Eficacia e Direitos Fundamentais

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    DIREITOS FUNDAMENTAIS E EFICCIA

    Maria Raquel Machado de Souza Thamer1

    Resumo: O positivismo jurdico, nos dias atuais, apresenta limites, em especial,no que diz respeito ao entendimento das questes que se referem eficcia dosdireitos fundamentais. Uma anlise exclusivamente dogmtica no alcana aexistncia de fatos exteriores ao ordenamento jurdico, comprovando total

    ineficcia dos direitos fundamentais. Analisados, todavia, por um prismainterdisciplinar, pode-se compreender melhor a ineficcia dos direitosfundamentais.

    Palavras-chave: Positivismo jurdico. Direitos fundamentais. Eficcia.Ordenamento jurdico. Reviso de mtodos.

    Abstract: Nowadays law positivism shows limits, especially the understandingof issues regarding the efficiency of fundamental rights. An exclusivelydogmatic analysis does not reach the existence of facts that underlie legal order,which proves the thorough inefficiency of fundamental rights. However, whenanalyzed under a multifunctional viewpoint, such inefficiency of fundamental

    rights can be understood in a better way.Key words: Law positivism. Fundamental rights. Efficiency. Legal order.Method review.

    Introduo

    Tem a presente pesquisa o objetivo de mostrar os limites do positivismo jurdico,

    para entender as questes relativas eficcia dos direitos fundamentais.2

    1 Advogada, pedagoga e coordenadora e docente do Curso de Direito do Centro Universitrio Ibero-Americano (UNIBERO).2 Direitos fundamentais sero entendidos como aqueles insculpidos no Ttulo II da Constituio Federal de1988, isto , os direitos e garantias fundamentais. Em decorrncia do 2 do art. 5 da Carta Magna, podem-se tambm entender como parte desse rol no que se refere ao captulo I, isto , aos direitos e deveresindividuais e coletivos os princpios e regimes adotados pela Carta, bem como os tratados internacionais emque o Brasil seja parte.

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    Procurou-se entender dois pontos, como segue; primeiro, como o positivismo, como

    sua anlise exclusivamente normativa, encobre causas extramuros ao sistema jurdico que

    levam ineficcia quase absoluta dos direitos fundamentais; segundo, na medida em que

    uma abordagem interdisciplinar pode levar a um melhor entendimento do fenmeno da

    ineficcia quase absoluta dos direitos fundamentais, especialmente no Brasil.

    Por outro lado, o que se pretendeu foi desenvolver um repertrio terico para alm

    do estudo do direito positivo e, simultaneamente, procurar compreender criticamente o

    direito como ordenamento jurdico, de forma que a capacidade de raciocnio amplo esteja

    acima da simples anlise do conjunto normativo com vistas sistematicidade. Nesse

    mesmo sentido, pretendeu-se desenvolver a capacidade de anlise do fenmeno jurdicocomo algo complexo, passvel e carecedor de mudanas, enraizado na sociedade, fruto da

    cristalizao de valores historicamente estabelecidos sob a forma de lei. Nesse segundo

    tpico, tratou-se de alargar o conceito de direito e explicitar seu contato com outros

    sistemas, como o sistema poltico e o sistema econmico, para entender, por essa viso

    abrangente, crtica e interdisciplinar, a questo da eficcia dos direitos fundamentais.

    I. O positivismo jurdico

    O incio do positivismo jurdico no ocorrer com Kelsen. Pode-se vislumbr-lo

    como um movimento simultaneamente histrico e terico anterior a Kelsen. Mas o

    refinamento terico, bem como os desdobramentos histricos mais significativos do

    positivismo jurdico, encontram em Kelsen um forte pilar de sustentao bem como um

    divisor de guas.

    O movimento que institui o positivismo jurdico tem razes histricas anteriores a

    Kelsen, na medida em que foi criado como resultado das aspiraes pela segurana jurdica,

    por um lado, assim como com o fim da crena em direito natural, por outro. De fato, como

    concebe Lafer (1991), os conceitos de direito natural, que se constituram como paradigma

    do pensamento jurdico desde o sculo V a.C., sofreram uma srie de abalos que levaram ao

    seu esfacelamento, principalmente a partir do sculo XIX. A criao das grandes

    codificaes o Cdigo de Napoleo o exemplo mais forte nesse sentido , o aumento da

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    complexidade social, bem como a tomada de conscincia do direito como fenmeno

    cultural e social, varivel em funo do tempo e do lugar, contriburam para a diminuio

    do grau de importncia do jusnaturalismo. No mesmo sentido, o projeto vitorioso da

    burguesia aps a Revoluo Francesa levou busca de parmetros aproximadamente

    seguros para a prtica dos atos da vida privada. Esses parmetros podem ser entendidos

    como o conjunto de leis positivadas por um poder soberano.

    O positivismo jurdico tambm tem como fonte um movimento terico na medida

    em que, em funo da busca de parmetros seguros para as atividades da vida privada

    principalmente as comerciais , foram sendo criadas teorias que buscavam justificar a

    importncia do direito como direito positivo, emanado de um poder soberano, parmetro daao e condio da paz social.

    No obstante j se poder falar em positivismo jurdico antes de Kelsen, no resta

    dvida de que Kelsen foi o responsvel por duas considerveis mudanas no que se pode

    denominar paradigma positivista (LAFER, 1991).

    Por um lado, trata-se de um autor amplamente influente na maneira de pensar o

    direito no sculo XX e ainda, pode-se dizer, no sculo XXI. As teorias a respeito da

    cientificidade ou no-cientificidade do direito, aps as reflexes kelsenianas, passam,

    praticamente todas, pelo pensamento elaborado por Kelsen. Isso, seja para concordar com

    os pressupostos e mtodos do autor, seja para refut-los. Mas isso interessa menos, isto ,

    as correntes concordantes ou discordantes do pensamento positivista-kelseniano. O que

    deve chamar a ateno do pesquisador interessado no direito como objeto de reflexo a

    obra de Kelsen como divisor de guas na histria do pensamento jurdico. H o direito

    antes de Kelsen e h o direito depois de Kelsen.

    Por outro lado, Kelsen, em sua Teoria pura do direito, foi o responsvel pelo

    refinamento terico do positivismo jurdico. A fora de argumentao de Kelsen, para procurar dar cientificidade ao direito, pode ser vista como o ponto alto, a partir da

    perspectiva terica, do positivismo jurdico.

    O autor do prefcio da primeira edio da Teoria pura do direito,de 1934, assim

    se expressou:

    H mais de duas dcadas que empreendi desenvolver uma teoria jurdicapura, isto , purificada de toda a ideologia poltica e de todos os elementos

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    de cincia natural, uma teoria jurdica consciente da sua especificidadeporque consciente da legalidade especfica do seu objeto.

    Dito de outra forma: o que objetivou o autor da Teoria pura do direito? Trata-se,

    como se depreende do excerto acima citado, bem como do refinamento dos conceitos

    presentes na obra, de dar carter de cientificidade ao direito. Com efeito, diz Kelsen, o

    direito carecia de preciso na medida em que seu estudo se manifestava como um

    acoplamento confuso de diversas disciplinas que tinham por objetivo entend-lo. Isso, para

    o autor, sinnimo de falta de rigor, bem como carncia de objeto especfico. Se a cincia

    fsica uma cincia natural , que estuda as regularidades da physis, isto , do mundo

    fsico, tem seu objeto especfico, a saber, o mundo do ser, bem como as demais cincias

    tm seus objetos especficos a cincia social, o fato social, a psicologia, a mente humana

    etc. , por que o direito, conforme questiona Montans (2004) ainda no teria se constitudo

    como cincia?

    Caberia, ento, um corte epistemolgico uma reflexo de teoria do conhecimento

    para o direito como mtodo para o estabelecimento do princpio de pureza. Caberia ao

    direito o estabelecimento de seu prprio objeto de estudo. Isso implicaria, por um lado, um

    afastamento do direito daquilo que prprio das cincias naturais: o mundo do ser. Da

    que, no prefcio primeira edio da Teoria pura do direito, Kelsen usa a expresso

    purificada (..) de todos os elementos de cincia natural (MONTANS, 2004). Por outro

    lado, isso implicaria, ainda segundo Montans, um distanciamento do direito de toda

    ideologia poltica, isto , de qualquer noo de justia ou injustia, bem como o

    afastamento em relao a qualquer noo de fato social, realidade histrica, cincia poltica

    etc.

    II. A busca da exatido no direito

    O nus alcanado pela busca da exatido no direito apenas se explicou com as

    lies da histria ocidental do sculo XX. Por meio do direito positivo, regimes totalitrios

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    foram implantados sob a legalidade. Kelsen, na segunda edio da Teoria pura do direito

    (apud MONTANS, 2004, p. 44), ainda dentro dos postulados e mtodos, faz o seguinte

    comentrio a respeito da legalidade dos regimes totalitrios:

    Segundo o Direito dos Estados totalitrios, o governo tem poder paraencerrar em campos de concentrao, forar a quaisquer trabalhos e atmatar os indivduos de opinio, religio ou raa indesejvel. Podemoscondenar com a maior veemncia tais medidas, mas o que no podemos consider-las como situando-se fora da ordem jurdica desses Estados.

    Dada a possibilidade, para o direito, de ser uma cincia avessa a qualquer ordemvalorativa, bem como podendo, no limite, passar ao largo de questes relativas vida de

    milhares de pessoas, e ainda assim ser considerado direito, houve a necessidade de reviso

    de postulados e mtodos cujo refinamento terico ocorrera com Kelsen.

    Podem-se conceber dois momentos explicativos para a necessidade desse fenmeno

    de reviso de mtodos e postulados do direito positivo.

    Um primeiro momento o da mudana da significativa confiana nas instituies

    do incio do sculo. Essa confiana sofre um abalo por razes histricas: a confiana no

    Estado constitucional, na fora das instituies jurdicas, na consistncia dos ordenamentos

    jurdicos e, por fim, confiana na concepo economicista da poltica. H um sculo, no

    havia qualquer desconfiana no que se refere s naes organizadas sob o regime de

    governo da democracia constitucional, bem como no Estado de direito, tendo em vista o

    fato de que essas instituies satisfaziam s aspiraes das naes e dos Estados. Todavia,

    sob essa convico, se constituram, sob a forma da mais estrita legalidade no sentido do

    direito entendido apenas como direito posto pelo Estado institucionalizado , catstrofes,

    como a forma institucional do nazismo e do fascismo na Europa da primeira metade do

    sculo XX.

    A identificao do direito ao direito normado e a confiana nas instituies foram

    abaladas pelo surgimento, no limite, de regimes totalitrios absolutamente legais, que

    retiravam sua legitimidade dos ordenamentos jurdicos positivados. O que, alis, no

    negado por Kelsen como sendo direito, isto , os ordenamentos jurdicos dos Estados

    totalitrios so direito. Kelsen, no se pode negar, absolutamente coerente com seus

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    postulados e mtodos. Com efeito, se a teoria do conhecimento referente ao mundo jurdico

    estabelece como objeto do direito apenas e to-somente a norma positivada pelo Estado

    institudo, bastante simples verificar que perfeitamente possvel, a partir do postulado de

    que o direito o ordenamento jurdico, um regime totalitrio absolutamente legal.

    O ponto para o qual se deve atentar : interessa ao direito, aps os acontecimentos

    histricos do sculo passado, insistir nos mesmos postulados e mtodos que permitem, no

    limite, ao direito, se dar mesmo em um regime totalitrio e como molde formal para sua

    atuao?

    Paradoxalmente, como assinala Dallari (1996, p. 28), no obstante esses

    acontecimentos histricos, o ensino do direito na Amrica Latina se manifesta de formaacrtica e desvinculada da realidade social. Basta que se atente, segundo o autor, para o fato

    segundo o qual o ensino jurdico oscila entre dois plos. De um lado, h uma infinidade de

    doutrinas, que se do no plano das abstraes. Portanto, totalmente coerentes com mtodos

    kelsenianos, isto , estudo de normas com vistas sistematizao do ordenamento. De

    outro, h as aulas que consistem em meras informaes sobre artigos de lei. Nessas, o

    professor se limita leitura do texto normado, leitura que seguida por comentrios, no

    mais das vezes superficiais, que nada acrescem ao sentido j explcito na leitura do artigo

    de lei.

    No mesmo sentido, curiosamente, as propostas inovadoras trazidas pela

    Constituio Federal de 1988 (CF/88), bem como pela legislao a ela posterior um

    exemplo a lei 8078/90, isto , o Cdigo de Defesa do Consumidor, continuaram a ser

    estudadas luz dos conceitos positivistas kelsenianos. Com efeito, o estudo dos direitos

    fundamentais, assim como o estudo dos conceitos inovadores de tutela coletiva de direitos

    direitos difusos, coletivos e individuais homogneos , continuaram a ser mera tentativa de

    sistematizao das leis com vistas ao ideal de coerncia lgica do ordenamento jurdico,

    objetivo ideal a ser alcanado pela cincia do direito, por meio de seus estudiosos cientistas,

    isto , doutrinadores do direito positivo.

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    III. A eficcia do direito

    A questo da eficcia, dados os postulados e mtodos positivistas de estudo do

    direito o estudo acrtico, como afirma Dallari na obra citada (1996) , deixada de lado,

    o que ocorreu por uma deciso deliberada, funo do corte epistemolgico, o qual

    estabeleceu como objeto de estudo da cincia do direito apenas e to-somente as normas

    positivadas pelo poder soberano. No por acaso, portanto, do ponto de vista kelseniano, o

    fundamento do direito, no limite, no pode ser o fato social, nem mesmo a poltica ou a

    histria. A razo simples: esses campos foram excludos, por uma deciso de teoria do

    conhecimento, do campo cientfico do direito. Da a polmica teoria da norma hipottica

    fundamental, fundamento lgico e ltimo de todo o ornamento jurdico, tautologia

    necessria e resultado do mtodo: deve-se obedecer ao ordenamento jurdico porque se

    deve obedecer ao ordenamento jurdico.

    Isso no implicaria, entretanto, a sada absoluta da questo da eficcia do plano

    jurdico. Para que o direito seja um ordenamento, necessrio que ele tenha um mnimo de

    eficcia, isto , um mnimo de aplicabilidade no mundo ftico.

    Mesmo que normas isoladas no tenham eficcia alguma, seu conjunto oordenamento jurdico de um Estado deve passar pelo crivo da mnima eficcia para que

    possa ser considerado direito.

    O que se pode concluir, porm, que a questo da eficcia, em Kelsen, como

    representante forte do positivismo jurdico, aparece apenas como violao do corte

    epistemolgico. Com efeito, se esse mesmo corte foi o responsvel pela excluso do fato

    social da anlise do fenmeno jurdico, em nome da cientificidade, com que razo pode o

    fato social entrar como uma instncia ad hoc para que a teoria se sustente?

    Sem querer entrar em pormenores conceituais, aquilo para o que se quer chamar a

    ateno o fato de que o conceito de eficcia aparece apenas de forma indireta na teoria

    positivista kelseniana. No problema substantivo.

    No obstante os direitos e garantias fundamentais, insculpidos na CF/88, bem como

    o surgimento de conceitos que tutelam direitos coletivos, no passou a haver um estudo

    interdisciplinar para entender razes exteriores ao direito e que seriam e so

    condicionantes de seu funcionamento, de sua eficcia.

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    Em outras palavras: a eficcia dos direitos fundamentais, ou melhor, a implicao

    das normas do mundo dos fatos, no ser entendida se no houver um estudo do fenmeno

    jurdico que se d tambm fora das amarras do positivismo jurdico. Um estudo meramente

    normativo no conseguir explicar que fatores histricos, sociolgicos, polticos e

    econmicos levam quase absoluta inexistncia, no mundo real no mundo das pessoas de

    carne e osso, vale dizer, no mundo do ser ou dos fatos , de eficcia das previses gerais e

    abstratas das normas que instituem direitos fundamentais.

    Assim, a questo do direito como fenmeno axiolgico-ftico condio necessria

    e talvez suficiente para que se entenda, verticalmente, a relao entre direitos

    fundamentais, como previses normativas gerais e abstratas, por um lado, e a questo daeficcia desses direitos, por outro. A eficcia dos direitos fundamentais, com efeito, para

    ser efetivamente compreendida, demanda duas ordens de reflexo: em primeiro lugar, uma

    compreenso do fenmeno jurdico de forma ampla; em segundo lugar, o estudo de outros

    sistemas o poltico, o econmico, o histrico , como fundadores de ordens normativas e,

    nesse sentido, dos direitos fundamentais.

    Dessa forma, apenas como exemplo da complexa e imbricada relao entre direito

    positivo e outros sistemas, Faria e Kuntz (2002), ao analisar as novas formas e funes do

    direito, diz, a respeito do lugar dos direitos fundamentais na sociedade contempornea, que

    uma das tendncias a regresso tanto dos direitos sociais quanto dos direitos humanos.

    Como os direitos humanos nasceram contra o Estado, no intuito de diminuir ou mesmo

    coibir sua interferncia arbitrria na esfera dos indivduos, e como as garantias

    fundamentais apenas podem ser instrumentalizadas de modo eficaz por meio do poder

    pblico, um problema se apresenta.

    Tendo em vista uma outra tendncia do direito, o enfraquecimento da soberania do

    Estado, em funo da fora de instncias internacionais, e mesmo em funo do poderio das

    empresas transnacionais, como poder esse Estado, cujo poder se v enfraquecido, aplicar

    polticas pblicas com vistas eficcia dos direitos fundamentais? Isso implica, por

    conseguinte, o enfraquecimento do prprio conceito de cidadania e soberania. O mesmo

    ocorre com os direitos sociais, visto que o Estado passa a se preocupar antes com questes

    como inflao, dficit das contas pblicas, dvida externa e interna, cmbio e juros, e menos

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    com questes relativas a polticas pblicas para a efetivao, ou seja, a eficcia dos direitos

    sociais.

    Como se pode comprovar, a presente pesquisa se justifica por sua abordagem

    interdisciplinar do direito. Apenas se compreender a questo dos direitos fundamentais e

    de sua eficcia a partir do momento que as amarras do direito como conjunto de leis isto

    , como apenas e to-somente direito positivo, estudo de normas positivadas sejam

    desfeitas. Como corolrio, o direito se v exposto a um amplo leque de questes que com

    ele se envolvem, bem como o determinam.

    Como visto, apenas para instigar a reflexo sobre a democracia contempornea,

    podem ser formuladas as seguintes indagaes: como se pode falar em democracia nomomento em que grande parte dos cidados se v excluda do corpo poltico? Ainda se

    pode falar em corpo poltico quando os ditos cidados so sujeitos apoltico (COSTA,

    2000), isto , tm apenas uma prtica cidad formal? Uma democracia apenas formal na

    qual a participao poltica consiste em que se vote de tempos em tempos pode ser

    chamada de democracia? Uma democracia representativa seria mesmo uma democracia?

    No seria, em vez disso, uma oligarquia, isto , uma aristocracia que se transformou em

    oligarquia porque houve transferncia da potncia do corpo poltico para as mos de

    poucos.

    Faz sentido que se pense a democracia em uma sociedade dominada pelos interesses

    das empresas transnacionais3 e, ainda nos casos dos pases em desenvolvimento, por

    polticas econmicas de organismos internacionais? Qual o verdadeiro campo de ao

    poltica das democracias de pases em desenvolvimento? O estreitamento do campo de ao

    poltica no representaria a anulao da democracia representativa? Uma democracia pode

    suportar os altos graus de excluso social e baixos nveis de participao poltica sem se

    degenerar em tirania travestida de democracia? Que conseqncia poltica de aes

    3 O termo transnacional perfeitamente abrangente para designar a organizao das corporaesempresariais no campo internacional. O termo multinacional no mais atende o fenmeno. Pode-se entenderhoje, por multinacional, uma empresa que atende mltiplos Estados. Sua manufatura se estabelece em pasesem que a mo-de-obra farta e barata, porm seus diretores se estabelecem em pases que do formaointelectual mais slida a seus cidados.

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    humanas se d, em larga medida, no campo estrito do privado? Um regime democrtico

    pode suportar altos graus de violncia imediata4 e mediata?

    IV. Evoluo histrica do direito positivo

    Na segunda metade do sculo XX, o direito foi entendido como direito positivo, ou

    seja, um conjunto de leis emanadas do Estado segundo normas para produo de normas

    por pessoas em funo legislativa constituindo, assim, o ordenamento jurdico, que foi

    demasiadamente revisitado, mormente no que se refere a seus postulados e mtodos.

    O estudo do direito como direito positivo chegou a apoteose de seu momento

    terico com Kelsen em sua Teoria pura do direito. Sabe-se que Kelsen teve como

    objetivo principal de sua obra fazer que o princpio de pureza fosse aplicado ao direito

    como condio de sua cientificidade. A autonomia do direito frente s demais cincias

    deveria ser alcanada para que o direito no se tornasse o recinto em que todas as cincias

    tm participao, tornando a anlise do fenmeno jurdico algo obscuro e ausente de

    cientificidade. A conseqncia dessa relao muito prxima entre o direito como direito posto e psicologia, sociologia, moral, histria, entre outras disciplinas, seria a perda da

    exatido e objetividade para o direito. Nesse sentido, o direito no poderia ser uma cincia

    rigorosa.

    Como visto, o significado do direito seria encontrar seu objeto de estudo, para alm

    das cincias naturais, haja vista que o direito no uma cincia como objeto no mundo do

    ser, mas tem a peculiaridade de ter como objeto de estudo o dever ser, o que significa dizer;

    a conduta positivada

    e, simultaneamente, para alm de qualquer conceito metafsico dedireito natural, de qualquer valorao tico, poltica, prxima de um conceito de justia.

    4 Entenda-se por violncia imediata o conjunto das prticas coibidas pelos institutos de direito penal, comoroubo, furto, latrocnio etc. Pode-se entender por violncia estrutural ou mediata condies histricas e muitasinstitucionalizadas, que impossibilitam uma prtica cidad, tal como a impossibilidade, a todos os cidados,de um mnimo cultural crtico para o exerccio da ao tica, bem como um mnimo material para amanuteno da dignidade humana.

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    Sendo o dever ser, objeto da cincia jurdica, a norma posta instituda pelo Estado

    seria a expresso da vontade do legislador. Eis a a matria bruta do direito, que cincia

    jurdica caberia lapidar por meio da sistematicidade prpria a toda cincia. Kelsen explicita,

    em sua Teoria pura do direito, que o direito no detm a exclusividade no mundo do

    dever ser, uma vez que a moral tambm se apresenta como mandamento da conduta.

    Todavia, deve-se lembrar que a moral tambm formada por um conjunto de padres de

    comportamentos, em que no h uma instncia responsvel pela aplicao da sano que,

    no limite, pode utilizar a fora fsica. Quando se trata de direito, o Estado e alguns rgos,

    a instncia responsvel pela aplicao da sano caso haja infrao da norma, ou seja,

    ocorra o comportamento ilcito, inclusive o uso da fora fsica, se necessrio.Nessa senda, Kelsen define o objeto da cincia do direito como norma positivada

    pelo Estado, sua pedra bruta, pois se trata da vontade do legislador objetivada. Ressalte-se

    tambm que a moral, com seu conglomerado de padres de conduta, muitas vezes advindos

    da tradio, no se confunde com a tica. Kelsen entende a tica como cincia, cujo objeto

    de anlise sua matria prima a moral. Logo, assim como a cincia do direito tem

    como objeto a vontade do legislador objetivada, a cincia tica, para Kelsen, tem por objeto

    moral.

    V. A crise da organizao estatal e os novos direitos

    No interstcio entre 1976 e 1990, o Brasil dobrou sua populao, quando se

    consolidou o processo de industrializao substitutiva dos anos 1940 sob a direo do

    Estado instrumentalizado, entre outros dispositivos, por uma complexa malha de incentivo,subsdios, crditos favorecidos, zoneamento de mercados, proteo tarifria etc. Como se

    pode perceber, foi implantado um modelo de investimento centrado no poder incontestvel

    dos investidores, organizados, e planejador do Estado; ao longo de todo o perodo histrico

    o pas reestruturou-se ocupacionalmente e reordenou-se socialmente. Tal processo trouxe

    como conseqncia um desordenado e incontido processo de migrao e urbanizao,

    quando as desigualdades sociais ganharam vulto e expresso, donde pode-se constatar a

    eroso das identidades coletivas, dos grandes agregados sociais.

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    A infra-estrutura social do pas acarretou agressividade de comportamentos, a

    emergncia de estruturas paralelas, mormente o aparecimento de novas demandas por

    segmentos sociais desfavorecidos e ausentes de gerao de receita. A conseqncia mais

    significativa dessas alteraes advindas de forma atabalhoada a ineficcia de uma ordem

    jurdica em face da emergncia de novos comportamentos a rigor ilegais, frente essa mesma

    ordem. Essa sociedade modernizada no garante espaos para a permanncia de instituies

    obsoletas e, simultaneamente, h que se refletir no sentido de que as rotinas e os atores

    conseqentes do cenrio que se apresenta no permitem desvendar a distribuio do poder

    especfico no ordenamento jurdico apto a atender as novas demandas sociais.

    Como se v, o ambiente social apresenta-se conflitante sob a forma de presses emfavor de gastos pblicos, o que acarreta expressivo acrscimo da carga tributria para

    atend-los; isso comprova fato gerador de uma sria e conseqente crise fiscal, ao criar

    impostos de legalidade duvidosa, destinados ao financiamento de polticas sociais, em

    princpio para amenizar os conflitos sociais entre os extremos da desigualdade. Trata-se,

    portanto, de um regime discriminador e inquo.

    Acrescente-se que os fatos relatados no assolam somente a sociedade brasileira. As

    diferenas quantitativas e qualitativas esto presentes na sociedade global como um todo. O

    crime organizado, por exemplo, muito mais complexo do que qualquer fenmeno

    aparentado que se tenha conhecido em outros tempos. O trfico de drogas, o contrabando

    de armas e os mecanismos de lavagem de dinheiro compem uma economia paralela que

    ultrapassa de longe, em complexidade e em sofisticao, os velhos e eficientes sistemas

    utilizados pela Mfia e organizaes semelhantes.

    Outro fato advindo da modernidade o terrorismo internacional, para o qual deve-

    se encaminhar uma leitura de expressiva relevncia. Seu alcance, suas novas estratgias e

    sua organizao levaram os governos de forma indeclinvel adoo de novas respostas,haja vista que os velhos sistemas de segurana nacional se comprovam ineficientes diante

    desse novo adversrio. Invadem-se outros Estados, em forma de retaliao ou de

    preveno, quando o inimigo opera em rede, dispe de ativos distributivos pelo mundo e se

    articula como organizao no governamental.

    Pode-se afirmar que o terrorismo e o crime organizado em redes internacionais so

    duas novas dimenses da ilegalidade, que afetam a segurana dos Estados por vrios

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    processos que ultrapassam seus meios de controle. Contudo, os ordenamentos jurdicos

    globais tambm se multiplicam em desafios s novas formas tradicionais de organizao

    poltica.

    Held (2003) afirma que, no nvel internacional, ocorrem disjunes entre a idia de

    Estado inicialmente como capaz de determinar o prprio futuro e a economia mundial, as

    organizaes internacionais, as instituies globais e regionais, o ordenamento jurdico

    internacional e as alianas militares que operam para restringir as opes dos Estados-

    naes individuais.

    O mesmo autor apresenta disjunes caractersticas do mundo atual. A primeira

    advm das condies de operao da economia, que limita a eficcia dos meios tradicionaisda poltica econmica e, por extenso, da autoridade formal do Estado. Isso no significa

    dizer que as polticas fiscal e monetria tenham perdido utilidade, tampouco que as

    polticas de desenvolvimento tenham perdido sentido. Na realidade, o que verdadeiramente

    ocorre a integrao cada vez mais estreita dos vrios mercados, que sujeita as economias

    s conseqncias das decises tomadas fora do territrio nacional. Nesse cenrio, podem-se

    acrescentar direitos associados regulao de mercados que tendem a perder eficcia, uma

    vez que se alteram as condies de proteo dos detentores formais dos direitos

    trabalhistas, por exemplo.

    O segundo segmento de disjuno apontado por Held assenta-se entre a teoria do

    soberano e o sistema global contemporneo: um impossvel mensurvel conjunto de

    regimes e organizaes internacionais estabelecidos para administrar reas inteiras de

    atividade transacional e problemas coletivos de poltica. A influncia desses regimes e

    organizaes varivel e a obedincia a suas normas e diretrizes no constitui,

    necessariamente, uma perda de soberania. Em muitos casos, a interveno dessas

    instituies ocorre por solicitao do governo interessado. Todavia, vista desse contexto,h uma grande tenso entre a idia de Estado soberano e a natureza das decises em nvel

    internacional. Essa tenso ganha expressiva relevncia no caso de associaes, a exemplo

    da Comunidade Europia, com mandato para legislar para todos os pases membros. Cabe

    ressaltar que os poderes da Comunidade originaram-se de uma entrega voluntria de

    aspectos de soberania pelos pases que a compem, deciso que garantiu a sobrevivncia da

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    nao estado europia, diante da dominao dos Estados Unidos no ps-guerra do

    expoente econmico em que se colocou o Japo.

    Na terceira disjuno, pode-se dizer que ope as normas internacionais, ainda que

    no sustentadas por instituies com poder de coero, s condies tradicionais de

    autonomia legal dos Estados. A idia de que nenhum Estado est sujeito a jurisdio

    externa vem sendo substituda por tratados ou acordos internacionais e at mesmo

    contestado por tribunais internacionais; logo, de concluir a existncia do hiato que hoje se

    apresenta em face da soberania dos Estados.

    A quarta disjuno apresenta-se no contraste entre a idia obsoleta do Estado como

    unidade militar e estratgica independente e a existncia de grandes potncias e de blocosde poder, a exemplo da Organizao do Tratado do Atlntico Norte (OTAN), que qualifica

    de maneira diferente cada Estado em razo dos compromissos assumidos com a

    organizao e das caractersticas transgovernamentais envolvidas na operao e em suas

    decises.

    Observe-se que o cenrio descrito por Held (2003) ainda se finca na idia de

    Estados soberanos, porm dotados de menor autonomia. Registra os fatos e prope a

    construo de uma nova ordem democrtica devidamente adequada a essas novas

    condies e demandas.

    Deve-se concluir, contudo, que a soberania no resultado somente de mudanas

    tecnolgicas, econmicas, estratgicas e organizacionais que afetam a hodierna sociedade

    internacional. Essas mudanas, entretanto, vm sendo acompanhadas de uma reavaliao da

    soberania como valor, o qual foi aceito de forma incondicional, porm raramente

    contestada do ponto de vista de sua eficcia.

    Nos dias atuais, a contestao da soberania centra-se na questo dos direitos

    humanos, da proteo do ambiente, da ajuda humanitria e at mesmo da constituio dasoberania de Estados fracos. O enfoque dado aos Estados fracos advm do ataque ocorrido

    em 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos; as aparentes fraquezas so concretamente

    ameaadoras para os Estados fortes, pois acabam transformando-se em abrigos para o

    extremismo e a alimentao do terror.

    No que tange transnacionalizao dos mercados, pode-se deparar com um

    processo com mltiplas faces e paradoxal que caminha em ciclos, na mudana dos

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    paradigmas tecnolgicos e da criao de estruturas polticas internacionais capazes de

    disciplinar os fluxos de comrcio de capitais.

    Quanto maior se apresenta a expanso das inovaes tcnico-cientficas, de

    aumento da diversidade dos bens e servios e do potencial de explorao da natureza, maior

    a possibilidade da obteno de resultados no pretendidos e no previstos e maiores as

    incertezas, as dvidas, as perplexidades e os perigos em relao a seus efeitos e gesto de

    seus desdobramentos, especialmente no que se pode pensar em matria de bem-estar social

    e segurana econmica. Quanto maior o avano da engenharia econmica, maior a

    possibilidade de degradao econmica, bem como dos demais segmentos da humanidade

    como um todo, comprometendo sobretudo o futuro das geraes futuras.Tais acontecimentos so ocasionados por foras transnacionais impossveis de

    identificao, portanto igualmente difceis de serem penalizadas pelas tcnicas

    convencionais de preveno e segurana; esses riscos ultrapassam fronteiras, classes sociais

    e geraes. Dessa forma, indiscutivelmente ocorre a coliso frontal com o prprio conceito

    de cidadania limitado nao, dito de melhor forma, a todas as pessoas que residem num

    dado territrio. Por extenso, tambm pe em xeque as normas jurdicas e os mecanismos

    judiciais de imputao, culpabilidade e punio forjados pelo direito positivo nos ltimos

    150 anos. Os danos morais e materiais causados pelas contingncias so danos

    potencialmente no indenizveis, colocando assim as instituies jurdicas e judiciais do

    Estado-nao contemporneo, com jurisdio transcrita de forma territorial, frente ao

    desafio de criar alternativas institucionais e oferecer respostas nacionais para questes de

    ordem global, de modo a enfrentar esses problemas com o mnimo de efetividade.

    Outra conseqncia a flagrante reduo da margem de autonomia das polticas

    macroeconmicas nacionais e o esvaziamento das polticas monetrias independentes, em

    razo da dolarizao crescente da economia mundial. Na medida em que o comrciomundial ultrapassa a produo industrial global, na qual os mercados de insumos, bens

    manufaturados e servios se integram escala global e a competio nesses termos ganha

    espaos mais acirrados, na qual a oferta do crdito alcana patamares internacionais, os

    capitais se tornam mais volteis e a possibilidade de riscos sistmicos que afetam o

    sistema financeiro cresce e, por extenso, as incertezas no que se refere liquidez

    dissolvem a confiana sustentvel dos passivos financeiros globais. As instituies

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    financeiras passam a utilizar meios de pagamento de modo a facilitar transaes, reduzir

    custos, controlar as finanas internas etc.

    importante perceber a indiscutvel tendncia dos agentes financeiros dos

    mercados globais a dolarizar suas atividades, encaminhando-se para uma harmonia

    internacional das diferentes formas de ativos e auferio de rentabilidade.

    sabido que a moeda apresenta-se como um dos mais emblemticos e tradicionais

    smbolos polticos e econmicos de soberania e nacionalidade e, no contexto em comento,

    acaba por ser privatizada.

    Uma terceira e grave conseqncia reside no aumento, em progresso geomtrica,

    do alcance da velocidade do processo de diferenciao socioeconmica, ocasionando aformao de esferas e nveis de ao diversificados, especializados e interdependentes. Na

    sociedade informacional subjacente economia transnacionalizada, em maior escala os

    sistemas administrativo, tcnico, cientfico, produtivo, comercial e financeiro se

    fragmentam em novas especializaes. Ao atuar em reas especficas subsistemas , cada

    um define suas prprias regras e procedimentos normativos, neutralizando, assim,

    interferncias de outros subsistemas.

    Essa autonomia funcional dos diferentes subsistemas amplia notoriamente a

    complexidade do sistema jurdico, sobretudo o trabalho de produo normativa por parte do

    legislador, no sentido de encontrar uma medida neutralizadora, por meio de regras gerais e

    abstratas, com especial relevncia aos mecanismos processuais rgidos e hierarquizados, s

    presses, s tenses e aos conflitos decorrentes dos vnculos pluridimensionais entre os

    diferentes nveis sociais. Ressalte-se que a legislao existente se efetiva de modo

    condicionado aceitao de suas prescries, justamente pelos distintos sistemas que ela

    deveria disciplinar, enquadrar, regular e controlar. Pode-se entender com isso que a

    autonomia funcional , por definio, auto-regulao, comprometendo a aplicao dodireito positivo.

    Relevo se deve tambm dinmica da reorganizao industrial, da reordenao dos

    espaos econmicos e dos novos padres tcnicos, gerenciais e organizacionais do

    capitalismo globalizado, bem como fragmentao que se comprova nos meios de

    produo. Esse fato particularmente importante porque, no mbito da nova diviso

    internacional do trabalho, em que os sistemas flexveis de automao e gesto maximizam a

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    capacidade de articulao entre inovao cientfica, criatividade decisria, fluxo do

    processo industrial, comercializao, finanas, publicidade e desenvolvimento, o

    acirramento da competio levou empresas e conglomerados a procurarem extrair todos os

    efeitos possveis da localizao de suas unidades fabris, no sentido do custo da mo-de-

    obra, preos de matrias-primas, incentivos fiscais, subvenes estatais, neutralizaes e

    presses trabalhistas, inexistncia ou inefetividade de leis ambientais. Isso acaba resultando

    num policentrismo decisrio que hoje caracteriza a economia globalizada, com hierarquias

    flexveis, entidades nacionais e supranacionais hbridas e estruturadas de comando

    diferenciadas e diversificadas, e o crescente predomnio da lgica financeira sobre a

    economia real; o estado-nao vem sendo substitudo pelo mercado como instncia decoordenao da vida social.

    Em conseqncia, a transnacionalizao dos mercados, os conflitos de interesses e

    os poderes constitudos pelos agentes econmicos levam os governos a perderem a

    capacidade de esgotar os recursos tributrios da economia interna, de pensar

    estrategicamente o futuro, de estabelecer objetivos em longo prazo, de garantir condies

    fsicas mnimas indispensveis a qualquer projeto de crescimento, de promover a idia de

    justia pela ao fiscal e de assegurar bases fundamentais de sua legitimao, no plano

    poltico das instituies democrticas com forte tendncia ao esvaziamento.

    Do ponto de vista social, a distncia a que o Estado tem condies de realizar seus

    feitos de maneira a atender a sociedade ganha feies assustadoras no plano institucional. A

    questo da soberania nos moldes traados pelo Tratado de Westflia, no sculo XVII, como

    supremacia, incondicionalidade, inalienabilidade, indivisibilidade, centralidade e unidade

    do Estado, so progressivamente enfraquecidos. Conseqentemente, no plano jurdico, o

    direito positivo e as instituies judiciais passam a enfrentar enormes limitaes estruturais.

    A maior e mais significativa de todas as limitaes apresentadas assenta-se nareduo de uma parte expressiva de sua jurisdio. As normas e cortes encarregadas de

    aplic-las foram concebidas para atuar dentro dos limites territoriais; todavia, seu alcance e

    sua eficcia encontram-se nitidamente diminudos na proporo em que as interaes

    globais se aprofundam e se intensificam, mormente pelo intercruzamento de novos centros

    de poder, assumindo o risco de rompimento do vnculo entre cidadania e nacionalidade, e

    em que novas identidades locais e regionais, projetos especficos de natureza poltica e

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    social e novas formas de vida e de convivncia, forjadas em torno de uma proeminncia dos

    direitos s razes, vo emergindo.

    A celeridade desse processo vem acarretando ao direito positivo e aos tribunais uma

    ntida dificuldade de superar os dficits de funcionalidade e rendimento, sendo, por esse

    motivo, atravessados em seu papel garantidor de controle da legalidade por justias

    paralelas e normatividades justapostas.

    As questes emergentes nos espaos infra-estatais, advindas das necessidades reais

    de diversos setores sociais, cujos interesses substantivos e expectativas normativas j no

    so mais recepcionados nas instituies jurdico-judiciais oficiais, so postas em prtica,

    haja vista, pela adeso a um amplo conjunto de diretrizes comportamentais sem qualquerinterferncia estatal.

    A justia e as normas soforjadas fora do ambiente supra-estatal e/ou supranacional,

    produto de processos de convergncia legislativa, harmonizao normativa, padronizao

    tcnico-organizacional e unificao burocrtica prprias do fenmeno da globalizao

    econmica, formao dos grandes blocos comerciais, s experincias de integrao

    regional, proliferao de instituies intergovernamentais e multiplicao de

    organismos transnacionais no emanados diretamente da autoridade dos Estados.

    Pode-se, com isso, perceber o crescimento dos mais variados procedimentos

    negociais, mecanismos informais e rgos paraestatal de resoluo de conflitos, sob a

    forma de tcnicas de mediao, conciliao, arbitragem, autocomposio de interesses e

    auto-resoluo de divergncias e at mesmo da imposio da lei do mais forte nas regies

    perifricas sob inteiro controle do crime organizado e do narcotrfico direito marginal,

    contradireito.

    importante perceber que o protagonismo das relaes internacionais, como se

    apresenta, no mais exclusividade dos Estados nem mesmo das instituiesintergovernamentais, razo pela qual outras normas se expandem com celeridade. Uma

    delas o corpo de prticas, costumes, regras, cdigos de conduta, clusulas contratuais,

    termos padronizados e princpios mercantis forjados por empresas de diferentes portes nas

    redes transnacionais, com o objetivo de conduzir e disciplinar suas transaes criando

    critrios, mtodos e procedimentos para a resoluo de conflitos no comrcio internacional.

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    Outra normatividade que merece relevncia composta pelo conjunto das tcnicas

    desenvolvidas para atender s exigncias de padres mnimos de qualidade, transporte e

    segurana dos bens e servios em circulao no mercado transnacionalizado.

    Na mesma senda, outra limitao estrutural do direito positivo e suas instituies

    judiciais refere-se discrepncia entre seu perfil arquitetnico e a crescente complexidade

    do mundo contemporneo. Suas normas tradicionalmente padronizadas, editadas com base

    no princpio da impessoalidade, da generalidade, da abstrao e do rigor semntico e

    organizado sob a forma de um sistema unitrio, lgico, fechado, hierarquizado, coerente e

    posto como isento de lacunas, so por demais simplistas para atender a pluralidade social

    da atualidade global.O formalismo excessivo dirige-se no sentido de impedir a viso da complexidade

    socioeconmica, bem como a percepo da celeridade com que caminham os conflitos,

    sobretudo em contextos delineados por alteraes tambm cleres, chegando at mesmo

    radicalidade.

    Os princpios gerais, as regras e os procedimentos adotados j no conseguem

    regular, disciplinar nem controlar, acarretando distores significativas em todos os

    segmentos sociais.

    Ressalte-se tambm que muitas das prescries assentadas em sanes de carter

    punitivo-repressivo, aplicadas por tribunais submetidos a ritos processuais excessivamente

    detalhistas e bastante morosos, so incompatveis com as exigncias de celeridade,

    flexibilidade e adaptabilidade dos novos paradigmas de produo e dos novos padres de

    funcionamento dos segmentos sociais globalizados.

    Nesse sentido, o Estado no pode deixar os conflitos ocorrentes desprovidos de

    controle, sob pena de colocar em risco a estabilidade e a coeso social, o que o leva a

    recorrer cada vez mais a conceitos jurdicos indeterminados, a normas de carter programtico com textura e tipologia abertas, o que descaracteriza os tradicionais papis

    exercidos pelos princpios do direito para a resoluo dos casos difceis. Deve-se tambm

    apontar para a edio sucessiva de normas ad hoc para casos que guardam em seu bojo a

    mais absoluta peculiaridade, fornecendo respostas pragmticas a questes pontuais e

    imediatas. Quanto mais a produo normativa caminha nese segmento, mais aumenta o

    nmero de textos legais com alcance bastante circunscrito do ponto de vista territorial e

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    espacial, o que acaba por gerar presses disfuncionais sobre os tribunais, ocasionando uma

    expanso por demais confusa e contraditria do direito positivo.

    Concluso

    Como se pode concluir, o estilhaamento dos espaos polticos e sociais

    anteriormente unidos pelos mecanismos coercitivos das instituies estatais, na dinmica

    do processo de globalizao excludente, parcial, redundou na reduo do tamanho do

    alcance do direito positivo; a paralela expanso do Direito Internacional decorreu na

    emergncia do Direito da Integrao Regional ou comunitrio.

    O Direito da Produo fez ressurgir a Lex Mercatoria, a proliferao de normas

    tcnicas produzidas por organismos multilaterais e o direito marginal, melhor dizendo, a

    norma autoproduzida em guetos, vigentes hoje na cidade do Rio de Janeiro e nas favelas da

    cidade de So Paulo, nos cintures da Cidade do Mxico, Bogot, Lima, Caracas, Buenos

    Aires e Johanesburgo; a ordem jurdica contempornea encontra-se nitidamente

    fragmentada nos mais diversos sistemas normativos independentes e simultaneamentecolidentes entre si justia paralela.

    Diante de todas essas afirmativas, pode-se indagar se factvel continuar agindo e

    pensando com base no paradigma formalista e normativista at hoje prevalecente nos meios

    jurdicos tradicionais, nos centros de operao do direito e nas instituies em que ocorre o

    ensino do direito.

    As crescentes dificuldades enfrentadas pelos cursos jurdicos para compreender e

    enfrentar a evoluo da complexidade social, econmica, poltica e cultural, o vaziointelectual como resposta s realidades emergentes e aos problemas delas resultantes, a

    incapacidade de pensar o impensado, as mudanas ocorridas tanto no arcabouo quanto no

    contedo dos sistemas legais e a crise generalizada dos direitos conduzem a uma resposta

    negativa. Indaga-se, contudo, quais seriam as alternativas possveis para esses paradigmas.

    Como revitalizar o ensino jurdico que, organizado em bases frgeis e incapazes de atender

    as contingncias da realidade, leva confrontos doutrinrios a se converterem em

    verdadeiros campos de batalha profissional e, por extenso, a academia?

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    Com base no fenmeno da transnacionalizao dos mercados e das configuraes

    histrico-sociais e jurdico-institucionais por ele produzidas, como a perda progressiva da

    autonomia do Estado na fixao de suas decises e a notria impotncia dos governos para

    impor limites ao jogo econmico e formular polticas fincadas no atendimento do interesse

    geral, alguns doutrinadores apresentam suas teses de uma educao jurdica despolitizada,

    ou seja, de um ensino jurdico estruturado na acriticidade a servio da lgica mercantil e da

    racionalidade gerencial subjacente aos imperativos da economia globalizada. Nesse sentido,

    o direito tem sido visto como um conhecimento de natureza tcnico-instrumental,

    estruturado na tica da eficincia, o que encarrega o jurista e os doutrinadores do

    fornecimento do instrumento terico e do suporte prtico necessrios tanto na operaoquanto na sua justificao do direito.

    Por outro lado, o direito tem sido concebido como instrumento de emancipao e

    promoo de incluso social, de garantia da autonomia do mundo da vida com relao ao

    mundo da moeda, de recusa de pensamento nico e do globalismo economicista de

    fortalecimento de uma esfera pblica pluralista, de constituio de modos de vida

    livremente compartilhados, de reafirmao dos valores da liberdade, igualdade, da

    solidariedade e da justia social.

    Diante do cenrio de transformaes arquitetnicas na seara jurdica, bem como de

    suas instituies judiciais, quais so as possibilidades que cada um desses pr-paradigmas

    efetivamente tem de tomar o espao at hoje ocupado de modo hegemnico pelo

    formalismo e pelo normativismo nos cursos jurdicos?

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