de formao da conscincia nacional. Esta tendncia refletiu-se tanto no

    Liberalismo, como na Repblica e, mais tarde, no Estado Novo. Esta matriz referencial

    baseada na promoo da memria nacional tinha como objetivo a refundao para a

    nacionalidade. Nos vrios perodos histricos, foi introduzida uma gesta heroica e uma

    imagtica medievalista qual se acrescentou uma gesta ocenica de reforo do imprio

    colonial7.

    A mitologia nacional agregada ao simbolismo e a memria histrica passam a

    caraterizar a cultura escolar (em todos os nveis de escolaridade) durante o perodo

    republicano, consolidando-se esta adaptao historiogrfica no sentido da recuperao da

    fundao, da expanso e do pombalismo como pocas de ouro e motores de progresso.

    6 Desde o reinado de D. Joo V que a Companhia de Jesus se depara com a concorrncia da Congregao do

    Oratrio de S. Filipe de Nery que praticava um ensino moderno, dialogante e experimental. 7No qual a obra de Cames adquire um importante papel.

  • Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris

    8

    O Estado Novo centrava as suas aspiraes ideolgicas da mitologia nacional sobretudo

    nas capacidades da raa, na () Ptria de eleio de navegadores intrpidos, apostados na

    dilatao da f e do imprio, solidarizados no projeto comum de dar novos Mundos ao

    Mundo e de lanar os alicerces de uma ptria pluricontinental e multirracial8. A expanso

    martima constituiu o smbolo augusto da grandeza do povo portugus e a consequente

    motivao da glria nacional. O ato de simbolizar implicava uma escolha e a Histria

    transforma o smbolo representativo em causa explicativa ou fora propulsora. O smbolo

    torna-se na expresso evolutiva das aspiraes do homem, por isso, ele est presente na

    histria. A evocao do smbolo levava criao do mito que servia um determinado fim

    tornando-se uma instncia duradoura, mais forte, colorido e sedutor do que a realidade.

    A identidade nacional est pois intimamente ligada Histria, ao passado e ao presente

    de um pas. O estudo da identidade nacional e da memria reveste-se de importncia porque

    todos os povos procuram a sua identificao simblica, todas as naes lutam para caraterizar

    a essncia de cada nao, a definio da sua identidade relativamente ao passado versus

    presente mas tambm quanto ao futuro9.

    A identificao simblica de uma nao traduz-se em imagens, smbolos que so

    preferencialmente lderes, guias que funcionam como exemplos. A Histria sempre se apoiou

    nas grandes figuras que se destacaram no panorama geral, por tomarem decises com vista a

    dar rumo ao pas e a determinar os seus destinos, no entanto, h uma tendncia para a sua

    individualizao. Nessa sucesso de ideias surge tambm o conceito de ptria cuja estrutura

    assenta em legislao e instituies com objetivos polticos. Associado a estes conceitos surge

    ainda o conceito de nacionalismo que derivou dos discursos filosficos e histricos que

    surgiram entre os sculos XVII e XVIII na Europa ocidental. Segundo a teoria de A. Smith,

    o nacionalismo, enquanto ideologia, uma doutrina das unidades de poder poltico e um

    conjunto de prescries sobre a natureza dos detentores de poder () a um nvel mais geral, o

    nacionalismo deve ser visto como uma forma de cultura historicista e de educao cvica10

    .

    O conceito de nacionalismo em Portugal um conceito vasto que abarca vrios

    domnios, estendendo-se ao imprio. Geralmente associa-se aos elementos cvicos e

    territoriais unidade ou coeso e, consequentemente, indivisibilidade da nao, entendida

    como predestinao. Joo de Almeida defende que Nenhum povo, em nenhuma poca, foi,

    8 HOMEM, Amadeu Carvalho, 1995, Identidade Nacional e Contemporaneidade in Revista Histria das

    Ideias, Vol.17, pp.587-596. 9 Portugal o pas da Europa que est h mais tempo convicto da sua identidade, uma vez que as fronteiras

    terrestres so estveis h muitos sculos comparativamente com outros pases europeus. 10

    SMITH, Anthony D., 1997, A Identidade Nacional, Lisboa, Gradiva, p.117.

  • Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris

    9

    porm, como o portugus, animado por fora de expanso to viva e original, mantida atravs

    dos tempos em todos os perodos do seu desenvolvimento. A vocao expansiva dos

    portugueses no foi, com efeito, como tantos por algum tempo julgaram, uma atitude de

    momento que as circunstncias provocavam e a sorte prolongou. H antecedentes que a

    explicam. Tem razes no tempo, que importa descarnar () recuaremos, pois, numa viso

    rpida, aos tempos longnquos em que surgem atravs das neblinas, os primeiros indcios da

    vocao ecumnica de Portugal antes de ser Portugal, e dos portugueses, antes de serem

    portugueses11

    .

    A ao dos portugueses na constituio do imprio e consequentemente na realizao de

    uma misso civilizadora bem como a utilizao de um mtodo prprio e original de ocupao

    resultava de um carter prprio que se mantinha desde as origens. Esta ideia de

    providencialismo e da predestinao da nao reforada atravs do vnculo entre o Estado

    Novo e a religio onde ganha expresso a utilizao do milagre de Ftima que se assumia

    tambm com um carter nacionalista12

    .

    A unidade nacional estava tambm relacionada com o conceito de autonomia muito

    divulgado pelo regime. Este conceito afirmado por Kant torna-se um imperativo tico quer

    para o indivduo quer para a coletividade, um fundamento da sua gnese que deu origem a

    uma filosofia de autodeterminao. Neste sentido, a poltica nacionalista desenvolvida pelo

    regime foi extremamente bem organizada e to ativa na formao das mentalidades para

    cumprir o objetivo de inculcar essa vontade nacional para que o objetivo de unir a nao e

    torn-la num todo uno e indivisvel fosse uma realidade13

    .

    O nacionalismo refletia a individualidade do povo portugus, a lusitanidade, a

    existncia de um territrio histrico a partir do qual se formou a ptria, uma mitologia e uma

    memria histrica, um conjunto de caratersticas culturais comuns e pressupostos cvicos

    (direitos e deveres) da comunidade. Este conceito podia ser entendido como uma forma de

    cultura mas tambm como uma ideologia poltica que atuava fortemente no conceito de

    unidade nacional, social e cultural de uma nao, colocando-a no centro das atenes. uma

    doutrina cultural ligada a um movimento ideolgico para preservar a identidade de uma

    nao.

    11

    ALMEIDA, Joo de, 1931, O esprito da raa portuguesa na sua expanso alm-mar, Lisboa, Coleco Ao

    Servio do Imprio, Parceria Antnio Maria Pereira, p.31. 12

    Sobre este assunto vide BROCHADO, Costa, 1948, Ftima luz da Histria, Lisboa, Portuglia. 13

    A autonomia o objetivo de qualquer poltica nacionalista. O slogan Orgulhosamente ss foi um indicador

    da clara inteno do regime de implementar este valor na sociedade.

  • Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris

    10

    Tambm o conceito de gnio nacional ou carter nacional, conceito divulgado por

    Rousseau que se constituiu como uma noo relevante para a definio poltica de uma nao

    comeou a ser aceite e divulgado a partir de meados do sculo XVIII e Herder adotou-o para

    fundamentar o seu populismo cultural. Segundo este autor era necessrio () redescobrir a

    individualidade atravs da filosofia, da histria, e da arqueologia, e de fazer remontar as

    nossas razes a um passado tnico, de forma a confirmar a identidade autntica que existe

    por detrs dos acrscimos estranhos dos sculos14

    .

    O conjunto de conceitos intimamente relacionados com o nacionalismo, tais como

    identidade, autonomia, gnio nacional e unidade formavam uma linguagem que fazia parte de

    um discurso simblico e expressivo caraterstico do discurso pedaggico, poltico e

    comemorativo que o regime utilizou para levar a cabo a sua poltica do esprito. A simbologia

    inerente ao nacionalismo era um aspeto importante e poderoso porque transmitia os princpios

    da ideologia. Esses princpios apontam sobretudo para sentimentos relacionados com o

    domnio territorial, a coletividade e a histria heroica porque essa vertente da histria que

    parece responder de forma mais completa viso historicista que sustentava a ideologia do

    nacionalismo: a grandeza, a superioridade e a individualidade da nao. Para alm do domnio

    ideolgico, o nacionalismo atuava na vertente social, procurando incutir na sociedade um

    esprito de coeso e solidariedade nacional e tambm na vertente econmica15

    .

    As tradies e as crenas ancestrais, o orgulho na nao e nos antepassados, bem como

    todos os smbolos relacionados com estes enformavam as caratersticas da ideologia

    nacionalista e da identidade nacional. O nacionalismo constitua um conjunto de tradies,

    sentimentos e simbologia que assumia a forma do contexto que se pretendia divulgar

    assumindo um poder manipulador.

    A noo de coletivo surge no sculo XIX com a poca dos historicismos caraterizada

    por transformaes que motivaram a reinveno do passado. tambm nesta fase que surgem

    conceitos como memria social e memria coletiva e que h um reforo da viso da sociedade

    como um todo. Esta ideia trouxe consigo a entificao de sujeitos coletivos ou figuras

    simblicas que funcionam como propulsores da dinmica do futuro. Este processo de

    identificao das figuras do passado foi sendo cada vez mais aceite como fundamental para

    entender o presente e, sobretudo para transformar o futuro e as sociedades.

    14

    Citado por SMITH, Anthony D., 1997, Ob. Cit, p.99. 15

    Esta vertente que implica um esforo de autossuficincia de recursos, foi cuidadosamente observado por

    Salazar.

  • Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris

    11

    A formao individual e coletiva do eu est intimamente relacionada com os valores

    que a sociedade transmite, intervindo na forma como se estrutura e na conduo do seu

    percurso tendo em conta o passado. O eu ou a personalidade do eu constroem-se segundo os

    parmetros sociais da memria que assumem o passado e as suas interpretaes. Para ser

    possvel a memria desenvolver nos indivduos a sua funo social e normativa, so

    necessrios suportes materiais, sociais e simblicos de memrias, pois o seu contedo

    inseparvel do dilogo permanente entre, por um lado as imagens do passado e, por outro das

    expectativas relativamente ao futuro - a anamenese. A componente prtica da memria tem

    como objetivo inserir os indivduos em padres de identificao comuns, distinguindo-se

    relativamente a outros, exigindo-lhe deveres e dedicao em prol da identidade do eu.

    A memria coletiva e a memria histrica so como que duas faces da mesma moeda

    porque convergem para um mesmo objetivo prtico porque so ambas expresses da condio

    histrica do homem, mas tm objetos e significados diferentes. No entanto, a memria

    histrica tem uma funo social prtica, prestando-se ao ensino e a diversos meios de

    reproduo. A sua formao e reproduo encontram-se patentes em vrios registos. No s a

    escola reproduz essa memria, mas tambm a literatura, a toponmia, a estaturia, as

    comemoraes, etc.

    A memria coletiva tem um cariz normativo e est relacionada com as tradies do

    passado. Esta tem uma origem annima e espontnea e comporta sempre uma mensagem que

    tende a implantar-se como norma e como opositora ao esquecimento. A identidade e o

    sentimento de pertena so conceitos que se vo construindo atravs da funo integradora da

    memria coletiva que cria nos indivduos o reconhecimento projetando-se no futuro. A

    memria histrica tambm um conceito que ganhou maior projeo no sculo XIX com a

    importncia que a histria adquiriu na construo mtico-simblica do novo conceito de

    nao. Procurava-se no passado a legitimao para o presente, ou seja, para as transformaes

    sociais, culturais e simblicas ocorridas no presente.

    O sentimento coletivo, produto resultante da conscincia nacional desencadeado pelo

    Romantismo onde a exaltao nacional assumiu particular relevo. Iniciado em Portugal por

    Garrett, este movimento do sculo XIX foi o motor da evocao nacionalista. Os heris que

    ao longo dos tempos se foram tornando figuras emblemticas, sobretudo atravs das correntes

    historiogrficas que se foram impondo nas mentalidades das sociedades, eram encarados com

    misticismo e respeito pela historiografia pr-romntica.

    O sculo XIX foi apelidado de sculo da Histria porque foi a partir deste perodo que

    houve um reconhecimento da funo social e poltico-ideolgica que o estudo do passado

  • Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris

    12

    desempenhava na legitimao do presente e dos seus interesses, bem como da compreenso

    do futuro. Essa utilidade traduziu-se no campo educativo e em novas ritualizaes da Histria.

    Esta realidade levou ao aparecimento dos mitos e, ligados a estes os heris integrados no

    discurso cultural que as comemoraes ajudaram a erguer desde a monarquia liberal at

    atualidade em Portugal. Estes factos permitiram considerar o primeiro quartel do sculo XIX

    o perodo a que se assistiu a um processo de divinizao do sentimento nacional.

    Os filsofos do sculo XIX viam o mito como a explicao para o seu mundo. Para os

    romnticos o mundo era explicado atravs do mito que, no seu entender era um conceito que

    andaria muito prximo da realidade, unindo-se como um s: o subjetivo e o objetivo

    interpretavam-se formando um todo.

    Correntes como o romantismo e, mais particularmente, o positivismo apoiaram-se

    nestas leituras do passado para ultrapassar a crise nacional de oitocentos. Esta finalidade da

    Histria tinha em vista a refundao histrica da memria da nao. Paralelamente a esta

    inteno, surgiu tambm a comemorao como parte desse investimento, iniciado com a

    comemorao do centenrio de Cames em 1880 e o natural aproveitamento poltico e

    ideolgico da sua pica obra que se prolongou at ao Estado Novo, atravs da explorao

    mtica da f e do imprio. A comemorao vista como iniciativa revivescente do passado

    apresentada como arqutipo ao presente e ao futuro. Nesta perspectiva Fernando Catroga

    entende que a comemorao pressupe () uma concepo repetitiva e cclica, o seu

    significado ltimo sobre determinado pela crena na irreversibilidade do tempo. Isto , o

    comemoracionismo, tal como a historiografia dominante, tambm se baseavam numa anloga

    ideia evolutiva e continusta de tempo, na qual o melhor do passado era decantado para ser

    sugerido como futuro do presente. Portanto, as comemoraes e a escrita historicista da

    histria so prticas de representao, ou melhor, de esquecimento da morte e do devir, e

    pem em cena uma previso ao contrrio que procura confirmar, o passado, a direo do

    porvir. Mas tambm so uma das melhores confirmaes do modo como a ideia continusta e

    evolutiva do tempo compaginava bem com a histria dos vencedores e com o seu papel

    pedaggico. (...) A esta luz, explica-se que elas se objectivassem em ritualizaes que

    enaltecessem figuras modelares, ou momentos de fastgio, para, escondendo o lado mais

    sombrio das coisas, exorcizar e criticar decadncias do presente e alentar crenas na redeno

    futura, marcando, assim os ritmos ascendentes e, por contraste, os descendentes da histria16

    .

    16

    CATROGA, Fernando, 2001, Memria, Histria e Historiografia, Coimbra, Quarteto, p.61.

  • Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris

    13

    O ressurgimento da nao era o objetivo principal da investida comemoracionista. A

    exemplaridade ajudava a ultrapassar o negativismo que caraterizava o presente e promovia o

    restabelecimento da grandeza nacional. A nao abandona o seu cariz abstrato e adquire

    estatuto, passando a designar-se conjunto de homens de Portugal. O sculo XIX foi uma

    poca importante dada a sua projeo direta e prxima na modelao do Portugal

    contemporneo, em parte devido ao ideal de nao que surgira.

    No decurso do sculo XIX, as figuras histricas comearam a ser caraterizadas como

    Volkergeist nacional ou esprito de um povo, segundo a conceo romntica alem difundida

    pela Europa, aceite tambm em Portugal, introduzindo na historiografia uma perspetiva

    didtica e cvica.

    A nfase colocada nos heris como personagens que partilham a esfera do mito no

    quadro da evoluo das sociedades um tema j explorado desde a antiguidade. Desde os

    primrdios da civilizao o heri, pela sua ao na histria assume uma importncia

    fundamental na construo da imagem das sociedades. Todavia, a partir do sculo XIX com

    a divulgao do pensamento romntico e o Positivismo de Auguste Comte que se assiste

    ascenso do heri como elemento integrante do desenvolvimento.

    Thomas Carlyle publica nesta poca a obra Os Heris e o Culto dos Heris, onde

    destaca o papel fundamental da personagem do heri na transformao das sociedades.

    Segundo Carlyle a histria do mundo a biografia dos grandes homens. Tomando o todo

    pela parte este autor considera que o rumo da histria ditado pelos heris e que estes devem

    ser objeto de exaltao, acrescentando que o heri () o eterno alicerce sobre o qual os

    homens podem edificar de novo17

    .

    No sculo XIX procurou-se forjar smbolos que estivessem relacionados com a

    justificao de uma entidade poltico-cultural baseada na Histria nacional e nas

    especificidades de um pas, ou seja, a lngua e as suas fronteiras territoriais. Foi este o modelo

    largamente utilizado para a construo das identidades nacionais pelas naes que

    procuravam consolidar a sua estrutura identitria. Mas a afirmao dos nacionalismos

    comportava outras estratgias de reforo da identidade nacional que no se limitavam s j

    anteriormente referidas. A busca de um conjunto de imagens de marca, comeando pelos

    grandes antepassados fundadores de um povo funcionava como estratgia identitria

    legitimadora das naes nos sculos XIX e XX.

    17

    CARLYLE, Thomas, s/d., Os Heris e o culto dos Heris, S. Paulo, Ed. Cultura Moderna, pp.22-24.

  • Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris

    14

    A implantao e a consequente divulgao do pensamento comtiano vieram influenciar

    o movimento republicano e, posteriormente o Estado Novo, no sentido de atribuir ao culto dos

    heris uma influncia determinante no encaminhamento dos desgnios da nao. O culto da

    sua personalidade fazia parte do processo de mitificao no sentido de reforar o sentimento

    nacional.

    No perodo do ps I guerra mundial assistiu-se a um aprofundamento da Histria e do

    seu conhecimento. Os intelectuais desta poca como Paulo Mera, Joo Lcio de Azevedo,

    Leite de Vasconcelos, Joaquim Bensade entre outros, atriburam uma significativa

    importncia renovao da historiografia portuguesa bem como exigncia do rigor

    histrico.

    A Histria impunha-se como uma condio fundamental para a cultura nacional e o

    discurso histrico orientava-se no sentido das motivaes coletivas e os seus heris ligavam-

    se a foras sociais. A historiografia procurava compreender e explicar o passado luz da

    estrutura constituda por cada nao expressa nos seus mltiplos aspetos sociais, culturais e

    polticos. tambm nesta poca que se definem os heris e que a noo de herosmo se

    transforma num tema cultural de interesse.

    Assiste-se consolidao da nacionalidade baseada na sua Histria e no

    sentimentalismo. Alm do protagonismo que a Histria adquiriu tambm se procedeu

    reexaminao da galeria dos heris tradicionais cuja definio no fora alterada desde

    Oliveira Martins. Representou este tema um grande debate pblico entre os intelectuais da

    poca sendo decerto, gerador de grandes controvrsias18

    . Todavia, a questo fulcral deste

    debate era a definio da tipologia de heri que se devia apresentar nao como reflexo da

    identidade nacional e como exemplo orientador.

    A memria coletiva foi percecionada e entendida de formas diferentes pelo homem

    atravs do tempo, dependendo entre outros fatores, sobretudo da conjuntura poltica e cultural

    em que se inseriam. , por isso, um conceito mutvel, sofrendo uma reorganizao constante

    e sistemtica numa relao dialtica entre as tradies do passado e os interesses e a dinmica

    social do presente de cada perodo da Histria a par das omisses ou valorizaes atribudas a

    determinadas pocas e figuras histricas consoante a ideologia defendida, tal como sucedeu

    18

    No propsito deste trabalho enveredar pelo estudo destas polmicas, embora nos parea interessante a

    posio de alguns intelectuais como Antnio Srgio e Malheiro Dias. Sobre este assunto vide MACEDO, Jorge

    Borges de, 1983, Significado e evoluo das polmicas de Antnio Srgio: a ideologia da razo (1921-1930)

    in Revista Histria das Ideias, Vol. V, pp.505 a 512.

  • Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris

    15

    durante o Estado Novo, que () manteve uma constante linha de oposio ao iderio e s

    obras da repblica, esforando-se por apagar a sua memria e os seus smbolos19

    .

    Impunha-se a reconstituio de um conjunto de heris teis para a comunidade para

    fazer frente s dificuldades que o pas enfrentava. Aps a implantao da ditadura militar,

    Portugal assiste a um perodo de indefinio ideolgica onde imperaram as posies

    integralistas antiparlamentares que privilegiavam a histria poltica, procurando

    (re)estabelecer-se uma tradio que suprimisse os elementos republicanos e parlamentares at

    ento dominantes. Neste sentido, a (re)definio do herosmo e uma reforma de mentalidade

    impunham-se uma vez que a orientao ideolgica era tambm diferente.

    A dcada de 30 proporcionou a ascenso de Salazar na cena poltica nacional

    originando um perodo de viragem na vida cultural e poltica portuguesa e importantes

    transformaes na mentalidade que se enraizaram graas a um empenhado discurso

    ideolgico utilizado pelo regime.

    No Estado Novo assistiu-se a um fenmeno ideolgico que teve influncia sobretudo no

    aspeto social e cultural. Para bem compreender este fenmeno necessrio tentar desmontar o

    discurso que lhe est subjacente e a estrutura construda pelo regime que deu forma a esse tipo

    de discurso. tambm necessrio compreender quem est por detrs da construo deste

    discurso e a estrutura mentis dos idelogos que lhe deram forma.

    A anlise do discurso histrico produzido e divulgado pressupe a compreenso do seu

    propsito e modelo, considerando que este tipo de discurso algo que culturalmente marca a

    sociedade na qual produzido e que faz parte do processo histrico considerado repositrio

    de um passado. Inscreve-se no mbito da memria imagtica que durante o regime se

    sacralizou, tornando-se num mito enquanto representao coletiva20

    .

    O campo ideolgico de valores e conscincia nacional que o Estado Novo privilegiou

    recorria sobretudo a figuras histricas que personificam os ideais que se pretendiam

    promover, elevando alguns deles ao nvel da mitificao. O campo disciplinar das

    mentalidades durante o regime privilegiava as certezas acerca da natureza humana

    circunscrevendo alguns dos perfis nacionais a uma galeria de heris ou at mesmo esfera do

    mito.

    Os mitos foram os cones instrumentalizados pelo regime que se transformaram nos

    seus prprios alicerces ideolgicos. Eles eram a personificao do homem ideal devoto

    19

    BETHENCOURT, Francisco e Curto, Diogo Ramada, 1991, A memria da Nao, Colquio do Gabinete de

    Estudos de Simbologia, Lisboa, Livraria S da Costa, p.11. 20

    BUESCU, Ana Isabel, 2000, Memria e Poder : Ensaios de Histria Cultural (scs. XV-XVIII), Lisboa, Ed.

    Cosmos, p.14.

  • Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris

    16

    nao, disposto a sacrificar-se por ela. Desconstruir o mito pois, tentar compreender qual a

    sua utilidade no patrimnio e sonho coletivos.

    O culto dos heris integra uma parte relevante da memria histrica construda pelo

    Estado Novo enquanto estrutura de poder e como parte do corpo central das ideias do

    salazarismo, onde tambm se destacam entre outros os conceitos de antiliberalismo,

    nacionalismo, o trptico mitolgico de Deus, Ptria e Famlia, e o discurso imperial.

    Assunto caro ideologia patritica do regime, as grandes figuras da Histria nacional

    constituem um campo representativo do ideal social que este pretendia instituir. A

    historiografia do Estado Novo elevou ao extremo a consagrao mtica de algumas figuras

    histricas assemelhando-as a devotos e bravos guerreiros conotando-as com Salazar, fazendo

    crer que este faria parte do panteo heroico do regime, imagem de marca da nao. Foi criada

    uma representao nacionalista prpria do regime, sendo este um dos aspetos mais suis

    generis do Estado Novo: a construo e consolidao de uma mentalidade e de uma cultura de

    homenagem a uma figura que progressivamente entra para a esfera do mito porque apresenta

    semelhanas com figuras histricas tais como Afonso Henriques, Nuno lvares Pereira, pelas

    suas qualidades de chefia, e com o Infante D. Henrique, como visionrio, extraordinariamente

    inteligente na conduo dos altos desgnios da ptria21

    .

    O ser portugus conhece durante o Estado Novo uma verdadeira evocao do seu

    carter e da sua fora cujo objetivo era a reproduo constante de um passado coroado de

    glrias e de prosperidade. Este facto explica que durante este perodo se tenha dado particular

    destaque s comemoraes dos centenrios e festas do culto ptrio no sentido de valorizar a

    memria de perodos importantes da Histria nacional, perpetuando o passado no tempo

    presente.

    A pretenso de igualar o passado ao presente revelava semelhanas com o discurso

    mtico que visava a continuidade e a conservao de um perodo originrio, atravs da

    reproduo cclica. Nesse sentido, atravs do estudo da memria histrica dos heris, entrava-

    se no campo privilegiado onde uma conceo de histria exemplar, espcie de sistema

    explicativo do devir da nao vinha substituir a mitologia.

    No Estado Novo uma das mais importantes funes da educao escolar nas suas

    variadas vertentes e, sobretudo da Histria enquanto disciplina curricular, era construir e

    desenvolver uma conscincia nacional que tinha por base a evocao das grandes figuras

    21

    Esta semelhana foi alvitrada nos painis de S. Vicente da autoria de Nuno Gonalves (1460) onde se encontra

    o Infante D. Henrique, figura que foi assimilada a Salazar, com o intuito de mostrar a personagem como

    participante daquele ambiente sagrado.

  • Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris

    17

    histricas. Neste processo de construo da memria nacional, o lendrio e a efabulao

    estavam presentes na construo do mtico histrico que se revestia de interesse pedaggico

    na formao dos alunos, por ser a Histria uma disciplina que se prestava talvez mais do que

    nenhuma outra a um ensino que sem deixar de ser informativo se transformou essencialmente

    num ensino formativo.

    As fases marcantes da Histria nacional tm associados mitos historiogrficos como

    seja o nascimento da nao ou os descobrimentos que espelham o carter portugus. O

    providencialismo sempre presente nos desgnios do nosso destino est bem patente na

    construo da ideia de devir nacional e na ideia que ao longo dos tempos construmos de ns

    prprios.

    O regime pretendeu construir luz dos exemplos nacionais, uma () lusitanidade

    exemplar, cobrindo o presente e o passado escolhido em funo da sua mitologia arcaica e

    reacionria que aos poucos substitui a imagem mais ou menos adaptada ao pas real dos

    comeos do Estado Novo por uma fico ideolgica, sociolgica e cultural mais irrealista

    ainda que a proposta pela ideologia republicana, por ser fico oficial, imagem sem controlo

    nem contradio possvel de um pas sem problemas, osis da paz, exemplo das naes,

    arqutipo da soluo ideal que conciliava o capital e o trabalho, a ordem e a autoridade com

    um desenvolvimento harmonioso da sociedade. () No vivamos num pas real, mas numa

    Disneylndia qualquer, sem escndalos, nem suicdios, nem verdadeiros problemas. O

    sistema chegou a uma tal perfeio na matria que no parecia possvel contrapor uma outra

    imagem de ns mesmos quela que o regime to impune mas to habilmente propunha sem

    que essa imagem-curta (no apenas ideolgica, mas cultural) aparecesse como uma sacrlega

    contestao da verdade portuguesa por ele restituda sua essncia e esplendor22

    .

    Qual a verdadeira dimenso do sistema educativo como instrumento poltico do regime?

    Certamente a ligao entre o poder poltico e a educao foi muito estreita. To estreita que o

    regime lhe confiava o seu futuro e continuidade. A educao era um importante aparelho

    ideolgico e um instrumento fundamental para a construo de uma imagem grandiosa da

    Histria nacional que legitimava o regime ao mesmo tempo que criava uma nova

    mentalidade.

    Questionar a realidade educativa durante o Estado Novo uma tarefa interessante e

    pertinente, tendo em conta o manancial de anlise histrica que ela pode propiciar. Do ponto

    22

    LOURENO, Eduardo, 1991, O labirinto da saudade. Psicanlise mtica do destino portugus, Lisboa,

    Publicaes D. Quixote, p.28.

  • Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris

    18

    de vista cientfico, esta anlise reveste-se de particular interesse para o estudo do contexto

    poltico-ideolgico e cultural em que a educao se desenrolou.

    As representaes e a divulgao da memria das figuras emblemticas da nossa

    histria esto ainda hoje bem presentes na conscincia da sociedade portuguesa e em boa

    parte do nosso quotidiano. Desde a toponmia aos monumentos comemorativos, estaturia at

    literatura produzida em torno destas, mostram que no passado e tambm no presente

    geraes antigas e atuais rendem homenagem a esse conjunto de vultos proeminentes que

    povoam o imaginrio mtico da nossa histria.

    A identidade exprime-se e materializa-se atravs destes critrios que consagram as

    figuras heroicas que estiveram na base do percurso glorioso da nao, a construo de uma

    viso mtica de um povo intrpido e prudente.

    Atualmente o conceito de identidade nacional est desligado de afirmaes de

    nacionalismo e de concees egocntricas da nossa existncia, encontrando-se associado a um

    conceito global de identidade. Desde que Portugal se incorporou na Comunidade Europeia

    que pretende desembaraar-se da velha conceo mtica e egocntrica de nao que fabricava

    os mitos lendrios da portugalidade, condenando o modelo retrgrado de tipo integralista-

    salazarista que vigorou durante dcadas. Mas esta noo globalizadora de identidade recente

    e ainda em fase de construo. Ela vem substituir a velha conceo identitria que o regime

    construiu dentro do ideal Omnia pro Ptria atravs de smbolos e engrandecimento de um

    conjunto de figuras que se foram sucedendo ao longo de vrias geraes divulgando sempre

    um ideal, e nas quais se depositavam todas as esperanas quando se tratava de vencer

    perodos de conjuntura desfavorvel para a nao.

  • Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris

    19

    I.2. Objetivo do Estudo

    A questo do ethos nacional um conceito que pode ser estudado sob diversos nveis de

    anlise conceptual: enquanto questo antropolgico-cultural; histrico-cultural e poltico-

    ideolgica; como questo ligada s reas da Sociologia e Psicologia coletivas ou tambm

    como questo filosfica.

    Pretende-se com o presente trabalho descodificar as tendncias historiogrficas ao nvel

    cultural e educativo e, sobretudo a nvel dos seus conceitos ideolgicos que sustentaram as

    opes do regime poltico em matria de perfis nacionais. Interessa-nos desmontar e entender

    os mecanismos de afirmao das verdades utilizados que evidenciavam o aproveitamento

    que o regime retirava das figuras histricas ao nvel do imaginrio educativo para firmar os

    valores nacionais no aluno. Os mecanismos de afirmao que nos propomos analisar

    revestem-se de particular interesse porque contm uma carga simblica significativa que deu

    consistncia ideologia do regime e alicerou a conscincia histrica nacional.

    A explorao desta temtica interessa sobretudo ao nvel dos aspetos culturais, polticos

    e ideolgicos contidos no discurso histrico escolar e extraescolar. A temtica do herosmo e

    dos mitos da Histria est relacionada com a questo da identidade nacional, com a imagtica

    que ela criou em ns prprios e envolve uma determinada tica e mentalidade.

    A criao de mitos e de heris foi desde h muito tempo, uma inevitabilidade constante

    na sociedade portuguesa. Apresentou-se como uma soluo para as consequncias das crises

    geradas enquanto evaso da realidade. A memria coletiva perante situaes desfavorveis

    demonstrou necessidade de buscar nos feitos e nas personagens do passado as esperanas de

    ultrapass-las. Assim, a nao foi criando ao longo da Histria os mitos imitao das suas

    necessidades e das circunstncias nacionais. Segundo Gusdorf L` histoire efficace, l`histoire

    utile n`est pas celle ds historiens rudits, mais bien celle qui se formule l`imagerie nave des

    livres d`cole primaire, ou se trouvent rassembls les figures stylises des hros rcits

    romancs des grands vnements du pass, revues et charriages par le sens civique23

    .

    A historiografia e o discurso histrico so dois elementos que concorrem para a

    constituio da noo de identidade coletiva de um pas, sendo o discurso histrico o veculo

    fundamental do sistema de representaes ideolgicas que se produzem e que se manifesta

    atravs da narrativa.

    23

    GUSDORF, G., 1953, Mythe et mtaphysique, Paris, Flammarion, p. 226.

  • Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris

    20

    A historiografia e o discurso histrico esto, pelo campo de estudo que servem e pelas

    suas caratersticas especficas, relacionados e dependentes da orientao que o poder poltico

    lhes atribui. Neste sentido, a construo da memria histrica est diretamente relacionada

    com a operatividade das representaes e das imagens transmitidas mantendo entre si uma

    estreita relao. O sistema de imagens e representaes alimenta-se de mitos que assumem

    uma importncia fundamental na configurao da memria nacional.

    I.3. Estado da Questo

    O estudo dos perfis nacionais um campo de investigao que mereceu j a

    investigao por parte de alguns autores. Existem alguns estudos que se inscrevem dentro da

    temtica sobre a qual versa o nosso trabalho, no entanto, nenhum deles foi realizado tendo em

    vista o mesmo limite cronolgico nem o mesmo objetivo que delinemos para o estudo das

    figuras histricas.

    Julgamos ser importante referir aqui alguns dos estudos j realizados como obras24

    e

    trabalhos de investigao de teor acadmico que consultmos. Destacamos, dentro desta

    temtica que engloba diversas reas, o contributo de vrios autores, cujas obras consideramos

    24

    FERREIRA,Virglio, 1983, Cames e a Identidade Nacional, Lisboa, Temas Portugueses, INCM; LAMAS,

    Maria, 1991, Mitologia Geral: o mundo dos Deuses e dos Heris, 2 vols., Lisboa, Editorial Estampa / Imprensa

    Universitria;

    LOPES, Antnio, 1995, Heris da misso em 500 anos da Evangelizao Portuguesa, Editora Misses

    Consolata;

    LOURENO, Eduardo, 1991, O Labirinto da Saudade: psicanlise do destino portugus, Lisboa, Biblioteca D.

    Quixote;

    MARTINS, Moiss de Lemos, 1991, Para uma Imersa Navegao: o discurso da identidade, Porto, Edies

    Afrontamento;

    MATTOSO, Jos, 1993, A Identidade Nacional, Lisboa, Fundao Mrio Soares/Gradiva;

    PROENA, Maria Cndida et alii., 2000, Os Descobrimentos no Imaginrio Juvenil (1850-1950), Lisboa, Ed.

    Comisso Nacional para as Comemoraes dos Descobrimentos Portugueses; PROENA, Maria Cndida

    (coord.), 1999, Um Sculo de ensino da Histria, Lisboa, Edies Colibri, Instituto de Histria Contempornea

    da Faculdade de Cincias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa;

    SECRETARIA DE ESTADO DA COMUNICAO SOCIAL, 1978, O Sebastianismo: breve panorama de um

    mito portugus, Lisboa, Terra Livre;

    SELLIER, Philippe, 1979, Le mythe du hros, Univers de Lettres, Paris, Bordas;

    CENTENO, Yvette Kace, 1993, Portugal: mitos revisitados, Lisboa, Edies Salamandra;

    GRCIO, Rui, 1995, Da Educao I, Textos de Educao, Obra Completa, Lisboa, Fundao Calouste

    Gulbenkian; JOO, Maria Isabel da Conceio, 1999, Memria e Imprio: Comemoraes em Portugal (1880-

    1960), Dissertao de Doutoramento (texto policopiado), 2 volumes, Lisboa, Universidade Aberta;

    BETHENCOURT, Francisco e Curto, Diogo Ramada (org.), 1991, A Memria da Nao, Colquio do Gabinete

    de Estudos de Simbologia, Lisboa, Livraria S da Costa; LEAL, Ernesto Castro, 1999, Nao e Nacionalismos:

    a Cruzada D. Nuno lvares Pereira e as origens do Estado Novo (1918-1938), Lisboa, Edies Cosmos;

    MACHADO, Jos Barbosa, 1996, O mito de Viriato na Literatura Portuguesa, Braga, Universidade do Minho/

    Instituto de Educao, Dissertao de Mestrado (texto policopiado); SILVA, Antnio Lus Cerdeira Coelho e,

    1993, Imagens de D. Sebastio no Portugal Contemporneo, Coimbra, Dissertao de Mestrado (texto

    policopiado); ANDRADE, Lus Oliveira, 2001, Histria e Memria - a Restaurao de 1640: do Liberalismo s

    comemoraes centenrias de 1940, Coleo Minerva Coimbra, Coimbra, Edies Minerva Coimbra;

  • Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris

    21

    de particular interesse para o nosso trabalho, como: Lus Manuel Reis Torgal25

    que se dedica

    a um campo de investigao vocacionado para o estudo da Histria e das ideologias; Srgio

    Campos Matos26

    cujo campo de investigao est relacionado com a questo dos

    nacionalismos, Fernando Catroga27

    que se dedicou ao estudo das identidades e Paulo Archer

    de Carvalho28

    , cuja temtica de investigao versa sobre a historiografia integralista e os seus

    mitos.

    Contam-se tambm artigos publicados29

    que evidenciam o debate em torno desta

    problemtica, sendo este tema matria de discusso nas ltimas dcadas.

    25

    TORGAL, Lus Reis, 1989, Histria e Ideologia, Coimbra, Livraria Minerva; TORGAL, Lus Reis, 1982,

    Pombal Revisitado, Vol. I, Lisboa, Ed. Estampa; TORGAL, Lus Reis, 1998; TORGAL, Lus Reis et alii.,

    Histria da Histria em Portugal (scs. XIX-XX), Lisboa, Crculo de Leitores. 26

    MATOS, Srgio Campos, 1988, Histria, Mitologia e Imaginrio Nacional: a Histria no curso dos liceus,

    Dissertao de Mestrado (texto policopiado), Lisboa, Universidade Nova; MATOS, Srgio Campos, 1998,

    Historiografia e Memria Nacional no Portugal do sc.XIX:1846-1898, Lisboa, Edies Colibri/ Faculdade de

    Letras de Lisboa; MATOS, Srgio Campos, 1993, Na gnese da teoria do heri em Oliveira Martins, Lisboa,

    INIC. 27

    CATROGA, Fernando e Carvalho, Paulo A.M. Archer de, 1996, Sociedade e Cultura Portuguesas III, Lisboa,

    Universidade Aberta; CATROGA, Fernando, 2001, Memria, Histria e Historiografia, Coimbra, Quarteto.

    28 CARVALHO, Paulo Archer de, 1993, Nao e Nacionalismo: mitemas do Integralismo Lusitano, Coimbra,

    Universidade de Coimbra, Faculdade de Letras, Dissertao de Mestrado em Histria Contempornea de

    Portugal. 29

    CARVALHO, Paulo Archer de, 1994, Memria Mtica da Nao - o caso do Integralismo Lusitano in:

    Vrtice 61/Julho-Agosto, pp.51-66; CARVALHO, Paulo Archer de, 1995, De Sardinha a Salazar: o

    nacionalismo entre a euforia mtica e a formidvel parania in: Revista de Histria das Ideias, Vol.17, pp.79-

    123; CARVALHO, Paulo Archer de, 1996, Ao princpio era o verbo: o eterno retorno e os mitos da

    historiografia integralista in: Revista de Histria das Ideias, Vol. 18, pp.231-243;

    PAULO, Helosa de Jesus, 1996, Salazar: a elaborao de um mito in: Revista de Histria das ideias, Vol. 18,

    pp.245-275.

    HOMEM, Amadeu Carvalho, 1991, Identidade Nacional e Contemporaneidade, Revista Histria das Ideias,

    Vol.XVII, pp.587-596;

    LEAL, Ernesto Castro, 1993, Projeco pblica do smbolo Nun`lvares (1918-1931) in: Revista da

    Faculdade de Letras, n15, 5srie, FLUL, pp.67-80;

    LOUREIRO, Francisco de Salles, 1989, Uma mitogenia nacional in: Revista da Faculdade de Letras, n12,

    5srie, pp.47-58;

    MATOS, Srgio Campos, 1988, Heris e anti-heris de uma memria histrica in: Clio, Vol. 6, pp.39-77;

    MATOS, Srgio Campos, 1992, Histria, Positivismo e funo dos Grandes Homens no ltimo quartel do

    sc.XIX, Lisboa, Separata de Penlope, n8; pp.51-71; MOLES, Abraham A., 1985, A funo dos mitos

    dinmicos na construo do imaginrio social in: Logos, n4/dezembro, pp.33-49;

    SEABRA, Jorge, 1995, O Imprio e as memrias do Estado Novo- os Heris de Chaimite in: Revista Histria

    das Ideias, Vol.17, pp.33-78; JOO, Maria Isabel da Conceio, 2001, Memria e Construo dos Mitos:

    reflexo em torno dos heris in: Discursos, III srie, 3, Lisboa, Universidade Aberta, pp.74-97; TORGAL, Lus

    Reis, 1998, Ensino da Histria, in: Histria da Histria em Portugal (scs.XIX-XX), Lisboa, Crculo de

    Leitores, pp.85-193; TORGAL, Lus Reis, 1976, A Restaurao: reflexo sobre a sua historiografia in:

    Separata da Revista Histria das Ideias, IHTI, Coimbra, Universidade de Coimbra, pp.23-40; ROSAS,

    Fernando, 1995, Estado Novo, Imprio e Ideologia Imperial in: Revista Histria das Ideias, Vol.17, pp.19-32;

    RAMOS, Paulo Oliveira, 1998, Pequenas Ptrias in: Poder e Sociedade, Vol. II, Coleco de Estudos Ps-

    Graduados, Lisboa, Universidade Aberta, pp.523-538.

  • Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris

    22

    I.4. Descries de termos

    Memria histrica coletiva um conceito recente de cariz historiogrfico desenvolvido

    por Pierre Nora. Representa o esforo consciente da sociedade para construir ideias,

    conhecimentos, representaes e imagens com recurso ao passado, seja este real ou

    imaginrio.

    Educao um processo que implica a relao entre o ensino e a aprendizagem. uma

    forma de reproduo dos saberes que pertencem a uma cultura. Intencionalmente ou no, a

    educao reproduz ideologias dominantes.

    Ideologia um elemento cultural. Traduz uma determinada viso da verdade que se

    pretende transmitir. Apresenta um sistema de ideias e valores padronizado com vista

    orientao do futuro.

    Mentalidades (Histria das) um conceito historiogrfico que d nfase s formas de

    pensar e de sentir dos indivduos de uma mesma poca. um sistema de valores, crenas, e

    representaes especficas de uma poca ou de uma sociedade. tambm o padro de

    pensamento que forma a estrutura da conscincia dos indivduos.

    Perfis nacionais a representao das caratersticas de um conjunto de indivduos.

    Smbolo um elemento de identidade que pressupe uma correspondncia ou associao

    com um determinado significado. A relao entre significado e smbolo obtida atravs da

    ao da propaganda.

    Identidade nacional um conceito, uma criao do plano cognitivo que explica o

    sentimento de pertena dos indivduos a uma nao. Promove um vnculo entre a sociedade e

    a nao e uma ideia de unio, essenciais para a construo da identidade individual.

    Representaes sociais uma forma de interpretao que construda e partilhada

    coletivamente e promove a construo de uma viso comum a uma sociedade.

  • Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris

    23

    CAPTULO II: ESTRUTURA CONCEPTUAL

    II.1. Definio da problemtica

    Atualmente discute-se a educao como um tema central do desenvolvimento das

    sociedades. Neste debate intervm dois conceitos de especial relevncia: a Histria Cultural

    ou das Mentalidades e a Histria da Educao. A Histria Cultural ou das Mentalidades uma

    rea que se insere num mbito geral da Histria e que mantm uma relao estreita com a

    Histria da Educao uma vez que partilham conceitos caros a ambas.

    Nas ltimas dcadas a Histria da Educao tem vindo a ganhar terreno, destacando-se

    a pesquisa e a investigao realizada no mbito desta temtica que ocupa uma posio de

    destaque naquela que a relao de interdisciplinaridade entre as duas reas de referncia. A

    problemtica do nosso trabalho toca estes dois conceitos e, numa perspetiva histrica pretende

    refletir sobre questes culturais e de mentalidade inseridas num contexto educativo.

    A Histria Cultural sensvel s representaes e ao simbolismo e d o seu contributo

    Histria da Educao colocando-lhe desafios, o que torna importante a reflexo em torno

    desta problemtica, atendendo ao legado que o pensamento ps moderno doou nova

    Histria Cultural.

    O simblico parte integrante da existncia humana. Mircea Eliade quem afirma que

    o pensamento simblico inseparvel do ser humano30

    . O imaginrio vem sendo objeto de

    uma preocupao cientfica crescente, sobretudo no que se refere ao aprofundamento do

    conhecimento sobre o homem e sobre as sociedades humanas porque confere sentido

    existncia humana.

    O simblico condio fundamental para que o humano exista e a cultura escolar que

    ela comporta so os espaos privilegiados para a sua transmisso, por isso a cultura escolar

    uma cultura simblica onde a imagem influencia de forma direta a educao a nvel do

    racional e do mental. Assim, a imagem e o imaginrio, no seu conjunto, envolvem diversos

    conceitos como ideais, ideologias, emoes/sentimentos, crenas, mitos, valores, etc., e

    constituem um meio fundamental para perspetivar a pedagogia e o ensino.

    atravs do domnio do imaginrio que se representa o essencial, o cerne da educao e

    os objetivos primordiais da educao. A educao enquanto prtica social uma prtica

    simblica e um dos meios que permite agir sobre o imaginrio coletivo.

    30

    ELIADE, Mircea, 1963, Images et Symboles, Paris, Gallimard, p.13.

  • Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris

    24

    A recorrncia ao imaginrio permite criar e recriar os heris mitolgicos e os

    movimentos histricos regeneradores que representam auges na histria e que desencadeiam

    reaes no domnio emocional, contribuindo para alimentar o ego nacional. De acordo com

    Maria Ceclia Sanchez Teixeira () o imaginrio no um simples conjunto de imagens

    que vagueiam livremente na memria e na imaginao. Ele uma rede de imagens na qual o

    sentido dado na relao entre elas, as quais organizam-se de acordo com uma certa lgica,

    uma certa estruturao, de modo que a configurao mtica do nosso imaginrio depende da

    forma como arrumamos nele nossas fantasias31

    . Esta conceo enquadra o mito no domnio

    do emocional, tal como tambm defende Ernest Cassirer que o concebe sob a seguinte forma:

    O mito no nasce somente de processos intelectuais, brota das emoes profundamente

    humanas. Contudo, por outro lado, todas aquelas teorias que acentuam exclusivamente o

    elemento emocional esquecem um ponto essencial. O mito no pode ser descrito como uma

    simples emoo porque a expresso de uma emoo. A expresso de um sentimento no o

    prprio sentimento - a emoo tornada imagem32

    .

    Por estas razes o imaginrio um conceito fundamental no que toca compreenso da

    memria e identidade nacionais. O sentimento de pertena um ato da imaginao. atravs

    das razes imaginrias que o indivduo adquire esse sentimento de pertena que se vai

    alterando com o decorrer do tempo. As sociedades precisam de ter representaes simblicas

    para se afirmar o sentimento de pertena.

    A mitanlise tem como objetivo, segundo a perspetiva de Alberto Arajo () a

    deteco dos traos mticos (esquemas mticos) latentes ou difusos (mito implcito) e patentes

    (mito explcito), no interior das sociedades, das civilizaes e das respetivas ideologias que as

    enformam33

    . Estas consideraes remetem-nos para a relao entre mito e ideologia tambm

    demonstrada pelas teses de Jean-Pierre Sironneau34

    que se entrecruzam com o conceito de

    inconsciente coletivo relevante para compreender como se opera a conscincia cultural.

    Segundo Sironneau, o inconsciente coletivo junguiano () a instncia proto-simblica

    universal responsvel pela produo de figuras constantes do imaginrio que, por sua vez,

    moldam ou afectam as mltiplas variaes culturais ou singularizaes histricas35

    . O

    31

    TEIXEIRA, Maria Ceclia Sanchez, 2003, O imaginrio como dinamismo organizador e a educao como

    prtica simblica in: ARAJO, Alberto Filipe e Arajo, Joaquim Machado, 2003, Histria, Educao e

    Imaginrio- Actas do VI Colquio, Braga, Centro de Investigao em Educao/Universidade do Minho, p.36. 32

    CASSIRER, Ernest, 1961, O Mito do Estado, Lisboa, Publicaes Europa-Amrica, p.64. 33

    ARAJO, Alberto Filipe e, Magalhes, Justino, 2000, Histria, Educao e Imaginrio Actas do IV

    Colquio de Histria, Educao e Imaginrio, Braga, Universidade do Minho, p.96-97. 34

    SIRONNEAU, Jean-Pierre, 1980, Le Retour du mythe, Grenoble, PUG. 35

    SIRONNEAU, Jean-Pierre, 1990, Les quivoques de la religion rvolutionnaire in : CHALAS, Yves (dir.)

    Mythe et Rvolutions, Grenoble, PUG, p.99-132.

  • Educao e Ideologia Portugal, ptria de heris

    25

    imaginrio humano composto por uma dupla dimenso inseparvel: a scio-cultural e a

    arquetipal. Esta ltima est na base da ideia e da narrativa mtica que carateriza o inconsciente

    coletivo que produz as imagens. A narrativa mtica e as imagens arquetipais com a sua carga

    semntica influenciam a conscincia cultural.

    O recurso mitanlise e ao papel que esta desempenha no inconsciente coletivo

    justificado pela busca e explorao da dimenso arquetipal no contexto das emoes e

    sentimentos que desperta no inconsciente. A mitanlise procura identificar os grandes mitos

    diretores dos momentos histricos. Conceito, por vezes complexo de explicar, o mito anda a

    par com a explicao da memria histrica. Para Roland Barthes, o mito um sistema da

    comunicao, uma mensagem () um modo de significao, uma forma () o mito uma

    fala, tudo o que passvel de um discurso pode ser um mito36

    .

    o enunciado da sua mensagem que define o mito, o modo como este se apresenta e se

    representa, -a sua intencionalidade que obedece a esteretipos e purificao, eternizao e,

    por vezes sacralizao do objeto. O mito constri todo um sistema de significao complexo

    em torno do seu objeto, sobre o qual exerce uma funo intencional, respondendo aos

    interesses ideolgicos das sociedades porque transmite conceitos de uma forma intencional.

    O mito descreve e carateriza um conjunto social, implementando uma determinada

    mitologia. Os mitos histricos de um pas tm a sua gnese junto dos poderes governativos e

    dos centros culturais e surgem ancorados a uma perspetiva temporal, inseridos nos contextos

    que lhes servem simultaneamente de estrutura de apoio e de base de desenvolvimento.

    O poder serve-se de um vasto universo de significaes, apropriando-se dele e

    apresentando os elementos simblicos como instrumentos decisivos na afirmao e orientao

    desse mesmo poder. em torno da simbologia e dos elementos simblicos que a base

    ideolgica de um regime se constri e tambm em torno desta que o seu poder se

    fundamenta e legitima. Os elementos simblicos so apresentados pelo poder com uma

    caraterstica de imutabilidade e perenidade que lhe confere consistncia e uma estrutura

    conceptual slida. Este processo permite entender a memria histrica como um meio vital

    para a compreenso de conceitos, tais como o nacionalismo ou o culto dos heris.

    o mito que nos apresenta os modelos de referncia escolhidos por aqueles que deles se

    servem para legitimar regimes ou concees ideolgicas, mas tambm para omitir, induzir,

    deturpar e silenciar a verdade histrica, estando, por isso sujeito s influncias e presses que

    sofre a Histria. Nesta perspectiva, a Histria e a fico mantm uma estreita relao, na

    36

    BARTHES, Roland, 1956, Mitologias,