Elogio_da_Serenidade

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Elogio da Serenidade A abrangncia dos estudos do intelectual italiano Norberto Bobbio contempla a filo sofia do direito, a tica, a filosofia poltica e a histria das idias. Nos textos reunidos neste livro, essas temticas se entrelaam, especialmente no pri meiro texto do volume, voltado para a anlise da serenidade. Escrito para uma conferncia em 1983, o ensaio trata dessa virtude, analisada do p risma do rico dilogo entre a moral, o direito e a poltica. Esse raciocnio interdisciplinar tambm se faz presente nos outros dez textos da obr a, todos permeados pela discusso de dois conceitos muito caros ao pensador italia no, a tica e a democracia. Assim, o preconceito, de modo geral, e o racismo, especificamente, so analisados. Neste contexto, o autor mostra por que afirmaes como "todos os homens so iguais" e "todos so diversos" so igualmente falaciosas.

A soluo apontada est num caminho intermedirio, aquele que preconiza a harmonizao entr vises opostas excessivamente generalistas de mundo e procura evitar os preconcei tos que normalmente sustentam as generalizaes. Essas consideraes ensejam o tratamento de outro dos tpicos centrais deste livro: a tolerncia. Dois ensaios estudam a sua justificao moral e a sua relao com a liberdade, indicando ainda o renascimento das discusses sobre tica em todo o mundo e nas mais diversas reas do conhecimento. A temtica ois pontos traporiam, zo e o de enfatizada por Bobbio nos ltimos textos do livro, que enfocam o Mal de d de vista diferentes: o de uma tica laica e o de uma religiosa, que con respectivamente, na viso do intelectual, a discusso entre o homem de ra f.

Sobre a traduo A palavra mitezza, em italiano, rica de sentidos e significados. O adjetivo mite, usado em referncia ao clima ou temperatura, corresponde a ameno, tpido, temperado, como em inverno mite (inverno ameno). Aplicado a animais, pode corresponder a manso, domesticado, dcil, como em il mite agnello (o dcil cordeiro ). empregado para designar pessoas boas, benvolas, clementes, como em "beati i mi ti perch erediteranno Ia terra" ("bem-aventurados os mansos, porque deles ser a te rra"), conforme o texto das bem-aventuranas do Evangelho Segundo Mateus, da Bblia. Neste caso, recobre diversas qualificaes: calmo, paciente, sereno, suave, delicado , moderado, propenso benevolncia, indulgente, como em un'uomo mite (um homem sere no), ou em un bambino mite (um garoto tranqilo). Em sentido figurado, remete a le ve, suave, moderado, como em una condanna ou una pena mite (uma condenao ou uma pe na leve, suave). De mite, vem o verbo mitigar (em italiano, mitigare): suavizar, arrefecer, diminuir, atenuar, abrandar, aliviar. E tambm o substantivo abstrato mitezza. No entender de Bobbio, mite e mitezza so "palavras que somente a lngua italiana he rdou do latim". Alguns tradutores franceses e ingleses preferem mantIas sempre em italiano, provavelmente por entenderem que sua traduo acarretaria alguma perda qu anto ao significado. Como o prprio Norberto Bobbio informa na "Nota sobre os textos", includa no Apndice da presente edio, enquanto um dos tradutores ingleses optou por grafar ln praise

of meekness, aceitando o menor refinamento do termo meekness (de meek: manso, su bmisso), outros preferiram ln praise afia mitezza, a mesma opo feita pelo tradutor francs: Eloge de Ia mitezza. Em espanhol, a escolha recaiu sobre templanza, correspondente em portugus a tempe rana, moderao, sobriedade. Na presente traduo, optou-se por serenidade, que se configurou, no decorrer do tra balho, como mais identificada com a idia bobbiana de mitezza. Mansido, mansuetude ou docilidade no teriam muito cabimento e contrariariam o pens amento de Bobbio, que considera tais termos aplicveis com maior propriedade aos a nimais. Como o leitor poder acompanhar no texto que empresta ttulo ao volume, o prprio Bobb io registra as nuanas e mincias de detalhe que cercam a palavra italiana. Sem nenhum prejuzo quanto compreenso ou fidelidade ao texto, ela poderia ser aprox imada de "moderao" ou "suavidade", como seria bem razovel, por exemplo, na passagem em que Bobbio se refere a mitezza como uma "virtude feminina": as mulheres so mi ti por sua doura, gentileza e suavidade, no s por sua eventual serenidade. Mas moderao e suavidade, em portugus do Brasil, so palavras carregadas demais de sig nificado.

De resto, como em outras situaes tpicas do trabalho de traduo, a opo aqui feita refl uma leitura e uma interpretao do texto. Como tal, est sujeita a alguma controvrsia. So Paulo, junho de 2002 Marco Aurlio Nogueira Introduo Nas ltimas pginas do Dilogo sobre uma vida de estudos, meu interlocutor, Pietro Pol i to, convida-me a falar da primeira edio italiana de Elogio da serenidade (1994), que eu definira como "extravagante"; para ele, o livro deixa entrever o filsofo da moral ao lado e por sobre o filsofo do direito e da poltica. Respondo que, efetivamente, nos ltimos anos, ao perceber as primeiras mordidas da velhice, fui me envolvendo e em certa medida me dispersando na reflexo sobre o p roblema do mal no mundo e na histria, e diminuindo minhas ligaes com o universo da poltica. No foi um acaso, portanto, e talvez tenha sido at mesmo uma premonio, que eu, anos a trs, ao ser convidado para participar de um ciclo de conferncias sobre as virtudes , tenha escolhido a serenidade, que optei por incluir entre as virtudes fracas, contrapostas s virtudes fortes do estadista, definindo-a como "a mais impoltica da s virtudes". Recentemente, um de meus mais benvolos leitores e crticos tomou como base os dois l timos livros que publiquei, De senectute (1996) e Autobiografia (1997), para obs ervar que, com o passar dos anos, eu havia promovido uma "curvatura tica" em meus escritos, exaltando as "foras morais" que impedem as instituies de degenerar e afi rmando que "o fundamento de uma boa repblica, mais at do que as boas leis a virtud e dos cidados". Para dizer a verdade, a idia de que a democracia necessita de cida dos virtuosamente democrticos uma velha idia minha, ainda que no muito rara. Jamais esqueci a advertncia de Croce, nos chamando para contrapor poltica "a fora no poltica com que a boa poltica deve sempre se entender".

A definio da serenidade como virtude no poltica no agrada a meu velho amigo Giuliano Pontara, o maior estudioso italiano de Gandhi, apaixonado e dou to terico da no-vi olncia.

Num comentrio que escreveu sobre meu ensaio - publicado na mesma revista que o ha via difundido -, depois de fazer algumas observaes pertinentes sobre minhas premis sas tericas e sobre a considerao que fao da serenidade como virtude passiva, Pontara refutou a identificao que estabeleo entre serenidade e no-violncia, da qual seria ne cessrio deduzir logicamente a negao de qualquer valor poltico no-violncia e, portan a impossibilidade de distinguir a no-violncia passiva, prpria dos pacifistas tradi cionais, da no-violncia ativa teorizada e praticada por Gandhi, que uma virtude em inentemente poltica. Escreve Pontara: A no-violncia est dentro da poltica, e isto de modo bem eficaz, tan to quanto dentro da poltica e de modo eficaz estava Gandhi. Mas est dentro da poltica de um modo totalmente especial, e nisto que repousa a gr ande novidade e atualidade da mensagem gandhiana.

Na medida em que sereno, tambm o no violento no estabelece relaes de conflito com os demais com o objetivo de competir, de lutar, de destruir, de vencer; ele no um vi ngativo, no guarda rancor, no tem averso a ningum, no odeia ningum; e no vido pel . certo que ele jamais abre fogo; mas no teme dar incio a um conflito, ou melhor, no teme que conflitos latentes se evidenciem, nem teme a luta.

Porm, como refuta a violncia..., refuta tambm aquela lgica do poder segundo a qual s empre deve haver um vencedor e um perdedor; e maneja os conflitos de modo a faze r com que a soluo no seja uma soluo com soma zero, mas uma soluo em que todas as par ganhem e possa ser por isso aceita por todos. Tendo em mente este objetivo, o indivduo sereno conduz a luta usando mtodos que no ameaam os interesses vitais do opositor, que apelam aos melhores traos do opositor e aos grupos mais abertos e sensveis no interior do grupo adversrio; usa mtodos de luta que tendem a humanizar o opositor, em vez de desumaniz-lo... A no-violncia , p ortanto, o canal atravs do qual a serenidade se converte em fora, uma fora distinta e que opera de modo distinto da violncia. O no violento refuta a violncia sem ter por isso que se retirar da poltica; desment e, com seu agir, a definio da poltica como reino exclusivo da raposa e do leo. Respondi de modo breve e reconheo, um pouco ressentido, reduzindo o dissenso a um a questo de palavras em torno do significado de "poltica", que eu havia claramente entendido e explicitado no sentido maquiaveliano da palavra, ainda que conheces se muito bem - como Pontara sabia - a doutrina e a prtica no violentas de Gandhi.

Na amigvel rplica que me dirigiu, encerrando o dilogo, Pontara me fez compreender q ue sua perturbao derivava do fato de que eu, ao no levar em conta a distino entre noiolncia ativa e no-violncia passiva, acabara por aderir a uma identificao muito simpl ista entre serenidade e no-violncia, reforando assim o preconceito comum que identi fica a poltica com a violncia e nega que se possa desenvolver uma ao poltica com meio s no violentos. No foi muito distinto o comentrio de Enrico Peyretti, diretor da revista mensal Il Foglio (no confundir com o dirio Il Foglio de Giuliano Ferrara), que leio assidua mente. Tomando como ponto de partida o ditado evanglico "Bem-aventurados os mansos, porq ue deles ser a terra" (Mateus, 5, 5), Peyretti se pergunta: "Qual dos dois tipos humanos, o poderoso ou o manso, governa verdadeiramente a terra? Quem a protege,

a conserva e a cultiva para que possa ser lugar e corpo da histria, do longo cam inho humano?". Definindo-se, moda de Aldo Capitini, como um "convencido da no-vio lncia", Peyretti observa que a poltica de fato exclui a serenidade. Todavia, pe-se o problema de saber se no existe "uma outra poltica" alm daquela que "considera como critrio principal a conquista do poder, mas no capaz de garantir u ma paz estvel, finalidade superior da poltica". Conclui pondo em discusso a teoria "amoral" da poltica, que exclui a serenidade. Houve tambm quem fez uma avaliao distinta. Entre as vrias cartas recebidas, houve a de um grupo de alunos de uma escola secu ndria para quem a professora leu algumas pginas do meu elogio da serenidade, que f icara conhecendo a partir da resenha feita por Arturo Colombo no Corriere della Sera (1 de maro de 1995), intitulada "Arrogantes e prepotentes, a serenidade os se pultar". Os garotos haviam se convencido de que estavam errados os que acreditava m que "serenidade fraqueza". Agradeo muito a estes garotos, a sua professora e a seu inspirador, por terem compreendido que a serenidade, tal como eu havia descr ito, sim uma virtude fraca, mas no a virtude dos fracos. Eu deixara bem claro que a serenidade no deve ser confundida nem com a submisso ne m com a concesso. A afirmao de que a teoria amoral da poltica exclui a serenidade levanta mais uma ve z a velha e sempre atual questo da relao entre moral e poltica, qual dediquei os doi s primeiros ensaios deste volume.

Quando Peyretti escreve que: - "a poltica violenta, que pe a poltica no ostracismo, no poltica". Acredita j ter resolvido o problema ao incluir na definio de poltica ue eu no hesitaria em chamar de persuasiva - a conformidade da ao poltica aos princpi os da moral. bem conhecido que, na histria do pensamento poltico, se encontram lad o a lado dois conceitos de polticas contrastantes entre si: o aristotlico e depois cristo, por um lado, segundo o qual por "agir poltico" se entende o agir visando ao bem da cidade ou ao bem comum, e, por outro lado, o realista, que se afirma p or intermdio de Maquiavel, de Guicciardini e dos tericos da razo de Estado, segundo o qual a esfera da poltica autnoma com respeito esfera da moral e a ao do estadist no pode ser julgada com base nas normas que regem e com as quais se julga a ao do homem comum. O problema, que a prevalncia da teoria da razo de Estado, especialmente na cultura italiana de Benedetto Croce a Rodolfo De Mattei e a Luigi Firpo, dava por resol vido, sustentando, seno a imoralidade, ao menos a amoralidade da poltica - ainda q ue sem muita concordncia sobre os motivos que justificariam esta amoralidade - fo i, nestes ltimos anos, reproposto pelo movimento da chamada "reabilitao da filosofi a prtica", que retorna a Aristteles, e, na cultura italiana, pela obra de Maurizio Viroli, que reavalia esta tradio percorrendo de novo sua histria no pensamento polt ico medieval italiano e dando destaque particular "transformao da linguagem da polt ica" na passagem da concepo clssica da poltica teoria da razo de Estado. No creio que os dois conceitos de poltica possam ser separados, nem analiticamente nem em termos histricos. Viso positiva e viso negativa da poltica se reencontram e se contrapem em todas as po cas. A distino entre bom governo e mau governo, que Viroli vincula contraposio entre arte de governo e cincia do Estado, um topos clssico do pensamento poltico que remonta distino aristotlica entre formas de governo puras e corruptas, segundo a qual so boa s as formas em que o governante exerce o poder visando ao bem comum e ruins as d o governante que exerce o poder visando ao prprio interesse.

Essa distino se transmite de uma poca a outra, tanto que pode ser encontrada at mesm o na distino entre uma boa e uma m razo de Estado naqueles mesmos escritores que hav iam repudiado a doutrina clssica da poltica. Precisamente no perodo em que teria ocorrido a grande reviravolta, um insigne his toriador como Gerhard Ritter escreveu o fascinante livro O rosto demonaco do pode r? no qual sustenta a tese de que, do incio do sculo XVI, partem as duas correntes antagonsticas do poder que chegam at ns, a realista de Maquiavel e a utpica de Thom as Morus. Do mesmo modo, eu no me sentiria muito seguro em considerar que a teoria da razo d e Estado, interpretada como a forma perversa da poltica, no tem precedentes histric os.

O ncleo dessa doutrina est todo na famosa mxima, de origem ciceroniana, Salus rei p ublicae suprema lex [O bem de todos a lei suprema], que o prprio Maquiavel, preci samente o Maquiavel que estaria, segundo Viroli, fora da teoria da razo de Estado - faz na sua famosa passagem dos Discursos (e no do famigerado O prncipe), em que afirma que quando a salvao da ptria est em questo "no se deve fazer qualquer conside ao a respeito do que justo ou injusto". De resto, entre as vrias interpretaes da dis ociao entre tica e poltica, no desconhecida de Viroli aquela dada por Scipione Ammir to, segundo a qual lcita a "contraveno de leis ordinrias cometida em nome do benefci pblico". Trata-se de um princpio geral do direito e da tica que admite a derrogao de uma lei em casos excepcionais? Entre esses casos, o mais freqentemente lembrado e o mais preeminente o estado de necessidade, que tambm serve de justificativa, c omo todos sabem, para os simples indivduos. Felix Oppenheim escreveu recentemente um livro para sustentar que o Estado est ju stificado - e portanto no pode ser submetido a julgamento moral quando age em est ado de necessidade para defender o interesse nacional. E o que o interesse nacional seno a salus rei publicae dos antigos? Estreitamente ligados entre si so os dois captulos que dedico natureza do preconceito e ao raci smo. A raiz do racismo no apenas o preconceito, mas o preconceito refora o racismo. difc il pensar num indivduo que esteja animado por uma forte averso aos indivduos de uma outra raa e que no procure justificar essa averso recorrendo a juzos no sustentados por alguma prova de fato. preciso, porm, distinguir entre o racismo como comporta mento, como atitude habitual, irrefletida, emotiva, e o racismo como doutrina qu e pretende ser cientfica, ideologicamente inspirada e direcionada. Por sua vez, o racismo como ideologia deve ser distinguido do estudo cientfico da s raas humanas, que mesmo quando considera ser possvel afirmar a existncia de grupo s humanos diversos aos quais se pode dar corretamente o nome de "raas", no oferece qualquer apoio ideologia racista, que no apenas sustenta que raas diversas existe m e existem raas superiores e inferiores, mas tambm sustenta que a raa superior com o tal tem o direito de dominar a inferior. Tambm a relao entre pais e filhos, entre professores e alunos, de fato, e quase sem pre de direito, uma relao entre um superior e um inferior. Mas uma relao na qual o superior, ainda que pretenda ter o direito de dominar o in ferior, atribui-se o dever de ajud-lo, socorr-lo e redimi-lo da sua inferioridade. Desde a Antigidade, de algumas pginas famosas de Aristteles, o poder do superior so bre o inferior assume duas formas bem diversas: o poder do pai sobre o filho, qu e exercido em benefcio dos filhos, e o poder do patro sobre os escravos, que exerc ido em favor do patro.

Desses dois tipos de poder do superior e do inferior dentro do grupo familiar, n ascem as duas bem conhecidas formas de Estado autoritrio, o Estado paternal ou pa ternalista ou, com outra expresso derivada no da tradio clssica, mas da tradio do Ve Testamento, patriarcal, e o governo desptico no qual o detentor do poder trata s eus sditos como escravos. De tudo o que foi dito, deduz-se que se pode muito bem ser racista sem que se ac eite a teoria, cientfica ou pseudocientfica, da diviso da humanidade em raas. Assim como se pode ser poligenista, isto considerar que os grupos humanos no nasc eram de um nico tronco, sem que se seja racista, e vice-versa, pode-se ser racist a e ao mesmo tempo refutar o poligenismo. J que os homens so tanto iguais como diversos - iguais porque, diferentemente dos outros animais, falam, e diversos porque falam lnguas diversas -, uma falsa gener alizao tanto afirmar que todos so iguais como que todos so diversos. Dessas duas falsas generalizaes derivam, respectivamente, duas polticas contraposta s em relao emigrao. Num extremo, a assimilao, segundo a qual quem entra num pas deve pouco a pouco se i dentificar com seus habitantes, aceitar suas regras, seus costumes, sua lngua, su a mentalidade, para assim se converter numa outra pessoa distinta da que sempre foi perder a prpria identidade, aquilo que constitui a sua "diferena", por intermdi o da gradual aquisio dos direitos de cidadania, primeiro aqueles pessoais, depois os civis, os polticos, e por fim tambm os sociais.

No outro extremo, exatamente como reao poltica da assimilao, surgiu com fora cresce , nos ltimos tempos, a exigncia do respeito s diferenas, exigncia esta que deveria pe rmitir, pessoa que diversa, a conservao mais ampla possvel daquilo que a faz ser di versa, seus prprios costumes, a prpria lngua e, portanto o direito de ter seus prpri os locais de culto, as prprias escolas, os prprios feriados, at mesmo o prprio modo de vestir (apenas para dar um exemplo, pense-se no debate de alguns anos atrs em torno do uso do chador pelas alunas muulmanas nas escolas francesas). Pois bem: e stas duas polticas so a expresso de duas formas de preconceito, ou seja, de crena no crtica, mas aceita como absoluta: "Todos os homens so iguais, todos os homens so di versos". Se forem todos iguais, por que diferenci-los? Se so todos diversos, por q ue igual-los? Hoje, o contraste entre estas duas solues extremas est mais vivo do qu e nunca. Mas, precisamente como solues extremas, ambas talvez sejam igualmente incorretas, j que, contra os dois preconceitos opostos, os homens so tanto iguais quanto diver sos. Numa viso liberal da convivncia - segundo a qual existem direitos fundamentais dos indivduos, que o Estado deve reconhecer -, ningum pode ser to igualitrio a ponto de no reconhecer o direito diversidade religiosa, isto , o direito que cada um tem d e adorar o prprio Deus ou de no adorar deus algum. Em decorrncia, ningum pode ser to diferencialista a ponto de desconhecer a igualdad e de todos - provenientes de onde quer que seja, at mesmo das regies mais longnquas em termos espaciais ou culturais com respeito aos direitos do homem, e sobretud o, antes de quaisquer outros, aos direitos pessoais, que precedem os direitos do s cidados e so mesmo o pressuposto deles.

Na civilizao democrtica, no h por que temer o reconhecimento de que a soluo do probl est na harmonizao das duas exigncias opostas. Cada uma delas tem uma boa dose de razo, desde que sejam reconhecidos os preconce

itos que as sustentam, quais sejam, que cada homem igual ao outro e que cada hom em diverso do outro. As mesmas razes que foraram alguns Estados, entre os quais o italiano, a enfrentar o problema dos novos fluxos de imigrao, dos quais nascem perversos e perigosos co mportamentos e atitudes racistas, reabriram e reanimaram no plano terico o velho tema da tolerncia. preciso desde logo advertir, porm, que, quando se fala de tolern cia em seu significado histrico prevalecente - como no texto includo no presente v olume, "Tolerncia e verdade", estamos nos referindo ao problema da convivncia de c renas diversas, primeiro das religiosas e depois tambm das polticas. Hoje, o conceito de tolerncia se estendeu ao problema da convivncia com as minoria s tnicas, lingsticas, raciais, geralmente com aqueles que so considerados "diversos" , como os homossexuais, os doentes mentais ou os incapacitados. Os problemas a que se referem esses dois modos de entender e praticar a tolerncia no so os mesmos. Uma coisa o problema da tolerncia de crenas ou opinies diversas, que exige uma refl exo sobre a compatibilidade terica e sobretudo prtica entre verdades contrapostas; outra coisa o problema da tolerncia diante daquele que diverso por razes fsicas ou sociais, que pe em primeiro plano o tema do preconceito e da conseqente discriminao. As razes que se podem apresentar em defesa da tolerncia no primeiro significado no so as mesmas que se apresentam para defend-la no segundo. Em decorrncia, so distintas as razes das duas formas de intolerncia. A primeira deriva da convico de possuir a verdade; a segunda se funda geralmente n um preconceito, como dissemos. verdade que tambm a convico de possuir a verdade pod e ser falsa, e assumir a forma de preconceito. Mas se trata de um preconceito que se combate de modo completamente diverso: no s e podem colocar no mesmo plano os argumentos usados para convencer fiis de uma ig reja ou seguidores de um partido a conviverem com outras igrejas ou com outros p artidos e os argumentos empregados para convencer um branco a conviver pacificam ente com um negro. A questo fundamental que os defensores da tolerncia poltica ou religiosa sempre se fizeram pode ser assim formulada: "Como podem ser terica e praticamente compatveis duas verdades contrapostas?". O defensor da tolerncia diante dos diversos pe-se e sta outra questo: "Como se pode demonstrar que certas impacincias com respeito a u ma minoria de pessoas diversas derivam de preconceitos inveterados, de formas ir racionais, puramente emotivas, de julgar homens e eventos?". A melhor prova dess a diferena est no fato de que, no segundo caso, o termo habitual com que se design a aquilo que se deve combater no intolerncia, mas discriminao. Nos dois textos aqui includos, que esto em estreita conexo um com o outro - "Verdad e e liberdade" e "Tolerncia e verdade" -, a tolerncia abordada no tanto do ponto de vista da sua justificao jurdica quanto do ponto de vista da sua justificao moral, co m o objetivo de defend-la da acusao de ser a expresso de uma moral relativista e de indiferentismo ou ceticismo moral. O tema foi amplamente discutido nos ltimos anos, por ocasio de um artigo de Ernest o Galli della Loggia, que punha sob acusao, em minha opinio com argumentos bem pers uasivos, a serem levados a srio, o "laicismo liberal-progressista", que, pretende ndo se defender com uma "certa irritada suficincia" da acusao de deslegitimar a dem anda por valores que percorrem a nossa sociedade voltou a dar fora tica religiosa. Eu mesmo intervim neste debate, escrevendo uma "Exaltao da tolerncia", na qual reto

mava tanto o tema da relao entre tolerncia e liberdade quanto o das razes pelas quai s podemos ser tolerantes sem ser cticos. Manifestei-m e de acordo com Della Loggia na deplorao das atitudes dedicadas a ent ender por tolerncia "o contrrio no da intolerncia, mas do rigor moral, da firmeza em defender as prprias idias, do justo rigor de julgamento". Mas conclu acenando para o reflorescimento, especialmente no mundo anglo-saxo, dos estudos de tica raciona l, a respeito dos quais estranhamente no se falava no artigo em questo nem se falo u no debate que a ele se seguiu. Recentemente, o tema da fraqueza, fragilidade ou inconsistncia da tica laica com r espeito tica catlica foi recuperado, mais ou menos nos mesmos termos, por Giuliano Amato numa entrevista concedida ao jornal Il Mondo, reproduzida por La Stampa e m 30 de agosto de 1997. Refutada a aceitao do mercado sem limites, Amato declara sua admirao pela Comunidade de Santo Egdio e por suas obras de caridade, e se pergunta, preocupado, quase as sustado, por que "os laicos no conseguem traduzir seus valores ticos numa ao organiz ada", confessando viver uma contradio, uma dvida da qual no encontra a soluo. No mesmo nmero, o jornal publicava um severo comentrio crtico de Gianni Vattimo, qu e terminava, a partir da aceitao do valor da liberdade tanto pelos laicos quanto p elos catlicos, com o elogio da sociedade aberta e com a afirmao de que a poca de Pop per - o autor mais lembrado como ilustre propositor de uma tica laica - no havia d e modo algum chegado ao fim.

Sua poca estaria ainda por vir, desde que os laicos no renunciassem s suas responsa bilidades. "A realizao de condies mnimas de liberdade - econmica ou espiritual - pode abrir espao para programas de trabalho bem precisos, muito mais do que as lamentaes em torno dos Valores perdidos." Nos dois ltimos captulos - "Prs e contras de uma ti ca laica" e "Os deuses que fracassaram" -, procurei enfrentar diretamente, no pr imeiro, o problema fundamental que havia aflorado em todas as pginas precedentes, qual seja, o problema da relao de compatibilidade ou incompatibilidade, de indife rena recproca ou de recproca integrabilidade, conforme os pontos de vista, entre tic a laica e tica religiosa. No segundo, procurei examinar o tema principal sobre o qual, em minha opinio, est abelecem-se a diferena e a dificuldade de dilogo entre laicos e religiosos: o prob lema do Mal. Para dizer a verdade, mais que de uma tica laica, deveramos falar de uma viso laica do mundo e da histria, distinta de uma viso religiosa. Pode-se tambm falar, com uma linguagem compreensvel por todos, de distino entre uma concepo sagrada ou sacra e uma concepo profana ou desconsagrada, ou ainda, como se p refere dizer hoje, dessacralizada, do mundo e da histria, distino que teria tido su a origem no incio da era moderna, no perodo weberianamente chamado de "desencantam ento". Segundo o cristo, ao lado da histria profana existe uma histria sagrada, da qual o nico guia seguro a Igreja ou as diversas igrejas que retiram sua inspirao da s Sagradas Escrituras.

Para o laico, a histria uma s, e a histria em que estamos imersos, com nossas dvida no resolvidas e com nossas questes ineliminveis, cujo guia a nossa razo, de modo al gum infalvel, que extrai da experincia os dados a partir dos quais se pode refleti r.

Esta uma histria por detrs da qual e acima da qual no h nenhuma outra histria da qua esta nossa histria seria apenas uma prefigurao imperfeita, um reflexo infiel ou at mesmo enganoso.

Na viso do laico, falta a dimenso da esperana em um resgate final, em uma redeno, em uma palingnese, numa palavra, na salvao.

No pode haver salvao numa viso do mundo em que no existe sequer a idia de uma culpa o iginria, que teria maculado para sempre toda a humanidade desde a origem e ao lon go dos sculos. Para o laico, a histria no se desenrola segundo um percurso predeterminado, e j traa do desde o incio, entre uma culpa original e uma redeno final. uma histria de evento s de que se pode, ainda que nem sempre, encontrar a concatenao das causas, mas em que no se pode chegar atribuio de culpas. uma histria da qual intil procurar um do ltimo, porque um sentido ltimo no existe ou ainda no se revelou de modo claro o s uficiente para nos levar aprovao. Qual o sentido do impressionante ciclone que h alguns anos arrasou uma regio como Bangladesh e dizimou milhares de pessoas? Ou, para citar um evento, como o terre moto em Messina, ocorrido bem no incio do trgico sculo XX, que destruiu uma cidade inteira, clebre na histria do Ocidente, e matou grande parte de seus habitantes? S ei muito bem que propor questes deste gnero pode criar certo mal-estar, alm de pode r ser tambm objeto de fceis acusaes da parte de um crente, para quem "nada se move o u acontece que no seja por vontade de Deus", e tudo deve ter um sentido, at mesmo a matana de inocentes provocada por um dilvio ou por um terremoto. Mas o laico no pode renunciar a exprimir suas prprias dvidas, a pr-se e repor-se que stes com as quais busca abrir uma passagem nas trevas que o circundam, sem renunc iar conscincia, que pouco a pouco pde ir conquistando ao refletir sobre a vida e a morte, da sua limitada e atormentada humanidade. Para o homem de razo, no h nenhum sentido - se me permitirem o jogo de palavras - e m se pr o problema do sentido de um evento como um cataclismo ou um terremoto, im previsvel, inesperado e angustiante, no apenas em suas conseqncias mas tambm por sua incompreensibilidade. A contraposio, que me parece ser dificilmente sanvel (mas peo luzes a quem ou acredi ta ser mais iluminado do que eu), entre o homem de razo e o homem de f, revela-se em toda a sua dramaticidade na discusso sobre o tema do Mal, ao qual so dedicados o ltimo ensaio e o Apndice, em que respondo a dois ilustres interlocutores. Meu objetivo foi, sobretudo, o de distinguir, mais claramente do que se costuma fazer, o mal ativo, a maldade, do mal passivo, o sofrimento, ou, com outras pala vras, o mal infligido do mal sofrido. At mesmo no livro de Albert Grres e Karl Rahner, que de 1982, o problema apresenta do com a velha distino, absolutamente incongruente, entre mal moral e mal fsico: in congruente, porque considera os dois males como duas espcies do mesmo gnero e, por tanto, ofusca a exigncia de manter completamente distintos os dois problemas que s esto relacionados entre si numa viso da histria humana e do universo em que o sofr imento, o mal fsico, seria a conseqncia direta ou indireta do mal moral, como de re sto aparece habitualmente em certos textos de devoo religiosa, nos quais o doente tambm um pecador e a libertao do pecado coincide com a libertao da doena. Trata-se de uma viso da histria e do universo que deixa completamente sem explicao t anto o sofrimento derivado das catstrofes naturais quanto a impiedade que prevale ce no mundo animal, no qual se pode efetivamente falar de um mal fsico, mas no ter ia qualquer sentido falar de um mal moral. A maior parte dos sofrimentos de que so vtimas os homens, neste vale de lgrimas em que tantas vezes se ouve o lamento "Melhor teria sido no ter nascido", nada tem a ver com a culpa dos outros, nem com a prpria culpa de cada um, nem com o mal-ent endido como ao malvada.

O mal infligido pode ser explicado miticamente com o pecado original; o mal sofr ido, freqentemente inculpvel, no. Numa viso laica da vida no existe o Mal absoluto. Existem muitas formas de mal, mais precisamente muitos acontecimentos diversos q ue inclumos numa categoria onicompreensiva do Mal - genrica demais para ser pragma ticamente til - e que deveriam ser bem diferenciados em termos analticos. Uma reflexo sobre o mal deveria comear pela fenomenologia das vrias formas do mal, como faz Paul Ricoeur, por exemplo, ainda que de modo no totalmente satisfatrio. No interior desta grande dicotomia, seria preciso introduzir muitas outras disti nes antes de enfrentar o problema das causas e dos remdios. Nem todo mal infringido pode ser inserido na categoria do Mal absoluto, ou que s e define como absoluto unicamente porque no se consegue alcanar uma explicao possvel. Auschwitz o exemplo sempre presente nos debates atuais.

H uma infinidade de gradaes na dimenso da ao m, que os telogos morais e os juristas ecem muito bem, e sobre as quais no o caso de gastar outras palavras. Tanto o homicdio premeditado quanto o homicdio preterintencional podem ser includos na categoria do mal infringido, mas no podem ser tratados do mesmo modo. At mesmo no interior da outra face do mal, a do sofrimento, evidente a diferena en tre sofrimento fsico e sofrimento psquico, entre sofrimento psquico e sofrimento mo ral. No se pode comparar uma dor de dente com a dor pela perda de um ente querido ou p elo remorso diante de um ato que cometemos infringindo uma regra ou causando dan o aos demais. A diferena se torna relevante quando se reflete sobre os possveis remdios para uma ou outra fonte de dor. A dor fsica pode ser controlada ou limitada com um medicamento. Pense-se na importncia que teve a anestesia para o desenvolvimento da cirurgia. Hoje, mesmo quem se coloca num ponto de vista religioso no contesta o uso desses remdios. Bem distinta a situao que se refere ao sofrimento psquico ou ao sofrimento moral. Com respeito dor pela morte de uma pessoa querida, ou no h remdio algum ou o nico re mdio o natural e inevitvel passar do tempo. No h nenhum remdio fcil tambm para o sofrimento causado pelo mal praticado, em que co nsiste o remorso. No existe outro remdio seno na expiao, na verdade, no auto-castigo, ou no perdo, que m ato gratuito do ofendido.

Estas e outras observaes que se poderiam fazer so o -b-c de um tratado sobre o proble a do mal que queira enfrentar a questo prescindindo da existncia de Deus. A dificuldade hoje bem clara mesmo para aqueles que se pem o problema a partir de

um ponto de vista religioso, que nos ltimos tempos tm-se esforado para encontrar s olues mais satisfatrias que as tradicionais, que haviam dado origem s vrias teodicias Uma soluo possvel foi buscada, por exemplo, na redefinio do conceito de Deus, de modo a tornar compatvel a existncia de Deus com a existncia do Mal. A resoluo do insolvel mistrio do Mal no problema dos muitos males que afligem o home m no um ato de insolncia racionalista. , ao contrrio, muito modestamente, a primeira condio para que se possa consentir ao homem de razo e de cincia, ainda que conscien te de seus prprios limites, o encontro de algum remdio eficaz para tornar o mal ma is suportvel. Turim, fevereiro de 1998 N.B. Elogio da serenidade Entre os antigos, boa parte da tica se resolvia num tratado sobre as virtudes. Basta recordar a tica a Nicmacos, de Aristteles, que por sculos foi um modelo inques tionvel. Em nossa poca, semelhante tipo de tratado desapareceu quase que por completo. Hoje, seja no plano analtico, seja no propositivo, os filsofos morais discutem a r espeito de valores e opes, e de sua maior ou menor racional idade, bem como a resp eito de regras ou normas e, conseqentemente, de direitos e deveres. Uma das ltimas grandes obras dedicadas ao tema clssico da virtude foi a segunda pa rte da Metafsica dos costumes (Die Metaphysik der Sitten) de Kant, intitulada "Do utrina da virtude" (Die Tugendlehre), que se segue primeira parte, dedicada "Dou trina do direito" (Die Rechtslehre). Mas a tica de Kant eminentemente uma tica do dever, e de modo especfico do dever interno distinto do dever externo, de que se ocupa a doutrina do direito. A virtude a definida como a fora de vontade necessria para o cumprimento do prprio d ever, como a fora moral de que o homem necessita para combater os vcios que se opem , como obstculos, ao cumprimento do dever. Como o prprio Kant deixou claro por meio de explcitas e repetidas declaraes, sua dou trina da virtude no tem nada a ver com a tica aristotlica. parte integrante da tica do dever. Nos sculos da grande filosofia europia, o tema tradicional das virtudes e, respect ivamente, dos vcios, transformou-se em objeto dos tratados sobre as paixes (de aff ectibus). Pense-se em Les passions de l'me, de Descartes, na parte da tica de Espi nosa intitulada "De origine et natura affectuum", nos captulos introdutrios das ob ras polticas de Hobbes, Elements of Law Natural and Politic e Leviat. A doutrina tica, em vez disso, encontrou seu lugar, e no o perdeu mais por alguns sculos, na doutrina do direito natural, na qual prevaleceu, no tratamento dos ele mentos da moral, o ponto de vista das leis ou das regras (morais, jurdicas, do co stume), donde a resoluo da tica na doutrina dos deveres e, respectivamente, dos dir eitos. No tratado clssico e bastante conhecido, Di iure naturae et gentium, de Pufendorf , dedicado um pequeno espao ao tema das virtudes no sentido tradicional da palavr a, num captulo sobre a vontade humana. A anlise das virtudes continuou a ter sua expresso natural na obra dos moralistas, de que hoje praticamente se perderam as pistas.

Mais ainda, na sociedade do bem-estar, o moralista considerado no melhor dos cas os um desmancha-prazeres, algum que no sabe se divertir, no sabe viver. Moralista virou sinnimo de choro, de algum que se lamenta sempre, de pedagogo que n ingum escuta e meio ridculo, de algum que prega ao vento e fustiga os costumes, uma pessoa to cansativa quanto, felizmente, incua. Se desejares silenciar o cidado que protesta e ainda tem capacidade de se indigna r, digas que ele no passa de um moralista. um expediente fulminante. Tivemos inmeras ocasies para constatar, nos ltimos anos, que quem quer que tenha cr iticado a corrupo geral, o mau uso do poder econmico ou poltico, foi obrigado a leva ntar as mos e dizer: "Fao isso no por moralismo". Como se precisasse deixar bem cla ro que no queria ter nenhum contato com aquela gente, geralmente levada em pouquss ima conta. Porm, quando pronunciei meu discurso sobre a "serenidade", ainda no havia sido pub licada, ou eu ainda no tivera notcia dela, a obra - que suscitou amplo debate logo aps seu lanamento - After Virtue. A Study in Moral Theory, do filsofo Alasdair MacIntyre, que foi traduzida em ital iano e se tornou bem conhecida entre ns. Tal obra uma tentativa de atualizar e recuperar o prestgio do tema da virtude, qu e teria sido injusta e prejudicialmente abandonado, retomando assim um caminho i nterrompido, a partir de Aristteles. O pensamento do autor procede por meio de uma contnua polmica, que a mim no parece ser sempre de boa qualidade e nem mesmo muito original, contra o emotivismo, a s eparao entre fatos e valores, contra o individualismo, que ele chama de "burocrtico ", contra todos os males do mundo moderno, dos quais o principal responsvel teria sido o Iluminismo, por meio da prevalncia do racionalismo tico, que inevitavelmen te desembocou no niilismo. Por certo, este no o lugar para nos ocuparmos com uma anlise crtica do livro. Ele me interessa, nesta oportunidade, como uma prova a mais do abandono em que h avia cado a doutrina da virtude. De fato, o autor apresenta e prope sua prpria obra como uma obra contra a corrente , como um retorno tradio, como um desafio "modernidade". Um de seus alvos preferid os a tica das regras. A tica das virtudes contrapor-se-ia tica das regras, que estaria prevalecendo na ti ca moderna e contempornea. A tica das regras aquela dos direitos e dos deveres.

Sempre tive certa hesitao em aceitar contraposies to drsticas, porque elas favorecem titudes unilaterais diante de temas to obscuros como so os temas filosficos, nos qu ais a verdade no est peremptria, definitiva, indiscutivelmente de um lado ou de out ro, e tambm diante de uma possvel interpretao da histria, enorme recipiente que contm mil coisas misturadas sem qualquer ordem, das quais perigoso e pouco conclusivo isolar apenas uma. muito discutvel que a tica tradicional tenha sido predominantem ente uma tica das virtudes contraposta tica das regras (digamos melhor: das leis). Seria preciso esquecer as Nomoi (as Leis), uma das grandes obras de Plato. Na prpria tica a Nicmacos, de Aristteles, uma parte da virtude da justia consiste no hbito de obedecer s leis.

Os temas da virtude e das leis esto continuamente entrelaados, mesmo na tica antiga .

Nas razes da nossa tradio moral, e como fundamentos da nossa educao cvica esto tanto ostentao das virtudes como tipos ou modelos de aes boas, quanto a pregao dos Dez Mand mentos, nos quais a boa ao no indicada mas prescrita. No importante que os Dez Mandamentos geralmente probam aes viciosas em vez de ordena r aes virtuosas. O mandamento "Honrai pai e me" ordena a virtude do respeito.

Em vez de agitar conflitos artificiais entre dois modos de considerar a moral, e ntre a tica das virtudes e a tica dos deveres, bem mais til e razovel comear a se da conta de que estas duas morais representam dois pontos de vista diversos, mas no opostos, a partir dos quais se pode julgar o que bom e o que mau na conduta dos homens considerados em si mesmos e em suas relaes recprocas. A clara contraposio entre elas, como se uma tica exclusse a outra, depende unicament e de um erro de perspectiva do observador. Tanto uma quanto a outra tm por objeto a ao boa, entendida como ao que tem por motivo a busca do Bem e por fim a sua obteno. Com a seguinte diferena: a primeira descreve, indica e prope a ao boa como exemplo; a segunda a prescreve como um comportamento que se deve ter, como um dever. Os tratados sobre as virtudes e os tratados De officiis se integram reciprocamen te, seja na reflexo terica sobre a moral, seja no ensinamento moral, assim como se integram, e no se contrapem, no ensinamento escolar da moral, do qual somos desti natrios desde a infncia, o catlogo das virtudes cardeais e o catlogo das obras de mi sericrdia, propostas, como recordamos bem, em forma de preceitos. Da tradio da tica das virtudes nascem as vidas dos homens ilustres, dos heris, dos s antos, que induzem ao bem-fazer indicando exemplos de homens virtuosos; da tica d as regras nasce o gnero do catecismo que induz ao bem-fazer propondo modelos de ao boa. Sua eficcia diversa, cumulativamente, no alternativamente. Em vez de contrapor virtudes a regras, seria bem mais sbio analisar a relao entre e las, as diversas e no opostas exigncias prticas de que nascem e s quais obedecem. Do mesmo modo e, ao mesmo tempo em que foi exumado o tema das virtudes, que pare cia ter sumido do debate filosfico, tambm foi retomado - mas com um vigor de pensa mento bem distinto, outra vastido de erudio histrica e maior originalidade de result ados, ainda que com uma mesma inteno de polmica antiracionalista - o tema das paixes , por obra de Remo Bodei no monumental volume Geometria das paixes? Com respeito revalorizao da tica das virtudes, a obra de Bodei um pouco o reverso da medalha.

Ao passo que a tica das virtudes ensinava a moderao e, portanto, a disciplina das p aixes ("a pleonaxia, brama insacivel de posse, representava o pecado moral da tica clssica", p.17), Bodei se pe o problema de saber se no se deve rever a anttese paixo versus razo e restituir s paixes o posto que lhes compete na reconstruo e na compreen so do mundo histrico, especialmente da sociedade contempornea, em que os "desejos" ocupam um espao sempre mais amplo, vistos como "paixes de espera dirigidas a bens e a satisfaes imaginadas no futuro" (p. 20). Entre outras coisas, Bodei chama noss a ateno para a distino humana entre paixes calmas ou frias e paixes agitadas ou quent s.

Como se ver, para definir a "serenidade", introduzo a distino entre virtudes fortes e fracas, que simtrica distino de Bodei. Gostaria ainda de acrescentar que uma razo a mais para que se reflita sobre o tem a foi o uso recente, no habitual, da categoria da "serenidade" aplicada ao "direi to", uso com o qual eu, velho leitor de livros jurdicos, jamais me havia deparado . Refiro-me ao livro de Gustavo Zagrebelsky, li diritto mite, diante do qual seria necessrio pr-se preliminarmente a questo: "Sereno, por qu?". Os amigos que me havia m convidado sabiam que eu no hesitaria em escolher a "minha" virtude. Tive alguma incerteza apenas entre "serenidade" [mitezza] e "mansuetude" [mansue tudine]. Escolhi enfim "serenidade" por duas razes. No versculo das bem-aventuranas (Mateus, 5, 5), que em italiano aparece como "Beat i i miti perch erediteranno Ia terra" ["Bem-aventurados os mansos, porque deles s er a terra"], o texto latino da vulgata fala em mites e no em mansueti. No sei por que se decidiu adotar esta traduo: um dos vrios problemas que deixo em su spenso e de que est repleto este meu discurso meio despretensioso. A segunda razo que "manso" [mansueto], ao menos originariamente, aplicado a anima is e no a pessoas, mesmo que depois, como uma analogia, tambm tenha passado a ser aplicado a pessoas. (Mas o mesmo vale para mites' mite como um cordeiro. O animal, porm, manso porque domesticado, ao passo que o cordeiro smbolo da sereni dade por sua prpria natureza.) O argumento decisivo vem dos verbos respectivos: a mansar, amestrar ou domesticar referem-se quase exclusivamente aos animais, e de fato se diz "amansar um tigre" e s para fazer piada se diz "amansar (mansuafare) a sogra". Em Dante, Orfeu domesticava as feras. "Mitigar", que vem de mite, ref ere-se, ao contrrio, quase exclusivamente a atos, atitudes, aes e paixes humanas: mi tigar o rigor de uma lei, a severidade de uma condenao, a dor fsica ou moral, a ira , a clera, o desdm, o ressentimento, o ardor da paixo. Pego esta frase de um dicionrio: "Com o tempo, o dio entre as duas naes se mitigou". No se poderia dizer "se amansou": seria risvel. Quanto aos dois substantivos abstratos que designam as respectivas virtudes, "ma nsuetude" e "serenidade", eu diria (mas mais uma impresso que uma convico, pois no e stou fazendo um discurso rigoroso) que a serenidade alcana maior profundidade. A mansuetude est mais na superfcie. Ou melhor, a serenidade ativa; a mansuetude, passiva. Ainda: a mansuetude mais uma virtude individual; a serenidade, mais uma virtude social.

Social precisamente no sentido em que Aristteles distinguia as virtudes individua is, como a coragem e a temperana, da virtude social por excelncia, a justia, que di sposio boa dirigi da aos outros (ao passo que a coragem e a temperana so disposies bo s somente no que diz respeito prpria pessoa). Explico-me: a mansuetude uma dispos io de esprito do indivduo, que pode ser apreciada como virtude independentemente da relao com os outros. O manso o homem calmo, tranqilo, que no se ofende por pouca coisa, que vive e deix a viver, que no reage maldade gratuita, no por fraqueza, mas por aceitao consciente do mal cotidiano.

A serenidade , ao contrrio, uma disposio de esprito que somente resplandece na presen do outro: o sereno o homem de que o outro necessita para vencer o mal dentro de si. Num filsofo turinense, Carlo Mazzantini, pouco conhecido hoje em dia e pertencent e a uma gerao anterior minha, e que eu aprendi a admirar por sua profunda vocao filo sfica, no obstante a diferenciao no modo de entender a tarefa do filsofo, encontrei u m elogio e uma definio da serenidade que me sensibilizou: a serenidade a nica supre ma "potncia" [vejam bem: a palavra "potncia" usada para designar a virtude que faz pensar no contrrio da potncia, na impotncia, ainda que no resignada] que consiste e m "deixar o outro ser aquilo que ". Acrescentava: "o violento no predomina porque retira dos que violenta o poder de se doar. Predomina, porm, aquele que possui a vontade, a qual no se rende violncia, mas sere nidade". Portanto: "deixar o outro ser aquilo que " virtude social no sentido prpr io, originrio, da palavra. Ainda uma observao lingstica. Mite e mitezza so palavras que somente a lngua italiana herdou do latim. No o francs, que tem, porm "mansuetude". O francs tem doux (e douceur) para quase to dos os casos em que os italianos usam mite: um caractre doux, um hiver doux. Quando Montesquieu contrape o povo japons, de carter atroz, ao povo indiano de carte r doux, ns traduzimos doux por mite, e a palavra nos parece bastante precisa, men os genrica. Se dissssemos "dcil" ou "suave" - e podemos faz-lo sem cometer nenhum delito de les a-lngua ptria -, sentiramos como se estivssemos cometendo um francesismo; o que acon tece, por exemplo, com o clebre livro de Beccaria, Dos delitos e das penas, cujo captulo intitulado "A doura das penas" no nos soa muito familiar e que traduzimos p referivelmente por mitezza? Para alm destas notas lexicais, apenas esboadas, mas s uficientes para dar uma idia do tipo de problema que temos pela frente, o tema fu ndamental a ser desenvolvido o da colocao da virtude da serenidade na fenomenologi a das virtudes.

Alm da distino entre virtudes individuais e virtudes sociais, que uma distino clssi existem outras distines que no tomei em considerao, como aquela, igualmente clssica, entre virtudes ticas e dianoticas (a serenidade certamente uma virtude tica), ou co mo aquela, introduzi da pela tica crist, entre virtudes teologais e virtudes carde ais (a serenidade certamente uma virtude cardeal). Parece-me, porm, oportuno intr oduzir uma distino, que no sei se chegou a ser feita por outras pessoas: entre virt udes fortes e virtudes fracas. Entendamo-nos: "forte" e "fraco" no devem ter de modo algum, neste contexto, uma conotao respectivamente positiva ou negativa. A distino analtica, no axiolgica. Melhor que com uma definio, procuro deixar claro o que entendo por "virtudes forte s" e "virtudes fracas" com exemplos. De um lado, existem virtudes como a coragem, a firmeza, a bravura, a ousadia, a audcia, o descortino, a generosidade, a liberalidade, a clemncia, que so tpicas dos potentes (poderemos tambm cham-las de "virtudes reais" ou "senhoriais", e mesmo, s em malcia, de "virtudes aristocrticas"), isto , daqueles que tm o ofcio de governar, dirigir, comandar, guiar, e a responsabilidade de fundar e manter os Estados.

Tanto verdade que essas virtudes tm a oportunidade de se manifestar, sobretudo na vida poltica, e nesta sublimao ou perverso da poltica (segundo contrastantes pontos de vista) que a guerra. De outro lado, existem virtudes - como a humildade, a modstia, a moderao, o recato, a pudiccia, a castidade, a continncia, a sobriedade, a temperana, a decncia, a inocn cia, a ingenuidade, a simplicidade, e entre estas a mansuetude, a doura e a seren idade - que so prprias do homem privado, do insignificante, do que no deseja aparec er, daquele que na hierarquia social est embaixo, no tem poder algum, s vezes nem s equer sobre si mesmo, daquele de que ningum se d conta, que no deixa traos nos arqui vos em que devem ser conservados apenas os dados dos personagens e dos fatos mem orveis.

Chamo de "fracas" estas virtudes no porque as considere inferiores ou menos teis e nobres, e portanto menos apreciveis, mas porque caracterizam aquela outra parte da sociedade onde esto os humilhados e os ofendidos, os pobres, os sditos que jama is sero soberanos, aqueles que morrem sem deixar outra pista de sua passagem pela terra que no uma cruz com nome e data num cemitrio, aqueles de quem os historiado res no se ocupam porque no fazem histria, porque so uma histria diversa, com h minscu o, a histria submersa, ou melhor, a no-histria (mas h muito tempo j se fala de uma mi cro-histria contraposta macro-histria, e quem sabe tambm exista um lugar para eles na micro-histria). Penso nas magnficas pginas escritas por Hegel sobre os homens da histria universal, como ele os chama, os fundadores de Estados, os "heris": so aqu eles a quem lcito aquilo que no lcito ao homem comum, at mesmo o uso da violncia. No h lugar entre eles para os serenos. Azar dos serenos: no ser dado a eles o reino da Terra. Penso nos eptetos mais comuns que a fama atribui aos poderosos: magnnimo, grande, vitorioso, temerrio, ousado, mas tambm terrvel e sanguinrio. Nesta galeria de poderosos, alguma vez foi visto o sereno? Algum poderia me suger ir Ludovico, o Afvel. Mas este um ttulo que concede pouca glria. Para completar estas anotaes, seria til um exame dos livros pertencentes ao gnero li terrio dos Specula principis. Com isto, teramos um elenco completo das virtudes que foram consideradas qualidad es e prerrogativas do bom governante. Consultemos por exemplo A educao do prncipe cristo, de Erasmo (o anti-Maquiavel, a o utra face do "rosto demonaco do poder"). Eis as virtudes mais elevadas do prncipe ideal: a clemncia, a gentileza, a eqidade, a civilidade, a benignidade, e ainda a prudncia, a integridade, a sobriedade, a temperana, a vigilncia, a beneficncia, a ho nestidade. Observem bem: so quase todas virtudes que chamei de "fracas". O prncipe cristo o co ntrrio do prncipe de Maquiavel e do heri de Hegel (grande admirador de Maquiavel). E, no entanto, no encontrei entre elas a mitezza, a no ser quando Erasmo se refere s penas, que deveriam ser "suaves" (mas no est excluda a pena de morte, com base no velho e sempre novo argumento de que preciso amputar o membro infectado para qu e a parte s no fique contaminada). Desde que toda virtude se define melhor quando se tem presente o vcio contrrio, o contrrio de serenidade, quando se diz que uma pe na deve ser "suave", severidade, rigor, donde "serenidade", nesta acepo, poder ser aproximada de "indulgncia". E, por certo, no este o significado que assumi nesta minha apologia.

Opostas serenidade, como eu a entendo, so a arrogncia, a insolncia, a prepotncia, qu e so virtudes ou vcios, segundo as diversas interpretaes, do homem poltico. A serenidade no uma virtude poltica, antes a mais impoltica das virtudes.

Numa acepo forte de poltica, na acepo maquiavlica ou, para ser mais atual, schmittian , a serenidade chega a ser mesmo a outra face da poltica. Precisamente por isso (talvez seja uma deformao profissional), ela me interessa de modo particular. No se pode cultivar a filosofia poltica sem que se procure compreender aquilo que existe alm da poltica, sem que se ingresse, em suma, na esfera do no poltico, sem qu e se estabeleam os limites entre o poltico e o no poltico. A poltica no tudo. A idia de que tudo seja poltica simplesmente monstruosa. Posso afirmar ter descoberto a serenidade na longa viagem de explorao alm da poltica . Na luta poltica, mesmo na democrtica, e aqui entendo por luta democrtica a luta pel o poder que no recorre violncia, os homens serenos ou suaves no tm como participar. Os dois animais-smbolo do homem poltico so - recordemos o captulo XVIII de O prncipe - o leo e a raposa. O cordeiro, o "suave" cordeiro, no um animal poltico: quando muito, a vtima predest inada, cujo sacrifcio serve ao poderoso para aplacar os demnios da histria.

Uma mxima da sabedoria popular diz: "O lobo devora quem se finge de cordeiro". Ta mbm o lobo um animal poltico: o homo homini lupus de Hobbes no estado de natureza o incio da poltica; o princeps principi lupus nas relaes internacionais uma continua dele. Acima de tudo, a serenidade o contrrio da arrogncia, entendida como opinio exagerad a sobre os prprios mritos, que justifica a prepotncia. O indivduo sereno no tem grande opinio sobre si mesmo, no porque se desestime, mas p orque mais propenso a acreditar nas misrias que na grandeza do homem, e se v como um homem igual a todos os demais. Com maior razo, a serenidade contrria insolncia, que a arrogncia ostentada. O indivduo sereno no ostenta nada, nem sequer a prpria serenidade: a ostentao, ou sej a, o exibir vistosamente, descaradamente, as prprias alegadas virtudes, por si s u m vcio. A virtude ostentada converte-se em seu contrrio. Quem ostenta a prpria caridade ressentese da falta de caridade. Quem ostenta a prpria inteligncia geralmente um estpido. Com mais razo ainda, a serenidade o contrrio da prepotncia. Digo "com mais razo" porque a prepotncia ainda pior do que a insolncia. A prepotncia abuso de potncia no s ostentada, mas concretamente exercida.

O insolente exibe sua potncia, o poder que tem de te esmagar do mesmo modo que se esmaga uma mosca com o dedo ou um verme com o p. O prepotente pratica esta potncia, por meio de todo tipo de abusos e excessos, de atos de domnio arbitrrio e, quando necessrio, cruel. O sereno , ao contrrio, aquele que "deixa o outro ser o que ", ainda quando o outro o arrogante, o insolente, o prepotente. No entra em contato com os outros com o propsito de competir, de criar conflito, e ao final de vencer. Est completamente fora do esprito da competio, da concorrncia, da rivalidade e, porta nto tambm da vitria. Na luta pela vida, ele de fato o eterno perdedor.

A imagem que tem do mundo e da histria, do nico mundo e da nica histria em que desej aria viver, a de um mundo e de uma histria em que no h nem vencidos nem vencedores, e isto porque no existem disputas pelo primado, nem lutas pelo poder, nem compet ies pela riqueza, em suma, faltam as prprias condies que permitem a diviso dos homens em vencedores e vencidos. Com isso, no gostaria que se confundisse a serenidade com a submisso.

Quando se deseja delimitar e definir um conceito, pode-se usar tanto o da oposio ( por exemplo, a paz o contrrio da guerra), quanto o da analogia (a paz anloga trgua mas algo diverso da trgua). Emprego este mesmo expediente para chegar a uma iden tificao da serenidade como virtude: depois de t-la definida por contraposio, agora bu sco aperfeioar a definio com base na analogia com as virtudes assim chamadas afins (mas diversas). O submisso aquele que renuncia luta por fraqueza, por medo, por resignao. O sereno, no: refuta o destrutivo confronto da vida por senso de averso, pela inut ilidade dos fins a que tende este confronto, por um sentimento profundo de dista nciamento dos bens que estimulam a cupidez dos demais, por falta daquela paixo qu e, segundo Hobbes, era uma das razes da guerra de todos contra todos, a vaidade o u a vanglria, que impele os homens a quererem ser os primeiros; enfim, por uma to tal ausncia daquela obstinao ou teimosia que perpetua as brigas, e at mesmo as briga s por pouca coisa, numa sucesso de golpes e retaliaes, de "voc me fez isto, eu te fao aquilo", do esprito de revanche ou vingana que conduz inevitavelmente ao triunfo de um sobre o outro ou morte de ambos. No nem submisso nem concessivo, porque a concessividade a disposio daquele que acei tou a lgica da disputa, a regra de um jogo no qual, ao trmino, h um que vence e um que perde (um jogo de soma zero, como se diz na teoria dos jogos). O sereno no gu arda rancor, no vingativo, no sente averso por ningum. No continua a remoer as ofensas recebidas, a alimentar o dio, a reabrir as feridas . Para ficar em paz consigo mesmo, deve estar antes de tudo em paz com os outros. Jamais ele quem abre fogo; e se os outros o abrem, no se deixa por ele queimar, m esmo quando no consegue apag-lo. Atravessa o fogo sem se queimar, a tempestade dos sentimentos sem se alterar, ma ntendo os prprios critrios, a prpria compostura, a prpria disponibilidade.

O homem sereno tranqilo, mas no submisso, repito, e nem mesmo afvel: na afabilidade h certa grosseria ou falta de refinamento na avaliao dos outros.

O afvel um crdulo, ou ao menos algum que no tem tanta malcia para suspeitar da pos malcia dos outros. No tenho dvidas de que a serenidade uma virtude. Mas duvido que a afabilidade tambm o seja, porque o afvel no tem uma relao justa com os outros (e por isso, admitindo-se que seja uma virtude, uma virtude passiva). No se deve confundir a serenidade com a humildade (a humildade elevada a virtude pelo cristianismo). Espinosa define a humildade como "tristitia orta ex eo quod homo suam impotentiam sive imbecillitatem contemplatur" ("tristeza nascida do fa to de que o homem contempla sua impotncia ou fraqueza"), com a tristitia sendo, p or sua vez, entendida como "transitio a maiore ad minorem perfectionem" ("passag em de uma perfeio maior para uma perfeio menor"). Em meu entendimento, a diferena ent re serenidade e humildade est naquela tristitia: a serenidade no uma forma de tris titia, porque bem mais uma forma do seu oposto, a laetitia, entendida precisamen te como a passagem de uma perfeio menor para uma perfeio maior. O sereno hlare porque est intimamente convencido de que o mundo por ele imaginado ser melhor que o mundo em que ele obrigado a viver, e o prefigura na sua ao cotidia na, exercitando precisamente a virtude da serenidade, ainda que saiba que este m undo no existe aqui e agora e talvez no venha a existir jamais. Alm disso, o contrrio da humildade a excessiva aprovao de si mesmo, numa palavra, a vaidade. O contrrio da serenidade, como j disse, o abuso do poder, no sentido literal da pa lavra, o excesso, a pretenso. O sereno pode ser configurado como o antecipador de um mundo melhor; o humilde a penas uma testemunha, nobre mas sem esperana, deste mundo. Muito menos a serenidade pode ser confundida com a modstia. A modstia caracterizada por uma subavaliao, nem sempre sincera e muitas vezes hipcri ta, de si mesmo.

A serenidade no nem subavaliao nem sobreavaliao de si, porque no uma disposio p go mesmo, mas como j disse, sempre uma atitude em relao aos outros e somente se jus tifica no "ser em relao ao outro". No se deve excluir que o sereno possa ser humild e e modesto. Mas as trs caractersticas no coincidem. Sejamos humildes e modestos para ns mesmos. Sejamos serenos diante do nosso prximo. Como modo de ser em relao ao outro, a serenidade resvala o territrio da tolerncia e do respeito pelas idias e pelos modos de viver dos outros. No entanto, se o indivduo sereno tolerante e respeitoso, no apenas isto. A tolerncia recproca: para que exista tolerncia preciso que se esteja ao menos em d ois. Uma situao de tolerncia existe quando um tolera o outro.

Se eu o tolero e voc no me tolera, no h um estado de tolerncia, mas, ao contrrio, pre otncia, Passa-se o mesmo com o respeito.

Cito Kant: "Iodo homem tem o direito de exigir o respeito dos prprios semelhantes e reciprocamente est obrigado ele prprio a respeitar os demais". O sereno no pede, no pretende qualquer reciprocidade: a serenidade uma disposio em relao aos outros q e no precisa ser correspondida para se revelar em toda a sua dimenso. Como de resto a benignidade, a benevolncia, a generosidade, a bienfaisance, que so todas virtudes sociais mas so ao mesmo tempo unilaterais.

Que no parea uma contradio: unilaterais no sentido de que direo de um em relao ao no corresponde uma igual direo, igual e contrria, do segundo em relao ao primeiro. "E o tolero se voc me tolera". Em vez disso: "Eu protejo e exalto minha serenidade - ou minha generosidade, ou minha benevolncia - com relao a voc independentemente do fato de que voc tambm seja sereno - ou generoso, ou benevolente - comigo". A tole rncia nasce de um acordo e dura enquanto dura o acordo. A serenidade um dom sem limites preestabelecidos e obrigatrios. Para completar o quadro, preciso considerar que, ao lado das virtudes afins, exi stem as virtudes complementares, aquelas que podem estar juntas e que, estando j untas, se reforam e se completam reciprocamente.

Em relao serenidade, vem-me mente duas: a simplicidade e a misericrdia (ou a compai ). Com esta advertncia: que a simplicidade o pressuposto necessrio ou quase necessr io da serenidade e a serenidade um pressuposto possvel da compaixo. Em outras palavras, para que algum seja suave preciso que seja simples, e apenas a pessoa serena pode ser bem-disposta compaixo. Por "simplicidade" entendo a capacidade de fugir intelectualmente das complicaes i nteis e praticamente das posies ambguas. Se vocs preferirem, ela pode ser pensada como estando unida limpidez, clareza, re cusa da simulao. Assim entendida, a simplicidade parece-me ser uma precondio, ou melhor, uma predis posio da serenidade. Dificilmente o homem complicado pode estar disposto serenidade: v intrigas, trama s e insdias por toda parte, e conseqentemente tanto desconfiado em relao aos outros quanto inseguro em relao a si mesmo.

Com respeito relao entre serenidade e compaixo, porei o problema da relao entre elas como relao no de necessidade, mas somente de possibilidade: a serenidade pode (no de ve) ser uma predisposio misericrdia. Mas a misericrdia , como diria Aldo Capitini, um "acrscimo", um "ganho". Assim, vis ivelmente um acrscimo que entre todos os seres da natureza somente o homem conhea a virtude da misericrdia. A misericrdia faz parte da sua excelncia, da sua dignidade, da sua unicidade. Quantas so as virtudes que foram simbolizadas com um animal! Dentre tantas outras , algumas daquelas aqui evocadas: simples como uma pomba, suave como um cordeiro , o nobre corcel e a gentil gazela, o leo corajoso e generoso, o co fiel. Vocs j tentaram representar a misericrdia com um animal? Se tentarem, no tero sucesso .

Vico dizia que o mundo civil dos homens nasce do sentimento do pudor, do momento em que os homens, aterrorizados pelo raio de jpiter, abandonaram a Vnus errante e levaram suas mulheres para as cavernas. Tambm podemos admitir que o mundo civil comeou do sentimento do pudor. Mas apenas a misericrdia distingue o mundo humano do mundo animal, do reino da na tureza no humana. No mundo humano, acontece algumas vezes que "a piedade morreu" (para lembrar uma cano dos partigiani, familiar aos que pertencem minha gerao). No mundo animal, a pi edade no pode morrer, porque desconhecida. Sinto-me obrigado a terminar estas rpidas observaes expondo as razes que me levaram, diante do riqussimo catlogo das virtudes, a escolher precisamente a serenidade. b em provvel que muitos leitores pensem que a escolhi porque a considero particular mente consoante a mim mesmo. No, confesso isto candidamente. Gostaria muito de ter a natureza do homem sereno. Mas no assim.

Enfureo-me com freqncia excessiva (tenho acessos de "fria" e no "hericos furores") pa a me considerar um homem sereno. Amo as pessoas serenas, isto sim, porque so elas que tornam mais habitvel este nos so "cercado", a ponto de fazerem com que eu pense que a cidade ideal no aquela fa ntasiada e descrita nos mais minuciosos detalhes pelos utpicos, onde reinaria uma justia to rgida e severa que se tornaria insuportvel, mas aquela em que a gentileza dos costumes converteu-se numa prtica universal (como a China idealizada pelos e scritores do sculo XVIII). Assim como eu a apresentei, provvel que a serenidade te nha adquirido a qualidade de uma virtude feminina. No tenho qualquer dificuldade em admitir isso. Sei que causo um desprazer s mulheres que lutam contra o secular domnio do homem s e digo que a serenidade sempre me pareceu desejvel justamente por sua feminilidad e. Creio que estaria destinada a triunfar no dia em que se realizasse a cidade das mulheres (no a de Fellini, naturalmente). Por isso, nunca encontrei nada mais ted ioso que o grito das feministas mais intransigentes: "Recuem, recuem, as bruxas esto voltando!"." Posso compreender o sentido polmico de uma expresso como esta, ma s ela bastante desagradvel. A escolha da serenidade no , portanto, biogrfica. Por si mesma, trata-se de uma escolha metafsica, porque afunda suas razes numa con cepo do mundo que eu no saberia justificar. Mas do ponto de vista das circunstncias que a provocaram, trata-se de uma escolha histrica: considerem-na como uma reao contra a sociedade violenta em que estamos f orados a viver. No que eu tenha sido to desprendido a ponto de acreditar que a histria humana tenha sido sempre um idlio: Hegel uma vez a apresentou como "um imenso matadouro". Mas agora existem os "megatons", e estes so uma novidade absoluta no "destino da ter

ra" (para repetir o ttulo do livro de Jonathan Schell). Agora, dizem os especiali stas, com as armas acumuladas nos arsenais das grandes potncias, possvel destruir vrias vezes a Terra. Que isto seja possvel no significa que deva necessariamente acontecer. Ainda que a guerra atmica eclodisse, dizem os especialistas, a Terra no seria de f ato completamente destruda. Mas pensem um pouco: que oriza so estes malditos ao contrrio, no sculo ntre os dois grandes que ada. cansao, comear tudo de novo, desde o incio! O que me aterr megatons unidos vontade de potncia que no se reduziu e que, XX, no sculo das duas guerras mundiais e da guerra latente e durou quarenta anos, parece ter aumentado e sido sublim

Mas no h apenas a vontade de potncia dos grandes. H tambm uma vontade de potncia dos pequenos, a do criminoso isolado, do minsculo gru po terrorista, daquele que joga uma bomba onde h multides para que morra o maior nm ero possvel de gente inocente, num banco, num trem lotado, na sala de espera de u ma estao ferroviria. vontade de potncia daqueles que se reconhecem nesta auto-apolog ia: "Eu, pequeno homem insignificante e obscuro, assassino o homem importante, u m protagonista do nosso tempo, e ao mat-lo me torno mais potente do que ele; ou m ato num s golpe muitos homens insignificantes e obscuros como eu, mas absolutamen te inocentes; assassinar um culpado um ato de justia, matar um inocente a suprema manifestao da vontade de potncia". Vocs compreenderam: identifico o sereno com o no violento, a serenidade com a recusa a exercer a violncia contra quem quer que sej a. A serenidade , portanto, uma virtude no poltica. Ou mesmo, neste nosso mundo ensangentado pelo dio provocado por grandes e pequenos potentes, a anttese da poltica. Parte I tica e poltica Como se pe o problema De uns anos para c, na Itlia, os discursos sempre mais freqentes sobre a questo mora l tm voltado a propor o velho tema da relao entre moral e poltica. Velho mas sempre novo tema, pois nenhuma questo moral- proposta em qualquer campo - encontrou at hoje soluo definitiva. Ainda que mais clebre pela antigidade do debate, pela autoridade dos escritores qu e dele participaram, pela variedade dos argumentos empregados e pela importncia d o tema, o problema da relao entre moral e poltica no distinto daquele entre a moral e todas as demais atividades do homem. Isso nos induz a falar habitualmente de uma tica das relaes econmicas, ou, como tem sido o caso nos ltimos anos, de uma tica do mercado, de uma tica sexual, de uma tica mdica, de uma tica esportiva, e assim por diante.

Em todas essas diferentes esferas da atividade humana, trata-se sempre do mesmo problema: a distino entre aquilo que moralmente lcito e aquilo que moralmente ilcit . O problema das relaes entre tica e poltica mais grave porque a experincia histrica

trou, ao menos desde o contraste que contraps Antgona a Creonte, e o senso comum p arece ter pacificamente aceitado, que o homem poltico pode se comportar de modo d issonante da moral comum, que um ato ilcito em moral pode ser considerado e aprec iado como lcito em poltica, em suma, que a poltica obedece a um cdigo de regras, ou sistema normativo, que no se coaduna e em parte incompatvel com o cdigo de regras, ou sistema normativo, da conduta moral. Quando Maquiavel atribui a Cosmo de Mdici (e parece aprovar) a mxima de que os Est ados no se governam com os pater nos ter nas mos, demonstra considerar, e dar por admitido, que o homem poltico no pode desenvolver a prpria ao seguindo os preceitos d a moral dominante, que numa sociedade crist coincide com a moral evanglica. Para chegar a dias mais atuais, num drama bem conhecido, As mos sujas, Jean-Paul Sartre sustenta - ou melhor, faz com que um de seus personagens sustente - a tes e de que quem desenvolve uma atividade poltica no pode deixar de sujar as mos (de l ama ou mesmo de sangue). Portanto, por mais que a questo moral esteja presente em todos os campos da conduta humana, quando aparece na esfera da poltica acaba por assumir um carter particularssimo. Em todos os outros campos, a questo moral consiste em discutir qual a conduta mor almente lcita e, vice-versa, qual a ilcita, e se for o caso, numa moral no sem rigo r, qual a indiferente, nas relaes econmicas, sexuais, esportivas, entre mdico e paci ente, entre professor e aluno, e assim por diante. A discusso versa sobre quais seriam os princpios ou as regras que respectivamente os empresrios ou os comerciantes, os amantes ou os cnjuges, os jogadores de pquer o u de futebol, os mdicos e os cirurgies, os educadores devem seguir no exerccio de s uas atividades.

O que no est geralmente em discusso a prpria questo moral, ou melhor, se existe ou n uma questo moral, se em outras palavras ou no plausvel pr-se o problema da moralidad e das respectivas condutas. Tomemos, por exemplo, o campo da tica mdica e mais em geral da biotica, no qual h an os ferve um debate particularmente vigoroso entre os filsofos morais: a discusso a nimadssima quanto licitude ou ilicitude de certos atos, mas ningum cogita de negar o problema mesmo, isto , que no exerccio da atividade mdica surgem problemas que t odos os que com eles lidam esto acostumados a considerar morais, e ao assim consi der-los entendem-se perfeitamente entre si, ainda que no se entendam quanto a quai s so os princpios ou as regras a serem observados e aplicados. Passa-se o mesmo na disputa corrente sobre a moral idade do mercado.' Apenas ond e se sustente que o mercado como tal, na medida em que um mecanismo racionalment e perfeito, embora de uma racionalidade espontnea e no refletida, no pode ser subme tido a qualquer avaliao de ordem moral, que o problema acaba por ser posto de modo semelhante quele em que se ps tradicionalmente o problema moral em poltica. E ainda assim com esta diferena: mesmo nas avaliaes do mercado mais sem preconceitu o, em termos morais, jamais se chegar a sustentar consciente e raciocinadamente a imoralidade do mercado, mas no mximo a sua pr-moralidade, ou amoralidade, ou seja , no tanto a sua in- compatibilidade com a moral quanto a sua exterioridade a qua l- quer avaliao de ordem moral. O amigo intransigente do mercado no tem qualquer necessidade de afirmar que o mer cado no se governa com os pater noster. Quando muito, afirma que ele no se governa de modo algum. Naturalmente, o problema das relaes entre moral e poltica apenas tem sentido se se est de acordo em considerar que exista uma moral e se se aceitam em geral alguns

preceitos que a caracterizam. Para se estar de acordo sobre a existncia da moral e sobre alguns preceitos bem g erais, negativos como "neminem laedere" ("No lesar ningum"), positivos como "suum cuique tribuere" 'Dar a cada um o que seu"), no preciso estar de acordo sobre seu fundamento, que o tema filosfico por excelncia em torno do qual as escolas filosfic as sempre se dividiram e continuaro a se dividir. A relao entre ticas e teorias da tica bastante complexa, e pode- mos nos limitar aqu i a dizer que o desacordo sobre os fundamentos no prejudica o acordo sobre as reg ras fundamentais.

Na melhor das hipteses, pode-se esclarecer que, quando falamos de moral em relao po ltica, estamos nos referindo moral social e no individual, isto , moral que diz re peito s aes de um indivduo que interferem na esfera de atividade de outros indivduos e no moral que diz respeito s aes relativas, por exemplo, ao aperfeioamento da prpr personalidade, independentemente das conseqncias que a busca deste ideal de perfeio possa ter para os outros. A tica tradicional sempre distinguiu os deveres para com os demais dos deveres pa ra consigo prprio. No debate sobre o problema da moral em poltica, vm tona exclusivamente os deveres para com os outros. A ao poltica pode ser submetida ao julgamento moral? Diferentemente do que ocorre em outros campos da conduta humana, na esfera da po ltica o problema posto tradicionalmente no diz respeito a quais so as aes moralmente lcitas ou ilcitas, mas sim questo de saber se haveria sentido em se propor o proble ma da licitude ou ilicitude moral das aes polticas. Para dar um exemplo que ajuda a compreender melhor: no h sistema moral que no conte nha preceitos voltados a impedir o uso da violncia e da fraude. As duas principais categorias de crimes previstas em nossos cdigos penais so os cr imes de violncia e de fraude. Num clebre captulo de O prncipe, Maquiavel sustenta que o bom poltico deve conhecer bem as artes do leo e da raposa. Mas o leo e a raposa so o smbolo da fora e da astcia. Nos tempos modernos, o mais maquiavlico dos escritores polticos, Vilfredo Pareto, que, nesta condio, foi includo entre os maquiavlicos num livro bem conhecido, recent emente reeditado. Sustenta tranqilamente que os polticos so de duas categorias: aqueles em que preval ece o instinto da persistncia dos agregados, e estes so os maquiavlicos lees, e aque les em que prevalece o instinto das combinaes, e estes so os maquiavlicos raposas. Numa clebre pgina, Croce, que era admirador de Maquiavel e de Marx por sua concepo r ealista da poltica, desenvolve o tema da "honestidade poltica", comeando o discurso com as seguintes palavras, que no necessitam de comentrio: "Outra manifestao da vul gar falta de inteligncia acerca das coisas da poltica a petulante exigncia que se f az de honestidade na vida poltica". Depois de esclarecer que se trata de um ideal que canta na alma de todos os imbecis, explica que "a honestidade poltica nada m ais que a capacidade poltica". A qual, acrescentamos ns, aquela que Maquiavel cham ava de virt, que, como todos sabem, nada tem a ver com a virtude de que se fala n os tratados de moral, a comear da tica a Nicmacos, de Aristteles.

Destes exemplos, que poderiam ser multiplicados, parece ficar evidente que no se poderia tirar outra concluso que no a da impossibilidade de se pr o problema das re laes entre moral e poltica nos mesmos termos em que se pe o problema da moral nas ou tras esferas da conduta humana. No que no tenham existido teorias que sustentaram a tese contrria, qual seja, a tes e de que tambm a poltica subjaz, ou melhor, deve subjazer, lei moral, mas elas jam ais conseguiram se afirmar com argumentos muito convincentes e acabaram por ser consideradas to nobres quanto inteis.

O tema da justificao Mais que argumentao acerca da moralidade da poltica, destinada ter escassa fora persuasiva, a maior parte dos autores que se ocuparam da questo deu mais importncia s lies da histria e da experincia comum, das quais se extrai o ap endizado da separao entre moral comum e conduta poltica, e concentrou sua ateno em te ntar compreender e, em ltima instncia, justificar esta divergncia. Penso que toda a histria do pensamento poltico moderno, ou ao menos grande parte d ela, pode ser resumida na busca de uma soluo do problema moral em poltica, interpre tando-a como uma srie de tentativas de dar uma justificao para o fato, em si mesmo escandaloso, de que existe um evidente contraste entre moral comum e moral poltic a. Quando os escritores polticos assumem tal atitude diante do problema, no se propem a prescrever o que o poltico deve fazer. Abandonam o campo preceptista e se pem num terreno diverso, o da compreenso do fenm eno. Acolhendo a distino hoje corrente entre tica e metatica, a maior parte das minuciosa s indagaes sobre a moralidade da poltica, de que rica a filosofia poltica da era mod erna, predominantemente de metatica, ainda que no se possam excluir reflexes secundr ias, nem sempre intencionais, sobre tica. Falo em "justificao" depois de ter avaliado bem a situao. A conduta que precisa ser justificada a que no est conforme as regras. No se justifica a observncia da norma, isto , a conduta moral. A exigncia da justificao nasce quando o ato viola ou parece violar as regras sociai s geralmente aceitas, no importa se morais, jurdicas ou do costume. No se justifica a obedincia, mas a desobedincia, e isto se se considera que ela ten ha algum valor moral. No se justifica a presena numa reunio obrigatria, mas a ausncia. Em geral, no h nenhuma necessidade de se justificar o ato regular ou normal, mas n ecessrio dar uma justificao ao ato que peca por excesso ou por falha, sobretudo se se deseja salv-lo. Ningum pede uma justificao para o ato da me que se atira no rio para salvar o filho que est para se afogar. Mas pretende-se obter uma justificao se ela no faz isso. Um dos maiores problemas teolgicos e metafsicos, o problema da teodicia, nasce da c onstatao do mal no mundo e na histria.

Cndido no se preocupa em justificar a existncia do melhor dos mundos possvel: sua ta refa , eventualmente, a de explicar ou demonstrar o fato de que o mundo assim e no de outro modo. Reconheo que, diante da vastido do tema, estou me propondo uma tarefa muito modest a. Penso que talvez possa ser de alguma utilidade apresentar, guisa de introduo, um " mapa" das diversas e opostas solues que historicamente foram dadas para o problema da relao entre tica e poltica. Trata-se de um mapa certamente incompleto e imperfeito, porque est submetido poss ibilidade de um duplo erro: com respeito classificao dos tipos de soluo bem como ao enquadramento das diversas solues neste ou naquele tipo. O primeiro erro de natureza conceitual, o segundo de interpretao histrica. Trata-se, portanto, de um mapa a ser revisto a partir de ulteriores observaes. Mas creio estar em condies de oferecer ao menos uma primeira orientao a quem, antes de se aventurar num terreno pouco conhecido, deseje conhecer todas as vias que o atravessam.

Todos os exemplos so extrados da filosofia poltica moderna, a partir de Maquiavel. verdade que a grande filosofia poltica nasce na Grcia, mas a discusso do problema d as relaes entre tica e poltica s se torna particularmente aguda com a formao do Esta moderno, recebendo ento pela primeira vez um nome que nunca mais a abandonar: "razo de Estado". Por qual motivo? Agrego algumas razes, ainda que com muita cautela.

O dualismo entre tica e poltica um dos aspectos do grande contraste entre Igreja e Estado, um dualismo que no podia nascer seno com a contraposio entre uma instituio c ja misso a de ensinar, anunciar, recomendar leis universais de conduta, reveladas por Deus, e uma instituio terrena cuja tarefa a de assegurar a ordem temporal nas relaes dos homens entre si.

O contraste entre tica e poltica na era moderna se resolve, na realidade, desde o princpio, no contraste entre a moral crist e a prxis daqueles que desenvolvem ao polt ca. Num Estado pr-cristo, onde no existe uma moral institucionalizada, o contraste meno s evidente. O que no quer dizer que o pensamento grego o ignore: basta pensar na oposio entre a s leis grafas a que apela Antgone e as leis do tirano. No mundo grego, porm, no h uma moral, mas vrias morais. Toda escola filosfica tem sua moral. E onde existem diversas morais com que se pode confrontar a ao poltica, o da relao en tre moral e poltica no tem sentido preciso algum. O que despertou o interesse dos pensadores gregos no foi tanto o problema da relao entre tica e poltica, mas o da relao entre bom governo e mau governo, do qual nasce a distino entre o rei e o tirano.

Esta, porm, uma distino interna ao sistema poltico, que no diz respeito relao en sistema normativo como a poltica e outro sistema normativo como a moral.

Isso ocorreria, porm, nos mundos cristo e ps-cristo. A segunda razo da minha escolha que, sobretudo com a formao dos grandes Estados ter ritoriais, a poltica se revela sempre mais como um lugar em que se explicita a vo ntade de potncia, num teatro bem mais vasto, e portanto bem mais visvel, do que aq uele das lutas citadinas ou dos conflitos da sociedade feudal; sobretudo quando esta vontade de potncia posta a servio de uma confisso religiosa. O debate sobre a razo de Estado explode no perodo das guerras religiosas. O contraste entre moral e poltica se revela em toda a sua dramaticidade quando aes moralmente condenveis (pense-se, para dar um bom exemplo, na noite de So Bartolome u, exaltada entre outros por um dos maquiavlicos, Gabriel Naud) so praticadas em no me da fonte mesma, originria, nica, exclusiva, da ordem moral do mundo, que Deus. Pode-se acrescentar ainda uma terceira razo: somente no sculo XVI o contraste foi assumido como problema tambm prtico, e se procurou dar a ele alguma explicao. O texto cannico ainda uma vez O prncipe, de Maquiavel, em particular o captulo XVII I, que comea com estas palavras fatais: "Todos reconhecem o quanto louvvel que um prncipe mantenha a palavra empenhada e viva com integridade e no com astcia. Entretanto, por experincia, v-se, em nossos tempos, que fizeram grandes coisas os prncipes que tiveram em pouca conta a palavra dada". A chave de tudo a expresso "g randes coisas". Se se comea a discutir em torno do problema da ao humana no mais a p artir do ponto de vista dos princpios, mas do ponto de vista das "grandes coisas" , isto , dos resultados, ento o problema moral muda completamente de aspecto, inve rte-se radicalmente.

O longo debate sobre a razo de Estado um comentrio, que se estendeu por sculos, a e sta afirmao, peremptria e inconfundivelmente verdica: na ao poltica, no so os prin e contam, mas as grandes coisas. Voltando nossa tipologia, depois desta premissa, fixarei ainda uma segunda. Das doutrinas sobre tica e poltica, que enumerarei, algumas tm valor prioritariamen te prescritivo, na medida em que no pretendem explicar o contraste, mas tendem a dar a ele uma soluo prtica. Outras tm um valor prioritariamente analtico, na medida em que tendem no a sugerir como deveria ser resolvida a relao entre tica e poltica, mas a indicar por qual razo o contraste existe. Considero que o fato de no se ter dado conta da diversa funo das teorias acabou por levar a grandes confuses. Por exemplo, no h sentido em refutar uma doutrina prescritiva fazendo observaes de t ipo realista, assim como no h sentido em se opor a uma teoria analtica propondo uma melhor ou a melhor soluo do contraste. Divido as teorias que se dedicaram ao problema da relao entre moral e poltica em qu atro grandes grupos, ainda que eles nem sempre sejam de fato claramente separveis e com muita freqncia confluam um no outro. Distingo as teorias monsticas das dualsticas; as monsticas, por sua vez, em monismo rgido e monismo flexvel; as dualsticas em dualismo aparente e dualismo real. No monismo rgido, incluo os autores para os quais no existe contraste entre moral e poltica porque h um nico sistema normativo, ou o moral ou o poltico; no monismo fl

exvel, entram os autores para os quais existe um nico sistema normativo, o moral, que, no entanto consente, em determinadas circunstncias ou para sujeitos particul ares, derrogaes ou excees justificveis com argumentos pertencentes esfera do razove no dualismo aparente, esto os autores que concebem moral e poltica como dois siste mas normativos distintos mas no totalmente independentes um do outro, ou seja, po stos um sobre o outro em ordem hierrquica; por fim, no dualismo real, incluo os a utores para quem moral e poltica so dois sistemas normativos diferentes que obedec em a diversos critrios de julgamento. Exponho as vrias teorias no sentido da crescente e sempre maior separao entre os do is sistemas normativos. O monismo rgido Existem naturalmente duas verses do monismo rgido, segundo as quais a reductio ad unum obtida resolvendo a poltica na moral ou, vice-versa, a moral na poltica.

Exemplo da primeira a idia, ou melhor, o ideal do prncipe cristo, tpico do sculo XVI to bem representado por Erasmo, cujo livro, A educao do prncipe cristo, de 1515, po tanto mais ou menos contemporneo ao Prncipe de Maquiavel, Retiro o segundo exemplo de Kant. No apndice quele brilhante livro que Pela paz perptua, Kant distingue o moralista p oltico - que ele condena do poltico - moral, que exalta.

O poltico moral aquele que no subordina a moral s exigncias da poltica, mas interpre a os princpios da prudncia poltica de modo a fazer com que eles coexistam com a mor al: "Se bem que a mxima 'A honestidade a melhor poltica' implique uma teoria que a prtica desmente com bastante freqncia, a mxima igualmente teortica 'A honestidade m lhor que qual- quer poltica' todavia infinitamente superior a toda objeo e constitu i a condio indispensvel da poltica". Para um estudioso de moral, pode ser interessan te saber que tanto Erasmo quanto Kant, ainda que partindo de teorias morais dive rsas (quero dizer, de teorias diversas sobre o fundamento da moral), recorrem, p ara sustentar suas prprias teses, ao mesmo argumento, que na teoria tica seria cha mado de "conseqencialidade", ou seja, que leva em conta as conseqncias. Contrariamente ao que afirmam os maquiavlicos, para quem a inobservnca das regras m orais correntes a condio para se ter sucesso, nossos dois autores sustentam que no longo prazo o sucesso chega ao soberano que respeita os princpios da moral unive rsal. como dizer: "Faas o bem, porque este o teu dever; mas tambm porque, independ entemente das tuas intenes, tua ao ser premiada". Como se pode ver, trata-se de um ar gumento pedaggico muito comum, mas no de grande fora persuasiva. Digo mesmo: um argumento fraco, que jamais foi sufragado nem pela histria nem pel a experincia comum. Como exemplo da segunda verso do monismo, quer dizer, da reduo da moral poltica, esc olhi Hobbes. Naturalmente, tambm procederei aqui com todas as cautelas do caso, sobretudo depo is que alguns crticos recentes puseram em destaque aquela que foi chamada de "cla reza plena de confuso" do autor do Leviat e fizeram que o leitor, envolvido e fasc inado pela fora lgica da argumentao hobbesiana, passasse a desconfiar de eventuais i nterpretaes unilaterais. Creio porm que, por certos aspectos, difcil encontrar outro autor em que o monismo normativo s