EducacaoemLinha12

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Secretaria de eStado de educao do rio de JaneiroAno IV n. 12

Da costa africana costa brasileira

Congada: festa de N. Sr. do Rosrio, padroeira dos negros. Johann Moritz Rugendas. Publicada por Engelmann, Paris, 1835

No ventre de Massangana v Histria de escravos A Repblica de Palmares nos versos de Gayl Jones v Um sincretismo estratgico A presena africana na msica popular brasileira v Heitor dos Prazeres, e de muitos! Andr Rebouas e a construo do Brasil v Capoeira no Rio ColonialABRIL - JUNHO/2010

ReVIstA eLetRNIcA ANO IV, N. 12

Sergio Cabral luiz Fernando SouzasecRetRIA de estAdO de edUcAO Tereza PorTo VIce-GOVeRNAdOR

GOVeRNAdOR

Sumrio

03 Palavra da Secretria 04 Editorial 05 Escravos, forros e seus descendentes: o mundo do trabalhoe o acesso cultura escrita

JoS riCardo SarTinisUBsecRetRIO execUtIVO Julio CeSar Miranda da Hora sUBsecRetRIO de GestO e RecURsOs de INfRAestRUtURA Srgio MendeS sUBsecRetRIA de GestO dA edUcAO TereSa PonTual sUBsecRetRIA de cOmUNIcAO e PROJetOs delania CavalCanTi

cHefe de GABINete

JoHn WeSley Freire e HeleniCe valiaS anTonio Silvrio CardinoT de Souza e raFael Carneiro MonTeiro anTonio olinTo - in memoriam CarloS leSSa CarloS neJar CeCilia CoSTa Junqueira eliana rezende FurTado de Mendona eliSa MaS evanildo beCHara Haroldo CoSTa laura Sandroni nelSon rodrigueS FilHo roberTo Corra doS SanToSAGRAdecImeNtOs Aos acadmicos da ABL, Alberto da Costa e Silva, Alfredo Bosi, e Evanildo Bechara; a Alexei Bueno, Carlos Lessa, Cssio Loredano, Christianni Cardoso morais, Denis Bernardes, Francisco Costa, Francisco ramalho, Gabriel Chalita, Haroldo Costa, Jlio Duque, Laura Sandroni, Leonardo Dantas Silva, marco morel, m. Alice rezende de Carvalho, muniz Sodr, Nei Lopes, Nelson rodrigues Filho, Nireu Cavalcanti, Paulo Daniel Farah, raul Lody, rodrigo Ferrari, Stelamaris Coser, uelinton Farias Alves e Vera Lcia Acioli, pela cesso graciosa de textos e/ou imagens. E a Antonio olinto, Caryb, Nssara e raul Bopp, in memoriam. inestimvel contribuio da ABL; do instituto Cultural Antonio olinto; da Fundao Biblioteca Nacional; do Projeto Portinari seu diretor, Joo Candido Portinari e Suely Avellar, coordenadora. s editoras Bertrand Brasil, Companhia das Letras, Corrupio, DP&A, Jos olympio, martins Fontes, Nova Fronteira, Pallas, revan, Sm, autores e editores. A Alice Gianotti, Ana Laura Berner, Andea Sampaio, Andr Saman, Arlete Andrade Soares, Beth Almeida, Denise Albuquerque, Fatima ribeiro, Luiz Antonio de Souza, Luiz marchesini, marcelo Pacheco, maria Amlia mello, maria Cristina F. reis, mariana mendes, manoel mattos Filho, marina Pastore, Neide motta, Neide oliveira, roberta de Farias Araujo, rosana martins, Srgio Bopp, Vilbia Caetano, Viviane da Hora Julio, pela colaborao feitura deste nmero. A Angela Duque, por seu projeto grfico, tratamento de imagens e arte-final da revista. Aos colegas da SEEDuC pelas expressivas ilustraes, Antonio Silvrio Cardinot de Souza e rafael Carneiro monteiro; a Ailce malfetano mattos, Beatriz Pelosi martins, Cristina Deslandes, Denise Desidrio, Elaine Batalha, Gisela Cerssimo, Lvia Diniz, maria de Lourdes machado, mariana Garcia, e a todos os que anonimamente nos ajudaram a viabilizar esta edio. cONseLHO edItORIAL ILUstRAdORes

edItORes ResPONsVeIs

07 No ventre de massangana 09 Histria de escravos 11 Clara dos Anjos no vai ao Teatro Lrico 14 Cruz e Sousa 17 urucungo 19 A repblica de Palmares nos versos de Gayl Jones 23 Da costa africana costa brasileira 25 Arte religiosa africana 26 um sincretismo estratgico 28 A identidade da beleza 30 Herana de lnguas africanas no portugus do Brasil 32 A presena africana na msica popular brasileira 36 Andr rebouas e a construo do Brasil 38 Paula Brito, editor e livreiro 40 Jos do Patrocnio, o tribuno da Abolio 42 Heitor dos Prazeres, e de muitos! 44 100 anos da revolta da Chibata 46 milton Santos: um brasileiro com B maisculo 48 o Brasil segundo Al-Baghddi 51 Alma da frica 52 A enxada e a lana / A verdade seduzida 53 meus contos africanos / ABC do continente africano 54 Lendas africanas dos orixs / As gueleds a festa dasmscaras

55 Ensino da Histria e cultura afro-brasileira e indgena 56 Capoeira no rio Colonial 59 o rosrio da negritude e o devocionrio catlico afrobrasileiro

60 Danas e festas no Brasil do sculo XiX segundo rugendas,Koster e Debret

62 maracatus do recife 63 Fala, leitoros conceitos emitidos representam unicamente as posies de seus autores. Permitida a transcrio, desde que sem fins comerciais e citada a fonte. revista registrada na Biblioteca Nacional N.os 491.096 a 491.101 Edies digitais: educacao.rj.gov.br/educacaoemlinha Contato com os editores: [email protected] Tiragem da edio impressa: 5 mil exemplares

aL, PROFESSOR

PALAVrA DA SECrETriATereza PorTo

C

om o resultado da Copa do mundo de Futebol de 2010 indefinido, ao encerrarmos esta edio, elogiemos seu pas-sede a repblica da frica do Sul, por algo mais significativo do que a realizao deste evento: o magnfico exemplo de progresso humano conseguido, superando o que era tido como impossvel ocorrer: eliminar o apartheid (separao, em africnder), repugnante prtica de segregar pessoas e infundirlhes o desamor pelo simples fato de terem nascido brancos, negros, amarelos ou mestios. Nelson mandela, como mahatma Ghandi e Luther King, liderou, custa de ingentes sacrifcios pessoais, optando por trilhar caminho diverso do primarismo do dio, da desconfiana, do confronto, do divisionismo, lamentavelmente to comuns. Eles propuseram e concretizaram novos paradigmas. Foram, portanto, professores, ou melhor: mestres da convivncia pacfica buscaram a paz aos homens de boa vontade , este o significado maior da Educao! Preocupou aos editores reafirmar a contribuio dos negros nossa cultura desde tempos em que eram considerados pouco alm de animais, nos sc. XVi a XiX, ou mesmo cidados de segunda categoria, necessitando apoio paternalista e compensaes, por serem tidos como incapazes de se imporem pela prpria capacidade. Nos textos desta edio negros e mestios, por suas biografias, desmentem o epteto de coitadinhos: machado de Assis, Andr rebouas, Lima Barreto, Cruz e Sousa, Paula Brito, Heitor dos Prazeres, Jos do Patrocnio, Joo Cndido, milton Santos, nossos atletas, artistas, artesos, professores e inmeros outros irmos

annimos que participaram do processo de construo dessa que j uma das maiores naes: a brasileira. Ao publicar artigos de respeitveis colaboradores, a revista evita erros decorrentes da adoo de conceitos de fontes secundrias, da histria oficial ou do politicamente correto. Neste sentido, ela respeita o esprito das leis e, no presente nmero, a que trata do Ensino da Histria e cultura afro-brasileira e indgena, fugindo a esteretipos tendenciosos bastante difundidos. Artigos e resenhas difcil destac-los todos nos despertaram ateno pela harmonia dessa espcie de coral de mais de vinte e cinco vozes, que cantou no como o poeta em Vozes da frica, os horrores da escravido. Buscou, sim, revelar a riqueza dos muitos povos africanos, aqui miscigenados, que produziram figuras emblemticas em todos os campos da atividade humana. Cabe, assim, agradecer aos colaboradores deste nmero da revista a cesso de seus magnficos textos e ilustraes que a tornam ainda mais rica e atraente. Por fim, uma sugesto-pedido aos educadores: promovam a convivncia pacfica entre seus alunos, no permitam que a escola seja centro de difuso de preconceitos e intransigncias. Embora teorias do passado considerassem negativamente a miscigenao, a frutfera convivncia com o outro e a cooperao entre todos plasmaramnos a histria e a cultura. o Brasil , e sempre ser, um pas de maioria mestia, na cor e no pensamento.

Tereza PorTo

secretria de estado de educao

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aL, PROFESSOR

Tipos que caracterizam a miscigenao no Rio de Janeiro. Carlos Julio, 1779

Editorial

N

esta edio, Educao em linha revisita as razes africanas de nossa cultura. Nela apresentamos negros que, sem voz ou voto, escravizados, lutaram por seus ideais, conquistaram espaos e legaram significativa contribuio cultura brasileira. Partindo Da costa Africana costa brasileira, raul Lody afiana: embora o Atlntico separe frica e Brasil, vive-se c profunda emoo de l... Com emoo descortinamos essa polifnica temtica, pela contribuio de pesquisadores, poetas, escritores e viajantes que, no passado ou no presente, deixaram suas impresses em narrativas e iconografias. Prestigiam-nos membros da ABL: Alfredo Bosi relata, No ventre de Massangana, como um fato da infncia de Joaquim Nabuco o confronta com a cruenta realidade da escravido e influi em sua persona de escritor e homem pblico. Alberto da Costa e Silva em Histria de escravos, destaca na poesia de Castro Alves versos que cantaram a vindita negra. Evanildo Bechara, em Herana de lnguas africanas no portugus do Brasil, revela a contribuio negro-africana nossa riqueza vernacular. Com Arte religiosa africana, Antonio olinto (in memoriam) relembra o escultor Simplice Ajayi do reino de Kto que, ao esculpir a madeira, simplesmente criava Deus e ao criar Deus, Deus o criava. Na seleta de poemas do Urucungo, de raul Bopp, chega-nos pela voz dos escravizados a nostalgia da frica, os navios negreiros, a vida no eito. Alexei Bueno mostra a fora do lirismo de Cruz e Sousa, em que a misria da nacionalidade, misria orgnica, fsica, moral () proclamada pela primeira vez entre ns. Nelson rodrigues Filho, em Clara dos Anjos no vai ao Teatro Lrico, paraleliza machado de Assis e Lima Barreto, marcandolhes a identidade e a diferena. E Stelamaris Coser busca nos versos da norte-americana Gayl Jones a repblica de Palmares, em verso especial e nica que interliga gnero, raa, nao e continente. Christianni Cardoso morais nos surpreende com o letramento de Escravos, forros e seus descendentes. Jos do Patrocnio, o tribuno da Abolio, nos apresentado por uelinton Farias Alves. maria Alice rezende de Carvalho, com Andr Rebouas e a construo do Brasil, analisa sua trajetria entre urgncias transformadoras e acomodao letargia brasileira. rodrigo Ferrari homenageia Paula Brito, editor e livreiro que acolheu os primeiros textos de machado de Assis.

Dentre negros notveis do sc. XX, destacamos Joo Cndido, figura emblemtica que o jornalista marco morel, na trilha do av Edmar morel, ressalta com 100 anos da Revolta da Chibata. E Milton Santos: um brasileiro com B maisculo, que Carlos Lessa exalta, fazendo do lugar o espao geogrfico por excelncia. Haroldo Costa mostra os mltiplos talentos que nos enriqueceram de maneira marcante, em Heitor dos Prazeres, e de muitos! Sobre A presena africana na msica popular brasileira, Nei Lopes teme que a mPB, de razes to africanas, seja atualmente vtima de um processo de desafricanizao. muniz Sodr, em Um sincretismo estratgico, esclarece que era uma estratgia (poltica), destinada a proteger com as aparncias institucionais da religio dominante a liturgia do escravo e seus descendentes. Vera Lcia Acioli, n A identidade da beleza, divulga minucioso levantamento de artesos annimos que enriqueceram a arte religiosa brasileira. Francisco ramalho em O Rosrio da negritude e o devocionrio catlico afro-brasileiro relaciona o rosrio cristo e o masbaha islmico. Paulo Daniel Farah relata a admirao de um im persa no sc. XiX, n O Brasil segundo Al-Baghddi. Do mesmo sculo, Danas e festas no Brasil, por Rugendas, Koster e Debret e, de Leonardo Dantas, Os Maracatus do Recife, que tm origem na instituio dos reis Negros. Capoeira no Rio Colonial, de Nireu Cavalcanti, completa as contribuies, traando interessante trajetria desta arte-luta. A despeito de a Lei n. 11.645, de 10/03/2008, incluir no currculo da rede de ensino a obrigatoriedade da temtica Histria e Cultura Afro-Brasileira e indgena, em pleno 2010 a Cmara Federal recebe e arquiva pedido de indenizao para herdeiros de proprietrios de escravos libertos pela Lei urea! os escravocratas, mais sensveis ao lucro do que vida humana, sofismam: se hoje o gado das fazendas fosse libertado seus donos no seriam indenizados? Assim, a crescente violncia em nosso pas nos leva a propor que lutemos para que os brasileiros no se discriminem por diferena de cor da pele, crenas, vises de mundo... Ao invs de nos considerarmos indo, euro ou afro descendentes, sejamos brasileiros simplesmente brasileiros, mestios sem prefixos que nos afastem! incorporemos o ideal de Luther King: Eu tenho um sonho de que meus quatro filhinhos () no sero julgados pela cor de sua pele e sim pelo contedo de seu carter.

HeleniCe valiaS e JoHn WeSley Freireeditores

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EducaO Em diLOgO

Escravos, forros E sEus dEscENdENtEs

O mundo do trabalho e o acesso cultura escrita

Uma dama brasileira em seu lar. Debret, Voyage Pittoresque, 1835Uma senhora branca com a filha lendo uma carta de ABc. Ao redor das duas, vrios escravos. esta poderia ser uma das maneiras de os escravos terem algum acesso cultura escrita, na medida em que a criana que aprendia a ler soletrava em voz alta o que estava escrito na carta e, possivelmente, em outros textos. A leitura em voz alta era comum nos sculos xVIII e xIx, mas desta prtica no se encontra facilmente documentao.

Christianni Cardoso Morais

N

a dcada de 1870, os intelectuais brasileiros consideravam a grande quantidade de negros no Brasil e a mestiagem racial de nosso povo como responsveis por nossa inferioridade perante outras naes. A partir de 1980, os historiadores brasileiros tm buscado rever muitos esteretipos. Hoje sabemos que, apesar de poucas etnias africanas terem desenvolvido uma cultura escrita prpria, essa no era inexistente. Sabemos, ainda, que os escravos eram considerados, legalmente, como propriedade de seus senhores. Apesar disso, acreditamos que as relaes sociais so extremamente complexas e que os africanos possuam identidade e cultura prprias, eram capazes de reelaborar essas identidades ao serem trazidos para c e possuam sua prpria viso da escravido, mesmo que limitada pelas imposies de seus proprietrios. Atualmente h pesquisadores que se ocupam de estudar a maneira como se constituam as famlias escravas, outros que lidam com os modos como os africanos criavam uma identidade social ou mantinham suas tradies culturais no Brasil e ainda h os que buscam entender como se davam as negociaes entre escravos e senhores, as fugas etc. mas poucos tm se dedicado a

pesquisar como eram as relaes dos escravos ou libertos e seus descendentes com a cultura escrita. Para preencher essa lacuna, buscamos fontes que permitiram analisar as relaes estabelecidas entre escravos e forros com o escrito em suas variadas formas, em um perodo no qual no se pretendia constituir projetos estatais para a escolarizao desses sujeitos (1750-1850). No Brasil, somente aps 1860 a escolarizao comeou a ser vista como questo fundamental para a adaptao dos ex-escravos nova sociedade que principiava a ser esboada no Brasil, com base no trabalho livre. A escolarizao dos filhos de escravos constituiu uma atribuio legal em 1871, com a Lei do Ventre Livre. As iniciativas de escolarizao da populao descendente dos escravos no perodo ps-1871 foi um tema muito bem explorado por marcus Vincius Fonseca, em seu livro Educao dos negros1. No sculo XiX, quando os escravos fugiam, era comum a publicao, nos jornais brasileiros, de anncios das fugas. Em 1828, no jornal O Astro de Minas, publicado em So Joo del-rei, h dois interessantes anncios. o primeiro dizia que o escravo pardo de nome Vicente, official de alfaiate, sabe ler, e escrever, tem a cor clara, os cabellos pretos, o brao esquerdo seco e os de-

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EducaO Em diLOgOdos quase encolhidos.2 No outro anncio afirmava-se que hum pardo escuro de idade de 15 annos, boa estatura, feio miuda, os dedos dos pes abertos, tem falta de unha em hum dos dedos dos pes, bem feito, bons dentes, sabe ler.3 Alm das informaes sobre a capacidade de lidar com a cultura escrita destes dois escravos fugidos, o mesmo jornal publicara uma carta, em 1827, na qual se afirmava que muitos estudantes de So Joo del-rei, de famlia abastados, mas ainda os indigentes [...] hoje aprendem com Guilherme Jos da Costa, homem pardo casado, de boa vida, e costumes, e [...] Antonio Dias Pereira, homem creoulo casado, e de igual procedimento, em cujas Aulas se contao mais de cem discpulos.4 Havia, em So Joo del-rei, dois professores particulares, ambos mestios, muito procurados pelos pais de famlia. E ambos possuam excelente reputao. Diante de tais evidncias, cabe perguntar como estes homens, escravos ou livres, todos descendentes de africanos, se apoderaram das capacidades de ler e/ou escrever no perodo em que viviam? um interessante caso publicado por Luiz Carlos Villalta no livro As Minas setecentistas pode nos ajudar a responder a questo. Em 1760, isabel da Silva de Abreu, mulher parda, viva, desejava educar seus filhos. mas o juiz de rfos, que deveria administrar os gastos feitos com a herana dos menores, no concordou com as opes da mulher parda. Sugeriu que colocasse os filhos para servir. Todavia, segundo Villalta, a viva insistiu em educar seus filhos: o mais velho aprendia o ofcio de boticrio, com algum que lhe ensinava em troca de pagamento; e um outro aprendia a ler e escrever, sendo expectativa de sua me que ele fosse instrudo para exercer algum ofcio.5 outras fontes podem revelar indcios importantes, dentre as quais os testamentos, documentos centrais utilizados em nossa pesquisa. Como exemplo, h o testamento feito em 1803 por Caetana rosa Santos, que declarava ter deixadoem legado a Antonio filho natural de Joanna Banguella a quantia de seiscentos mil reis. Deixo a Leonor filha natural de Laureana cabra, a quantia de seiscentos mil reis. Declaro, que ambos estes legatarios foro meus escravos, e eu os libertei, e porque ainda sa de menor idade ordeno ao meu testamenteiro, que aceitar que na lhes de os legados, sena quando tiverem livre, e suficiente capacidade para zelarem os seos direitos dandolhes somente, o que for necessario para se alimentarem, e vistirem, e aprender a ler o referido Antonio.6

Dessa maneira, podemos pensar que, em grande parte, as prticas educativas com relao aos descendentes de africanos eram exercidas no mbito privado, sejam por estratgias familiares ou por deciso de seus senhores. o que liga todos os casos citados o fato de haver uma estreita relao entre determinados ofcios e a insero dos sujeitos pesquisados na cultura escrita. De 1750 a 1850, dentre os escravos ou seus descendentes com maior possibilidade de se tornarem letrados, estavam os que exerciam trabalhos especializados alfaiates, boticrios, carpinteiros etc. Por possurem profisses especializadas, certamente lidavam com as letras e os nmeros. No Novo mundo, a esfera do trabalho tornara-se um espao possvel de mediao entre os descendentes de africanos (escravos ou ex-escravos) e a cultura escrita. No Brasil, antes da Lei do Ventre Livre, nada se fez para que a populao negra e mestia fosse inserida no mundo das letras, pois naquele perodo desejava-se manter a hierarquia social e o sistema escravista. Todavia, a despeito das restries, houve casos excepcionais de sujeitos que conseguiam burl-las e se tornaram letrados. Ao retomar esta histria, consideramos necessrio que algo seja feito para que estas desvantagens culturais dos negros e de seus descendentes, construdas ao longo do tempo, sejam repensadas.

RefernciasFONSECA, Marcus Vincius. A educao dos negros: uma nova face do processo de abolio da escravido no Brasil. Bragana Paulista: EDUSF, 2002. 2 O Astro de Minas, n. 144, 18/10/1828, p. 4. (grifos nossos) 3 Idem, n. 292, 01/10/1829, p. 4. No h referncia ao nome do escravo. (grifos nossos) 4 Ibidem, n. 14, 20/12/1827, p. 2-3 (grifos nossos) 5 Arquivo da Casa Setecentista de Mariana: Inventrio de Manoel Pimenta, 1. ofcio, cdigo 21, auto 571, 1760. Citado por VILLALTA, Luiz Carlos. Educao, nascimento, haveres e gneros, In: RESENDE, Maria Efignia Lage de; VILLALTA, Luiz Carlos (orgs.). As Minas Setecentistas. BH: Autntica, Companhia do Tempo, 2007. p. 255-256 (grifos nossos) 6 Arquivo Histrico e Escritrio Tcnico II/IPHAN/SJDR: testamento de Caetana Rosa Santos (1810, cx 119).1

doutora em Histria/ UfmG Professora do departamento de educao/ Universidade federal de so Joo del-Rei [email protected]

CHriSTianni CardoSo MoraiS

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ENcONTROS cOm a LiTERaTuRa

No vENtrE dE MassaNgaNaalFredo boSi

Q

uando Joaquim Nabuco, escreveu Minha formao, pouco antes de entrar na quadra dos 50 anos de idade, permaneciam em sua memria tanto um episdio dramtico da sua infncia como algumas figuras de intelectuais e polticos do Segundo reinado, que deixaram marcas indelveis na construo da sua persona de escritor e homem pblico. massangana o ttulo de um dos derradeiros captulos do livro. No me parece aleatria a sua posio no corpo da obra: fica entre os captulos Eleio de deputado e Abolio, ou seja, entre memrias de 78 e 88; decnio que o tempo forte da campanha pela libertao imediata dos escravos. Para narrar as horas decisivas de ao do militante, o memorialista precisou descer ao poo das recordaes e de l fazer emergir tona da conscincia uma imagem submersa pelo tempo. No imagens soltas, mas uma s, luminosa, coerente, pregnante. Nem diz outra coisa o pargrafo de abertura do captulo: o trao de toda uma vida para muitos um desenho de criana esquecido pelo homem, mas ao qual ele ter sempre que se cingir sem o saber. Nessas palavras que o reconhecimento de geraes de leitores tem guardado como se fosse uma relquia de famlia, esto juntas metforas que nos so caras: o trao todo da vida a prpria imagem do itinerrio que a obra percorre to fielmente. o desenho de criana esquecido pelo homem diz a forma primeira de uma vivncia que o adulto relegou para fora do cotidiano dos cuidados do aqui e agora. mas desenho ao qual ele ter sempre que se cingir sem o saber, porque, mesmo ocultado na sombra do inconsciente, servir de bssola na hora das grandes decises.Os primeiros oito anos de minha vida foram assim, em certo sentido, os de minha formao instintiva ou moral definitiva. Passei esse perodo inicial to remoto, porm mais presente do que qualquer outro, em um engenho de Pernambuco, minha provncia natal.

Sabemos que esses tempos remotos se fizeram no s presentes por fora da memria como alimentaram com a seiva da compaixo a obra do futuro abolicionista. Para reviver o esprito das reminiscncias de massangana, ser preciso escolher entre dois caminhos: ou partir da evocao da paisagem natural e social do engenho e s depois deparar a cena do jovem escravo fugido que to doridamente feriu a sensibilidade do menino Joaquim Nabuco; ou, em sentido contrrio, trazer ao primeiro plano a memria daquele encontro do menino de engenho com a realidade absurda do cativeiro pra em seguida ir espraiando o olhar pelos verdes canaviais cortados pela alameda tortuosa de antigos ings carregados de musgos e cips sombreando de lado a lado o pequeno rio ipojuca. E contemplar no centro a casa grande erigida entre a senzala e a capela consagrada a So mateus. Escolhi a primeira perspectiva, que fica rente composio do texto. A descrio precede aqui a narrao, mas no de modo linear; a cena irromper no quadro, abrupta, desconcertante. A paisagem evocada imvel e silente. Nesse pequeno domnio perdido na zona do Cabo, que o memorialista descreve como inteiramente fechado a qualquer ingerncia de fora, como todos os outros feudos da escravido, at a natureza parece recolhida em si mesma. Sob a sombra impenetrvel de rvores solitrias abrigavam-se grupos de gado sonolento. E a gua do ipojuca, que j sabemos exguo, quase dormente sobre os seus longos bancos de areia. Por esse riacho, lembra Nabuco, se embarcava o acar, para o recife. Veja-se como o movimento em direo sociedade, que tem tanto a ver com a economia do Nordeste no Segundo reinado, deflui de uma gua quase parada. o que est dentro s pouco e lentamente se comunica com o que vai l fora. Est esboado quadro, ilha e osis, em uma linguagem que lembra os grandes paisagistas romnticos, Chateaubriand

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ENcONTROS cOm a LiTERaTuRa

e o nosso Alencar. Na recordao do engenho o sentimento fundamental o de uma harmonia csmica que tudo permeia e envolve.Durante o dia, pelos grandes calores dormia-se a sesta, respirando o aroma espalhado por toda a parte, das grandes tachas em que cozia o mel. O declinar do sol era deslumbrante pedaos inteiros da plancie transformavam-se em uma poeira de oura: a boca da noite, hora das boninas e dos bacuraus, era agradvel e balsmlca, depois o silncio dos cus estrelados majestoso e profundo. De todas essas impresses nenhuma morrer em mim. Os filhos de pescadores sentiro sempre debaixo dos ps o roar das areias da praia e ouviro o rudo da vaga. Eu por vezes acredito pisar a espessa camada de canas cadas da moenda e escuto o rangido longnquo dos grandes carros de bois...

Engenho de cana-de-acar. Johann Moritz Rugendas, sc. XIX

Se o autor dessa pgina se tivesse detido na reconstituio da paisagem, teramos um Joaquim Nabuco evocador encantado da vida nos pequenos engenhos do Cabo, poeta de um mundo cuja dissoluo seria a matria narrativa de um Jos Lins do rego e a fonte antropolgica de um Gilberto Freyre. mas a memria do quadro cede, a certa altura, irrupo da cena.Eu estava uma tarde sentado no patamar da escada exterior da casa, quando vejo precipitar-se para mim um jovem negro desconhecido, de cerca de dezoito anos, o qual se abraa a meus ps suplicando-me pelo amor de Deus que o fizesse comprar por minha madrinha para me servir. Ele vinha das vizinhanas, procurando mudar de senhor, porque o dele, dizia-me, o castigava e ele tinha fugido com risco de vida...

A Histria entra, de repente, naquele pequeno mundo antigo que havia pouco o memorialista nos mostrara encerrado em si mesmo, fazendo um s corpo com a paisagem em ritmo de eterno retorno do mesmo. No: a escravido feria de todos os lados do cerne mesmo da vida humana, e no seria possvel

refugiar-se no aconchego materno de massangana sem defrontar-se, mais cedo ou mais tarde, com a sua cruenta realidade. Lendo os dirios de Nabuco, escrupulosamente anotados por Evaldo Cabral de melo, ficamos sabendo que o nome antigo do engenho era massangano, topnimo de origem angolana (quem diz Angola, diz escravo), mas que Nabuco preferiu, com o tempo, a desinncia feminina, massangana. o historiador atribuiu argcia de Llia Coelho Frota, organizadora da edio dos dirios, uma interpretao psicanaltica para a mudana de gnero: o engenho era o regao materno, e o menino, como os escravos fiis, no tinha pai, s me, ou melhor, me-madrinha. testemunho de Nabuco: minha primeira me, memadrinha, Dona Ana rosa Falco de Carvalho, de massangano, a quem at a idade de 8 anos dei aquele nome, no conhecendo minha me. Sabe-se que os pais do recm-nascido Joaquim se mudaram de Pernambuco para o rio de Janeiro, quando Nabuco de Arajo foi eleito deputado s Cortes, deixando-o com a madrinha durante quase toda a sua infncia. mas o massangano africano, talvez recalcado, repontaria na figura do escravo fugido que procura abrigo no ventre de massangana. Voltando narrao, importa ouvir o comentrio reflexivo do memorialista: Foi este o trao inesperado que me descobriu a natureza da instituio com a qual eu vivera at ento familiarmente, sem suspeitar a dor que ela ocultava.

alFredo boSi

Engenho Massangana

Professor emrito da UsP, ensasta membro da Academia Brasileira de Letras Autor, entre outros, de Histria concisa da literatura brasileira, Dialtica da colonizao, Literatura e resistncia

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ENcONTROS cOm a LiTERaTuRa

Poro de navio negreiro (detalhe). Johann Moritz Rugendas

Histrias dE Escravos*alberto da Costa e silva

N

o necessitava Castro Alves de recorrer a Heine para descrever uma ou mais cenas passadas num navio negreiro. Bastava-lhe ganhar a confiana de um escravo africano e pedir-lhe que lhe contasse suas experincias durante a travessia do Atlntico. mas aquele Castro Alves que nos fez este convite, em, Tragdia no lar Leitor, se no tens desprezo De vir descer s senzalas, Trocar tapetes e salas, Por um alcouce cruel, Vem comigo, mas... cuidado... Que o teu vestido bordado No fique no cho manchado, No cho do imundo bordel. ,

ao visitar, j rapaz, os aposentos dos escravos, deles saiu com pressa, revoltado, a trocar apenas as palavras essenciais com os seus moradores. menino, entrou algumas vezes nas senzalas de Cabaceiras e da Boa Vista, mas essas seriam provavelmente melhores, mais limpas e mais arejadas que as das outras fazendas e chcaras, pois o Dr. Alves era, alm de

homem bom, um mdico preocupado com a higiene e a sade pblica. De sua ama Leopoldina e de sinh Janinha, ouviu histrias de senzala, mas no as deve ter colhido ele prprio, pois a intimidade das moradas dos negros estava quase sempre fechada ao branco. Soube, por exemplo e isto nos contou em A cano do africano , o que cabia num olhar rpido: que os casais viviam em cubatas separadas, e que nelas havia, maneira de Angola, sempre aceso um fogo ou um braseiro. Na infncia, Antnio deve ter tido escravos como companheiros de folguedos, mas esses, tambm meninos, pouco teriam para contar-lhe. Adulto, no h na sua poesia indcios de que tenha algum dia se demorado a conversar com um escravo africano, nem mesmo com um crioulo, isto , um negro nascido e criado no Brasil, sobre a sua histria e a sua condio. os exemplos que figuram em seus versos, de maus-tratos, humilhaes e perversidades sofridos pelos escravos, e de ternura, devotamento familiar, herosmo e revolta da parte deles, pertencem todos ao repertrio de histrias que alimentam a pregao abolicionista.

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ENcONTROS cOm a LiTERaTuRaEle soube, contudo, valorizar como nenhum outro essas histrias e as que se repetiam nos sales e corriam, com o sinal contrrio, nas cozinhas e senzalas, sobre suicdio de escravos, infanticdios, fugas de cativos, rebelies, assassinatos de feitores e senhores, bandidos negros que atacavam as fazendas e vingavam-se das crueldades que eles e os seus tinham padecido sobre a guerra aberta, portanto, e tambm sobre outra, velada, que os escravos promoviam contra aqueles que se diziam seus donos. Castro Alves cantou essa violncia, que considerava bendita, e louvou como justo o uso da fora pelo oprimido. Celebrou tambm Palmares, talvez a recordar-se do que sobre a vida nos quilombos lhe contaram, na infncia, Leopoldina e sinh Janinha. Versos como estes, de Bandido negro, considerados como incitao ao crime, porque louvavam os grupos de africanos e crioulos que, armas nas mos, atacavam as fazendas, deviam enfurecer os escravocratas:Trema a terra de susto aterrada... Minha gua veloz, desgrenhada, Negra, escura nas lapas voou. Trema o cu... runa! desgraa! Porque o negro bandido quem passa, Porque o negro bandido bradou: Cai, orvalho de sangue do escravo, Cai, orvalho, na face do algoz. Cresce, cresce, seara vermelha, Cresce, cresce, vingana feroz. [...] E o senhor que na festa descanta Pare o brao que a taa alevanta, Coroada de flores azuis. E murmure, julgando-se em sonhos: Que demnios so estes medonhos, Que l passam, famintos e nus? [...] Somos ns, meu senhor, mas no tremas, Ns quebramos as nossas algemas Pra pedir-te as esposas ou mes. Este o filho do ancio que mataste. Este irmo da mulher que manchaste... Oh! no tremas, senhor, so teus ces. [...] So teus ces, que tm frio e tm fome, Que h dez seclos a sede consome... Quero um vasto banquete feroz... Venha o manto que os ombros nos cubra. Para vs fez-se a prpura rubra. Fez-se o manto de sangue pra ns. [...] Meus lees africanos, alerta! Vela a noite... a campina deserta. Quando a lua esconder seu claro Seja o bramo da vida arrancado No banquete da morte lanado Junto ao corvo, seu lgubre irmo. [...]

Trema o vale, o rochedo escarpado, Trema o cu de troves carregado, Ao passar da rajada de heris, Que nas guas fatais desgrenhadas Vo brandindo essas brancas espadas, Que se amolam nas campas de avs. Cai, orvalho de sangue do escravo, Cai, orvalho, na face do algoz. Cresce, cresce, seara vermelha, Cresce, cresce, vingana feroz.

Era preciso muita coragem para dizer e escrever o que dizia e escrevia Castro Alves, numa sociedade que tinha por base a explorao do escravo e, por isso mesmo, o temia. Ainda havia muitos que, em Salvador, guardavam lembranas da rebelio dos mals em 1835, e sobre todos pairava a ameaa de que se repetisse, no Brasil, o Haiti. Ainda continuavam bem vivos o espanto e o terror que tornaram, em toda a Amrica, havia cerca de meio sculo, os senhores de escravos, diante das notcias da revoluo levada a cabo na ilha caribenha, a partir de 22 de agosto de 1791, pelos escravos, ex-escravos e negros livres, durante a qual foram mortos todos os brancos que no lograram fugir. Apesar disso, ou por causa disso, Castro Alves no hesitava em fazer a apologia da desforra do escravo. Em poemas como Bandido negro, desafiava os seus contemporneos, cujos valores subvertia, ao mostrar como heri o escravo vingador. o espantoso que o poeta nunca foi objeto de agresso por parte daqueles de quem era, com dureza, mais que adverso, e a quem indicava como alvos legtimos da vindita dos escravos. Em nenhum momento os seus versos foram censurados, nem foi ele impedido de recit-los. Jamais o importunou a polcia. No reinado de d. Pedro ii, os abolicionistas e os republicanos faziam, sem qualquer impedimento, propaganda aberta de suas idias. Havia ampla liberdade de expresso e s se reprimiam as agitaes de rua.

alberTo da CoSTa e Silva

embaixador, poeta, historiador, ensasta membro da Academia Brasileira de Letras * In Castro Alves: um poeta sempre jovem. companhia das Letras. p.112-116

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LEiTuRa, LEiTuRaS

clara dos anjos no vai ao teatro lriconelson rodrigues Filhoachado de Assis, pensador do imprio. Lima Barreto, pensador da 1. repblica. A, provavelmente, a identidade e a diferena entre os dois. o primeiro, com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, encenou a vida social, existencial e poltica do rio imperial, nos sales elegantes, desvelando o que fazia e pensava a urbe. o segundo registrou costumes e hbitos do arrabalde, a sub-urbe, meio cidade, meio campo, isolada do centro. Ambos encontram-se em Balzac, para quem necessrio rebuscar toda a vida social para ser um verdadeiro romancista, visto que o romance a histria privada das naes (Petites misres de la vie conjugale). Cumprem os dois os desgnios do ato ficcionnal: expor a verdade, fingindo diz-la, sem as exigncias de objetividade, explicabilidade, argumentalidade, documentalidade do discurso histrico. Fico fingimento (fingere, fictionem), o campo do desejo, a tenso dialtica entre a ideologia (o reflexo do real vivido pelo sujeito como realidade) e a utopia (o que poderia ter sido ou que pode vir a ser, com a arma da destruio de simulacros). imaginar o particular, privado, ntimo do que geral, conceitual e especfico no discurso histrico. Tarefa do discurso ficcional. A ironia e o pessimismo melanclico de machado e a ironia e stira de Lima conduzem, por um lado, compreenso do segundo reinado em declnio e, por outro, da 1. repblica emergente. mULAtO, ALcOLAtRA, sUBURBANO Nascido na rua ipiranga, em Laranjeiras, filho de tipgrafo bem relacionado no imprio, o mulato Lima Barreto morou algum tempo na ilha do Governador, quando o

M

pai foi trabalhar como almoxarife da Colnia de Alienados, depois da proclamao da repblica. Com a demncia do pai, muda-se, com ele e os irmos, para a estao de Todos os Santos. L se fixa, primeiro morando na rua Boa Vista, 76 (atual Elisa Albuquerque), onde escreveu os seus primeiros romances, depois na rua major mascarenhas, 42 (desde 1913) e, finalmente, no n. 26 da mesma rua, de onde sairia seu fretro. provvel que no frequentasse a Colombo ou a Garnier. mais certo seria encontr-lo bebericando com Catulo da Paixo Cearense e outros, no desaparecido Bar Sul-Americano, na rua Arquias Cordeiro (meier), ento conhecido como a Colombo suburbana, por ser local de encontro da intelectualidade da regio.

Aposentado como oficial da Secretaria de Guerra, continuou Lima Barreto a habitar em Todos os Santos, seu pouso, meio citadino, meio campestre, h mais de quinze anos. Criara razes ali. Saa de casa muito cedo, depois de remexer nos vrios livros de sua estante, livros que no tinha a coragem de negociar nem mesmo nos dias de extrema misria. Descia a ladeira da rua, bela rua de casas ajardinadas, encantadora rua na qual, ao cair da noite, as crianas cantavam em roda, compondo essas sonoras guirlandas de vidas em boto que o romancista celebrou numa de suas melhores pginas do folclore suburbano. Descida a ladeira, encaminhavase Lima Barreto para seu club. Seu club (o escritor pronunciava, escrupulosamente, clbe) era um botequim em que se reuniam, esvaziando botelhas, os modelos preferidos do nosso retratista de caracteres: carreiros, carvoeiros, verdureiros e mascates em trnsito No trao de Nssara, Lima Barreto e Machado de Assis por aquelas paragens.

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LEiTuRa, LEiTuRaSFeitas as libaes rituais, encaminhava-se Lima Barreto para a estao da estrada de ferro, metia-se num carro de segunda do primeiro subrbio que passasse, e l vinha, rumo ao centro, observando os companheiros de viagem, com aqueles olhos entrefechados, de gato recm-nascido, mas, na realidade, vendo tudo, graas segunda vista dos intuitivos, e armazenando mentalmente as suas observaes, qual se as gravasse, num canhenho, num caderno de notas.

fLNeRIe e mILItNcIA

o retrato que faz Agripino Grieco outro suburbano ilustre mostra exemplarmente o mais marcante dos traos de Lima Barreto. o flneur (do francs, flner, vadiar, vaguear, perambular). o vadio que, incgnito, dirige o seu olhar annimo aos outros, e em quem Baudelaire encontra o observador /.../ um prncipe que, LIteRAtURA e sUBRBIO por toda parte, faz uso de seu incgnito. romancista, contista e cronista, o escritor carioca vai ocupar-se da o subrbio est presente no ambiente fsico, Cidade do rio de Janeiro, na linha de manuel Antonio nos hbitos, costumes e crenas de uma populao de Almeida, autor de Memrias de um Sargento de Mibem definida. Povoam o romance homens, mulheres e lcias. Este registrou hbitos e costumes, de olho, escrianas da pobreza e da baixa classe mdia, o carteipecialmente, nos que viviam sombra de D. Joo Vi, ro, o amanuense, o servidor da prefeitura, o servente desenvolvendo a stira de uma sociedade ainda por se da biblioteca, o guarda municipal, mas tambm o carformar. o outro tem em vista, especialmente, o subrreiro, o tropeiro, o verdureiro. Nestas comunidades, o bio, a partir do qual desenvolver a crtica do comportadestaque de alguns se limita ao espao do subrbio, mento social e poltico da 1. repblica. Seu olhar perdesaparecendo como diz o prprio Lima Barreto corre atentamente a vida da capital, que registra com quando o destacado chega ao centro, onde se torna a tinta da militncia e a pena da stira. o personagem um annimo, em posio servil ao chefe, mas tendo o Gonzaga de S (Vida e morte de M. J. Gonzaga de S), que contar a vizinhos e amigos. Neste particular, Trispor exemplo, de quem o narrador te fim de Policarpo Quaresma Augusto machado empreende fa exemplar. a estria de um zer a biografia, um velho solteiamanuense do Arsenal de Guerro, solitrio, culto, nostlgico, ra. Espcie de D. Quixote, to anticlerical, que anda no meio nacionalista, que dirige ao Ledo povo, visita bairros populagislativo proposta de adoo do res, despreza ttulos e honrarias tupi-guarani como lngua nae veemente crtico do Baro do cional. Defende a exclusividade rio Branco. Autodefine-se: Eu das plantas nacionais, da culisou S, sou o rio de Janeiro, com nria estritamente nacional, seus tamoios, seus negros, seus torna-se pesquisador do folclomulatos, seus cafusos e seus re, para recuperar as tradies galegos tambm. Denuncia o nacional-populares j extintas. isolamento dos bairros e a falta Alm de agir no plano cultural, de reciprocidade (mtua) entre Policarpo experimenta o fracaspobres e ricos. Essa , alis, a so no plano econmico. investe grande questo da literatura de na agricultura, numa fazenLima Barreto, que far de sua da-modelo chamada Curuzu escritura o lugar de encontro do (nome que remete Guerra esttico com o tico, numa viso do Paraguai), por acreditar na de flneur, perfil que flagrante fertilidade da terra brasileira. em As recordaes do escrivo Acaba falido e testemunhando Isaias Caminha. o protagonista, a misria do campo e a falta do culto e inteligente, respeitado na apoio oficial na luta contra a cidade de origem, vem para o sava. No plano poltico, como rio, onde consegue emprego suveterano oficial da Guarda NaLima Barreto, em 1909 cional, apresenta-se fardado a balterno num jornal. margem,

vai observando o que se passa por detrs do que se publica: a incompetncia, o desconhecimento do mrito, o jogo poltico e a prtica da chantagem e do favorecimento, a ausncia de conscincia moral do poder e da imprensa. o princpio que norteia o fazer literrio de Lima o da literatura militante, influncia de Brunetire, para quem a tarefa do homem de letras seria alcanar a solidariedade humana por meio da forma. Em artigo com o mesmo ttulo, em Impresses de leitura, Lima explica: Em vez de estarmos a a cantar cavalheiros e damas de uma aristocracia de armazm por atacado, porque mora em Botafogo e Laranjeiras, devemos mostrar nas nossas obras que um negro, um ndio, um portugus ou um italiano se podem amar no interesse comum de todos ns.. Explicao muito prxima da autodefinio de seu alter ego Gonzaga de S.

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LEiTuRa, LEiTuRaS

Teatro Lrico, Augusto Malta, s.d.

Floriano Peixoto, para lutar na guerra civil e durante a revolta da Chibata. A reao contra condenaes e mortes polticas lhe rende condenao e morte (o triste fim). Com feio tragicmica, o livro condena as prticas da 1. repblica, por via da stira. E critica o ufanismo, parodiando a obra Por que me ufano de meu Pas, do Conde Afonso Celso, filho, alis, do Visconde de ouro Preto, padrinho do autor e protetor de seu pai. As outras personagens so tipos da classe mdia de subrbio: o general que gaba as batalhas da Guerra do Paraguai, por ouvir dizer, porque delas no participou; o contra-almirante, que vive lamentando no ser lembrado para condecorao, embora nunca tenha comandado um navio; a moa de famlia, espera do casamento; o prestigiado noivo, formado em medicina, mas burocrata, sempre adiando o casamento, espera de promoo; o compositor e cantador de modinha, tocador de violo, Sancho Pana de Policarpo, mal visto pela vizinhana. cLARA dOs ANJOs NO VAI AO teAtRO LRIcO o Teatro Lrico, na rua da Guarda (atual Treze de maio), era o mais importante do rio, at a construo do municipal. L comparecia a platia mais sofisticada, para assistir a famosos artistas nacionais e internacionais. L Toscanini estreou como maestro. L a cultuada Sarah Bernhardt sofreu, por descuido de algum, srio acidente, com trgica consequncia. Na crnica uma noite no Lrico, o flneur Lima Barreto assiste, das galerias, ao transitar da elite, criticando o artificialismo e a falsidade das relaes e referindose cortes elegante que as damas desprezam mas invejam. Clara dos Anjos, personagem emblemtica de Lima Barreto, protagonista do romance homnimo que, antes de ser publicado, mereceu mais de uma verso e um conto, este tratado aqui. A mulata filha de um carteiro que consegue adquirir casa prpria,

sonho de todo suburbano: dois quartos, um dando para a sala de visitas e o outro para a sala de jantar; nos fundos, um puxadito que era a cozinha; fora do corpo da casa, um barraco para banheiro e tanque; o quintal, superfcie razovel, onde cresciam goiabeiras maltratadas e um grande tamarindeiro copado, e o anfitrio recebia os amigos (o carteiro, o amanuense, o guarda municipal), para jogar bisca, beber cachaa, cantar (e danar) a polca/o samba. Ali se recebia, sem preconceito, o compositor de modinha, com seu violo. A garantia do futuro dos homens estava no emprego pblico; a das mulheres, no casamento, sonho da personagem. objeto da autoconscincia de Clara, em estilo indireto livre: Ela, porm, precisava casarse. No havia de ser toda a vida assim como um co sem dono. os pais viriam a morrer e ela no podia ficar desamparada. Projeto que se frustra com a seduo e o preconceito, que a levam a concluir: mame, eu no sou nada nesta vida. A ingnua Clara dos Anjos no frequenta o Teatro Lrico, mas os cinemas do Engenho de Dentro e do meier, a que vai com as amigas. Na construo do subrbio, o espao do quintal (do annimo) substitui o espao do salo; os cinemas do meier e do Engenho de Dentro, ao Teatro Lrico; a periferia, ao centro do poder; a vida simples, aos hbitos europeus; o emprego pblico subalterno, ao poder poltico; o sincretismo religioso ao catolicismo. A pedir uma nova forma que substitusse a que j havia cumprido o seu papel, agora dominada pelo beletrismo. o que, em certo momento, foi considerado estilo desleixado por alguns, era, na verdade, a exigncia da literatura militante que se propunha, j apontando para o horizonte do modernismo.

nelSon rodrigueS FilHo

mestre e doutor em Letras pela UfRJ [email protected]/www.nelrofi.blog.uol.com.br

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ENcONTROS cOm a LiTERaTuRa

c

ruz e Sousa encarna, mais curiosos da histria da para a poesia moderna poesia entre ns. brasileira, a metfora do Broquis tinha por epEvangelho: a pedra que os consgrafe a muito clebre frase de trutores rejeitaram tornou-se a Baudelaire, que traduzimos: pedra angular. Poesia moderna, Senhor, concedei-me no modernista, ressaltamos, a graa de produzir alguns para no reforar lamentveis e belos versos que provem a mim mesmo que no sou disseminadas simplificaes da o ltimo dos homens, que historiografia literria. Primeiro no sou inferior queles poeta de sua poca a abrir os que desprezo! olhos para a misria nacional, A qual, no caso de Cruz sua poesia sempre foi difcil, e Sousa, vinha a significar aristocrtica, e nisso, alm de algo de quase programtino haver qualquer paradoxo, co. Sabendo-se e sentindo-se ele e os outros simbolistas de agredido por uma sociedade certo modo voltam a indicar-nos que havia apenas cinco anos o caminho. A literatura, de fato, extinguira a escravido, traviveu o apogeu de sua imporzendo em si a explosiva unio tncia social entre a descoberde uma pobreza completa, ta da imprensa, conjuntamencom o fato de ser um negro te com a elevao do nvel de Cruz e Sousa (1861-1898) puro os mulatos claros, por alfabetizao no ocidente, e o motivos bvios, sempre foram surgimento da civilizao de poupados de maiores preconmassa tecnolgica, ou seja, alexei bueno ceitos no Brasil e, alm de um momento raro em que tudo, poeta, e poeta de uma muita gente sabia ler, podia escola com sensibilidade reconhecidamente aristocomprar livros e no era bombardeada pela pletora crtica, j desde esse livro, com sua epgrafe e com de diverso e informaes em que vivemos. seu ttulo, Broquis, ou seja, escudos, ele assumia a Sem dvida, o sculo XiX foi o momento desse posio de guerreiro da arte, posio que ao fim dos apogeu, que durou do fim do sculo XVi at a seguncinco anos que lhe restavam de vida seria tragicamenda metade do sculo XX. Durante toda a Antiguidade te trocada pela de mrtir. e a idade mdia a literatura foi perfeitamente aristoComposto sobretudo de sonetos, e de alcrtica, e est voltando a s-lo. guns poemas maiores, todo o livro seguia quase Cruz e Sousa estreia de fato, aps um incio ortodoxamente o programa da nova sensibilidade bastante canhestro, em, 1893, com Missal, livro de que aparecia entre ns, e isso de maneira autntipoemas em prosa, ao qual se seguiria, seis meses deca, jamais por uma adeso procurada, fingida, do pois, Broquis, de versos. Na esteira do Gaspard de la poeta. De fato, logo aps abandonar seus incios nuit, de Aloysius Bretrand, e do Spleen de Paris, de como epgono condoreiro, j nos versos ainda heBaudelaire, as prosas de Missal, em que pese certo sitantes de Julieta dos Santos, sente-se claramente verbalismo excessivo de que a prosa do autor s se uma tendncia ao vago, embriaguez verbal, ao livrou nos maiores momentos de Evocaes, j propuverso conduzido por associaes sonoras que renha literatura brasileira vrias das caractersticas encontramos em Broquis, s vezes de forma exmarcantes daquilo que o Simbolismo buscava, pela cessiva ou prejudicial em determinados poemas, musicalidade sugestiva, pela magia encantatria do tendncia que desapareceria em Faris e sobretuverbo, pela presena do inconsciente na gnese da do nos ltimos sonetos, assim como em algumas arte, a muita distncia da fbrica pensada, calculada obras-primas da ltima fase, recolhida por Nestor e fria dos parnasianos menos inspirados que deterVtor no Livro derradeiro. Cruz e Sousa, sem dvida minavam o estilo de poca do momento. mas nos alguma, foi o poeta que mais evoluiu na histria da versos de Broquis, e sobretudo nos dois livros de poesia brasileira, partindo de um estado muito incipoemas que se seguiro, que a escola inicia o seu piente at atingir, numa linha reta, as alturas mais triunfo esttico no Brasil, o qual vir acompanhado rarefeitas. Formalmente, os versos de Broquis so pela mais perfeita derrota social, num dos episdios

cruZ E sousa

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ENcONTROS cOm a LiTERaTuRao que h de mais perfeito, caracterstica que manter em toda a sua poesia por vir, e aspecto sob o qual, ao menos este, no lhe poderiam lanar um nico seno. Para alm de uma sensualidade marcada, carnal, que se sente quase fisicamente nos versos, apesar do impondervel, do misticismo e da presena constante da ideia da morte, havia certa fora custica e sarcstica em Cruz e Sousa, como sentimos neste soneto que se tornou clebre: Sorriso Interior

Vista de Desterro, atual Florianpolis, terra natal do poeta. Joseph Brggemann, 1867, Museu de Arte de So Paulo

O ser que ser e que jamais vacila Nas guerras imortais entra sem susto, Leva consigo esse braso augusto Do grande amor, da nobre f tranquila. Os abismos carnais da triste argila Ele os vence sem nsias e sem custo... Fica sereno, num sorriso justo, Enquanto tudo em derredor oscila. Ondas interiores de grandeza Do-lhe essa glria em frente Natureza, Esse esplendor, todo esse largo eflvio. O ser que ser transforma tudo em flores... E para ironizar as prprias dores Canta por entre as guas do Dilvio!

os poemas de sua fase seguinte, publicados poca na imprensa, s seriam reunidos em livro postumamente, em Faris, de 1900, um dos livros mais decisivos da poesia brasileira. Composto primordialmente de poemas longos, entre eles se contam alguns dos mais impressionantes da nossa literatura, ascendentes, em tom muito diverso dos poemas longos de Augusto dos Anjos. A sensao da fragilidade da vida, a da pobreza como gmea da loucura, a busca discretamente desesperada de uma salvao, algo de duradouro na impermanncia geral, dominam os poemas de Faris. Em sentido oposto fora dantesca, ao verbo barroco dos poemas longos, os sonetos do livro se revelam mais plcidos, mais clssicos, diramos, que os de Broquis, abrindo caminho rematada arte dos ltimos sonetos. Tema recorrente, a salvao pela arte, j simbolizada pela epgrafe de Baudelaire na abertura do livro anterior, encontra uma de suas melhores expresses em algumas quadras de Esquecimento, outra obra-prima.

A conscincia de sua fragilidade social financeira, para no usarmos eufemismos sua e de sua famlia, no abandona, no entanto, o poeta, mesmo nesses momentos em que alcana alturas metafsicas inditas na poesia brasileira. o nascimento de um filho lhe d ensejo ao magnfico poema em quadras de decasslabos intitulado justamente, um filho, resultado do choque entre o seu natural transbordamento afetivo por esse advento e a preocupao amarga, e na verdade proftica, pelo seu futuro. Com suas ressonncias shakespearianas, o maior poema que o Brasil produziu sobre tal tema, depois de o cntico do Calvrio de Fagundes Varela. As funestas previses deste poema, todas tragicamente se cumpriram, desde a ausncia do poeta, j morto, para acompanhar o futuro do filho, at a misria que encarniadamente lhe seguiu a descendncia. Funcionrio subalterno da Estrada de Ferro Central do Brasil, aps o fracasso de sua atividade no jornalismo, perseguido na repartio por um chefe boal, Cruz e Sousa se casara, entretanto, com uma bela negra chamada Gavita, que conhecera um dia no Cemitrio do Catumbi, no rio de Janeiro. o consrcio geraria quatro filhos, que inexoravelmente morreriam todos tuberculosos, como o pai e a me, unio provvel da m nutrio com o contgio domstico, alm de, talvez, alguma predisposio particular. Faris se encerra com um dos poemas milirios da histria do nosso lirismo, brios e cegos, pea expressionista avant la lettre, quase pr-surrealista, onde a misria da nacionalidade, misria orgnica, fsica, moral, como depois a mostrariam Euclides da Cunha e Augusto dos Anjos, proclamada pela primeira vez entre ns. A descrio terrvel de dois cegos

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ENcONTROS cOm a LiTERaTuRa

brios e cegos (fragmentos)(...) Ningum sabia, certos, Quantos os desesperos mais agudos Dos mendigos desertos, brios e cegos, caminhando mudos. (...) Que medonho mar largo, Sem lei, sem rumo, sem viso, sem norte, Que absurdo tdio amargo De almas que apostam duelar com a morte! ()

A Parbola dos Cegos, 1568. Pieter Brueghel, O Velho. Museu Picasso, Paris

totalmente embriagados, amparando-se mutuamente, digna de um Brueghel, de um Bosch ou de um Goya, representa praticamente o ato de nascena da poesia moderna no Brasil. A imediata sequncia de Faris encontra-se no nos ltimos sonetos, livro final do poeta, mas em alguns poemas extraordinrios postumamente recolhidos no Livro derradeiro, em tudo da mesma famlia estilstica, como Crianas negras, Velho vento, Sapo humano, entre outros. De fato, depois do perodo dos grandes poemas indagadores e arrebatados daquele livro, a insupervel srie de sonetos publicados por Nestor Vtor em 1905 representa o testamento de Cruz e Sousa, o poeta em sua mscara final, a de poeta-mrtir, morto e salvo pela poesia, papel que ele prprio previra para si e que com espantoso estoicismo cumpriu. Qualquer tentativa de antologiar os ltimos sonetos se revela extremamente complexa, tal a unidade essencial e qualitativa do conjunto. So os grandes sonetos do Simbolismo brasileiro, ao lado dos de Alphonsus de Guimaraens, verdadeiras sacralizaes do papel do poeta como medianeiro de uma arte divinizada. obra de alta espiritualidade, quase um tratado sapiencial em versos, ltimos sonetos representa a cristalizao do triunfo anmico do poeta, engastado no contraste violento de sua derrota biogrfica. Trs dias antes de morrer, aos trinta e seis anos de idade, na cidade mineira de Stio, atual Antnio Carlos, na mais perfeita misria, escreveu Cruz e Sousa o seu ltimo poema, Sorriso interior de placidez quase milagrosa, exemplo sem igual, nas nossas letras, de superao espiritual de uma situao concreta, apesar disso categoricamente mencionada na metfora bblica do dilvio. A morte de Cruz e Sousa repercutiu como um terrvel golpe no pequeno crculo de seus fiis admiradores, quase uma igreja, minscula seita esttica capitaneada pelo dedicadssimo Nestor Vtor a quem ele dedicara o trptico Pacto de Almas, que fecha os ltimos sonetos , da qual faziam parte mau-

rcio Jobim, Tibrcio de Freitas, Saturnino meireles, Carlos Dias Fernandes, Virglio Vrzea, unio daqueles poucos que em vida conseguiram compreender a sua grandeza. morria assim, naquele 19 de maro de 1898, o maior poeta vivo do Brasil, em situao de penria que ficar sempre como uma vergonha nacional no campo das artes. um ano antes, de fato, fundara-se a Academia Brasileira de Letras, e em meio aos quarenta fundadores onde, entre grandes homens e algumas mediocridades existia mesmo um sem qualquer obra publicada, Graa Aranha no se encontrou lugar para nenhum simbolista, muito menos para o pauprrimo Poeta Negro, como passaria a ser cognominado. Seu corpo foi trazido at o rio de Janeiro em um vago de cavalos, por favor da mesma rede Ferroviria de que era funcionrio. Concretizava-se, sem eufemismos, a maldio do puro africano tomado por absurdos ideais de artista, genialmente sintetizada na prosa de Emparedado, o ponto mais alto de Evocaes. No seu tmulo, que seria luxuosamente reerguido, quatro dcadas depois de sua morte, pelo governo de Santa Catarina, no Cemitrio de So Francisco Xavier, no rio de Janeiro e de onde, infelizmente, foi ele h pouco exumado foram inscritos em bronze os dois versos finais do soneto Triunfo Supremo que lhe resume a vida com perfeio: E entre raios, pedradas e metralhas/Ficou gemendo, mas ficou sonhando! BibliografiacRUZ e sOUsA, Joo da. Obra completa. Org. Andrade murici. Atualizao e acrscimos, Alexei Bueno. Rio de Janeiro: editora Nova Aguilar, 1995. BUeNO, Alexei. Uma histria da poesia brasileira. Rio de Janeiro: G. ermakoff casa editorial, 2007.

alexei bueno

Poeta, editor e tradutor membro do PeN clube do Brasil de sua obra potica, As escadas da torre, Poemas gregos, A via estreita, A juventude dos deuses, As desaparies

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ENcONTROS cOm a LiTERaTuRa

O velho orfeu africano (oricongo). Debret, 1826. Museus Castro Maya, Rio de Janeiro

Urucungoraul boppurucungoPai-Joo, de tarde, no mocambo, fuma e as sombras afundam-se no seu olhar. Preto velho afoga no cachimbo as lembranas dos anos de trabalho que lhe gastaram os msculos. Perto dali, no largo ptio da fazenda, umbigando e corpeando em redor da fogueira, comea a dana nostlgica dos negros, num soturno bate-bate de atabaque de batuque. erguem-se das solides da memria coisas que ficaram no outro lado do mar. Preto velho nunca mais teve alegria. s vezes pega no urucungo e pe no longo tom das cordas vozes que ele escutou nas florestas africanas. di-lhe ainda no sangue as bofetadas de nh-branco. O feitor dava-lhe s vezes uma rao de sal para secar as feridas. Perto dali, enchendo a tarde lgubre e selvagem, a toada dos negros continua: Mam Cumand Eh Bumba. Acubab Cueb Eh Bumba. A floresta inchou. Uma rvore disse: eu quero ser elefante. e saiu caminhando no meio do silncio. Aratab-becm Aratab-becm Aquela noite foi muito comprida. Por isso que os homens saram pretos. Aratab-becm Capa da 1. edio, 1932

frica

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ENcONTROS cOm a LiTERaTuRaMe Pretame preta me conta uma histria. ento fecha os olhos, filhinho: Longe,longe era uma vez o congo. despois Os olhos da preta velha pararam. Ouviu barulho de mato no fundo do sangue. Um dia Os coqueiros debruados naquela praia vazia. depois o mar que no acaba mais. despois U, mezinha, por que voc no acaba o resto da histria?

Monjolo

Chorado do Bate-Pilo fazenda velha. Noite e dia Bate-pilo. Negro passa a vida ouvindo Bate-pilo. Relgio triste o da fazenda. Bate-pilo. Negro deita. Negro acorda. Bate-pilo. Quebra-se a tarde. Ave-maria. Bate-pilo. chega a noite. toda a noite Bate-pilo. Quando h velrio de negro Bate-pilo. Negro levado pra cova Bate-pilo. Me Preta. Candido Portinari, 1940. Col. Particular Acervo do Projeto Portinari

URUCUNGOO poeta Raul Bopp (1898-1984), autor publicado pela editora Jos Olympio, figura eminente do chamado modernismo. Participou do verde-amarelismo, uma das correntes surgidas aps a semana de Arte moderna (1922), na qual se destacaram, especialmente, cassiano Ricardo (Martim Cerer) e menotti del Picchia (Juca Mulato). mas sua presena ficou marcada na corrente oposta, liderada por Oswald de Andrade, na qual colaborar com a Revista de Antropofagia e da qual produzir a obra potica mais significativa, Cobra Norato, apropriao potica do mito amaznico da cobra Grande, sonoro e criativo exemplar expressionista, que deveria constar, junto com obras como Macunama, Sambaqui, entre outras, da idealizada, mas no realizada, Bibliotequinha Antropofgica. dois anos depois da publicao de Cobra Norato, surge dentro do projeto potico do autor Urucungo (1932), cujo ttulo, (= berimbau, instrumento de origem africana) a condensao (metfora) da inteno, do sentido e da forma dos poemas, no intento de transformar em produto esttico os temas e a linguagem do negro, semelhantemente ao que fizera com o indgena em Cobra Norato. A obra no vai ser objeto do mesmo reconhecimento da outra, o que prova o fato de ter ficado na 1. edio. Alguns dos poemas foram includos em edies posteriores de Cobra Norato, que incorporaram uma parte referida como e outros poemas. Observa-se, como desejamos mostrar na reproduo, interessante expressividade rtmica, com forte poder imitativo, que orquestra o universo temtico, no tratamento que confere cultura, contribuio e situao do negro, onde no faltam, na exata medida, o lrico e o dramtico. (NRf)

NegroPesa em teu sangue a voz de ignoradas origens. As florestas guardaram na sombra o segredo da tua histria. A tua primeira inscrio em baixo-relevo foi uma chicotada no lombo. Um dia atiraram-te no bojo de um navio negreiro e durante noites longas e longas vieste ouvindo o barulho do mar como um soluo dentro do poro soturno. O mar era um irmo da tua raa. Um dia de madrugada, uma nesga de praia e um porto, Armazns com depsitos de escravos e o gemido dos teus irmos amarrados numa coleira de ferro. Principiou-se a a tua histria. O resto, o congo longnquo, as palmeiras e o mar, ficou se queixando no bojo do urucungo.

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ENcONTROS cOm a LiTERaTuRa

a repblica de Palmares nos versos de gayl JonesSTelaMariS CoSerEsta terra minha histria, Anninho, esta terra inteira. Ns construmos nossas casas sobre o cho da histria.

Gayl Jones

ascida em 1949 no estado de Kentucky, em meio segregao racial dos Estados unidos, a poeta e romancista Gayl Jones interfere na representao da histria colonial brasileira atravs do poema narrativo Song for Anninho (1981), ou Cano para Anninho, ainda indito em lngua portuguesa. Afastando-se do relato habitual feito por homens e centrado nos heris masculinos, Jones privilegia o feminino: com uma mulher, a protagonista Almeyda, narrando em primeira pessoa, abandona tanto o relato impessoal, supostamente neutro, quanto o foco habitual em comandos, estratgias e batalhas. Em texto s vezes ambguo e delirante, imagina o cotidiano amores, disputas, traumas, sonhos e contradies das pessoas comuns que integravam o quilombo. reescreve assim a saga de luta e resistncia palmarista como uma cano

N

em tom de blues, de forma intimista, a partir do ponto de vista imaginrio de uma mulher negra do sculo XVii. o interesse especfico pela histria colonial e pela cultura do Brasil transparece na obra dessa escritora desde seu primeiro romance, Corregidora (1975), e continua em diversos textos de poesia e fico. o desejo de escrever sobre a dispora africana no continente americano motivou sua pesquisa sobre a histria, sociedade e folclore do Brasil. Trechos de uma entrevista concedida em 1982 revista Callaloo mostram que o contato com a experincia brasileira, embora indireto, permitiu-lhe enriquecer seu trabalho e ter um novo olhar sobre a histria do prprio pas. Diz Gayl Jones:O uso da histria e da paisagem brasileiras ajudaram minha imaginao e minha escrita. Fiz a pesquisa necessria sobre fatos histricos e sociais para escrever, mas os personagens e relacionamentos so de minha inveno/ imaginao. [...] Na verdade, a experincia brasileira (puramente baseada em livros e na

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ENcONTROS cOm a LiTERaTuRaimaginao, j que nunca estive l) ajudou a colocar a experincia americana [dos Estados Unidos] em nova perspectiva.1

Ao tentar costurar fato, poesia e fico, Gayl Jones no est sozinha: pertence a uma gerao de escritoras que, como ela, problematizam a histria e contam histrias como forma de recuperar a memria, abordando fatos com subjetividade e paixo. Por outro lado, o interesse em pesquisar e escrever sobre a experincia feminina na escravido e na dispora africana a coloca na companhia de historiadores de todo o continente americano que, a partir dos anos 1980, vm-se dedicando a um tema raramente estudado at ento. Para Linda Hutcheon (em Potica do ps-modernismo, 1991), obras produzidas por umberto Eco, Salman rushdie, Carlos Fuentes e Toni morrison, entre outros, seriam exemplos de metafico historiogrfica. Negando a separao tradicional entre fato e fico, esse gnero hbrido recusa a viso de que apenas a histria tem uma pretenso verdade, considerando que tanto a histria como a fico so discursos, construtos humanos, sistemas de significao, e a partir dessa identidade que as duas obtm sua principal pretenso verdade. Ao assinalar a natureza discursiva de todas as referncias, essa fico no nega que o passado real tenha existido; apenas condiciona nossa forma de conhecer esse passado. S podemos conhec-lo por meio de seus vestgios, de suas relquias. Atravs da narrativa literria, pode-se repensar-se o passado, reescrever a histria e reinventar utopias perdidas. A noo de ps-modernidade vem sendo reavaliada, politizada e apropriada pelo debate crtico no sentido de possibilitar intervir na cultura, num jogo intertextual potencialmente subversivo que abre fissuras e insere marcas de gnero, raa e classe nas narrativas dominantes. PALmARes escRItO em INGLs Alm do vis feminino/negro, o texto de Jones adquire especial relevncia ao focalizar um episdio e um tempo cujo lugar histrico foi circunscrito pela linguagem e interesses dos arquivos oficiais portu-

gueses. A limitao e a controvrsia sobre os dados j foram apontadas por diversos historiadores, como, por exemplo, Dcio Freitas, richard Price e Slvia Hunold Lara. A repblica Negra ser sempre vista de longe, disse Freitas (1982), e podemos s muito rapidamente tentar vislumbrar seu interior. Em seu poema, Gayl Jones aborda pontos cruciais do pensamento contemporneo, tais como o aspecto construdo de documentos, a importncia do relato oral para o conhecimento de vivncias e identidades margem da histria oficial, a conscincia da linguagem com suas selees e excluses. No mbito da histria do Brasil e das Amricas, Cano para Anninho (Song for Anninho) particularmente importante pelo seu movimento de interpretao da dispora africana e pelo cruzamento de experincias e olhares que o texto promove. Assim, uma escritora negra contempornea de Kentucky, nos Estados unidos, com uma experincia vivida e herdada de sofrimento especfico de seu tempo e lugar, repensa e registra o embate frica-Portugal-PalmaresBrasil e cruza tempos e espaos. Hoje, o texto convida ao estudo das questes da mulher e da dispora negra em nosso pas e no continente americano, observando as conexes histricas e sua reverberao nos tempos atuais. GAyL JONes: HIBRIdIsmO e AmBIGUIdAde Desde os anos 70, Gayl Jones publica nos Estados unidos um tipo inovador de literatura, que contraria as expectativas de uma narrativa realista unificada em torno da liderana (masculina) negra ou centrada em personagens femininas folclorizadas e idealizadas. Jones desrespeita tambm fronteiras estabelecidas de raa e nao, expe rupturas dentro da comunidade negra e busca inspirao tambm fora de seu pas e de seu grupo racial. Exemplo disso Cano para Anninho (1981), um texto hbrido situado entre a lrica e a pica, a literatura e a histria, a revolta e o sonho, o Hemisfrio Norte e o Sul. Descre-

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ENcONTROS cOm a LiTERaTuRave o quilombo de Palmares na sua luta de resistncia contra o poder colonial tanto em seu tempo de glria como no tempo confuso aps o ataque e a destruio final. o relato em primeira pessoa se d na voz de uma mulher negra que sobrevive, assina e data a narrativa no final: Almeyda, Serra da Barriga, 1697. Sob um ttulo que homenageia o amado Anninho, que se perdera dela na tentativa de fuga pelas matas, Almeyda tenta concretizar o desejo que juntos tiveram de contar a prpria histria. mesmo agonizante, ela narra suas vises, lembranas e planos a uma mulher que encontra no meio da mata, uma ndia de nome Zibatra, que conhece mistrios e plantas, d-lhe colo e ateno e busca aliviar as dores de seu corpo. No texto, a escritora Gayl Jones entrelaa fios de imaginao com fatos da histria colonial brasileira. Almeyda fala de pessoas que fizeram Palmares e que tiveram um fim, tanto os lderes quanto ela prpria. Conta o voo de Zumbi e de outros palmaristas pelo despenhadeiro e sua prpria tentativa de fuga pela floresta junto com Anninho; a captura de Zumbi e a exposio de sua cabea execrao pblica; a captura da prpria Almeyda e a mutilao do seu corpo, com os seios cortados e jogados no rio pelos soldados portugueses. os limites entre histria e literatura so permeveis e fluidos nessa composio que interfere nos fatos com desejo, sonho, emoo e dor. RetALHOs dA fRIcA: fAZeNdO A cOLcHA Ao homenagear a frica, o texto de Jones evita atribuir-lhe pureza ou idealizar um retorno, porm Almeyda diz: Aquela parte do mundo mais verde/ do que esta. Ela carrega em si mesma sua av africana e os espritos dos antepassados, mas ama seu lugar do presente, descrevendo-o na plenitude tropical e na promessa de esperana, apesar do risco e da represso: uma terra de florestas profundas, de rvores que do leo./ [...] Esta a minha terra./ Pego o leo da palmeira e esfrego no meu cabelo e corpo./ Este o meu lugar. minha parte do mundo/ A paisagem e a ternura,/ as guerras tambm e o desespero,/ as possibilidades de uma vida completa. Anninho compartilhara da mesma f na repblica, sem esquecer as investidas constantes dos portugueses que cobiam a terra: s em Palmares existe dignidade e posio para os negros, mas a liberdade vive na ameaa constante de destruio. No poema de Jones, Almeyda se diz negra e catlica, como era o rei Zumbi, cuja rainha era uma branca roubada da casa de sua famlia. Em Palmares e ao redor de Zumbi havia outras mulheres de vrias cores e procedncias. Almeyda fora escrava primeiro em uma fazenda de cana-de-acar, junto com a av e a me, e depois numa sapataria, de onde homens de Palmares a raptaram. Seu pai tinha sido um aventureiro negro; sua av, uma bela e valente africana comprada no comeo do sculo XVii por um holands que desenhava mapas.foto: Jlio duque

Serra da Barriga

Essa muulmana inteligente fingia ser catlica e gostava de conversar com os jesutas, mas no temia o poder nem dos portugueses nem dos holandeses que dominaram Pernambuco por vrias dcadas. Anninho, marido de Almeyda, era tambm muulmano e j nascera livre, indo para Palmares por sua prpria escolha. Zibatra, a mulher que Almeyda encontra ao fugir pela floresta, uma curandeira que conhece tanto a sabedoria da Bblia quanto a magia das plantas; fala a lngua tupi, o portugus e outras lnguas mgicas para as quais no h traduo. o poema registra as crenas, as profecias, os deuses invocados e as ervas usadas pela figura maternal e forte para aliviar o corpo e o esprito dilacerados da palmarista. Na repblica de fato, provvel que tenha havido grande intercmbio cultural entre os quilombolas e os indgenas das matas vizinhas e que o nmero de ndios no quilombo tenha sido maior do que anteriormente se supunha. o texto de Jones, porm, cria uma personagem que ultrapassa qualquer descrio realista: conjugando saberes e culturas, Zibatra parece personificar uma sabedoria acima e alm do possvel, que sobrevive num espao mgico e imaginrio e entrelaa em si o continente. mULHeR NeGRA: NAO e cONtINeNte Gayl Jones se apropria da imagem comum do corpo feminino como metfora da nao, mas, em substituio ao desejo tradicionalmente expresso no discurso nacionalista de possuir e domar esse espao, Almeyda fala de seu desejo de unio com o cho e com a natureza em Palmares: Queria que meu corpo se tornasse/ um com a terra/ que se tornasse a terra. Esse corpo-nao se transnacionaliza ultrapassando fronteiras, a geografia fazendo a histria: Esta terra a minha histria,/ esta terra inteira./ Ns construmos nossas casas / sobre o cho da histria. No entanto, nem tudo unio e igualdade nas lutas de libertao (e aqui Jones pode estar aludindo situao dos movimentos civis nos Estados unidos poca). A hierarquia patriarcal dos quilombos conjugada subjugao feminina tambm faz parte dessa

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ENcONTROS cOm a LiTERaTuRahistria, como uma verdade naturalmente estabelecida. A contradio se evidencia na memria de Almeyda quando ela lembra o predomnio masculino em situaes de revoluo e a expectativa de que as mulheres se alegrem no papel de meras seguidoras e acompanhantes. mesmo nos dias atuais, o lugar designado para a mulher de cor na construo da nao poltica e literria nas Amricas contraditrio: Ela simultaneamente presena e ausncia nas configuraes do estado nacional e da representao textual, como enfatiza Norma Alarcn (1996). um dos traos mais caractersticos da narrativa de Palmares produzida por Gayl Jones (e que a torna ainda mais distinta da escrita documental) provavelmente seu tom introspectivo, marcado pelo intenso envolvimento entre a narradora Almeyda e sua terra, seu marido Anninho, o chefe Zumbi, os companheiros homens e mulheres de Palmares e a curandeira Zibatra. o texto pontilhado por cenas e expresses de carinho e afeto, mas tambm por perguntas angustiadas: como se pode amar num tempo assim? por que no nos deixam viver neste lugar que fizemos?. A poca impe a desigualdade, a escravido e o sofrimento, mas no poema de Gayl Jones este lugar e este tempo parecem incluir o aqui e o agora tanto da escritora quanto de ns, leitores: este um lugar que no permite aos homens serem gentis. Homens brancos ou negros. [...] No fcil amar num tempo como este. No relato imaginado por Gayl Jones, as personagens Almeyda, sua av muulmana, a ndia Zibatra, a rainha branca, as mulheres do quilombo ou as da casa-grande no constroem uma s verso de mulher nem vivenciam uma relao de gnero padronizada e nica. Entre hesitaes e perguntas, fora e sofrimento, rivalidades, desejos e lutas, essas figuras femininas rejeitam rtulos banais ou simplificadores. tRAVessIAs e dIsPORAs: UtOPIAs o texto de Jones repensa o passado, mas acena tambm para as disporas do futuro (em grande parte formadas por trabalhadores em busca de trabalho na Europa e nos Estados unidos). s vezes ambivalente, reala a cor local e a comunidade enquanto fala de deslocamentos e dispora; acentua o trauma da experincia feminina, mas exulta com a parceria e o amor masculinos. Afasta-se de um feminismo essencialista e de um pessimismo radical; ao mesmo tempo que pinta o corpo mutilado da mulher e mapeia o territrio destrudo, acena tambm com possibilidades de interveno e reconstruo. Situada nesse paradoxo, Gayl Jones mantm a esperana na utopia possvel das lutas de resistncia de comunidades unidas contra a opresso. Quando

reflete sobre a linguagem e a voz que precisam ser criadas na Nova Palmares, Almeyda prope que se ouam os pssaros e se cante como eles. um sonho contraditrio, pessimista em seu otimismo, consciente do dilaceramento sofrido pelos povos africanos na construo do novo mundo americano, mas ainda assim confiante na criao de uma linguagem plural. Diz o poema: oua os pssaros./ Esto fazendo uma algazarra, no ?/ Cantando todos juntos,/ tentando cantar numa s voz,/ mas uma voz com discordncias,/ cheia de variaes./ uma cano difcil que esto cantando /[...] numa voz que rasga os sonhos para fazer outros sonhos novos. o relato dramtico do mais famoso quilombo brasileiro tem aqui uma verso especial e nica que interliga gnero, raa, nao e continente. o texto de Gayl Jones oferece uma importante contribuio para o dilogo interamericano e a reconstruo da histria da dispora africana. Ao introduzir Palmares na literatura dos Estados unidos, utiliza a imaginao para expandir a memria e os arquivos de um dos fatos mais importantes da histria das Amricas. 2 Notas1 todas as tradues citadas foram feitas de forma livre pela autora deste ensaio. 2 esta uma verso compactada do artigo Imaginando Palmares: a obra de Gayl Jones, publicado na Revista Estudos Feministas, v.13, n. 3, p. 629-644, set./dez. 2005.

doutora em estudos Americanos University of minnesota/ UsA Professora do Programa de Ps-Graduao em Letras/ Ufes

STelaMariS CoSer

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LEiTuRa, LEiTuRaS

da costa africana costa brasileiracOm Um P L e OUtRO craul lodyDo encontro da terraOdudua com o ar Orungan, rompese a grande cabea do mundo, jorrando gua, principalmente dos seios de Iemanj; dessas guas nascem os orixs.

*

cotidiano e ao tempo das festas, a religiosidade. arte para experimentar, e no apenas arte para apreciar, decorar em discursos estticos externos, distanciados da unidade dominante entre a tcnica, a pessoa e o sagrado. na arte africana e sua disTradies orais pora que se afirma o entendimento afrodescendentes, Bahia geral do mundo, quando se dilata nas repeties dos gestos, nas dannicialmente, falar da frica as, nos dizeres, nas representaes falar da diversidade, do encondos objetos, nas cores, nas muitas tro de civilizaes, de fontes e maneiras de traduzir temporalidade, matrizes que abastecem o munformas, volumes, smbolos, texturas, do ocidental. So tantas fricas: diferentes expresses, comunicao muulmana, magreb, prximo ao em linguagens sensveis que expem, Saara, vivendo o mediterrneo; ou inicialmente, um grande projeto coa costa do Atlntico, a costa do nletivo de transmisso de sabedoria dico; das florestas, das savanas, de tradicional. Assim, so mantidos pamais de duas mil lnguas faladas, trimnios to antigos e referenciais reunindo cinquenta e trs pases, quanto a prpria histria do homem. mais de oitocentos milhes de pesSo tempos e estilos de viver soas. essa frica continente, proa arte em dimenses prprias e parfundamente doadora e formadora ticulares, unindo, confirmando os do povo brasileiro. papis sociais, legitimando hierarE tambm dessa frica que, quias e vnculos sagrados e religioh mais de quatro milhes de anos sos com mitos, deuses criadores do com o Australopithecus ramidus, se mundo e do homem. origina o homem moderno que coloOx de Xang, machado de Dos encontros homens e niza o planeta a partir de pequenas madeira, Nigria deuses chegam as tcnicas, os doe sucessivas ondas migratrias rumo mnios dos materiais: barro, fibras ao resto do mundo. De tantos caminaturais, madeira, metais, para, assim, criar, construir, nhos, pelo Atlntico, vindo da Costa: Costa do ouro, Costa usar, representar e buscar nos objetos seus lugares, da malagueta, Costa dos Gros, Costa do marfim, Costa seus destinos nas casas, nos mercados, nos templos, dos Escravos ou simplesmente Costa africana, por longos nas paisagens, nos trabalhos dos campos, nos rios, no sculos, fez-se o vil processo de escravido no Brasil, por mar; nas oficinas do oleiro, do tecelo, do ferreiro, do meio da mo e nau lusitanas, entre outros interessados no entalhador e gravador sobre madeira; do construtor acar, no ouro, no diamante, no caf, nos novos mercade casas, de barco; dos penteados, das escarificaes dos. Civilizaes, etnias, sociedades, povos, homens e mue das pinturas sobre o corpo, todos buscando e expreslheres atravessaram o Atlntico Negro at a Costa brasileisando diferentes modelos de beleza. ra, para os principais portos do rio de Janeiro, de Salvador e do recife. Ele fica bastante tempo na casa de Oy Atravessam em corpo, em fora de trabalho Ele usa um grande pano vermelho desejado e atravessam principalmente com suas meElefante que anda com dignidade mrias, seus saberes tradicionais nas mais profundas Meu senhor que cozinha o inhame interaes com a ancestralidade africana, com a natuCom o ar que escapa de suas narinas (...) reza, com as maneiras de traduzir e de experimentar Ele ri quando vai casa de Oxum identidades na nova terra, no Brasil. Trecho de um Oriki de Xang, povo iorub, Benin Tudo convive em diferentes e fundamentais forDe caracterstica fortemente iorub, contudo no mas de ver e de representar o mundo, a fertilidade, o corexclusivamente iorub, so formadas as muitas fricas po; a arte em seu conjunto de vivncias integradas ao

i

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LEiTuRa, LEiTuRaSem territrios e memrias vivas e dinmicas no Brasil. A mitologia dos orixs, dos ancestrais Eguns, marca e determina imaginrios gerais dos povos africanos, o que permite que uma ampla produo visual seja permanentemente consumida, incluindo-se a: a msica, a dana, o teatro, a comida, entre tantas outras maneiras de mostrar com orgulho as matrizes africanas. Nesse contexto, o sentimento religioso faz com que os patrimnios sejam preservados e transmitidos no exerccio de segmentos tnicos e suas convivncias multiculturais em sociedades se tornem cada vez mais globalizadas. Certamente est no foco da religiosidade o mais evidente fundamento de memria e de resistncia, que se d na experincia da f, na emoo de pertena a uma famlia, a um grupo, a uma sociedade que encontra no orix patrono, no orix pessoal, no ancestral tnico ou de uma regio, de uma cidade, os melhores vnculos de expresso de arte. Atribuem-se, ento, a uma arte religiosa os mais notveis domnios de tcnica e de esttica reconhecidamente africanas, no caso, iorub, e dos seus encontros histricos e sociais com a matriz Fon/Ewe, todas nos mesmos territrios Benin e Nigria, frica ocidental. mscaras, objetos litrgicos, esculturas de madeira, antropomorfas, zoomorfas e antropozoomorfas, joalheria, pano da costa, penteados; objetos utilitrios para as casas, smbolos de ferro batido, lato, cobre, bzios, palha da costa, entre outros, atestam a permanente fruio da sabedoria tradicional africana. Nos modelos iorub, na frica, o poder religioso, agregado aos princpios geradores do mundo, expe os lugares de homens e mulheres no amplo processo de intermediar sociedades organizadas e reguladoras: da ordem, da moral e da tica; conhecidas entre outras por Egungum, Gueled, igboni, Epa e Ekiti. E ainda o poder real, destacado no Alafin de oi, Xang, cuja linhagem iniciada com odudua, depois oranian, Ajak e demais, seguindo a organizao de conselhos formados pelos magbs, obs. Nesse contexto, o ox, machado antropomorfo feito de madeira, representando o sentido de justia, do poder do rei que controla o fogo e as tempestades, e o ad, coroa, tambm chamado ad Baine, que marca o smbolo real do Alafin e seus descendentes. outra categoria divina, no mbito dos orixs, so os gmeos representados pelos Ibejis, protetores das casas e das famlias, relacionados fertilidade das mulheres, e por isso cultuados com comidas base de dend e pinturas de pigmento azul, chamado waji, determinando assim o seu carter sagrado. Para os iorub, a comunicao entre a pessoa, o Ibejis, madeira e bzios, Benin orix e o ancestral a base das muitas e complexas relaes hierarquizadas em diferentes contextos do sistema social desse povo. isso se d com a consulta ao babala, por meio de um processo elaboradssimo chamado opel if, quando orumil aponta para os odus, sinais do destino, da vida e da morte. outro importante tema para o equilbrio do povo iorub a sociedade das mscaras Gueled. Essa sociedade expe publicamente as mes ancestrais, seu poder de controlar a fertilidade, a vida. As mscaras tm base formal no rosto humano, mas incluem tambm animais, cenas sociais, histricas, mitolgicas e papis polticos e religiosos das comunidades onde exibem o seu poder e a sua funo de controle social. A especificidade dos papis representados estabelece grupos de mscaras com caractersticas afins, e tipologias como: ak, bak, mundi, teted, okunriu, onilu, ix-oi, alopajanja, eled e woogb woobrasan. Todas as mscaras trazem antigas memrias e so tambm contemporneas, comunicando-se com o cotidiano.Todos os Iorub tm a marca do banj, pois so filhos da pantera, reconhecidos nos trs lanhos em cada face. Marcam e mostram a descendncia de uma longa famlia iniciada por Olodumar e outros orixs criadores do homem e do mundo.fotos: francisco costa

Tradies orais afrodescedentes, Bahia Embora um oceano chamado Atlntico separe as duas costas, frica e Brasil, vive-se c profunda emoo de l. Ns, brasileiros, somos to prximos, to herdeiros de matrizes africanas, que muitas de nossas experincias reafirmam o reconhecimento de viver costumes e tradies de l, com a energia criadora de c.Antroplogo, muselogo, ilustrador Autor, entre outros, de Dicionrio de arte sacra e tcnicas afro-brasileiras e Santo tambm come (Pallas ed.) *texto do catlogo da exposio frica a arte do tempo. coleo Antonio Olinto e Zora seljan, sesc Rio, 2007

raul lody

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LEiTuRa, LEiTuRaS

arte religiosa africana*antonio olintoEis a arte religiosa africana.O africano no esculpe uma figura. Ele a figura que esculpe. No dana. Ele a dana. Na identidade perfeita sujeito/objeto, o africano a coisa que se faz. Para ele, todos os objetos no mundo esto ligados entre si e esto ligados ao seu corpo e ao seu esprito. Essa ligao torna-o hospedeiro de Deus. Seu corpo vira casa de Deus. Seu cntico, voz de Deus. Seu lombo, cavalo de Deus. Nascimentos, colheitas, casamentos, partidas, chegadas, mortes, doenas, tudo presidido pelos deuses e pelas figuras que lembram deuses. Esculturas e mscaras so feitas para os momentos decisivos. A mscara africana traz os mortos de volta. Leva os mortos num passeio pelo mercado, pelas ruas, pelos caminhos do mato, pelas casas, pelas beiradas do rio. A mscara promove o baile das bruxas. As bruxas do mundo perturbam a calma das gentes e precisam ser distradas. As mscaras fazem com que as bruxas se esqueam de intranquilizar os homens na sua trana-trana diria. As mscaras e a dana. Bruxas e deuses gostam de dana. Pela dana pegam forma de gente e sentem o alumbramento da mortalidade. Homens, bruxas e deuses danam pelas estradas, pelos terreiros, pelos adros, pelas clareiras. Danam tambm nos ritos da fertilidade, figuras de madeira presidindo cada movimento da celebrao. Danam na festa do inhame. A mscara-peixe de madeira ajuda a pescaria no Rio Warri. As canoas descem o Rio Benin, as casas dos deuses erguendose, frgeis e fortes, acima das guas. A fenda de Oxum aumenta a pescaria dos habitantes de Oxogb. Iemanj contempla, de suas guas verdes, o pescador de Lagos.

foto: J. W. freire

Escultura de madeira de I (Me). Col. Antonio Olinto e Zora Seljan; srie Iorub-Fon

A figura baul, de lbios juntos, levada para as margens do lago Ebri, considera os longes do horizonte. A mscara Senuf, serena, recolhe-se em seus pensamentos. O machado largo e duplo de Xang distribui justia em Oi. A flecha de Oxosse, o caador, transforma Kto em cidademito cheia de gente viva. Ao longo da frica, os deuses sentados, andando, olhando, em movimento ou parados velam sobre os atos da criao. Velam sobre os homens, os mercados, nos seus atos de compra e venda, nos seus amplos e livres movimentos de amor e de alegria. As rvores africanas tm seus deuses. At os galhos podem ter espritos particulares. Se quiseres cortar um ramo da rvore, pede licena ao Deus da rvore. Se quiseres modelar um vaso, pede licena ao Deus do barro. Se quiseres atravessar o rio, pede licena ao dono das guas. Deuses e Deusas esto em toda a parte, tomando conta das coisas, dos objetos, das montanhas, dos caminhos, das curvas e cruzamentos, das viagens e demandas, das plantas e das guas profundas, das ondas e das correntes, das riquezas e dos casebres, das roupas e das frutas, da comida e da bebida. Vejo o escultor Simplice Ajayi na sua aldeia Indigny no reino de Kto, arrancando pacientes lascas de seu pedao de madeira. Simplice simplesmente criava Deus. Ao criar Deus, criava-se. Chegava ao ser. Ao criar Deus, Deus o criava.

anTonio olinTo (in memoriam)escritor, 1919-2009 Obras traduzidas em 35 idiomas * Acervo IcAO

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LEiTuRa, LEiTuRaS

Ritual de lavagem das escadas da Igreja de N. S. do Bonfim, em louvor a Jesus Cristo e Oxal, rene sincreticamente catlicos e adeptos do Candombl

uM siNcrEtisMo EstratgicoMuniz sodrssim como a vida boa altamente valorizada pela conscincia tica na Antiguidade ocidental, a boa morte algo por que se empenha explicitamente o homem da cultura de Arkh, a exemplo da organizao simblica nag-ktu, que desempenhou um papel importante no processo civilizatrio da nao brasileira. E este igualmente um empenho de natureza similar, isto , um empenho tico, o que no nos deve causar espanto, quando levamos em conta as convergncias morais existentes entre tradies religiosas e espirituais to diversas como as instauradas por Lao-Tse, Confcio, Buda, Scrates, Cristo, etc. A diferena das culturas no abole dadas as condies necessrias para o surgimento de uma vida espiritual a possibilidade um horizonte tico unificador, que resulta de uma reflexo interiorizada do homem sobre si mesmo. A irmandade da Boa morte, criada por africanos e seus descendentes na dispora escrava, um

a

exemplo de instituio tico-poltico-religiosa destinada a cultuar as representaes do Bem e das regras tidas como indispensveis para que se inscreva harmonicamente a morte na vida, para que a morte seja uma nuance controlada da vida. Por trs dela se encontra toda uma tradio cultural que considera a velhice o eixo simblico do grupo social, conferindo ao idoso, portanto, um estatuto de prestgio, rematado pelo de ancestral. os anos vividos no trazem discriminao social (como o velho na sociedade de consumo de hoje), mas autoridade e respeito. A morte, a, no natural, nem negativa, mas simblica, algo que se partilha socialmente. Como ento explicar que um grupo reflexivo e religioso guiado por princpios opostos aos que se desenvolveram progressivamente na sociedade crist do ocidente possa ter existido sob forma de irmandade crist? A resposta, para ns, encontra-se na idia do sincretismo estratgico. Sincretismo (do grego syn-

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LEiTuRa, LEiTuRaSNo caso brasileiro, nada disso pde ser pensado como estratgia poltica, por mau entendimento do que seja poltica e por no se atribui