Eles Falaram Sobre o Inferno

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    Eles falaram sobre o inferno

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    Marcos Granconato

    Eles falaram sobre o inferno

    So Paulo / 2010

    A doutrina da perdio eterna nos primeiros

    escritos cristos

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    Dados Internacionais de Catalogao na PublicaoCIP-Brasil. Catalogao na fonte

    G7624e Granconato, Marcos Eles falaram sobre o inferno: a doutrina da perdio eterna nosprimeiros escritos cristos /Marcos Granconato. So Paulo: Arte Editorial,2010.

    196 p.: 14X21 cm ISBN: 978-85-98172-79-8

    1. Inferno 2. Perdio eterna 3. Castigo eterno 4. Teologia histrica5. Doutrina 6. Pais apostlicos I. Titulo

    226 CDD

    Copyright 2010 por Ar te Editorial. Todos os direitos reservados.

    Coordenao editorial e projeto grfico: Magno PaganelliPreparao: Hermenia Editora Ltda.Reviso: Simone Matias1 Edio: junho / 2010

    Publicado no Brasil por Arte EditorialTodas as citaes bblicas foramextradas da Nova Verso Internacional(NVI), 2001, publicada pela EditoraVida, salvo indicao em contrrio.

    Rua Parapu, 574 - Itaberaba02831-000 - So Paulo - [email protected]

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    Sumrio

    PREFCIO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

    INTRODUO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .11

    1- O AMBIENTE EM QUE SE DESENVOLVEU AIGREJA DO SCULO II. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .21

    A hostilidade das autoridades romanase do povo em geral. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22O degradante ambiente moral do Imprio Romano. . . 32As diversas religies no cenrio do sculo II. . . . . . . 38O contexto intelectual dos primeiros pais da igreja. . . 50

    2- AS MARCAS DISTINTIVAS DA IGREJA DO SCULO II. .63A recepo dos escritos do Novo Testamento. . .63A figura do bispo monrquico. . . . . . . . . . . . . . .67O testemunho de dons e feitos extraordinrios. . .69O perigo das heresias. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .72

    3- OS PAIS APOSTLICOS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81Clemente de Roma. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 82A Didaqu. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84Incio de Antioquia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85Policarpo de Esmirna. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87Papias de Hierpolis. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89Epstola de Barnab. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 90

    O Pastor de Hermas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 92

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    A Epstola a Diogneto. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96

    Avaliao. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99

    4- OS APOLOGISTAS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103Justino Mrtir. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105Aristides de Atenas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 119Taciano o Srio.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 120Atengoras de Atenas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123Tefilo de Antioquia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 129Avaliao. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135

    5- IRINEU DE LIO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139As distores do gnosticismo sobreo destino final. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141Aspectos gerais da doutrina do futurocastigo de Deus. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 150A salvao de Ado das penas infernais . . . . . 157A liberdade humana como fundamentopara a responsabilidade dos mpios. . . . . . . . . . 159A habitao do Esprito Santo como

    requisito essencial para a posse do reino futuro. . . 163A f no Deus trino e a remoodo julgamento. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169Dados complementares e avaliao. . . . . . . . . . 172

    CONCLUSO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 183

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . 189

    APNDICETertuliano de Cartago e suacrtica ao aniquilacionismo. . . . . . . . . . . . . . . . . 193

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    No me importa se hoje esperais frasesbem feitas. meu dever advertir-vos,citando as Escrituras. No tardeis a vosvoltar para o Senhor, no o postergueisde um dia para outro, pois que a ira delevir quando no esperardes. Deus sabequanto estremeo em meu trono episcopalquando ouo esse aviso. No posso calar-me; sou forado a preg-lo. Repleto de

    temor, encho de temor tambm a vs.(Agostinho de Hipona)

    Ao meu av Antnio, hoje no ocaso da

    vida, que me mostrou a porta para avida que no tem ocaso.

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    Recebi com muito prazer a solicitao do Pr. Marcos MendesGranconato no sentido de prefaciar este volume. O Pr. Marcosfoi, durante alguns anos, nosso aluno no Centro Presbiterianode Ps-Graduao Andrew Jumper, um departamento doInstituto Presbiteriano Mackenzie, em So Paulo. Ele concluiucom brilhantismo o curso de Mestrado em Teologia, tendo se

    graduado no final de 2009. Sua rea de concentrao foiaquela pela qual sou responsvel, ou seja, Teologia Histrica.Como parte dos requisitos do curso, escreveu e defendeu comhabilidade e competncia o trabalho que ora publicado naforma deste livro.

    O primeiro mrito do autor em sua pesquisa foi abordaruma doutrina esquecida e subestimada por um grande nmerode cristos nos dias atuais. Numa poca em que o pragmatismoe a mentalidade do marketing religioso tm dominado muitas

    igrejas, considera-se desagradvel e at mesmo de mau gostotratar de um tema difcil e impopular como esse a doutrinada perdio eterna. Todavia, o Pr. Marcos argumenta com razoque esse tpico no s respaldado pelas Escrituras, mas foidefendido unanimemente pelos antigos pensadores cristosconhecidos como pais da igreja.

    No podendo tratar do assunto em todo o perodopatrstico, como era seu desejo inicial, o autor se ateve aos

    pais da igreja do 2 sculo, os forjadores iniciais da teologia

    Prefcio

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    crist. Ele examinou catorze textos e escritores classificados

    em trs categorias: os pais apostlicos, os apologistas e obispo Irineu de Lio. Antes de analisar as contribuies dessasautoridades, ele delineou em dois captulos introdutrios ocontexto e as caractersticas distintivas da igreja ps-apostlica. Essa contextualizao revela por que motivos apreocupao com a doutrina da perdio eterna foi alvo dointeresse dos cristos do 2 sculo.

    O Pr. Marcos demonstra que os pais daquele perodoconsideraram essa doutrina uma parte essencial damensagem crist, utilizando-a como instrumento eficaz paraproteger e divulgar o cristianismo diante das ameaas dasperseguies, dos atrativos da sociedade pag e dos desafiosdas seitas herticas. Em sua argumentao, ele utiliza umagrande quantidade de fontes primrias e estudos acadmicossobre o tema, insistindo na relevncia e atualidade dessadoutrina menosprezada, porm importante para a f crist.

    O Pr. Marcos Granconato est de parabns por essa valiosa

    contribuio para o campo da teologia histrica. Fao votosdo que este livro seja uma significativa fonte de instruo eencorajamento para os cristos contemporneos.

    Dr. Alderi Souza de Matos, Th.D.Maio de 2010

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    A escatologia crist, quando considerada em seus aspectosbsicos, no apresenta grandes obscuridades. Na verdade, possvel fazer sua exposio em poucas linhas, numa snteseque abrangeria as bnos da salvao desde j alcanadaspelo crente, mas desfrutadas de modo mais completo por suaalma, aps a morte; a ida das almas dos incrdulos para o

    inferno onde, em meio a terrveis suplcios, aguardam asentena definitiva do juzo do grande dia; a segunda vindade Cristo; a ressurreio dos mortos; o Juzo Final queredundar no envio dos mpios, em corpo e alma, para o lagoque arde em fogo e enxofre; e, finalmente, o estabelecimentode novo cu e nova terra, onde os santos vivero com Deusem eterna bem-aventurana.

    Porm, se de um lado o tronco principal desse ramo dateologia bblica est livre de conflitos, de outro, a tentativa deperscrutar cada componente da sntese exposta acima revelacerta variedade de possibilidades e mistrios sobre os quaisos telogos de todas as pocas tm debatido na busca deconceitos que melhor se ajustem mensagem transmitida peloSenhor e seus apstolos.

    Nos dias atuais, um dos temas conectados escatologia quetem provocado certo calor no debate teolgico precisamente oque trata do destino final dos mpios. Telogos de renome

    apresentam-se divididos. De acordo com Vernon C. Grounds h

    Introduo

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    12 ELES FALARAM SOBRE O INFERNO

    pelos menos cinco posies comuns entre os estudiosos modernos

    sobre o que acontece com o ser humano depois da morte.1

    Grounds destaca em primeiro lugar o agnosticismo ,segundo o qual impossvel obter qualquer certeza de queexiste uma realidade chamada inferno, pois, conforme esseentendimento, no se pode determinar o que ocorre aps aextino da vida humana neste mundo.

    Em seguida vem oaniquilacionismoque, em sua forma maisradical, afirma que no h nenhuma dimenso alm. De acordo

    com essa viso, depois da morte o homem simplesmente apodrece.A terceira concepo denomina-se universalismoe afirmaque nenhum membro da raa humana se perder, uma vezque, conforme esse ensino, no existe nenhum inferno eterno.Telogos modernos como Karl Rahner, John A. T. Robinson eJohn Hick so os mais destacados proponentes do chamadoinclusivismo soteriolgico, a noo otimista que no deixaespao para a perdio eterna de ningum. Esse entendimento reforado tambm na atualidade pelos expoentes da teologia

    do processo e do tesmo aberto.2Outra viso teolgica que se destaca no campo do destino

    dos mortos ocondicionalismo, segundo o qual a imortalidade uma ddiva de Deus concedida a todos os homens, mas spodero ret-la aqueles que preencherem a condio de crerem Cristo. Para os condicionalistas, os que rejeitam o Salvadore no se arrependem sero aniquilados, caindo na inexistnciacompleta.3Assim, esse modelo defende a perenidade do efeito

    do castigo e no da sua durao.1GROUNDS, Vernon C. O estado final dos mpios In: SHEDD, Russell; PIERATT,

    Alan (Orgs.). Imortalidade. So Paulo: Vida Nova, 1992. p. 131-137.2Uma anlise mais detalhada dessas diferentes concepes encontra-se em FERREIRA,

    Franklin; MYATT, Alan. Teologia Sistemtica: uma anlise histrica, bblica eapologtica para o contexto atual. So Paulo: Vida Nova, 2007. p. 308-310 e 1058-1060. Ver ainda McGRATH, Alister E. Teologia sistemtica, histrica e filosfica:uma introduo teologia crist. So Paulo: Shedd, 2005. p. 638-640.

    3 JOHNSON, A. F. Imortalidade condicional. In: ELWELL, Walter A. (Org.).Enciclopdia histrico-teolgica da igreja crist. So Paulo: Vida Nova, 1990.

    vol. 2, p. 319.

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    INTRODUO 13

    Os proponentes dessa doutrina, tambm conhecida como

    imortalidade condicional, geralmente aceitam a possibilidadede um perodo indefinido de sofrimento no inferno, antes datotal aniquilao do mpio. A noo de um inferno eterno eliteral, porm, de acordo com essa concepo, deve serrecusada, pois, conforme entendem seus defensores, tal ideiano se harmoniza com o conceito de um Deus que administraa justia de forma justa e proporcional, nem tampouco com aesperana crist referente ao estabelecimento de umarealidade futura absolutamente livre do mal em todas as suas

    formas. Ademais, dizem, a conscincia da existncia do infernoarruinaria a alegria dos santos no cu, impedindo o desfruteda felicidade plena.

    As razes da doutrina da imortalidade condicional soantigas, sendo possvel detect-las de forma um tanto ofuscadaj em Irineu de Lio.4 Porm, ela tem conquistado amploespao nos crculos teolgicos atuais, sendo seu maisdestacado representante o famoso escritor e telogo John Stott,

    contra quem James I. Packer escreveu um artigo intituladoReconsiderando o aniquilacionismo evanglico: Uma anlisedo pensamento de John Stott sobre a no existncia do inferno,disponibilizado em portugus no site Monergismo.5

    Finalmente, h aortodoxia cristque aceita o inferno comouma realidade bblica, um lugar de sofrimento perene econsciente reservado para as almas dos incrdulos. Ali, emmeio a indizveis tormentos, os espritos dos mpios aguardamo dia da ressurreio, quando comparecero diante do trono

    de Cristo e, uma vez julgados e condenados, sero afinallanados em corpo e alma no lago de fogo, onde sofrerosuplcios inexprimveis ao longo da eternidade sem fim.

    4IRINEU DE LIO. Contra as heresias. II, 34:3; IV, 38:3. So Paulo: Paulus, 1995.p. 240 e 506.

    5PACKER, James I. Reconsiderando o aniquilacionismo evanglico: uma anlisedo pensamento de John Stott sobre a no existncia do inferno. Disponvel em:

    . Acesso em: 10 ago. 2009.

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    A notvel extenso da controvrsia que hoje existe acerca

    do futuro dos maus fato que aponta no somente para aatualidade desse tema, mas tambm para a sua relevncia. Issoporque o assunto da existncia ou no de um castigo eternono somente traz implicaes para a concepo de Deus e dohomem, mas tambm produz desdobramentos prticos,especialmente nos mbitos pastoral e missionrio, influenciandoa temtica da pregao, definindo a forma de abordagemevangelstica e dando proclamao crist o tom correspondentede sua relevncia e urgncia. De fato, quaisquer que sejam as

    concluses acolhidas pela igreja sobre esse assunto, sua adoopromover impactos profundos sobre a mensagem e sobre asmetas do povo de Deus, gerando a necessidade de uma eventualredefinio do papel do cristianismo neste mundo.

    Sendo, assim, bvia a relevncia e a atualidade da doutrinado castigo eterno, esta obra pretende expor o pensamentodos telogos do sculo II sobre o assunto, destacando que oensino sobre a perdio perene dos mpios, conforme adotado

    pela ortodoxia crist, foi parte essencial da mensagemanunciada pelos primeiros sucessores dos apstolos. Nestelivro tambm ser demonstrado que os pastores e mestrescristos daqueles dias comprovaram a utilidade e a eficciado ensino bblico sobre o inferno tanto para a aoevangelstica como pastoral, utilizando-o para convidar oshereges e os pagos f na verdade, bem como paradesencorajar nos crentes a prtica do mal e a apostasia.

    Em sntese, este livro pretende demonstrar a validade da

    seguinte proposio: os pais da igreja do sculo IIconsideraram a doutrina da perdio futura parte essencialda mensagem crist e fizeram uso dela como instrumentoeficaz na proteo e divulgao do cristianismo ameaadopela perseguio, pelo fascnio do mundo e pelas atraesdas seitas herticas.

    preciso esclarecer que a concentrao da presente anlisenos escritos do sculo II no foi resultado de uma escolha

    casual. Conhecer o que ensinaram os autores daquele perodo

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    INTRODUO 15

    sobre a perdio eterna especialmente importante por duas

    razes. A primeira hermenutica; a segunda, pastoral.No tocante razo hermenutica, deve-se considerar que

    os escritores cristos do sculo II so os que se encontramcronologicamente mais prximos dos apstolos, sendo naturalque detenham uma compreenso de suas doutrinas menossujeita a tendncias filosficas e culturais que, com o tempo,foram se infiltrando na mentalidade da igreja, moldando atcerto ponto suas concluses exegticas.

    Hamman est certo ao dizer que os que asseguravam acontinuidade crist no sculo II estavam impregnados derecordaes apostlicas.6 Por isso, William Crockett, quandodiscute os meios mais eficazes para descobrir o exato sentidodo que os autores bblicos escreveram sobre o destino dosmpios, aponta como uma das vias essenciais o estudo dospais da igreja do sculo II:

    Uma forma de abordar essa questo examinar o que os

    cristos acreditavam no fim do perodo de formao doNovo Testamento. Se os cristos do sculo II adotaramfirmemente uma ou outra viso, deve-se concluir que essamesma viso teria sido possivelmente a assumida pelosescritores do Novo Testamento, uma ou duas geraes antes.De fato, o testemunho que advm da primeira metade dosegundo sculo muito consistente no tocante ao destinodos maus. Nos tempos dos Pais Apostlicos, os cristosacreditavam no inferno como um lugar de sofrimento eternoe consciente.7

    A partir desse ponto, Crockett d provas de suasasseveraes citando trechos da Carta de Incio aos Efsios,da Epstola a Diogneto, da Segunda Epstola de Clemente edoMartrio de So Policarpo. Em seguida, ele conclui:

    6HAMMAN, A. A vida cotidiana dos primeiros cristos (95-197). So Paulo:Paulus, 1997. p. 5.

    7CROCKETT, William. Four views on hell. Grand Rapids, Michigan: Zondervan

    Publishing House, 1996. p. 65. Minha traduo.

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    No h nenhuma dvida de que no incio do segundo sculo,

    os cristos acreditavam num inferno eterno, onde oscondenados permaneciam conscientes... No muito depoisde uma gerao aps a composio do Evangelho de Mateuse do livro de Apocalipse, com suas srias advertncias aosincrdulos, o que se encontra no a noo de aniquilao,mas sim de um inferno perene como a crena comum acercada punio dos maus.8

    O autor supracitado destaca a importncia dos escritores

    do perodo subapostlico para a boa compreenso do NovoTestamento por razes bvias. De fato, um nmero menor decamadas histricas separa os telogos do sculo II da igrejado Novo Testamento e ainda que isso, conforme se ver, notenha garantido absoluta fidelidade aos ensinos dosapstolos, possvel colher nas obras dos mestres maisantigos, elementos que se harmonizam melhor com opensamento cristo original e puro.

    Ora, ningum pode negar a importncia desse fator para o

    telogo moderno que, em seu trabalho exegtico, tem realinteresse em conhecer a mente dos autores bblicos e ouvir asua voz livre das interferncias que a distncia cronolgica ecultural produz. Tendo, pois, os pais da igreja do sculo IIvivido em poca to prxima do perodo apostlico, possvelconsider-los fontes preciosas de indcios dos reaissignificados pretendidos pelos escritores neotestamentriosem suas obras tidas como cannicas.

    Se h uma relevncia hermenutica na busca do ensinocristo do sculo II, h tambm nisso uma relevncia pastoral.O sculo II abrangeu anos em que a igreja passou por terrveisconvulses. A perseguio promovida pelo estado romano einflamada pelo dio popular; a multiplicao das seitas quese diziam crists e arrastavam consigo os crentes menospreparados, desafiando, com mestres ousados como Marcio,

    8

    Ibid., p. 67. Minha traduo.

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    INTRODUO 17

    as doutrinas principais da f, colocam a igreja daqueles tempos

    entre as que, ao longo da histria, mais foram ameaadaspela apostasia. Isso a transforma numa fonte singular nos de motivao firmeza para os cristos de todas as pocas,mas tambm de informao acerca das bases sobre as quaisuma igreja deve se manter a fim de no ser arrastada peloerro dos hereges e pela negao da f diante do perigo.

    Ora, os pais da igreja do sculo II ensinam por seu exemploque uma das formas de promover a perseverana na verdade conscientizar os crentes, mostrando-lhes qual o salrioterrvel e duradouro da mentira. Eles se esforaram, assim,por manter vivas na lembrana de seus leitores e ouvintes asadvertncias de Cristo sobre um fogo que nunca se apaga,prestes a torturar os que negam a f quando perseguidos ouse voltam para os ensinos herticos, envolvendo-se, inclusive,com suas prticas imorais e profanas.

    As razes supra mencionadas justificam a escolha dosegundo sculo como perodo cuja anlise revela aspectos

    fidedignos e proveitosos do pensamento cristo acerca dodestino do homem sem Deus, conforme consta da proposioenunciada acima. A referida proposio, porm, deve ter suaveracidade demonstrada de forma sistemtica e objetiva, oque se far atravs dos cinco captulos que compem a parteprincipal da presente obra.

    O primeiro captulo descrever o ambiente em que a igrejado sculo II se desenvolveu, apontando as dificuldades queenfrentou advindas da hostilidade do estado romano e dopovo em geral e tambm assinalando o ambiente moral dasociedade daqueles dias. A meno desses fatores importanteporque atuavam como estmulos ao abandono da f, incitandoos mestres da igreja a proclamar a realidade do juzo de Deus.

    As diversas religies e filosofias que se propagavam nosculo II tambm so expostas no primeiro captulo deste livrocomo elementos que compunham o cenrio social daquelesdias e que foram teis para familiarizar os homens com a

    noo da continuidade da vida, tornando mais eficazes as

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    palavras dos pastores da igreja que tentavam influenciar o

    pensamento e a conduta de seus ouvintes ao falar sobre aspenas e recompensas que aguardam os homens no alm.

    O segundo captulo apresenta uma descrio geral da igrejada poca, indicando a influncia que o Novo Testamento exerciasobre ela, destacando sua crena em sinais miraculosos,apontando o surgimento e a funo essencial do bispomonrquico e mencionando os principais desvios doutrinriosque se insinuavam em suas fileiras. Todas essas informaesso apresentadas em conexo com a doutrina da perdioeterna, demonstrando o modo como cada um desses fatoresserviu como impulso positivo ou negativo para o anncio dodestino terrvel que Deus preparou para os descrentes.

    Os captulos 3 e 4 expem e analisam a obra literria dospais apostlicos e dos apologistas, respectivamente. O examedos escritos desses telogos revela sua crena unnime naexistncia do inferno e a utilidade apologtica, pastoral eevangelstica que viam nesse ensino.

    Evidentemente, a anlise da doutrina da perdio eternanos escritos dos pais apostlicos e dos apologistas no podeser feita parte da observao de suas noes de soteriologia.Por isso, os captulos 3 e 4 da presente obra do especialdestaque s lies daqueles telogos relativas ao que podelivrar o homem da ira vindoura, bem como ao modo como aobra de Cristo se relaciona com esse livramento. Nessaquesto, ficar demonstrado que o anseio apologtico e o zelopastoral dos mestres cristos do sculo II estorvaram umpouco seu cuidado exegtico, fazendo-os conceder um espaoamplo demais para as boas obras e para a constncia na igrejacomo requisitos essenciais salvao.

    O telogo de maior destaque do sculo II foi, sem dvida,Irineu de Lio. Ainda que, conforme ser visto, seus escritossejam inconclusivos em alguns aspectos, neles possvelencontrar uma das fontes mais ricas do pensamento cristoda poca sobre o destino futuro do homem sem Deus. Sem

    dvida, Irineu desponta como exemplo mximo de telogo

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    INTRODUO 19

    que considerou a doutrina do castigo no alm parte essencial

    da mensagem crist, fazendo uso dela como instrumentoeficaz para a propagao da f e para a proteo docristianismo ameaado pela perseguio, pelo fascnio domundo e pelos atrativos das seitas herticas.

    Nesse ltimo aspecto, os escritos de Irineu assumem umcarter notadamente apologtico no somente com o objetivode desencorajar a apostasia, mas tambm para demonstrarquo distantes as propostas dos falsos mestres sobre a vidaps morte se situavam da verdade exposta nos evangelhos e,assim, impedir que noes contrrias ao ensino do NovoTestamento e da boa tradio fossem absorvidas ousimplesmente toleradas pela igreja. Dada a importncia deIrineu como renomado telogo do sculo II todo o captulo 5 dedicado anlise de sua vasta obra literria.

    Em sua concluso, este livro destaca a veracidade da teseproposta, reala os pontos principais da pesquisa e apresentauma breve reflexo sobre a necessidade de uma nova nfase

    sobre a doutrina das penas futuras para a manuteno dosalutar conceito ortodoxo do ser de Deus.

    Em virtude da vastido de sua obra literria, bem comopelo fato de ter vivido na transio do sculo II para o III, estetrabalho no analisar os escritos de Tertuliano de Cartago.Porm, num breve apndice ser exposta sua crtica aoaniquilacionismo, mostrando que o grande telogo cartaginsse alinhava corrente principal do pensamento cristo antigo.

    Para a realizao dos fins propostos, o mtodo usado napreparao desta obra envolveu a anlise integral das fontesprimrias mencionadas nos captulos 3 a 5. O exame de fontessecundrias tambm foi empregado na composio deste livro,uma vez que tais fontes so especialmente proveitosas paraa elaborao de uma avaliao abrangente e equilibrada daobra dos telogos estudados. A inegvel aptido de inmerosescritores modernos que se debruam sobre a histria dopensamento cristo faz de seus escritos material obrigatrio

    de pesquisa para quem pretende adquirir uma viso precisa e

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    equilibrada da teologia pr-nicena. A lista de referncias

    bibliogrficas ao final mostra que um nmero expressivodessas obras foi consultado na composio deste livro.

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    Elementos externos e internos moldaram at certo ponto ateologia da igreja do sculo II. No tocante especificamente doutrina das penas infernais ou do destino definitivo do corpo eda alma dos perdidos, notvel que as variadas formas deameaa que se levantaram contra a f foram fatores

    determinantes dos contornos tomados por esse aspecto doensino cristo, bem como da considervel tnica que lhe foi dada.

    De fato, o grau de nfase conferido poca ao futuro dosmpios teve como causa a presena de perigos que chegavam apr em jogo a existncia do prprio cristianismo. Esses perigoslevaram os mestres eclesisticos de ento a realar o lado terrvelda mensagem de Cristo, ou seja, a parte do evangelho quedescreve uma realidade no alm marcada por dores esofrimento. Os telogos daquele perodo entenderam que uma

    forma eficaz de proteger a igreja e at mesmo de propagar a fera insistir na proclamao de um destino amargo reservadopara as almas dos descrentes, especialmente aqueles que eramcontados entre os perseguidores da igreja, os idlatras, os falsosmestres e os apstatas.

    Entre os perigos que cercavam a igreja no sculo II, quatromerecem destaque em virtude da magnitude de seu impactosobre o pensamento cristo: a hostilidade das autoridades

    romanas e do povo em geral; o degradante ambiente moral

    O ambiente em quese desenvolveu a Igreja

    do Sculo II

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    da sociedade como um todo; as diferentes religies pags; e

    as diversas filosofias propostas pelos intelectuais da poca.Todos esses fatores influenciaram de alguma forma o ensinocristo sobre o inferno e, por isso, devem ser objeto especialde anlise.

    A HOSTILIDADE DAS AUTORIDADESROMANAS E DO POVO EM GERAL

    O estudo das ltimas dcadas do sculo I deixa fora dedvida que por aquele tempo tanto o estado romano como asociedade em geral olhavam os cristos com antipatia edesconfiana. Tcito deixa transparecer que nos dias de Neroos crentes j eram considerados pelo povo uma casta dehomens detestados por suas abominaes.1

    Os comentrios que, desde ento, circulavam e eramalimentados pelo vulgo propagavam falsamente que os

    cristos eram ateus e que, em suas reunies, praticavamincesto e canibalismo.2 Isso fez com que desde cedo osmagistrados punissem os cristos sem que, contudo, houvesseclareza quanto aos crimes de que eram acusados ou qualquerdefinio precisa quanto ao modo como o processo contra oscrentes deveria se desenvolver.

    Essa situao comeou a preocupar ainda mais asautoridades em face do notvel crescimento que o cristianismoexperimentou nos dois primeiros sculos de sua existncia.

    Pierre Pierrard ensina que, especialmente durante o sculo II,

    1TCITO. AnaisXV, 44. In: BETTENSON, H. Documentos da Igreja Crist.SoPaulo: ASTE Simpsio, 1998. p. 27.

    2Justino de Roma acusa Crescncio, o filsofo cnico que mais tarde o denuncioue o levou morte, de espalhar calnias contra os cristos com o fim de agradar amultido pervertida (Segunda Apologia 8:2). Isso mostra que no somente avulgo ignorante propagava boatos caluniosos contra a igreja, mas tambmoponentes de destacada profundidade intelectual, o que dava fora e credibilidade

    maiores s acusaes feitas contra os crentes.

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    a igreja progrediu por toda parte. Ela se expandiu pelas

    comunidades que se multiplicavam no interior da sia, naSria, no delta e no vale do Nilo e na Cirenaica (atual Lbia). Aigreja tambm se alastrou alm das fronteiras do imprio,chegando, j nessa poca, Mesopotmia. Pierrard prossegue:

    No Ocidente, da Ilria Espanha, implanta-se uma centenade igrejas: a Itlia central, o sul da Glia e a costamediterrnea da Espanha so as zonas mais favorecidas.A (grande) Bretanha e a Siclia conhecem a Cristo;

    encontram-se cristos nas cidades-fronteiras, face aosbrbaros, na margem esquerda do Reno e na margem direitado Danbio. O norte da frica abre-se amplamente para oEvangelho.3

    Sob o ponto de vista meramente humano, existe o consensode que essa difuso sem paralelos da nova f se deveu nosomente pregao e ao testemunho de seus adeptos, mastambm sua completa independncia da poderosa estruturaestatal e sua insistncia num estrito cdigo moral.4 Sejamquais forem, porm, as causas do notvel crescimento da igrejanesse perodo, o fato que tal fenmeno despertou a atenodas autoridades que viram na nova f uma ameaa para ostatusquo reinante, conforme ser demonstrado a seguir.

    Foi nesse contexto de expanso da nova religio,considerada perigosa e inimiga dos bons costumes, que Plnio,o Jovem, governador da Bitnia, escreveu ao imperador Trajano

    (98-117) por volta do ano 112, a fim de obter orientaesacerca do modo como deveria conduzir os processos contraos cristos. Em sua carta, Plnio exps como agia em seutribunal, condenando morte os que se confessavam cristos,torturando alguns para obter deles confisses de crimes e

    3PIERRARD, Pierre. Histria da igreja.So Paulo: Paulinas, 1982. p. 26.4POTTER, David. Emperors of Rome: The story of imperial Rome from Julius

    Caesar to the last emperor. London: Quercus, 2007. p. 129.

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    investigando as prticas da nova religio para descobrir se,

    de fato, eram ofensivas razo, como afirmava o vulgo.Plnio revela em sua carta que sua rigidez no trato com os

    membros da seita crist estava surtindo efeito, pois percebiaum reaquecimento das prticas pags que, por causa dadifuso extraordinria do cristianismo, tinham cado emquase total abandono:

    Esta superstio contagiou no apenas as cidades, mas asaldeias e at as estncias rurais. Contudo, o mal aindapode ser contido e vencido. Sem dvida, os templos queestavam quase desertos so novamente frequentados; osritos sagrados h muito negligenciados, celebram-se denovo; onde, recentemente, quase no havia comprador, sefornecem vtimas para sacrifcios. Esses indcios permitemesperar que, dando-lhes oportunidade de se retratar, legiesde homens sejam suscetveis de emenda.5

    Em resposta a Plnio, o imperador Trajano elogiou suaconduta e a encorajou estabelecendo os limites de seuprocedimento e delineando uma nova poltica de perseguiofadada a permear as relaes da igreja com o estado ao longode todo o sculo II. De acordo com essa poltica, no haviacomo, no caso dos cristos, estabelecer um curso especficode ao. Assim, regra geral, o estado no deveria iniciar umabusca ou qualquer espcie de caa aos cristos, mas no casode haver denncia, o dever do magistrado seria investigar e

    punir, se a acusao fosse confirmada. Trajano aindadeterminou que quem negasse as acusaes deveria mostrarque no era cristo mediante a adorao formal dos deuses.Fazendo isso, o ru seria perdoado, mesmo que tivesse sidocristo no passado.6

    5PLNIO. Epistola X (ad Trajanem), XCVI. In: BETTENSON, Documentos daIgreja Crist, p. 29.

    6

    POTTER, Emperors of Rome,p. 129.

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    Tertuliano de Cartago, na sua Apologia, escrita em cerca

    de 197, indignou-se diante da contradio que viu nessapoltica:

    Oh, que perplexidade entre as razes de estado e a justia! Elenos declara inocentes ao proibir que sejamos perseguidos, eao mesmo tempo ordena que sejamos punidos comocriminosos. Que mistura de bondade e crueldade, conivnciae punio, tudo mesclado em um s ato! Infeliz edito quetenta assim se evadir ao mesmo tempo em que se embaraa

    em sua prpria resposta ambgua. Se nos condena, por qued ordens contra a nossa perseguio? Se considera um malnos perseguir, por que no nos absolve? 7

    Percebe-se que, na tica do advogado do cristianismo, oabsurdo da poltica de Trajano estava no fato de deixar oscristos em paz ao mesmo tempo em que os punia. Ele, assim,aponta o absurdo de condenar algum contra quem nemmesmo buscas tinham sido ordenadas. Nesse sentido,

    Tertuliano levanta perguntas incmodas: Seria certo executarum homem que jamais deu motivos para que o poder pblicosasse em seu encalo? Que estranhos criminosos eram essesque no deveriam jamais ser procurados, mas sempre punidosse, por acaso, chegassem aos tribunais? 8

    Eusbio de Cesaria, por sua vez, em sua HistriaEclesistica viu de forma positiva a deciso de Trajano,atribuindo a ela o fim de um perodo em que a perseguio

    7TERTULIANO DE CARTAGO. Apologia. Captulo 2. In: REEVE, W.; COLLIER,J. (Orgs.). The apology of Tertullian and the meditations of the emperor MarcusAurelius Antoninus.London: Griffith Farran & Co, s/d.. p. 8. Minha traduo.

    8NaApologia Tertuliano aponta ainda outros erros cometidos pelas autoridadescontra os cristos. Dentre eles, os seguintes merecem destaque: odiar algo sobre oque nada sabiam; opor-se no a uma espcie de crime, mas simplesmente a umnome; proibir os cristos de pronunciar qualquer frase em sua defesa; aplicar atortura para que os rus negassem o crime, enquanto em quaisquer outros casos atortura era aplicada para que o acusado confessasse o crime; e deixar vigorar uma

    lei que no protegia valor algum e que fora criada com base em meras opinies.

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    aos cristos havia chegado ao grau mais elevado.9Porm, ele

    mesmo reconhece que a partir desse tempo ciladas comearama ser armadas contra a igreja, tanto pelo povo como pelasautoridades regionais. Obviamente, sob a nova polticaestabelecida pelo imperador, era muito fcil prejudicar oscrentes. De fato, em face das novas orientaes de Roma, oscristos do sculo II se viram debaixo da constante ameaade, sob qualquer pretexto e por qualquer desafeto, seremdenunciados s autoridades e, diante delas, serem forados anegar a f sob pena de torturas e morte.

    A principal falha da poltica de Trajano, como osapologistas do sculo II demonstraram e a prpria experinciaconfirmou, foi que os cristos passaram a ser condenadossem que fossem comprovadas as acusaes de crimes feitascontra eles. Ao chegarem denncias acompanhadas decalnias que atribuam aos crentes as prticas maisabominveis, os magistrados no investigavam se taisacusaes eram verdadeiras, limitando-se apenas a averiguar

    se o acusado era cristo.10

    Em caso positivo, a sentena era amorte, sem haver prova alguma de que o ru era uma ameaapara a sociedade. Em alguns casos, as denncias sequer eramacompanhadas de acusaes de crimes, pois bastava ao juizverificar se o ru era cristo para conden-lo pena mxima.

    Exemplos de excessos desse tipo so fornecidos por Justinode Roma num caso que relata em sua Segunda Apologia. Eleconta a histria de um casal dissoluto em que um dos cnjuges,

    9EUSBIO DE CESARIA. Histria eclesisticaIII, 33:2. Coleo Patrstica. SoPaulo: Paulus, 2008. vol. 15, p. 159.

    10Alm disso, havia a produo de provas falsas. Eusbio revela que na Glia, durantea perseguio promovida por Lcio Vero (161-169), alguns escravos quepertenciam a cristos foram presos e torturados para que falsamente acusassemseus senhores de festins de Tiestes (antropofagia), de incestos de dipo e de outrasaes contrrias natureza e aos bons costumes (Histria eclesistica V, 1:14).Justino faz a mesma denncia no captulo 12 da sua Segunda Apologia: De fato,buscando condenar morte alguns cristos, fundados nas calnias contra ns,arrastaram tambm escravos, meninos e mulheres e, por meio de incrveis

    tormentos, os foraram a repetir contra ns o que o povo inventa....

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    a mulher, converteu-se ao cristianismo, permanecendo o

    homem na velha vida. A partir de ento, no suportando elaas prticas libertinas do marido e percebendo que ele se faziasurdo aos seus constantes apelos de arrependimento, decidiu,depois de algum tempo, apresentar s autoridades o que eradenominado libelo de repdio, vindo a divorciar-se.

    Justino prossegue dizendo que o marido, movido pordesejos de vingana, levou aos magistrados a acusao deque sua mulher era crist e, diante dessa simples denncia,ela foi obrigada a responder diante dos tribunais. Ocorreu,porm, que a mulher solicitou aos magistrados umaautorizao para dispor dos seus bens antes de se defenderda acusao que lhe fora feita. O pedido foi deferido e o marido,irritado por no poder fazer nada mais contra a mulher, voltou-se contra Ptolomeu, um dos mestres da igreja de que sua ex-esposa fazia parte.

    O ardil que usou mostra como os cristos estavam expostosa ser facilmente prejudicados por seus inimigos. Justino

    informa que o centurio que prendera Ptolomeu era amigodo que antes fora marido, e este pediu que ele lhe perguntasseapenas se era cristo. Ptolomeu respondeu que sim e issobastou para que fosse acorrentado e atormentado por muitotempo no crcere.

    O desfecho da histria reala ainda mais a gratuidade comque os cristos eram condenados pena mxima:

    Finalmente, quando Ptolomeu foi levado diante do tribunalde Urbico, a nica pergunta que lhe fizeram foi igualmentese era cristo. De novo, consciente dos bens que devia doutrina de Cristo, confessou o que ensinamento da divinavirtude... Urbico ordenou que ele fosse condenado aosuplcio; mas certo Lcio, que tambm era cristo, vendoum julgamento ser realizado to contra a razo, disse aUrbico: Por que motivo condenaste morte um homemque ningum provou ser adltero, ou fornicador, ouassassino, ou ladro ou salteador, ou, por fim, ru de algum

    crime, mas que apenas confessou levar o nome de cristo?

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    Urbico, no ests julgando de modo conveniente ao

    imperador Pio, nem ao filho de Csar, nem ao sacro Senado.Urbico no respondeu nada. Dirigiu-se a Lcio e lhe disse:Parece-me que tambm tu s cristo!

    Lcio respondeu: Com muita honra. E sem mais, oprefeito deu ordem para que ele tambm fosse conduzidoao suplcio.11

    Eusbio conta que a injustia dessa prtica gerouinconformismo no somente entre os pais da igreja do sculoII, mas at mesmo em alguns membros da aristocraciaromana. Ele narra que por aquele tempo o governador SernioGraniano escreveu ao imperador Adriano, que sucedeuTrajano, reinando de 117 a 138, dizendo no ser justo que oscristos fossem mortos sem nenhuma acusao oujulgamento, atendendo apenas ao clamor popular. SegundoEusbio, em face do apelo de Graniano, o imperador escreveua Mincio Fundano, procnsul da sia, proibindo que

    julgamentos fossem feitos sem acusao bem fundamentada.A carta de Adriano, reproduzida por Eusbio, a certa alturadiz o seguinte:

    Se, pois, os provincianos podem manifestamente manteressa petio contra os cristos, pleiteando-a perante otribunal, empreguem apenas este trmite, e no petiesnem somente gritos. prefervel, se algum quer incriminar,que tu mesmo tomes conhecimento da causa.

    Se, portanto, algum os acusar e provar que fazem algocontrrio s leis, decide conforme a gravidade da culpa.Mas, por Hrcules! Se algum a alega por delao, condenaesse procedimento criminoso e cuida de puni-lo.12

    11JUSTINO MRTIR. Segunda Apologia 2:11-18. In: Justino de Roma. ColeoPatrstica. So Paulo: Paulus, 1995. vol. 3, p. 93.

    12EUSBIO DE CESARIA, Histria eclesisticaIV, 9:2-3, Coleo Patrstica, vol.

    15, p. 182.

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    A poltica injusta contra os cristos que a rigor foi mantida,

    conforme se depreende dos escritos de Tertuliano de fins dosculo II e incio do III, colocou a igreja sob o risco real decrueldades terrveis. Justino descreve a que as autoridadessubmetiam os cristos: Decapitam-nos, pregam-nos emcruzes, atiram-nos s feras, priso, ao fogo e nos submetema todo tipo de torturas (Dilogo com Trifo110:4).

    Como se no bastasse a sangrenta hostilidade estatal e odio do povo em geral, a igreja do sculo II teve ainda quelidar com a perseguio dos primeiros inimigos docristianismo: os judeus. Dos escritos da poca se depreendecom facilidade que a sinagoga hostilizava a igreja, destacando-se por suas campanhas contra os crentes.

    mais uma vez Justino de Roma quem destaca a oposioviolenta dirigida contra o cristianismo e procedente de fontesjudaicas. Em suaPrimeira Apologia, ele informa que, durantea revolta da Judia contra o Imprio Romano, ocorrida de 132a 135, o lder da rebelio, Simo bar Koshba, ordenava que

    os cristos fossem submetidos a terrveis torturas, caso nonegassem e blasfemassem o nome de Jesus Cristo (PrimeiraApologia31:6).

    Maiores detalhes acerca da animosidade dos judeus de seutempo contra a igreja, Justino fornece no Dilogo com Trifo.Nessa obra, a certa altura ele pergunta aos seus interlocutores:

    H mais alguma coisa que reprovais em ns, amigos? Ou

    apenas o fato de no vivermos conforme a vossa Lei, nemcircuncidarmos o nosso corpo como vossos antepassados,nem guardarmos os sbados como vs o fazeis? Ou nossavida e moral tambm objeto de calnia entre vs? Querodizer, por acaso tambm acreditais que devoramos homense que, depois do banquete, apagadas as luzes, nosentregamos a unies ilcitas? 13

    13 JUSTINO MRTIR. Dilogo com Trifo 10:1. In: Justino de Roma, Coleo

    Patrstica, vol. 3, p. 125.

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    Em seguida, o filsofo da igreja se queixa dizendo que os

    judeus maldiziam nas sinagogas os que criam em Cristo (16:4;47:4); que os mestres das sinagogas ensinavam seus pupilosa fazer isso (137:2) e que os proslitos blasfemavam o nomede Cristo, alm de desejar matar e atormentar os cristos(122:2). Ademais, segundo Justino, quando tinhamoportunidade, os judeus tiravam a vida dos cristos (133:6).

    NoDilogo ainda levantada a acusao de que os lderesreligiosos de Jerusalm, to logo surgiu o cristianismo, enviaramhomens por todo o mundo a fim de espalharem que haviaaparecido uma seita mpia de seguidores de Jesus. Esses homens,alm de dizer essas coisas, passaram a levantar as mesmascalnias que os pagos repetiam contra a igreja (17:1; 108:2).

    bom destacar que Justino no uma fonte isolada deinformaes sobre o rancor nutrido pelos judeus contra ocristianismo. Na verdade, suas percepes encontram paralelona carta da igreja de Esmirna sobre o martrio de Policarpo.Nessa carta percebe-se o tom de animosidade do autor contra

    os judeus, descritos como os que responderam maisprontamente ordem de juntar lenha para a pira onde o corpode Policarpo deveria arder. O autor ainda reala que essaprontido dos judeus em atacar os cristos era costumeira(Carta da igreja de Esmirna igreja em Filomlio 13).

    O prolfico escritor Irineu de Lio tambm menciona aantipatia dos judeus para com a igreja e as compara sperseguies que Esa empreendeu contra Jac por este ter

    recebido a bno devida ao primognito (Contra as heresiasIV, 21:3).

    Num tom bastante otimista, Justino de Roma, em seuDlogocom Trifo , afirma que a perseguio promovida pelasautoridades romanas, pelos lderes da sinagoga e pela sociedadeem geral no levava os crentes apostasia, mas fazia com queo nmero de discpulos crescesse ainda mais (110:4). Porm, evidente que, em face de perigos to grandes, o abandono daf era uma ameaa sria que a igreja tinha que enfrentar.

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    Ademais, a despeito do otimismo de Justino, a verdade que

    vrios eram os casos de derrota, havendo crentes queblasfemavam o nome de Cristo para salvar suas vidas.

    o que conta Eusbio ao comentar um relatrio enviadopelas igrejas da Glia, mais especificamente das cidades deLio e Vienne, s igrejas da sia, narrando detalhes daperseguio a que foram submetidas nos dias do imperadorLcio Vero (161-169). Nesse relatrio, os cristos da Gliadizem, entre histrias tocantes de martrio, que vrios irmosno suportavam a iminncia das torturas e negavam a f:

    Houve, contudo, outros despreparados, no exercitados,ainda fracos e incapazes de sustentar a tenso de um fortecombate. Destes, mais ou menos dez caram. Causaram-nos grande dor e desmedida tristeza. Quebrantaram tambma coragem dos que no tinham sido presos e que, apesarde apavorados, davam, porm, assistncia aos mrtires eno os abandonavam.14

    V-se, assim, que a rigidez da punio estatal, estimuladapelo dio do povo, era uma fora que impulsionava algunscristos na direo da apostasia e isso certamente moldou odiscurso dos pais da igreja que viveram na poca. De fato,apelando para a doutrina das penas eternas, eles tentaramreduzir o medo dos suplcios terrenos realando a realidadedos castigos futuros. Decerto, o fogo temporrio dos algozesromanos no era nada comparado ao fogo do inferno, descrito

    nos evangelhos como chamas que nunca se apagam.A julgar com base nos dados fornecidos pela histria, esse

    discurso surtia eventualmente os efeitos esperados. So osmesmos cristos de Glia que, segundo Eusbio, narram o casode certa crist chamada Biblida que havia renegado o Cristo commedo das feras. A histria prossegue dizendo que os algozes,

    14EUSBIO DE CESARIA, Histria eclesisticaV, 1:11, Coleo Patrstica, vol.

    15, p. 222.

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    no contentes com o sucesso em faz-la apostatar, tentaram for-

    la a testemunhar contra a igreja a prtica dos mais terrveiscrimes. O que obtiveram, contudo, foi surpreendente:

    Mas, nas torturas, ela sacudiu o torpor e por assim dizeracordou de um profundo sono. A dor efmera relembrou-lhe o tormento eterno na Geena e f-la replicar aoscaluniadores: Como eles comeriam criancinhas se nemmesmo lhes lcito beber o sangue dos irracionais? (cf. At15.29). Em seguida declarou-se crist e foi agregada

    fileira dos mrtires.15

    Certamente, episdios dessa natureza contriburam para aformao da avaliao que o historiador Adrian Hastings fezdo cristianismo do sculo II. Segundo ele, a firmeza dos crentesdaquele tempo mesmo diante da morte e as respostas quedavam aos magistrados revelavam no s um estrito e vigorosomonotesmo, mas tambm um intenso comprometimento moral,nutrido pela esperana inabalvel na realidade da vida futura.16

    Era, sem dvida, essa noo da existncia de vida aps a morte,com recompensas e castigos, que funcionava eficazmente comofator inibidor da apostasia.

    O DEGRADANTE AMBIENTE MORAL DOIMPRIO ROMANO

    Alm da ameaa poltica e social de derramamento desangue, o ambiente moral do Imprio Romano tambmpreocupava os mestres da igreja do sculo II, constituindo-seem outra fonte de apelos (esta pacfica e, talvez, por issomesmo, mais perigosa) para que o cristo, deixando de ladoos ensinos do Novo Testamento, se enveredasse pelos maistortuosos caminhos de depravao e misria moral.

    15Ibid., V, 1:26. p. 226.16HASTINGS, Adrian. A world history of Christianity. Grand Rapids, Michigan:

    Eerdmans, 1999. p. 26.

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    Segundo o historiador Edward Gibbon, se fosse preciso

    apontar o perodo da histria em que a condio dahumanidade foi mais ditosa e prspera, esse perodo seria,sem dvida, o que se estende da morte de Domiciano (96 AD)at a elevao de Cmodo ao trono imperial (180 AD), ou seja,praticamente todo o sculo II.17

    Essa avaliao, porm, s pode ser considerada verdadeirase as lentes da pesquisa foram voltadas para o Imprio Romanoem suas realizaes arquitetnicas, em suas conquistasterritoriais, em seu acmulo de riqueza (especialmente entreos membros da corte), e em sua administrao pblica que tinhasucesso em fazer reinar a paz e a segurana tanto nas cidades,como nas estradas e at no mar. Se, contudo, as mesmas lentesforem voltadas para os costumes tanto dos nobres como daplebe que vivia sob a sombra de Roma, dificilmente poder serencontrada na histria outra poca to manchada por vcios epodrido moral.

    Falando sobre o mundo que a igreja teve que enfrentar

    logo aps sua emancipao do judasmo, depois do ano 70AD, Mark Noll afirma que o universo moral no qual os cristosestavam inseridos era um universo no qual os lderes polticos,especialmente os imperadores romanos, se dedicavamfrequentemente s prticas mais degeneradas, sendo que opovo em geral se dispunha a imitar esses lderes.18

    O testemunho de Tertuliano de Cartago expe os fracospadres morais dos imperadores. Em suaApologia,ele defendeo cristianismo da acusao de corromper a tradio e oscostumes do imprio dizendo que, na verdade, eram asprprias autoridades civis que, com sua conduta desregrada,com a permissividade de muitas de suas leis e com suatolerncia e descaso em face da lassido dos costumes, seinsurgiam contra o bem do estado (ApologiaVI).

    17 GIBBON, Edward. Declnio e queda do Imprio Romano. So Paulo: Companhiadas Letras e Crculo do Livro, 1989. p. 87.

    18NOLL, Mark A. Momentos decisivos na histria do cristianismo. So Paulo:

    Cultura Crist, 2000. p. 33.

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    Ainda no captulo VI de sua Apologia, Tertuliano insiste

    na acusao de que os magistrados eram os verdadeirosagentes que atuavam contra a tradio dos antepassados quefingiam proteger quando condenavam os cristos. A nicatradio que, no dizer do apologista, as autoridades romanasde fato defendiam, era justamente aquela na qual os antigoshaviam incidido em erro, a saber, a adorao dos deuses. Osbons costumes de seus antepassados, porm, os romanos hmuito haviam sepultado.

    Alis, segundo Tertuliano, se os cristos praticassem osatos terrveis de que eram acusados por seus perseguidores,ento eles, os crentes, no seriam seus inimigos, mas simcompanheiros e cmplices no pecado (Apologia IX). O fato,porm, que, segundo o telogo cartagins, eram exatamenteos cristos os cidados que, com sua conduta, protegiam oimprio do absoluto caos moral e social (ApologiaXXXIX).

    verdade que o sculo II conheceu imperadores virtuososcomo Trajano, Antonino Pio e Marco Aurlio, mas esses

    monarcas s puderam observar, e no curar, a putrefaomoral que aos poucos foi consumindo todas as classes doImprio. Alm disso, toda a probidade daqueles imperadoresno poderia compensar os anos em que o trono imperial foiconspurcado, por exemplo, pelo que Philip Schaff chamou deas vergonhosas diverses de Cmodo, que reinou de 180at 192, e que tinha centenas de concubinas, bem como umaferoz paixo por abater homens e animais na arena.19

    Considerando ainda as camadas altas da pirmide social,sua conduta moral se mostrava tambm lastimvel nasdiversas formas de crueldade praticadas pelos magistrados.Conforme visto acima, as autoridades submetiam sditosinocentes como os cristos a terrveis brutalidades, deixando-se influenciar conscientemente por denncias falsas.

    19SCHAFF, Philip. History of the Christian Church. 8 vols. Grand Rapids: Eerdmans,

    1987. vol. 2, p. 317. Minha traduo.

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    Explorao dos fracos, luxria e prticas inominveis de

    imoralidade eram os traos que caracterizavam a vida dosnobres em seus palcios e manses. Ao mesmo tempo, oexrcito abandonava as virtudes do patriotismo e tanto osgenerais e outros oficiais de alta patente como os soldadosrasos permitiam que a realizao de suas funes fossemoldada pela suspeita, pela inveja e pelo suborno.

    A flagrante degradao detectada nas camadas altas dasociedade e presente inclusive no exrcito era vista tambmnas classes mdia e baixa, atingindo at as miserveis vtimasda fome e das doenas. No sculo II, a maior parte dos homensvivia sob a escravido e a pobreza, condies que favoreciamo desenvolvimento de um carter rude. Ademais, as lutas entreos gladiadores brutalizavam as pessoas e os mitos pagosincentivavam toda forma de sordidez.

    Os contornos da depravao nas classes inferiores incluamas prticas mais repugnantes. Justino fala de rebanhos decrianas reunidos com a finalidade de fazerem uso torpe de

    seus corpos (Primeira Apologia27). No mesmo lugar ele aludea multides de andrginos e pervertidos espalhados pelasprovncias e menciona os que entregavam seus filhos emulheres prostituio. O apologista destaca quo grave eraessa situao ao denunciar que tais prticas, tendo um cunhoreligioso, eram subsidiadas pelo prprio estado, com odinheiro de taxas e impostos.

    Assim, conforme avalia, as acusaes de atos infames evergonhosos que o povo dirigia contra os cristos eram coisasque os prprios acusadores praticavam publicamente(Segunda Apologia12.4; 14:1-2). Os judeus da poca podiamat se constituir em exceo quanto s piores vilezas, masJustino os reprova mesmo assim, dizendo que seus mestresensinavam a poligamia, permitindo que a lascvia fossedesafogada mediante a unio com quatro ou cinco mulheres(Dilogo com Trifo 134:1).

    Irineu tambm denuncia o comportamento reprovvel dos

    homens do seu tempo. Ele aponta especialmente a conduta dos

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    adeptos do gnosticismo que, poca, se multiplicavam igual a

    cogumelos e, em suas diferentes manifestaes, abrangiamgrandes multides (Contra as heresias I, 29:1). Segundo essavertente filosfico-religiosa, existia na humanidade uma classede homens denominados pneumticos. Estes eram os quepossuam o conhecimento perfeito de Deus e tinham sido iniciadosnos mistrios de Acamot, uma das emanaes do Pleroma,responsvel pela origem da matria. Irineu informa que osgnsticos criam ser, eles prprios, os pneumticos e que, conformeensinavam, essa condio implicava na impossibilidade absoluta

    de se corromper, no importando que obras praticassem:

    ... assim o elemento pneumtico, que pretendem ser eles,est na impossibilidade absoluta de se corromper, sejamquais forem as obras que praticarem. Como o ouro lanadona lama no perde o brilho e conserva a sua natureza semque a lama o prejudique em nada, assim, dizem eles, podemestar misturados com qualquer obra hlica [i.e., corruptvel]que no sofrero dano nenhum, nem perdero sua

    substncia pneumtica.20

    O resultado dessas invenes, conforme expe o bispo deLio, era a participao em festejos idlatras e espetculossanguinrios. Alm disso, Irineu acusa muitos gnsticos deseduzir mulheres secretamente e ainda menciona outros,muito mais ousados, que separavam esposas de seus maridose se uniam publicamente a elas.

    Indignado, Irineu acrescenta que, alm de cometer muitasoutras aes vergonhosas e mpias, os membros das seitasgnsticas tachavam os cristos de simplrios e ignorantes,pessoas que precisavam ser educadas com ensinamentosinferiores ligados a boas obras e continncia. Eles, emcontrapartida, se exaltavam a si mesmos com o nome deperfeitos e entendiam que no precisavam de nenhumainstruo moral, pois tinham em si a semente da eleio, e

    20

    IRINEU DE LIO. Contra as heresias. I, 6:2, Coleo Patrstica, vol. 4, p. 48.

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    qualquer que fosse a sua conduta, como seres incorruptveis

    que eram, jamais se manchariam e, afinal, seriam introduzidosnoPleroma, onde viveriam como esposas dos anjos. Ramificaesdessas seitas ensinavam ainda o amor livre, a poligamia e aparticipao em festas pags (Contra as heresiasI, 28:2).

    Dentre as seitas gnsticas, talvez a dos seguidores deCarpcrates fosse a que mais causasse indignao no bispo deLio, dada a sua licenciosidade. Carpcrates dizia que antes dechegar salvao, as almas dos homens deviam passar portodas as situaes e praticar todas as aes possveis nestemundo. Se no perodo de uma vida no fosse possvelexperimentar todas as coisas, a alma no seria liberta e migrariapara outro corpo a fim de completar as aes que faltavam atque no restasse mais nenhuma (Contra as heresiasI, 24:1-4).

    O ideal, portanto, dos discpulos de Carpcrates era realizartodas as aes possveis, boas ou ms, ou vivenciar o mximode situaes que pudessem no espao de uma vida, a fim deacelerar o processo de salvao e livramento da matria. De

    posse desses pensamentos, os membros dessa seitapraticavam as mais reprovveis impiedades e injustias. Irineuchega a dizer que no teria acreditado que eles eram capazesde to chocantes perversidades se ele mesmo no tivesseverificado isso nos livros e ensinos dos prprios hereges(Contra as heresiasI, 25:5).

    Essa perverso de costumes que o sculo II testemunhoudeu ao trabalho dos pais da igreja que viveram na poca umtom fortemente pastoral. Eles se preocuparam em proteger opovo de Deus da degradao que cercava a todos e que eraacolhida pelas pessoas sem qualquer recato. Nesse seuempenho por estimular a vida elevada em seus padres deconduta, eles destacaram a doutrina das penas eternas,lembrando sempre que oportuno que o inferno no estreservado apenas aos covardes que abandonam a f diantedas ameaas dos poderosos, mas tambm o destino dospusilnimes que abandonam a virtude em face dos insistentes

    apelos e zombarias dos maus.

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    AS DIVERSAS RELIGIES NO CENRIO DO

    SCULO II

    Trs foram as formas atravs das quais as religies dosculo II influenciaram a pregao da igreja da poca acercado inferno. Primeiramente elas serviram como fonte deinspirao para ao imaginrio cristo. Em segundo lugar, elasrepresentaram um desafio ao colocarem a igreja diante denoes erradas acerca da vida ps-morte. Finalmente, as

    diversas religies representaram uma ameaa na medida emque sua rejeio podia trazer castigos aplicados pelo estado.Nesse ltimo aspecto, conforme visto, os pais da igreja usarama doutrina das penas eternas para desestimular a apostasiaque invariavelmente ocorria em face dos suplcios aplicadospelos magistrados romanos.

    Para entender como as religies que subsistiam no sculo IIforam fonte de inspirao para o imaginrio cristo precisolembrar que o ensino sobre o inferno no teve origem com apregao de Jesus. Outras religies que j existiam quando amensagem dos apstolos comeou a ser proclamada tambmfalavam sobre um lugar de tormentos reservado para as almasdos homens mpios. Ao que parece, em parte com o objetivo deapresentar informaes que no constam nem mesmo nasSagradas Escrituras, o cristianismo assimilou certos elementosfantasiosos comuns nessas concepes ento reinantes.

    bem possvel que uma das fontes do imaginrio cristosobre o inferno tenha sido a multiformereligio do Egito. Estarealava como nenhuma outra a existncia dos tormentos paraos maus na vida alm tmulo. Para os egpcios, essestormentos atingiam, inclusive, os corpos dos condenados, almde suas almas. Prises, torturas e castigos com fogocaracterizavam o inferno segundo a crena dos homens do

    Nilo. Conforme seu entender, o lugar de suplcio no alm era

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    infectado por terrvel mau cheiro e repleto de abismos escuros,

    rios de gua fervente e monstros cruis.21Foi inevitvel, pois, que a numerosa igreja que se espalhava

    pelo norte da frica no sculo II tivesse seu imaginrio sobreas penas futuras enriquecido pelas crenas da antiga religiodo Egito, o que se v refletido na chamada literatura apcrifaque tem o inferno como tema constante.22

    OApocalipse de Pedro exemplo notvel disso, sendo, dentreos escritos da poca, o que fala mais pormenorizadamente

    sobre o assunto. Redigido entre 125 e 150, em Alexandria, aobra teve certa aceitao na igreja antiga. Clemente deAlexandria a considerou cannica, o Cnon Muratoriano aincluiu, ainda que com restries, e as igrejas da Palestina ausaram em sua liturgia at o sculo V. No entanto, o Concliode Cartago (397) rejeitou a canonicidade do livro, dado o seutom mitolgico, sua ampla e sdica criatividade e sua bviainautenticidade.

    Depois de muito tempo desaparecido, oApocalipse de Pedro

    foi encontrado em 1910, numa traduo etope. A anlisecontempornea revelou que a obra recebeu influncias dojudasmo e da mitologia grega, alm de, com suas cenas vvidassobre as almas no inferno, trazer lembrana a rica coloraocom que o paganismo egpcio tratava o mesmo tema.

    Nas vises do autor, o inferno descrito como um lugar decastigo terrivelmente triste, onde os anjos que torturam oscondenados usam vestes escuras. Os blasfemadores so ali

    pendurados pela lngua e um fogo abaixo deles os atormenta.

    21LE GOFF, Jacques. The birth of purgatory. Chicago: University of Chicago Press,1984. p. 19-20.

    22A meno notria do inferno na literatura apcrifa tinha propsitos semelhantesaos dos pais da igreja, a saber: estimular os crentes a se manter firmes diante daoposio sangrenta, bem como desencoraj-los a seguir os falsos ensinos doshereges, sob pena de perderem o galardo de Deus e serem lanados nas chamaseternas. Alm disso, a expectativa de um fim do mundo prximo animava aindamais os escritores cristos do sculo II a produzir textos que tratavam de questes

    relativas ao destino dos maus.

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    As mulheres adlteras so suspensas pelos cabelos sobre uma

    lama incandescente e seus amantes, suspensos pelos ps,ficam com a cabea cada sobre a lama, pronunciando tristeslamentos. Pior sorte tm os carrascos e as mulheres quemataram seus bebs indesejados:

    Via os carrascos e os seus cmplices, lanados num lugarestreito, inundado por terrveis rpteis. Eram castigadospor esses animais e assim se retorciam no seu tormento,tendo ainda sobre eles camadas de vermes que pareciam

    ser nuvens escuras...Muito perto dali, vi outro lugar fechado, em que escorria opus e as imundcies daqueles que eram castigados eformavam uma espcie de lago. As mulheres jaziam nomeio dessa sujidade mergulhadas at ao pescoo e diantedelas estava um grande nmero de crianas prematuras,que gritavam e delas partiam jatos de chamas que atingiamas mulheres nos olhos. Eram as mulheres que conceberamfora do casamento e mataram os seus filhos.23

    Fbulas crists desse tipo, relativas ao inferno, no foraminspiradas exclusivamente nas religies do Egito. A culturagreco-romana tambm fez suas contribuies.

    No vasto Imprio Romano, desde muito antes docristianismo nascer at os sculos que precederam seuestabelecimento como religio oficial do imprio, ou seja, ato sculo IV,as religies da Grcia e de Romase espalhavamem inmeras variaes, abrangendo desde as maiselementares especulaes msticas at as formas maisgrosseiras de superstio. Essas crenas sero expostas adiantecom melhores detalhes, quando forem analisadas como fontesde erros que os pais da igreja se viram obrigados a corrigir.Nesta altura, preciso apenas apont-las como fatores quecontriburam para a formao do imaginrio cristo.

    23Apocalipse de Pedro. Apud MINOIS, Georges. Histria dos infernos. Lisboa:

    Editorial Teorema, 1997. p. 91.

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    Ora, o cenrio religioso greco-romano do sculo II era

    marcado por noes sobre a vida alm-tmulo baseadas emcriaes poticas repletas de mitos. Tais concepes partiamdo prprio sentido bsico do termo grego Hades (a(dhVj).Ray Summers explica que essa palavra derivada do infinitivoidein, ver, acrescido do alfa privativo que torna o sentidonegativo, ou seja, no ver.

    Assim, Hadesse referia ao mundo invisvel e os antigosescritores pagos usavam essa palavra para falar do lugarhabitado pelos espritos dos mortos, tanto bons quanto maus(os romanos chamavam esse lugar de Orcus). Summersprossegue explicando que os antigos dividiam o Hades emduas partes: oElsio, que era reservado aos justos; e o Trtaro,habitado pelos mpios.24

    Philip Schaff apresenta uma vvida descrio desse mundo,conforme a concepo de Homero (Sc. VIII a.C.):

    De acordo com Homero, o Hades uma morada escura no

    interior da terra, com uma entrada situada no extremoocidental do oceano, onde os raios do sol no penetram.Charon leva o morto ao longo do rio Acheron, e Crberus, ocachorro de trs cabeas, guarda a entrada, impedindo apassagem de todos. Ali, os espritos permanecem em estadoincorpreo, submersos numa vida sombria e ilusria. Umavaga distino era feita entre duas regies no Hades, oElysium (tambm chamado de Ilhas dos Abenoados),reservado para os bons, e o Trtaro, para os maus.25

    Esse universo criativo que emanava das religies da Grciae de Roma era enriquecido ainda mais pelozoroastrismocujascrenas provocavam constante reflexo acerca das penasfuturas, influenciando tambm o imaginrio cristo.

    Originada na regio onde hoje se situa o Ir, a religio deZoroastro superou outras crenas surgidas naquele territrio,

    24SUMMERS, Ray. A vida no alm. So Paulo: JUERP, 1979. p. 37.25

    SCHAFF, History of the Christian Church, vol. 2, p. 591-592. Minha traduo.

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    tornando-se conhecida no ocidente atravs de uma de suas

    ramificaes, o culto de Mitra, trazido ao imprio pelossoldados romanos j na primeira metade do sculo I.26

    Em sua cosmoviso, o zoroastrismo ensinava uma formade dualismo, segundo a qual um esprito de luz e bondade,Ormuzd, vivia em batalha constante contra Ahriman e osexrcitos dos maus espritos que habitavam nas trevas. Apartir dessa ideia, presente na base desse sistema religioso,desenvolviam-se ntidos contrastes entre o bem e o mal. Daprocediam fortes concepes de mrito e culpa, de salvao ede perdio ou castigo dos maus. De fato, conforme a religiode Zoroastro (570-500 a.C.), um dia o bem triunfaria e o malseria punido. Esse juzo, porm, no viria somente sobreAhriman e seus espritos, mas atingiria tambm os homensperversos.

    Comentando esse aspecto do zoroastrismo, Ernst HeinrichKlotsche esclarece:

    Acerca das obras dos homens aqui na terra, um precisoacerto de contas ser realizado, redundando em puniopara os mpios e recompensas para os bons. Ahriman, todosos espritos maus e os homens perversos sero lanadosno inferno para serem punidos para sempre, enquanto oreino do bem ser estabelecido no cu e sobre a terra.27

    No difcil perceber como noes desse gnero tornavamo ambiente cultural propenso reflexo, ao dilogo e

    divulgao de doutrinas sobre a vida aps a morte, fornecendoum pano de fundo favorvel ao desenvolvimento de visesmais vvidas sobre a realidade no alm.

    Contribuindo tambm para a formao desse ambienteencontrava-se ojudasmo.De posse das Escrituras do Antigo

    26HINSON, E. Glenn. The early church: origins to the dawn of the Middle Ages.Nashville: Abingdon, 1996. p. 25.

    27KLOTSCHE, E. H., The history of the Christian doctrine.Grand Rapids, Michigan:

    Baker, 1979. p. 6. Minha traduo.

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    Testamento, os judeus desenvolveram seus conceitos prprios

    sobre o destino dos mortos. Porm, sabido que os livros vetero-testamentrios guardam certa obscuridade sobre esse assunto,pelo que os judeus, fundamentados especialmente no Talmude,criam no Paraso e no Gehenna como dois compartimentoscontguos do Sheol, sendo o primeiro, destinado aos justos,sessenta vezes maior que o mundo, e o segundo, reservado aosmpios, sessenta vezes maior que o Paraso.28

    Schaff destaca que, segundo o Talmude, a pior das puniesdo inferno era a tortura com fogo, o qual era renovado todasas semanas, logo aps o sbado. Consoante a crena judaicade ento, os israelitas maus no eram torturados com fogo,sendo reservadas penas diferentes para eles. J outras pessoas,especialmente os idlatras, hipcritas, traidores e apstatas,eram condenados a ferver como a carne em uma panela.

    A escola de Shamai ensinara que esse sofrimento era parasempre.29J os seguidores de Hillel haviam dito que tanto judeuscomo gentios, tendo se entregue ao pecado, seriam punidos no

    Geena por doze meses, e depois reduzidos a nada. Segundo essaescola, o castigo do Geena se aplicaria tambm aos corpos dosmpios, reduzindo-os a cinzas dispersas pelo vento.30

    verdade que no sculo II os pais da igreja em particularno revelam em seus escritos a tendncia comum nas religies

    28Essa diviso tinha sido adotada pelo judasmo havia sculos. Em face de textoscomo Isaas 14.9,15, foi reconhecido, notadamente ao tempo do perodointerbblico, que o Sheol,mesmo sendo o destino de todas as almas sem exceo,comportava dois lugares distintos, sendo um deles chamado de Paraso ou Seio deAbrao, e o outro, denominado Gehenna. Este ltimo era de grande angstia edesconforto, sendo reservado para os inimigos de Jav e do seu povo. Quanto doutrina da ressurreio seguida de julgamentos, pode-se encontrar seus primrdiosj nos escritos do Velho Testamento pertencentes ao perodo do Exlio Babilnicoe posteriores (Ver Dn 12.2-3,13).

    29SCHAFF, History of the Christian Church,vol. 2, p. 596.30LE GOFF, The birth of purgatory, p. 40. O fato que, conforme esclarece Schaff,

    no Talmude o ensino sobre essa questo dbio, havendo algumas passagens quefalam da total aniquilao dos mpios, e outras que ensinam a eternidade daspunies no alm, como em Pesachim 54que diz: O fogo do Geena nunca se

    extingue. Ver SCHAFF, History of the Christian Church,vol. 2, p. 597.

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    de seu tempo de descrever os contornos precisos do Hades ou

    a natureza especfica dos castigos ali aplicados, mas no hdvida de que a popularizao de certas fantasias ajudou atornar mais ntida na mente das pessoas a imagem terrvel dasangstias eternas sempre que os pais pregavam ou escreviamsobre o inferno, o que resultava na considerao sria de suasasseveraes por parte dos ouvintes e leitores de ento.

    Se por um lado, a igreja assimilou alguns elementos acercado inferno presentes nas religies ao redor, por outro, noresta dvida de que tambm repudiou veementementediversos conceitos sobre a vida no alm flagrantemente anti-bblicos, presentes tanto nas religies pags como no judasmodaqueles dias. nesse sentido que, como dito acima, o cenriode crenas religiosas do sculo II serviu como um desafio paraos pais, uma vez que punham a igreja diante de ensinos sobrea vida no alm que tinham que ser corrigidos.

    Observando o vasto mosaico de crenas variadas quecaracterizaram o perodo sob anlise, os historiadores do

    destaque s chamadas religies de mistrio, originrias emsua maior parte no oriente, em regies como a Sria, a Anatliae a Prsia. Era dessa classe de cultos e doutrinas que emanavagrande parte das ideias acerca da vida aps a morte queprecisavam ser combatidas pelos pais atravs da exposiodas realidades bblicas tanto do cu como do inferno.

    Para a melhor compreenso disso, porm, precisoconhecer certos pormenores dos mitos baseados em mistriosformados ao redor dos deuses pagos, detectando quofortemente apelavam para os sentimentos mais profundosda humanidade, realando temas como o enigma da morte eo destino da alma.

    A pesquisa histrica revela que muitas cerimnias dasreligies de mistrio eram secretas e seus adeptos juravam norevelar a forma como eram realizados alguns de seus rituais.Acrescente-se a isso o fato de que todas desapareceram algunssculos depois do advento do cristianismo e isso explica porque

    pouco se sabe acerca delas na atualidade. Seja como for, certo

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    que todas essas religies guardavam entre si algumas

    semelhanas, s vezes at ensinando acerca de um deussalvador que morreu e ressuscitou, o que provocava aindignao de homens como Justino de Roma que viam nissoum artifcio dos demnios para confundir os homens e por emcheque a singularidade da f crist (Primeira Apologia 54, 62).

    Entre essas crenas, uma das mais destacadas era a quese formara ao redor de Dionsio. Sua lenda dizia que Jpiter ePersfone tiveram um filho chamado Zagreus, que nasceu em

    forma de boi. Zagreus deveria governar o mundo, mas foimorto e despedaado pelos tits. Ento seu pai, Jpiter, comeuseu corao e quando gerou Dionsio, tambm chamado Baco,este era Zagreus renascido. Era assim que a lendapopularizava e estimulava a crena na reencarnao.

    Dionsio foi considerado o deus do vinho e de toda vidaanimal e vegetal. Sua conexo com a figura de um tourotambm o vinculava a noes de fecundidade. Por isso, emseus cultos os devotos se embriagavam, entregando-se aorgias e danas frenticas. Nesses cultos tambm comiam acarne de um boi recm esquartejado, bebendo o sangue queainda jorrava, acreditando que, assim, poderiam participarda vida do deus que adoravam.

    As vrias seitas ligadas ao nome de Orfeu tambm davamgrande espao ao mito de Dionsio, mas concentravam-se nanoo to difundida no mundo helenista de que a matria m e que a alma precisa se livrar de algum modo do corpo,

    sua priso e causa de contaminao.Contrariando a doutrina crist da ressurreio futura e

    ignorando a verdade sobre o que acontece com a alma depois damorte, essas religies ensinavam que os homens estavam presosa um ciclo de nascimento, morte e renascimento, reencarnando-se at conseguir a separao definitiva entre o corpo e a alma, oque s aconteceria mediante a iniciao em seus cultos. Somentedepois de livrar-se desse ciclo de reencarnaes que a alma

    poderia viver para sempre na perfeita felicidade.

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    Uma ditosa imortalidade tambm era a aspirao dos

    iniciados nos mistrios daMagna Mater. Sua lenda dizia queela se apaixonara por um pastor chamado tis, nascido deuma virgem. Segundo algumas verses do mito, tis sesuicidara, castrando a si mesmo, mas a Grande Meconseguira sua ressurreio e ele se tornara imortal. Por isso,nos rituais celebrados nos cultos deMagna Mater, os devotosse lanavam a danas frenticas e, no auge de seu xtase, oshomens se emasculavam, acreditando que, dessa forma,poderiam participar da imortalidade de tis.

    A j mencionada adorao de Mitra tambm pode ser contadaentre as religies de mistrio do mundo greco-romano cujasdoutrinas os pais da igreja se viam obrigados de combater.Conforme visto, Mitra era um deus do antigo Ir. Suas razesse encontram numa antiga divindade da ndia vdica e na jmencionada religio de Zoroastro (ou Zaratustra).

    Nos tempos do Imprio Romano, Mitra era adoradoespecialmente entre os soldados. Ele era considerado um

    salvador escatolgico que, a partir do cadver de um touroque matara, teria trazido vida ao mundo. Seu culto abrangiasete graus de iniciao em mistrios e a salvao que anunciavanegava a ressurreio.

    O mitrasmo via a vida como uma luta perptua entre o beme o mal, entre a luz e as trevas, entre os deuses e os demnios.Enfatizava intensamente a moralidade e, a fim de realar suaimportncia, proclamava um dia de julgamento final e definitivopara toda a humanidade, ocasio em que o fogo consumiriatodos os maus. Na verdade, os adoradores de Mitra criam que,j a partir da morte, qualquer que tivesse praticado o mal serialanado pelos emissrios de Ahriman nas profundezas doinferno a fim de sofrer indescritveis torturas, enquanto os bonsseriam levados ao cu, para o reino de Ormuzd.

    A prtica da taurobolia(o rito mais importante do mitrasmo),em que um touro era morto e os adeptos se banhavam em seusangue; os mistrios eleusianos que celebravam o mito de

    Persfone, resgatada por sua me das regies infernais; e o

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    hermeticismoque pregava que a matria era m e prometia a

    redeno da alma31

    , formavam um conjunto de crenas queatraam muitos adeptos, uma vez que prometiam imortalidadea quem fosse iniciado em seus mistrios.

    Como se v, as concepes sobre a vida alm propostaspelas grotescas religies de mistrio confrontavam em muitosaspectos a pregao dos pais acerca do destino eterno doshomens e acerca da forma como o ser humano podia ser salvo.Ademais, os pais da igreja do sculo II no viam os ensinosdos deuses pagos como meras invenes de poetas. Para eles,os deuses eram demnios32e suas doutrinas eram invenesde espritos malignos que se compraziam em ser temidos eadorados pelos homens. Justino de Roma ousa dizer que, naantiguidade, esses demnios manifestaram seus feitos aoshomens. Segundo ele, as pessoas, levadas pelo medo e pelaignorncia, deram aos demnios nomes de deuses echamaram cada um com o nome que cada demnio havia postoem si mesmo (Primeira Apologia5:2).33

    Assim, considerando a origem dessas seitas e a fonte desuas doutrinas sobre a vida no alm, os telogos do sculo IIse viram forados a cumprir a misso urgente de expor oensino bblico. No tocante doutrina sobre a salvao futura,eles proclamaram sem reservas a verdade crist sobre o cu e

    31A figura central do hermeticismo era Hermes Trismegistro, ou seja, Hermes trsvezes maior, identificado entre os romanos como Mercrio.

    32Ver IRINEU DE LIO,Contra as heresias,

    III, 6:3. Uma concepo diferentecontemplava a hiptese dos deuses pagos serem apenas criaes humanas. Nessesentido, ver ARISTIDES DE ATENAS, Apologia1-12. J Tefilo de Antioquiadizia que os nomes dos deuses eram apenas nomes de homens mortos (PrimeiroLivro a Autlico9) e que o que foi dito sobre eles no passava de tolices escritaspor poetas e filsofos. Tefilo, no entanto, admite que foram os demnios queinspiraram esses poetas (Segundo Livro a Autlico8).

    33Justino tambm via nas religies de mistrio a tentativa dos demnios de produziruma espcie de arremedo das profecias do Antigo Testamento acerca do adventode Cristo. Segundo ele, essas imitaes tinham por propsito fazer com que oshomens considerassem o real cumprimento das profecias bblicas apenas mais

    uma fbula carente de qualquer originalidade (Dilogo com Trifo 69-71).

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    o inferno, a fim de combater ideias que, no seu entender, eram

    de origem demonaca, especialmente noes reencarnacionistas,conceitos contrrios doutrina da ressurreio e promessasde livramento das penas futuras parte da f e obedincia aCristo. Dessa forma, as religies de mistrio determinaram atcerto ponto a maneira como o ensino acerca do inferno foiministrado aos cristos e, na medida do possvel, s autoridadese ao povo em geral pelos pais da igreja do sculo II.

    Outra classe de crenas, muitas vezes mesclada s prprias

    religies de mistrio, tambm influenciou a pregao dosprimeiros pais da igreja sobre as penas futuras. Foram oscultos nutridos oficialmente por Romaque incluam tanto osdeuses da capital como os ligados a outras cidades do imprio,alm do culto ao imperador. Essas religies estimulavam apregao crist sobre o inferno na medida em querepresentavam uma ameaa violenta firmeza dos crentesna f. Cientes do seu perigo, os pais da igreja falavam sobre oinferno para estimular os fiis a permaneceram leais a Cristo

    mesmo diante de oposio, perigos, torturas e morte.Qual era a maneira como as religies nutridas oficialmente

    pelo estado representavam uma ameaa violenta para aigreja? Isso acontecia porque muitas cidades acreditavamdepender do favor de seus deuses antes mesmo de seremconquistadas por Roma e, com a aprovao das autoridadescivis, mantinham zelosamente suas tradies cultuais, crendoque a isso estavam vinculados seu progresso e felicidade.

    Um dos desdobramentos naturais dessa crena era queaqueles que desagradassem as divindades locais, deixandode servi-las, poderiam trazer misria e infortnio sobre todaa urbe. Tais pessoas seriam vistas como inimigos da sociedadeinteira, a causa de todas as suas catstrofes e calamidades,sendo merecedoras dos castigos mais severos.

    Ora, era de se esperar que, negando-se a adorar os deusespagos, muito cedo a igreja fosse considerada pelo homem

    antigo a classe de pessoas que provocava a ira divina sobre

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    todos. De fato, qualquer que fosse o revs que sobreviesse a

    determinado povo, desde o mais leve contratempo at adesgraa mais alarmante, de pronto sua ocorrncia eraatribuda aos crentes que, segundo maldosamente diziam,despertavam a fria do Olimpo. Se o Tibre transborda e oNilo no, escreveu Tertuliano em suaApologia, entre os anos197 e 200, se o cu se aquieta e retm a chuva, ou a terratreme; se ainda a fome e a peste se espalham pelo pas, apalavra de ordem : Lancem esses cristos ao leo!. Ora,tenham d! Quanta gente para um s leo!34

    Essa mentalidade estava to fortemente enraizada na mentedos pagos que no sculo V ainda possvel encontr-la entreos inimigos da f. Prova disso se v na grande obra de SantoAgostinho (354-430), aCidade de Deus. Logo em seus primeiroscaptulos, o grande bispo de Hipona explica que se disps aescrev-la porque, tendo Roma cado nas mos dos visigodoscomandados por Alarico, em 410, os pagos atriburam essacalamidade ao fato do Imprio Romano, por influncia dos

    cristos, ter abandonado o culto dos antigos deuses.35

    Alm de serem hostilizados por causa das crenas nutridaspelas religies das cidades, os cristos tambm sofriam diantede outra forma de adorao sustentada pelo estado: o cultodo imperador. Este, de fato, recebia maior destaque entre asdemais religies oficialmente apoiadas pelas autoridades.

    O costume de elevar um governante ao nvel de umadivindade antigo e tem suas razes no oriente.36Alexandre o

    Grande recebera essa honra nos tempos do Imprio Grego equando Augusto imps seu reinado de paz a toda a bacia do

    34 TERTULIANO DE CARTAGO. Apologia XL:1. In: REEVE, W; COLLIER, J.(Orgs.). The apology of Tetullian and the meditations of the emperor MarcusAurelius Antoninus, p. 114.Minha traduo.

    35 SANTO AGOSTINHO. A cidade de Deus: contra os pagos. I:1. So Paulo:Vozes, 1990. p. 28.

    36LATOURETTE, Kenneth Scott. Historia del cristianismo. 2 vols. El Paso, Texas:

    Casa Bautista de Publicaciones, 1958. vol. 1, p. 55.

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    Mediterrneo, muitos o aclamaram como a encarnao de um

    deus, sendo erigidas esttuas em sua honra, alm de cerimniasde adorao sua pessoa terem sido criadas. Foi assim que seinstituiu o culto ao imperador. Latourette explica que esse cultoera visto como uma forma de salvaguardar a lei, a ordem e aprosperidade em todos os domnios de Roma. Negar-se a prest-lo seria considerado um ato de traio e anarquia.37

    Conforme exposto acima, em face dessas religies do estadoe da violncia decorrente de sua rejeio, os mestres cristos

    do sculo II usaram a doutrina da perdio eterna para afastaros crentes do medo dos castigos presentes, causa comum deapostasia, e faz-los, assim, perseverar, estimulados pelo medodas chamas do Hades. Alis, os prprios pais foram encorajadospor esse pensamento. Recorde-se que, em 155, diante da ameaado magistrado romano de ser queimado vivo caso no prestasseadorao diante da esttua de Csar, Policarpo, bispo de Esmirna,contraps a ameaa do fogo do julgamento futuro e do suplcioeterno, reservado aos mpios.38

    O CONTEXTO INTELECTUAL DOSPRIMEIROS PAIS DA IGREJA

    O cenrio intelectual em que viveram os telogos antigosfoi assinalado predominantemente pelo helenismo. Sob oaspecto filosfico, o helenismo se fez presente no perodopatrstico inicial atravs de trs correntes de pensamento: o

    platonismo, o epicurismo e o estoicismo.39

    O platonismo, como a prpria designao indica, teveorigem com Plato ( 347 a.C.) e ensinava a doutrina dos doismundos: o sensvel ou visvel e o inteligvel ou das ideias. O

    37Ibid.38Martrio de So Policarpo Bispo de Esmirna. In: Padres apostlicos. Coleo

    Patrstica. So Paulo: Paulus, 2008. vol. 1, p. 155.39O neoplatonismo surgiu somente no sculo III e, assim, evidente que exerceu

    influncia somente sobre os pais da igreja que viveram a partir dessa poca.

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    primeiro mutvel e representa apenas um reflexo do mundo

    inteligvel que transcendente, real, espiritual e ideal.De acordo com as noes do mdio-platonismo (Scs. I a.C.

    II AD), Deus era concebido como absolutamentetranscendente e impassvel. Esse Deus mantinha ligao como mundo sensvel atravs do Logos, a razo universal.

    Todo esse conjunto de concepes estimulava a ideia deque a matria m e que a alma uma centelha divina presanuma estrutura material. Assim como o Logos habitava econtrolava o universo, tambm a alma, um logos emminiatura, habitava e controlava o corpo. Este era visto comoa casa, o tmulo ou a priso da alma.

    Quanto ao epicurismo, seu fundador foi o filsofoateniense Epicuro de Samos ( c. 271 a.C.), cuja doutrina denatureza eminentemente prtica propunha que a felicidadedo homem poderia ser encontrada numa vida de paz, prazere reflexo. Suas nfases estavam na busca do conhecimentoatravs da experincia, na observncia de preceitos morais,

    no desfrute de prazeres corporais, no cultivo da serenidademesmo em meio aos sofrimentos (ataraxia) e no conceitomaterialista da realidade que, segundo Epicuro, em suatotalidade se reduzia a tomos.

    O estoicismo, por sua vez, teve origem com Zeno de Ccio (263 a.C.) e talvez tenha sido o sistema filosfico que maisinfluenciou o pensamento cristo. Sua doutrina do Logos oconcebia como a razo impressa na estrutura do universo etambm como a fonte de energia de todas as coisas. Sendo certoque h umLogoscomo razo universal, em tudo existe ordem.A partir da, os estoicos concluam que o homem sbio aqueleque ajusta sua vida ordem natural que existe no universo,suprimindo suas paixes, abandonando desregramentos eobedecendo lei natural que existe no mundo e que est impressano ser de cada pessoa.

    Como essas vertentes filosficas concebiam a vida alm-tmulo? Segundo Plato, a morte sempre seguida de um

    julgamento que antecede seu reingresso no mundo: uma

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    opinio muito antiga que as almas, ao deixarem este mundo,

    vo para o Hades, e que dali voltam para a Terra e retornam vida aps haverem passado pela morte.40No Hades as almasrecebem o que merecem, de acordo com o modo como viveram:

    A alma nada leva consigo ao chegar