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EDUCAÇÃO LINGUÍSTICA: PARA ALÉM DA LÍNGUA PADRÃOLucia F. Mendonça Cyranka 1 Maria Luiza Scafutto 2 Resumo O trabalho escolar com a disciplina Língua Portuguesa precisa se desvincular do tratamento inadequado, segundo o qual só é recomendável o uso consagrado dos chamados “bons escritores”. Esse tratamento elege a língua escrita como único modelo recomendável, além de não reconhecer as inúmeras realizações contemporâneas do português brasileiro, procurando neutralizar a variação e controlar a mudança, processo cujo resultado se denomina norma- padrão ou língua-padrão. (FARACO, 2008). Para fazer face a essa equivocada tradição escolar no trabalho com a língua materna, os estudos contemporâneos propõem um trabalho de educação linguística. Nesse caso, o ponto de partida é o reconhecimento da heterogeneidade linguística como princípio básico para levar os alunos ao desenvolvimento de competências de sua língua. A análise contrastiva de estruturas distintas dos diferentes dialetos presentes no contínuo rural-urbano (BORTONI-RICARDO, 2004) tem sido uma técnica produtiva para alunos falantes dos dialetos desprestigiados, para torná-los bidialetais. Também os contínuos de monitoração estilística e o de oralidade-letramento oferecem recursos importantes na educação linguística de alunos falantes de dialetos urbanos prestigiados, mas que precisam ampliar competências no domínio das variedades prestigiadas. Palavras chave: Dialeto padrão. Variedade culta. Educação linguística. Abstract It is necessary to change the idea that the appropriate treatment for school work in Portuguese Language classes 1 Profesora PPGE / UFJF. email: [email protected] 2 Professora do Colégio Cristo Redentor. [email protected]

EDUCAÇÃO LINGUÍSTICA PARA ALÉM DA LÍNGUA …§ão-linguistica1.pdf · Educ. foco, Juiz de Fora, v. 16, n. 1, p. 41-64, mar. / ago. 2011 Educação linguística: para além da

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EDUCAÇÃO LINGUÍSTICA: PARA ALÉM DA “LÍNGUA PADRÃO”

Lucia F. Mendonça Cyranka1

Maria Luiza Scafutto2

ResumoO trabalho escolar com a disciplina Língua Portuguesa precisa se desvincular do tratamento inadequado, segundo o qual só é recomendável o uso consagrado dos chamados “bons escritores”. Esse tratamento elege a língua escrita como único modelo recomendável, além de não reconhecer as inúmeras realizações contemporâneas do português brasileiro, procurando neutralizar a variação e controlar a mudança, processo cujo resultado se denomina norma-padrão ou língua-padrão. (FARACO, 2008). Para fazer face a essa equivocada tradição escolar no trabalho com a língua materna, os estudos contemporâneos propõem um trabalho de educação linguística. Nesse caso, o ponto de partida é o reconhecimento da heterogeneidade linguística como princípio básico para levar os alunos ao desenvolvimento de competências de sua língua. A análise contrastiva de estruturas distintas dos diferentes dialetos presentes no contínuo rural-urbano (BORTONI-RICARDO, 2004) tem sido uma técnica produtiva para alunos falantes dos dialetos desprestigiados, para torná-los bidialetais. Também os contínuos de monitoração estilística e o de oralidade-letramento oferecem recursos importantes na educação linguística de alunos falantes de dialetos urbanos prestigiados, mas que precisam ampliar competências no domínio das variedades prestigiadas.Palavras chave: Dialeto padrão. Variedade culta. Educação linguística.

AbstractIt is necessary to change the idea that the appropriate treatment for school work in Portuguese Language classes

1 Profesora PPGE / UFJF. email: [email protected] Professora do Colégio Cristo Redentor. [email protected]

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is only through the established use of those considered “good writers”. Besides choosing the written language as the only accepted model, this treatment does not recognize the great number of achievements of contemporary Brazilian Portuguese, since it tries to erradicate variation and control change, process which result is called “standard language” (FARACO, 2008). In order to overcome this wrong school tradition in the work with students’ mother language, contemporary scholars have proposed a linguistic educational work. he basis of this work is the ackowledgement of linguistic heterogeneity as a basic principle to make students develop proiciency in their own language. Constrastive analysis of diferent structures found in diferent dialects along the rural-urban continuum (BORTONI-RICARDO, 2004) has proved to be a productive technique to make students who speak non-standard dialects become bidialectic. Stylistic monitoring and orality-literacy continua also ofer important tools in the linguistic education of students who speak standard urban dialects, but who need to widen their competences in prestigious varieties.Key-words: standard dialect, pretigious variety, linguistic education

1 INTRODUÇÃO

Ensinar a língua padrão na escola constitui, nos dias de hoje, um objetivo discutível. Por mais estranho que possa parecer, língua padrão3 se tornou tema controverso e precisa, por isso mesmo, estar no centro da discussão sobre o que deve a escola ensinar a seus alunos, falantes do português como língua materna. Neste artigo, pretendemos, justamente, colocar em foco essa questão, tendo em vista a necessidade de se compreender, com clareza cada vez maior, os motivos por que tanto esforço despendido pela escola e pelos professores no sentido de formar leitores maduros e escritores proicientes, noutras palavras, pessoas letradas, capazes de interagir,

3 No contexto deste artigo, a expressão língua padrão é diferente de língua culta, ou variedade culta da língua, como se discutirá a seguir.

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competentemente, utilizando práticas sociais da escrita, tem tido poucos resultados, até mesmo muito aquém do esperado.

É claro que se trata de tema complexo, que precisa ser examinado sob muitos outros aspectos. No presente trabalho, propomos tematizar apenas a questão das práticas escolares com a língua portuguesa, especialmente no Ensino Fundamental, justamente um longo período de nove anos, quando a criança e o adolescente, falantes competentes que são de sua língua materna, dominando uma complexa estrutura gramatical adquirida espontaneamente nas suas práticas sociais a partir de seu núcleo familiar, veem-se, pouco a pouco, convencidos de que não sabem sua língua, ou porque “ela é muito difícil”, ou pior ainda, “porque eles são pouco inteligentes, pouco capazes, pobres demais”... A partir da consolidação dessas crenças, o que acontece já no inal dos quatro ou cinco primeiros anos escolares, o processo se torna quase irreversível. A trancos e barrancos, os alunos vão superando, aqui e ali, desaios postos a partir, principalmente de questões teóricas, que pouco ou nada têm a ver com o desenvolvimento de sua competência linguística. A questão se agrava quando se trata de falantes de dialetos pouco prestigiados, considerados errados, incultos, “inexistentes”.

Muito já se tem reletido sobre esse problema. Propomos aqui, no entanto, acrescentar um pouco mais ao que já está dito, principalmente, a partir de experiência construída em escolas, através das quais se pôde desenvolver proposta de trabalho com a língua portuguesa que permite entrever resultados mais positivos.

Inicialmente, no entanto, apresentamos algumas considerações sobre o que tradicionalmente se denomina língua padrão, as implicações que essa tradição tem provocado na construção de quadro teórico inadequado para fundamentar o trabalho didático com vistas ao desenvolvimento da competência textual de nossos alunos do Ensino Fundamental. Apresentamos, ainda, as relexões que têm sido feitas sobre essa questão, a partir dos pressupostos da sociolinguística e de seus princípios de heterogeneidade, variação e mudança.

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2 LÍNGUA PADRÃO X LÍNGUA CULTA: UMA DICOTOMIA SUPERÁVEL

No centro das discussões sobre o que convém ou não convém à escola ensinar aos alunos nas aulas da disciplina Português, está a concepção de certo e errado em linguagem, está, principalmente, a discussão para esclarecimento do que seja o que se denomina língua padrão.

Língua padrão é a denominação comum dada a um conjunto de normas linguísticas baseadas no uso consagrado dos chamados bons escritores, privilegiando, portanto, a modalidade escrita. Tais normas partem de uma atitude linguística estabilizadora, indo de encontro ao princípio fundamental da heterogeneidade linguística. FARACO (2002, p. 40) sobre isso relete:

A cultura escrita, associada ao poder social, desencadeou também, ao longo da história, um processo fortemente uniicador (que vai alcançar basicamente as atividades verbais escritas), que visou e visa uma relativa estabilização linguística, buscando neutralizar a variação e controlar a mudança. Ao resultado desse processo, a esta norma estabilizada, costumamos dar o nome de norma-padrão ou língua-padrão.

A língua padrão é, na verdade, uma variedade linguística, que vem se mantendo, ao longo dos anos, dado o prestígio que a sustenta, como um ideal a ser atingido pelo falante que, no entanto, dele se distancia cada vez mais. Construções como “encontra-lo-ei amanhã”, “encontrareis bons resultados, se à luta vos entregardes”, “assistimos ao jogo”, “vendem-se casas”, “preiro música a teatro”, etc, embora já soem estranhas ao falante comum, continuam presentes nas gramáticas normativas, como recomendáveis, às vezes até como as única corretas, ao lado de equivalentes. Ora, ainda que se trate de estruturas legítimas da língua portuguesa, têm se tornado cada vez mais raras em textos formais, nos quais está presente

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a chamada variedade culta, própria de falantes em seus usos mais monitorados. Especialmente na fala, praticamente, não são mais utilizadas. Mais comuns têm sido: “vou encontrá-lo amanhã”, “encontrarão bons resultados se lutarem”, “assistimos o jogo”, “preiro música do que teatro”.

Com relação às variedades cultas, Faraco (2008, p. 173) assim as caracteriza:

São, em geral, as variedades que ocorrem em usos mais monitorados da língua por segmentos sociais urbanos, posicionados do meio para cima na hierarquia econômica e, em consequência, com amplo acesso aos bens culturais, em especial à educação formal e à cultura escrita.

A existência dessa dicotomia – língua padrão/língua culta -, aprofundada pela insistência de agências, tais como as escolas, em trabalhar a partir daquele padrão artiicial, nos levaram, como adverte o mesmo autor (2008, p. 109), “[...] a construir um fosso profundo entre a norma culta e a norma padrão, ou seja, entre o que os letrados usam em sua fala monitorada e o que o que se codiicou como modelar para a escrita.” 4

Ele continua: “Há um século, os letrados brasileiros vivem uma situação de esquizofrenia linguística, enredados por uma cultura do erro que afeta pesadamente o nosso imaginário sobre a língua, as nossas relações sociais e o ensino do português.”

No entanto, mesmo reconhecida a necessidade de se admitir como variedade culta as realizações linguísticas contemporâneas, em situações monitoradas, a questão do trabalho escolar com a linguagem ainda permanece problemática. Isso porque essa variedade prestigiada não pode ser tratada como única existente, mas uma dentre muitas outras. Ainda que se trate de textos de escritores contemporâneos, não se pode dizer que sejam eles os únicos exemplos a serem seguidos. Castilho (2010, p.32) conirma:

4 Para aprofundamento na discussão da dicotomia língua padrão/língua culta, recomendamos a leitura da obra referenciada (2008) desse autor.

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Para começo de conversa, não acho que os escritores trabalham para nos abastecer de regras gramaticais. Eles exploram ao máximo as potencialidades da língua, segundo um projeto estético próprio. Ora, as regularidades que as gramáticas identiicam devem fundamentar-se no uso comum da língua, quando conversamos, quando lemos jornais, como cidadãos de uma democracia. Isso não exclui a fruição das obras literárias, mas é uma completa inversão de propósitos fundamentar-nos nelas para descrever uma língua.

Isso constitui um chamamento para o trabalho escolar com a linguagem. Nossa atitude tradicional, infelizmente, de modo geral, tem sido impingir ao aluno aquele uso irreal de que tratamos acima, a língua padrão; pior que isso, um reconhecimento desse estágio já inexistente da língua, feito, não a partir dela mesma, mas de um amontoado de regras e classiicações que só tem como resultado o esvaziamento progressivo do interesse do aluno por esse tipo de atividade. Em contrapartida, os avanços das diversas correntes da linguística têm demonstrado que o estudo da língua na escola, principalmente no Ensino Fundamental, só tem sentido se feito como educação linguística, vista como um processo que se realiza ao longo de toda a vida escolar. A esse respeito esclarece Bagno (2002, p. 80):

O objetivo da escola, no que diz respeito à língua, é formar cidadãos capazes de se exprimir de modo adequado e competente, oralmente e por escrito, para que possam se inserir de pleno direito na sociedade e ajudar na construção e na transformação dessa sociedade – é oferecer a eles uma verdadeira educação linguística.

É preciso, portanto, uma mudança de atitude da escola que, como representante do Estado nacional, tem a tarefa de formar cidadãos autônomos na realização de práticas de letramento.

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Passo importante para isso será dado se a escola for capaz de orientar os alunos para a compreensão da língua como um fenômeno variável, heterogêneo, expressão de diferentes culturas e modos de ser que constituem a complexa sociedade humana. A sociolinguística, sendo uma ciência que estuda as relações entre língua e sociedade, oferece parâmetros eicazes para se traçar um quadro representativo dessas diferentes culturas expressas e concretizadas pela linguagem. É do que trataremos a seguir.

3 A SOCIOLINGUÍSTICA NA EDUCAÇÃO

Como icou dito acima, as relações entre língua e sociedade precisam ser trazidas para o centro da discussão, na tarefa escolar de promover a educação linguística dos alunos. Isso porque, principalmente a partir da década de 70, no Brasil, o acesso à escola permitiu que a ela chegassem todas as camadas sociais, usuárias de vernáculos desprestigiados, raramente, até então, ali utilizados5. Como consequência, deu-se, principalmente nas escolas públicas, trágico embate entre a variedade linguística que os alunos dominavam e a que a escola considerava a única legítima, a variedade padrão. Ao desconhecimento dessa variedade por parte dos alunos, acrescentou-se ainda não um ensino dela, mas sobre ela, o que continuou a ser feito, como visto acima, através de regras, categorizações, classiicações. Esse embate desencadeou o grave processo, cujo agravamento progressivo vimos assistindo ainda hoje, de insucesso dos alunos no domínio das habilidades e das competências linguísticas necessárias para atingirem grau suiciente de letramento, de autonomia nas suas práticas sociais de leitura e escrita. E, se esse hiato se observa mesmo entre os alunos provenientes das camadas sociais economicamente privilegiadas, com acesso aos bens culturais, que traduzem uma educação formal, historicamente prestigiada, muito mais

5 Sobre essa questão, ainda é atual a obra de Soares (1986), cuja leitura recomendamos.

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signiicativo é ele, em se tratando de alunos daquele outro estrato social, econômica e culturalmente não reconhecido. Seu vernáculo, com marcas morfossintáticas e lexicais consideradas erros linguísticos, não tem lugar na escola.

Os sociolinguistas brasileiros, no entanto, têm envidado esforços para desmitiicar e combater as atitudes preconceituosas em relação a esses dialetos minoritários. Bortoni-Ricardo propôs o que já se constituiu, entre nós, a sociolinguística educacional, como área teórico-prática para se discutir e buscar evidências demonstrativas de que o erro linguístico precisa ser reconsiderado, porque ele, na verdade, não existe. Perini, em sua Gramática do português brasileiro, recentemente lançada (2010, p. 21), adverte:

Para nós, “certo” é aquilo que ocorre na língua. É verdade que quase todo mundo tem suas preferências, detesta algumas construções, prefere a pronúncia de alguma região, etc. Mas o linguista precisa manter uma atitude cientíica, com atenção constante às realidades da língua e total respeito por elas. Se ele veriica que as pessoas dizem frases como se você ver ela, fala com ela pra me telefonar, precisa reconhecer essa construção como legítima na língua. Por outro lado, em um texto escrito, ele provavelmente encontraria se você a vir, diga-lhe que me telefone, e essa construção igualmente precisa ser reconhecida. As duas coexistem, cada qual no seu contexto; nesta gramática estamos estudando as formas que ocorrem no contexto falado informal – não em textos publicados, nem em discursos formais de posse ou formatura. O linguista, cientista da linguagem, observa a língua como ela é, não como algumas pessoas acham que ela deveria ser.

É na esteira desses estudos e inspirando-se nessa proposta que se tem construído recursos didáticos para se promover a educação linguística de alunos falantes de todos os vernáculos do português brasileiro e torná-los competentes no uso da variedade culta, a única que é reconhecida nos documentos oiciais, cientíicos e literários de nosso país. Mas, repetimos,

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a variedade culta é diferente da variedade padrão, conforme icou visto acima, embora essas denominações sejam ainda, frequentemente, empregadas como equivalentes.

Para se compreender a diversidade do português brasileiro, de modo a se poder, convenientemente, trabalhar com essa diversidade na escola, Bortoni-Ricardo propõe, três contínuos: o de urbanização, o de monitoramento estilístico e o de oralidade e letramento. O primeiro deles pode ser assim representado:

Contínuo de urbanização-------------------------------------------------------------------------------------uvariedades rurais urbanas isoladas

área rurbana

variedades padronizadas

(BORTONI-RICARDO, op. cit., p. 52)

Esse contínuo se destina especialmente à análise dos atributos socioecológicos dos falantes. Chico Bento, personagem das histórias em quadrinho de Maurício de Sousa, seria um representante do falante do polo rural dentro desse contínuo. São comuns, nesse dialeto, os chamados traços descontínuos, como as construções nóis qué, nóis percisa, crareza, etc., muito estigmatizadas.

Como se observa nesse contínuo, os falantes rurbanos icam situados entre os dois polos, rural e urbano. Trata-se de indivíduos “[...] migrantes da zona rural, que conservam muitos de seus antecedentes culturais, principalmente no seu repertório linguístico, e as comunidades interioranas residentes em distritos ou núcleos semi-rurais, que estão submetidos à inluência urbana, seja pela mídia, seja pela absorção de tecnologia agropecuária.” (BORTORNI-RICARDO, 2004, p. 52).

O segundo contínuo de que trata a autora está ilustrado abaixo:

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Contínuo de monitoração estilística-------------------------------------------------------------------------------------u - monitoração + monitoração

Esse contínuo ilustra as diferenças linguísticas nas realizações que vão desde a conversa espontânea até as previamente planejadas pelo falante, frequentemente sujeito a pressões externas, como a escola, a mídia, etc., do que resultam construções muito monitoradas, que se caracterizam como o falar culto.

O terceiro e último contínuo é o de oralidade/letramento e, como os outros dois (o de urbanização e o de monitoração estilística), tem fronteiras luidas, havendo, inclusive possibilidade de sobreposições, quando um falante alterna, em seu discurso, enunciados que apontam para o coloquial, com outros que constituem um discurso tenso e mais monitorado, que caracteriza o mundo letrado. Ele é assim representado:

Contínuo oralidade-letramento-------------------------------------------------------------------------------------ueventos de oralidade

eventos de letramento

Essa proposta teórica tem sido utilizada em pesquisa-ação realizada numa escola pública de Juiz de Fora, sobre a qual discutiremos na próxima seção.

3.1 O trabalho com o vernáculo desprestigiado é o ponto de partida

Sob o patrocínio da FAPEMIG, um subprojeto denominado “Os dialetos sociais na escola pública”, dentro do projeto maior “Laboratório de Alfabetização: aprendizado da leitura e da escrita na escola pública”, vem se desenvolvendo com atuação de membros do grupo de pesquisa FALE (Formação de professores, alfabetização, linguagem e ensino),

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do NUPEL (Núcleo de pesquisa, ensino e linguagem) da Faculdade de Educação, da UFJF. A pesquisa objetiva investigar a viabilidade de se adotar na escola, especialmente na escola pública, cuja clientela é constituída, em grande parte, por falantes de dialetos desprestigiados, o bidialetalismo. Isso signiica dar ao trabalho escolar com a linguagem tratamento adequado, dentro dos princípios básicos da sociolinguística, isto é, a heterogeneidade linguística, a variação e a mudança6.

Propusemos trabalhar com pesquisa-ação, metodologia que se identiica por ser desenvolvida pelos próprios participantes envolvidos no processo, não por pesquisadores externos a ele (KEMMIS & Mc TAGGART, 1988); é colaborativa; propõe mudanças. A pesquisa tem também caráter longitudinal (2009 e 2010), tendo sido selecionadas uma turma do quinto ano e duas do sexto, para serem trabalhadas sequencialmente, nesse biênio.

As intervenções aconteceram na própria sala de aula, uma vez por semana, no horário da disciplina Português, em horário cedido pelas professoras regentes que, espontaneamente, permaneciam com uma pesquisadora e seus colaboradores, alunos do curso de Letras da UFJF.

Utilizando a teoria dos três contínuos proposta por Bortoni-Ricardo, foi possível levar os alunos a serem capazes de realizar relexão linguística de padrão signiicativo, a ponto de operarem análises fonético/fonológicas, por exemplo, quando passaram a reconhecer a inexistência de [λ] na pronúncia dos falantes rurais, e mesmo em falantes rurbanos, como alguns deles passaram a se reconhecer, juntamente com seu próprio grupo familiar e social. A vinheta abaixo ilustra o momento da construção dessa consciência linguística. A pesquisadora dialoga com os alunos sobre a variedade linguística dos falantes situados no extremo esquerdo do contínuo rural-urbano:

6 Participaram dessa pesquisa os seguintes alunos de Letras da Faculdade de Educação da UFJF, bolsistas de iniciação cientíica, aos quais agradecemos: Lívia Nascimento Arcanjo, Marcus Vitor Dias Leoni, Marianna do Vale Modesto Paixão, Simone Rodrigues Peron e Patrícia Rafaela Otoni Ribeiro.

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“P: - Quem sabe me dar um exemplo de um jeito de falar de pessoas da zona rural?L: - Abre a po[R]tera, muié, prus gado passá.P: - Ótimo esse exemplo do Lucas. Agora, me digam por que a gente sabe que esse jeito de falar é da roça?L: - Eles fala por[R]tera.F: - E fala [muié].P: - E aqui na cidade, como é que a gente fala essa palavra?L: - A gente fala [mulher].P:- Ah! mu[lh]er], eles falam mu[ié]. Muito bem. Vocês se lembram de outras? Por exemplo, como na roça as pessoas falam a palavra [galho]?G: - É ga[i]o, fessora.P: - E [telha]?F: -É te[i]aP: - Então como é que eles falam o lh?L: - Eles num fala.”

Do mesmo modo, foram também capazes de perceber a diferente aplicação das regras de concordância nominal e verbal, ao compararem enunciados característicos das variedades linguísticas ao longo do contínuo rural-urbano. Também aqui a técnica adotada foi a análise contrastiva.7 Os alunos, reletindo sobre o enunciado como Os menino levado pulou o muro, depois de reconhecerem tratamento no plural, a partir da simples presença do morfema –s no início do sintagma, foram levados a comparar a regra de formação de plural nas variedades rural e urbana. E, de fato, redigiram ambas: Na variedade rural, a gente só usa o s do plural no artigo que começa a frase; na variedade urbana, o s aparece no artigo, no substantivo e no adjetivo; na variedade rural, o verbo ica sempre no singular.

Ainda do ponto de vista da morfossintaxe, esses alunos passaram a distinguir marcas de variação entre seu próprio vernáculo e a variedade culta como, por exemplo, a escolha

7 Ver, neste mesmo volume, o artigo intitulado Mudança de código: ferramentas de linguagem e cultura transformam atitudes linguísticas escolares, em que uma professora do Estado de Virgínia, nos Estados Unidos, utiliza essa mesma técnica com alunos falantes do AAVE, variedade desprestigiada do inglês.

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do auxiliar haver, em textos formais, e ter, em enunciados distensos e coloquiais (avaliando a linguagem utilizada numa história lida na sala de aula, uma aluna airma: - É variedade urbana, professora, porque fala havia falado, havia cantado; eu falo: tinha falado, tinha cantado); o uso de formas do presente do subjuntivo apenas em textos da variedade urbana, prestigiada, sendo desconhecidas nos falares rurais e quase desconhecidas no rurbano (em relação ao enunciado “para que eu busque”, presente num poema, os alunos comentam: A gente não ia falar assim não. A gente ia falá prá mim buscá”).

A distinção dessas marcas, reconhecidas através de análises contrastivas entre estruturas dos dialetos, acabou por levar os alunos a construírem a concepção de diferença linguística predominando sobre a de erro linguístico. Isso icou reforçado pela visão constante do traçado, no quadro-negro, do contínuo rural-urbano, apontando para o lado direito em que se via escrito variedade urbana/culta/escola, o que passou a signiicar, para eles, que as diferenças linguísticas constituem, antes, escolhas, enriquecimento, do que propriamente empobrecimento, ignorância, erro. E mais: há a possibilidade de transição de um ponto ao outro do contínuo, no sentido da esquerda para a direita e/ou vice-versa. Desse modo, as diversas realizações linguísticas podem ser situadas em qualquer um dos pontos ali desenhados.

Assim, pouco a pouco, os alunos foram se reconhecendo como falantes que se situam nesses diferentes pontos do contínuo e que estão em processo de desenvolvimento de competência, para serem capazes de utilizar também a variedade culta, sem terem que abandonar seu vernáculo de origem. Essa certeza lhes dá autoconiança e os estimula a expandir a competência linguística com que chegaram na escola. Nela passaram a reconhecer a agência encarregada de orientá-los na aquisição de novos recursos de linguagem.

Constitui ainda material didático indispensável à compreensão das diferenças o contínuo de monitoração

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estilística, também traçado no quadro para que os alunos pudessem compreender o processo de aquisição de novas habilidades no uso da língua portuguesa.

As atividades, nesse momento, se centraram na prática de gêneros orais, tais como a entrevista, o debate, o debate regrado, que propiciam situações reais de uso da linguagem “sob pressão”, estimulando a busca de estruturas linguísticas apropriadas às condições de produção das novas situações vivenciadas, naquele caso, as situações formais.

Desse modo, vão, pouco a pouco, aprendendo a monitorar sua fala.

Elegemos, primeiramente, o gênero entrevista e passamos, de início, a uma relexão sobre certas dimensões de registro, como a polidez e o formalismo. Com relação à primeira, os alunos foram convidados a pesquisar, no seu grupo social, a realização/frequência de uso, pelos falantes, de expressões de polidez, que foram listadas, de acordo com seu repertório linguístico (por favor, dá licença, poderia, eu gostaria, etc.).

Os resultados foram contabilizados quantitativamente, para demonstrar, em primeiro lugar, que a pesquisa realizada pode contribuir para a ampliação da consciência dos alunos sobre o uso de estruturas linguísticas especíicas a im de obterem efeitos discursivos, no caso, a construção de relações intersubjetivas e, consequentemente, maior eicácia no processo de comunicação através da linguagem verbal. Além disso, essa atividade contribuiu também para a educação sociolinguística dos próprios alunos, no sentido de levá-los a perceber a necessidade de se observar relações entre língua e sociedade.

A análise quantitativa dessa pesquisa, realizada pelos alunos entre 11 e 31 de maio de 2010, nos levou aos seguintes dados:

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Expressões e recursos de polidez

Número de ocorrências

Sujeitos da pesquisa

Número de ocorrências

Com licença 8 Adolescente 1Dá licença/ Licencinha 5 Amiga (o) 25

De nada 7 Avó 4Desculpa 2 Comerciante 5

Fazendo favor 5 Garçom 2Muito obrigado 4 Gerente 1

Obrigado (a) 9 Homem 6Por favor 39 Irmão (ã) 7

Por gentileza 5 Madrinha 2

Por obséquio 2Mãe do (a) aluno (a)

21

Verbo “poder” no presente do indicativo 16 Mulher 4

Verbo no “poder” no futuro do pretérito 21

O (a) próprio (a) aluno (a)

11

Padeiro 3Pai do (a) aluno (a) 4

Secretária 3Tia 9

Vendedor (a) 7Vizinho (a) 1

Total de ocorrências 123 Total de sujeitos pesquisados 112

Observando-se os sujeitos pesquisados, sendo os mais frequentes a mãe e o amigo, pode-se constatar que esses pequenos pesquisadores já vão aprendendo a lidar com a linguagem como instrumento de interação, procurando compreendê-la, estudá-la nos seus recursos linguístico-discursivos. Vão, desse modo, ampliando competências.

A relexão subsequente foi o grau de formalismo, observado em entrevistas apresentadas aos alunos por sujeitos escolhidos para isso e apresentadas ao vivo, na sala de aula e gravadas. Em sessão especíica, a linguagem observada era analisada, contrapondo-se expressões formais utilizadas no lugar de outras, coloquiais, ausentes naquela prática estudada. Exemplo das primeiras, os pronomes de tratamento o Senhor, a Senhora; expressões de polidez, etc, recursos através dos quais se pode obter efeitos discursivos, como certo grau de

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distanciamento, tudo isso sendo pontuado e registrado pelos alunos.

Associou-se a essas atividades a discussão de temas de interesse real dos alunos, através do debate e do debate regrado, na busca de reconhecimento, por exemplo, do que seja tese, argumento, réplica, tréplica, além de expressões de polidez e cortesia, elementos indispensáveis para a manutenção do padrão de qualidade da realização linguística nos gêneros estudados e experimentados. As regras para o uso de estruturas linguísticas observadas na análise do contínuo rural/urbano têm sido também reconhecidas e utilizadas.

Quanto ao contínuo da oralidade/letramento a relexão linguística propõe também a diferenciação entre língua falada e língua escrita, para que se observe não apenas as convenções ortográicas, mas também os recursos sintático/discursivos que caracterizam ambas as modalidades. Pôde-se concluir que a facilidade com que os alunos reconhecem a especiicidade das duas diferentes realizações linguísticas resulta das crenças positivas que vão construindo sobre sua própria competência.

E OS DEMAIS ALUNOS?

Essa experiência não pode levar a concluir, no entanto, que apenas os alunos das escolas públicas, em geral, provenientes de redes sociais em que os dialetos utilizados são predominantemente os desprestigiados, necessitam expandir competências. Também noutros ambientes, crianças e jovens chegam à escola como falantes competentes do português, sua língua materna, mas precisam, como todos os outros, caminhar pelo contínuo, para a aquisição de novos recursos expressivos, tanto na modalidade oral quanto na escrita. Com eles, é recomendável que atividades didáticas sejam propostas também centradas nos princípios da sociolinguística, segundo os quais, como vimos acima, o erro linguístico não existe.

Apesar de falantes do dialeto mais prestigiado, com acesso a bens culturais e à educação formal, muitos desses alunos chegam às séries inais do Ensino Fundamental sem

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apresentar as habilidades que demonstrem uma competência linguístico-discursiva na produção de sentido tanto na leitura quanto na escrita de gêneros orais e escritos mais formais.

É comum que se ouça que eles sabem falar, mas não sabem escrever, numa visão dicotômica das duas modalidades. Nesse sentido, é importante ressaltar que “[...] as diferenças entre fala e escrita se dão dentro do contínuo tipológico das práticas sociais de produção textual, e não, na relação dicotômica de dois polos opostos.” (MARCUSCHI, 2005, p. 37). Esse mesmo autor também propõe um gráico com a representação do contínuo dos gêneros textuais na fala e na escrita. Num dos polos apresenta os gêneros orais (conversas telefônicas, conversas espontâneas/ conferências, discursos de oiciais) e, no outro, os gêneros escritos (bilhetes, cartas pessoais/artigos cientíicos, editoriais de jornais). Sobre esse contínuo assevera ele (op. cit, p. 42):

O contínuo dos gêneros textuais distingue e correlaciona os textos de cada modalidade (fala e escrita) quanto às estratégias de formulação que determinam o contínuo das características que produzem as variações das estruturas textuais-discursivas, seleções lexicais, estilo, grau de formalidade etc., que se dão num contínuo de variações, surgindo daí semelhanças e diferenças ao longo de contínuos sobrepostos.

Assim, a questão que se coloca não é que o aluno não sabe escrever. Na verdade, ele ainda não dispõe dos recursos linguísticos-discursivos que o habilitem a usar estratégias de formulação para produzir as variações estruturais, as seleções lexicais, a adequação do nível de formalidade necessárias à construção de certos gêneros textuais orais e escritos.

Aqui, portanto, o trabalho de educação linguística na escola se centra em tornar esses alunos bimodais, visto que eles já são, naturalmente, competentes no uso oral da variedade prestigiada, aprendida espontaneamente na sua rede social. Como se trata, conforme vimos acima, de alunos provenientes das camadas sociais economicamente privilegiadas, com

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acesso aos bens culturais, que traduzem uma educação formal, historicamente prestigiada, o trabalho da escola consistirá em ampliar sua competência linguística, fazendo-os também caminhar em direção ao extremo direito dos três contínuos.

Como se vê, esses contínuos se entrecruzam, se superpõem, durante o processo de educação linguística dos alunos. Deve-se, portanto, ressaltar também a distância, cada vez maior, entre as realizações dos gêneros de um polo ao outro desses contínuos. No que se refere ao domínio dos gêneros textuais, é necessário observar diferenças que ultrapassam a tão valorizada presença da “correta” concordância verbal e atingem as escolhas lexicais, as construções sintáticas, os encadeamentos e organizações textuais, além dos aspectos pragmáticos.

Todas essas são questões de gramática, que é um estudo necessário no trabalho de expansão de competência linguística, mas, como temos procurado demonstrar, não uma gramática que tenha im em si mesma, mas utilizada como ferramenta linguística, como instrumento de relexão sobre o uso.

Sabe-se que, na realização de seu papel de promover a educação linguística dos alunos, a escola deve providenciar-lhes oportunidades de acesso à variedade prestigiada da língua, o que os auxilia na construção dos gêneros mais formais. Mas, como diz Irandé Antunes (2007, p. 101):

O problema é discernir sobre o que faz parte desse padrão e adotar uma visão não-purista, de lexibilidade, de abertura, para incorporar as alterações que vão surgindo; o problema é, ainda, não julgar essas mudanças como, simplesmente, provas de decadência da língua e, assim, não subestimar ou não ridicularizar aqueles que fogem a esse padrão socialmente prestigiado.

E, em seguida, propõe:

A convivência amiudada (quer dizer, não-esporádica, não-eventual, no dia que der certo!) do aluno com a produção linguística valorizada – como exemplares da literatura, da imprensa, da divulgação cientíica, por

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exemplo – representa, sem dúvida, uma condição para a incorporação gradual desse falar/escrever prestigiado.

É relevante, no entanto, saber o que fazer com os textos exemplares que são levados para a sala de aula. Se servem de pretexto para discussões temáticas, às vezes até moralizantes, pouco contribuirão para a ampliação da competência comunicativa do aluno que, nem bem o teve na mão, já o abandonou para discutir o assunto. Essa atitude de “passar” pelo texto, só estimularia hábitos que já estão presentes no que se pode chamar de “geração multifocada”, aquela que tem sua atenção diluída em diferentes focos de interesse, simultaneamente, no uso da internet, do celular, do som... Geração que não se concentra e, portanto, não aprende com facilidade.

O que se propõe é a verticalização da leitura, o que contribuirá não só para a compreensão mais eiciente do texto, mas também para a apreensão dos recursos nele presentes. É com essa leitura que, como nos diz Antunes (2003, p 75-76):

[...] se apreende o vocabulário especíico de certos gêneros ou de certas áreas de conhecimento e da experiência. É pela leitura, ainda, que apreendemos os padrões gramaticais (morfológicos e sintáticos) peculiares à escrita, que apreendemos as formas de organização sequencial (como começam, continuam e acabam certos textos) e de apresentação (que formas assumem) dos diversos gêneros de textos escritos.

E ainda pode-se acrescentar que é com a leitura verticalizada que se apreendem as formas de referenciação e sequenciação, os usos dos recursos gráicos, as estratégias estilísticas, as pistas ideológicas, enim, todo o arsenal de recursos que os autores usam na construção do sentido pretendido conforme sua intenção comunicativa. E, ainda, aprende-se a saborear a arte contida nos textos literários.

A proposta acima prevê um contato real com os textos, em que professores e alunos assumem a posição de autênticos observadores dos usos da língua. Tais usos podem

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ser comparados com aqueles propostos pelos manuais de gramática e, assim, pratica-se a observação, a análise, e o confronto entre as regras idealizadas e os usos efetivos. Essa prática ajuda o aluno a perceber a língua como algo vivo, em constante mudança e cada pessoa como participante desse movimento.

Também os textos produzidos pelos alunos devem ser objeto de observação e análise, numa comparação respeitosa dos recursos usados com outras possibilidades disponíveis, questionando-se a adequação à situação de produção, a eicácia comunicativa, as alterações semânticas decorrentes desta ou daquela escolha, enim, tornando o aluno mais consciente do seu papel de autor.

Mattos e Silva (2004, p.114-115) aponta o caminho:

Se o professor tiver uma formação sociolinguística adequada, o que acontecerá com uma minoria, terá de trabalhar com a variação da sintaxe nas suas aulas e saber, na maioria das vezes de maneira intuitiva e tentativa, já que não há materiais prontos para isso, deinir o que será o uso linguístico socialmente aceitável para que seus alunos não fracassem no curso de sua futura vida proissional em nossa sociedade.Assim, entre as variantes sintáticas em convívio nas falas brasileiras, o professor terá de distinguir, pelo menos, as estruturalmente mais salientes e socialmente mais estigmatizadas, para, sem desprestigiar as segundas, selecionar ambas, a im de treinar o uso formal falado e os usos escritos de seus alunos. Aí está a grande contribuição que a sociolinguística sobre o português brasileiro poderá dar para uma efetiva virada no ensino da língua portuguesa no Brasil.Seria este talvez, um dever patriótico: o conhecimento e o reconhecimento, na escola, da realidade do português brasileiro.

No domínio da sintaxe, a concordância verbal aparece como conteúdo de destaque tanto para aqueles que promovem um ensino baseado na pressuposição de uma norma única quanto para aqueles outros que a analisam como um fenômeno

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relacionado à variação enquanto traço de diferenciação social. E, nessa análise, buscam identiicar os fatores linguísticos e extralinguísticos que favorecem a realização ou não de certa regra de concordância.

A observação de produções de alunos do 8º ano de uma escola da rede particular mostra que, em geral, são realizadas as regras mais gerais de concordância, mas encontra-se, ainda, a presença da não realização de certas regras diante de alguns dos fatores favorecedores dessa não realização:

a) Sujeitos pospostos:Pois está a disposição as novas coisas e várias ideias.

b) Verbos com sujeitos representados pelo relativo que:O autor critica sempre a exigência dos ilhos que cada hora

quer uma coisa.

c) Verbos com sujeitos elípticos e cuja referência está distante:

A tirania de antigamente era aquela que os ilhos pediam e os pais não atendiam seus pedidos, nem questionava.

d) Verbo haver com complemento no plural:Depois que houveram os fatos na casa da avó de Murilo,

Diogo...”

Como a concordância é uma regra variável, o professor deverá comparar com os alunos as opções, apresentando a da gramática normativa como aquela que goza de prestígio e que, por isso, precisa ser a escolhida em certos usos. Além disso, poderá elaborar exercícios de complementação, substituição visando essas e outras regras, bem como explorar, nas leituras, as não-realizações intencionais das regras com ins estilísticos e outros.

Dessa forma, o aluno poderá se apropriar de conhecimentos sobre concordância verbal e, ao mesmo tempo,

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ter consciência da valoração sociolinguística da realização ou não da regra, de modo a fazer opções linguísticas conscientes na produção de textos orais e escritos. (VIEIRA e BRANDÃO, 2007, p. 101).

Como diz Irandé Antunes (2003, p.175):

Aprender é uma das coisas mais bonitas, mais gostosas da vida. Acontece em qualquer tempo, em qualquer idade, em qualquer lugar. Ajudar as pessoas a descobrir esse prazer, a “degustar” o sabor dessa iguaria é ascender às mais altas esferas da atuação humana. A escola existe para estimular a “gula” pelas delícias de poder saber.., pois “a capacidade de sentir prazer não é um dom natural. Precisa ser aprendida,” como lembra Rubem Alves.

CONCLUSÕES

Como se vê, a questão posta no início dessas relexões é pertinente: é preciso que se leve às salas de aula uma nova concepção da disciplina escolar Língua Portuguesa no ensino fundamental, passando-se a adotar, para ela, o sentido de Educação Linguística. Isso signiica que, ao estudo sobre a língua, deve-se sobrepor o trabalho de relexão sobre os usos que os diferentes falantes fazem dela, partindo-se, necessariamente, do princípio fundamental da sociolinguística: a heterogeneidade é inerente a toda língua. A variação e a mudança são, portanto, manifestações do fenômeno da linguagem, patrimônio de todos os indivíduos, manifestação da natureza humana. Por isso mesmo não lhes pode ser caçada, roubada, desconsiderada, desprestigiada.

Nesse sentido, o erro linguístico simplesmente não existe. O trabalho da escola, e não apenas do professor de português, consiste em propiciar aos alunos um ambiente linguístico que lhes permita conviver com realizações linguísticas diferentes daquelas que eles já dominam, trazidas de suas redes sociais, abrindo-lhe possibilidades de expressão cada vez mais novas e mais ricas, surpreendentes, para a

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construção de sua autonomia nas práticas sociais de leitura e de escrita. Os eventos de letramento que as diversas disciplinas promovem, juntamente com toda a instituição escolar, é que irão ampliando competências nos alunos, tornando-os, cada vez mais, cidadãos críticos, autônomos.

Ao professor de português cabe, especiicamente, a tarefa de propor atividades de relexão linguística sobre esses diversos usos e suas realizações nos diferentes gêneros textuais, seja no reconhecimento de sua estrutura, seja no domínio dos vários recursos linguístico-discursivos a serem concretizados na materialidade do texto. Ampliar competências constitui, portanto, a questão fundamental no trabalho escolar com a língua materna. Tudo o que inibe, diiculta, impede essa atividade deve ser reconhecido como irregular, nocivo, devendo, portanto ser excluído do conjunto das atividades didáticas.

Essa postura diante das diiculdades do ensino de português na escola vem sendo discutida, explicada, recomendada, autorizada, fundamentada pelos linguistas e sociolinguistas brasileiros respeitados. A escola não pode permanecer afastada dessas discussões, sob pena de, a despeito de todo esforço empreendido, continuar negando aos alunos o direito de se tornarem competentes no uso prestigiado de sua própria língua.

REFERÊNCIAS

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SOARES, Magda. Linguagem e escola: uma perspectiva social. 3. ed. São Paulo: Ática, 1986.

VIEIRA, Silvia Rodrigues e BRANDÃO, Silvia Figueiredo (Orgs.). Ensino de gramática: descrição e uso. São Paulo: Contexto, 2007.