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EDUCAÇÃO FÍSICA, EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS (EJA) E A EDUCAÇÃO DA DIFERENÇA Rosa Malena Carvalho (IEF/UFF [email protected]) Desejando contribuir com movimentos e sentidos educacionais que favoreçam indicar e construir pistas para os desafios presentes nas escolas contemporâneas, partimos da hipótese de que a diversidade de situações, experiências, tempos, espaços, práticas pedagógicas e sujeitos encontrados nos cotidianos escolares e os da formação docente possibilitam tensionar noções hegemônicas de educação, corpo e práticas corporais. Considerando a Educação de Jovens e Adultos (EJA) como direito e devir, diferenciando- a dos sentidos de carência, incapacidade e suplência, interrogando o que é considerado “básico” na educação, problematizamos algumas noções hegemônicas (fruto de ideário linear e cartesiano que categoriza e hierarquiza os seres humanos, de acordo com a etnia, o gênero, a sexualidade, a faixa etária, o tônus muscular, a altura, o peso etc) e, passamos a perceber o corpo como produção sociocultural o que é falar em corporeidades. Dessa forma, podemos diminuir as intensidades do previsto e do prescrito, fortalecendo movimentos, fluxos e processos educacionais que se constituam como lugares marcados por encontros, agenciamentos de pessoas, acontecimentos e eventos que materializem formas societárias e práticas pedagógicas potencializadas por multiplicidades e diferenças. Com a colaboração de autores como Carmen Soares, Gilles Deleuze, Silvio Gallo, Paulo Freire, René Schérer, apresentamos avaliações preliminares de Curso de Extensão para Professores que atuam com a Educação Física na EJA, desenvolvido com objetivo de abordar as práticas corporais como invenção e patrimônio em construção, pela humanidade, ao longo dos tempos. Ao compartilhar os resultados do processo desenvolvido, identificamos a fragilidade dessa discussão e, afirmamos as formações de Professores/as, iniciais e permanentes, como local privilegiado para contribuir com a mudança dessa realidade. Palavras-chave: Corporeidades. Educação Física. Educação de Jovens e Adultos. Corporeidades e encontros pela Educação Física (...) Socorro! Alguém me dê um coração Que esse já não bate nem apanha Por favor! Uma emoção pequena, qualquer coisa! Qualquer coisa que se sinta... Tem tantos sentimentos Deve ter algum que sirva Qualquer coisa que se sinta Tem tantos sentimentos Deve ter algum que sirva... (...) (Trecho da música Socorro, de Arnaldo Antunes) Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade EdUECE - Livro 3 01734

EDUCAÇÃO FÍSICA, EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS (EJA) E … EDUCAÇÃO FÍSICA... · de corpo que o define por instâncias independentes e separadas: a mente (configurando a nossa

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EDUCAÇÃO FÍSICA, EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS (EJA)

E A EDUCAÇÃO DA DIFERENÇA

Rosa Malena Carvalho (IEF/UFF – [email protected])

Desejando contribuir com movimentos e sentidos educacionais que favoreçam indicar e

construir pistas para os desafios presentes nas escolas contemporâneas, partimos da

hipótese de que a diversidade de situações, experiências, tempos, espaços, práticas

pedagógicas e sujeitos encontrados nos cotidianos escolares e os da formação docente

possibilitam tensionar noções hegemônicas de educação, corpo e práticas corporais.

Considerando a Educação de Jovens e Adultos (EJA) como direito e devir, diferenciando-

a dos sentidos de carência, incapacidade e suplência, interrogando o que é considerado

“básico” na educação, problematizamos algumas noções hegemônicas (fruto de ideário

linear e cartesiano que categoriza e hierarquiza os seres humanos, de acordo com a etnia,

o gênero, a sexualidade, a faixa etária, o tônus muscular, a altura, o peso etc) e, passamos

a perceber o corpo como produção sociocultural – o que é falar em corporeidades. Dessa

forma, podemos diminuir as intensidades do previsto e do prescrito, fortalecendo

movimentos, fluxos e processos educacionais que se constituam como lugares marcados

por encontros, agenciamentos de pessoas, acontecimentos e eventos que materializem

formas societárias e práticas pedagógicas potencializadas por multiplicidades e

diferenças. Com a colaboração de autores como Carmen Soares, Gilles Deleuze, Silvio

Gallo, Paulo Freire, René Schérer, apresentamos avaliações preliminares de Curso de

Extensão para Professores que atuam com a Educação Física na EJA, desenvolvido com

objetivo de abordar as práticas corporais como invenção e patrimônio em construção, pela

humanidade, ao longo dos tempos. Ao compartilhar os resultados do processo

desenvolvido, identificamos a fragilidade dessa discussão e, afirmamos as formações de

Professores/as, iniciais e permanentes, como local privilegiado para contribuir com a

mudança dessa realidade.

Palavras-chave: Corporeidades. Educação Física. Educação de Jovens e Adultos.

Corporeidades e encontros pela Educação Física

(...) Socorro!

Alguém me dê um coração

Que esse já não bate nem apanha

Por favor!

Uma emoção pequena, qualquer coisa!

Qualquer coisa que se sinta...

Tem tantos sentimentos

Deve ter algum que sirva

Qualquer coisa que se sinta

Tem tantos sentimentos

Deve ter algum que sirva... (...)

(Trecho da música Socorro, de Arnaldo Antunes)

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 301734

Destacar as experiências corporais no processo de escolarização significa, na

maioria das vezes, deparar-se com uma concepção ainda predominante, na qual as

vivências dos sujeitos constituem-se em obstáculo daquilo selecionado como importante

para ensinar e aprender - no máximo sendo percebidas como algo menor, apenas um meio

para o que foi escolhido como conhecimento válido.

As experiências, entendidas como “o que nos passa, ou o que nos acontece, ou o

que nos toca. Não o que passa ou o que acontece, ou o que toca” (LARROSA, 2004, p.

154) são pouco consideradas como produção humana e, importantes no processo escolar.

Talvez, por isso, existam músicas como a mencionada acima, na epígrafe...

Objetivando problematizar as formas como as práticas corporais são

desenvolvidas nas escolas públicas, em particular na Educação de Jovens e Adultos,

indagamos o porquê da negação e do afastamento das expressões e movimentos corporais

nesse processo de escolarização.

Ao falar em corporeidade, consideramos as relações anatômicas, fisiológicas com as

condições históricas, sociais. E, vamos

(...) além das semelhanças ou diferenças físicas, [pois] existe um conjunto de

significados que cada sociedade escreve nos corpos de seus membros ao

longo do tempo, significados estes que definem o que é corpo de maneiras

variadas (DAOLIO, 1995, p. 36-37)

Ao considerá-la no contexto heterogêneo e complexo da EJA, percorremos o

caminho de entender corpo e educação como multiplicidade, diferença, particularidade - e

não como universal. Sem esquecer que nossa capacidade de singularização requer olhar com

aproximação e estranhamento a realidade que nos forma e por nós é formada, pois “Tornar-se

humano é tornar-se individual, e nós nos tornamos individuais sob a direção dos padrões

culturais, sistemas de significados criados historicamente em termos dos quais damos forma,

ordem, objetivo e direção às nossas vidas” (GEERTZ, 1989, p. 64).

Assim, nossas histórias e marcas corporais estão relacionadas com as diferentes

formas de dialogar com as intensidades das nossas relações. Os encontros - que

constituem os processos escolares -, podem ser alegres, críticos, mobilizadoras da minha

inconclusão (GALLO (2008), FREIRE (1971)). O que nos faz interrogar as compreensões

de corpo que o define por instâncias independentes e separadas: a mente (configurando a

nossa razão, lógica, pensamento), os sentimentos (formando as nossas sensações,

“espiritualidade”, desejos) e o corpo (constituído por ossos, músculos e demais

componentes anatômicos e fisiológicos). Junto à lógica da meritocracia e hierarquização,

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 301735

tão presentes em nossa sociedade, aprendemos a considerar o corpo em nível de menor

importância, potencialmente em situação de pecado e degradação.

No sistema educacional preponderante, impregnado pelas formas neoliberais de

pensar a vida, muitas vezes as práticas pedagógicas tornam-se violentas, afirmando,

valorizando, privilegiando determinados caminhos das nossas existências. Pois,

(...) a atual reorganização global da economia capitalista assenta,

entre outras coisas, na produção contínua e persistente de uma

diferença epistemológica, que não conhece a existência, em pé de

igualdade, de outros saberes, e que por isso se constitui, de fato, em

hierarquia epistemológica, geradora de marginalizações,

silenciamentos, exclusões ou liquidações de outros conhecimentos

(SANTOS, 2001, p. 54).

Reconhecendo que ainda prevalece esse encaminhamento da vida em sociedade –

o que inclui a educação -, também consideramos que há outras formas. Dentre essas, nos

aproximamos daquelas marcadas pela heterogeneidade, conflitos, contradições, rupturas.

O que consideramos conter possibilidades de invenções e mudanças. Gallo (2003), ao

convidar a pensar a “educação da diferença” pela diversidade e não pela unidade, também

sugere pensar os que estão diante de nós a partir dos encontros. Mas, entender os alunos

pelo que dizem e, pelas maneiras como dialogam com as histórias e condições que o

formam - não pelo que nos disseram que eles são - é tarefa complexa. Assim como

entendermos as práticas pedagógicas nas relações entre escolas, formação de professores

e sociedade, tema central desse evento, pelos nossos encontros – não “pelo que dizem”

das diferentes práticas pedagógicas...

Entendendo que esse também é um dos desafios presentes na formação docente,

o “Curso de Extensão: Educação Física e Educação de Jovens e Adultos (EJA)”,

desenvolvido por Instituição Pública Federal na região metropolitana do Rio de Janeiro,

objetiva contribuir para a formação permanente dos professores da Educação Básica,

fortalecendo a importância da problematização, do planejamento e dos registros na

organização das práticas pedagógicas. Nesse processo, a presença de licenciandos,

bolsista de extensão do curso e da iniciação científica, também objetiva aproximar a

formação inicial dessa Modalidade e, o Ensino Superior da Educação Básica.

Aqui, compartilhamos as primeiras avaliações desse Curso, que vem sendo

realizado desde 2012, com intenção principal de fortalecer a educação pública, gratuita e

de qualidade nas diversas modalidades e níveis de ensino.

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 301736

A EJA e a formação continuada

Há um Menino!

Há um Moleque!

Morando sempre no meu coração

Toda vez que o adulto balança

Ele vem prá me dar a mão...

(Trecho da música “bola de meia, bola de gude”. Grupo 14 bis)

Ao direcionar nosso olhar para a Educação de Jovens e Adultos (EJA), percebemos

que a heterogeneidade é marca desse contexto, o qual é constituído por homens, mulheres,

adolescentes, idosos, pessoas que iniciam a escolarização, outros que voltam. O que coloca

em xeque muitas ideias que vem marcando os processos educacionais por encaminhamentos

de consenso e homogeneidade (como a constituição de turmas por alunos e alunas da mesma

idade cronológica; mesmo desempenho acadêmico; etc etc).

As tentativas de vários projetos e programas educacionais, direcionados à EJA,

em “regularizar” a “distorção idade-série escolar” indica o quanto a homogeneidade ainda

é referência e objetivo. A pouca literatura relacionada à EJA também sinaliza o quanto

pensar a escolarização é pensar, predominantemente, uma determinada faixa etária, com suas

atuais e condições hegemônicas.

Isso é negar a trajetória de luta desse grupo social pelo direto à educação. As

próprias Diretrizes, emanadas pelo MEC afirmam que

(...) a Educação de Jovens e Adultos (EJA) representa uma dívida

social não reparada para com os que não tiveram acesso a e nem

domínio da escrita e leitura como bens sociais, na escola ou fora dela,

e tenham sido a força de trabalho empregada na constituição de

riquezas e na elevação de obras públicas. Ser privado deste acesso é,

de fato, a perda de um instrumento imprescindível para uma presença

significativa na convivência social contemporânea (BRASIL, 2000, p.

05).

Falar da EJA é abordar esse legado histórico, o qual muitos tentam modificar e,

ao mesmo tempo, ir além, pois nossos olhares e atenção não estão imobilizados pelo

passado. Quando Schérer (2009) diz que “o devir-criança é a abertura ou o desdobramento

da infância retraída; daquela que a educação obriga a se retrair sobre si mesma” (op. cit., p.

199), identificamos que as funções reparadora, equalizadora e qualificadora apontadas

pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para EJA, emanadas pelo Conselho Nacional de

Educação (CNE) em 2000, podem ser aliadas à essa abertura ao novo, pois convidam a

pensar na educação permanente.

Dentro deste caráter ampliado, os termos “jovens” e “adultos” indicam

que, em todas as idades e em todas as épocas da vida, é possível se

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 301737

formar, se desenvolver e constituir conhecimentos, habilidades,

competências e valores que transcendam os espaços formais da

escolaridade e conduzam à realização de si e ao reconhecimento do

outro como sujeito (SOARES, 2002, p. 43).

Embora, em muitas aulas os jovens, adultos e idosos ainda sejam colocados (e

colocam-se) como não desejados e incapazes. E, em alguns momentos, como em diversas

aulas de educação física, quando se permitem brincar e jogar, sentem-se crianças

(novamente ou pela primeira vez...).

Mencionar isso também é concordar com Schérer (2009) quando, ao citar Deleuze,

indica um “devir- criança” contra

(...) a idéia do retorno a uma infância que seria inocência. O devir, ao

contrário, é escapada, a linha de fuga da infância: não num sonho que

seria apenas o substituto, a compensação das frustrações do real – que,

pedagogicamente, conviria fazer com que ele retornasse – mas, num

distanciamento que lhe permita forjar as armas para a luta (op. cit., p.

206).

Assim, os jovens, adultos e idosos que jogam, brincam e dançam, sentindo estas

experiências como direito, no contexto em que hoje se encontram, podem ajudar a superar

a lógica do divertimento e da alegria apenas como “ferramenta” para a educação. Nesta outra

possibilidade, afirma-se como constituinte do humano e, sendo adulto, dialoga com as

condições em que está inserido – condicionado, mas não determinado por ela.

Desejando fortalecer este sentido, em que o vir a ser esteja presente, uma

proposta curricular que considere as corporeidades e experiências dos seus sujeitos pode

ter como referência, discutir, estudar, explorar o que os alunos e alunas trazem para

as escolas – o que significa diálogo entre saberes, no qual as práticas pedagógicas e

vida fora e dentro da escola constituem-se em dobras, em entre - lugares, pois

No campo dos devires, na praia em que os corpos se movem e as

múltiplas atrações – sobrecarregadas de intensidades variáveis, de ritmos

mais rápidos e mais lentos – dispersam-se e concentram-se em

alternância, o que conta é o meio, lugar de evasão, saída, deambulação e

traçados de “mapas” ou de “erros” (...) (SCHÉRER, 2009, p. 205).

De uma maneira geral, nos processos escolares, encontramos a Educação Física

como área do conhecimento “responsável” por tratar e educar o corpo e o movimento.

Na lógica predominante, a forma como seleciona os conteúdos específicos, os

desenvolve, a relação que estabelece com as demais áreas do conhecimento acabam

valorizando um determinado tipo de técnica (em particular, a excelência dos gestos de

alguns esportes, em sua forma competitiva), negando outras experiências,

principalmente dos que fazem parte dos grupos e camadas socialmente desfavorecidas -

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 301738

auxiliando, assim, a excluir as histórias e a memória corporal daqueles que têm suas

histórias e memórias “normalmente” excluídas e apagadas.

Nos movimentos curriculares em que prevalecem estas ideias, o corpo ideal de

aluno ainda é o imóvel, em silêncio, jovem, saudável, limpo, agrupados por faixas etárias

homogêneas, disciplinadamente trabalhando as atividades propostas... Em uma

organização dos espaços e tempos tão prescritos, como potencializar diferentes

corporeidades e, neste processo, discutir e encaminhar novas possibilidades de

Educação?

O “Curso de Extensão: Educação Física e Educação de Jovens e Adultos (EJA)”

surgiu como espaço de encontro, diálogo e produção com os Professores de Educação

Física que atuam na EJA. Ao mesmo tempo, local em que graduandos, bolsistas de

extensão, de iniciação científica e de projetos de ensino, pudessem ter acesso direto a

quem atua nessa Modalidade.

Vem sendo norteado pelas seguintes indagações: como as concepções

relacionadas à Educação Física Escolar dialogam com o cotidiano escolar? Quais as

relações com a formação e atuação dos/as Professores/as em exercício na EJA? Quais as

possibilidades de integração e parceria, através da Educação Física Escolar, entre

Educação Básica e Ensino Superior? Quais os impactos desta parceria e integração na

formação de professores desenvolvida pelo Instituto de Educação Física da Universidade

pública federal que o desenvolve?

Movidos por essas indagações, percorremos o caminho de orientar essa prática

pedagógica pela compreensão do corpo e das práticas corporais como produtos e

produtores de significados sociohistóricos, extrapolando o entendimento exclusivamente

biológico, auxiliando a desnaturalizar o que entendemos por conhecimento, processo

educacional e vida (SOARES et al, 1998). Dialogar práticas corporais com processos

escolares requer compreender os significados atribuídos ao corpo e às práticas corporais

em todas as situações da vida em sociedade. Processo que solicita formação permanente,

vivida como busca e agenciamento constante, procurando reunir e atravessar elementos e

conjuntos cada vez mais abrangentes, integrando diferentes saberes e sujeitos.

Assim, ao realizar essa discussão com os Professores do Curso de Extensão,

percebemos o quanto iniciativas como este projeto estreitam a relação

escola/universidade; faz com que os graduandos se vejam como

professores/pesquisadores desde o início de sua formação e, outro fator que tem se

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 301739

revelado importante, é o quanto os professores que atuam nessa modalidade, nas

diferentes redes de ensino público, solicitam espaços para trocas e formação continuada.

Formação de Professores – pistas para breves considerações e intenso debate

Uso a palavra para compor meus silêncios.

Não gosto das palavras

fatigadas de informar.

[...] Dou respeito às coisas desimportantes

e aos seres desimportantes.

Prezo insetos mais que aviões.

Prezo a velocidade

das tartarugas mais que a dos mísseis.

[...] Meu quintal é maior do que o mundo.

Sou um apanhador de desperdícios:

Amo os restos

como as boas moscas.

Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.

Porque eu não sou da informática:

eu sou da invencionática.

Só uso a palavra para compor meus silêncios

(Trecho da poesia O apanhador de desperdícios. Manoel de Barros)

Desejando que essas reflexões fortaleçam professores e processos comprometidos

com mudanças na educação, em que a discussão dos problemas sociais, as reflexões em

relação às práticas escolares sejam questões imprescindíveis ao planejamento

pedagógico, apresentamos aqui as avalições preliminares desse Curso de Extensão.

Em geral, as experiências vêm apontando que a maioria dos docentes que iniciam

sua prática pedagógica na EJA não conhece as necessidades e características dessa

modalidade, poucos sendo ouvidos se querem atuar com esses alunos. Com nenhuma

preparação especifica para lidar com esse publico, acabam reproduzindo um tratamento

didático semelhante às demais modalidades do ensino básico, gerando uma grande

distância entre o que é proposto, em termos de diretrizes, concepções e possibilidades

educacionais produzidas por quem pesquisa e conduz os sistemas educacionais e, o que

se vivencia e desencadeia nos cotidianos das salas de aula na EJA.

Com o objetivo de aproximar e pensar o papel da Educação Física na Educação

de Jovens e Adultos, discutir a heterogeneidade presente no Ensino de Jovens e Adultos,

um Curso de Extensão para quem atua com a Educação Física na Educação de Jovens de

Adultos, vem acontecendo desde 2012, em Universidade pública federal da região

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 301740

metropolitana do Rio de Janeiro. O diálogo vem ocorrendo com Professores da rede

pública Estadual e dos municípios vizinhos à Universidade.

Em seu terceiro ano de execução, ocorre ao longo do ano letivo, com um encontro

presencial, no qual são privilegiadas discussões coletivas; oficinas; leituras de

textos/imagens; problematização do cotidiano escolar; diálogo do cotidiano com as

concepções de Educação Física. O Público alvo são Professores de Educação Física com

atuação na Educação de Jovens e Adultos.

De cada encontro presencial, os Professores saem com duas tarefas: um local para

visitar (previamente combinado, poderá ser de livre escolha) e, uma leitura a ser

executada até o encontro seguinte. A visita tem objetivo de destacar a importância das

experiências culturais em nosso processo formativo profissional e pessoal (incluindo o

lazer) e, incentivar a ampliação desse universo (pelas trocas do realizado, mantendo a

curiosidade, tempo e desejo em conhecer diferentes espaços e situações sociais).

A avaliação é processual, ao longo do curso, através das participações, leituras,

debates e visitas aos espaços/eventos agendados. Tem objetivo de conduzir os encontros

seguintes, no desenvolvimento do realizado e, de que os Professores continuem sua

formação continuada. Alguns se inscrevem em processo seletivo para a Especialização

em Educação Física Escolar, oferecida pela mesma instituição.

Em 2012 foi realizado em dois pólos diferentes – o que foi modificado em 2013

e 2014 pela demanda na execução do Curso, no conjunto da organização do trabalho da

Coordenação do Curso.

O número de inscritos está diretamente relacionado com a forma como a Educação

Física se insere em cada sistema público de ensino: no primeiro ano, alguns professores,

da rede municipal que é a mesma da Instituição Pública Federal, iniciaram e logo

desistiram, pois naquele ano a Educação Física foi retirada da matriz curricular dessa

rede.

O público maior sempre foi da Rede Pública Estadual, nesse ano em que há

mudança significativa da presença da Educação Física, pela redução das aulas na chamada

NovaEJA, há diminuição sensível desse professorado. Ao mesmo tempo, em função da

expectativa do retorno à matriz curricular da rede municipal em que se localiza, houve

aumento (ver quadro 01 - após as referências). Isso nos fez intensificar a noção de que

uma prática pedagógica não se faz por ela mesma (JULIÁ, 2002) e, por isso, ampliamos

a característica do público alvo, para dialogar com gestores da Educação de Jovens e

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 301741

Adultos. Assim, em 2013 e em 2014 contamos com a participação de Pedagogas,

coordenadoras em exercício na EJA.

Em relação à faixa etária e tempo de formado, identificamos que os inscritos, em

sua maioria, estão na faixa etária entre 30 e 50 anos e, com 15 anos ou mais de formados,

como indica o quadro 02 (após as referências).

Junto com esses dados, os relatos desses Professores que realizam o curso,

indicam que o mesmo vem contribuindo na formação permanente, através do

fortalecimento da problematização, do planejamento e dos registros na organização das

práticas pedagógicas.

Dos objetivos iniciais traçados, percebemos que estamos fortalecendo a atuação

universitária voltada à pesquisa e ao desenvolvimento de vínculos interinstitucionais;

contribuímos com a presença e ampliação das possibilidades da pesquisa na Formação de

Professores/as para a Educação Física Escolar; colaboramos com aprimoramento do

sentido social, emancipador e a função pública do projeto pedagógico da Formação de

Professores/as da Universidade em que o Curso está inserido. Os Licenciandos

envolvidos destacam o quanto mudou olhar sobre a EJA, pois notam que não

compreendiam o sentido social que existia nos estudos e no cotidiano da educação básica,

especialmente na EJA. E, agora, percebem a importância e a responsabilidade que é

trabalhar com a EJA, assim como a seriedade e o carinho presentes na forma como os

Professores, Cursistas, falam desses alunos. O que reforça a ideia do quanto a formação

docente exige a formação permanente. A inscrição no Curso revela professores

mobilizados para a realização de mudanças na educação, em que a discussão dos

problemas educacionais, as reflexões em relação às práticas pedagógicas são questões

presentes nas comunidades escolares. Os professores buscam, assim, ressignificar sua

práxis, possibilitando mais qualidade nos processos de construção e reconstrução do

conhecimento. Esse é um movimento contínuo de investigação e pesquisa que coloca a

prática pedagógica, a identidade profissional, os diferentes saberes e as transformações

sociais como objetos de estudo e possíveis transformações (GADOTTI, 2004).

Nesse processo, todos os envolvidos no Curso destacam a necessidade de entender

melhor quem são os alunos da EJA, na perspectiva de superar a ideia de que “já passou

da fase de aprender” - pois isso é negar o que o aluno conhece e desmotivá-lo a estar no

espaço escolar. O que não é fácil, em uma sociedade que, de maneira geral, conhece o

tempo como soma linear do passado, presente e futuro. Já o tempo abordado como

relação, intensa, provoca a pensar nas práticas sociais que estão intimamente ligadas aos

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 301742

tempos fixos, imóveis. Questionar isso é desejar provocar rupturas em algumas ideias

dominantes e, nesse processo, criar novas possibilidades, inaugurando recomeços,

infâncias dos acontecimentos (KOHAN, 2007).

A experiência com os professores que atuam na EJA, através do Curso de

Extensão, vem nos apontando uma grande dificuldade em sair dos tempos, espaço e ideias

fixas. Em diversos momentos, o contexto escolar pede o chamado “quadrado mágico” (as

quatro modalidades dominantes nas aulas de educação física: vôlei, futebol, basquete e

handebol), quando alunos e Professores de outras áreas reforçam essa lógica dominante,

ao reconhecerem (muitas vezes pressionando) a existência exclusiva dessas práticas

corporais, de forma esportivizada.

O que auxilia a negar o lúdico, processos criativos e criadores, a diversão e outras

práticas pedagógicas que fortaleçam uma educação física que contextualize as práticas

corporais; que valorize as histórias e marcas corporais dos alunos; com predominância de

aulas inclusivas.

O processo não é simples, mas movidos pela ideia de pensar nas infâncias da EJA,

a Educação Física pode fazer parte dessa possibilidade, ao questionar a lógica dos corpos

“sarados”, do desejo pela “eterna juventude”, dos movimentos e gestos “perfeitos”.

Ao fazer parte do grupo que questiona essa lógica, os Professores Cursistas, junto

com os Licenciandos da graduação em Educação Física, identificam as formações de

Professores/as, iniciais e permanentes, como local privilegiado para contribuir com a

mudança dessa realidade.

No desdobramento do Curso, iniciado em 2014, investiremos na discussão da

intergeracionalidade, pois notamos que é uma das grandes preocupações dos diversos

Professores na EJA. As diferenças de idade tem sido uma crescente notável nas aulas e,

devido a isso, os professores encontram dificuldades em realizar atividades coletivas e

inclusivas. O que vai ao encontro de uma educação pela e com a diferença.

Para esse e outros desdobramentos, compor o Painel Educação Física e Educação

de Jovens e Adultos: campo de diálogo, resistência e enfrentamento, dialogando com

diferentes Professores no XVII Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino

(ENDIPE), em muito contribuirá.

Referências citadas:

BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a EJA. Brasília: CNE/CEB, Parecer

11/2000.

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 301743

CARVALHO, Rosa Malena. Curso de Extensão Educação Física e Educação de

Jovens e Adultos. Projeto apresentada à Pró-reitora de Extensão da Universidade Federal

Fluminense, Niterói, fevereiro de 2014.

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SOARES, Carmen et all. Metodologia do Ensino da Educação Física. 5ª Ed. São Paulo:

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SOARES, Leôncio. Educação de Jovens e Adultos. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 301744

Quadro 01

2012 – Pólo

sede

2012 – 2º Pólo 2013 – Pólo sede 2014– Pólo sede

Número

de

professores

31

(18 mulheres e

13 homens)

15

(08 mulheres e 07

homens)

31

(16 mulheres e 15

homens)

10

(08 mulheres e 02

homens)

Rede

Pública

Estadual: 15

Município em

que a Instituição

se localiza: 05

Outros

Municípios: 11

Estadual: 03

Município em que o

pólo se localiza: 09

Outros Municípios:

03

Estadual: 13

Município em que a

Instituição se

localiza: 01

Outros Municípios:

17

Estadual: 02

Município em que

a Instituição se

localiza: 04

Outros

Municípios: 04

Quadro 02

2012 – Pólo

sede Dos 31 inscritos:

2012 – 2º Pólo

Dos 15 inscritos:

2013 – Pólo sede

Dos 31 inscritos:

2014– Pólo sede

Dos 10 inscritos:

Idade:

Até 30 anos: --

Entre 30 e 50

anos: 20

Acima de 50

anos: 11

Até 30 anos: 02

Entre 30 e 50 anos: 12

Acima de 50 anos: 01

Até 30 anos: 01

Entre 30 e 50 anos:

23

Acima de 50 anos:

07

Até 30 anos: 01

Entre 30 e 50

anos: 04

Acima de 50 anos:

05

Tempo de

Formação

Até 05 anos: 03

Entre 05 e 10

anos: 05

Entre 10 e 15

anos: 04

Acima de 15

anos: 19

Até 05 anos: 03

Entre 05 e 10 anos:

03

Entre 10 e 15 anos:

03

Acima de 15 anos: 06

Até 05 anos: 01

Entre 05 e 10 anos:

11

Entre 10 e 15 anos:

04

Acima de 15 anos:

15

Até 05 anos:

Entre 05 e 10

anos: 01

Entre 10 e 15

anos: 03

Acima de 15 anos:

03

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 301745