94
Fim de um Suplício “Arctic Nurse” Elizabeth Gilzean Sozinha em uma Ilha do Ártico, Sharon tremia de medo e de frio. Os cães ao lado do trenó a olhavam de modo desconfiado e a moça sabia que eles só obedeciam a voz do dono. Mas o dono estava longe e Sharon não podia gritar por socorro. Foi então que ela escutou o ruído do motor de um pequeno avião. O avião de Ross, o homem que ela amava, o homem que podia salvá-la. Salvá-la como? Ross não sabia que ela estava perdida e que teria por túmulo aquela bela e terrível imensidão branca! O frio estava cada vez mais forte. Sharon gelada e com fome, perdeu os sentidos... Este Livro faz parte do Livros Florzinha, sem fins lucrativos e de fãs para fãs. A comercialização deste produto é estritamente proibida.

Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

  • Upload
    dybara

  • View
    113

  • Download
    2

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um Suplício“Arctic Nurse”

Elizabeth Gilzean

Sozinha em uma Ilha do Ártico, Sharon tremia de medo e de frio. Os cães aolado do trenó a olhavam de modo desconfiado e a moça sabia que eles sóobedeciam a voz do dono. Mas o dono estava longe e Sharon não podia gritar porsocorro. Foi então que ela escutou o ruído do motor de um pequeno avião. O aviãode Ross, o homem que ela amava, o homem que podia salvá-la. Salvá-la como?Ross não sabia que ela estava perdida e que teria por túmulo aquela bela e terrívelimensidão branca! O frio estava cada vez mais forte. Sharon gelada e com fome,perdeu os sentidos...

Este Livro faz parte do Livros Florzinha,sem fins lucrativos e de fãs para fãs. A

comercialização deste produto éestritamente proibida.

Page 2: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 2

CAPITULO I

Sharon Lindsay subiu correndo os degraus do Hospital St. Mary. Quando chegouao saguão, olhou o relógio e suspirou, desanimada. Quatro e cinco! E ela deveria estarde volta ao trabalho às quatro horas! A enfermeira-chefe não ia gostar nada daqueleatraso. Apressou-se para chegar ao Centro Cirúrgico, rezando para não encontrar seussuperiores no caminho. Uma das enfermeiras de plantão percebeu sua entrada pelaporta da enfermaria.

— Desta vez você exagerou, Lindsay. A srta. Shaw quer que você a procure emseu gabinete. Por onde andou?

Sharon fez sinal para que a outra se calasse.

— Fui à praça Trafalgar — disse. Seus olhos brilhavam.

— Não deixe a enfermeira-chefe saber, ou você pode ser até despedida.

— Isso é o que ela pode querer, mas as coisas estão mudando! Olhe, haviacentenas de pessoas lá, e muita gente dos sindicatos reivindicando seus direitos.Podem até fazer greves de apoio a nosso favor!

— Fique quieta, acho que estou ouvindo os passos da srta. Shaw. Dê-me suacapa, eu a guardarei para você.

Sharon caminhou mais devagar, ao se aproximar do escritório da enfermaria.

A enfermeira-chefe lançou-lhe um olhar furioso.

— Então você voltou, srta. Lindsay, e com dez minutos de atraso. A diretoraquer vê-la imediatamente. E ajeite seus cabelos. Eles estão num estado lamentável.

— Sim, srta. Shaw... está ventando muito lá fora.

— Se eu quisesse a previsão do tempo, já a teria pedido, srta. Lindsay. Esperoque não aprenda a dar desculpas para tudo. A enfermeira-júnior fica em seu lugarenquanto fala com a diretora.

— Quer que eu vá dizer-lhe isso, srta. Shaw? — Sharon perguntoucuidadosamente.

— Não. A diretora não gosta que a façam esperar.

Uma Sharon mais submissa desceu lentamente os mesmos degraus que haviasubido com tanta pressa há apenas dez minutos. Ou menos?

— Entre — ouviu a voz da diretora assim que bateu à porta. — Sente-se, srta.Lindsay. — A expressão da mulher era tão fria quanto o tom de sua voz.

Page 3: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 3

Sharon sentou-se cuidadosamente na cadeira dura de espaldar reto e esperou,catalogando mentalmente suas possíveis falhas. A diretora fechou a pasta que tinhanas mãos e olhou para Sharon.

— Você esteve na manifestação de protesto na praça Trafalgar, srta. Lindsay.— Não havia nenhuma duvida em sua afirmação.

Sharon pensou em várias desculpas e decidiu-se por nenhuma.

— Sim, é verdade!

— Todos nós temos nossos sentimentos sobre a atual situação, enfermeira, mas,como bem sabe, o comitê do hospital deixou bem clara sua posição em relação aosfuncionários do St. Mary. Eu preferiria resolver isso em particular, porém você foivista e reconhecida, e a questão chegou oficialmente a mim. — A diretora passou osdedos sobre a pasta fechada. — Está conosco há cinco anos, srta. Lindsay. Quatrocomo estagiária e um como enfermeira de plantão. — Sua expressão atenuou-se umpouco. — Seus antecedentes revelam algumas falhas, mas falhas perdoáveis. Noentanto, desta vez não tenho escolha. Você terminará seu trabalho no CentroCirúrgico esta noite e a partir de amanhã será transferida para o plantão noturno, noBloco de Isolamento.

Por um momento, Sharon sentiu desespero. Ela já havia cumprido sua quota deplantão noturno daquele ano.

— Obrigada — conseguiu dizer finalmente, engolindo um soluço.

— Isto é tudo, srta. Lindsay. Acho desnecessário pedir-lhe que não participemais destas manifestações.

Sharon ainda estava atordoada. Talvez as sombras do fim de tarde ajudassem atornar aquele corredor mais sombrio, porém os olhos verdes haviam perdido seubrilho. Quem seria o intrometido que a tinha reconhecido? Se ela não fosse arepresentante das enfermeiras de plantão nas reuniões mensais do St. Mary,possivelmente ninguém de lá poderia distingui-la de outra funcionária!

— A enfermeira-chefe já saiu — disse a enfermeira-júnior, à sua espera. —Pediu para você não se esquecer de dar a dieta especial ao sr. Graham. O professorquer que ele esteja em boa forma antes de operá-lo. Posso ir agora?

— É claro! Obrigada. Espero não ter atrapalhado seu serviço. Atrasei seuhorário?

— Não, eu sairei só mais tarde. Vou à reunião no instituto. Quer vir junto?Começa às oito e meia.

— Qual é o assunto? — perguntou Sharon, refletindo que talvez fosse melhor irdo que ficar ali, remoendo as injustiças da vida.

— Qualquer coisa sobre a vida no Ártico, por alguém que esteve participando deum projeto lá. Talvez seja interessante, quem sabe?

Page 4: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 4

— Olhe que é uma boa idéia. Encontro você lá, tão logo termine minhasobrigações de hoje.

— Está certo. Até mais tarde.

Sharon passou os olhos sobre o relatório e fez uma lista de pedidos novos.Dirigiu-se ao armário de remédios e viu que só havia três vidros na prateleira.Suspirou, desanimada.

— Alguém anda lhe dando trabalho, Sharon? — perguntou Alistair Gaskell,entrando de repente na sala.

— Só porque você é o cirurgião-residente, não deve pensar que é dono daenfermaria! — Sharon retrucou, olhando-o de relance. Sua vista, então, fixou-se nele.— Alistair, você comprou uma camisa nova!

Ele corou até a raiz dos cabelos e seus belos olhos azuis fugiram dos dela.

— Não me acuse, Sharon. Eu tenho uma posição a manter. — Deu de ombros. —E, depois, não custou muito.

— Mais do que o aumento que recebemos. O que adianta economizar meuscentavos se você gasta os seus?

— Compensarei no próximo pagamento, prometo. A lavanderia rasgou minhamelhor camisa, juro. Que tal sair comigo esta noite?

Sharon recebeu o convite distraidamehte. Tinha ouvido muitas desculpassemelhantes nos últimos tempos.

— Sharon, você não está ouvindo!

— Estou, sim, e pare de me chamar de Sharon no trabalho. Já lhe pedi centenasde vezes... Não posso sair hoje. Vou a uma conferência. — Começou a separar osremédios que deveriam ser ministrados a cada quatro horas.

— Sinto muito... Sh... desculpe, enfermeira Lindsay. — Alistair observou-a,apreensivo.

— Desculpas aceitas, doutor Gaskell. Não tem nada a fazer? Estou ocupada.

— Tenho alguns relatórios para escrever. Que tal amanhã? Ela tampou um vidroe verificou o rótulo.

— Amanhã também não posso, vou ficar de plantão — disse Sharon, deixandotransparecer certa amargura em sua voz.

— Mas você acaba de completar seu período de plantão noturno. Não é justo!

— Eu sei, mas... não quero falar sobre isso agora, se não se importa.

— Pensei que fôssemos bons amigos, amigos de verdade — protestou ele. —Conte-me o que está acontecendo.

Page 5: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 5

— Agora não — disse-lhe Sharon com firmeza, fazendo com que se retirassepara suas visitas aos pacientes.

Ela pensou nos discursos que ouvira na praça. Não que ela tivesse escolhidoenfermagem pelo dinheiro, mas o fato de ganhar um salário inferior ao de umaservente feria seu orgulho. Era a injustiça que Sharon tinha atravessada em suagarganta. E nunca, desde criança, a aceitara.

Separou o último remédio e iniciou a ronda pela enfermaria. Fez o possível parademonstrar alegria aos pacientes, fingindo ignorar as provocações quanto à situaçãodas enfermeiras e suas reivindicações de melhor salário. Sabia que se entrasse emalguma discussão séria, seu temperamento iria romper a fina camada de discrição queo envolvia. O Centro Cirúrgico estava bastante quieto, apesar de não haver camasvazias. Se tivesse sorte, sairia do trabalho a tempo. Talvez a palestra fosse monótonae ela se arrependesse de ter recusado o convite de Alistair.

Lembrou que, no início, sua amizade com Alistair tinha sido divertida. Sabia dainveja de muitas colegas, desejosas de ser alvo das atenções de um cirurgião atraente.Mas nos últimos tempos um tom diferente havia envolvido o relacionamento, e Sharonnão estava certa se gostava disso. Aos poucos, ela se conscientizava da grandeatração que ele sentia pela boa vida, mesmo em coisas simples como uma gravata nova,um par de meias ou camisas elegantes. Ela havia deixado esta questão de lado, masagora estava certa de que qualquer plano para o futuro deles, era incerto. Talvez oamor só fosse divertido enquanto não se tornasse sério. Aí, seria tarde demais pararecapturar os momentos iniciais de alegria despreocupada.

Eram quinze para as dez quando Sharon se dirigiu à sala das enfermeiras, comsua xícara de chocolate quente. Numa noite comum, ela teria levado o chocolate parasua sala, mas agora estava entusiasmada demais para ficar sozinha, Queriacompartilhar a novidade com alguém. Pôs a mão no bolso e tocou o pedaço de papelonde anotara a informação preciosa, mas resistiu à tentação de puxá-lo. Encontrouuma cadeira vazia e sentou.

Passou os olhos pela sala cheia. Todos pareciam falar ao mesmo tempo e, aqui eali, um grupinho entusiasmado discutia algum fato novo sobre as negociações salariais.Percebeu um ou dois olhares curiosos em sua direção. Por um segundo, imaginou que anotícia da sentença da diretora tinha-se espalhado, mas logo percebeu que era seusilêncio o foco de atenção. Normalmente, desde os primeiros momentos nasnegociações, ela sempre participava de um modo acalorado nas discussões. Avistou aenfermeira-júnior que a tinha convidado para a palestra e acenou, chamando-a paraperto dela.

— Onde você foi no fim da palestra, Lindsay? Esperei horas por você!

— Desculpe-me, fiquei para trás fazendo algumas perguntas — respondeuSharon com um sorriso ao mesmo tempo feliz e enigmático.

Page 6: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 6

— Para quê? — estranhou a outra. — Sei que a palestra foi interessante, mas opólo norte é tão longe! Temos que ficar aqui até conseguirmos um aumento em nossossalários. Estou cansada desta confusão, mas não há nada que eu possa fazer a não seresperar.

— Só que eu não vou esperar — retrucou Sharon, com entusiasmo, sem perceberque sua voz se alterara e várias pessoas tinham se voltado para escutá-la.

— Vai fazer uma greve particular, Sharon? — alguém a provocou.

— Enfermeiras não entram em greve — fez-se ouvir outra voz, em reprovação.

— Não vou entrar em greve. Vou deixar o St. Mary. — Um murmúrio dedescrença se espalhou pela sala.

— Foi despedida, Sharon? — ironizou alguém, sem se identificar.

— Não seja maldosa, Hellier!

Sharon ignorou todas as observações. Estava muito ocupada consigo mesma,vivendo emocionada esse seu momento de decisão.

— E para onde vai, Sharon? — uma de suas colegas aventurou-se finalmente alhe perguntar.

Sharon levantou-se. Não podia fazer uma participação como aquelasimplesmente sentada em uma espreguiçadeira.

— Vou trabalhar como enfermeira no Ártico!

Houve uma explosão de risos que, diante da expressão de Sharon, se dissiparamquase instantaneamente.

— De quem você vai cuidar lá, de pinguins ou de ursos polares? — Hellier não seintimidava, perguntando, zombeteira.

— Como é, Sharon, não nos deixe neste suspense! — atreveram-se outras.

— Vou para o Hospital Missionário de Cabo Mercy, na Ilha Baffin. Fica na parteleste do Ártico, a nordeste da Baía de Hudson, e faz parte do arquipélago canadense.

— E quando decidiu tudo isso? Você nunca disse nada.

Sharon pôde ver que todos acreditavam, agora.

— Esta noite, após a palestra a que fui com Ramsay. Aquilo me pareceu um bomdesafio. Estou no St. Mary há uma eternidade. Isso será uma experiência nova. Vouver esquimós, caíaques, trenós puxados a cachorros e... ah, tanta coisa! — Tirou dobolso o pedacinho de papel e acenou com ele. — É apenas um hospital pequeno. Nesselugar existe apenas a Companhia de Comércio Hudson, um posto policial... isso é tudo.

— Tudo? Quantas pessoas vivem lá?

— Não tenho certeza — hesitou Sharon — Umas dez, creio. Brancas, querodizer. Há um povoado esquimó perto da vila e uma espécie de acampamento de

Page 7: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 7

exploradores ou de cientistas, ou de mineiros, não sei muito bem. Na palestra haviamuita gente fazendo perguntas e talvez eu tenha confundido algumas respostas.

— Não me surpreende tanto, vindo de você, Sharon — disse alguém, rindo. —Por acaso você perguntou se existe um médico lá?

— Mais ou menos — Sharon corou. — Parece que ele não fica lá todo o tempo;também cuida do acampamento e de outros povoados esquimós.

— E você disse que assinaria o contrato sem saber mais nada a respeito? —havia um leve tom de inveja naquela voz.

— Sim, disse! Vai ser diferente da velha rotina e, talvez, até mesmo divertido —respondeu Sharon, em desafio. — Vou vê-los amanhã pela manhã para acertar o restodos detalhes.

— Mas você não tem folga pela manhã, Lindsay — a voz de Ramsay soou umpouco estranha.

— Tive que trocar minha folga — disse Sharon, olhando-a rapidamente.

— Eu aposto que teve — zombou Hellier. — Espero que goste do Bloco deIsolamento tanto quanto gostarei do... Centro Cirúrgico.

Sharon se viu cercada pelas amigas, agrupadas em torno dela. Ramsay foi aprimeira a falar: — Aconteceu alguma coisa, Lindsay?

Sharon assentiu com a cabeça. Todos ficariam sabendo, mais cedo ou mais larde.

— Fui vista na manifestação da praça Trafalgar esta tarde e delatada àdiretora. Ela me puniu, mandando-me para o Bloco de Isolamento, plantão noturno.

— Foi bem feito — disse Hellier, a uma distância segura. — Aposto o que quisercomo está fugindo para o Ártico para escapar à punição — finalizou, deixando a sala.

— Não é nada disso — Sharon replicou, veemente. Parte do brilho de seus olhos,porém, havia desaparecido.

— Nós sabemos. Você nem sequer pensou na diretora, quando concordou, estanoite. — Ramsay parecia falar por todos. — Mesmo assim, sinto-me aliviada por nãoser eu a ter que dar explicações. Quando vai apresentar seu pedido de demissão?

— Amanhã, suponho — disse Sharon pensativamente. Não esperava que tudoterminasse assim.

Ouvia-se o som distante do clique de um interruptor de luz.

— É a enfermeira-chefe da noite. Vamos, gente, vamos lhe fazer uma surpresa,estando uma vez na vida em nossas salas.

Sharon desceu o corredor em direção à sua sala. Sabia que Ramsay vinha logoatrás, mas não teve vontade de continuar a discussão. A roda do destino estavagirando rápido demais e ela precisava de tempo para alcançá-la, tempo para pensar.

Page 8: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 8

Sharon acordou cedo e lembrou que não precisaria trabalhar naquela manhã.Estaria no plantão noturno. Permaneceu na cama, desanimada com essa perspectiva,mas logo reagiu. Iria à entrevista às 13 horas. Seria coisa rápida, concluiu ela, pois osorganizadores da palestra deveriam estar contentes por terem conseguido umavoluntária e, uma vez feitos todos os acertos, ela poderia se apresentar à diretora àtarde. Recusava-se a pensar em sua reação ou na de qualquer outra pessoa. Não tinhaque consultar ninguém sobre sua inesperada decisão. Perdera os pais quando pequena ea tia que a criara falecera havia dois anos. Não tinha ninguém para impedir sua partidanem sentir sua falta.

Pensou com amargura na cena da última noite. A hostilidade de Hellier nunca ahavia preocupado antes. Mas uma vez alguém dissera que ela estava interessada emAlistair. Sharon sorriu maliciosamente. Esta era uma forma de resolver o problema dacrescente seriedade de Alistair sem lhe trazer sofrimento. Será que ele seimportaria? Embora ele não houvesse feito um pedido formal de casamento, ela sabiaque esta era sua intenção. Ela deveria descobrir um modo de lhe contar a novidadeantes que outra pessoa o fizesse. Sem dúvida, quando estivesse preparada para lhecontar, Hellier já o teria informado. Na verdade, sua simples presença ocupando olugar de Sharon no Centro Cirúrgico seria suficiente para fazer Alistair suspeitar.

Sharon olhou para o pátio, coberto por uma neblina cinzenta. Já erasuficientemente ruim ter que voltar para o plantão noturno, sem esse tempo horrível.Pensou que talvez fosse tão horrível justamente por ela se sentir dessa maneira. Pôs acapa sobre os ombros, atravessando lentamente o pátio em direção ao Bloco deIsolamento. Não tivera ânimo para jantar no refeitório e estava sem companhia paraentrar no serviço. A neblina densa tornava os sons abafados e distantes e as luzespareciam envoltas em auréolas. Quando, porém, entrou no prédio, sentiu-se melhor,acalentada pelo ar quente a acariciar seu rosto.

A chefe de plantão da Enfermaria de Isolamento cumprimentou-a com arcansado.

— Boa-noite, enfermeira Lindsay. Você não deverá ter muito trabalho estanoite. Só há um caso grave e ele está no quarto ao lado do escritório da enfermaria,de modo que você poderá ouvi-lo, se ele tentar sair da cama. O bebê do quarto 3apresentou melhora e deve passar a noite sem a mamadeira das duas horas. Podepreparar um saco de roupas para o porteiro da noite esterilizar junto com as roupasdas outras enfermeiras. Oh... e será que você poderia remendar algumas luvas? Asnossas estão todas esburacadas. A enfermeira-chefe da noite deverá informá-lasobre o horário de jantar. Acho que você sabe onde encontrar tudo, não?

— Sim, obrigada — disse Sharon, sem entusiasmo.

Esperou a enfermeira sair para explorar seu novo domínio. Somente seispacientes para tomar conta. Parecia mais um cemitério, em comparação com o ritmo doCentro Cirúrgico, onde sempre houve muito por fazer e pouco tempo disponível.

Page 9: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 9

Por volta das nove horas, Sharon já conseguira organizar suas tarefas para anoite. A situação do quarto ao lado, um caso de meningite, estava tranquila. Nemmesmo o bebê estava choramingando. Havia somente o som abafado da música vinda doquarto do sr. Smith, no fim do corredor. Ela permitira que ele ouvisse seu programafavorito, pois duvidava que isso incomodasse os outros.

Sentou-se à escrivaninha da enfermaria e começou a cortar quadrados de gaze,que dobrava, juntando-os de seis em seis. Imaginou se conseguiria suportar um mêsinteiro fazendo isto. Será que a diretora sabia a que a estava condenando, quando amandara para lá? Pensou na conversa que haviam tido aquela tarde, e sentiu umarrepio. A mulher havia sido terrivelmente fria.

— Não posso impedir que se vá, srta. Lindsay, se seu propósito em relação aesse projeto é firme — dissera ela, suspirando. Quanto às explicações de Sharon,afirmara: — Entendo, acho apenas natural que os outros não aceitem com facilidade.Pensarão que você está fugindo.

Depois sorrira, quando Sharon falara com veemência: — Mas essa não foi deforma alguma a razão, diretora!

E agora Sharon estava lá, sentada, confeccionando curativos e tentando seconvencer de que dentro de trinta e três noites estaria a bordo de um avião rumo àGroenlândia. De lá para Cabo Mercy a viagem seria bem mais curta.

Uma batidinha leve na porta que levava à escada fez com que Sharon desviasseos olhos de seu trabalho. Andou apressadamente em direção a ela e, então, quaseparou de espanto. A figura por trás do painel de vidro era Alistair.

— Você não pode entrar — sussurrou pelo vão da porta.

— Oh... sim, eu posso — e abriu a porta, passando por Sharon. — Vim dar umaolhada no caso de meningite, para Heming. Ele está com gripe. Portanto, pare defranzir esse rosto bonito e arranje-me um avental como o seu.

Sharon olhou desconfiada para ele e depois lhe deu um avental, ajudando-o avesti-lo.

— Espero que tenha colocado bem os adesivos. Não quero nenhum micróbiorastejando pela minha camisa nova. E você não precisa olhar assim: é a mesma que useiontem. — Esperou que ela colocasse a última fita adesiva, para continuar, no mesmotom de discussão. — Você não acha que poderia ter-me contado, ao invés de Hellier?Ela adora dar más notícias, e ainda as tempera com sal e vinagre.

— Sinto muito, Alistair, de verdade — disse, arrependida.

— Vamos olhar seu paciente — a voz de Alistair mostrava censura. — Quandovocê parte? Na próxima semana? — Seu olhar era irônico e traduzia descrença.

— Não, no próximo mês. Dentro de trinta e três noites, para ser exata — disseela, sabendo que o surpreendia.

Page 10: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 10

— Então você vai mesmo! Disse aquela Hellier miserável para ir contar suashistórias em outro lugar. Mas... e nós? — O sofrimento dele perturbou Sharon.

— Não iria dar certo, Alistair... jamais. Somos muito diferentes.

Viu os olhos azuis hesitarem diante da determinação dela.

— Por favor, Sharon, dê-nos mais uma chance. Podemos decidir quando vocêvoltar.

A infelicidade dele deixou-a mais doce.

— Falamos sobre isso outra hora, Alistair. — Ela não queria machucá-lo,dizendo-lhe que nunca mais voltaria ao St. Mary.

Conduziu-o ao quarto ao lado. O paciente encarou-os com olhos febris, o corpocontraído. Quando Alistair terminou o exame, Sharon refez a cama e deu de beber aohomem. Esperou pacientemente enquanto Alistair lavava as mãos e pendurava o aventale então deixou-o escrever suas anotações, enquanto aplicava uma injeção no paciente.Levou algum tempo descartando a seringa e depois lavou as mãos. Pegou outro aventaldo armário e o vestiu. Antes que suas mãos alcançassem as fitas para amarrar, Alistairveio em sua ajuda.

— Permita-me. — O calor de seus dedos passou pelo tecido fino e sua suavidadefoi um apelo mais forte aos sentidos de Sharon do que qualquer palavra que elepudesse pronunciar.

— Obrigada, Alistair — disse ela, afastando-se um pouco. — O que você achoudele? — gesticulou em direção à parede de vidro que os separava do paciente.

— É difícil julgar, pois nós dois o vimos pela primeira vez esta noite, mas eudiria que ele não está reagindo bem ao tratamento. — Suspirou. — Outro caso de vírusresistentes a tratamento, suponho. O bom é que os pesquisadores continuamdescobrindo sempre mais um antibiótico, outro soro, senão voltaríamos ao antigopesadelo dos dias anteriores a Lister e Pasteur. Faz a gente pensar que os hospitaisestão se tornando armadilhas mortais, ao invés de lugares de cura para os doentes.

O som de passos vindos da escada chegou até eles de repente.

— Deve ser a chefe da noite. É melhor você ir — Sharon apressou-se a dizer.

— Você esquece que estou aqui a trabalho. Bem, boa-noite, Sharon... Lembre-se:você ainda não partiu!

Ela retomou a tarefa anterior, dobrando os quadrados de gaze branca. A chefeda noite ia trabalhar primeiro nos outros andares do Bloco de Isolamento. Ouviu a vozde Alistair e depois uma voz de mulher, seguida de passos diminuindo na noite. Restouapenas o resmungar do homem no quarto ao lado e algum ruído ocasional para lhelembrar que não estava sozinha.

Alistair tinha sido mais compreensivo do que ela merecia, fazendo-a sentir-seculpada. Talvez fosse bom ela partir assim tão depressa. Se ele tivesse mais tempo

Page 11: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 11

para convencê-la, ela acabaria cedendo. Ele não havia sugerido que ela estava fugindode seu castigo. Mas não pensaria, talvez, que Sharon fugia dele? Não estava tão certa.Sob a aparente despreocupação dele, havia uma determinação séria, tão forte quantoa dela. A imaginação de Sharon deixou para trás o sofrimento de Alistair, areprovação da diretora, a zombaria de Hellier e ela viu a brancura do Ártico à suafrente, as pegadas dos cães puxadores de trenó, e, aqui e ali, esquimós vestidos depeles saindo de seus iglus. Percebeu então o pouco que sabia a respeito do lugar paraonde ia. Na conversa da noite anterior, mais do que um simples relato de fatos, elasentira o desafio lançado àquela audiência entendida. O conferencista conseguira aatenção de todos até o fim. Como ele havia chamado os esquimós? O povo mais feliz domundo, vivendo numa das regiões mais cruéis da terra. De qualquer forma, ela teriaque descobrir por si própria.

Apesar do cansaço, um arrepio de entusiasmo percorreu sua espinha. Haviamuito por fazer: passaporte, vacinas, malas, despedidas, parte desse entusiasmodiminuiu quando lembrou que não havia muita gente para ir ao seu bota-fora: algunsamigos de família e umas poucas colegas. Imaginou que Alistair insistiria emacompanhá-la. Por um momento, sentiu remorso, porém eles não haviam compartilhadonenhuma felicidade secreta, apenas momentos agradáveis e uma ou duas brigas sérias.Isso certamente não era amor, nem poderia levar a casamento.

Seus pensamentos andavam rápido. Precisaria de muita roupa quente. Osecretário da sociedade missionária não fora bem claro, e dissera que ela talvezpudesse comprar alguma coisa lá. Ela ainda tinha as roupas de esqui que usara nasférias de inverno, na Noruega e em Chamonix. Poderia perguntar a Alistair: ele tinhaido naquela expedição da universidade para a Finlândia, no verão, antes de entrar parao hospital.

Respirou profundamente. Isso era tão excitante quanto mergulhar na partefunda de uma piscina desconhecida... ou aterrissar com um avião estranho no topogelado do mundo, a Groenlândia, no meio da noite.

Sharon se arrepiou quando o ar frio bateu em seu rosto. Desceu desajeitada osdegraus altos e sentiu o gelo quebrar sob seus pés. Passou os olhos à sua volta, porémnão havia muito o que ver. Sondrestrom, Groenlândia, poderia ser qualquer outroaeroporto. O brilho das luzes tornava visível a silhueta de outros aviões, algunsgrandes como o dela, outros menores. Além dessa claridade, havia apenas escuridão,uma escuridão que poderia esconder os campos verdes da Inglaterra ou o gelodesolador do mundo. Atrás dela, a aeromoça apressava os passageiros que resistiam aabandonar o abrigo quente do avião.

— Temos que reabastecer aqui. Sinto muito por incomodá-los, mas regras sãoregras. Há café e sanduíches na cantina.

Page 12: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 12

Tudo parecia muito comum. O que pensariam lá no St. Mary se soubessem quelhe tinham dado um bota-fora maravilhoso para isso? Lembrou que Alistair tinha ido aoaeroporto para vê-la. O que fora mesmo que ele dissera? Ah... sim, ela lembrou:

— Não creio que você vá encontrá-lo. O Ártico é bastante grande. Em todo caso,seu nome é Ross Clarke. Você poderá distingui-lo facilmente por seu cabeloexageradamente negro. É bastante chamativo. Não se esqueça de escrever. Eupreferia que não fosse, Sharon.

Então, beijara-a na frente de todos e, por alguma estranha razão, ela se sentiramais perto dele naquela hora que em qualquer outro momento.

Passou os olhos, curiosa, pela cantina. Era simples mas aconchegante, com umvapor de café subindo preguiçosamente pelo ar. Parecia haver bastante gente,considerando a hora. Podia ver os passageiros do avião nas mesas, mas havia outrosque não conseguia reconhecer. Talvez viajassem nos outros aviões que vira na pista.Mexeu seu café. O avião deles era o único a reabastecer? Tomou o café aos golinhos.Era forte e muito quente e ajudou a espantar o sono.

Era mesmo Sharon Lindsay, vinte e três anos de idade, cabelos castanho-escuros, olhos verdes, como descrevia seu passaporte, enfermeira de plantão noHospital St. Mary, Inglaterra, era ela mesma que estava sentada lá, bebendocalmamente seu café? Quase ninguém acreditara que iria mesmo para o Ártico, ehouve momentos, durante aquelas trinta e duas noites, em que ela própria duvidara.Porém lá estava ela e as rodas do destino não mudariam de curso facilmente. Foi até obalcão pegar mais um café.

— Quer mais um, meu bem? — perguntou o homem que servia café. — Passe-mea xícara. Você está com os outros? Veio para se casar? — Ele percebeu uma expressãode deboche nela. — Ah, não? Isso é o que todas falam, até que aconteça. Para ondevai, coração?

— Cabo Mercy — disse Sharon friamente, pegando seu café.

— Não podia ter escolhido um lugar mais aconchegante? — perguntou o homem.— É simplesmente um inferno de frio e vento e quando há uma nevasca você ficatrancada em casa por dias e dias. — Olhou-a demoradamente. — Você é bonita demaispara ser missionária. Acho que poderia ser professora. Não que aparente ser uma,coração. Afinal, o que você faz?

Sharon sentiu-se tentada a lhe responder com aspereza, mas resistiu.

— Sou enfermeira — contou-lhe, provocando um assobio de entusiasmo nohomem.

— Acho que vou arranjar uma doença para você cuidar de mim!

— Sinto muito, preciso ir — Sharon disse.

Um homem entrou correndo na cantina.

Page 13: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 13

— Atenção, vôo 601. Receio que haverá algum atraso. O conserto do motor vaidemorar mais do que o previsto. Sinto muito.

Quando o homem virou-se para sair, Sharon viu um outro muito alto seaproximar e começar a discutir com ele. Estava longe demais para que entendesse suaspalavras, via somente os gestos. Observou a cena preguiçosamente. O recém-chegadovestia roupa pesada de inverno e ela ficou imaginando quem seria ele. Porém aaeromoça de seu vôo veio em direção ao grupo e ela esqueceu o estranho.

Ela se sentiu feliz por estar de volta ao calor de seu lugar. O avião não estavalotado e o lugar dela estava vazio desde Amsterdam. Instalou-se confortavelmente,apertando o cinto de segurança. O resto dos passageiros fazia o mesmo. Esperou ouvira batida pesada da porta, preparando-se para partir, mas não ouviu nada. A aeromoçaestava parada no último degrau e parecia falar com alguém embaixo. Entrou no aviãomas, para surpresa de Sharon, veio seguida de uma figura alta. Devia ser alguém datripulação. Ouviu passos. Pareciam ir para a cabine do piloto, mas pararam ao lado dela.

— Importa-se se me sentar aqui? Os outros assentos vazios estão muito cheiosde bagagem. — Alguma coisa na voz grave do homem soou familiar.

— De forma alguma — disse Sharon rapidamente, sem olhá-lo bem.

Pegou o mapa de vôo e começou a estudá-lo. Traçou com o dedo a linha vermelhapor onde já tinha passado: Londres, Amsterdam, as Hébridas, sul da Islândia,cruzando a parte gelada da Groenlândia. Mais adiante estava a costa rochosa da IlhaBaffin — a terra de Baffin dos primeiros exploradores do Ártico.

— Quantos para Frobisher, por favor? Não deve demorar agora — disse aaeromoça, olhando o papel que trazia na mão.

Sharon inclinou-se para a frente, curiosa. Apenas três ou quatro passageirosresponderam. A aeromoça chegou ao seu lugar.

— Vai continuar até Cabo Mercy, não vai, enfermeira Lindsay?

Porém Sharon não estava prestando atenção. Olhava o homem alto, forte, decabelos negros e grossos a seu lado. O homem a olhava também e agora pareciabastante irritado.

— Enfermeira Lindsay! Meu Deus! Não me diga que você foi a única pessoa queencontraram para trabalhar comigo em Cabo Mercy! — falou ele, de modo ríspido.

CAPITULO II

Antes mesmo que Sharon pudesse responder, o avião sofreu um solavancoinesperado e o painel iluminado indicou que os passageiros apertassem os cintos de

Page 14: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 14

segurança. Os dedos de Sharon tremiam segurando as fivelas, quando seu companheirose inclinou para ela:

— Por favor... deixe-me ajudá-la.

Sentia-se tentada a recusar, mas o avião balançou mais uma vez e o homem,calmamente, apertou seu cinto. Sharon desviou os olhos, virando-se para a janela. Oluar pálido fora substituído por grandes nuvens parecendo envolver o avião. Sharon,apesar da cabina pressurizada, sentiu falta de ar.

— Não entre em pânico, garota! — sussurrou uma voz firme em seu ouvido.

— Eu não vou entrar — Sharon protestou, cheia de raiva, e percebeu querespirava melhor.

— Ótimo, então fique assim. Parece que vamos ficar no ar por mais tempo doque o previsto. Raios!

Sharon relaxou um pouco, agora que a impetuosidade dele parecia estar dirigidacontra o tempo.

— E o que vai acontecer? — atreveu-se a perguntar.

— Ficaremos voando de um lado para outro nessa confusão, até que o pilotoache um buraco nas nuvens para podermos passar — respondeu.

— E se não encontrar um buraco? — perguntou, mais por curiosidade que pormedo.

— Se houver bastante gasolina, ele pode voar para Porto Coral ou voltar aSondrestrom. De qualquer maneira, isso significa um longo atraso. Maldição! E eupensava em chegar cedo à base. — Ele parou de falar, batucando com os dedos umamelodia sem fim.

Sharon respeitou seu silêncio, recostando-se em seu lugar. Olhou seucompanheiro. Ele não era exatamente bonito. Seus traços eram fortes demais e asaliência de seu queixo tão agressiva quanto seus ombros largos. Ela lembrava comosua figura alta havia tornado pequena a aeromoça — ele deveria ter no mínimo ummetro e noventa de altura. E parecia ser dono de uma personalidade que combinavacom seu físico: muita força espalhando-se por ângulos bem agudos.

— Como é, eu passo? — a voz a seu lado tinha um tom divertido. Sharon ficaratão absorta analisando-o que não percebera que seu companheiro também a observava.Sentiu o rubor invadir-lhe as faces, enquanto sua mente buscava sem sucesso qualquerresposta.

— Bem, como vamos os dois para Cabo Mercy, creio que podemos nosapresentar. Chamo-me Ross Clarke.

— Eu sei — interrompeu Sharon.

— Não é possível! Eu nem sequer faço parte deste vôo — retrucou ele, surpreso.

Page 15: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 15

Sharon sentiu-se satisfeita em deixá-lo perplexo. Isso compensava asobservações que ele havia feito antes.

— Um amigo meu disse-me que você estaria no Ártico — explicou ela comnaturalidade.

— O Ártico é bastante grande e eu imagino ter mais que um amigo.

— O nome dele é Alistair Gaskell. Trabalhamos juntos no St. Mary, em Londres— sorriu.

— Você por acaso é Sharon? A última vez que recebi notícias dele estava loucopor uma deusa de olhos verdes. — Olhou-a atentamente. — Sim, são mesmo verdes.Pensei que já estivessem casados.

Ela titubeou com o tom sarcástico que ele empregava. E, de repente, sentiumuito próximos o St. Mary, as colegas de trabalho, Alistair.

Afastou com raiva algumas lágrimas e procurou concentrar-se no que a janelalhe permitia ver.

— Que bom, já estamos descendo.

Pareciam estar voando em direção a um túnel escuro, aterrissando numa pistainvisível.

— E agora? — perguntou ela, ansiosa.

— Espero que nos achem no meio desta neblina toda. Há uma cantina. Creio quevocê está sendo esperada.

— Você não vai para Cabo Mercy?

Ele soltou o cinto de segurança e pegou seu saco de viagem.

— Mais tarde. Não fico lá o tempo todo, como você sabe. Ou não sabe?

— Não fui bem informada — Sharon disse, com uma submissão pouco comum.

— Suponho ao menos que em Cabo Mercy saibam que você vai chegar, não?

— Disseram-me que estava tudo preparado — respondeu ela, intranquila.

— Nesse caso, acho que está tudo bem, não? Fique na cantina, que eles aencontrarão lá.

Quando a aeromoça abriu a porta da cabina, Sharon percebeu o barulho dotráfego: aviões esquentando seus motores, veículos pesados, vozes altas de homensimpacientes, irritados ou apenas ocupados. A neblina envolvia a todos como um pesadocobertor branco, fazendo com que ela se sentisse indefesa e perdida. Para suasurpresa, notou que estavam sendo conduzidos na direção de um ônibus. O motoristaera um homem baixo e simpático, com olhos escuros como breu.

— Sim, ele é um esquimó. O primeiro que você já viu, sem dúvida. É melhor vocêandar, está segurando a fila — disse Ross Clarke, logo atrás dela.

Page 16: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 16

Sharon sentiu o calor agradável do interior do ônibus e se arrepiou ao pensar nofrio que fazia.

— Espero que tenha trazido algo mais quente do que estas roupas de cidade —observou ele.

— Trouxe minhas coisas de esqui, estão na mala — respondeu ela.

— É melhor vesti-las. Você tem uma viagem longa e fria pela frente.

— Como se chega normalmente a Cabo Mercy?

— Depende do tempo. Se não houver tempestade forte, vai-se de barco ouentão por terra, com um trator especial para neve.

— Eu quis dizer, como você vai para lá? — Sharon insistiu.

— Se a neblina permitir, vou de avião. — Ele parecia um pouco aborrecido comtanta pergunta.

— Mas eu não poderia... — Sharon começou a falar.

— Não, você não pode — ele a interrompeu com impaciência. — Tenho que levarum carregamento de material cirúrgico e, além do mais, Cabo Mercy não é minhaprimeira parada. — Sua expressão fria e distante desestimulava novas perguntas.

O ônibus se movia lentamente através da neblina. Sharon agora se sentiacansada, imaginando o que ainda teria pela frente até chegar a Cabo Mercy. Receberiauma recepção mais calorosa do que a que lhe dera Ross Clarke? Deve ter adormecido,porque foi acordada por alguém que a sacudia rudemente.

— Vamos lá, senhorita Lindsay, ou seja lá como se chama!

Sharon abriu os olhos com dificuldade, enquanto a voz se tomava maisimpaciente.

— Sharon, você está atrasando os outros!

— Sinto muito, eu não queria dormir — disse ela finalmente, conseguindo pôr-seem pé.

— Deixe as desculpas de lado. Preocupe-se com os degraus, eles estãoescorregadios por causa do gelo.

Seu cérebro pode ter ouvido o conselho, mas seus pés, não, pois no momento emque tocaram o primeiro degrau, ela foi ao chão, num tombo bem pouco gracioso. RossClarke levantou-a, limpando suas roupas com mãos apressadas.

— Quanto antes puser algo mais seguro nos pés, melhor. Você não é só umaborrecimento, mas também uma ameaça.

— Desculpe, realmente, eu não quis... — disse ela, tremendo.

— Esqueça. Entre na cantina e coma alguma coisa e... tire essas roupas decidade! Se pensou em conquistar alguém aqui do norte com elas, perde seu tempo.

Page 17: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 17

Já na cantina, um rapaz com ar sonolento estendeu-lhe uma bandeja com omaior café da manhã que ela havia visto; porém, antes que pudesse dizer algo, RossClarke foi mandando.

— Coma tudo! Esta é uma das leis mais importantes do norte. Você nunca sabequando será sua próxima refeição. Agora tenho que ir. Imagino que encontre você aqualquer hora, para meus pecados!

Afastou-se antes que ela pudesse agradecer ou mesmo odiá-lo. A cantina era umdos lugares mais simples e mais mal providos que jamais vira. Para seu espanto,devorou a refeição até a última migalha e só então percebeu que era o centro dasatenções. Só havia homens ali. Sentindo-se corar, pegou suas coisas e foi até obanheiro. Ao passar, provocou assobios de admiração. Já na segurança do aposentofechado, olhou-se ao espelho. Talvez Ross Clarke tivesse razão quanto às suas roupas.Elas não pareciam adequadas àquele mundo tão prático em que se encontrava agora.Para seu alívio, notou que a aeromoça também estava lá.

— Pensei que fosse continuar — disse Sharon, surpresa.

— Apenas quando a neblina levantar. Às vezes ficamos aqui durante dias,esperando que ela se dissipe. Os aviões grandes não têm esse problema! — Olhoucuriosa para Sharon. — Mas o que trouxe você a esse fim de mundo? Veio se casar?

— Vim como enfermeira — disse Sharon, timidamente.

— Mas é claro... — a outra riu, incrédula. — Isso é o que todas dizem, mas, emseis meses, ou se casam e voltam para o sul, ou arrumam como marido algum médico oumissionário e passam o resto de suas vidas aqui no norte. Este lugar é como umadoença: ou você é imune a ele e nesse caso logo volta à sua terra natal, ou ele a pega.Bem, vou indo. Por que não tenta dormir um pouquinho?

— Mas, e se o pessoal de Cabo Mercy não souber onde estou?

— Não seja tola! Você é a única mulher aqui, sem contar comigo. Lá fora não háum homem que não saiba descrevê-la até a costura do sapato. Se alguém procurar porvocê, vai haver uma centena de voluntários para mostrar o caminho! Até logo!

Sharon olhou à sua volta. Anexa ao banheiro, havia uma saleta, com um sofá ealmofadas. Não soube quanto tempo dormiu; assustou-se quando a aeromoça a sacudiu.

— É melhor acordar, minha querida. Há um homem que a espera com impaciêncialá fora. Disse que é para ir bem agasalhada. Tem certeza de que já acordou direito?Preciso ir, vamos levantar vôo dentro de quinze minutos.

Por um segundo, Sharon ficou confusa, mas logo se refez, trocando rapidamentesuas roupas elegantes pela roupa de esqui. Pegou suas coisas e foi em direção àcantina. Para seu horror, o lugar estava ainda mais cheio de homens e todos pareciamolhar para ela.

— Isso é seu, garota? Apresse-se, a neblina pode baixar a qualquer momento.

Page 18: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 18

A voz de Ross Clarke pegou-a de surpresa.

— Pensei que tivesse partido — disse estupidamente.

— Essa maldita neblina me deteve, assim como o pessoal de Cabo Mercy —disse, pegando as malas de Sharon como se fossem plumas. — Imploraram para quelevasse você comigo. Não pude recusar. — Olhou-a com ar crítico. — Ainda bem que overão está chegando. Espero que tenha coisas mais quentes na mala.

— Mas eu usei essas roupas na Noruega — disse Sharon.

— Não fazia cinquenta abaixo de zero lá! E se ventar, adicione muitos grausnisso aí! Um traje de banho não seria diferente desse seu agasalho.

Sharon ficou quieta e seguiu-o submissa, sem ousar dizer mais nada. Imaginouque Ross Clarke a estaria levando para seu avião. A forma como tinha reclamado dafalta de espaço quando ela pedira uma carona sugeria que o avião não devia ser grande.Finalmente, chegaram até ele. Sharon olhou-o incrédula. Além de pequeno, não pareciaser nada seguro. Ross Clarke pareceu adivinhar seus pensamentos.

— Este é o Patinho Feio. Ele usa esquis no inverno, flutua no verão e tem rodas,caso a terra esteja seca. — Bateu carinhosamente na asa. — Não é nenhuma beleza,mas pode voar quando os grandes têm que ficar parados no chão.

Quase sem perceber, Sharon se viu dentro da cabina minúscula, entulhada depacotes de todos os tamanhos e formatos, com os pés sobre sua bagagem.

— Isso é tudo o que trouxe? Não parece muito para quem pretende passar umano!

— Disseram-me que poderia comprar alguma coisa no armazém — defendeu-seSharon, mordendo os lábios para se conter.

— Você não deve ter estudado a figura das mulheres esquimós muito de perto!— disse ele, rindo.

— Eu vim para trabalhar, não para brincar.

Ele a olhou inquisitivamente, porém não fez maiores comentários. Em poucotempo, tinha tomado seu lugar e se preparava para a decolagem. Logo estavam no ar,subindo rapidamente. Ross Clarke bateu no ombro de Sharon e apontou para baixo.Sharon avistou maravilhada a Baía de Frobisher.

— À nossa frente está Cumberland, o pedaço de gelo mais antigo da região. OCabo Mercy fica ao sul.

Sharon olhou atentamente a paisagem, observando os picos nevados deCumberland.

— Isso aí embaixo é Pangrurtung, uma cidade, se comparada a Cabo Mercy. Nóssomente existimos porque havia lá um acampamento de verão dos esquimós, que atraios missionários. Atualmente, é a mineração que nos mantém.

Page 19: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 19

— Uma mina aqui no norte? Não é frio demais? — Sharon estava curiosa.

— Você tem razão. Mas os especialistas dizem que há minério no Árticosuficiente para nos deixar milionários. Se eles estiverem certos...

— Qual a sua opinião? — Sharon se aventurou a perguntar.

— É a esperança de que haja que me mantém aqui. Segure-se, estamosdescendo. Maldição... olhe só aquela neblina!

Havia uma parede branca de neblina à frente deles. O avião mergulhou por baixodela e Sharon pôde ver um aglomerado de telhados vermelhos, parecendo ser debrinquedo, ao lado de um mar de espelho. O avião balançou. Era o início da aterragemno campo gelado. O motor desligou abruptamente e a pequena cabina foi invadida pelosilêncio do Ártico. Sharon, assustada, observou ao longe um grupo que parecia feito depontinhos pretos se movimentando, chegando mais perto. Eram pessoas, as pessoascom quem iria trabalhar e viver. Sentiu-se tímida e insegura. Estava, na verdade,apavorada.

Ross Clarke olhou-a atentamente:

— A viagem de volta é muito longa, o próximo navio a ancorar aqui chega só emagosto ou setembro e o meu avião é o único que aterra neste campo — falou ele, rindo.

— Não estou com medo! — Sharon replicou, furiosa.

— Não mesmo? Bem, nós estamos. Numa comunidade pequena como esta, não hálugar para gente indecisa!

Sharon deixou que sua curiosidade dominasse a raiva, olhando fixamente para ogrupo que se aproximava.

— O primeiro é o sr. Emerson, o pastor. A mulher atrás dele é sua esposa.Aquele mais forte é Charlie Gordon, o nosso Mountie e, atrás dele, o gerente da HBC,Smithson. O resto são esquimós. Você aprenderá todos os nomes com o tempo.Estranho... o que Ariel está fazendo aqui? — exclamou ele, de repente.

Para espanto de Sharon, ele ficou mais humano e agradável. Ela se debruçoupara a frente, para olhar melhor a pessoa que conseguira mudar este homemimplacável. Felizmente, Ross ClarKe estava preocupado demais com seus própriospensamentos para perceber o interesse de Sharon.

À primeira vista, a garota parecia ser apenas uma menina, escondida em suaroupa de esquimó. Porém, quando puxou o capuz, revelou uma mulher de cabelos pretosaté os ombros e olhos muito escuros. Riu alegremente, segura de ser bem-vinda.

— Viu, chéri, vim lhe fazer uma surpresa! Um passarinho me contou que você nãoiria ao acampamento primeiro, como prometeu. Esta é a primeira vez que você quebrauma promessa. Espero que isso não aconteça novamente, ou então, Ariel Rochelle vaificar brava com o doutor Ross Clarke! — Olhou curiosa para dentro da cabina. — Vocêtrouxe a nova enfermeira e nem nos apresentou!

Page 20: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 20

A expressão de Ross Clarke alterou-se, como se só então ele tivesse percebidoque ele e Ariel não estavam sozinhos.

— Ariel, esta é a enfermeira Lindsay... Sharon Lindsay, para ser preciso.Sharon, esta é a senhorita Rochelle. Seu pai é o dono do acampamento de mineraçãoque mencionei. — Pareceu fazer a apresentação com certa relutância.

Ariel sorriu e rapidamente voltou suas atenções para Ross Clarke.

— O que estamos esperando? Você ficou fora muito tempo, chéri, e nós temosmuito o que conversar. O sr. Emerson está aqui para receber a enfermeira. Qual émesmo o seu nome? Ah... agora me lembro: srta. Lindsay. Você a chamou de Sharon,não? Fica melhor assim.

Sharon, que temera o encontro com o resto do pessoal, agora recebia com alíviosua aproximação. Num espaço de cinco minutos, Ariel conseguira fazê-la sentir-se feiae indesejada. Gostaria de se olhar num espelho, queria qualquer coisa que restituíssesua autoconfiança.

Ariel era de uma beleza morena, cheia de vivacidade, e seu sotaque franco-canadense a tornava ainda mais atraente. Sharon podia imaginar como Ross Clarke sesentia fascinado por ela.

— Vamos lá, senhorita Lindsay! Chegamos ao fim da linha e não possodescarregar o avião com você dentro.

Sem a menor cerimônia, Ross Clarke tirou-a de seu lugar, depositando-a juntocom sua bagagem no chão gelado. Apresentou-a apressadamente ao sr. Emerson e logodesapareceu com Ariel.

— Espero que goste de ficar conosco — ele a saudou. Parecia já convencido deque ela não permaneceria lá por muito tempo. — Minha esposa vai ficar contente com asua companhia, quando não estiver ocupada com as crianças. Temos seis filhos e, alémdo mais, ela trabalha na missão. Venha, minha querida, você deve estar cansada daviagem. Nós não pudemos oferecer-lhe umas boas-vindas melhores, mas também, comessa neblina!

Sharon sentiu a cabeça rodar. O nevoeiro impedia-a de enxergar qualquer coisaà sua frente e a conversa estava deixando-a zonza. Felizmente, o sr. Emersonpercebeu o seu mal-estar.

— Oh... sinto muito, estou cansando você. Susan sempre diz que quando começoa falar não consigo mais parar. Ela ficará muito feliz por ter outra mulher com quemconversar. Quero dizer, mulher branca. Se bem que as esquimós sejam muitosimpáticas e alegres, estão sempre rindo. Os esquimós são chamados de Povo Feliz,você sabe. — Seu tom se alterou de repente. — Você está se sentindo bem?

— O senhor disse que não há outras mulheres brancas por aqui? E as outrasenfermeiras? — Sharon estava cada vez mais assustada.

Page 21: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 21

— Outras enfermeiras! Não há nenhuma enfermeira aqui. Por isso é que ficamostão contentes com sua chegada. Minha esposa tem feito o que pode, sozinha. — Olhoupara ela, esperançoso, — Você faz partos também, não? Até agora, nosso Mountietem-se saído bem como parteiro, mas não me parece certo um homem solteiro fazeresse tipo de trabalho, você não acha?

Ele teria continuado a falar por muito tempo, se Suzan Emerson não tivesseaparecido, estendendo com amizade sua mão a Sharon.

— Estamos todos tão contentes com sua vinda, srta. Lindsay! Sharon, não? É umnome tão bonito quanto você! Ah... não fale tanto, William! Você deve estar cansada,querida. Vamos, deixemos as apresentações para mais tarde, na hora do chá. Saiam,crianças. Vocês conhecerão a senhorita depois. Olhe, cuidado ao pisar.

Sharon percebeu então que era preciso uma técnica toda especial para andar nogelo. Tinha a impressão de que, a cada passo que dava para a frente, voltava dois paratrás.

— Quem sabe o Johnny tenha kamiks no seu tamanho: são botas de pele de foca— explicou Susan com simpatia. — Johnny Smithson é o gerente da HBC. Agora,querida, vamos lanchar, você deve estar morrendo de fome, não é?

Quando Sharon contou sobre o café da manhã enorme que tinha tomado nacantina, Susan Emerson olhou-a mais tranquila.

— Fico contente que tenha comido bem. Estamos chegando ao fim de nossasprovisões para este ano. Não que estejamos passando fome, mas já se foi tudo o quehavia de mais gostoso. Lembro-me que chorei quando Ross me trouxe morangosfrescos uma vez. Imagine! Bom, aqui estamos. Acho melhor você ficar aqui em casa nosprimeiros dias. E não se preocupe, querida, será um prazer.

Sharon observou atentamente a casa. Era uma construção baixa e comprida, demadeira pintada de branco com telhado vermelho. Ao lado, havia uma casa pequenina,mas bem cuidada.

— Aquela é a enfermaria — disse Susan. — Não temos nenhum doente nomomento. Os pacientes em estado grave vão para o St. Luke, o hospital dePangnirtung. — Ela notou o olhar interrogador de Sharon. — Você deve estar seperguntando por que nós a chamamos. Precisamos de alguém aqui, acredite. Muitasvezes o tempo é tão ruim que fica impossível chegar a Fangnirtung. Além do mais,trazer bebês ao mundo não é exatamente a função do Charlie aqui na missão, emboraele tenha sempre mostrado boa vontade. E, se você quer mesmo saber, sinto muitafalta de alguém para conversar. As esquimós me ensinaram muita coisa nestes dezanos e eu as respeito por sua coragem, mas...

— Você está aqui há dez anos, sem voltar para a Inglaterra? — perguntouSharon, surpresa.

— Voltei uma vez. Faz cinco anos. — Susan disse isto com um sorriso distante.— Foi maravilhoso poder rever aqueles campos verdes, ouvir os pássaros cantar...

Page 22: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 22

olhar as vitrinas. — Ficou séria ao ver a expressão assustada de Sharon. — Mas nãopense que não sou feliz aqui. Eu amo o norte, é só que...

Sharon sentiu-se muito perto dessa mulher que acabava de conhecer e, por ummomento, pensou em sua mãe. Porém, não havia tempo para lembranças. Susanconduziu-a a uma sala grande e aconchegante.

— Sente-se e descanse, enquanto eu faço um chá.

— Seria ótimo, mas não quero dar-lhe trabalho — disse Sharon, disfarçando umbocejo.

Sua anfitriã virou-se e a surpreendeu no meio de um segundo bocejo.

— Pobrezinha, deve estar morta! Vá para a cama, eu lhe levarei o chá — disse,indicando-lhe o quarto.

O desejo de dormir era tão grande que, nem bem Susan fechou a porta doquarto, Sharon já tirava o agasalho para entrar na cama. Já estava quase domindo,quando ouviu uma batidinha leve na porta. Susan Emerson entrou trazendo duasxícaras numa bandeja.

— Depois que coloquei o açúcar e o leite é que me dei conta de que você poderiapreferi-lo puro. Experimente. Está se sentindo melhor? Vejo que já está mais corada,que bom! E a viagem, como foi? Que sorte você ter encontrado Ross e ele poder lhedar uma carona! Mas como foi que o encontrou?

— Ele veio no mesmo vôo desde Sondrestrom — falou Sharon, pensativa. — Nemacredito que cheguei! Tudo parece um sonho...

— Imagine só o Ross lhe dar uma carona! Ele parece odiar um pouco asmulheres, você sabe — acrescentou Susan, sorrindo.

— Bem, ele não parece odiar Ariel Rochelle. — Sharon esboçou um sorriso umtanto quanto incrédulo.

— Ela é a filha do patrão e sem o apoio de Marcel Rochelle a missão teria quefechar — afirmou Susan, com uma expressão sombria. — Ross Clarke supervisiona oshomens na mina e, em troca disso, recebe os fundos necessários para os seus vôos desocorro e para financiar a enfermaria. Como sabe, agora que o acampamento de verãofechou, não podemos mais receber ajuda do Governo. Pois é, a maioria dos esquimóstrabalha em Frobisher e mora na vila construída pelo Governo. Mas chega de conversa.Você precisa descansar. Durma bem!

Sozinha, Sharon fechou os olhos e uma sequência de imagens passou diantedela... Ross Clark e suas maneiras rudes, a viagem, Ariel, seu trabalho na missão... Seráque seu emprego dependia do namoro de Ross Clarke com a filha do patrão?

CAPITULO III

Page 23: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 23

Sharon sentiu um empurrãozinho encorajador de Susan Emerson ao entrar nasala onde parecia que mil pares de olhos a observavam, sorrindo. Sentiu-se corar e,não fosse o braço amigo de Susan, teria dado meia-volta e fugido. Ao mesmo tempo,teve certeza de que iria ser feliz lá e de que nunca estivera tão rodeada por amigos.

— Venha, Sharon, sente-se aqui ao lado do nosso Mountie. O inglês dele é ótimo.Com o tempo, você vai aprender todos os nomes — Susan tentava fazê-la sentir-se àvontade.

— Oi, Sharon! — disse Charlie Gordon, estendendo-lhe uma xícara de chá. —Não somos muitos, como vê.

Sharon olhou à sua volta e observou que nem todos os esquimós eram parecidos.Alguns, é claro, possuíam traços mongólicos e olhos pretos, mas os outros a deixavamperplexa.

— Eles são o que ficou de um costume esquimó encantador — disse CharlieGordon, interrompendo os pensamentos dela. — Talvez eu não lhe devesse contar, masacho importante você saber dessas coisas, como enfermeira. Se um esquimó gosta erespeita muito um amigo, ele lhe empresta a mulher e, se viaja, às vezes deixa amulher com o amigo. É um costume antigo, que está desaparecendo, pois osmissionários não encorajam isso, é claro. Mas não pense que essa é a única razão dehaver mestiços. O jovem Itsawík, por exemplo. Seu pai era canadense e sua mãeesquimó. Depois da morte do pai, ele foi criado pelos avós maternos. Tem olhos azuis,como vê, mas é um verdadeiro esquimó.

Susan distribuía canecas de chá. Charlie Gordon olhou-a e continuou falando aSharon:

— Sabe que este acampamento não existiria sem o trabalho de Susan? Ela estásempre pronta quando alguém precisa de ajuda. Vai ser ótimo para ela ter você porperto. Para todos nós, também — acrescentou, gentilmente.

Sharon bebeu o chá com um certo receio mas, para seu espanto, o gosto erabem melhor do que a aparência.

— Quer um pãozinho para levantar as forças? — ofereceu Charlie Gordon.

— O que é isso? — perguntou Sharon, desconfiada.

— Não é carne de foca, se é o que você está pensando. Trata-se apenas de umamistura de farinha, água e sal, que nós fritamos.

— Vou experimentar um — disse Sharon. Preferia que lhe oferecessembiscoitos, mas pensou que provavelmente eles já teriam se esgotado, e o próximo naviosó chegaria em agosto.

Page 24: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 24

Lembrou-se então de que dissera a Ross Clarke que ia comprar roupas em CaboMercy e, contrariando seu costume, ele não tinha rido dela. Onde estaria ele agora?Talvez tivesse ido levar Ariel de volta às minas, de avião.

— Um centavo pelo que está pensando! Uma garota bonita como você não deveficar assim tão séria — sorriu Charlie Gordon.

— Eu só estava pensando onde estaria Ross Clarke — respondeu Sharon,desligada.

— Não faço idéia. Deve estar com a namorada dele. Vocês são amigos há muitotempo?

— Oh não, nós nos conhecemos no avião. — Ela balançou a cabeça, arrependidapor sua falta de tato. Por que fora mencionar Ross Clarke?

— Que bom, Ellen já vem trazendo o pãozinho — anunciou Charlie Gordon.

— Quem é Ellen? — perguntou Sharon, ansiosa por mudar de assunto.

— Ellen? É a filha mais velha de Susan, seu braço direito.

— Há quanto tempo está em Cabo Mercy, sr. Gordon? — perguntou Sharon.

— Pode me chamar de Charlie, como os outros. Só mesmo o sr. Emerson échamado de senhor por aqui.

— Por quê?

— Parece falta de respeito chamar um religioso pelo primeiro nome. Não sei,nunca tinha pensado nisso antes.

Uma menina de treze ou quatorze anos vinha em direção a Sharon, segurandoum prato acima da cabeça e tentando evitar que o pegassem.

— Nada disso! Primeiro Sharon, depois vocês — dizia ela.

Um par de olhos castanhos muito alegres fixou-se em Sharon com admiração.

— Quer experimentar um dos meus pãezinhos, Sharon? — perguntou elatimidamente.

Sharon provou um e olhou para a menina, que parecia esperar ansiosa pela suaaprovação.

— Está ótimo, Ellen. Qualquer hora você tem de me ensinar como fazer!

A menina sorriu e voltou alegremente para o outro lado da sala com ospãezinhos, que logo desapareceram do prato. De repente, uma agitação chamou aatenção de Sharon.

— Lá vem o doutor! E o que será que o mordeu? — Charlie Gordon comentousecamente. Sharon percebeu naquele momento que havia pouco amor entre os doishomens.

Page 25: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 25

— Que fim levou a nova enfermeira, Susan? Não há ninguém na enfermaria. Oque adianta ela ter vindo, se não está por perto quando se precisa dela?! — O tomirritado de sua voz pareceu cortar, como a brisa gelada do Ártico, o calor daquela salacheia.

— Estou aqui, dr. Clarke. O senhor precisa de mim? — disse Sharon, assustada,levantando-se depressa.

— Mas a pobrezinha acaba de chegar, Ross — murmurou Susan em sua defesa.

Ross Clarck recusou com rudeza a xícara de chá que ela lhe ofereceu.

— Agora não, Susan. Apareceu uma emergência. Quanto tempo vai demorar paravestir uma roupa apropriada, srta. Lindsay? — disse, olhando Sharon de cima parabaixo, furioso.

— Estarei pronta em cinco minutos, dr. Clarke — respondeu Sharon, no tom maisprofissional que conseguiu, apesar da situação. — Qual é o caso?

— Como posso saber? Ainda não a vi! Só sei que foi mordido por um urso polar eestá caído perto da costa.

Houve um murmúrio de horror pela sala.

— Mas como vocês vão chegar até ele, mesmo que o coitado ainda esteja vivo,Ross? — falou Susan em tom maternal. — Nestas alturas o urso já deve ter acabadocom ele.

— Os amigos de Marak conseguiram matar o urso, mas o caminho era difícildemais para poderem trazer o homem ferido. — As maneiras de Ross se atenuaram umpouco.

— Mas o que se pode fazer, Ross, se os esquimós não conseguiram ajudar opobre homem? — insistiu Susan, preocupada.

— Com um pouco de sorte, posso aterrar no gelo com o Patinho Feio. Elesmarcaram o lugar com um pano enrolado num arpão — respondeu ele, com um sacudirde ombros.

— São nove horas — disse Sharon, olhando para o relógio. — Não vai estarescuro?

Sua observação provocou risos por toda a sala.

— O sol não vai se pôr nos próximos três meses — explicou-lhe Susan,carinhosamente.

— Bem, estarei pronta num minuto. — Sharon observou pela janela o sol quebrilhava lá fora.

Ariel Rochelle, que entrara na sala havia alguns segundos, não ficou calada:

Page 26: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 26

— Mas, Ross, não há necessidade de incomodar a enfermeira nova. Eu possoajudar em tudo o que for preciso fazer por esse homem que agiu tão tolamente com ourso polar. — Sorriu, depositando sua mão confiante no braço de Ross.

— Cabo Mercy não contratou os serviços de uma enfermeira para deixá-ladescansando, ma petite — arrematou Ross com firmeza, retirando-se da sala.

Ao sair para se trocar, Sharon passou por Ariel. A garota parecia furiosa. E nãoera com Ross.

Os dedos de Sharon tremiam ao tirar as roupas que havia vestido tãoalegremente para a reunião. Pensava no que vinha pela frente, partindo com essemédico esquisito, num aviãozinho todo remendado, à procura de um esquimó ferido ede um urso polar morto.

— Você está bem, querida? — Susan entrou no quarto, ansiosa. — Acho maldadeRoss querer levá-la nesta expedição ridícula, quando você acaba de chegar. O pobrehomem já deve estar morto e é bastante improvável encontrá-lo.

— Estou pronta, tudo bem. — O carinho e a preocupação de Susan davam-lhecoragem.

— Trouxe luvas e os meus kamiks. Talvez fiquem um pouco grandes para você,mas vai precisar deles.

Com as roupas de esqui, as botas de pele de foca e as luvas, Sharon olhou-se noespelho e ficou espantada. O que pensariam seus amigos do St. Mary, se a vissemassim?

— Vamos? Ellen está aprontando uma garrafa de café; felizmente ainda temosum pouco — disse Susan, apressada. — Ross está abastecendo o avião, praguejandofeito um louco.

— Onde está Ariel Rochelle? — Sharon surpreendeu-se com a própria pergunta.

— Saiu com Itsawik de trenó. William não ficou nada satisfeito. Ele precisavade Itsawik para ajudá-lo a arrumar umas coisas.

— Ah... muito obrigada, Ellen — disse Sharon, agradecendo a mochila que amenina lhe estendia. — Espero que você tenha posto alguns dos seus pãezinhos junto.

— Eu coloquei, sim — sorriu a garota timidamente. — Achei que você e Rosspoderiam precisar, se tiverem que passar algum tempo no gelo.

— Obrigada. Até mais tarde!

Fazia um frio terrível. O sol brilhava, porém a impressão de Sharon era a de quebrilhava há tanto tempo que perdera o interesse em esquentar aquele deserto gelado.Ross Clarke recebeu sua chegada com indiferença.

— Então você conseguiu chegar! Vá subindo no avião, e cuidado com o estojomédico.

Page 27: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 27

Uma vez lá dentro, Sharon observou o médico gritar algumas ordens a alguémque não conseguia distinguir. Em questão de segundos ele ocupava seu lugar, dandopartida no motor.

— Tem que apertar o cinto, sua pequena idiota! E onde estão seus óculosescuros? Tome, pegue estes. Uma enfermeira cega seria ainda menos útil do que vocêaparenta ser. Sinceramente, não sei onde estava com a cabeça, quando aceitou umemprego destes.

Sharon pôs os óculos submissamente e olhou o deserto de neve à sua volta.Sentiu a sombra da insegurança envolver seus pensamentos. Teria errado em deixarLondres? Seria possível que não tivesse nada a oferecer a essa gente? Mas ao lembrara recepção calorosa de Susan Emerson, logo afastou o desprezo que Ross parecia terpor sua capacidade como enfermeira.

O avião voava baixo em busca do ferido. Sharon pensava estar sobrevoandouma planície de gelo até avistar pontos mais escuros: era água. Em alguns lugares,pedaços de gelo flutuavam, contrastando com a água escura. Mais adiante, montanhasmuito brancas se elevavam contra o azul do céu. Apesar dos óculos, seus olhos jácomeçavam a doer pelo esforço em tentar distinguir um relevo branco de outro. Eratudo tão parecido! Sentiu um aperto no coração. Como poderia encontrar um esquimóperdido nessa imensidão de neve? Suas pálpebras começavam a pesar. Tinha sido umlongo dia e o pequeno sono da tarde não fizera muito efeito.

Ela cochilara por algum tempo, pois quando olhou novamente pela janela estavamsobrevoando um mar aberto em todas as direções, pontilhado de blocos de geloflutuantes. Deram algumas voltas pela região, voando sempre muito baixo. Certaansiedade no comportamento de Ross, normalmente tão seguro, deixava transparecerque ele estava perdendo as esperanças. De repente, ao se aproximarem de uma encos-ta de montanha, Sharon visualizou a flâmula corajosa que sobressaía na neve. Deu umapalmadinha no ombro de Ross, apontando o marco.

— Boa menina! Parece que você localizou o homem! Vou passar mais perto. Sim, éele mesmo! Que bom, já estava ficando preocupado. Temos somente combustívelsuficiente para voltar. Agora vamos ver se conseguimos aterrar lá.

A gratificação que Sharon sentiu por aquele tributo involuntário ao seu sucessotransformou-se de repente em pânico:

— Você está querendo dizer que vamos aterrar naquele pedacinho de gelo láembaixo? — perguntou, apavorada.

— Pode apostar como vamos conseguir! Ou você está pensando que vou nadar atélá?

Sharon admirou a habilidade de Ross em diminuir rapidamente a velocidade devôo, de modo que logo estavam tocando a superfície gelada, freando a intervalosrápidos para conseguir parar a aeronave. Ross Clarke desligou o motor e virou-se paraSharon com um sorriso.

Page 28: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 28

— Assustei você, não? Passe-me o estojo de medicamentos.

— Posso descer agora? — perguntou Sharon, após lhe entregar a maleta.

— Fique onde está. Nosso paciente pode não precisar mais de ajuda, ele estáaqui há muito tempo. Se precisar, eu grito.

Sharon ficou observando o médico caminhar em direção à bandeira colorida.Percebeu cheia de espanto que a pequena elevação no gelo, vista do avião, era, narealidade, o urso polar morto, deitado numa poça de sangue. O grito de Ross chegouaté ela inesperadamente. Desceu rápida e desajeitadamente do avião, sentindo o gelopartir sob seus pés.

— Segure este rolo de gaze e me ajude a fazer um curativo. Ainda bem que estáfrio, senão ele teria sangrado até a morte.

O tom da conversa era tão natural que Sharon não estava preparada para o queviu à sua frente. A pata do urso deixara o ombro de Marak com o osso exposto e omúsculo pendurado, em tiras. Apesar de seu treinamento em acidentes, ela deixouescapar um gemido de horror.

— Pare com isso e segure firme a gaze!

O tom determinado e frio de Ross cortou sua emoção. Sharon era agora aprofissional. Em menos tempo do que previra, o curativo estava pronto e logo estavaajudando Ross a colocar o ferido na maca.

— Guarde os medicamentos no estojo, enquanto pego o trenó para puxar o corpoaté o avião. Meu Deus, olhe só as suas mãos! Nunca tire as luvas por um segundo a maisque o necessário!

Ross tomou as mãos dela e as esfregou com força entre as suas. Os olhos deSharon se encheram de lágrimas ao senti-las pulsando novamente. Ross colocou-lhesuavemente as luvas.

— Sua tola! Espero que aprenda em tempo. — Deu-lhe uma palmadinha no ombro.— Desculpe se gritei com você. Junte o resto das coisas. Vamos lá, você é uma boamenina.

A ternura inesperada foi mais difícil de suportar que a aspereza anterior, masas lágrimas que encheram os olhos de Sharon, ao se afastar, não eram mais lágrimasde dor.

Juntos puxaram o homem até o avião. Uma ou duas vezes Marak gemeu, porémnão mostrou outros sinais de estar retomando a consciência.

— Ainda bem que ele está inconsciente. Precisamos esquentá-lo. O frio podematá-lo, antes que possamos fazer qualquer coisa mais. Quando estivermos de volta aoCabo, podemos dar-lhe um sedativo. Vou pegar o guincho.

Page 29: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 29

Sharon assistiu estupefata à montagem do que ele chamava seu elevadorimprovisado, para içar o homem até o avião. Sharon puxou a corda, ajudando asuspender a carga inerte.

— Devagar. Pare... agora mais um pouco. Ótimo.

Parada ali no vento, Sharon começou a sentir um frio incontrolável, tremendodos pés à cabeça. Ross Clarke percebeu o seu sofrimento.

— Tudo pronto. Entre no avião, senão vai virar gelo, sua bobinha. Tome um poucode café. Tomo o meu depois.

Ela entrou na cabine, dura de frio. O café transmitiu-lhe ondas de calor portodo o corpo, refazendo sua energia, e quando Ross gritou por ela, Sharon sentiu-sepronta para qualquer coisa.

— Vou virar a hélice, e quando eu der o sinal, quero que você dê partida. Fiquesossegada, o avião não decola sem o piloto!

Um pouco nervosa, Sharon obedeceu e quando o motor pegou, o avião todoestremeceu como se pronto para voar. Para seu alívio, Ross tomou seu lugar logo emseguida. Fechada a capota, o pequeno espaço da cabina pareceu mais uma vez seguro eaquecido.

— É melhor tomar o pulso dele, antes de partirmos. E tudo que podemos fazeraté chegarmos à base.

Sharon ajoelhou-se e tomou o braço não machucado de Marak. A pulsação eralenta mas surpreendentemente regular, considerada a gravidade dos ferimentos.Relatou o fato a Ross, que somente assentiu com a cabeça, concentrando-se emmanobrar o avião. O barulho do motor aumentou, enquanto a lataria sacudiaviolentamente. Aterrorizada, Sharon rezou para que tudo acabasse logo. Felizmente, obarulho cessou, dando lugar ao ronco estável do motor.

— Tudo bem, Sharon, pode abrir os olhos agora. Admito que prefira decolar emcampos maiores. Que tal um cafezinho para reanimar? — falou Ross calmamente.

Sharon sentiu os dedos tremerem ao abrir a garrafa térmica. Estendeu-lhe axícara de café quente.

— Obrigado, Sharon. Beba o seu antes que esfrie. Você está tremendo de novo.

Ela bebeu em silêncio, agradecida por ele pensar que tremia de frio e não demedo, embora tivesse adivinhado que fizera toda a decolagem de olhos fechados,cheia de terror.

— Tomo mais um, se tiver. Mais um pouco e estaremos chegando, graças a Deus.O combustível não daria para muito mais.

Sharon serviu-lhe mais café e tentou se acomodar no pouco espaço que lhe foradestinado. O corpo de Marak estava colocado entre seu banco e a cauda do avião.

Page 30: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 30

Naquele momento, ele se moveu um pouco, gemendo, mas se acalmou ao sentir a mãoconfortadora de Sharon.

— Segure-se, Sharon, estamos descendo.

Antes que tivesse tempo para se firmar, o avião já estava deslizando nasuperfície gelada. Depois, o som de vozes excitadas e mãos que a ajudavam a descerdo avião. Logo era conduzida para casa. Susan Emerson não ouvia seus protestos.

— Você já vai ver seu paciente. Ele precisa ser aquecido, antes de mais nada. Jáacendemos o fogo na enfermaria. E você vai comer alguma coisa quente e trocar deroupa. As minhas podem ser um pouco grandes, mas não importa. Amanhã arranjamosalgo melhor para você.

— E Ross, quero dizer, o doutor? — perguntou Sharon, ao mesmo tempo curiosae tímida.

— Desisti de cuidar de Ross há muito tempo. Ele cuida de si próprio quandotiver vontade.

O calor da sala deu a Sharon a sensação de um gostoso agasalho, e só aí ela sedeu conta do quanto estava cansada. Pareceu-lhe um esforço enorme trocar suasroupas geladas pelas que Susan lhe emprestara. Sabia, porém, que ainda não deveriadormir. Ross Clarke poderia precisar de sua ajuda. Pensou que ele devia estar muitomais exausto que ela. Afinal, além da responsabilidade de dirigir o avião, ele aindaprecisara suprir a inexperiência dela.

Bebeu mecanicamente o chá, sem deixar de notar o leite em pó, parte dotratamento especial como recém-chegada. Recusou os pãezinhos trazidos por Susan.Havia perdido a fome. Sua única preocupação agora era prestar cuidados ao doente.

— Preciso ir para a enfermaria, Susan.

— Não se preocupe, Ross Clarke manda avisar, mas só quando sentirnecessidade, você já deveria ter percebido isso. Ele está tão acostumado a fazer tudosozinho que só consentiu em que trouxéssemos uma enfermeira da Inglaterra quandoWilliam argumentou que o trabalho estava ficando pesado demais para mim. E apostocomo ele só concordou porque tinha certeza de que não conseguiríamos ninguém. —Susan parecia um pouco constrangida. — Portanto, não fique chateada se ele nãoparecer agradecido.

— Não vim até aqui para receber agradecimentos — a voz de Sharon estavalevemente perturbada. — Vim para ajudar, e Marak está ferido o bastante paraprecisar dos cuidados de uma enfermeira, não importa o que pense o dr. Clarke!

Ao virar-se para sair, viu-se cara a cara com Ross Clarke, que a observava daporta. A expressão de seu rosto era intraduzível, mas o tom da voz não pareciafavorável.

— O que ia dizendo sobre Marak? Ele já tomou seu plasma e uma injeção demorfina, tem um lugar aquecido para passar a noite e descansa. Sugiro que você faça o

Page 31: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 31

mesmo. — Virou-se para Susan: — Onde está Itsawik? Quero que ele me ajude areabastecer.

— Não tenho bem certeza, Ross. Mas você não está pensando em sair de novo,está? — respondeu ela, sem o olhar, servindo mais chá.

— É claro que vou sair. Ou você acha que podemos deixar lá o urso polar?desperdiçando toda aquela carne! O pessoal de Marak precisa dela, mesmo que a gentedo Cabo a despreze. Ah... aí vem Itsawik. — Ross pegou a xícara de chá estendida porSusan e se dirigiu ao encontro de Itsawik.

Para Sharon, o jovem não demonstrava nenhum entusiasmo com as ordens domédico, e, quando Ariel Rochelle entrou na sala, Itsawik pareceu ainda menos inclinadoa partir. Uma palavra áspera de Ross resolveu o problema.

— Ross, para que esta violência? Você não devia falar com ltsawik destamaneira. Estamos prontos para partir? Faz tempo que estou esperando, chéri. — Arielparecia contrariada.

— Esperando? — retorquiu Ross. — Pois vai ter que esperar mais um pouquinho.Vou buscar o urso polar primeiro.

Ariel mudou de expressão e Sharon percebeu que ela a olhava com hostilidade.

— Como é que a srta. Lindsay pode ajudar, se não tem experiência?

— Quem disse que vou levar Sharon? Itsawik vem comigo e mais ninguém, amenos que você conte um urso polar como passageiro. Reflita melhor e passe a noiteaqui. Eu só vou poder ir para o acampamento amanhã.

— E se eu disser que meu pai não vai ficar contente, se eu passar a noite aqui?— Ariel mostrava uma expressão estranha nos olhos.

— Pois então fale pelo rádio com seu pai e conte o que houve, para ele não sepreocupar.

Sharon ficou imaginando se ela era a única pessoa a perceber a guerrasilenciosa entre os dois. Ross parecia não ter se alterado com a observação de Ariel,mas o modo como lhe respondeu já não continha tanta segurança.

— Mas, Ross, não há lugar para mim aqui — insistiu Ariel pela última vez. — Nãoé justo pedir à sra. Emerson para...

— Acomode-se junto com Sharon. Vocês devem ter muito o que conversar —interrompeu-a Ross.

Virou-se e saiu da sala sem olhar para trás.

CAPITULO IV

Page 32: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 32

Sharon acordou, tentando se desvencilhar de um sono ainda pesado. Comdificuldade, conseguiu estender o braço até o relógio. Cinco horas. Seriam cinco damanhã ou da tarde? Era tão difícil saber a hora no norte! Ouviu risadinhas abafadas, aporta se abriu devagarinho e Ellen surgiu no quarto.

— Nós a acordamos? — perguntou a menina com um sorriso tímido.

— Não se preocupe, já estava acordada. Está na hora de levantar? — falouSharon, ainda um tanto confusa.

— Mamãe disse que nós devíamos deixar você dormir. Mas você já estavaacordada! Ela está fazendo o chá agora.

Sharon ouviu as palavras de Ellen ainda meio adormecida, e, de repente, deu umpulo na cama.

— Chá da tarde? Meu Deus, eu dormi até agora! Como está o Marak? —perguntou, ansiosa.

— Acho que está bem. Pelo menos estava, quando Toolawak foi fazer oaquecimento lá na enfermaria. Você espera um pouquinho? Vou buscar suas roupas.Elas estão secando lá perto do fogo.

Sharon levou algum tempo para se vestir. Sentia o corpo e as mãos frias,dificultando seus movimentos. De repente lembrou-se de Ariel Rochelle. Olhou à suavolta, procurando entender se ela passara ou não a noite naquele quarto. Não haviavestígios dela. Então Ariel não tinha voltado. Talvez Ross Clarke nem imaginasse ser opivô da hostilidade instintiva entre as duas mulheres, mas, na noite anterior, Arieldeixara bem claro seus sentimentos em relação a Sharon. Depois da saída de Ross, elaafirmara:

— Ross nunca ousou me falar dessa maneira. Meu pai ficará furioso e, podeestar certa, ele vai ser informado de que você é a responsável! E Ross, dizendo-me quenão a tinha conhecido antes! Que mentira! Você tem certeza de que é enfermeira,hein? — Examinou Sharon de cima a baixo.

Sharon estava tão exausta que nem sequer pensou em responder ao ataque.Deixou este trabalho para Susan.

Será que Ariel estaria em casa? Só essa idéia fez Sharon tremer, mas tentouse controlar e saiu decididamente do quarto. As risadas e vozes que ouvira antes,porém, eram somente das crianças, que correram ao seu encontro, enchendo-a deperguntas. Não havia sinal de Susan. Sharon bebeu seu chá com os pequenos.

Agora, era preciso se mexer. Por mais que temesse aquele momento, sabia queteria de enfrentá-lo. Não podia adiar mais sua visita à enfermaria. Enquanto ascrianças se entretinham com um jogo, Sharon calçou os kamiks de Susan, o casaco e as

Page 33: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 33

luvas e saiu, passando despercebida, na ponta dos pés. Receava que lhe perguntassemaonde ia.

Ao abrir a porta, assustou-se com o forte golpe de vento que quase impediu suasaída, mas lá fora estava apenas um frio intenso. Com passos inseguros, caminhou emdireção à enfermaria. O céu estava nublado, de uma cor indefinida.

Subitamente, uma rajada de vento a envolveu numa nuvem branca que a sufocouaté quase perder a respiração, fazendo-a perder o equilíbrio. A casa dos Emersondesapareceu e Sharon não podia distinguir a enfermaria. Sentiu-se perdida naquelabrancura selvagem. Não conseguia gritar por ajuda. Uma segunda rajada, ainda maisforte, a fez cair de joelhos. Houve um silêncio repentino e logo viu novamente a casados Emerson. O vento tinha passado. Ouviu a risada de um homem, aproximando-se.

— O que está fazendo aí, Sharon? Brincando de urso? — Charlie Gordonsegurou-a pelo braço, ajudando-a a se levantar, enquanto limpava a neve de sua roupa.De repente, ele estacou: — Meu Deus, você estava aqui fora durante a rajada devento?

Ela conseguiu apenas fazer um sinal afirmativo com a cabeça, segurando aslágrimas. Parecia ter perdido a voz.

— Está vendo aquela corda, Sharon? — falou Charlie, num tom carinhoso. — É acorda para ir a qualquer lugar. Ela liga todas as casas, é para que não precisemosdesenterrar pessoas depois de uma nevasca. Entendeu?

— Sim. Obrigada, Charlie. — Ela ainda estava tomada pelo pânico.

— Bem, mas para onde ia? Ou estava só admirando a paisagem?!

— Estava indo para a enfermaria.

— Então segure-se na corda e estará lá em segundos. Ou prefere que eu aacompanhe? Sempre tenho tempo para uma mulher bonita!

— Estou bem agora. Muito obrigada, Charlie.

Sharon sabia que ele a observava, ao caminhar para a enfermaria, agarrada àcorda. Bateu nervosa à porta, mas não houve resposta. Entrou timidamente. Sentiucheiro de óleo de foca, o cheiro característico dos esquimós e de sua terra, que agoraera também a dela.

A sala parecia imersa em escuridão, depois da brancura brilhante lá de fora.Fechou e abriu de novo os olhos, tentando se adaptar à nova luz. Estava aceso opequeno fogão no meio do aposento. Dos três esquimós sentados na cama baixa pertodo fogo, embrulhados em peles, um segurava com dificuldade uma caneca de chá. EraMarak, seu paciente. Ross estava certo, afinal. Não precisavam de sua ajuda. Ao sedepararem com ela, a conversa se alterou, mas Sharon não entendeu um única palavra.Sentiu-se meio tola.

— Algum de vocês fala inglês? — perguntou.

Page 34: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 34

— A moça quer chá? — retrucou um deles, pronunciando lentamente as palavras.

Sharon aceitou, ansiosa. Recebeu uma xícara de chá muito escuro e mal coado.Tomou-o aos golinhos, tentando demonstrar que estava gostando. Pensou ter passadono teste, pois quando devolveu a xícara vazia, eles a receberam com sorrisos. Maraktentou dizer-lhe algo, chamando a atenção para seu ombro.

Enquanto Sharon balbuciava que não estava entendendo, Ross Clarke entrou naenfermaria, batendo a porta com raiva.

— O que está fazendo?

Antes que ela pudesse explicar, ele se aproximou de Marak, falando-lhequalquer coisa em língua esquimó. Virou-se de repente para ela.

— Poderia me ajudar com o curativo de Marak, srta. Lindsay, já que está aqui?

Ela o olhou sem qualquer reação, até que viu uma porta atrás do médico, que,concluiu, era a sala de curativos. Passou por ele sem ousar levantar os olhos. Para seualívio, lá estavam os medicamentos. Tirou as luvas e começou a separar as bandagenscom habilidade, embora o fórceps tremesse em suas mãos.

— Separe algumas agulhas e fio de náilon — ordenou Ross, entrando na sala. —Vou tentar remendar o músculo. Deve haver algum anestésico local naquela prateleira.E, escute, pensei ter-lhe avisado que nunca se deve dizer a um esquimó que ele estámuito machucado!

Saiu antes que Sharon pudesse explicar que ela não fizera nada disso, e voltouem seguida, com um braço amigo em volta de Marak, conversando animado. Acomodou oesquimó confortavelmente na cadeira, ignorando a presença da enfermeira. Ele e ohomem pareciam estar contando um ao outro longas histórias, enquanto as mãos deRoss agiam firmes, sem vacilar, na tarefa de refazer o ombro do esquimó. O trabalhodo médico garantiria o trabalho de Marak. Este poderia continuar a caçar parasobreviver e sustentar os seus. Manteve a conversa animada o tempo todo, de modoque o seu paciente não tivesse oportunidade de olhar para o ombro ferido.

— As bandagens, enfermeira. Agora mais um pouco de algodão. Não creio quevocê saiba fazer uma dessas bandagens em forma de oito, não. É melhor fazer eumesmo. Segure a ponta da gaze.

Sharon nem tentou contar que já havia ganho prêmios por curativos, em suacarreira de enfermeira. Quando tudo ficou terminado, Sharon estava arrumando osmedicamentos de volta a seus lugares quando ouviu Marak perguntar em inglês, talvezpor deferência a ela.

— Nova moça boa para esposa, eh? — Uma risadinha maliciosa acompanhou ocomentário.

Sharon sentiu-se corar até a ponta das orelhas, esperando aflita a resposta deRoss. Este primeiro gargalhou, conduzindo Marak até a porta. Mas ela conseguiucaptar duas palavras em inglês, enquanto os dois homens se despediam: "magra

Page 35: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 35

demais". Furiosa, ela terminou de arrumar a sala. Como ele ousava falar a seu respeitodaquela maneira? Ficou ainda lá, controlando o ódio, inventando coisas para fazer, semvontade de voltar à sala da frente. Finalmente, resolveu-se. Já estava com a mão notrinco, quando a porta foi empurrada e surgiu Ross.

— Por que está demorando? Não há mais nada para fazer aqui, e Susan falouqualquer coisa sobre o jantar. Puxa, estou cansado! — Ele bocejou, completamente àvontade.

Sharon encarou-o. Ele parecia ignorar que a insultara. Pegou o casaco para sair,vestindo-o com dificuldade, enquanto ele a observava, preguiçoso, sem oferecer ajuda.

— É de Susan? É melhor ver se Smithy pode lhe arranjar um. Se bem que não váprecisar dele no verão, e duvido que ainda esteja por aqui no próximo inverno.

— O que faz você duvidar disso? — perguntou, cheia de raiva.

— Ou você vai voltar para a velha e confortável Inglaterra, ou casará comalguém como Charlie Gordon, por exemplo — respondeu ele, rindo. Deu-lhe um beliscãona bochecha. — Você fica muito bonita quando está com raiva, Sharon. Fica maiscorada e com faíscas nesses seus olhos verdes. — Riu novamente. — Bom, chega deprovocar você por hoje. A propósito, onde está Ariel? Não tive tempo de procurar porela.

— Não sei — disse ela, vestindo as luvas. — Não a vejo desde ontem à noite.

— Como não? Vocês não passaram a noite juntas? Então Ariel não passou a noitena casa dos Emerson?

— Que eu saiba, não. Mas também não vejo Susan desde ontem.

Passaram para a outra sala, sendo saudados pelos esquimós, que bebiam seu cháalegremente. Ross parou para falar um pouco com eles, enquanto Sharon, sem oesperar, dirigiu-se para a porta. Logo, porém, ele estava caminhando a seu lado.

— Imagine que Marak queria voltar para buscar o urso. Só sossegou quando lheassegurei que eu já tinha trazido o bicho para a base. Esses esquimós são gente forte,reagem facilmente desde que não saibam que estão muito feridos. Foi por isso que eugritei com você quando entrei. Sinto.

Sharon mal pôde controlar sua surpresa diante das desculpas dele. Já haviaconcluído que Ross, definitivamente, era um homem que jamais admitia estar errado.

Olhou as montanhas de neve à volta deles. As casas tornavam-se infinitamentepequenas, comparadas à imensidão das redondezas, com o vermelho de seus telhadosemprestando a única cor à cena. Fora isso havia o mar, salpicado de gelo.

— É uma beleza, não? — comentou Ross.

Sharon concordou, silenciosa. Era bonito demais para ser descrito com simplespalavras. Andaram tranquilos até a casa dos Emerson. Ross abriu a porta, deixando

Page 36: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 36

Sharon passar primeiro. Ela hesitou um momento e depois entrou. Ainda não tinha sehabituado a esse costume do norte, de entrar sem bater.

— Eles não poderiam ouvi-la, se o vento soprasse forte — falou Ross,adivinhando os pensamentos dela.

Ellen estava pondo a mesa.

— Mamãe está na cozinha. Agora mesmo estava perguntando por você.

— Obrigada, Ellen. Espero que ela esteja preparando uns filés de urso para nós— disse ele, piscando para a menina.

Sharon subiu para tirar o agasalho e se arrumar para o jantar. Ficou imaginandohorrorizada os filés de urso. Não, a vida no norte não era tão simples quanto imaginaraem Londres. Estava apenas parcialmente preparada para o frio e a neve. Passou umpente nos cabelos e notou a pele ressecada. E quando acabasse o creme hidratante?Ia ter que usar óleo de foca? Não evitou uma careta ao pensar naquilo, e voltou para asala.

Ellen e as crianças estavam paradas na porta da cozinha. Ao se aproximar,Sharon ouviu Susan dizer com firmeza:

— Ross, você sabe muito bem que quando Ariel põe uma idéia na cabeça, não háquem a faça mudar. É claro que Sharon não disse nada. Ah, aqui está ela. Perguntevocê mesmo.

— E então, Sharon, você fez isso? — perguntou ele rispidamente.

— Fiz o quê? — Sharon entrou na cozinha, seguida pelo olhar curioso dascrianças.

— Aborreceu Ariel? Foi por isso que ela não passou a noite aqui?

Sharon sentiu raiva, uma raiva quase incontrolável. Afinal, ele estavaincomodando Susan, atacando Sharon e assumindo que estavam todos errados... menosAriel.

— A srta. Rochelle deixou bem claro que não queria ficar, por razõesinteiramente suas — respondeu friamente.

— Pare de ser pedante! — falou Ross furioso.

— Por que não pergunta você mesmo? — sugeriu Sharon, mais calma, mas comuma expressão que fez as crianças explodirem em risadas. Ao passar por elas, Rossacabou rindo também. Sharon ficou na cozinha, ajudando Susan a servir os pratos.Para seu alívio, à sua frente havia um ensopado bem temperado e apetitoso, em vez deurso. Sentou-se e comeu sua porção com avidez. Só ao terminar percebeu que todos aobservavam.

— Estávamos imaginando se você ia gostar de carne de foca — sorriu Ellen.

Sharon sentiu o estômago revirar-se.

Page 37: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 37

— Estava ótimo — reagiu.

— Susan achou que da primeira vez seria melhor servir a carne cozida. Nós apreferimos crua, especialmente o fígado, com um pouco de óleo de baleia.

Às palavras de Ross, Sharon respondeu com um sorriso um tanto perdido, semsaber se devia acreditar ou não. O sr. Emerson veio interromper seus pensamentos.

— Diga-me, senhorita, podemos contar com você no coro dos domingos?

— Posso tentar. — Sharon percebeu o interesse dos outros. — Não tínhamosmuito tempo para praticar no St. Mary, exceto no Natal.

A expressão do sr. Emerson se iluminou, contente com a resposta.

— Mas isso é maravilhoso, srta. Lindsay!

— Um minuto, papai. Ela ainda não conhece as palavras em esquimó — cortouEllen, tocando o braço de seu pai.

— Alguém pode me ensinar as palavras — declarou Sharon, entusiasmada.

— Logo depois de lavar os pratos nós ensinamos! — As crianças falaram todasjuntas.

Sharon olhou para Ross e notou em seu rosto uma mistura de surpresa ezombaria. Repentinamente, sua alegria desapareceu. Será que ele sempre conseguiriaestragar seu bom humor?

Livres do serviço da cozinha, as crianças rodearam Sharon. Ellen entregou-lheum papel com a letra da música que tocava na vitrola. Espantada, ficou a contemplar ospequenos arcos e triângulos rabiscados. Como iria cantar aquilo?

— Olhe, veja a grafia dos símbolos fonéticos, no fim da folha — adiantou-seEllen, percebendo o espanto de Sharon. — É só seguir por ela. Quer ver como é fácil?Vamos cantar para você aprender.

Realmente era muito simples. Logo Sharon começou a acompanhar as criançascom uma voz tímida que foi, aos poucos, ganhando segurança. Foi só na última linha quepercebeu estar cantando sozinha. Aplausos vindos do outro canto da sala fizeram-navirar-se, assustada. Ross estava aplaudindo, juntamente com Susan e o marido, e, pelaprimeira vez, exibia um ar de aprovação.

— Bravo! Finalmente o Ártico capturou um rouxinol! — exclamou ele, fazendo-acorar.

Nesse instante, Charlie Gordon entrou na sala, apressado.

— Finalmente o encontrei. Precisam de você no acampamento, com urgência.

— Eles podem esperar — declarou Ross, sem se abalar. — Esta noite vou dormirum pouco, para variar. Não durmo há duas noites!

— Sinto muito estragar seu sono, doutor. Talvez eu não tenha sido claro. Houveum acidente com dinamite.

Page 38: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 38

Ross levantou-se antes mesmo de Charlie Gordon terminar.

— Diga-lhes que estou a caminho. E peça a Itsawik para vir me ajudar areabastecer.

— Pensei que soubesse que Itsawik foi embora. — Charlie Gordon fitou-o,estranhamente.

— Como, foi embora?

— Alguém lhe deu umas idéias. — O outro sacudiu os ombros.

— Você está querendo brincar comigo, por acaso? — perguntou Ross, furioso.

— Com você não, a menos que se considere responsável pelas táticas de suanamorada. Não foi uma boa idéia deixar Itsawik levá-la até o acampamento. —Percebeu a surpresa de Ross. — Ou quem sabe, você talvez nem tenha sido informadodisso!

— É claro que não! Espere, vou com você.

Os dois homens saíram sem dar qualquer instrução a Sharon. Este empregoestava se tornando estranho. Se havia pacientes, estes não pareciam ser de suaresponsabilidade.

— Você vai se acostumar, Sharon — falou Susan com simpatia. O norte é ummundo para homens. Venha sentar-se perto do fogo. Você devia arranjar um trabalhomanual, costura ou bordado, para se distrair nessas ocasiões.

— Mas se houve um acidente, devem precisar da minha ajuda. Não foi para issoque me chamaram?

— Ariel é a única mulher cuja entrada lá é permitida. E, isso, porque é filha dopatrão.

— Isso lá no acampamento. Mas, e aqui? Afinal, é a missão que me emprega ouRoss Clarke? — Sharon tentou dizer isto diplomaticamente.

— Eu confesso que a situação é um pouco confusa — riu Susan. — Inicialmente,a enfermaria foi construída com verba da missão, auxiliada pelo governo canadense.Porém o custo foi maior do que prevíamos e então Ross Clarke conseguiu que o senhorRochelle se interessasse em financiar o resto da construção. O acampamento usa aenfermaria como uma estação intermediária para seus homens feridos. Alguns têm deser removidos para um hospital, outros podem voltar para o acampamento após otratamento. De qualquer forma, sempre que isto acontece vem um homem para prestaros primeiros socorros, acompanhando o paciente.

— Mas então, o que vim fazer aqui? — Sharon se impacientava cada vez mais.

— Sharon, querida, você vai ter muito o que fazer, eu garanto. Se o tempopermitir, amanhã eu devo fazer minha visita semanal à vila esquimó. Você pode ajudarmuito se vier comigo. Vai gostar, verá. Nós vamos de trenó.

Page 39: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 39

— Mas é apenas uma visita missionária — comentou Sharon, e depois se deuconta de que poderia ter sido rude.

— Você está enganada — Susan respondeu, tranquila. — Vou distribuir remédiose vitaminas, examinar os recém-nascidos e tomar muitas xícaras de chá. Uma em cadaiglu! Sabe, aprendi a gostar deste povo e a respeitá-lo, Sharon — continuou, pensativa.— Além do mais, eu me sentiria muito solitária se não gostasse da companhia deles.Espero não a escandalizar, mas eu estou no norte simplesmente porque meu maridoestá aqui, e não porque eu seja missionária — acrescentou calmamente.

— Mas então por que... — Sharon brecou a pergunta.

— Entenda, casei-me com William porque o amava e o fato de ele ser missionárionão me pareceu importante na época. — Susan sorriu docemente. — Isso já me levou alugares bem estranhos e sempre ajudei William, por exemplo tornando as coisas maisfáceis para as mulheres esquimós e tantas outras. Estou há tanto tempo no norte quenão sei se gostaria de viver em outro lugar. A vida aqui pode ser dura, mas é maisgenuína, as pessoas são mais sinceras. — Susan interrompeu-se, fazendo sinal para queSharon escutasse o ruído vindo de fora. — Deve ser Ross decolando. Espero que nãoexijam demais dele lá no acampamento. Ele precisa de descanso.

Sharon corou levemente.

— E não fique com idéias sobre Ross. Ele não é do tipo de se casar. Homenscomo ele escalam o Everest, ou exploram os confins da Terra, por exemplo. Eles nãogostam da vida estável e as coisas como casamento e crianças são acidentesaconselháveis apenas para os outros. Oh, eu sei que a jovem Ariel imagina que vaipegá-to em sua rede ou tentar comprá-lo com seu dinheiro, mas eu ficarei muitosurpresa se ela conseguir mais do que alguns beijos.

Sharon permaneceu silenciosa. Meditava sobre esse mundo, esse novo mundoconfuso em que viera viver.

Ainda meio adormecida, Sharon ficou preguiçosamente na cama.

Ellen trouxera uma xícara de chá para ajudá-la a despertar, mas insistira quenão havia pressa.

Subitamente, ouviu uma voz masculina que a fez acordar de uma vez por todas.Ficou curiosa por saber se era Ross ou não. Porém, antes que pudesse se certificar, ogrito de espanto de Susan chegou até ela.

— Desaparecido? Charlie, você está querendo me dizer que Ross não chegou aoacampamento?

CAPITULO V

Page 40: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 40

Antes que Sharon se convencesse de que o destino de Ross não era de suaconta, já se encontrava fora da cama, vestindo-se apressadamente. Talvez... não, quetolice. Não poderia ajudar em nada. Quando chegou à cozinha, sentiu-se envergonhadaao notar a surpresa de Susan e Charlie pela sua presença repentina.

— Olhe só o que o vento trouxe! Bom-dia, Sharon! — Charlie saudou-a com umsorriso largo.

Eles conversavam, tranquilos, o que aumentou a confusão de Sharon. Nãopareciam estar em emergência. E ela, será que estava sonhando?

— Onde está Ross? — não conseguiu conter-se.

— Que tal mais um chá, Susan? — falou Charlie, despreocupado. — Como vousaber onde está Ross? Não operamos radar em Cabo Mercy, como sabe!

Susan interveio, salvando-a de maiores embaraços.

— Não se preocupe, Sharon, não é a primeira vez que isso acontece. Voupreparar seu café da manhã. Tome um chá enquanto isso.

— Não adianta se preocupar com o doutor, Sharon. Ele se vira. — Charlieconfortou-a com uma palmadinha no ombro.

— Mas você não vai procurar por ele? — perguntou ela, perturbada.

— Onde? É arriscado sair com o barco. Há muito gelo por aí. O acampamento jádeve ter mandado um avião de busca.

Sharon afastara o pânico, mas continuava a se sentir impaciente, e,principalmente, inútil.

— Não fique desanimada, Sharon. — Susan percebeu seus sentimentos. — Sepudéssemos fazer alguma coisa, já o teríamos feito, acredite. Venha, coma isso.Precisa estar bem alimentada para nossa visita à vila. A propósito, Charlie, onde estáItsawik com o trenó?

— Espero que ele esteja gostando da vida no acampamento. Sempre achei umerro de Ariel ter-lhe dado dinheiro para comprar seus próprios cachorros. Isso lhesubiu à cabeça.

— Não seja maldoso, Charlie. Sabe perfeitamente que é o dia da minha visita àvila, e não está imaginando que eu vá a pé!

— Se prometerem se comportar como boas meninas — Charlie riu divertido —,podem vir comigo. Eu tenho que ir para aquele lado. Estão prontas em uma hora? Émelhor deixar as crianças com o reverendo, talvez tenha que trazer alguém na volta.Combinado? Apanho vocês mais tarde, então.

— Combinado, Charlie. E muito obrigada.

Page 41: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 41

Sharon mal podia se mover, de tanta roupa que Susan a fizera vestir para aviagem. O sol estava parcialmente escondido atrás das nuvens e uma brisa suave, bemdiferente do vento do dia anterior, soprava em direção ao mar. Ouviu latidos.

— Devem ser os cachorros do trenó de Charlie. Vamos até lá, isso vaieconomizar tempo. Trouxemos tudo?

— Trouxemos, sim. Nossa, eu não poderia andar se vestisse mais alguma coisa!— exclamou Sharon, rindo.

— Ótimo. Vai fazer frio no trenó. — Susan estava satisfeita. — E não sepreocupe, você logo vai aprender a andar de trenó. Ande atrás de mim. Os cachorrospodem estranhá-la. Você é um cheiro novo para eles. Não faça nenhum movimentosúbito até que saiba como lidar com eles. Os cães esquimós nem sempre se lembram deque são amigos do homem.

Sharon encolheu-se nervosamente atrás de Susan, ao encontrar os olhares deum semicírculo de cachorros que a observavam. No entanto, logo ficou mais à vontade,observando-os, curiosa. Dirigiu a atenção para o trenó que Charlie aprontava. Eleestava cobrindo o veículo com peles e amarrando as rédeas da matilha à partedianteira. Um esquimó o acompanhava, ajudando-o a preparar o veículo.

— Venha tomar seu lugar, Sharon — chamou-a Charlie.

Um tanto desajeitada, ela sentou-se com dificuldade, por causa do excesso deroupa. Charlie cobriu-a com peles e prendeu-a no lugar com várias tiras de couro que adeixavam praticamente imóvel. Sharon se sentia como uma múmia egípcia. Ouviu umachicotada súbita e o trenó arrancou num solavanco. Apavorada, compreendeu queestava sozinha. Só enxergava os cachorros à sua frente, separados em forma de leque.Tinha a impressão de que estavam correndo a uma velocidade incrível, mas, para alívioseu, ouviu Susan gritar, logo atrás dela, com voz ofegante:

— Tudo bem, Sharon? Subirei no trenó mais lá em cima! Para não cansar oscachorros!

Sharon quase chorou de alívio. Concluiu que Charlie deveria estar junto deSusan, e também o esquimó. Passado o medo, começou a desfrutar a novidade de sertransportada em um trenó. Apreciou a paisagem à sua volta, a colina que subiam. Aqui éali havia enormes blocos de gelo. Algumas vezes foi lançada violentamente para o lado,quando os cachorros se desviavam de algum obstáculo. Logo o caminho ficou maisíngreme, forçando os animais a diminuírem quase por completo a velocidade. Nãodemorou e Charlie surgiu a seu lado.

— Não é melhor eu descer? — perguntou Sharon.

— Fique onde está! O trenó é valioso demais para deixarmos os cachorrosfugirem com ele — falou Charlie, alegre. — Se quiser parar é só puxar as rédeas. —Virou-se para Susan, que vinha logo atrás. — Que tal um café? Afinal, os cachorrosprecisam de um descanso, depois de puxarem nossa bela enfermeira.

Page 42: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 42

— Muito obrigada por dizer que são os cachorros os necessitados de descanso— brincou Susan, exausta.

Sharon lutou com as rédeas até que o trenó ficou imóvel.

— Não desça. — Charlie adivinhou suas intenções. — Não vamos parar por muitotempo. Não estou gostando nada daquela nuvem carregada, olhem!

Só então Sharon se deu conta da vista magnífica à sua frente, ali do alto dacolina. Uma encosta do morro escondia um pequeno povoado. Atrás dele, as montanhasavançavam para o mar num penhasco impressionante, o branco da neve contrastandocom o violeta das águas.

— Beba rápido. Você pode admirar a paisagem uma outra hora — apressou-aCharlie, apontando a caneca de café em suas mãos. Susan juntou-se a ela no trenó,fazendo Sharon se sentir bem mais segura quando os cachorros reiniciaram a viagem.Começaram a descer em direção a um vale estreito e, olhando os paredões de neve,Sharon imaginou estar no meio da Idade do Gelo. Charlie e o esquimó que asacompanhava vinham atrás delas em completo silêncio.

— O gelo no alto das montanhas, nessa época do ano, pode vir abaixo apenas comum grito ou uma chicotada — sussurrou Susan em seu ouvido.

Sharon afundou-se em seu ninho de peles e ficou a imaginar quanto tempo nãoteria sido necessário para formar aquela imensidão de gelo à volta deles, cheia deestalactites, como se fosse uma caverna subterrânea. Ao atingirem o vale, os animaiscomeçaram a latir sem parar, sendo imediatamente acompanhados por um coro decachorros vindo do povoado. Para surpresa de Sharon, porém, a vila estavapraticamente deserta, quando chegaram,

— Onde estão todos? — gritou para Susan, em meio aos latidos dos cães.

— Os homens estão caçando foca na costa, enquanto as mulheres fazem otrabalho doméstico. Eles não consideram boas maneiras sair correndo para ver quemchega. Mas as crianças não aguentam de curiosidade e vão aparecer a qualquerinstante — explicou Susan.

— Bem, senhoras, este é o ponto final para vocês. Vou mais adiante, mas emduas horas estou de volta. — Charlie ajudou-as a descer.

Apesar de a viagem ter sido curta, Sharon sentia dores no corpo todo.

— E olhe que viajar no inverno é melhor, a neve está mais macia — disse Charlie,rindo-se dela.

— Vamos começar pela Gran — falou Susan, sem perder tempo. — Ela nunca vainos perdoar se não passarmos lá primeiro.

Sharon explorou o povoado com os olhos, se é que se podia chamar de povoadoaquele amontoado de habitações, uma mistura de iglus e choupanas em condições

Page 43: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 43

precárias. A neve que derretia, nesse final de inverno, revelava todo o lixo acumuladodurante aquela estação.

— Eu estaria mais ansiosa pelo verão, se não fosse o mau cheiro. No inverno, olixo está coberto de neve ou então é muito frio para se sentir o cheiro — comentouSusan torcendo o nariz.

A casa de Gran era pequena e estava cheia de gente. Tomaram várias xícaras dechá, enquanto Susan respondia pacientemente às perguntas das mulheres. Sharontinha a impressão de que falavam dela. As vitaminas foram distribuídas entre ascrianças, que as aceitavam como se fossem balas. Conversavam às vezes num inglêsirregular, porém na maior parte do tempo expressavam-se num som gutural e musicalque, Sharon sabia, teria de aprender para ser bem-sucedida em sua nova vida. Ascrianças a observavam com viva curiosidade, tocando-a com os dedos, de vez emquando, e depois rindo em coro, os olhos muito escuros faiscando de felicidade.

Era tempo de passar à próxima casa. Uma mulher veio ao encontro delas,segurando Susan pelo braço para lhe confiar algo que Sharon não compreendia. O queela dizia, no entanto, causou agitação entre as mulheres.

— O que está acontecendo? — perguntou Sharon, curiosa.

— Uma das mulheres mais jovens está em trabalho de parto, prematuramente,pelo que entendi. Disse a elas que você é parteira, embora eles não gostem deestranhos em ocasiões como esta.

A casa para onde se dirigiam era um iglu de verdade e Sharon tevepraticamente que se ajoelhar para entrar. O lugar não era sujo e, ao contrário do queimaginava, havia uma claridade transparente vinda das paredes de tijolos de neve. Nocentro do círculo de mulheres, encontrava-se a jovem grávida. Uma chaleira ferviasobre uma lâmpada de óleo de foca e, a julgar pela quantidade de canecas à sua volta,era destinada ao chá, sem nenhuma relação com o parto. Ouviu-se um grito inesperadoda jovem e o círculo fechou-se ainda mais. Susan prestava atenção ao murmúrio dasmulheres.

— Há algo de errado — voltou-se para Sharon. — Ela está perdendo muitosangue e o bebê ainda não nasceu.

— Meu Deus, placenta prévia — exclamou Sharon. — Mas como vamos lidar comuma emergência deste tipo, sem condições adequadas?

Susan lhe entregou um pacote com bandagens e curativos esterilizados. Sharonsentiu desespero, raiva de sua impotência. Talvez Ross estivesse certo: não havia nadapara ela fazer lá. Os seus anos de experiência no St. Mary jamais lhe ensinaram aassistir um parto de joelhos, no meio de um iglu, sem nenhum equipamento.

Em vez de lhe mostrarem hostilidade, as mulheres abriram o círculo para darpassagem à enfermeira. A jovem grávida estava ajoelhada sobre uma pele onde Sharonviu com horror uma enorme poça de sangue. Se não agisse rápido, a mulher poderiamorrer pela hemorragia, antes mesmo de dar à luz o bebê.

Page 44: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 44

Depois de tudo terminado, Sharon lembrava-se apenas de sua reza, uma oraçãoincoerente para que tudo desse certo. Recordava também a sensação inconfundível deagarrar com mãos cegas o corpo pequenino. Tremia, agora que amparava nos braços ofrágil bebê envolto nas bandagens. A jovem mãe estava deitada, as peles cobrindo-a,enquanto uma das mulheres lhe massageava o abdómen. As outras estavam perto dalâmpada de óleo, em silêncio, parecendo ainda observar algo que lhes fugia àexperiência.

Sharon olhou para a trouxinha branca que se movia milagrosamente entre suasmãos. Uma das mulheres lhe entregou uma pele para agasalhar o bebê. Olhou em tornode si. A mãe empurrou a coberta, descobrindo o peito, e Sharon não precisou conhecera língua esquimó para interpretar aquele gesto. Colocou a criança nos braços da mãe.Só então lembrou-se de Susan. Talvez tivesse ido lá para fora, depois de se certificarde que a situação estava sob controle. Saiu do iglu, à sua procura. Com efeito, láestava ela, bastante pálida. Seu rosto iluminou-se ao ver Sharon.

— Está tudo bem? Sinto muito, se eu ficasse lá mais um pouco você ia arranjarduas pacientes! Charlie seria mais útil do que eu. Não sou boa nisso.

Sharon respirou fundo, agora livre de qualquer tensão.

— Tive tanto medo! — confessou.

— Se é assim que você resolve uma siluação quando está com medo, então vai sedar muito bem no norte! — Susan cumprimentou-a alegremente. — Bem, acho quevimos todo mundo. Charlie deve estar de volta a qualquer instante.

— Precisamos levar a menina para Cabo Mercy. Ela perdeu muito sangue e obebê é prematuro, está muito fraco — disse Sharon.

— Mas a enfermaria só é usada em caso de acidente. Além do mais, Ross nãoestá lá.

Pela primeira vez, Sharon lembrou o desaparecimento de Ross, e por uminstante, lhe faltou coragem.

— Ele já deve ter voltado. Você disse que não é a primeira vez que isso acontececom ele — falou Sharon, tentando se convencer.

— Lá vem Charlie — apontou Susan. — Pergunte-lhe sobre a moça.

— Vou ver minha paciente. Fale com ele, você que o conhece melhor, Susan.

Foi recebida com muitos sorrisos e uma caneca de chá. Dirigiu-se para a jovemmãe e tomou-lhe o pulso. Mesmo que não houvesse mais hemorragia, ela estava muitoenfraquecida. Chegou até a entrada do iglu para ver como ia a conversa com Charlie.

— Mas é loucura, Susan! A viagem de volta já é perigosa, ainda mais levando umajovem mãe e seu recém-nascido! — Charlie não escondia seu nervosismo.

— A menina não tem a menor chance, se não a levarmos agora! — interrompeu-oSharon, determinada.

Page 45: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 45

— Mas como vai sobreviver aos solavancos do trenó e ao frio? — Charlie aindainsistiu.

— Pelo menos, teremos tentado — arrematou Sharon, impaciente.

— Pode encolher as unhas, gatinha! — Olhou para o trenó.

— Isso significa que você vai subir a montanha a pé. Sabe o que isso significa?

— Sim.

— Está bem. Mas não diga que eu não avisei. Agora vamos arranjar meios demanter a moça aquecida. Susan, veja se consegue garrafas com água quente. Sharon,prepare a garota para viajar, e é melhor se prevenir para alguma emergência. Ahemorragia pode voltar.

Ao entrar novamente no iglu, descobriu que as mulheres já estavam sabendo desuas intenções e, excitadas demais para opor qualquer objeção à idéia, preparavam amãe e a criança para a viagem. Os dois foram colocados num saco de dormir, envoltoem mais peles.

Charlie gritou impaciente lá fora e entrou desajeitado no iglu. Pegou a jovem nosbraços e a carregou até o trenó. Susan ajeitou as garrafas e logo tudo estava prontopara a partida. Charlie deu a Sharon uma tira de couro.

— Segure isso como sua própria vida. O vale é muito estreito.

Para evitar maiores riscos, Sharon amarrou a tira no pulso. Charlie fez o trenóarrancar com suavidade, desta vez. Não fosse pelos cães que a puxavam pela tira decouro em seu pulso, Sharon não teria conseguido subir o vale. Sua respiração pareciaraspar a garganta e sentia os pulmões em fogo, além de sufocada pelas roupaspesadas. Somente o orgulho e o exemplo dos outros ajudavam-na a continuar. Mais umpasso, falta pouco, ela se dizia. Mas seu cérebro já não aguentava qualquer esforço.

Percebeu que a sacudiam pelo ombro. O trenó havia parado. Mal conseguiadistinguir a figura grande a seu lado.

— Vou chegar lá, Charlie, não se preocupe — falou, sacudindo a cabeça.

— Não é isso. Precisamos do seu peso no trenó para a descida. Sharon tentoudesamarrar a tira no seu pulso, mas era impossível.

Charlie veio em sua ajuda.

— Meu Deus, você não sabe que não se dá nó em couro? A neve o fez encolher.Estava cortando seu pulso, pobrezinha — disse, arrancando a tira com uma faca.Pegou-a nos braços e a depositou no trenó, ao lado da mãe. — Segure-se firme.

A descida foi penosa, o trenó sacudindo de um lado para o outro. Podia ouvir osgritos de Charlie para segurar os cães que, sentindo a proximidade de casa, tendiam adisparar como loucos. Será que já estavam chegando? O trenó diminuiu de velocidade.Sharon não conseguiu ver nada.

Page 46: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 46

— Neblina! Era só o que faltava — reclamou Charlie. — Vamos ter de deixar oscachorros nos guiarem agora.

O trenó ganhou o dobro da velocidade. De olhos fechados, Sharon imaginou-sedeslizando num túnel sem fim. Ouvia os gritos de Charlie. De repente o trenó parou,com um solavanco.

— Estou vendo uma casa lá adiante — gritou Susan, alegre.

— Então eles sabiam que estavam em casa muito antes que nós pudéssemos verqualquer coisa! — exclamou Charlie. — Vamos, Sharon. A enfermaria está à direita. Váindo na frente, que eu já levo a moça. E cuidado para não escorregar.

Sharon ouviu vozes na casa, mas levou algum tempo para perceber que não eramde Marak e seus amigos. Charlie havia chegado antes dela, com a jovem mãe nosbraços, auxiliado por um esquimó. Um homem alto de cabelos muito negros lhes falavacom raiva.

— Não me importa quem seja ela, ou quem a trouxe. Isso aqui não ématernidade. Leve-a de volta. E onde se meteu a senhorita Lindsay? Tenho trabalhopara ela. — Sharon se aproximava. — Mas quem você está pensando que é? A superiorado Hospital de Cabo Mercy?

CAPÍTULO VI

Ao se deparar com a cólera do médico, o cansaço de Sharon desapareceu comonum passe de mágica. Uma energia extraordinária ocupou seu lugar.

— Foi um caso de placenta prévia, doutor. A moça perdeu muito sangue e o bebêé prematuro. Se me disser onde está o plasma, podemos economizar tempo. — Suaconfiança e frieza o desmoronaram.

— Creio que isso faz alguma diferença — Ross pareceu relutante em admitir.

Porém suas mãos foram mais rápidas que suas palavras e, antes que Sharonpudesse se desvencilhar de seu agasalho, ele já estava preparando a jovem pacientepara receber a intravenosa de plasma. Entregou desajeitado o menino para Sharon.

— Cuide deste. Vai encontrar tudo o que precisa na sala de medicamentos.Gordon, segure o braço da paciente.

Sharon escapou para a relativa paz da sala ao lado. O esterilizador já estavaligado. Improvisou o bercinho para o bebê com uma caixa de medicamentos vazia.Dentro dela, bolsas de água quente cobertas de algodão, formando uma cama bemmacia, seriam as responsáveis pelo aquecimento obrigatório a um prematuro.

Page 47: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 47

Desembrulhou a pequena trouxa de pele, descobrindo um tiquinho de gente, de cabelose olhos muito pretos. Que chance teria essa criaturinha contra o frio cruel do norte?Sem perder tempo, passou óleo no bebê com movimentos suaves e o embrulhou numpano limpo. Deitou a criança na caixa e em seguida deu-lhe um pouco de glucose comum conta-gotas, que foi chupado vigorosamente. Segurou-o no colo, então, para quearrotasse.

— Pare de ninar o bebê, Sharon! Tenho trabalho para você. Algo lhe dizia que aaspereza de Ross desta vez era diferente, e Sharon não se alterou ao devolver omenino ao berço.

— A propósito, como está ele? — Ross estava lhe dando mais atenção do quecostumava.

— Melhor do que eu supunha, apesar de uns esfoladinhos esquisitos.

— Esses esfoladinhos são por acaso na base da espinha? — perguntou ele,divertido.

— São, realmente — respondeu Sharon, surpresa.

— Imagino que não tenham lhe ensinado sobre as marcas de nascimento dosmongóis. Os esquimós são um povo de origem mongol, você sabe, e todos nascem compequenas manchas azuis nos traseirinhos. — Ele riu. — Venha, traga o berço para aoutra sala, que a mãe cuida dele.

— Como está ela? — perguntou Sharon, cautelosa. Ainda não sabia como agircom ele.

— Sentada, conversando com Marak e seus amigos. Vêm todos do mesmopovoado, ou não sabia?

Para grande espanto de Sharon, a garota estava sentada, tomando chá econversando alegremente com os três esquimós. Ao ver a enfermeira entrar na sala, ajovem comentou algo com os homens, que voltaram para ela seus olhos, com ar deaprovação. Quando Sharon colocou o bebê perto da mãe, eles se aproximaram paraobservá-lo.

— Vamos, Sharon, há trabalho por fazer. — Ross saiu em direção à porta,carregando duas mochilas.

— Para onde vamos? — Ela o seguiu, obediente.

— Para o acampamento, é claro. Vamos de barco.

Sharon achou prudente não lhe fazer mais perguntas, apesar de ter notado umtom de amargura na voz dele. Talvez algum dia se acostumasse a esse homem difícil emesmo imprevisível. Ela havia previsto vários problemas de adaptação a esse novoemprego, porém Ross estava sendo o maior deles.

— Um centavo pelos seus pensamentos! — Ele a surpreendeu.

— Estava pensando em como tudo aqui é diferente.

Page 48: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 48

— Você ainda tem muito o que aprender — falou num riso que logo setransformou num bocejo sem cerimônia.

— Conseguiu dormir esta noite? — perguntou, ansiosa.

— Experimente dormir e dirigir um avião ao mesmo tempo e não fará maisperguntas estúpidas como esta — respondeu, impaciente. — Susan está nospreparando café e comida para a viagem. Vá buscá-los e me encontre em cinco minutoslá no cais. Oh, e se quiser passar pó-de-arroz, é melhor fazê-lo agora. Talvez seuslábios civilizados não aprovem as instalações no barco — acrescentou secamente.

Sharon afastou-se, contente por escapar daquele homem desagradável. Seuúnico consolo era que não parecia ser só dela que ele não gostava.

Felizmente Susan já preparara tudo, de modo que Sharon não se atrasou. Obarco, com seus doze metros de comprimento, parecia uma minúscula e frágilembarcação, diante da imensidão da paisagem.

— Apresse-se, Sharon — gritou Ross, impaciente.

Charlie Gordon estava já, conversando com Ross. Ajudou-a a embarcar. Haviaum pequeno grupo de esquimós em um canto. Sharon sentou-se timidamente ao lado deum garoto de seus dez anos.

— Eu... Paulo — bateu no peito e olhou para Sharon.

— Eu, Sharon — ela fez o mesmo.

O menino ficou contente e foi bater no peito dos outros passageiros,pronunciando o nome de cada um e olhando para Sharon. Ela não compreendeu nenhumdeles. Sorriu, como se o conseguisse, o que pareceu satisfazê-los.

O barco já estava se movendo e ela não havia percebido. De repente, um gritovindo da proa chamou a atenção de Sharon para um campo de gelo flutuante. Viuhorrorizada que a embarcação estava indo em sua direção. Houve um solavancoviolento e o barco foi quebrando o gelo lentamente, cruzando o campo gelado. Rossveio juntar-se a ela.

— Com frio? Se quiser, pode ficar com as mulheres lá embaixo — sugeriu ele.

— Estou bem aqui, obrigada. O que aconteceu ao seu avião, Ross? — perguntou,tomando coragem.

— Sujeira no carburador. Tive que deixá-lo num vale ao sul.

— Mas o que vai acontecer com ele? — insistiu ela, curiosa.

— Não precisa se preocupar, vou buscá-lo assim que cuidar dos homens noacampamento, e, se você se comportar, eu lhe dou uma carona de volta para o Cabo.Pode economizar uma longa caminhada! — Pareceu se divertir com aquilo.

— Mas o barco não volta para Cabo Mercy?

— Só no final do verão.

Page 49: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 49

Um dos esquimós gritou da proa e Ross se afastou sem falar mais nada. Sharonsentiu alivio. Ross sempre a fazia se achar tola e desajeitada, mesmo quando ele nãoparecia querer aborrecê-la. Possivelmente, era sua impaciência e aquele ar implícito dedescrédito em relação a ela, nas coisas mais simples. Por que ele não podia ser comoCharlie Gordon? Este a aceitava como era: alguém recém-chegado ao norte, cheio deesperança e com vontade de aprender.

Desviou sua atenção para a paisagem. Agora o barco cruzava suavemente aságuas, já navegando em mar aberto. Uma mulher esquimó veio até ela e fez sinal paraque a acompanhasse. Sharon hesitou, mas resolveu seguir a mulher até a cabine debaixo, segurando firme o corrimão.

Fazia muito calor lá dentro e no lugar apinhado de gente mal cabia Sharon. Obarco embaixo sacudia mais. Procurou por Ross. mas naquela luz tênue era difícildistinguir as pessoas. Deram-lhe uma caneca de ensopado que ela aceitou, semvontade. De repente, sentiu que se não respirasse um pouco de ar fresco... Sharon quisvoltar, mas não sabia por onde se chegava ao convés, e não conseguia enxergar. Oenjôo parecia não ter fim. Finalmente conseguiu levantar a cabeça, ao sentir um braçofirme em seu ombro.

— Beba um pouco disto, Sharon — falou uma voz meiga.

Atordoada demais para perguntar o que era, Sharon bebeu a mistura deconhaque e água. O gosto não era bom, mas isso acalmou seu estômago.

— Agora está tudo bem — afirmou, frágil.

Tinha de ser justamente Ross! Esperou o sarcasmo usual, porém, isso nãoaconteceu. Levantou a cabeça e percebeu que ele a olhava, preocupado.

— Venha, vou ajeitar um lugar para você na proa. Fez-lhe um pequeno ninhoforrado de peles e a acomodou ali. Seu toque era suave e gentil.

— Tudo bem? Aviso você quando estivermos chegando. Sharon sentiu o calorgostoso das peles e, embalada pelo movimento do barco, logo adormeceu. Por quantotempo, não soube, pois acordou com Ross falando-lhe, apressado. — Vamos desceragora. Os esquimós vão seguir viagem. Levantou-se, depressa, mas não viu Ross. Ondeestava ele? Procurou-o, olhando à sua volta, antes de vê-lo um pouco abaixo dela, narampa de desembarque. Pensou em encontrar um jeito de chegar até ele, e, derepente, meio atônita, sentiu levarem-na para a rampa. O barco partiu logo emseguida, com os esquimós lhes acenando adeus.

— Ross, você se decidiu a vir, finalmente. E para que trazer a garota junto? Nãohá necessidade. — Ariel vinha de encontro a eles, irritada. Atrás dela vinha maisgente.

— A enfermeira costuma acompanhar o cirurgião, você não sabe? Vou precisardela para a anestesia — retrucou Ross.

Page 50: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 50

— Acho que você não vai dar nenhuma anestesia — disse ela, com um aresquisito.

— Mas por quê? O homem morreu?

— Não, foi levado de avião para Frobisher. Você chegou tarde demais. — Haviaum ar de triunfo em sua expressão.

— Mas eu vim o mais rápido que pude. Devem ter recebido meu recado sobre apane do avião, ou pelo menos eu pedi a Gordon para avisá-los. — Ross parecia surpresoe indignado.

— Eu não sei de nada, mas lá vem papai. Pergunte a ele. Aliás, ele não está nadacontente com você — ela hesitou por um momento, e continuou —, ou com a qualidadede seus serviços. Ele acha que talvez sua mente esteja mais concentrada em outrascoisas.

Ross não a deixou continuar, segurando-a nervosamente pelos ombros.

— Eu sei quem pôs essas idéias na cabeça dele — gritou, furioso. — E,realmente, eu tive minha atenção distraída por outras coisas: por você! — Respiroufundo, parecendo tomar fôlego. — Como ousou sair com Itsawik, quando eu a aviseipara deixar o rapaz em paz?

— Isso não é da sua conta, doutor — disse ela, conseguindo escapar das mãosdele. — Você se recusou a me trazer de volta quando eu quis. Itsawik é muitosimpático, gentil e atencioso.

— Ele é um esquimó e trabalha na missão. — Pegou as mochilas e virou-se paraSharon. — Vamos, senhorita Lindsay. Vamos dar uma olhada pelo acampamento.

Sharon pôde sentir o ódio por trás do sorriso falso de Ariel. Marcel Rochellevinha em direção a eles. Ele não correspondia muito bem à sua idéia de um grandeindustrial, pensou Sharon. Era pequeno e tinha os mesmos olhos escuros de sua filha.Foi diretamente a Ross.

— Chegou tarde demais, doutor. O homem não pôde esperar. Os outros dois jáforam tratados. Mas o que o deteve? — falou sem preâmbulos.

Sharon observou que havia nele apenas um traço do sotaque que Ariel usava comtanto charme.

— Tive problemas com o avião. Gordon não lhe disse?

— Mountie disse que você viria de barco. Devia cuidar melhor do avião.

— Eu poderia, se sua filha não tirasse Itsawik de seu povoado, em Cabo Mercy.O rapaz é um excelente mecânico — Ross não se preocupou com diplomacia.

Marcel Rochelle franziu as sobrancelhas aborrecido e então notou a presençade Sharon.

Page 51: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 51

— Esta é a nova enfermeira que Ariel mencionou? Seja bem-vinda aoacampamento, senhorita. Não costumamos receber visitantes femininos aqui, porprincípio. Isso pode distrair a atenção dos homens, mas podemos considerar sua visitade caráter oficial.

Ele estava sorrindo, mas seu jeito frio e calculista deixava Sharon pouco àvontade. Ariel tinha passado para trás do grupo e conversava com Ross.

— Vamos até meu escritório tomar um café — sugeriu Marcel, gentilmente.

— Seria ótimo, obrigada. — Sharon acolheu a idéia com simpatia.

Logo chegaram ao pequeno escritório, praticamente tomado por uma grandeescrivaninha coberta de papéis. Alguns minutos mais tarde, Ariel entrou seguida deRoss, que demonstrava nervosismo. Marcel Rochelle estava servindo o café.

— Como pretende voltar ao Cabo, Ross? — O tom educado perdera todo vestígiode irritação.

— A maneira mais fácil é pedir para Itsawik nos levar.

— Talvez seja a melhor solução. — Rochelle refletiu antes de continuar: —Gostaria de conversar com você sobre esse rapaz numa outra ocasião. Ele tem um bomfuturo aqui, você sabe...

De repente, o escritório ficou pequeno demais para a tensão que se criou ládentro. Ariel saiu batendo a porta. Devia estar furiosa com Ross por este tirarItsawik do acampamento.

— Se quiser retocar a maquilagem, enfermeira, há um banheiro ao lado. Ross, émelhor tratarmos de mandar preparar o trenó. Vocês devem estar querendo voltarlogo.

— Sim, a enfermeira Lindsay tem um bebê prematuro para cuidar. Somente atrouxe por causa do acidente. Talvez fosse preciso fazer alguma cirurgia — falou Rossem tom conciliatório, que lhe era pouco característico.

Ao se olhar no pequeno espelho sobre a pia, Sharon quase caiu de espanto. Nãoapenas achava-se completamente despenteada, mas seu rosto ficara demasiadovermelho por causa do frio. Encontrou alguns cosméticos que deviam ser de Ariel, noarmarinho. Quando terminou, não parecia a mesma.

Encontrou o senhor Rochelle sozinho no escritório.

— Espero não tê-lo feito esperar — falou, tímida.

— De forma alguma, minha querida. E não há motivo para partirem tão depressa,mas Ross pensa que é um crime ficar sem fazer nada. Como é... está feliz em CaboMercy?

— Acho que sim — Sharon hesitou. — É tudo tão diferente!

Page 52: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 52

— Agora que conhece o caminho, talvez possa vir nos visitar quando tiver umtempinho livre. Ariel fica muito tempo aqui sozinha, sem outra mulher para conversar.Ross me contou que você não conhece ninguém aqui no norte. Isso é estranho. Quandosoube da vinda de uma enfermeira para o Cabo, imaginei-a mais velha, ou então alguémque viesse se juntar ao noivo. — Deu-lhe uma piscada divertida e maliciosa.

— Bem, não é o meu caso. — Sharon sorriu um pouco envergonhada,imediatamente lembrando-se de Alistair Gaskell.

— Ninguém mesmo? Nem uma paixãozinha pelo doutor? — Ele riu.

— Dizem que ele não gosta de mulheres— respondeu ela quase automaticamente.

— Quem não gosta de mulheres? — a voz, conhecida, era de Ross, entrando noescritório.

— Muita gente aqui no norte — Marcel Rochelle se adiantou, salvando Sharon deum embaraço maior. — Tudo pronto?

Ross estava olhando para Sharon com mais atenção e, por um momento, elapensou que havia notado sua maquilagem.

— É melhor pôr um pouco de creme nesse seu rosto queimado. — Virou-se para osenhor Rochelle: — Sinto muito sobre a pane do avião.

— Não se preocupe, doutor. Isso acontece.

Não havia sinal de Ariel quando Ross ajudou Sharon a se acomodar no trenó.Conversou rapidamente com Marcel Rochelle antes de partir.

— Traga a enfermeira quando vier a próxima vez, Ross. É sempre bom ver umrosto bonito!

Sharon percebeu um olhar rápido do médico, antes que gritasse algumas ordenspara Itsawik. Para sua surpresa, Ross embarcou no trenó também.

— Será uma viagem agradável — disse ele, com um sorriso. — Acorde-me quandochegarmos. Quero recuperar um pouco do sono perdido.

Por algum tempo, Sharon sentou-se muito reta no trenó, observando a paisagem.Itsawik corria ao lado do veículo, guiando os cachorros, fazendo estalar o chicote devez em quando. Ross encolhera-se entre as peles, à frente de Sharon, sua cabeçabalançando com o movimento. O corpo estava levemente inclinado para trás e,instintivamente, Sharon dobrou os joelhos para servir de apoio a ele. O ritmo suave dotrenó ajudou-a a adormecer e só acordou mais tarde, com a parada brusca do veículo.Olhou confusa à sua volta e distinguiu o avião logo à direita, abandonado no meiodaquele deserto branco.

Ross e Itsawik conversavam perto do avião, mas Sharon notou que a fala tendiaa uma discussão mais acalorada. De repente, Ross veio até ela.

— Itsawik vai levá-la até o Cabo — disse secamente.

Page 53: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 53

— Mas você não vem?

— Claro, no Patinho Feio. Se tiver sorte, chego lá antes de você! — falou,sorrindo.

— Vocês estavam discutindo? — Ela se aventurou a perguntar.

— Itsawik queria que eu a levasse comigo, para poder voltar para oacampamento. — Franziu as sobrancelhas. — Ariel está mexendo com sua cabeça. Issonão é bom para ele. Na realidade, é muito difícil para um esquimó permanecer a mesmapessoa depois que o deslumbram com idéias malucas.

— Mas eu pensei que o pai dele fosse branco.

— Isso não faz de Itsawik um homem branco. Ele foi educado como esquimó, é oambiente que conta nesse caso, e não o sangue. Se os Rochelle deixassem o norte, nãopoderiam levá-lo com eles. Tirar um esquimó de seu ambiente natural é como lhe tirara vida. Bom, a viagem agora não deve ser longa. Vejo você lá.

O motor demorou para pegar, mas logo o ruído se tornou estável e o avião pôdedecolar. Ross voou em direção à massa azul do céu e em poucos minutos Sharon operdeu de vista.

O trenó arrancou, deslizando suavemente na neve. Só muitos minutos mais tardeé que Sharon se deu conta de rastros frescos de trenó correndo paralelos a eles.Prestando atenção, reconheceu mais adiante uma formação de gelo que, estava certa,vira antes de chegar ao avião.

— Itsawik! — chamou-o, com autoridade. — Cabo Mercy é para lá! — Apontoupara a direção contrária. Não sabia se ele entendia inglês.

— Eu sei... nós não ir para Cabo Mercy!

CAPÍTULO VII

O primeiro impulso de Sharon foi saltar do trenó e seguir para Cabo Mercy. Maso medo do desconhecido a fez refletir com mais calma e chegar à conclusão de que eramuito arriscado tentar a viagem sozinha. Não conhecia bem o local, mas tinha certezaque iria se perder naquela imensidão gélida, igual em todas as direções que olhasse. Etambém o medo de encontrar algum animal perigoso a impediu de tomar uma atitudetão drástica e impensada. Mais inteligente seria se submeter com tranquilidade a essesequestro. Itsawik estava certamente voltando para o acampamento para ficar ao ladode Ariel. A moça, rica e mimada, tinha transtornado o rapaz esquimó, simples e de bomcoração. Agora, completamente dominado por Ariel, ele havia desobedecido às ordensde Ross, coisa proibida pelas leis da missão. Se ele quisesse mesmo voltar para junto

Page 54: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 54

de Ariel, deveria antes ter levado Sharon, sã e salva, para junto da família do pastorEmerson. Mas, loucamente apaixonado por Ariel, o garoto esquimó só queria voltarpara junto da mulher amada o mais depressa possível. Mas seria isso mesmo queacontecia com o esquimó? Ou ele pretendia sequestrar Sharon e fazer com ela algumamaldade? Sharon desconhecia totalmente o caráter de Itsawik, não sabia se ele aencarava como uma estrangeira metida e estava querendo se desfazer dela. Talvezaté, pensou Sharon estremecendo, ele tivesse recebido ordens de Ariel para simularum acidente e acabar com a vida de Sharon. Sim, isso podia bem ser verdade, porquenão era segredo para ninguém que Ariel detestava Sharon. A moça rica poderia fazerqualquer coisa para se livrar de uma pessoa que ela não suportasse. E que ela nãosuportava Sharon era evidente desde o primeiro dia em que se haviam visto!

Sharon começou a tremer, seus dentes batiam uns contra os outros. Ela nãosabia se essa reação era de frio ou de medo. Tentando se acalmar, olhou para Itsawik,procurando ler em seus olhos algum sinal de agressividade. Mas o capuz impedia queela olhasse diretamente os olhos do esquimó. Sharon começou a olhar para a paisagem,procurando ver se se lembrava do lugar por onde passavam. E, de repente, teve umnovo choque: Itsawik não estava voltando para o acampamento onde Ariel seencontrava! Para onde, então, estava sendo levada? Seu coração deu um pulo no peito ebatidas desencontradas lhe tiraram o fôlego. Cada vez mais nervosa, gritou paraItsawik:

— Para onde está me levando? Não estamos indo para o acampamento! Volte!Quero ir para junto do pastor Emerson! Não pode fazer isso comigo, porque o dr. Rossvai ficar bravo com você! Não sabe que eu sou enfermeira dele? — Falava com vozfirme, tentando fazer com que o garoto lhe obedecesse.

— Não grite, enfermeira. Ou podemos morrer soterrados pela neve.

Só então Sharon reparou que estavam bem ao pé de uma enorme montanha degelo. Levantou a cabeça e estremeceu de medo: os picos gelados continham toneladasde neve que poderiam soterrar uma cidade inteira! Quanto mais um minúsculo trenó!Se a neve começasse a cair, não haveria salvação para eles. Itsawik levou o trenócuidadosamente para uma pequena cavidade na base da montanha, parou e disse paraSharon:

— Fique aqui, não se mova nem grite. Eu voltarei.

— Mas aonde vai? Tenho medo de ficar sozinha! — Fez a pergunta baixinho, commedo que sua voz fizesse a montanha vir abaixo. — Por favor, me leve de volta a CaboMercy.

Itsawik voltou-lhe as costas sem responder e se afastou. Foi andando, andando,e em poucos minutos sumiu no horizonte.

Chorando de medo e de frio, Sharon tirou uma garrafa térmica do trenó epreparou um chá quente. Tomou um gole e a bebida doce a acalmou um pouco. Desceudo trenó e começou a andar um pouco, para melhorar a circulação de suas pernas, que,

Page 55: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 55

com a parada forçada e o frio intenso, estavam ficando um pouco adormecidas. Foinesse momento que se lembrou: os cães conhecem o caminho de volta! Se elaconseguisse fazer com que eles lhe obedecessem, estaria salva! Teria que convencer olíder para ser obedecida. Com cuidado, foi se aproximando. Sentiu um suor geladodescer por sua espinha quando o cão levantou a cabeça, olhou-a e depois arreganhou osdentes! Não, certamente ela não poderia tapear os cães. Eles só obedeciam às pessoasmuito conhecidas e com quem estavam acostumados.

Desanimada, lembrou-se de que Itsawik pretendia voltar, senão teria levado otrenó com ele. A não ser que, com extrema maldade, a tivesse abandonado comintenção de matá-la de fome e frio, para só depois voltar para pegar os cães. Osanimais estavam acostumados a passar muito tempo sem comer e não morreriam defome como Sharon. Agora ela tinha certeza que iria morrer ali, abandonada naquelaimensidão branca, tendo por túmulo um pedaço da montanha magnífica, bela e mortal!Enrolou-se na manta, fechou os olhos e adormeceu, procurando desse modo escapar dotriste fim que a esperava.

Acordou com um cheiro acre que a fez dar um pulo do lugar onde estavaadormecida. Olhou e viu Itsawik cozinhando um enorme pedaço de carne.

— Você vai gostar da carne — disse ele, com um surpreendente sorriso. — Fuicaçar para nós. Está contente?

A surpresa com a atitude do rapaz foi tanta que Sharon quase não teve forçaspara responder.

— Sim, estou contente, muito contente, porque pensei que você tivesse meabandonado aqui para morrer.

Itsawik olhou para ela horrorizado com tal idéia.

— Imagine! Eu nunca iria fazer isso com a enfermeira que cuida de meu povo! Sóestamos aqui escondidos porque não quero que o doutor nos veja. Se ficarmos no meioda neve, com o trenó, ele vai ver a gente quando voltar para nos procurar.

Com sua inocência e simplicidade, o esquimó havia dado a Sharon uma idéia paraconseguir avisar Ross quando ele viesse procurá-los. A moça ficou com os ouvidosatentos, procurando escutar o menor ruído do pequeno avião de Ross.

Ela comeu um pedaço da carne de foca, tomou café, deu um pouco para Itsawike ficou esperando que Ross fosse procurá-la...

Foi então que Sharon ouviu o barulho do motor. O avião devia estar voandobaixo, a julgar pelo som. Só podia ser o Patinho Feio, o avião do médico. Rosscertamente ficara preocupado com o atraso deles. Em pouco tempo, o som do avião foidesaparecendo, perdendo-se no silêncio vazio da terra gelada. Sharon olhou seuraptor. E o que ia acontecer depois?

— Vou fazer chá. — Itsawik apontou a caixa de comida. — Vamos esperar odoutor passar, depois vamos continuar.

Page 56: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 56

Por um momento, Sharon pensou em discutir com o rapaz.

Como podia ficar segura de que ele não a deixaria largada em algum buraco degelo? O pânico quase tomava conta novamente de Sharon quando uma onda de bomsenso a dominou. Se fizesse o jogo dele, teria mais chance de sobreviver, ou mesmoescapar no momento propício.

Desceu do trenó e quase caiu, pois não sentia as pernas. Massageou-asvigorosamente e notou que Itsawik a observava. Porém não havia suspeita em seuolhar.

Foi então que ouviu o som do avião se aproximar novamente. Sabia: era agora oununca. Não se voltou para Itsawik, não ousou ver sua reação. Simplesmente correu. Ocoração descompassado, os pulmões ardendo-lhe, ela não pensava. Só continuava acorrer, o terror dominando-a, sem jamais olhar para trás. Sabia que enquanto ouvisseo barulho do motor, tão próximo, poderia ser facilmente localizada. E quando o ruídose tomou insuportável, Sharon conseguiu divisar o aparelho. Ele voava baixo, em suadireção. Aterrissou logo adiante e Sharon viu dois homens descerem. Estava ficandomuito escuro, e antes de perder os sentidos ouviu uma voz que a chamava ao longe...foi o que conseguiu perceber.

— Sharon, você está bem? O que aconteceu? Onde está Itsawik? Fez umesforço para abrir os olhos e viu Ross ajoelhado a seu lado, cheio de preocupação.

— Estou bem, Ross — falou com a voz rouca. — Itsawik quis voltar para oacampamento — Quase lhe escapou o nome de Ariel. — Ele prefere ficar lá, nãoimporta o que você tenha dito a ele.

— Você andou fazendo sermão de novo, doutor? — Charlie Gordon se aproximou.— Mas qual é a acusação? Ingratidão par com os missionários que o educaram? —Charlie riu de novo.

— Ele merecia uma lição. De qualquer modo, deixei umas peça do avião lá notrenó. Onde está e!e, Sharon?

— Deixei-o perto da montanha, fazendo chá. Ele não me machucou de formaalguma.

— Parece que a conversa que mantive com ele deu maus resultados. Desculpe-me, Sharon.

Sharon quase desmaiou novamente. Ross pedindo-lhe desculpas

— Tudo bem, eu estou ótima — assegurou ela com firmeza.

— Boa menina. Você volta comigo. Meu Deus, Susan não me deixaria passar pelaporta sem você! Gordon, quer que o esperemos?

— Está duvidando de minha habilidade para trazer um garoto esquimó de voltapara casa?

— Bem, nós nos encontraremos mais tarde, então — Ross riu. — Venha, Sharon.

Page 57: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 57

Desta vez Sharon se sentiu bem mais à vontade no avião. Ross, de sua parte,parecia mais atencioso, menos impaciente, não a fazendo se sentir, como das outrasvezes, um ainda que leve empecilho.

De repente ele deu uma risada forte, olhou-a divertido e perguntou:

— O que você andou comendo? Está cheirando igualzinho a um esquimó quepassou o inverno todo perdido nas montanhas cobertas de neve! Será que seembelezou para mim passando óleo de foca nos cabelos?

O choque tinha deixado Sharon nervosa e sensível. Vendo-se alvo debrincadeiras de mau gosto, a moça começou a chorar. Isso deixou Ross aborrecido,mas ele nada disse. Esperou que Sharon falasse primeiro.

— Eu sei que não estou nenhuma maravilha. Mas não tenho culpa do queaconteceu. Se gosta de mulher bem arrumada e cheirosa, por que foi me buscar? Deviater ido para o acampamento e pegado Ariel. Ela, aposto, está linda, bem vestida esuperperfumada.

— Acho que devia mesmo. Ariel é mais bonita e tem mais senso de humor do quevocê, Sharon.

Isso aumentou ainda mais o choro da garota. Sharon começou a derramarlágrimas como um bebê de dois anos!

— Meu Deus! Não é possível! Onde foram buscar uma mulher como você? Aqui noÁrtico precisamos de pessoas fortes, não de garotinhas mimadas que choram porqualquer coisa.

— Desculpe, eu não choro por qualquer coisa... É que fiquei muito nervosa, achoaté que estou com um pouco de febre. Desculpe, eu sou uma boba. Não devia ter ligadoquando me comparou com a sua namorada.

— Minha namorada? — disse ele, um pouco surpreso. — Ah, sim, Ariel.

— Eu sei que sou feia, sem jeito, mas não sou nenhuma boba. Não mereço sertão insultada como fui.

— Que exagero! Só porque falei que você estava cheirando a foca? — Sorriu epassou os lábios, devagar, nos lábios secos.

— Desculpe, você tem razão, eu sou uma boba mesmo... — disse ela, limpando osolhos com a manga como uma criança quando não tem lenço.

— Enfermeira! Se a sua chefe no hospital visse você fazer isso! Seria expulsa!— A brincadeira desta vez surtiu efeito e Sharon, já mais descontraída, riu atéperder o fôlego. Quando parou viu Ross olhando para ela com um olhar diferente...Estavam tão próximos que ela quase podia escutar as batidas do coração do médico. Efoi nesse momento, sem que os dois percebessem exatamente quando, que uma imensaternura e desejo tomou conta dos dois. O médico encostou a ponta dos lábios na faceainda molhada de lágrimas de Sharon, depois começou a beijá-la devagarinho,

Page 58: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 58

procurando sentir todo o prazer daquela pele macia. Mas ainda era pouco para Sharon.Ela procurou os lábios dele com sua boca ávida de amor, procurou abraçá-lo, encostarseu corpo contra o dele. Mas estava com tantos agasalhos que mal conseguia abraçá-lo.E Sharon queria mais, muito mais...

O avião, desgovernado, deu um solavanco. Ainda segurando-a com um dosbraços, Ross acertou o aparelho. Mas o encanto havia se quebrado. O médico seafastou dela e logo avistaram os telhados da base. Haviam chegado a Cabo Mercy. Osdois ficaram em silêncio até a aterrissagem.

Sharon notou que todos a esperavam com uma recepção calorosa.

— Graças a Deus eles a encontraram a tempo. — Susan correu até o avião eabraçou-a. — Vamos, Ellen está preparando a comida.

Sharon não teve chance de falar com Ross, foi absorvida pela família dosEmerson e conduzida para casa. Para seu alívio, Susan mandou-a para a cama, dizendoque precisava se recuperar do susto. O senhor Emerson não pôde continuar suaconversa e às crianças a mãe prometeu que a enfermeira responderia a todas asperguntas no dia seguinte.

— Como estão a menina e seu bebê, Susan? — Sharon lembrou-se, apreensiva.

— A mãe está ótima. E o bebê parece já ter crescido, depois que o alimentei,imagine! Fique sossegada.

Sharon já estava quase dormindo quando Ellen entrou no quarto trazendo abandeja com comida. Não teve coragem de desapontar a menina.

— Parece uma delícia, Ellen. Desse jeito vou ficar mimada!

A menina sorriu timidamente e esperou ansiosa ela começar a comer para sairdo quarto na ponta dos pés. Sharon descobriu que sua fome era maior do que tinhasuposto e acabou comendo tudo. Pensou então em Ross. Ele deveria estar exausto.Desde sua entrada no avião, na Groenlândia, não havia dormido uma só noite direito.Será que ele dormia na enfermaria quando estava na base? E Charlie Gordon? Seráque ele e Itsawik já estavam de volta?

Foi um sono agitado pelas lembranças do dia anterior. Já se achava acordada háalguns minutos quando Susan abriu devagarinho a porta.

— Dormiu bem, querida? Não tenha pressa em se levantar. Mandei Ellen vercomo estão as coisas na enfermaria.

— E o... — no último instante viu que não conseguia pronunciar o nome dele emudou a frase. — Saiu tudo bem?

— Sim, e Itsawik está ajudando Ross no conserto do avião.

— Não houve nenhum problema, então?

— Que tipo de problema? — perguntou Susan, apreensiva. — Aconteceu algumacoisa que eu não saiba?

Page 59: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 59

Sharon lembrou-se então de que Itsawik havia sido criado na missão e que seumau comportamento iria preocupar Susan.

— Não, não, é que eu não entendo ainda a língua esquimó, por isso fiquei semsaber o que os dois conversavam. Curiosidade minha, apenas — falou apressadamente.

— Oh, não se preocupe, querida, nós vamos lhe ensinar a falar esquimó — riuSusan, já tranquila, saindo do quarto.

Sharon vestiu-se e logo foi ver se precisavam de sua ajuda na cozinha.

— O chá está pronto, Sharon — avisou Susan, sempre solícita. — Tem feijãocom bacon no forno. Vou ficar bem mais feliz quando o verão chegar e tivermosvegetais frescos para comer.

— Bom dia, Sharon. Dormiu bem? — Ross estava sentado num banco, tomandosua caneca de chá.

— Consertou o avião? — Depois do que havia acontecido no avião, Sharon sentia-se tímida diante dele.

— Deixei Itsawik trabalhando com o motor. O garoto fica feliz quando podemexer em ferramentas. — Aproveitou que Susan se afastou por um segundo e lheperguntou baixinho: — Contou-lhe alguma coisa sobre o que aconteceu?

— Não, Ross. Fiquei quieta quando descobri que ninguém havia lhe dito nada.

— Ótimo, Sharon. Já conversei com Gordon e, se não houver mais problemas,vamos perdoar Itsawik.

Susan voltou à cozinha carregando um bolo enorme. Colocou-o na mesa e virou-se para Ross, pegando o prato com o glacê.

— Como prefere a cobertura, Ross? — perguntou, alegre.

— Tanto faz. Você sabe que eu não gosto dessas coisas. — Para espanto deSharon, Ross ficou vermelho.

— Ora, não fale assim, as crianças estão ansiosas pela festa! — Susan pareciaofendida.

— E a que horas começa esta festa?

— Lá pelas sete, E não tente escapar!

— Eu prometo. E obrigado pelo chá — falou em tom mais suave. — Sharon, fiquepor aqui. Susan talvez precise de sua ajuda. Já fui ver os pacientes e eles estãopassando bem.

— Quer me ajudar a fazer a cobertura? — Susan lhe perguntou assim que Rosssaiu.

A princípio, Sharon não sabia o que fazer com o glacê, espalhando-o com mãosincertas e trêmulas, mas foi adquirindo confiança à medida que ia trabalhando.

Page 60: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 60

Desenhou folhas nos lados do bolo, de modo que este acabou se parecendo com umacoroa de louros.

— Mas isso está ficando uma beleza! — observou Susan, entusiasmada. —Espere um pouco, acho que ainda tenho bolinhas prateadas que sobraram do bolo decasamento da Rute. Podemos escrever a sua idade com elas, o que acha? Ele deveandar pelos trinta e sete, mas se pusermos trinta e oito, vamos ganhar uma bronca.Experimente!

O bolo ficou bonito. Sharon escreveu "Feliz Aniversário", em um círculo dentroda coroa, "Ross", no meio, e bem embaixo, 38 anos".

— Ellen já deveria estar de volta da enfermaria para nos ajudar — lembrouSusan, preocupada.

Sharon ligou pelo interfone para a enfermaria, mas não houve resposta.

— Bem, deve ter saído por uns minutos. Ela já aparece. — Sharon tentoutranquilizá-la.

— Tem razão. Por que não ajuda as crianças com a mesa? — sugeriu Susan.

Sharon trabalhou alegremente com as crianças na arrumação da mesa.

— Nós gostamos de você, Sharon — falaram elas, acariciando-a.

— Garota de sorte! — alguém falou da porta.

Ross apareceu na sala. Instintivamente, as crianças começaram a cantar eSharon as acompanhou, um pouco mais alto.

— "Parabéns a você!"

Ao terminarem, Sharon observou com espanto a expressão de Ross. Ela nadatinha em comum com a do doutor Ross Clarke a quem fora apresentada.

— Você trabalhou bastante, não é mesmo? — Meio sem jeito, quis mudar deassunto. — E onde está Ellen? Não a vi entre as crianças.

— Você vem da enfermaria? Ellen não estava lá? — perguntou Sharon, surpresa.

— De acordo com os esquimós, ela deixou a enfermaria há horas. Quem sabeestá com Charlie?

— Eu não a vi esta tarde — disse Charlie, entrando na sala. — Aconteceu algumacoisa? É melhor falarmos com Susan.

Em pouco tempo os dois Emerson estava na sala. A mulher tirou o avental e oentregou a Sharon.

— Por favor, desligue o forno quando os pãezinhos estiverem prontos. Vamosver onde Ellen se meteu.

Page 61: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 61

— Meu Deus, espero que a encontrem logo — disse Ross, olhando para Sharon.— Venha, dê-me este avental e vamos cuidar dos pães para Susan. Eu a ajudo a vesti-lo... assim está bem. Só não consigo imaginar você como cozinheira!

As crianças entraram logo em seguida na cozinha.

— Feche os olhos, Ross, e adivinhe o que temos na mão!

Sharon sorriu da cena. Os olhos fechados com uma das mãos, Ross tentouadivinhar o presente. Finalmente, as crianças permitiram que ele abrisse os olhos.

— É lindo! Agora quero que todos assinem seus nomes, bem bonitos.

— Onde estão papai e mamãe? — perguntaram, ansiosos.

— Deram uma saidinha, mas logo estarão de volta. Que tal um jogo para passar otempo?

Sharon admirou a habilidade com que ele contornou o assunto. Jogaram ebrincaram durante algum tempo. Quando menos esperavam, a porta se abriu e Charlieentrou carregando a menina nos braços, seguido dos Emerson. Tinham a expressãocansada mas tranquila.

— Vocês começaram a festa sem mim? — Ellen perguntou. Charlie a colocou nodivã para que Ross a examinasse.

— Nada que um prato quente de sopa não possa curar — falou ele, sob umsuspiro geral de alívio.

— Onde a encontraram? — perguntou Sharon baixinho, enquanto ajudava Susana tirar o agasalho.

— Estava encolhida embaixo de um dos barcos que costumamos usar no verão eque agora estão virados para baixo. Parece que o vento a soltou da corda e ela foiparar lá, por, milagre. Deve ter batido a cabeça e perdido os sentidos. Tudo nãopassou de um susto, felizmente.

A festa se desenrolou alegremente, com Ellen recostada no sofá. A uma certaaltura, Sharon notou que a garota já não conseguia manter os olhos abertos. Logodepois a festa foi encerrada e Ross levou a menina para o quarto. Susan o seguiu. —Que Deus o abençoe, Ross!

Com as crianças quietas na cama, os adultos voltaram à sala, para uma últimaxícara de chá. Os Emerson mostravam no rosto traços leves de cansaço. E, não fossemsuas olheiras, aparecidas tão depressa, nada sugeriria que o casal escapara de umatragédia.

Os dias seguintes foram calmos. Sharon, duas vezes por dia, chegava àenfermaria para ver Rute, a jovem mãe, e seu bebê. Ensinava também a Marak comoexercitar o ombro em recuperação. Susan ensinou-lhe algumas frases mais úteis emesquimó. Ross e Charlie trabalhavam na missão ou saíam para alguma tarefa especial. A

Page 62: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 62

rotina diária se desenrolava calmamente. Sharon estava começando a ficar ansiosa.Era como se todos estivessem à espera de alguma coisa que ela desconhecia.

E quando isso aconteceu, foi tão inesperado que ela não conseguia acreditar. Eracomo se de repente a vida brotasse naquela terra gelada. Primeiro veio o som de águacorrendo pelas rochas, formando depois os riachos que desembocavam no mar. Asmassas de neve pareciam diminuir a cada hora. A paisagem de Cabo Mercy mudava acada instante. As rochas escuras dos cumes das montanhas secavam ao sol, adquirindoum tom cinza-claro, e nelas cresciam musgos.

Começava-se a ouvir os passarinhos. E uma manhã as crianças entraramcorrendo em casa.

— Sharon, venha ver, os gansos estão chegando!

Os gansos vinham voando, formando um V com suas asas brancas, em contrastecom o azul do céu. Era uma cena das mais lindas que Sharon vira.

— Que bom, teremos ovos frescos para o café da manhã! — exclamou Ross, quepassava por ali.

Sharon o olhou espantada, sem conter uma careta. Ross riu.

Ouviu-se um ronco de avião que vinha em direção às casas. Ao se aproximar,voou mais baixo e quando passou exatamente em cima dos telhados, deixou cair umpacote branco.

— Oba! Oba! As cartas chegaram — gritaram as crianças.

— Está esperando alguma em especial? — Ross olhou para ela,

— Não creio. Eu não tenho família na Inglaterra.

— Nem namorados? — provocou-a Ross.

Sharon sacudiu a cabeça novamente. A Inglaterra e St. Mary pareciam tãodistantes agora! O pessoal estava todo reunido, separando as cartas. Susan trouxe umpacote delas, amarradas com um barbante, endereçadas a Sharon.

— Olhe só quanta carta, Sharon!

Os dedos de Sharon tremiam nervosamente ao desfazer o nó, o que fez com queas cartas fossem parar todas no chão. Ross ajudou a juntá-las, virando os envelopescom uma curiosidade inconsciente. Alistair Gaskell era o nome do remetente, emletras grandes.

— Pensei que você não tinha namorados, Sharon. — Já não havia maisprovocação em seu tom de voz, mas seu modo foi brusco ao devolver as cartas. Virou-se, andando em direção à enfermaria.

CAPÍTULO VIII

Page 63: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 63

Sharon agarrou as cartas que Ross colocara tão rudemente em suas mãos. Porque ele teria agido daquela forma? Simplesmente, não fazia sentido. As criançastambém ficaram surpresas. Depois de um momento, Ellen correu atrás dele.

— Ross, espere! Você não pegou as suas!

Sharon voltou com as crianças para a missão. Seu entusiasmo por receber ascartas da Inglaterra acabou sendo um tanto ofuscado pelo comportamentoinexplicável de Ross. Sentindo-se como que exposta, ali ao lado dos Emerson, pensouem pôr as cartas de lado e lê-las numa outra hora. Eles, porém, estavam entretidosdemais com sua própria correspondência para prestar alguma atenção à dela.

Colocou então as cartas por ordem de data e escolheu a mais antiga. Percebeuque resistia estranhamente à idéia de restabelecer contato com o St. Mary. Logo naprimeira linha, notou que Alístair havia escrito em forma de diário. Em poucosmomentos ela estava de volta ao hospital. Como tudo parecia remoto! Era como setentasse imaginar a rotina de uma enfermaria num país onde jamais estivera!Compreendeu então o quanto sua existência lá tinha sido limitada, sempre fazendo asmesmas coisas, dia após dia. No St. Mary ela jamais havia visto gansos voando contraum céu de primavera. Nunca precisara transportar um caso de maternidade em umtrenó. Sentiu pena de si mesma, da garota que fora naquela época. Aquilo tudo lheparecia tão distante agora! Sabia: o St. Mary era um capítulo encerrado em sua vida.

Pegou as outras cartas, de várias enfermeiras que tinham sido suas amigas nohospital Todas elas pareciam ter pena da colega perdida no frio do norte. Como sabiampouco!

Olhou à sua volta. Susan esfregava os olhos e riu quando percebeu o olhar deSharon.

— É sempre assim quando recebemos cartas. Até que elas cheguem nãopercebemos o quanto estamos distantes do resto do mundo. Ellen, ponha a chaleira nofogo. Que tal um chá, querida? — Olhou em redor. — Ross não estava com você?

— Foi até a enfermaria — disse Sharon, corando.

— Só queria saber se ele vai ao acampamento. Estou precisando de unsmantimentos e quem sabe eles podem me ajudar. Houve tempo em que a única soluçãoera esperar o navio chegar e, é claro, economizar. — A voz da filha chamou-a dacozinha. — Já vou indo, Ellen. Sharon, trago o chá em alguns minutos.

Sharon ainda estava lendo suas cartas quando Susan voltou com a bandeja.

— Ross ainda não veio? É melhor chamá-lo pelo interfone. Por favor, Sharon,faça isto, sim?

Page 64: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 64

Sharon sentiu um calafrio, desejando que ela tivesse pedido para outra pessoa.Pegou timidamente o fone e ficou surpresa ao se perceber torcendo para não haverresposta.

— Ross Clarke; o que deseja? — a voz dele soou clara.

— O chá está pronto, Susan pediu para lhe avisar — falou, insegura.

— Ah... é você. É melhor dizer que posso me atrasar. — A voz se alterou, de umjeito que Sharon não conseguia definir.

— Eu posso ajudar? — interveio ela.

— Não. São coissa que preciso fazer há muito tempo. Tchau. — Desligou antesque Sharon pudesse fazer qualquer coisa.

— Ross disse que vai se atrasar, Susan.

— Bem, parece que ele não vai ao acampamento hoje. Aqui está seu chá, querida.— Virou-se para Charlie, que havia entrado na sala uns minutos antes. — Tem algumnegócio na vila? Podíamos ir em dois trenós e levar as crianças a dar um passeio, o queacha?

— O caminho deve estar bastante molhado. Se você não se importar em molharos pés, creio que podemos ir. Vai levar Sharon? — falou casualmente, pegando suacaneca de chá.

— Pode ser, depende de Ross. Acha que ele dará alta a Rute e o bebê atéamanhã, Sharon?

— Posso perguntar a ele — Sharon pareceu indecisa —, mas você sabe como eleé.

Houve um pequeno silêncio antes de Charlie se levantar e se dirigir à porta.

— Bem, vou indo. Avise-me sobre a viagem, Susan. De minha parte, está tudocerto.

Sharon acordou com o barulho das crianças, entusiasmadas com os preparativospara a viagem. Lembrou-se da resposta de Ross sobre Rute.

— Ela é sua paciente. Se você achar que ela pode fazer a viagem, por mim estátudo bem. O bebê está ganhando peso, você disse. Eu não estarei aqui, de qualquermodo.

Não houve mais nada, nenhuma instrução, nenhuma ordem. Imaginou que eleestava indo para o acampamento, pela conversa dele com Susan.

— Sharon, mamãe disse que hoje deve esquentar. — Ellen entrou no quarto. —Você vai vestir sua roupa de esqui? Ela é tão bonita! Posso ajudar Rute a se prepararpara partir? Por favor, diga que sim!

Page 65: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 65

— Faça isso, que eu preparo mais uma mamadeira para ela levar — disse Sharon,com um sorriso.

Saiu da cama animada. Como era bom poder vestir algo mais leve! Vestiu ascalças vermelhas de esqui. Estavam um pouco justas. O motivo devia ser toda aquelacomida que Susan lhe preparava. A camisa azul-marinho contrastava com o rostocorado e o brilho de seus olhos verdes. Olhou-se ao espelho. Sentia-se bonita e feliz;com a jovialidade de uma garotinha, pegou o casaco e saiu do quarto, pronta para aviagem.

Olhou pela janela para o hangar onde ficava normalmente o Patinho Feio. Ele nãoestava lá. Quando teria partido Ross? Mas não havia tempo de sonhar acordada. Elesjá estavam prontos. Rute e o bebê encontravam-se em um dos trenós que Ellen dirigiaorgulhosa. Itsawik também se achava lá e Sharon o olhou, constrangida. Seu olhar,porém, era tranquilo, o que a fez concluir que o pesadelo daquela viagem havia sidoesquecido. Charlie Gordon trazia o outro trenó e, em segundos, as crianças instalavam-se nele.

— Parece que não sobrou lugar para nós, Sharon — comentou Susan. — Vamospela costa. O caminho é mais longo porém é mais agradável. E o gelo não está tão duro.

Caminhavam entre pedaços de gelo e montes de neve semiderretida, às vezespassando por poças de água lamacenta. Sharon logo sentiu o calor do sol de primaverae tirou o casaco, arregaçando as mangas para expor seus braços brancos ao sol. Osgritos alegres das crianças de vez em quando eram abafados por bandos depassarinhos que voavam do topo das rochas ao notarem a aproximação dos trenós. Oscães ficavam agitados nesses momentos, e latiam sem parar. A mistura desses sons,para Sharon, complementava a sensação de alegria trazida pela nova estação.

A certa altura, Charlie chamou sua atenção para as focas, espalhadas ao solnuma grande rocha próxima à praia. Havia centenas delas. O alvoroço foi geral e osgritos das crianças se juntaram aos latidos dos cães inquietos que dispararam em suadireção. Isso as afugentou e elas voltaram para a água. Charlie e Itsawik tentavamconter os cachorros.

A vila agora não estava longe. Ao chegarem, Sharon notou o entusiasmo dosesquimós ao verem Rute e o bebê entre os visitantes. Só então, passado o tumulto, elareparou que o povoado havia se deslocado para perto do mar. As cabanas encontravam-se bem mais limpas.

— Às vezes eles se mudam para um lugar diferente. Vão caçar focas no verão e,mais tarde, chegarão as baleias — explicou Susan.

— Quer dizer que eles também comem baleias? — perguntou Sharon, espantada.

— Há carne para toda a vila em uma única baleia — riu Susan. — Ellen, leve osmeninos até a praia.

Os pequenos saíram correndo na direção do mar. Depois de um ou dois minutos,as crianças esquimós as seguiram, a uma certa distância, ainda tímidas.

Page 66: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 66

Sharon se sentiu mais à vontade nessa visita e experimentou algumas frases emesquimó, que o pessoal da vila recebeu com alegria e admiração. O tempo passou rápidoe logo Charlie estava sugerindo que voltassem à missão.

— Não confio nesse gelo que está derretendo. Vou reunir os cães. Chamem ascrianças — disse ele.

Ao partir, Sharon sentiu que se despedia de amigos. Já não eram estranhos,como da primeira vez. Os esquimós já não pareciam todos iguais e era bem mais fácildistingui-los sem as peles pesadas.

A viagem de volta pareceu mais longa e calma. A certa altura, o que na vindatinha sido um pedaço de gelo, dentro de uma garganta estreita entre duas montanhas,transformara-se em um braço de mar que entrava, como se fugisse da praia.

— Mamãe, não vamos poder cruzar. Temos que acampar aqui. Por favor, diga quesim! — pediu Ellen, quebrando a tensão.

— Alguma sugestão, Charlie? — perguntou Susan.

— Podemos mandar ltsawik até a vila para tomar emprestado o barquinho depesca. Ele cabe no trenó. Assim podemos atravessar até a outra margem.

As crianças ficaram desapontadas, porém ltsawik foi enviado de volta para opovoado. Charlie colocou o outro trenó num pedaço abrigado do vento e todos seinstalaram nele.

— Venha, Sharon. Ajude-me a distribuir as canecas de chá, enquanto abro agarrafa térmica — disse Charlie. — Divida os pãezinhos entre as crianças. Elas devemestar morrendo de fome.

Sharon ficou feliz por poder se movimentar. Estava começando a sentir frio. Ascrianças estavam cantando baixinho e Sharon reconheceu o hino esquimó que elas lhehaviam ensinado. Sem pensar duas vezes, cantou também a melodia, sua voz docesobressaindo das outras.

— Venha se sentar, Sharon. Você deve estar com frio — sugeriu Susan, dando-lhe espaço no trenó.

— Tem mais um lugarzinho? — Charlie foi sentando ao lado de Sharon semesperar resposta.

Estava esfriando e o único jeito de se esquentar era ficarem todos bem juntos.Além do mais, sentados, não sentiam tanto o vento.

— Cante para nós, Sharon, as crianças vão gostar. — Charlie tocou-a no braço.

Sharon cantou todas as canções que conseguiu lembrar. Em algumas as criançasa acompanhavam. Foi com alívio que ouviram os latidos dos cães que se aproximavam.Esperaram ansiosamente por ltsawik. Será que ele trazia o barco?

— É ltsawik, mas não está carregando o barco. — Charlie ficou em pé. Foi ao seuencontro.

Page 67: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 67

— O barco está furado — voltou ele, desanimado. — Vão consertá-lo o maisrápido possível, mas não sei quanto tempo isso vai levar. Podemos voltar para a vila. —Olhou para Susan, como a pedir uma decisão. — Bem, ltsawik, de qualquer modo,trouxe carne de foca e uns pãezinhos. Podemos virar o outro trenó para fazer abrigocontra o vento e usar as peles para nos cobrirmos.

— Acho melhor. As crianças já estão com sono — respondeu Susan. — Sharon,vamos fazer um ensopado com a carne. Quando William der por nossa falta, vai mandarSmithy nos procurar com o barco. Vamos, querida.

O ensopado ficou delicioso e Sharon nem lembrou qual era seu principalingrediente. Após a refeição e o chá quente, sobreveio inevitável o sono. Com o abrigodo outro trenó mais as grossas peles, eles se aconchegaram num razoável conforto. Ascrianças foram aos poucos silenciando, enquanto os adultos permaneceram acordados,conversando baixinho. Sharon, entre Susan e Charlie, acabou adormecendo logo emseguida,

— Como é, não vão acordar, seus dorminhocos?!

Os gritos tornavam-se cada vez mais próximos. Sharon despertou e, por ummomento, não soube onde estava, até que o "travesseiro" onde sua cabeça repousavase moveu e, virando-se, ela percebeu que Charlie estava tirando o braço de baixo dela.

— Dormiu bem, Sharon? — perguntou timidamente. — Parece que vamos tervisitas. Ei... é o doutor em pessoa!

Sharon se sentou. Realmente era Ross que vinha da praia em direção a eles,seguido de Smithy, o gerente do entreposto. Perto da praia estava um dos barcos deCabo Mercy.

Ela olhou ansiosa para Ross. Porém, para sua surpresa, ele parecia interessadoem todos, menos nela. Cada vez que seus olhos se encontravam, ele os desviavadeliberadamente. Viu então que Charlie também estava incluído na censura proposital,sendo igualmente ignorado, e compreendeu o que estava acontecendo. Ross viraSharon descansando a cabeça no braço de Charlie e ficara com ciúmes. Por estranhoque fosse, sentiu-se tranquila e foi ajudar Susan com as crianças.

— Podemos embarcar os cachorros primeiro, Ross. Isso vai economizar tempo —sugeriu Charlie.

— Essa é a idéia — Ross respondeu, lacônico.

Mountie não pareceu se ressentir com as maneiras de Ross, continuando atrabalhar. O embarque demorou bastante e, no final, estavam todos com frio ecansados. Sharon foi uma das últimas a subir no barco. Muitas vezes pensou que Rossestava a ponto de lhe falar. No final da travessia para a outra margem, ele lhe falou,enquanto a ajudava a desembarcar:

Page 68: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 68

— Aproveitou bem a noite? — Não parecia esperar nem desejar uma resposta,porque logo se afastou.

A última parte da viagem de trenó foi longa e cansativa e mesmo Ellen pareciatão impaciente para chegar quanto as outras crianças. Então avistaram os telhados damissão, e os cães, esquecendo seu cansaço, correram para casa. Como é bom estar devolta, pensou Sharon, assim que os trenós pararam. As crianças imediatamente pare-ciam ter readquirido a energia perdida durante a viagem, e estavam novamentepulando e brincando.

— Venha fazer a refeição conosco, Charlie — propôs Susan.

— Claro, se não for trabalho — agradeceu Charlie. — Sharon, você está bemqueimada do sol — disse ele, colocando a mão na testa dela.

— Mas que cena bonita! — A voz de Ariel soou bruscamente. Os dois olharampara ela espantados. Era a última pessoa que esperavam ver no Cabo.

— Bom-dia, srta. Rochelle. Acaba de chegar? — perguntou Charlie.

— Vim ontem à noite. O pastor disse ser de extrema importância a volta deRoss para o Cabo, e nós viemos, naturalmente. Pensamos que tivesse havido umacidente, mas não vejo ninguém ferido. — Havia um tom de impertinência em sua voz.

Então Ariel passara a noite lá. Mas por que Ross a trouxera? Afinal não era ela,Sharon, a enfermeira?

— Sharon, poderia me dar uma mãozinha? — Susan a chamou para dentro.

O senhor Emerson estava rodeado pelas crianças, conversando alegremente.Ficou radiante ao ver Sharon.

— Então a aventura não lhe fez nenhum mal, querida. Sua cor está ótima. Pareceque o norte está lhe fazendo muito bem.

Sharon sorriu e foi com Susan à cozinha.

— Você viu Ariel? — perguntou esta subitamente.

— Sim, deixei-a com Charlie.

— Parece que ela tomou conta da missão ontem à noite. William não ficou nadacontente.

— Mas Ross não estava aqui com ela? — Sharon hesitou.

— Acho que não. Parece que ele passou a noite ajudando Smithy a vedar o barco.Bem, vamos ao que interessa. Suponho que estejam todos com fome. Por favor,prepare o chá, enquanto eu preparo algo para comermos. Vai ser ótimo quandopudermos comer peixe fresco. Você dormiu bem? — Sorriu ao fazer a pergunta.

— Nada mal — admitiu Sharon.

— Você parecia bem confortável — provocou Susan.

Page 69: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 69

— Eu não percebi até que acordei — protestou Sharon.

— Você não está se apaixonando pelo Charlie, está?

— Não, eu garanto. Ele é muito simpático, mas... — Ela sacudiu a cabeçaenfaticamente.

— É uma pena — retrucou Susan mexendo a panela —, eu gostaria de vê-lo comuma garota simpática como você. É Alistair, aquele das cartas? Não estou meintrometendo, espero.

— Acho que chegamos a pensar em casamento, mas ele era mais sério do que euem relação a isso — suspirou.

— Se ele aparecesse de novo, você se casaria com ele?

Houve um silêncio enquanto Sharon pensava na resposta. Ouviram a porta dasala bater.

— Não daria certo. Somos muito diferentes.

— Quem foi que entrou? Pensei ter ouvido a porta. Bem, quer pedir a Ellen paraarrumar a mesa? Está quase pronto.

Sharon foi até a sala, um tanto relutante, mas, para seu alívio, não havia sinal deAriel. Charlie estava contando uma história para as crianças.

— Já está pronto? Estou morrendo de fome. — Ellen veio correndo.

— Assim que você puser a mesa. Onde está Ariel? — achou mais seguroperguntar a Ellen.

— Foi encontrar Ross. O barco já está chegando. Não deixou que fôssemos comela.

— Eles vêm para o lanche também? — perguntou Sharon, enquanto entregava asfacas e garfos para Ellen.

— Duvido, ela parecia furiosa com alguma coisa. Só porque Ross foi nossocorrer, tenho certeza.

Ouviu-se uma discussão; as vozes vinham do terraço, na frente da casa. Sharonescutou nitidamente Ariel falando:

— Mas é importante que nós voltemos, Ross. Meu pai quer discutir umas coisascom você e já perdemos muito tempo. Eu lhe disse ontem que eles estariam bem. Vocênão precisava ter ido. Lembre-se do que eu falei, os planos dela não têm nada a vercom o Cabo. Acho que ela deve ter brigado com esse Alistair e agora está arrependida.

Sharon não esperou a resposta de Ross. Passou por Ellen, que a olhou surpresa,e foi para seu quarto. Até agora tinha estado tão ocupada em se defender daimpaciência de Ross, que não pensara em analisar seus sentimentos em relação a ele.As mentiras de Ariel, no entanto, fizeram brotar um ciúme que ela ignorava possuir.

Page 70: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 70

CAPÍTULO IX

Sharon lembrou-se muitas vezes de sua reação infantil às tentativas de Arielpara criar discórdia entre ela e Ross. Levou algum tempo para compreender que umamulher segura do amor de Ross Clarke não precisaria recorrer a esse tipo de tática.Mas quando seu bom senso a fez chegar a essa conclusão, era tarde demais. O médicopassava cada vez menos tempo em Cabo Mercy. Suas funções como enfermeira seresumiam às visitas que fazia com Susan à vila esquimó e a algum caso eventual.

A neve desaparecera rapidamente e Sharon via flores crescendomilagrosamente aqui e ali, enquanto por toda parte se podia sentir o cheiro do musgo eda terra úmida. A maior parte do gelo no mar havia também derretido, embora àsvezes enormes blocos flutuantes passassem majestosamente pelo pequeno povoado,trazidos por alguma corrente.

Os esquimós estavam bastante ocupados com a caça às focas e quase nãovinham visitar o Cabo, a não ser para trocar as peles, no entreposto, por algumsuprimento do qual tivessem necessidade.

Sharon começou a se sentir impaciente. Não havia trabalho bastante paramantê-la ocupada. Já tinha feito a limpeza de toda a enfermaria, o inventário doestoque de medicamentos e uma lista de encomendas para o próximo ano. Continuava aajudar Susan em várias tarefas, sempre que necessário. Aprendia um pouco mais deesquimó e orientava as crianças na preparação dos exames finais. Porém, tudo issoainda lhe deixava muito tempo livre.

Havia aceito a falta de vida social durante o inverno como uma consequêncianatural do frio, mas constatou que a primavera não trouxera nenhuma mudança nessesentido. Charlie Gordon passava a maior parte do tempo visitando as várias vilas aolongo da costa. Tudo parecia estar sob sua jurisdição, desde o pagamento das pensõesgovernamentais às famílias, até resolver problemas de toda espécie. Já tinha seoferecido para ajudá-lo na contabilidade.

— Obrigado, Sharon, mas já me acostumei a fazer as coisas do meu modo. O queé que há, algum problema?

Muitas vezes eram as crianças que a tiravam de sua solidão.

— Vamos pegar azedinhas, Sharon. Venha junto! — chamaram-na, um dia.

— Azedinhas? O que é isso? — perguntou Sharon, surpresa. — Você vai ver, éuma delícia.

Andaram por um caminho estreito até chegarem a um canto coberto das frutasde caule cor-de-rosa. As crianças comiam quase tanto quanto colocavam nos saquinhos,

Page 71: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 71

que tinham trazido para encher. Sharon hesitou um pouquinho e depois experimentouuma. Tinha um gosto ácido e fresquinho, muito agradável, depois de toda a carne eenlatados que haviam comido durante o inverno.

— É bom, não é? Mamãe faz um suco delicioso de azedinha — disse Ellen. — Nóscultivamos isso em nosso jardim, mas é muito mais divertido colhê-las assim. Vamos,gente, ninguém mais come até que os saquinhos estejam cheios.

Sharon sentiu-se feliz por estar ao ar livre. Admirou a grama que crescia àsmargens dos riachos, as flores e o canto dos passarinhos misturando-se ao riso dascrianças. Contemplou o azul do mar, fazendo comparações deste com o azul mais clarodo céu. Nisso viu um ponto preto que se deslocava no espaço azul. Seria um enormepássaro? De repente, as crianças começaram a gritar de entusiasmo.

— É o Patinho Feio! Será que Ross trouxe a correspondência? Mamãe disse queele ia para Frobisher. Vamos voltar para casa! — disse Ellen, agitada.

Sharon estava inquieta e se sentia um tanto tola. Ela não tinha discutido comRoss, afinal. E como poderia discutir com um homem que jamais estava lá? Se ele tinhadado pela sua ausência naquele café da manhã, quando ela ficara no quarto, nuncaperguntara a ninguém a razão. Ela sabia que Ariel queria agarrar Ross, porém Susan jáa havia prevenido sobre isso! Lembrou-se do ciúme absurdo, doído, que a envolvera,naquela manhã. Mas fora uma emoção inútil, ela sabia, com a qual só conseguiramachucar a si própria.

O avião estava aterrando. Estavam ainda a alguma distância, quando viram Rossdescer e ajudar mais alguém a sair da cabina. Não parecia ser Ariel, era uma pessoabem mais alta. A curiosidade dos pequenos contagiou Sharon e todos apressaram opasso. Um visitante no Cabo! Será que as crianças tinham ficado tão agitadas quandoela estava sendo esperada?

Sharon seguiu um pouco atrás das crianças, um tanto tímida. Tentou adivinharas feições do recém-chegado. Seu cabelo era loiro e não preto como o de Ross. Eramais baixo que este. Talvez viesse do acampamento dos Rochelle. Percebeu então queo visitante vinha em direção a ela.

— Você o conhece, Sharon? — perguntou Ellen.

Sharon balançou a cabeça mas, antes que pudesse negar, seus lábios deixaramescapar sua surpresa: Alistair! Correu para ele, emocionada com a surpresa, sem seimportar com os outros.

— Você está ótima, Sharon — disse ele, depois de abraçá-la. — O norte lhe fezmuito bem.

Só então Sharon percebeu que as crianças estavam se afastando com Ross, nãosabia se por timidez ou educação,

— Já que você não encontrou tempo para responder às minhas cartas, acheimelhor vir saber o que estava acontecendo. — Acariciou seus cabelos, carinhoso. —

Page 72: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 72

Faço parte de uma equipe de pesquisa sobre o povo esquimó, você conhece esse tipo decoisa. O impacto da civilização sobre o esquimó, as consequências disso, etc. Euexamino os dentes deles e os faço dizer trinta e três e todo o resto da rotina. Não émeu tipo de trabalho, mas foi o único jeito que encontrei para poder ver você. — Eleapertou sua mão, olhando-a muito sério. — Imagino que tenha recebido minhas cartas.

— Aqui não há correio, você sabe — respondeu ela, aborrecida por se sentirculpada.

— Mas as cartas podem sair daqui, Sharon — replicou ele, cético.

— Não daqui, Alistair. Esta manhã mesmo, Susan estava pensando em pedir aRoss que fosse até Frobisher levar correspondência.

Mas Sharon não queria falar disso. Ela estava preocupada em resolver omistério da chegada repentina de Alistair.

— Ross sabia que você viria?

— É claro que não! — riu ele. — Eu estava na maior confusão, em Frobisher,tentando encontrar um meio de chegar até Cabo Mercy, quando alguém me disse queestavam esperando um homem que poderia me dar uma carona, e logo Ross entrou. Aprincípio, não pareceu muito contente com a idéia, só queria saber o que me tinhatrazido a esse fim de mundo. Engraçado, ele pareceu aliviado quando lhe contei quevim a serviço. Como é que vocês estão se dando?

— Relativamente bem, eu diria. Ele nem sempre está aqui. — Sharon fez forçapara ser natural.

— Imagine que eu vivia pensando em você correndo de um lado para outro deavião ou de trenó, socorrendo pessoas, você e Ross, juntos. — Ele estaria enciumado?

— Não é bem assim — Sharon sorriu. — Escute, Susan deve ter preparado chápara você. Venha.

Caminharam em direção à missão. Alistair observava tudo ao seu redor, comcuriosidade.

— É um lugar pequeno. Você deve se chatear de vez em quando.

— Há sempre alguma coisa para fazer, como visitas às vilas esquimós, caça ásfocas e muitas outras. É uma vida tão diferente! — Sharon sentiu necessidade dedefender seu novo lar.

— Você também está diferente, Sharon, mais quieta — observou ele.

Sharon permaneceu em silêncio, tentando lembrar como ela era no tempo do St.Mary. Tudo lhe parecia tão distante!

— Mamãe mandou avisar que o chá está pronto! — Ellen veio correndo aoencontro deles. — Você veio ver Sharon? — dirigiu-se a Alistair. — Espero que possaficar bastante tempo. É muito divertido aqui no verão e logo vai haver uma caça àbaleia.

Page 73: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 73

Sharon corou um pouco ao apresentar Ellen para Alistair e foi ainda mais difícilapresentá-lo para o resto dos Emerson. As crianças o rodearam com perguntas a queele ia respondendo alegre, de boa vontade.

Só então ela pôde olhar para Ross, junto de Susan, ouvindo-a, quieto.

— Você precisa trazê-la, Ross — disse Susan. — Oh, eu sei que houve váriosmal-entendidos entre nós, mas eu não sou de guardar ressentimento. Vá e traga Ariel.Tenho certeza de que ela virá. Diga-lhe que temos um visitante e ele é bonito!

Sharon notou o rápido olhar de Ross em direção a Susan, mas era óbvio que aobservação da mulher havia sido totalmente desprovida de malícia.

— Venha me ajudar, Sharon. — Susan virou-se para lhe dar as instruções. —Vamos ter uma festa. A chegada de seu amigo é uma boa desculpa. E Ross nos trouxecomida de fora. — Seu entusiasmo era o de uma menina.

Alistair continuava entretido com as crianças. Mesmo o senhor Emerson, quenormalmente já teria voltado para seu trabalho, continuava junto do recém-chegado.

— O que vamos ter de bom? — perguntou Sharon, seguindo Susan até a cozinha.

— Duas galinhas, ervilhas, batatas fritas, morangos congelados, um bolo e cremede leite fresco, imagine só. Vai dar um banquete, se vai! Gostaria de preparar asobremesa? Vou fazer o recheio para as galinhas. — falou animada, enquantodesembrulhava os pacotes. — E então, ficou contente em ver Alistair?

— Fiquei surpresa em vê-lo, é claro, e vai ser bom ter notícias do St. Mary,mas... — ela própria se surpreendeu com sua falta de entusiasmo.

— Ele parece ser louco por você!

— Ele era, pelo menos. Eu nunca levei o namoro muito a sério. — Sentiu-se meiomaldosa e tentou consertar sua observação: — Nós nos dávamos muito bem.

— E espero que continuem. — Susan riu. — Você está na idade de namorar! Émelhor deixar os morangos descongelarem um pouco mais. Você podia bater o creme,enquanto isso, não?

Ouviu-se um ronco vindo de fora.

— Deve ser Ross decolando. Foi buscar Ariel — observou Susan.

— Por que você convidou Ariel? — perguntou Sharon, desconfiada.

— Por várias razões. Primeiro, é um jeito de garantir que Ross venha à festa.Depois, Ariel pode gostar de conhecer alguém diferente. — Seu tom era inocente. —Ela é capaz de ser muito charmosa, quando quer. Sharon, talvez não acredite, mas atéque você entrasse em cena, Ariel era um doce de pessoa. Eu era velha demais e Ellenjovem demais para significar alguma competição e ela adora ser o centro das atenções.Seu maior problema é o mimo. Seu pai sempre a mimou. É engraçado — confirmouSusan —, todos pensavam que ele fosse se casar novamente, depois da morte da

Page 74: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 74

esposa, mas isso não aconteceu. É claro que um novo casamento colocaria Ariel outravez na terra, você não acha?

— É interessante, o que você está me contando explica as gentilezas dele,então.

— Não me diga que aquele homem aborreceu você!

— Não, não se preocupe. Ele só pecou por excesso de gentileza e, além do mais,eu não sabia que era viúvo. Pobre Ariel!

— Não desperdice sua piedade, Sharon — falou Susan secamente. — Aquelajovem é perfeitamente capaz de conseguir tudo o que deseja. — Apontou a tigela nasmãos da enfermeira. — O creme já está duro, a menos que você pretenda cobrir o bolocom manteiga!

— Espero que não tenha estragado tudo. — Sharon parou de bater,imediatamente. — Eu sou um desastre na cozinha.

Susan veio inspecionar o creme.

— Tudo bem. Uma pitada de açúcar e vai ficar ótimo. Corte metade dosmorangos e coloque como recheio no meio do bolo. O resto use para decorar acobertura. Não é aniversário de Alistair, por acaso?

Sharon balançou a cabeça e se virou para esconder a cor que lhe subira aorosto. Lembrou-se do aniversário de Ross. Quanta coisa acontecera nesse meio tempoe, por outro lado, quão pouco significara!

— Que cheiro bom! — Alistair falou da porta. — Posso ajudar em alguma coisa?Sou muito bom na cozinha. Nossa, e eu pensando que só se comia carne de foca poraqui! — comentou, examinando os preparativos da festa.

— Na verdade comemos muita carne de foca. Você deve agradecer a Ross pelacomida especial — informou Sharon.

— Bem, eu o ajudei a escolher. Disse-lhe que essa era sua comida preferida,Sharon.

Por alguma estranha razão, Sharon teve vontade de lhe bater. Ele conseguiramatar, assim de repente, metade de seu prazer.

— Pode pedir a Ellen para pôr a mesa, dr. Gaskell? — pediu Susan.

— Por favor, chame-me de Alistair. Sua filha já me chama assim.

— Realmente, nós somos bastante informais aqui, Alistair. Oh, ia meesquecendo, William já lhe mostrou onde lavar as mãos? — Ela se lembrou de seu papelde anfitriã, mostrando-se ansiosa.

— Não. Mas já me mostrou o livro que está escrevendo. É um trabalho e tanto!— disse o médico, rindo.

Page 75: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 75

— Ele gostou de você, então. Só espero que os esquimós dêem valor a essa obra.— Havia um leve traço de amargura em sua voz.

— Tenho certeza de que eles vão gostar muito do livro. Todas as histórias sobreseu povo, escritas em sua língua. Os esquimós mais jovens acabariam esquecendo essashistórias, se não estivessem registradas. — O tom de Alistair foi caloroso.

— Espero que você esteja certo. Esse trabalho consumiu o tempo de uma vida,você entende o que isso significa?

Depois que Alistair saiu da cozinha, Susan murmurou, parecendo falar para simesma:

— Espero realmente que ele esteja certo. Eu poderia suportar qualquer coisa,menos o fracasso dessa obra. William não aguentaria essa desilusão.

Sharon deu dois passos para trás e olhou o bolo pronto. Seu aroma já erasuficiente para lhe dar fome.

— Ficou lindo, querida! É melhor escondê-lo na despensa. Vamos ver o que faltaagora... As galinhas estão quase prontas. Talvez seja melhor servi-las frias, pois nãosabemos quando vão chegar os outros convidados. Vou refogar as ervilhas. — Olhoupensativa para Sharon. — As vezes eu me lembro de como era fácil na Inglaterraquando faltava alguma coisa: era só ir até a loja da esquina e comprar. Aqui pode levaraté um ano! — Virou-se para a porta. — Gostei de Alistair, Sharon. Ele me parecemuito simpático.

— Ele é, realmente, mas eu não estou apaixonada por ele. Susan fitou-a rápida eatentamente, porém não tocou mais no assunto.

— Vamos ver como Ellen está se saindo com a arrumação da mesa. Tomara queRoss e Ariel não demorem muito. As crianças ficam impertinentes com a espera.

Voltaram juntas para a sala e admiraram a mesa. Ellen fizera um bom trabalho.Organizaram então um jogo para os pequenos e ficaram conversando com Alistair.

— Até onde sua equipe pretende ir, Alistair? — quis saber Susan, interessada.

— Creio que vamos nos limitar à ilha Baffin nessa viagem. É um lugarsuficientemente isolado para podermos estudar o impacto da civilização, representadano caso por Frobisher, sobre um grupo pequeno de esquimós. Assim, podemoscomparar a vida dos que moram no acampamento do Governo com a dos que vivem emseus próprios povoados.

Sharon observou detidamente o rosto de Alistair. Ele não parecia aquelecirurgião despreocupado que conhecera no St. Mary.

— E como vocês pretendem trabalhar? As coisas aqui não são fáceis, você sabe— observou Sharon.

— Você fala como se estivesse no norte há anos! — riu ele. — Vamos usarbarcos, pegar caronas em aviões que venham para o Cabo ou vizinhanças, esse tipo de

Page 76: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 76

coisa. Pena que o verão chegou e não podemos andar de trenó. — Interrompeu-se,atento. — Não é o avião chegando? Escutem.

Saíram todos juntos para ver o Patinho Feio aterrissar. Sharon tentoureconhecer a primeira pessoa que desceu. Só poderia ser Ross. Pensou que em seguidaviria Ariel, mas viu espantada que era Marcel Rochelle quem o seguia.

— Gostaria de saber o que o trouxe aqui... — comentou Susan.

— Em geral, só nos dá a honra de uma visita quando há algum problema. Ele eWilliam discutem por horas e depois meu marido leva um tempo enorme para seacalmar — desabafou Susan, indo ao encontro dos convidados.

— Quem é essa Ariel que Susan mencionou? — Alistair perguntou semdemonstrar grande interesse. — Ross me falou alguma coisa sobre um acampamento demineração. É de lá que eles vêm?

Sharon lhe explicou e depois ficou imaginando por que não falara do interesseespecial de Ariel por Ross. Talvez porque tivesse suspeitado de algum motivo especialpor trás do convite de Susan e sua insistência para que Ariel viesse.

Olhou atenta para Ariel, enquanto Alistair era apresentado aos Rochelle. Comoprevira, a jovem saudou o recém-chegado com muito charme: Sharon não pôde deixarde imaginar, maldosamente, se ela se comportaria do mesmo modo na hipótese deAlistair ser um cientista feio de cabelos brancos.

Sharon não ficou sozinha por muito tempo. Marcel Rochelle ofereceu-lhe obraço no caminho de volta para a casa.

— Você nos assustou, Sharon. Fiquei mais tranquilo quando soube que não tinhase machucado — sussurrou em seu ouvido — Uma viagem dessas é um tanto arriscadapara uma recém-chegada bonita e com pouca experiência como você, minha querida.

— Eu não estava sozinha, senhor Rochelle. — Sharon precisou se controlar paraser educada.

— Por que não me chama de Marcel? Afinal, agora somos amigos. — Pressionoulevemente o braço da enfermeira. — Diga-me, esse jovem veio visitar você?

— Ele faz parte de uma equipe que está investigando os esquimós — respondeuSharon séria e vagamente.

— Ah... mais uma. É pena. Primeiro vêm os missionários e tentam convencer osesquimós de que eles têm alma, depois os cientistas chegam e lhes dizem que são umpovo muito especial. E qual é o resultado? Ficam todos inquietos, de cabeça virada.

— Mas eu pensei que o senhor encorajasse Itsawik a progredir! — argumentouSharon.

— Esse é outro caso, muito diferente, minha querida. E, você me fez lembrar,quero ter uma conversa com o sr. Emerson sobre Itsawik. Parece que vou estar bem

Page 77: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 77

ocupado, mas vou encontrar um tempinho para falar a sós com você. Há coisas queprecisamos discutir só nós dois, certo?

Sharon alegrou-se por conseguir escapar. Ela sabia que a missão era em grandeparte financiada pela generosidade de Marcel Rochelle, porém isso não a fazia gostardele. E depois do que Susan lhe contara, sentia-se cada vez menos à vontade em suacompanhia.

A festa de última hora foi um grande sucesso. O jantar constituía uma mudançamuito bem-vinda à dieta de inverno. A sobremesa de morangos desapareceu em poucosminutos. Porém foi o modo como as pessoas se agruparam que deixou Sharon surpresa.Ariel monopolizou Alistair, conduzindo-o para um canto da sala, e, a julgar pelaexpressão complacente nos olhos de Susan, era exatamente isso o que ela queria.

Para grande alívio da enfermeira, Marcel Rochelle a deixou em paz. Com efeito,ele pareceu ignorá-la durante o jantar e depois desapareceu com o pastor. Ross estavaocupado com as crianças e não lhe deu a menor atenção. Assim, inesperadamente,Sharon se sentiu deslocada. Ficou um tanto confusa por algum tempo e depois decidiulavar a louça. Quando estava já na metade, Ross apareceu na cozinha. Pegou um pano ecomeçou a enxugar os pratos.

— Estava imaginando onde se escondera, Sharon. Você não está muito sociávelesta noite. Algum problema?

— Nada especial, Ross — falou, continuando a esfregar o prato que tinha nasmãos, sem olhar para ele.

De repente, ele segurou seu rosto, forçando-a a olhar para ele.

— Não ficou aborrecida porque Ariel está monopolizando seu namorado, espero?

— Não. E ele não é meu namorado. — Ela se afastou nervosa e depoisacrescentou, mais calma: — Nós apenas trabalhamos juntos e isso é tudo!

Ross pegou outro prato, enxugando-o com cuidado.

— Vi Marcel conversando com você. Por acaso ele estava lhe contando os novosplanos?

— Não estava, não. E que planos são esses?

— Toda semana ele tem planos novos. Eu gostaria que ele me desse maisliberdade de ação. Sempre diz que quando as coisas melhorarem, eu terei maisautonomia. Mas parece que as coisas não estão jamais a seu contento. O Patinha Feio,por exemplo, precisa de reparos ou então ser aposentado, mas não tenho nada parasubstituí-lo.

Sharon estava quase segurando a respiração e notou surpresa que lavava omesmo prato há algum tempo, com medo de interromper as confidências de Ross.Aquela era a primeira vez que ele compartilhava suas preocupações com ela.

Page 78: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 78

— Bem, não posso culpá-lo — continuou Ross, pegando outro prato. — É muitodinheiro, eu reconheço. Mas, por outro lado, não sei o que o está detendo.

Sharon olhou para ele. Será que ele não sabia mesmo o que Marcel estavaesperando dele? Ou será que considerava as manobras de Ariel como mero capricho deuma garota mimada?

— Ah, então vocês estão aí! Mas não precisavam ter esse trabalho — Susandisse da porta da cozinha. — Que Deus os abençoe!

— Eu faço isso só para receber sua bênção, Susan — sorriu Ross

— O que será que o senhor Rochelle está querendo? — perguntou elasubitamente.

— Talvez seja mais fácil você me dizer o que está pensando. Eu a corrijo quandoestiver errada.

— Ele está discutindo com William no escritório, e quando eles levantam a voz, édifícil não escutar. Ele parece estar acusando William de ser ultrapassado e diz quedeveria fazer mais propaganda, se quiser ter algum sucesso com o livro. William deveter-se aborrecido, porque eu o vi falar exaltado que Deus não precisa de publicidade.— Susan respirou fundo. — Tem alguma coisa que eu não esteja sabendo, Ross?

— Deve ser o novo plano para a escola do Governo, semelhante ao que já foifeito em Mackenzie, onde as crianças esquimós passam parte do ano. Isso deu certo láporque os esquimós não estão tão espalhados como em Baffin. Pelo que entendi,querem que Frobisher seja o centro. Mudariam as famílias para lá. durante parte doano, alguns homens continuariam a trabalhar em Frobisher, e o resto, os bonscaçadores, passariam parte do tempo caçando nas antigas vilas e parte em Frobisher.

— Não iria dar certo — falou Susan bruscamente. — Os esquimós precisam desuas mulheres por perto para lidar com as peles e o serviço doméstico.

— Não sei... mas me parece que finalmente o governo canadense está encarandocom seriedade o problema dos esquimós, considerando-os como cidadãos, e vaiproporcionar-lhes educação, tratamento de saúde e uma série de outras coisas. —Observou a expressão de ansiedade no rosto de Susan e continuou: — Me perdoe pelodiscurso, mas isso está relacionado com a nossa questão: Marcel Rochelle. Ele estátentando convencer, o Governo de que o Cabo é o lugar ideal para a implantação dasescolas. Está mais próximo do ambiente natural dos esquimós.

— Você quer dizer que Cabo Mercy teria que crescer? — Susan pareciahorrorizada.

— Não muito — riu Ross. — Haveria uma escola esquimó e os professorespoderiam educar suas crianças também. Você não precisaria fazer a maior parte porcorrespondência. A enfermaria também seria ampliada. E haveria uma vila esquimó, nãotão elaborada quanto a de Frobisher.

Page 79: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 79

— Acredito que alguém vá instruir as focas a se mudarem para esta áreatambém para facilitar a caça, além das raposas e baleias. É tão fácil planejar as coisasno papel. Sharon, o que você acha de tudo isso?

— Mas o que os esquimós querem? — Sharon saiu de sua neutralidade.

— Você não sabe que eles são sempre os últimos a ser consultados? — zombouRoss. — O problema é que os esquimós que lideram um grupo de uma ou mais famíliassão escolhidos ao acaso e não de acordo com algum princípio. O que Marcel Rochellepretende é pegar gente como Itsawik e fazer deles líderes. Ele está esquecendo quenuma família o líder é o pai, até sua morte. Ele teria que encontrar mais órfãos comoItsawik. Pode funcionar, eu não sei... A única vantagem que consigo ver é que haveráfinanciamento para saúde e isso já é alguma coisa.

— Mas e a missão? — perguntou Susan, mais calma. — Se tudo vai mudar, elespodem querer alguém mais jovem do que William.

— Oh, seria injusto! Afinal, vocês deram dez anos de suas vidas para estamissão. — Sharon não se conteve.

— Não é tão simples assim. — Susan sorriu agradecida.

— Terminei os pratos — disse Ross, pendurando o pano. — Vamos provindeciaruma cama para Alistair, a menos que você esteja querendo que a festa dure a noitetoda, Susan.

Foi só então que Sharon se lembrou de Alistair, cheia de culpa. Afinal, ele tinhaviajado tudo aquilo só para vê-la. Porém, quando voltou para a sala, percebeu que elenão tinha tido oportunidade de sentir a falta dela. Ariel parecia animadíssima,enchendo-o de perguntas sobre Londres.

— Você está querendo que eu acredite que deixou tudo isso para trás e veiopara esse fim de mundo estudar esquimós? Não faz sentido! — Ela ainda não tinhanotado a presença de Sharon. — Ou quem sabe você veio atrás de uma certa jovem...

Alistair viu Sharon e se levantou.

— Onde você estava, Sharon? Tenho tanta coisa para lhe contar! Você nos dálicença, não? — disse, virando-se para Ariel.

Sharon percebeu o ar de aborrecimento no olhar de Ariel e, com Ross e Susanlogo atrás, ficou pouco à vontade.

— Pensei que já tinha me contado tudo nas cartas — murmurou, sem graça.

— Não foi bem isso que eu quis dizer — respondeu Alistair rindo. — Venha,sente-se aqui.

Susan foi levar as crianças para a cama e Ross ficou ali, com um sorrisoestranho nos lábios, enquanto Sharon pensava em fazer alguma coisa para quebraraquele mal-estar. Poucas vezes em sua vida ela se sentira tão constrangida. Para seu

Page 80: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 80

alívio, o senhor Emerson saiu de seu escritório naquele momento, seguido de seuconvidado, tornando impossível qualquer conversa mais íntima.

— Ross, eu odeio ter de estragar esta festa tão agradável, mas você poderianos levar de volta para o acampamento? Vamos testar a nova perfuradora e eu deveriaestar presente. — Havia um certo grau de arrogância em sua voz, sugerindo que nãoadmitiria uma resposta negativa. Voltou-se para seu anfitrião: — Eu reconheço que nãoconcordamos sobre algumas coisas, Reverendo, mas pense melhor em minhassugestões. As coisas vão ficar mais fáceis, se puder contar com esse dinheiro extra.Posso falar então com aquele editor amigo meu? Ele tem um esquema de publicidademuito bom.

— Se prefere assim, mas eu preciso de algum tempo para pensar. — WilliamEmerson suspirou. — Ainda não vejo benefício em mudar o Cabo, mas se isso é o que oGoverno quer...

— Vou só mostrar onde Alistair vai dormir e aí estou livre — interrompeu Ross.Dirigiu-se para a porta e, depois de um momento de hesitação, Alistair o seguiu.

— Boa-noite para todos. Até amanhã, Sharon — disse ele.

— Volte mais tarde, se quiser — disse Susan. Houve uma explosão de risos pelasala. — Não esqueça que aqui não há noite!

— Obrigado, mas acho que vou descansar um pouco. Além do mais, ainda não meacostumei com os horários daqui.

Ariel tinha saído da sala e Marcel Rochelle se aproveitou disso para falar comSharon.

— Divertiu-se bastante? Sinto muito, eu acabei passando o tempo todo com oReverendo. Eu pretendia falar com você, coisa rápida. — Olhou para ela com os olhosradiantes e maliciosos. — Nós precisamos nos encontrar, você e eu. Eu posso tornar avida de uma garota bonita como você bem mais fácil. Por que você não tem ido nosvisitar?

— Eu tenho um emprego aqui — observou Sharon.

— Então vamos pedir a seu patrão para lhe dar algum tempo livre. Você não deveestar tão ocupada assim. Além disso, me parece um desperdício uma profissional comovocê num lugar pequeno como este. Posso lhe arranjar um bom emprego em Montreal etalvez até pudéssemos jantar juntos ou ir a uma boate, o que acha? Montreal é umabela cidade.

— É muita bondade sua, senhor Rochelle, mas estou feliz em meu emprego —respondeu Sharon com firmeza.

— Não precisa ser tão formal, Sharon. — Ele apoiou o braço nos ombros dela. —Me chame de Marcel e, sabe de uma coisa? Eu poderia ficar caidinho por você se medesse alguma esperança. — De repente agarrou-a pela cintura...

Page 81: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 81

Foi então que Sharon reparou que Ariel e Ross estavam de volta na sala. Agarota estava olhando para ela chocada, enquanto Ross a observava com desprezo. Elanão teve a presença de espírito de se afastar de Marcel Rochelle e disfarçar asituação com alguma brincadeira. Sentiu-se presa numa armadilha.

Susan entrou na sala e, por um momento, observou a cena, mudandobruscamente a expressão de ternura que trazia nos olhos para uma severidade queassustou Sharon.

— Sharon, venha comigo um minuto. Preciso falar com você.

A enfermeira a seguiu humilde como uma criança à espera do castigo. Estavaconfusa demais para conseguir raciocinar.

CAPÍTULO X

Ao ver a expressão de Sharon, Susan mostrou-se mais compreensiva.

— Ninguém lhe ensinou a manter um homem desses a uma distância segura?

— Sinto muito. Eu não sabia o que dizer sem ser rude e agora estão todos comraiva de mim, eu sei. — Sentia-se uma tola, lutando contra as lágrimas que lhe vinhamaos olhos.

— Eu não estou brava, só que é horrível ver você nas mãos daquele homemdesprezível. Talvez Ross esteja certo. Cabo Mercy está ficando um lugar estagnado,atrasado. — suspirou Susan. — E não fique aborrecida com Ariel, pois não é nadaagradável encontrar seu próprio pai numa situação daquelas. E, quanto a Ross, ele seconsidera de certa forma responsável por você.

— Ross, responsável por mim? — perguntou Sharon. descrente. — A maior partedo tempo ele parece esquecer que eu existo!

— Duvido que esqueça por muito tempo — comentou Susan, secamente. — Bem,é melhor irmos acompanhar nossos convidados até a porta.

Felizmente, as despedidas foram rápidas, porque os Rochelle tinham pressa empartir. Ross praticamente a ignorou, o que a deixou mais à vontade.

Alistair apareceu mais tarde, quando Susan preparava um chá.

— Me senti como uma criança tendo que ir para cama com a luz do dia. Imaginoque já tenha se acostumado com isso.

— De certa forma sim — disse ela, separando as canecas —, mas só vou para acama quando me sinto cansada e não porque o relógio diz que é hora. E quando temosvisitantes, durmo ainda menos. Há tanta coisa para conversar quando vem alguém de

Page 82: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 82

fora, que não gosto de desperdiçar tempo dormindo, é melhor deixar para dormir noinverno, quando não há sol. Qual é seu programa para amanhã, Alistair, ou já tem quevoltar para Frobisher?

— Bem, eu não preciso voltar imediatamente. — Olhou na direção de Sharon. —Posso fazer algumas pesquisas na vila esquimó aqui pertinho. E, pelo que compreendi,há um outro povoado não muito distante. Depois disso, acredito que nossa equipedeseje voar para o estreito ao norte por alguns dias. Temos um programa bem flexívele gostaríamos de poder observar alguns costumes esquimós, como a caça às baleias,por exemplo. Um deles é louco por fotografia e quer bater muitas fotos. — Ele aceitoua xícara que Susan ofereceu-lhe.

— As crianças têm algum tempo livre entre as lições?

— Ah, estou vendo que tentaram convencer você também. É assim com todos osvisitantes — riu ela, divertida. — Tentando conseguir mais um dia de folga! Mas o quevocê tem em mente?

— Nada definido ainda, mas talvez pudéssemos organizar alguns piqueniques,com sua permissão, é claro. Suponho que você não se oponha se eu levar Sharon comominha assistente, de vez em quando.

Susan pareceu estudar a expressão de Alistair, porém ele parecia tãodisplicente quanto sua pergunta.

— Você terá que perguntar a Ross. Ele é o patrão, oficialmente.

— Sharon, quer que eu lhe peça, ou é melhor que você o faça? — Ele se viroupara ela.

— Talvez seja melhor você pedir — respondeu Sharon, sentindo-se um tantocovarde.

As semanas que se seguiram passaram rapidamente. Alistair não demonstroupressa em realizar suas pesquisas médicas fora do Cabo. Às vezes algum colega seuaparecia lá por um ou dois dias e a conversa era uma mistura de antropologia, medicinae psiquiatria, por horas seguidas. Sharon se via forçada a ajudar nos longos examesmédicos e, se por um lado Ross parecia lhe dar mais atenção, só exigia sua ajudaquando necessário.

Houve uma viagem ao povoado esquimó, onde todos acabaram participando daemoção de uma caçada às baieias.

— Baleias! Corram, muitas baleias! — gritou o menino esquimó.

Em um segundo, a vila transbordou de vida. Homens correndo de um lado paraoutro, em busca de seus arpões, carregando rifles, enquanto as mulheres preparavampanelas e punham as chaleiras no fogo. Sharon olhou para onde as crianças apontavame viu o grupo de baleias, a cerca de um quilómetro e meio da praia. Imediatamente, os

Page 83: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 83

caçadores puseram os caíques ao mar e saíram, numa linha diagonal, a fim de levar asbaleias para as águas mais rasas de um estreito próximo à vila.

Todos observavam a cena silenciosamente. Será que eles conseguiriam atrair asbaleias para o estreito? Se elas sentissem a ameaça, certamente voltariam para maraberto.

— Elas são sensíveis a qualquer som, que são capazes de mergulhar para asprofundezas ao escutar uma gota d'água cair na borda de um caíque, mas sua visão ébastante deficiente — alguém informou Sharon.

— Olhe, aquele homem conseguiu atingir uma com o arpão. Agora a baleia sobepara a superfície e ele pode atirar — observou Alistair, apontando o caçador.

Quando finalmente trouxeram a caça para a praia e cortaram a carne do animalem pedaços transportáveis, Sharon não tinha tanta certeza de que iria gostar decomer aquilo. No entanto, à sua volta, os esquimós cortavam lascas de carne com asfacas que traziam na cintura e as comiam cruas.

— Quer experimentar, Sharon? — Ellen ofereceu-lhe um pedacinho. — É umadelícia.

Sharon pegou o pedaço um tanto desconfiada. Era muito melhor do que elaimaginara. Comeu avidamente.

— Nós ainda vamos fazer de você uma esquimó — disse alguém atrás dela.

Sharon virou depressa. Ela não sabia que Ross estava lá observando a caçatambém.

— Algum caso médico? — perguntou, ansiosa.

— Desta vez não. Será que um médico não pode tirar um dia de folga, sem quesuspeitem que veio visitar um paciente? — Sorriu ele.

— É só que... — Sorriu Sharon, hesitante.

— Eu nunca participo dessas coisas. É isso que queria dizer? — Seu tom eragentil, mas provocativo. Apontou para Alistair, que estava ajudando os caçadores. —Ele parece estar aproveitando bastante o norte.

Sharon observou Ross, tentando imaginar o que ele queria dizer com aquilo, masacalmou-se pensando que o comentário não era dirigido à ela por algum motivo especial.

— É tão diferente do St. Mary aqui... — comentou.

— Você sente falta de lá?

— Nem por um minuto — respondeu ela balançando a cabeça. — Mas às vezes mesinto culpada por não estar tão ocupada.

— Você vai estar, se os planos do governo derem certo e Marcel conseguirestendê-los até o Cabo. — riu Ross.

Page 84: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 84

Sharon arrepiou-se com a simples menção daquele nome, porém Ross nãoreparou. Talvez ela fosse a única pessoa a lembrar aquele momento desastroso.

— Quanto tempo vai levar para as obras?

— Você parece estar com pressa! Talvez no ano que vem, com um pouco de sortee se quiser ficar no norte, vai poder acompanhar as obras. Você pensa em ficar,Sharon, ou seu amigo Alistair a fez mudar de idéia?

Ross olhava-a como jamais a olhara, fazendo-a se sentir inesperadamentetímida.

— Alistair não tem nada com isso — conseguiu ela dizer finalmente.

— Se ele não tem, então quem tem? Marcel não anda pondo nenhuma idéia emsua cabecinha, espero?

— Eu não o vejo desde aquele dia — respondeu ela, exaltada.

— Pare de resistir — falou ele calmamente. — Eu só estou tentando descobrirse seu coração tem dono.

— O que você quer saber? — perguntou, confusa.

Ele olhou a cena ao seu redor antes de responder. Outra baleia tinha sido mortae todos estavam esperando que fosse puxada para a praia, longe deles.

— Sharon... — Ele a puxou para seus braços e lhe deu um longo beijo apaixonado.Finalmente a soltou, olhando-a nos olhos por algum tempo. — E então? — perguntou emtom inquisitivo.

— Eu não sei o que dizer — falou ela, tremendo.

— Não se preocupe. Vamos nos acostumar com a idéia, você vai ver. — Ele lheacariciou os cabelos.

— E os planos do governo, o que você estava dizendo? — Sharon fez umatentativa de trazer as coisas de volta à antiga realidade. — Ela não sentira amor nobeijo de Ross, apenas desafio!

— É quase certo que Cabo Mercy seja considerado como um ponto estratégico— respondeu ele, rindo. — Eles argumentam que, no caso de uma guerra com a Rússia,a população teria que sair de Frobisher, de qualquer maneira. Então talvez, seja maisfácil já fazer tudo no Cabo. Além do mais, nós não podemos ser considerados um alvosignificativo, do ponto de vista militar. — Olhou para ela novamente. — Mas eu não vimaté aqui para falar sobre isso. Eu quero saber se você pretende ficar no norte. —Alguma coisa no tom de sua voz sugeria que ele estava esperando ansiosamente pelaresposta dela.

Sharon estava ainda confusa. Será que ele a beijara porque era a única mulherpor perto? Para provocá-la? Para ver sua reação?

— Você quer que eu fique, Ross? — perguntou, enchendo-se de coragem.

Page 85: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 85

Ross respirou fundo.

— Eu teria lhe perguntado, se não quisesse? Não é suficiente que eu lhe digaque as coisas mudaram muito em minha vida, desde que nos encontramos naquele aviãona Groenlândia? Ah, eu sei que fingi não gostar de você, tentei fazê-la se sentir inútil.Talvez estivesse com medo de mudar minha vida. Sinceramente, tinha esperança deque você voltasse para a Inglaterra antes que fosse tarde demais. Sharon, estouapaixonado por você. Quero que se case comigo. — As últimas palavras soaram numtom humilde que ela jamais tinha ouvido nele.

— Mas, Ross... — ela não sabia o que dizer.

— Por favor, querida, não me venha com "poréns" — ele não a deixou terminar,tomando as mãos dela entre as suas.

— Eu estava tentando dizer que não nos conhecemos muito bem ainda — sorriu,tímida.

— Não nos conhecemos! Mas eu tenho você na minha cabeça desde que chegou— exclamou ele, olhando desconfiado para ela. — Eu não sou do tipo de fazer discursosbonitos, Sharon.

— Não é isso, Ross. É que tudo aconteceu tão de repente, que eu não sei mais oque pensar.

— Posso lhe dizer... com beijos? — Ele a tomou nos braços, beijando-a aindamais apaixonado.

Tremendo e com o coração descompassado, ela acariciou o rosto dele.

— Ross, será que isso está mesmo acontecendo? Eu nunca sonhei... — parou ela,sem poder continuar.

— Você nunca disse que sim — ele beijou a mão que o tinha acariciado e ficouquieto por um momento.

— Disse o quê, Ross? — ela o provocou.

— Que me ama. Diga que você me ama, Sharon — implorou Ross.

— Ross, por favor, não me apresse. — Sharon parecia confusa. — Eu desejovocê, é verdade, mas amor é algo que vem com o tempo...

— Não leve tudo tão a sério, querida — disse ele, rindo. — O amor também éuma coisa alegre e divertida. Se eu prometer que não vou mais interferir, você pensano que eu acabo de confessar-lhe? Você não se opôs aos meus beijos! E na primeiravez, foi você que me beijou!

— Isso não é justo! — protestou ela, ainda mais vermelha. — Não me deixe semjeito...

— Está bem, venha, é melhor nos juntarmos ao resto do pessoal antes que dêempela nossa falta. Acho que os esquimós já mataram bastante baleia, por hoje. — Olhou

Page 86: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 86

para Sharon, que caminhava a seu lado. — Talvez seja melhor não contar isso àninguém até que você se decida.

Sharon olhou-o, confusa. Parecia absurdo lhe dizer que parte de sua confusãovinha do que Susan contara-lhe sobre ele: que Ross não era de se casar.

Ao se aproximarem, Sharon reparou que Ariel conversava animada com Alistair.Se notou que Sharon estava com Ross, ao menos não demonstrou.

— Vejo você mais tarde. — Ele a tocou no braço. — Quero ter uma palavrinhacom Itsawik.

Sharon então observou Itsawik, um pouco longe do resto, e algo estranho naatitude do rapaz chamou-lhe a atenção. Só então ela se deu conta de que ele estavaolhando tão atentamente para Ariel, que nem notou a aproximação de Ross.Compreendeu que o esquimó estava provavelmente com ciúme de Ariel, vendo todos lhedarem atenção. Sharon suspirou. Será que Ariel sabia disso e estava brincando comfogo? Sharon recordou o momento em que ele decidira não seguir para Cabo Mercy,completamente fora de si, querendo ir para junto de Ariel.

— Divertiu-se bastante, Sharon? — Susan aproximou-se. — Charlie vemtrazendo o barco.

— Ele já está de volta? — Parecia ter passado bastante tempo desde queMountie os deixara, para sair em suas visitas às vilas vizinhas ao Cabo Mercy.

— Ellen, leve as crianças para o barco — mandou Susan. — Eu vi você e Ross —disse bruscamente. — Lembre-se do que eu disse, Sharon. Charlie está esperando. Émelhor irmos.

Sharon seguiu-a, sentindo-se miserável, sem entender por quê. Não havia sinalde Ariel ou Alistair. Pelo menos não estavam com os esquimós.

— Olá, Sharon. Que tal, divertiu-se muito? — Charlie a ajudou a subir no barco.— O verão é a melhor época do ano, aqui, no norte.

A enfermeira corou, pensando em seu interlúdio com Ross. Quando o barcopartiu, Charlie entregou a direção a um esquimó e veio sentar-se ao lado dela.

— Ouvi dizer que seu namorado chegou da Inglaterra. Você deve estar contente— começou a conversar.

— Ele não é meu namorado e, além disso, parece que Ariel está tomando contadele direitinho! — comentou ela.

— Você não está com ciúmes, está? — Sorriu ele.

— Não, nem um pouco. Só estou cansada da forma como as pessoas gostam deescolher os pares para os outros.

— Isso vem desde o tempo da arca de Noé. — Riu Mountie.

— Você não tem namorada? — Perguntou Sharon casualmente.

Page 87: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 87

— Pensei que pudesse ter, mas parece que ela tem outras idéias. Não é mesmo,Sharon?

Sharon calou-se, surpresa, e depois disse carinhosamente:

— Sinto muito, Charlie. Eu não podia imaginar...

— Esqueça, Sharon. É que você disse que Alistair não era ninguém especial, masquem sabe existe um outro.

Sharon hesitou. Ainda não estava bem certa do que sentia por Ross, porémsabia ao menos que não havia mais ninguém em seu coração.

— Tudo bem, Sharon, você não precisa me dizer o nome dele. — Deu umarisadinha e levantou-se para supervisionar a chegada.

Sharon seguiu Susan e as crianças até a missão, porém, antes de entrar emcasa, mudou de idéia.

— Eu já vou — disse de repente.

— Não atrase, Sharon. Vamos fazer uma festinha para comemorar a chegada doCharlie.

Sharon sorriu. Já estava acostumada com o fato de que qualquer acontecimentoera desculpa para uma festa no norte. Uma chegada ou partida ou apenas um capricho:tudo era pretexto.

Sharon havia se mudado para a enfermaria há algum tempo, pois não lhe pareciajusto tirar as crianças de seu quarto indefinidamente. No entanto, continuava a fazeras refeições com os Emerson, a não ser quando tinha um caso urgente. Seu quartonovo dava-lhe uma sensação de privacidade que ela apreciava. Especialmente agora,precisava estar um pouco sozinha para refletir.

Na paz de seu quarto, Sharon pôde admitir o que já sabia há algum tempo: queRoss era o único homem capaz de mexer com sua cabeça e seu coração. Ele conseguiacriar nela a fúria... e o êxtase. Mas isso era amor? Ross tinha dito que a amava, que seapaixonara por ela desde o primeiro momento, mas seria possível? Afinal ele a trataracom tanto desprezo no começo! Ou será que ele só se dera conta de seu amor maistarde? Talvez ele tivesse brigado com Ariel e tentasse aproximar-se dela para fazerciúme, ou algo assim, Sharon sentia-se perdida. Então pensou nos beijos dele. Aquilotinha sido realidade.

Os dias quentes de verão chegaram, até que a escuridão das noitestransformou-se num mistério esquecido. O sol aproximava-se da linha do horizontemas não chegava a desaparecer. A neve e o gelo que antes cobriam tudo haviamderretido, só restando cobertos os picos das montanhas para lembrá-los de que CaboMercy estava acima do Circulo Ártico.

Page 88: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 88

Alistair passava cada vez menos tempo na missão e Sharon sabia que nem todasas suas viagens eram feitas para Frobisher ou às vilas esquimós. Via Rossfrequentemente, mas nunca sozinha. Somente o olhar dele a fazia lembrar aqueleencontro. Várias vezes ela ficou imaginando se ele não teria mudado de idéia ou seestava apenas dando mais tempo para que pudessem se conhecer melhor. Estranha-mente, ela não se sentia infeliz nem ansiosa. Estava em paz.

Só quando Susan veio falar-lhe, um dia, com um ar muito preocupado, é queSharon tomou conhecimento de que havia problemas fora de seu pequeno mundoparticular.

— Estou preocupada com Itsawik — disse a mulher, subitamente. — Ele fica odia todo sentado, sonhando, não sai com os outros esquimós para pescar nem caçar. —O tom maternal continha amargura.

— Acho que ele está infeliz por causa de Ariel — Sharon sugeriu, hesitante.

— Eu sabia que não ia dar certo aquilo — comentou Susan, pensativa. — Pareceque ela não consegue deixar os homens em paz, nem mesmo os esquimós. — Olhou paraSharon com dúvida nos olhos. — Imagino que você saiba nessas alturas que Alistairpassa a maior parte do tempo no acampamento Rochelle. Estava em dúvida se deveriaou não lhe contar isso.

— Eu já imaginava — disse Sharon, sorrindo. — Alistair tem idade para tomarconta de si mesmo, mas espero que ela não esteja só brincando. Gosto dele e não querovê-lo machucado. — Olhou pela janela e viu Itsawik sentado numa rocha olhando para omar. — Você não pode lhe dar algum trabalho para distraí-lo?

— Não há muito o que fazer no momento. Eu pensei que Ross o levaria juntonuma de suas viagens, mas talvez ele esteja muito ocupado, organizando o novoesquema.

— É coisa definitiva, então?

— Pensei que Ross tivesse lhe dito! Realmente, o senhor Rochelle conseguiu queo governo se decidisse a nosso favor. Acho que é bom. Isso significa que a missão nãoestá em perigo.

— Mas você não parece muito entusiasmada, Susan — acusou Sharon, brincando.

— E não estou. Na realidade, estava torcendo para que não se decidissem porCabo Mercy, não havendo mais necessidade para a missão. Assim nós poderíamosvoltar para a Inglaterra — parecia meio envergonhada por confessar aquilo. Olhou àsua volta para se certificar de que ninguém a escutava. — Não é tanto por mim, é maispensando nas crianças que eu digo isso. Quanto mais tempo passarem no norte, menoschance terão de sair daqui.

Permaneceu em silêncio alguns segundos, suspirou e depois continuou:

— Viver no norte é como viver num mundo de sonhos. O resto da terra ficaesquecida, exceto quando se recebe uma carta de fora. E você estranha quando volta

Page 89: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 89

para as grandes cidades. Você perdeu contato com o que as pessoas chamam derealidade. Eu fico pensando se é justo fazer Ellen e os outros passarem por issotambém. Eles merecem a oportunidade de viver lá fora. Parece que o livro do Williamvai fazer sucesso, muito mais do que ele jamais sonhou. Estão até falando em traduzi-lo para o inglês e outras línguas, além do original em esquimó. Assim vai haver dinheiropara mandar as crianças estudarem fora. É engraçado como quando os sonhos da gentefinalmente se realizam, já perdemos o entusiasmo. Ou quem sabe estou ficando velha.— Suspirou novamente. — E você, minha querida? Não esqueça, se ficar aqui por muitotempo, não vai mais querer sair!

— Não estou com pressa. Seria tolice desistir do emprego agora. Além do mais,eu gosto daqui. A menos que vocês estejam querendo se livrar de mim... — sorriu,defensiva.

— Ora, mas que grande besteira você está dizendo — Susan acariciou-lhe orosto. — As coisas mudaram tanto depois que você chegou, querida! Eu me sinto tãomais feliz! É que você tem se mostrado meio triste.

— Talvez, de vez em quando. É que esperar... — interrompeu-se bruscamente,certa de que se falasse alguma coisa estaria traindo não apenas sua incerteza, mastalvez a de Ross também.

— Venha, vamos tomar um chá — sugeriu Susan.

Sharon pensou na conversa com Susan quando foi chamada para a emergência.Estava praticamente sozinha na missão. Os Emerson tinham ido visitar uns amigos,aproveitando a carona de um avião que passara por lá. Charlie Gordon fora socorrer umbando de caribus, presos numa avalanche. Fora Smithy, do armazém, só havia algunsesquimós. Há dias que não via Ross. Como não tinha nenhum paciente na enfermaria, elaadquirira o hábito de escutar rádio no armazém, à noite.

Estavam todos reunidos, escutando as mensagens que os outros entrepostosemitiam, quando houve uma interrupção inesperada.

— Rochelle chamando, Rochelle chamando. Mensagem urgente, repito, mensagemurgente. Chamando Cabo Mercy. Cabo Mercy, por favor, responda.

Houve um momento de tensão e Smithy pegou o microfone:

— Aqui Cabo Mercy. Responda, Rochelle.

Todos se debruçaram perto do rádio, para ouvir a mensagem.

— Rochelle chamando. Ariel está aí? Repito, Ariel está aí? Smithy olhou emredor para se assegurar de que Ariel não estava entre eles. Todos se entreolharam,ansiosos.

— Ariel não está aqui. Resposta negativa — transmitiu ele. — Há quanto tempoela saiu? Repito, quanto tempo?

Page 90: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 90

Houve um minuto de silêncio antes da resposta e Sharon percebeu que Itsawikaproximou-se do rádio, na frente de todos.

— Há nove horas, de barco com mecânico esquimó. Ross Clarke está com vocês?Repito, Ross Clarke está aí?

— Ross Clarke não está. Não há ninguém aqui.

De repente outra voz entrou no ar, interrompendo a mensagem.

— Aqui Ross Clarke. Ross Clarke chamando. Indo para Cabo Mercy reabastecer.Reabastecer em Cabo Mercy.

Houve novamente silêncio e uma voz tímida informou que continuaria atransmitir as mensagens normais. Sharon olhou ao seu redor, procurando Itsawik,porém ele tinha desaparecido. Era ele quem lidava com o Patinho Feio normalmente.Após alguns minutos, Smithy recuperou o controle, organizando um grupo de esquimóspara levar os galões de gasolina para o campo de aterrissagem.

— Itsawik levar caíque — um dos esquimós veio lhes contar.

— Que loucura! O avião percorre a área numa fração do tempo que ele vai levar.Aí vem ele. Prepare a maleta de medicamentos. Talvez Ross precise de você.

Ross chegou impaciente, dando as ordens sem admitir sugestões.

— Você fica aqui, Sharon, organizando as coisas. E os Emerson tinham que estarfora justo hoje!

— Ross, se eu for junto posso ajudar a procurar. Você não pode pilotar o avião eolhar para os dois lados ao mesmo tempo. E pode precisar de mim na viagem de volta,se eles estiverem feridos.

Sharon esforçou-se por parecer imparcial. Por que Ross estaria tão perturbadose não gostasse mais de Ariel?

— Venha, se quiser, mas nada de conversa.

Ross apressou-se em direção ao avião e ela o seguiu correndo. Talvez por isso éque ele estivesse passando tanto tempo fora. Estava com ciúme das atenções deAlistair com Ariel. Não tinha nada com Sharon, não estava esperando que ela sedecidisse como a tinha feito acreditar. Não estava mais interessado em saber se ela oamava.

Num silêncio irritante, Ross acomodou Sharon no avião.

— Boa sorte! — gritou Smithy, quando o avião pegou. Vasculharam monotamentetoda a área, procurando pelo barco.

— Talvez o barco tenha ido para o mar aberto — disse Ross, mudando a direçãodo avião. — Vamos tomar um café? Deve ter um pouco na garrafa.

Sharon ficou contente em fazer alguma coisa para se distrair. Qualquer coisaera melhor que os pensamentos que a perseguiam.

Page 91: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 91

— Deus a abençoe, Sharon. Obrigado por ter vindo. Desculpe por ter sido rude,mas o desaparecimento dessa garota estragou todos os meus planos. Tenho tanto paralhe dizer!

Sharon quase deixou cair sua caneca, porém antes que pudesse dizer algumacoisa Ross devolveu a sua e falou apressado:

— Estou vendo alguma coisa perto daquela rocha. Vou descer um pouco paraolhar de perto.

Sharon tomou seu café de um gole só. Havia um grupo de rochas perto de umpenhasco e logo percebeu que alguém estava acenando.

— Vou aterrissar naquela rocha maior. Não há perigo. Segure-se firme.

O Patinho Feio sacudiu violentamente ao tocar a rocha, mas logo Ross estavadesligando o motor. Sharon levantou de seu assento para enxergar melhor. Era mesmoAriel ao lado de um barco virado, Mas não havia ninguém com ela. Foi então que Sharonnotou que havia também um caíque perto dela. Então Itsawik tinha chegado até lá,afinal. Mas onde estaria ele?

— Fique aqui, Sharon, até que eu veja como estão as coisas — disse Ross, aodescer do avião.

Sharon ficou observando, ansiosa, enquanto Ross tentava se aproximar de Ariel,passando cuidadosamente de uma rocha a outra. Pareceu-lhe um longo tempo até queele voltou, com um ar desesperado e cansado.

— Itsawik está morto — disse sem rodeios — Parece que ele escorregou aotentar socorrer Ariel e bateu a cabeça. Dei um sedativo a ela. A coitada estava emestado de choque.

Mesmo em meio a seu sofrimento, Sharon notou que seu tom era paternal. Seráque ela estava errada? Porém Ross não lhe deu muito tempo para refletir.

— Quero que você venha até a praia. Levei Ariel para lá. Não podemos levarItsawik conosco. Vamos tentar fazer-lhe um túmulo, pobre garoto. Os pássaros, sabecomo é...

Houve um certo ritual na construção do túmulo, feito de pedras. O jovemesquimó parecia estar em paz agora, não havia mais sofrimento em seu rosto e oferimento horrível que tinha na parte de trás da cabeça estava escondido. Cobriram ocorpo e Ross disse algumas palavras pelo morto.

— Susan vai ficar mais tranquila assim — comentou baixinho, meio embaraçado.— Vamos voltar para o avião no caíque. Ariel precisa descansar.

Sharon olhou para a figura triste de Ariel, sentada em um canto, balançando-separa a frente e para trás, sem saber onde estava realmente.

— Ela vai ficar boa? — sussurrou Sharon.

Page 92: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 92

— É mais o choque. Já é tempo de ela sair desse ambiente selvagem e ir morarna cidade. Ela não é uma menina forte, não é como você. — Ross abraçou-a numacarícia rápida.

Ross foi gentil ao acomodar Ariel no avião, enrolando-a num cobertor. Ela viajouatrás, dormindo um sono agitado.

— É melhor avisar o resto do pessoal — disse ele, ligando o rádio.

— O que aconteceu ao mecânico? — Sharon lembrou-se.

— Ele encontrou um grupo de esquimós amigos e Ariel fez a estupidez de deixá-lo ir com eles. Quando o motor enguiçou, ela ficou horas à deriva, até que umamudança de corrente levou-a até a rocha, perto da praia. Foi lá que o pobre Itsawikencontrou-a.

— Patinho Feio chamando Cabo Mercy — falou ele pelo microfone. — ChamandoRochelle, Ariel salva. Repito, Ariel salva. — Desligou a chave de transmissão. — Temostempo para dar a notícia sobre Itsawik. Com Charlie fora, não há muito a fazer. E foiobviamente um acidente.

A chegada ao Cabo foi um tanto triste. Alistair estava lá esperando por Ariel,não querendo se afastar dela nem mesmo enquanto era tratada na enfermaria.

— Tem certeza de que ela está bem, Ross? — disse ele aflito. — Não gosto dojeito como ela olha... esse olhar distante.

— Eu lhe dei um sedativo, é por isso. Acho que agora teremos que cuidar depapai Rochelle — comentou Ross secamente.

Sharon olhou ao seu redor, no quarto pequeno, distraída, gozando as lembrançasda conversa que tivera com Ross há poucos minutos.

Na sala ao lado, Ariel ainda dormia sob os efeitos dos calmantes, enquantoAlistair olhava-a impaciente e de modo bastante apaixonado. Mas Sharon não estavase importando com o que acontecia. No momento, todo o seu ser estava voltando paraas palavras que Ross lhe dissera. O importante agora para ela era Ross! Alistair eAriel eram pessoas sem nenhum significado em sua vida. Ross, apenas Ross eraimportante... Apenas Ross!

Depois de tanta emoção, após o enterro de Itsawik, Ross havia se aproximadodela, calmamente, como não sabendo o que fazer. Ele não a tinha tocado, apenas aolhara demoradamente, com expressão triste, procurando ternura. Por trás desseolhar, Sharon percebera um amor tão grande, tanta paixão que, num impulso, havia sejogado nos braços dele e, sem hesitar, começou a cobri-lo de beijos. Na ponta dos pés,ofegante, mostrava a esse homem grande, forte, musculoso, mas carente de amor ecarinho como um adolescente, que ela o compreendia, que ela o amava e que seucoração pertencia-lhe. Sim, agora Sharon tinha certeza de seus sentimentos: elaestava loucamente apaixonada pelo dr. Ross. Esse era o homem que ela queria, ohomem que ela desejava, o homem que ela amava! E Sharon também tinha certeza dos

Page 93: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 93

sentimentos de Ross. O calor dos seus lábios, a ânsia de seu corpo contra o dela, apaixão que havia nos olhos dele eram a prova do verdadeiro amor que ele sentia porSharon.

— Sharon, diga que me ama! Diga! Eu quero você todinha para mim!

— Oh, Ross... Você ainda precisa perguntar? Claro que eu amo você, querido! Euamo você como nunca amei ninguém em minha vida.

— Eu pensei que você estivesse apaixonada por Alistair. Foi horrível imaginarque você iria embora com ele. Que pavor senti ao saber que vocês eram noivos!

— Noivos? — Sharon estava admirada com as palavras de Ross. — Quem lhedisse isso?

— Foi Ariel. E isso deixou-me muito confuso, porque vi que ela estava dando emcima de Alistair. Não devia ter acreditado nela, Sharon, mas o ciúme me deixou cego,nem chegava a raciocinar direito. — Ross parou de falar e começou a beijar Sharonnovamente, com loucura, como se tivesse medo que ela, com um simples pensamento,fugisse de seus braços.

— Não é verdade, eu nunca fui noiva de Alistair. Apenas namorados, mas hátanto tempo... Ele não representa nada para mim, Ross. E, para falar a verdade, nuncarepresentou. Só existe um homem no mundo para mim: você! Você é tudo para mim,Ross!

— Você quer se casar comigo, Sharon? — Havia medo e ansiedade na voz deRoss.

— Quero, amor, é tudo que mais quero!

— Vou falar com o pastor e ele poderá nos casar agora mesmo. O que acha daidéia? Não é maravilhosa? Não posso esperar mais tempo, querida. Eu desejo vocêloucamente, quero mostrar-lhe todas as delícias do amor, meu anjo adorado.

Sharon fechou os olhos e suspirou, encantada, imaginando-se já nos braços deRoss. Mas o espírito prático foi mais forte e ela replicou:

— Não. Sua mãe não nos perdoaria jamais. Vamos nos casar na Inglaterra,querido. Depois voltamos para cá...

— Está certo. Eu tenho mesmo uma viagem marcada. Vou comprar remédios,equipamento cirúrgico, em Londres. Vamos juntos, não é amor?

— Ross, é tudo tão lindo, tão maravilhoso! Quando eu vim para o Ártico estavatão triste, tão desanimada, com medo de tudo... Você me trouxe novamente a alegriade viver, meu amor.

— Querida, minha doce e linda querida...

Tinham sido essas as palavras encantadas que Sharon escutara dos lábios deRoss, e agora ele estaria esperando por ela, ali perto, depois que acabasse a conversaque estava tendo com Marcel Rochelle.

Page 94: Elizabeth Gilzean - Fim de Um Suplício

Fim de um suplício (Arctic Nurse) - Elizabeth Gilzean (Bianca 48)

Livros Florzinha 94

Sharon, emocionada, ficou à porta da missão, esperando por Susan e ascrianças. Próximo à praia havia uma porção de malas, entre elas a sua, a de Ross e umbaú com um rótulo onde se lia: Ellen Emerson.

Ellen ia para a Inglaterra para morar com uma tia e terminar os estudos lá.Assim poderia decidir sobre sua profissão, se seria uma professora como sua mãe, ouuma enfermeira como Sharon.

Eles poderiam ter ido de aviso, porém Ross queria que Sharon conhecessemelhor a região Ártica antes que se instalasse no Cabo Mercy.

Alistair também tinha vindo se despedir. Ele ia ficar substituindo Ross atéoutubro, quando iria para Montreal se casar com Ariel.

— Felicidades para você, Sharon — disse ele, sorrindo com simpatia. E olhandopara Ross com ar divertido: — E para você também, Ross. Adivinho que vocêspretendam se casar na Inglaterra. Estou certo?

— Certíssimo, velho! Eu sou o homem mais feliz do mundo, já deu para perceber,não é mesmo? — falou Ross, segurando terna-mente a mão de Sharon.

— Eu também sou uma felizarda — disse Sharon, corando um pouco.

— Vamos, amor? Tem certeza que já pegou tudo?

— Peguei você, Ross... Não acha suficiente?

— Mais do que suficiente, querida. Então, vamos. — Voltou-se para todosacenando com as mãos. — Até logo, amigos! Até a volta!

De mãos dadas, o coração cheio de alegria e amor, os dois subiram a rampa donavio...

F I M