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Elsa Rocha agosto de 2017
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.
Dissertação de Mestrado
"Direito e Economia"
Elsa Maria Henriques
Martins da Rocha
Aluna n.º: 25664
O ESTADO FISCAL E A CIDADANIA FISCAL
Elsa Maria Henriques Martins da Rocha
Dissertação de Mestrado
“Direito e Economia”
Orientadora: Professora Doutora Paula Rosado Pereira
agosto de 2017
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
iv
À memória
Dos meus pais, pelo orgulho que
sempre demonstraram por mim
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
v
“O desenvolvimento é impossível sem homens rectos, sem
operadores económicos e homens políticos que sintam
intensamente em suas consciências o apelo ao bem
comum.”
Papa Bento XVI. Encíclica Caritas in veritate. Roma,
2009/06/29
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
vi
AGRADECIMENTOS
Agradeço à minha Família e aos meus Amigos, pelo incentivo e compreensão sem
falhas nas minhas numerosas horas de estudo e de reflexão.
Uma palavra especial de gratidão à Senhora Professora Doutora Paula Rosado
Teixeira, Orientadora da presente Dissertação, pela sua disponibilidade e apoio
prestado.
Por último, agradece-se ao Centro de Estudos Fiscais e Aduaneiros da Autoridade
Tributária e Aduaneira, pela prestimosa colaboração dada.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
vii
RESUMO
Na presente Dissertação procuraremos retratar, por um lado, o papel do Estado,
como estrutura política organizacional, que exerce o poder político sobre uma
sociedade que existe em determinado território, no intuito de atingir a finalidade de
promover o bem comum e, por outro lado, o papel dos cidadãos, enquanto membros
ativos e passivos de um Estado.
Na realidade, para exercer as suas funções o Estado necessita obter de recursos
financeiros, legitimando, assim, a imposição da carga fiscal, na medida em que os
impostos constituem a principal fonte de receita estadual. Pelo que, a interferência
do Estado na económica é, assim, uma realidade incontornável.
Em concomitância, uma cidadania fiscal implica que todos suportem o Estado, isto é,
que todos tenham a qualidade de destinatários do dever fundamental de pagar
impostos na medida da respetiva capacidade contributiva.
No Estado contemporâneo, o respetivo campo de atuação foi sucessivamente
ampliado, pelo que, em face das suas inúmeras responsabilidades o Estado tem
inúmeras despesas, às quais acrescem também as responsabilidades que decorrem
da intensificação da circulação de pessoas, produtos, serviços e capitais ao redor do
mundo, que são, necessariamente, financiadas e suportadas por impostos. Por
conseguinte, os impostos, atualmente, têm em vista tanto a satisfação das
necessidades financeiras do Estado para a realização das despesas públicas, como
também são utilizados como instrumento de ação política económica.
Os impostos, no contexto atual de um Estado Social, deixaram de ser, assim, uma
mera fonte de receita para o Estado, passando a ser utilizados como instrumento de
realização de justiça, valendo-se do princípio da capacidade contributiva.
Cumpre assim, analisar algumas questões que abordam a ética fiscal dos poderes
públicos e dos cidadãos obrigados ao pagamento de impostos, refletindo sobre os
princípios ou valores que devem nortear a atuação dos poderes públicos e dos
cidadãos, bem como dos instrumentos de garantia ao seu dispor, para que a relação
fiscal possa ser considerada justa.
Palavras-chave: Estado Social, Cidadania Fiscal, Capacidade Contributiva e Justiça
Fiscal.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
viii
ABSTRACT
In the present dissertation we’ll look to portrait, on one hand, the role of the State as
a political organizational structure that exerts the political power over a society that
exists in any given territory, with the final intent of promoting the common good, and
on the other hand the role of the citizens while active and passive members of a
State.
In reality, to exercise its functions the State needs obtaining financial resources,
therefore legitimating the implementation of the tax burden, in the way that taxes
constitute the primary source of stately revenue. For which the interference of the
State in the economy is therefore an unavoidable reality.
In concomitance a tax citizenship means everyone supports the State, this is, that
everyone holds the status of holders of the fundamental duty to pay taxes within their
respective contributive capacity.
In the contemporary State the respective field of action was successfully amplified,
which, faced with its innumerable responsibilities the State has countless expenses
to which are added as well the responsibilities that come with the intensification of
circulation of people, products, services and capitals worldwide, which are
necessarily funded and supported by taxes. Consequently, taxes presently are made
for both the satisfaction of financial necessities of the State for the realization of
public expenditures, as well as being used as a tool for economical politic action.
Taxes in the present context of a Social State are therefore no longer a mere source
of revenue for the State, but are being used as an instrument of justice by means of
the principal of contributive capacity.
It therefore behooves us to observe a few matters that encompass the taxation ethics
of public powers and the citizens mandated to the payment of taxes, reflecting on the
principles or values which should guide the action of public powers and of the
citizens as well as the instruments of assurance at their disposal so that the fiscal
relation can be considered just.
Key Words: Social State, Tax Citizenship, Contributive Capacity and Tax Justice
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
ix
Índice
PRINCIPAIS ABREVIATURAS UTILIZADAS ............................................................ 1
CAPÍTULO I - INTRODUÇÃO ..................................................................................... 2
1. Escolha do Tema e Metodologia Proposta ......................................................... 3
2. Âmbito e Conclusão .............................................................................................. 5
CAPÍTULO II - O ESTADO FISCAL ........................................................................... 7
1. Considerações Gerais........................................................................................... 8
2. O Estado Fiscal ................................................................................................... 10
3. O Estado e o Imposto.......................................................................................... 13
3.1 O Imposto como Realidade Jurídica ............................................................... 15
3.2 O Imposto como Realidade Económica .......................................................... 15
3.3 O Imposto como Realidade Politica ................................................................ 16
3.4 O Imposto no Absolutismo .............................................................................. 16
3.5 O Imposto nas Doutrinas Liberais ................................................................... 17
3.6 O Imposto no Estado Moderno ....................................................................... 19
4. A Evolução do Estado e o Imposto ................................................................... 21
4.1 As Reformas Fiscais dos Seculos XIX e XX em Portugal ............................... 25
i. A Constituição de 1822 .............................................................................. 25
ii. A Reforma de 1826 ................................................................................... 26
iii. A Reforma de 1922 .................................................................................. 26
iv. A Reforma de 1929 .................................................................................. 27
v. A Reforma de 1933 ................................................................................... 28
vi. A Reforma dos anos sessenta ................................................................. 28
vii. A Reforma de 1989 ................................................................................. 29
5. Justiça Fiscal ....................................................................................................... 32
5.1 Justiça ............................................................................................................. 32
i. A Conceção Liberal .................................................................................... 35
ii.A Conceção Comunitarista ........................................................................ 35
iii.A Conceção Liberal Igualitária .................................................................. 35
5.2 O Estado e a Justiça ....................................................................................... 36
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
x
6. Alguns Problemas Atuais do Estado Fiscal ...................................................... 44
7. Princípios Estruturantes do Sistema Fiscal Português ................................... 49
7.1 Considerações Gerais .................................................................................... 49
7.2 Os Princípios Constitucionais Fiscais ............................................................. 51
7.3 Os Princípios inerentes ao Procedimento Tributário ....................................... 58
7.4 Direito Fiscal Internacional ........................................................................... 64
CAPÍTULO III - A CIDADANIA FISCAL ................................................................... 67
1. Considerações Gerais......................................................................................... 68
2. O Que é a Cidadania Fiscal ? ............................................................................. 69
3. A Ética Fiscal ....................................................................................................... 73
3.1 Ética Fiscal Privada ........................................................................................ 75
3.2 Ética Fiscal Pública ......................................................................................... 76
i.A Liberdade ................................................................................................ 76
ii.A Igualdade ................................................................................................ 78
iii.A Segurança ............................................................................................. 80
iv.A Solidariedade ......................................................................................... 83
4. O DIREITO FUNDAMENTAL DE COBRAR IMPOSTOS ..................................... 85
4.1 Relação Jurídica entre Fisco Imperfeita.......................................................... 86
4.2 Relação Jurídica entre Fisco Perfeita ............................................................. 87
5. Conceção Ético-Jurídica da Justiça Fiscal ....................................................... 87
6. Os Deveres de Cooperação ou Colaboração enquanto Obrigações Acessórias ..... 89
CAPÍTULO IV - A RELAÇÃO JURÍDICA TRIBUTÁRIA........................................... 92
1. Elementos Estruturais da Relação Jurídica-Tributária .................................... 93
1.1 Sujeitos da Relação Jurídica Tributária .......................................................... 94
i.Os Substitutos Tributários ........................................................................... 96
ii.Os Sucessores Tributários ......................................................................... 96
iii.Os Responsáveis Tributários .................................................................... 96
1.2 Objeto e o Facto da Relação Jurídica-Tributária ............................................ 98
1.3 A Garantia da Relação Jurídica-Tributária .................................................... 100
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
xi
2. A RELAÇÃO JURÍDICA-TRIBUTÁRIA .............................................................. 101
2.1 A Relação Jurídico-Tributária Obrigacional .................................................. 102
2.2 A Relação Jurídico Tributária Complexa....................................................... 103
3. A Evolução do Modelo de Gestão do Sistema Fiscal..................................... 104
CAPÍTULO V - CONCLUSÕES .............................................................................. 107
1. Considerações Finais ....................................................................................... 108
BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................... 114
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
1
Principais abreviaturas utilizadas
Art. Artigo
AT Autoridade Tributária e Aduaneira
CC Código Civil
CCI Código da Contribuição Industrial
CDT Convenções para evitar a Dupla Tributação
CIRC Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas
CIVA Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado
CPA Código do Procedimento Administrativo
CPPT Código de Procedimento e de Processo Tributário
CPT Código de Processo Tributário
CRP Constituição da República Portuguesa
DFI Direito Fiscal Internacional
DGAIEC Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o
Consumo
DGCI Direcção-Geral dos Impostos
EBF Estatuto dos Benefícios Fiscais
IRC Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas
IRS Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares
IVA Imposto sobre o Valor Acrescentado
LGT Lei Geral Tributária
N.º Número
OCDE Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico
Pág. Página
RCPITA Regime Complementar do Procedimento da Inspeção Tributária e
Aduaneira
RGIT Regime Geral das Infrações Tributárias
UE União Europeia
v.g. verbi gratia (por exemplo)
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
2
CAPÍTULO I
INTRODUÇÃO
1. Escolha do Tema e Metodologia Proposta
2. Âmbito e Conclusão
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
3
1. Escolha do Tema e Metodologia Proposta
Encontrando-nos a frequentar o Mestrado Profissionalizante em “Direito e
Economia”, e estando em causa a apresentação de uma Dissertação, parece-nos
natural eleger um tema que pudesse refletir, de alguma forma, e sobretudo
enriquecer, a modesta experiência profissional da autora no âmbito do Direito
Tributário. Foi então que chegámos à temática que envolve uma reflexão e
abordagem sobre a questão relativa à relação que se estabelece entre o Estado com
os contribuintes. Pareceu-nos pertinente a escolha do tema “O ESTADO FISCAL E
A CIDADANIA FISCAL”
O homem por natureza é um ser social, não somos apenas indivíduos, pertencemos
a um grupo, somos membros de uma sociedade e relacionamo-nos com os outros.
Ora, a vivência em sociedade implica regras, as quais têm de ser implementadas e
garantidas por uma autoridade superior, conhecida como Estado.
O conceito de Estado tem vindo, progressivamente, a alargar as suas funções e
domínios, em que a realização de um determinado nível de direitos económicos,
sociais e culturais tem por exclusivo suporte financeiro os impostos, como exemplo
no caso português a gratuitidade do ensino básico (Art. 74.º, n.º 2, alínea a) da
Constituição da República Portuguesa (CRP)), dos serviços de saúde (para
determinados pessoas em função do respetivo rendimento), da segurança social
relativamente aqueles que economicamente não podem contribuir para o sistema,
dos serviços de justiça no respeitante aos que não podem suportar a respetiva taxa,
entre outros.
Assim, em face do aumento da intervenção do Estado, tendo em vista a satisfação
das necessidades coletivas dos seus cidadãos, a consequência óbvia foi o
incremento das necessidades financeiras do Estado. Pelo que, se impôs a
implementação de um ramo jurídico dedicado em exclusivo a esta temática: o Direito
Fiscal, que constitui, atualmente, um ramo do Direito Público dotado de autonomia
própria, que regula todo o processo tributário, desde o nascimento até à extinção da
obrigação tributária, tendo como conceito nuclear o imposto.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
4
De igual modo, a complexidade fiscal dos atuais sistemas fiscais e do fenómeno
tributário, revelam, também, a necessidade de se compreender a fiscalidade, para
além da sua dimensão económica. Pelo que, é igualmente necessário compreender
a fiscalidade na sua dimensão histórica, politica, social, institucional e Humana.
Por outro lado, para que tenhamos um Estado Fiscal suportável, implica uma
cidadania cujo preço reside em sermos todos destinatários do dever fundamental de
pagar impostos na medida da respetiva capacidade contributiva.
De igual feição essa cidadania configura um direito dos cidadãos à eficácia fiscal dos
poderes públicos, ou seja, ser adequadamente informado sobre a origem e
aplicação dos recursos públicos, fiscalizando a transformação dos tributos pagos em
obras e serviços.
Em face desta dualidade fiscal, iremos, pois, desenvolver o trabalho no sentido de
fazer uma abordagem à dicotomia entre a existência e autoridade do Estado com a
liberdade e deveres dos cidadãos.
Faremos, assim, uma abordagem da questão da tributação e da relação Estado-
Contribuinte, tentando, na medida do que nos for possível, fazer algumas referências
às circunstâncias e papeis diversos que cada um deles pode assumir em momentos
e contextos diferentes da relação jurídico-tributária.
Não empreenderemos, no entanto, em propor respostas definitivas. Pelo contrário,
prestigiaremos mais as perguntas do que as respostas, no sentido de apresentar
algumas questões, ainda que implícitas, nomeadamente acerca do que exige a ética
tributária dos poderes públicos e a ética fiscal dos cidadãos obrigados ao pagamento
de tributos ?, Que princípios ou valores concludentes e razoáveis devem inspirar a
atuação dos poderes públicos e dos cidadãos tendo em vista alcançar uma relação
jurídica tributária justa ?
E sobre elas apresentar algumas reflexões e comentários.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
5
De facto, a fiscalidade nos Estados Modernos não pode fugir a estas inquietações
éticas, até porque o mundo globalizado mais do que nunca, trouxe a lume o
problema da justificação filosófica das normas fundamentais que regem a ação
humana.
O tema da nossa proposta será desenvolvido em três capítulos distintos: num
primeiro (capítulo II), procederemos ao enquadramento teórico e análise da doutrina
sobre o Estado Fiscal, onde identificaremos algumas competências, funções e meios
ao dispor da AT na prossecução do interesse público, cuidando de explanar se tais
competências ou funções poderão de alguma forma redundar numa violação dos
direitos, liberdades e garantias dos contribuintes; num segundo (capítulo III)
procederemos ao enquadramento teórico e análise da doutrina sobre a Cidadania
Fiscal, onde procuraremos refletir sobre alguns conceitos e abordar quais os
deveres e direitos dos cidadãos e num terceiro (capítulo IV) iremos abordar a
estrutura da relação jurídica tributária, onde identificaremos alguns conceitos e
terminologias, procurando assim contribuir para um melhor entendimento do
procedimento tributário.
2. Âmbito e Conclusão
Importa desde já salientar que pese embora o facto de, em termos latos, nos
referirmos ao Estado e Cidadania Fiscal, a nossa análise limitar-se-á, apenas, ao
período do Estado Moderno.
Atendendo a que a atual estrutura da AT engloba a anterior Direção-Geral dos
Impostos (DGCI) e a extinta Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos
Especiais sobre o Consumo (DGAIEC), as referências a exemplos e legislação
tributária do nosso estudo dizem respeito apenas à DGCI, que faz parte da atual
estrutura orgânica da AT. 1
1 Nos termos do disposto no artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 117/2011, de 15 de Dezembro, que
concretizou a Lei Orgânica do Ministério das Finanças resultou a atual AT. Tendo a sua estrutura e orgânica sido aprovada pelo DL n.º 118/2011, de 15 de Dezembro.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
6
Quanto ao âmbito territorial limitar-nos-emos à apreciação das questões suscitadas
no âmbito do direito interno, por ser esse o espaço geográfico de aplicação das
normas previstas nos diplomas em que o tema se insere.
Por questões que se prendem com o âmbito do trabalho não procederemos,
portanto, à análise comparada em sede de direito internacional.
No que concerne, às considerações de âmbito geral, restringiremos a nossa
apreciação em relação às economias de matriz ocidental.
Por último, não tendo a ousadia de pensar que esta Dissertação nos permite uma
análise completa e global de todas as questões e complexidades subjacentes e
decorrentes do tema a que nos propomos, resta-nos referir que, no que respeita à
temática propriamente dita, não se introduzirá qualquer estudo inovador sobre as
questões suscitadas.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
7
CAPÍTULO II
O ESTADO FISCAL
1. Considerações Gerais
2. O Estado Fiscal
3. O Estado e o Imposto
3.1 O Imposto como Realidade Jurídica
3.2 O Imposto como Realidade Económica
3.3 O Imposto como Realidade Politica
3.4 O Imposto no Absolutismo
3.5 O Imposto nas Doutrinas Liberais
3.6 O Imposto no Estado Moderno
4. A Evolução Estado e o Imposto
4.1 As Reformas Fiscais dos Seculos XIX e XX em Portugal
i) A Reforma de 1832
ii) A Reforma de 1826
iii) A Reforma de 1922
iv) A Reforma de 1929
v) A Reforma de 1933
vi) A Reforma dos anos sessenta
vii) A Reforma de 1989
5. Justiça Fiscal
5.1 Justiça
i) A Conceção Liberal
ii) A Conceção Comunitarista
iii) A Conceção Liberal Igualitária
5.2 O Estado e a Justiça
6. Alguns Problemas Atuais do Estado Fiscal
7. Princípios Estruturantes do Sistema Fiscal Português
7.1 Considerações Gerais
7.2 Os Princípios Constitucionais Fiscais
7.3 Os Princípios inerentes ao Procedimento Tributário
7.4 Direito Fiscal Internacional
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
8
1. Considerações Gerais
Falar de Estado Fiscal é falar de impostos, pois que neste modelo são os impostos
que financiam o Estado.
O homem não consegue viver isolado, não é um ser autossuficiente, é um ser social
que precisa relaciona-se com o seu semelhante e viver em sociedade.
Sendo natural que na vivência em sociedade haja conflitos, desentendimentos e
interesses divergentes e, uma vez que o homem sente necessidade de segurança e
busca a harmonia, para que a sociedade subsista é necessário que os conflitos
sejam resolvidos, o que implica regras, as quais têm de ser implementadas e
garantidas por uma autoridade superior, conhecida como Estado.
O Estado terá surgido, assim, da necessidade de se estabelecer um acordo entre os
indivíduos que vivem em comunidade, com o objetivo de diminuir os conflitos.
Acresce que, com o facto de os cidadãos se relacionarem entre si e viverem em
sociedade, começaram, igualmente, a surgir necessidades coletivas e, em
conformidade surgiu também a necessidade de se estabelecerem regras de
conduta.
Assim, o Estado, como estrutura política organizacional, exerce o poder político
sobre uma sociedade que existe em determinado território.
Em consequência, para atingir a finalidade de promover o bem comum, o Estado
exerce funções para as quais é preciso a obtenção de recursos financeiros.
Pelo que, a interferência do Estado na económica é, assim, uma realidade
incontornável.
Ora, como já referimos, o conceito de Estado tem vindo, progressivamente, a alargar
as suas funções e domínios, bem como, a concretização de um determinado nível
de direitos económicos, sociais e culturais tem por exclusivo suporte financeiro os
impostos. Logo, em face do aumento da intervenção do Estado, tendo como fim a
satisfação das necessidades coletivas dos seus cidadãos, que podemos considerar
de “bens públicos”, por imposição constitucional, a consequência óbvia foi o
incremento das necessidades financeiras do Estado.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
9
Duas linhas de pensamento predominam sobre a forma que o Estado deve assumir:
Por um lado, os defensores de uma forte presença do Estado na ordem económica e
por outro aqueles que que defendem que o Estado deve ter uma intervenção mínima
no mercado.
Ambas as correntes ideológicas, face às situações reais demonstram pontos frágeis.
Experiências passadas comprovam, por um lado, que o monopólio estatal dos
fatores de produção não garante o desenvolvimento económico nem a distribuição
de riqueza. Por outro lado, a ausência do Estado no mercado torna a sociedade
refém dos investimentos privados.
Contudo, quer o Estado vigoroso como o menos interventivo dependem de recursos
financeiros para custear as suas despesas.
Com efeito, o Estado contemporâneo, devido às suas inúmeras responsabilidades
ao nível da saúde, educação, cultura, previdência e assistência social, prestação de
serviços públicos e com as infra-estruturas, têm inúmeras despesas.
A par destas despesas, acrescem também as suas responsabilidades que resultam
da intensificação da circulação de pessoas, produtos, serviços e capitais ao redor do
mundo.
Assim, tendo em conta a difícil realidade orçamental dos Estados contemporâneos
para custear as suas despesas necessita de receitas que poderão ser auferidas a
partir de três fontes distintas:
(i) Patrimonial, representada pelos bens, mobiliário e imobiliário, bem como pela
exploração direta de empresas;
(ii) Crédito, através do recurso a empréstimos;
(iii) Tributária, que assenta na cobrança de impostos.
Nos Estados contemporâneos, as tarefas estaduais hão-de ser, necessariamente,
financiadas e suportadas por impostos.
Com efeito, a quase totalidade dos Estados atuais, do ponto de vista do seu
financiamento, apresentam-se como Estados Fiscais, pois que são,
fundamentalmente, financiados por impostos e não por outro tipo de receitas.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
10
2. O Estado Fiscal
O Estado Fiscal, cujas necessidades financeiras são essencialmente suportadas por
impostos, tem sido (e é) a regra do Estado Moderno.
É, pois, hoje em dia, comum afirmar que o atual Estado é, na generalidade dos
países contemporâneos, e mormente nos desenvolvidos, um Estado Fiscal.
Contudo, este nem sempre se tem apresentado como um Estado Fiscal, havendo,
pois, Estados que claramente configuraram (ou configuram ainda) verdadeiros
Estados proprietários, produtores ou empresariais.
Assim, desde logo importa distinguir o Estado Fiscal do Estado Patrimonial e do
Estado Empresarial.
O Estado Patrimonial constitui a forma característica de financiamento do Estado, na
idade média, que assenta, fundamentalmente, nos rendimentos proporcionados
pelos bens dos Monarcas ou da Coroa.
Não existia uma distinção exata entre os bens privados e os bens que pertenciam à
coroa.
O Estado era tido como propriedade do Monarca e era custeado fundamentalmente
por rendas provenientes dos bens da realeza.
Na idade média, os impostos tinham um carácter extraordinário. Os monarcas
apenas se podiam socorrer deles em situação anómalas que assim o justificassem,
sendo o suporte financeiro da coroa as receitas dos seus bens.
Acresce ainda que, a deliberação da cobrança de impostos tinha de ser aprovada
pelas Cortes, só sendo abandonada a regra de convocação das cortes para a
aprovação dos impostos, mais tarde, no âmbito do processo de reforço e
centralização dos poderes reais, e da construção do Estado Moderno dos séculos
XVI, XVII e XVIII.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
11
Um Estado de tipo patrimonial consubstanciou, também, o Estado absoluto do
iluminismo, que foi predominantemente um Estado não fiscal. Na verdade, o seu
suporte financeiro era fundamentalmente, por um lado, as receitas do seu património
ou propriedade e, de outro, os rendimentos da atividade comercial.
No Estado empresarial, que teve alguma expressão no Estado iluminista e se
concretizou, sobretudo, nos Estados socialistas do Século XX, a forma de
financiamento principal do Estado provem de atividades económicas exercidas pelo
próprio Estado ou mesmo da exploração de matérias-primas.
A sua base financeira assenta, assim, essencialmente nos rendimentos da atividade
económica produtiva por esses Estados monopolizada ou hegemonizada, e não em
impostos lançados sobre os seus cidadãos.
Existem também certos Estados que, em virtude do grande montante de receitas
provenientes da exploração de matérias-primas (petróleo, gás natural, ouro, etc.) ou
até da concessão do jogo (como o Mónaco ou Macau), podem dispensar os
respetivos cidadãos de serem o seu principal suporte financeiro.
Todavia, tendo em conta, que o Estado absoluto foi ultrapassado com o triunfo do
liberalismo bem como os Estados “socialistas” que ainda subsistem ou os Estados
que dependem do petróleo ou do jogo têm carácter manifestamente excecional,
podemos concluir que o Estado Fiscal tem sido a característica dominante do Estado
Moderno.
No Estado Fiscal são os impostos que constituem o principal suporte financeiro do
Estado, tendo em conta a capacidade de pagar dos contribuintes por um lado e a
competência para cobrar impostos pelo Estado, por outro lado.
Posto isto, o sistema fiscal contemporâneo, deve ser eficaz, equitativo e dotado de
instrumentos de garantia.
Eficaz na ação tributária na vertente quer na inspeção, quer na liquidação e na
cobrança de impostos, bem como, no combate à fraude e evasão fiscal, tanto do
ponto de vista da prevenção, como na lógica da reação punitiva.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
12
Equitativo na distribuição dos impostos, por forma a promover a repartição justa dos
encargos tributários e uma redistribuição do rendimento e da riqueza, pela via fiscal,
sem penalizar o esforço nem induzir a ociosidade e, promovendo o investimento e
favorecendo o desenvolvimento económico.
Dotado de instrumentos de garantia, pois que, deve ser justo, no sentido dos
mecanismos ou instrumentos de restituição da legalidade violada pela administração
fiscal, estabelecendo meios de tutela que coloca à disposição dos contribuintes
como forma de reação contra comportamentos abusivos ou ilegais das entidades
administrativas, bem como, de um conjunto de direitos que têm marcada dimensão
protecionista.
A este propósito, o Professor Saldanha Sanches na obra póstuma “Justiça Fiscal”
assina, a propósito do tema da justiça e das garantias dos cidadãos, que «os direitos
e as garantias dos contribuintes, uma das contribuições históricas do Direito Fiscal,
exigem uma concordância prática entre a correcta distribuição dos encargos
tributários (interesse comunitário) e a salvaguarda dos direitos individuais de cada
contribuinte» 2.
À questão das garantias dos contribuintes, o legislador constitucional atribuiu-lhe,
mesmo, dignidade de elemento essencial do sistema fiscal, protegendo-o de
investidas arbitrárias do poder executivo influenciado pelas adversidades da
conjuntura económica.
Este é de facto, uma clara condição de equilíbrio entre o interesse público e os
direitos ou interesses individuais dos cidadãos, obrigados com prestações unilaterais
cujo benefício dificilmente identificam.
Neste contexto, este fator do sistema tributário destaca-se como um elemento
fundamental na aplicação do Direito Fiscal.
Parece-nos assim que, é hoje absolutamente essencial quer no domínio do
cumprimento das obrigações fiscais, quer no controle da legalidade administrativa
conhecer o sistema tributário, ter presente os poderes da administração tributária e
compreender os direitos do contribuinte, no quadro da relação jurídico tributária.
2 José Luís Saldanha Sanches, “Justiça Fiscal”, Fundação Francisco Manuel dos Santos, setembro
2010, pág. 53.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
13
De um lado, através dos princípios e normas que norteiam o procedimento
administrativo, imputando regras de controlo à administração fiscal como meio de
tutela dos direitos do contribuinte.
De outro, através de mecanismos de reação – graciosa e contenciosa – que visem
promover a reposição da legalidade violada por um qualquer ato da administração
tributária.
3. O Estado e o Imposto
Todos os direitos têm custos públicos, como observa Casalta Nabais, em alusão ao
entendimento de Sthephen Holmes e Cass R. Sunstein «Na verdade, todos os
direitos têm custos comunitários, ou seja, custos financeiros públicos. Têm portanto
custos públicos não só os modernos direitos sociais, aos quais toda a gente
facilmente aponta esses custos, mas também têm custos públicos os clássicos
direitos e liberdades, em relação aos quais, por via de regra, tais custos tendem a
ficar na sombra ou mesmo no esquecimento. Por conseguinte, não há direitos
gratuitos, direitos de borla, uma vez que todos eles se nos apresentam como bens
públicos em sentido estrito.».3
Tendo em atenção o que os impostos representam para as liberdades de que
usufruímos, levou à célebre afirmação do Juiz do Supreme Court norte-americano
Olivier Wendell Holmes em 1904: “os impostos são o que pagamos por uma
sociedade civilizada” 4
Os impostos são, assim, o preço pela nossa vida em sociedade. Odiados, mas
necessários para a concretização dos valores da democracia, igualdade e do Estado
Social.
3 José Casalta Nabais, “Por um Estado Fiscal Suportável – Estudos de Direito Fiscal”, Almedina 2005, pág. 21.
4 Idem, pág. 42.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
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O conceito de imposto, como fenómeno simples, torna-o numa «prestação
patrimonial, positiva e independente de qualquer vínculo anterior, definitiva e
unilateral ou sinalagmática, estabelecida por lei a favor de entidades que exercem
funções públicas e para a satisfação de fins públicos, que não constitui sanção pela
prática de actos ilícitos» 5
Resulta, desde logo, desta definição que se trata de uma manifestação clara do
primado da lei, na medida em que nem o sujeito ativo (Estado) pode dispor
arbitrariamente do tributo e da própria relação tributária, como também o sujeito
passivo não pode furtar-se ao seu cumprimento.
Na verdade, o Estado não pode invocar critérios de oportunidade quanto ao
desenvolvimento da relação tributária, pois que em face do primado da lei, cabe a
esta definir previamente, os factos da vida real sujeitos a tributação. Despoletado o
preenchimento de uma norma de incidência, emerge um vínculo jurídico, em
conformidade com o processo formal especifico e nos limites consagrados na lei, do
qual nasce a obrigação do seu cumprimento por parte do sujeito passivo.
A doutrina tem, igualmente, considerado que as obrigações fiscais são relativamente
indisponíveis, pois que, ao contrário do que ocorre nas relações privadas, sobre as
dívidas de imposto não se pode renunciar a elas ou perdoa-las, no todo ou em parte,
nem conceder moratórias para o respetivo pagamento ou aceitar pagamentos
parcelares, exceto nos casos expressamente previstos na lei.
Na ótica do poder, em face da atual função da administração fiscal, não se
desenvolver tanto no segmento da aplicação da lei, mas na verificação e validação
da sua aplicação pelos contribuintes, parece-nos que, como firmam alguns autores,
que o Estado não pode forçar ninguém a nutrir um sentimento de devoção à pátria,
no sentido de querer servir o seu país e ser solidário com os seus compatriotas, mas
pode obrigar a pagar impostos.
5 João Ricardo Catarino, “Para uma teoria Politica do Tributo”, Cadernos de Ciência Técnica Fiscal , n.º 184, Centro de Estudos Fiscais, Lisboa 2009 , 2.ª edição, págs.177.
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3.1 O Imposto como Realidade Jurídica
O Direito Tributário goza atualmente autonomia, em que a relação jurídica-tributária
que se estabelece entre o Estado e os seus cidadãos tem que estar normativizada
em todos os seus aspetos, desde a criação do imposto até à extinção da relação
tributária.
O Facto de o imposto ter como fonte a lei, tal não significa que apenas a sua
exigência radica na lei, mas também que é a própria lei que define os elementos
essenciais do tributo. É à lei que cabe, assim, definir a incidência, as isenções, a
taxa, os procedimentos e garantias dos contribuintes.
A vertente jurídica do imposto reflete-se também na ação tributária, na medida em
que o exercício do direito e cumprimento do estabelecido na lei processam-se, na
via administrativa, nos órgãos do Estado, devendo a respetiva conduta se desenrolar
dentro dos limites definidos na lei, com o fundamento na qual o Estado exerce a sua
autoridade.
3.2 O Imposto como Realidade Económica
O aspeto económico tem também um papel decisivo no estabelecimento das
relações jurídico-tributárias. De facto, ele constitui uma realidade que tem manifesta
importância na ideia do Estado de Direito, interagindo com a realidade política, pois
que ambos são relevantes para o fenómeno riqueza e para com critérios de
repartição, tendo em conta a posição do homem no seu meio.
Atribui-se, assim, aos impostos, uma função reguladora dos desequilíbrios sociais.
Desta forma, a realidade económica contribui, por um lado, para a formação da ideia
de Estado e, por outro, para a criação de um clima de segurança e ordem nas
relações de satisfação das necessidades dos seus cidadãos, gerando efeitos
económicos importantes no atual Estado Moderno, no plano da concorrência, nos
preços, no acesso aos bens condicionando e orientando consumos e propiciando a
redistribuição social da riqueza produzida.
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O fator económico influi, pois, desde o momento da produção de riqueza gerada ao
momento da sua aplicação e consumo, influenciando as opções do Estado que
agrava ou atenua a sua função tributária de acordo com a sua política social.
3.3 O Imposto como Realidade Politica
Muito embora o imposto seja, essencialmente, uma realidade jurídica e de se
projetar e assentar nas realidades económicas, é também uma realidade politica.
O imposto integra-se na organização política da sociedade na medida em que diz
respeito a uma estrutura e organização da coletividade, constituída sob a forma de
Estado e integra a própria ação do Estado, com vista à concretização dos seus fins.
Deste modo, o imposto não consiste apenas um elemento constitutivo da
organização política de uma sociedade e um meio financeiro para a prossecução
das necessidades coletivas, como também constitui um elemento instrumental do
exercício do poder.
Existe, assim, uma intima ligação entre o modelo de tributação e a conceção de
justiça dominante em determinada comunidade, que por sua vez está diretamente
ligada aos ideais políticos do Estado, em cada momento.
3.4 O Imposto no Absolutismo
O poder tem origem divina, logo não se discute. Consequentemente, o Rei tem
poder ilimitado.
O sistema financeiro público assentava fundamentalmente no património público, na
produção de riqueza que esse património gerava.
A base de incidência eram as transmissões de propriedade, as cedências de
possessões e ainda as receitas fiscais resultantes da produção agrícola.
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O princípio da comutatividade ou do imposto por cabeça, não atende à capacidade
contributiva, antes assenta no princípio de que é justo que todos contribuam de
forma igual, pois todos irão receber do Estado o mesmo.
Eram concedidas isenções ao clero e à nobreza.
Até D. José, a preocupação era o controlo das receitas, pois existiam muitas
suspeições de que o que era cobrado não entrava nos cofres do Rei.
Com D. José, a gestão dos recursos públicos, foram objeto de reformas, mas essas
reformas assentavam nos antigos conceitos, não tendo evoluído. Não havia
modernidade nos princípios, continuava a ser um Estado concentrado no antigo
conceito do Rei ter poder divino e ilimitado.
3.5 O Imposto nas Doutrinas Liberais
Com as revoluções liberais (Revolução Inglesa 1640, Revolução Americana 1779 e
Revolução Francesa 1789) passou-se de um sistema patrimonial do Estado para um
sistema assente nas transmissões.
No Estado Liberal a justiça é um principio estruturante, por um lado de carater geral
no sentido das partes para o todo, é o que o todo espera de cada cidadão, um
comportamento integrador (a tender para a agregação) 6, e, por outro lado de carater
particular, “ut des”, isto é, dou-te para que me dês (justiça comutativa).
Foram as doutrinas liberais que sustentaram amplamente a ideia de que o imposto
visava a satisfação financeiras do Estado para a realização das despesas públicas.
O imposto teria, assim, uma função meramente financeira, cabendo-lhe apenas
sustentar o erário público, defendendo-se a não intervenção de Estado na economia.
Não obstante, esta doutrina nunca logrou ser aplicada, na pureza dos seus
conceitos, pois que o Estado nunca deixou de intervir na vida económica nem o
imposto apenas teve uma função meramente financeira.
6 Condutas sociais valorizadas para a revalorização social, são desvalorizados os comportamentos centrífugos.
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Cumpre, contudo, esclarecer que, o papel do tributo, como instrumento do poder,
conheceu diferentes formulações.
Com as doutrinas liberais, assistimos a uma forte restrição das despesas públicas,
em virtude de se considerar que estas deviam ser reduzidas ao mínimo, ao
estritamente necessário para garantir a segurança e a liberdade.
Deste modo, no Estado Liberal, nos termos do qual se impunha a defesa rígida de
um Estado mínimo, apenas lhe compete: i) a proteção da sociedade face à violação
e invasão por outras sociedades independentes; ii) a proteção dos membros da
sociedade face às injustiças e ataques de outros membros; iii) a criação daqueles
serviços que, embora benéficas para a sociedade, não era de esperar que fossem
atrativas para a iniciativa individual, por não serem suscetíveis de gerar lucro.
Não obstante, uma ideia de moderação ou economicidade assim compreendida, que
inevitavelmente impõe e exige a neutralidade económica e social dos impostos, não
tem hoje cabimento e, é em absoluto rejeitada pela realidade, tendo também não
sido totalmente conseguido no Estado Liberal.
Inicialmente a tributação era feita de acordo com um sistema de quotidade, aferido
em função dos serviços públicos utilizados por cada cidadão individualmente ou, em
alternativa, através de uma fórmula que permitisse determinar uma relação de
equilíbrio entre os benefícios recebidos em resultado da atuação do Estado e o
contributo do cidadão para o respetivo custo.
Contudo, esta formulação veio a revelar não ser praticável a sua concretização, pois
que, na prática, não foi possível medir o consumo dos serviços públicos obtidos em
função da posse de rendimentos individuais, para assim, se poder determinar o
índice de tributação.
A doutrina liberal procurou então fixar um conceito de rendimento que, aplicado aos
impostos reais, conduzia à tributação do rendimento líquido e, nos impostos
pessoais, à isenção de um mínimo de existência, do qual viria a resultar o princípio
da capacidade contributiva.
Tinha subjacente um sentido de justiça social, contudo, conduziu também à
necessidade de se estabelecer uma justificação de ordem económica.
Esta teoria tinha, também, implícita a ideia de retribuição ou troca de valores
(medida entre o sacrifício e o benefício).
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Mais tarde com o liberalismo foram, assim, adotados critérios de justiça distributiva.
Sendo certo que todos devem contribuir, só é justo se quando cada um contribuir em
função da sua “fortuna”.
Em síntese, o Estado Liberal, carateriza-se por:
● Concentração do imposto nos poderes do Estado;
● As isenções de carater subjetivo deixaram de existir;
● Nacionalização dos bens da igreja – terras das ordens religiosas e conventos;
● Cedência de títulos aos liberais para que estes possam adquirir as terras que
pertenceram à igreja
● Introdução do princípio da capacidade contributiva.
Por último, importa referir que mesmo nos Estados de matriz socialista, nos quais é,
à partida, negada a propriedade privada, atribuindo-se a qualidade de proprietário ao
Estado dos meios de produção das riquezas e dos meios de satisfação das
necessidades coletivas, o tributo continua a ter relevo, pois que nunca deixou de ser
um elemento da organização e instrumento de ação do Estado, tendo em vista os
nivelamentos das riquezas individuais.
3.6 O Imposto no Estado Moderno
Ao contrário do que sucedia com o Estado Liberal, embora não totalmente
conseguido, o intervencionismo é hoje uma das características do Estado Moderno.
Com feito, o campo de atuação do Estado foi sucessivamente alargado, quer em
relação à direção, coordenação e orientação da economia publica e privada, quer no
que respeita ao planeamento das linhas de ação do Estado, nomeadamente o
incentivo da produção, o nível de preços, condicionamento e/ou atribuição de
concessões.
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Ora, este aumento de funções do Estado e, em consequência, das despesas
públicas, tornou-se necessário adotar medidas tendo em vista a arrecadação de
receitas necessárias, o que foi efetuado designadamente através da criação de
novas tipologias de tributação e o agravamento de taxas.
Ainda, tendo em razões que respeitam à utilização do imposto como instrumento de
ação política económica, para estimular ou incentivar certas atividades e do
desincentivo de outras, ou em função dos resultados tidos por convenientes à
economia nacional, mas a coberto do princípio da igualdade, foram utilizados meios
como forma de estabelecer condições discriminatórias, entre outras, foram
estabelecidas isenções, exclusões, reduções, agravamentos, sobretaxas, adicionais.
Estas medidas discriminatórias, afetam quer as pessoas singulares quer as pessoas
coletivas e geram efeitos económicos relevantes, designadamente no plano da
concorrência, nos preços, no acesso a bens e na satisfação de necessidades,
condicionando e orientando consumos e proporcionando a redistribuição social da
riqueza produzida.
Assim, no plano interno, o imposto influencia desde o momento da produção da
riqueza até ao momento da sua aplicação no consumo, condicionando, assim,
opções.
No plano internacional, o papel do imposto mostra-se influente no sentido da
reafirmação de poderes soberanos, decorrentes da dupla tributação, como também
da União europeia e das situações que estejam abrangidas por mais que um
sistema tributário.
O imposto, encontra, assim, na vertente política um meio de ação por excelência, no
exercício do poder.
Em conclusão, o imposto é a principal fonte de receitas do Estado Moderno, para
fazer face às despesas com a realização dos seus fins (necessidades coletivas) e
suportar as suas estruturas.
Está, também, relacionado com a ideia de poder, sendo essencial para o Estado e
lateralmente para o poder. Poder e tributo, estão, assim, ligados, parecendo-nos
difícil a subsistência de um dissociado do outro.
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Para concluir, resta-nos referir que não existem modelos puros.
Na realidade, nos Estados contemporâneos, as conceções políticas de cariz
ocidental são muito variáveis, bem como, as formas de as corporizar, porém, o
imposto constituem um instrumento de atuação do poder, tanto na vertente política
como na económica e social. Constituindo, ainda, uma realidade sociologicamente
relevante. 7
4. A Evolução do Estado e o Imposto
Pese embora, o nosso trabalho se limite à análise apenas do período do Estado
Moderno, não podemos deixar de fazer uma breve resenha da evolução do Estado e
o Imposto.
O sucessivo desenvolvimento dos modelos e fundamentos dos sistemas fiscais
resulta de um processo evolutivo, pois que as preocupações financeiras remontam
aos mais antigos eventos da civilização humana.
De facto, o imposto e a designada “alergia fiscal” é um binómio antigo.
Os testemunhos arqueológicos revelam já a existência de uma tributação regular
logo nos primórdios do período Protodinástico, na civilização egípcia, cujo início se
situa, perto de 3300 A.C.
Os hieróglifos que chegaram até nós, registam já impostos pagos em linho e azeite
há mais de 5000 anos, segundo o investigador Gunter Dreyer.
Contudo, os primeiros estudos sistematizados de teorização da realidade fiscal,
remontam ao seculo XV, situados nas Republicas Italianas.
Atribuem-se, assim, a Diomede Carafa, F. Guicciardini e Mattheo Palmieri, todos
contemporâneos, o estabelecimento de um conjunto de ideias sobre o sistema fiscal
do Estado.
7 Apenas a título de nota de rodapé, que a valia mais não consente, esclareça-se que não nos iremos
debruçar sobre a temática do Estado Social, pois que a amplitude desta constituiria, por si só, um tema de Dissertação de Mestrado.
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No antigo Egito, Assiria, Babilónia, Medo-Pérsia e Grécia, bem como a expansão
Romana, elegeram o tributo como forma de promover o desenvolvimento do poder
político e o meio de obtenção de meios para a guerra.
Porém o mau uso do tributo como instrumento do poder e da concessão de amplos
privilégios e isenções a classes privilegiadas, podem arrastar o poder em si mesmo
e enfraquece-lo.
De facto, um poder político forte cria e consagra moldes de tributo robustecido e
respetiva aplicação dos mesmos. Enquanto, num poder politico fraco temos um
sistema tributário parco suficiente de valores morais e sociais das suas populações.
Assim, com a movimentação de diversos povos nas fronteiras do Império Romano,
acompanhada da profunda depressão económica, a destruição das classes “médias”
e o agravamento da condição social dos camponeses desencadearam um processo
de desagregação que culminou com a queda do Império Romano.
Pelo que, a partir de certo período (final do Império Romano), por força da regressão
económica em face do desmembramento dos impérios, o papel do tributo
enfraqueceu.
Até à fundação da monarquia, o exercício do poder de tributar, apresentou díspares
formulações de legitimação do tributo.
A Igreja, o senhor local e o soberano disputavam a afetação dos impostos.
Em Portugal, durante a monarquia o poder de lançar impostos conheceu,
igualmente, díspares fórmulas, em função de termos um poder régio forte ou
enfraquecido.
Conhecendo-se, através de forais, avanços e recuos, de centralização do poder
politico, em que os impostos assumiam um papel importante, mas não exclusivo.
Na idade moderna, o renascimento do comércio, trouxe uma nova conceção sobre a
riqueza, o que determinou um forte impulso no plano politico, no sentido de o poder
ser mais central e absoluto.
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Contudo, a luta entre o poder dos soberanos e da igreja veio acentuar a fraqueza do
lado anti racionalista de ambos.
Com o Marquês de Pombal ressaltou o dogma da exclusividade e indivisibilidade do
poder do Estado.
Com o Pombalismo e o despotismo esclarecido os direitos do povo são claramente
negados.
Em Portugal, tal manifestação do poder político gerou forte contestação, não só pelo
peso que a carga tributária representava, como também pela necessidade de uma
maior estruturação jurídica.
Assim, as sucessivas crises do poder político, no plano interno, a crise financeira e
as convulsões de génese ideológica em crescendo, foram-se arrastando e
aprofundaram-se com a revolução liberal de 1820.
Assistiu-se neste período a um progressivo deslocamento dos poderes políticos e
legislativos do soberano para as designadas câmaras representativas.
No percurso para a unificação institucional do poder do Estado surge a distinção
entre Estado e imposto.
Com o liberalismo, o imposto assumiu-se como um verdadeiro direito do Estado,
tendo como contrapartida a necessária sustentação dos serviços públicos.
Este quadro propício à reforma das instituições e o sistema de controlo das receitas
e despesas do Estado, traduziu-se na racionalidade do imposto, ou seja, na criação
de impostos tendo em vista a criação de serviços públicos essenciais.
Não obstante, a ideologia liberal pretendeu recolocar o homem no centro da
atividade social e não o Estado.
Esta fação trouxe à consciência das massas ideais de liberdade e igualdade perante
as leis, incluído as tributárias e a necessidade de separação de poderes e
constituições escritas.
Em Portugal, o legado liberal, não permitiu que se chegasse até ao final do século
com uma situação clara e robusta.
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Embora os ideais liberais tivessem trazido para o plano normativo o imposto para o
âmago do poder, a sua concretização prática demorou cerca de 180 anos, já na
época financeira do Presidente do Conselho, Oliveira Salazar.
Até à reforma tributária de 1922 foi dado parco relevo à fiscalidade nacional. O
direito tributário era visto como mero ramo do direito financeiro.
No Estado Moderno, o imposto integra uma realidade cultural, jurídica e económica
do poder.
A existência de um ideal de justiça constitui um aspeto fundamental do poder político
e a razão de ser do seu exercício.
A administração pública ganhou nos Estados Modernos um papel próprio,
constituindo o sujeito ativo das relações públicas, que desenvolve funções tendo em
vista a satisfação das necessidades coletivas das comunidades.
O poder político comporta limites, neles se incluindo os que se aplicam ao tributo.
O imposto não é um produto do fenómeno política, mas antes um dever de génese
inata à pessoa humana e é nela que se encontra a sua legitimação, bem como os
seus justos limites, sendo a receita que deve condicionar as despesas da
administração pública.
O tributo não pode ser instrumento de legitimação do poder político desligado da
causa dos valores que o suportam
Ora, sendo em função da valoração humana que se aufere a despesa pública. Por
conseguinte o dever de contribuir depende da capacidade contributiva.
Em Portugal, os modelos de Estado existentes, criaram fórmulas de tributação que
não prezavam suficientemente a pessoa humana, os ideais de justo e de
necessidades.
As Constituições adotaram uma formulação fortalecida do princípio da legalidade,
reforçando-o com critérios de reserva de lei absoluta e formal.
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4.1 As Reformas Fiscais dos Seculos XIX e XX em Portugal
No Século XIX a justiça já se encontrava nas mãos do Estado, contudo, as finanças
Continuavam dispersas. O Próprio Ministro não tinha as suas próprias obrigações,
competências e deveres definidos.
Existia um sistema tributário antiquado e ineficiente.
Durante este Século houve sempre uma grande instabilidade, não só a nível
nacional como internacional.
É o Século da revolução Francesa e das ideias.
Em Portugal, foram ao longo deste Século criados vários impostos em face das
conjeturas do reino, e dos problemas de “Défice Orçamental”, como é o caso, por
exemplo, do imposto avulso lançado por D. Maria II, aquando das invasões
francesas.
Nas reformas tributárias do seculo XX em Portugal, quer no contexto do Estado
Novo, quer sob os governos de matriz democrática, o tributo nunca deixou de ser
visto como um fenómeno inerente ao Estado e ao exercício do poder politico.
O Inicio do Século XX é uma época marcada pela forte instabilidade politica bem
patente no facto de entre 1910 e 1922 terem existido sessenta Ministros das
Finanças, dos quais oito apenas no ano de 1915 e cinco em 1922.
O Estado contemporâneo continua a ver o imposto como um valor seu, integrado na
sua estrutura, como um objeto e instrumento de poder e como fator de legitimação
do seu modo de agir.
i. A Constituição de 1822
A Constituição de 1822 institui pela primeira que a lei é a vontade dos cidadãos.
Pelo que, o Parlamento reúne quando os cidadãos entendem existir questões
importantes para discutir e, já não apenas quando o Rei entende reunir as cortes.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
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A natureza divina do Rei, cai, assim, para os cidadãos livres, pois que apenas estes
eram esclarecidos e com quem se podia discutir. 8
À tributação do rendimento não é atribuída grande relevância, pois que havia poucos
assalariados, dado que o país não estava industrializado.
Pelo que, a tributação do património tinha mais peso.
ii. A Reforma de 1826
A Carta Constitucional de 1826 é mais retrógrada que a Constituição de 1822.
A Carta Constitucional marcou um retrocesso em relação aos princípios
democráticos da lei anterior.
O espirito da Carta pode considerar-se conservador, pese embora, se trate de um
conservadorismo esclarecido e evoluído, pois que aceita autolimitar e partilhar o
poder do Rei.
Aos três poderes – legislativo, executivo e judicial – acrescenta um quarto poder, o
moderador, que é a chave de toda organização politica e compete ao Rei.
iii. A Reforma de 1922
A reforma tributária de 1922, assente em critérios de justiça tributária, acolheu os
princípios da generalidade e da progressividade, tendo, no entanto, claudicado na
respetiva concretização e aplicação prática.
O Sistema tributário era uma “manta de retalhos” insipiente, que no fundo não era
um verdadeiro sistema, mas apenas um conjunto de impostos, cujo objetivo se
limitava a arrecadar e em que as garantias dos contribuintes praticamente não
tinham relevância.
8 Nesta época o analfabetismo era quase geral no povo.
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Foi, no entanto, uma reforma inovadora no sentido de que procura, pela primeira
vez, institucionalizar uma lógica com sentido moderno.
Pela primeira vez é contemplado o princípio da tributação real, que implicava
tributação onde houvesse capacidade contributiva, o que para a época era inovador.
Assentava nas obrigações declarativas, pois tinha por base a tributação do
rendimento real e não nos rendimentos normais.
Apesar de se tratar de uma reforma muito avançada para a época, não funcionou
em face de varias vicissitudes, a saber:
(i) A falta de cumprimento das obrigações declarativas devida, fundamentalmente,
ao facto do elevado nível de analfabetismo;
(ii) Ausência de rendimento das populações.
iv. A Reforma de 1929
A reforma tributária de 1929 inseriu-se no quadro de pensamento financeiro clássico.
Defendia o estandarte da tributação do rendimento real e efetivo.
No entanto, era à administração que se reconhecia a titularidade de verdadeiros
atributos de soberania e de poder autoritário.
O poder político invocava princípios inovadores, mas assumia moderação.
A receita veio assumir uma preocupação estruturante, em prejuízo de conferir ao
imposto uma dimensão humana, com poucas preocupações de justiça social, bem
como utilização do tributo como fator redistributivo.
Num contexto de ditadura financeira, trouxe o imposto e a receita para o vértice do
poder centralizando-o e fortalecendo-o, sendo estabelecido um claro rigor
orçamental.
É, em muitos sentidos uma reforma retrógrada em que a justiça sede terreno à
eficácia, sendo o ideal de justiça sacrificado.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
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Do ponto de vista da natureza do Estado, este é de estrutura e de razão, que se
relaciona com os cidadão numa posição de domínio, cabendo ao Estado tratar dos
cidadãos, pelo que estes não têm que se preocupar.
O Estado não discute o poder, logo também não discute o imposto.
É o Estado que fixa o valor do imposto a pagar, pelo que, o cidadão não tem de se
preocupar com o cumprimento de obrigações acessórias e declarativas, sem
preocupação com a capacidade contributiva. Optou-se pela sobrevivência do
Estado, em detrimento dos cidadãos.
v. A Reforma de 1933
Na constituição de 1933, em período de um Estado autoritário, assente na ideia de
unidade nacional e de supremacia do interesse coletivo sobre o interesse individual,
a soberania residia na nação e só tinha como limites a moral e o direito.
Num contexto de centralização das entidades públicas, o Estado era supremo,
velando pelo destino de todos de uma forma absoluta.
A administração era tida como uma realidade que definia a qualidade da situação
jurídica dos funcionários e dos fins da coletividade a que estava subordinada,
incumbindo-lhe acatar e fazer respeitar a autoridade do Estado.
O Ministro das Finanças controlava todas as medidas que envolvessem aumento
e/ou reduções das despesas e/ou arrecadação de receitas.
Tendo sido estabelecido um claro rigor orçamental.
Todos os cidadãos estavam obrigados a contribuir, «conforme os seus haveres»
para os encargos públicos.
vi. A Reforma dos anos sessenta
A reforma tributária dos anos sessenta não alterou, no essencial, o status político,
bem como não alterou a relação entre o tributo e o poder politico.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
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Reforçou, no entanto, o papel da receita fiscal como valor do Estado.
Com efeito, nos anos quarenta, os efeitos da Segunda Guerra Mundial e do pós
guerra, deram início a um período de crescente instabilidade, que nos anos sessenta
fizeram sentir a necessidade de modificar alguns aspetos da administração
financeira do Estado.
Em primeira linha, surge a alteração do sistema tributário com reflexo no plano das
receitas.
Não obstante, o Estado continua a surgir como um bem de natureza transcendente,
sendo o fim último e absoluto, aos quais se subordinam a pessoa humana.
É profundamente marcada já pelos conceitos de harmonização trazidos da OCDE.
Introduz o Imposto das Transações, Contribuição Industrial (dirigido às pessoas
coletivas) e Imposto Complementar (dirigido às pessoas singulares).
Foram publicados sete códigos tributários, tendo todos os impostos de grande
impacto sido estruturados em termos jurídicos, sistemáticos e uniformes, apenas não
sendo abrangido os impostos de selo.
Só com a reforma dos anos sessenta foi atribuída alguma relevância às garantias
dos contribuintes, por influência do CCI.
Foi igualmente publicado o Código de Processo das Contribuições e Impostos, que
constitui uma obra verdadeiramente pioneira na institucionalização do direito
processual tributário.
vii. A Reforma de 1989
Após a reforma do poder politico com a revolução de abril de 1974, o poder politico
deixa de olhar exclusivamente para si. Assumiu-se a realização da justiça social.
Em finais de 1979, já Sousa Franco, pela sua passagem pelo Ministério das
Finanças, intentou reestruturar profundamente o sistema tributário, visando um
Ministério moderno, progressivo e eficiente.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
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Nesse sentido, foram apresentados relatórios preliminares a esse propósito.
Contudo, a instabilidade politica que então se vivia impediu a respetiva conclusão e
concretização.
Com efeito, a instabilidade política de então, impediu mesmo quaisquer progressos
de reformas de fundo. O que só se veio a iniciar em finais de 1985, que no entanto
só foi possível a coberto de imperativos comunitários, designadamente no que
concerne aos impostos gerais e especiais sobre o consumo.
Com a reforma tributária de 1989, como já referimos, eleva-se a justiça social, tendo
o Estado como fim a prossecução dos interesses coletivos.
A reforma de 1989, com a entrada em vigor em janeiro de 1990, trouxe consigo um
novo modelo de tributação propriamente dita, uma reforma na administração
tributária e uma reforma das mentalidades.
Ao nível da reforma da tributação propriamente dita, a par do novo modelo de
tributação geral sobre o consumo, quer no plano do comércio interno quer no
contexto intercomunitário, assentou também na unicidade do tributo ao nível do
rendimento, apoiado na capacidade contributiva.
Foram assim reformados os impostos indiretos (IVA), os impostos sobre o
rendimento (IRS e IRC), e foi criada uma lei processual tributária (CPT) e surgiu a
tributação sobre o património com o aparecimento da Contribuição Autárquica.
O reconhecimento da existência de insuficiência no funcionamento dos modelos de
tributação criados e a necessidade de prosseguir no esforço de ser reconhecido um
quadro de garantias dos contribuintes e melhorar a eficácia da administração fiscal e
alfandegária.
No sentido de modernizar e adaptar a orgânica do setor às novas exigências
tecnológicas e de contribuir para uma melhora dos serviços, nomeadamente
definindo-se objetivos e prioridades, para além da introdução de ajustamentos
legislativos aos códigos tributários já existentes, foi criada uma Lei Geral Tributária e
revisto o CPT.
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Com a criação da LGT, que entrou em vigor em 1 de janeiro de 1999, condensou-se
os princípios gerais do sistema tributário e estabeleceram-se os princípios
fundamentais do direito fiscal português.
Procedeu-se igualmente, à clarificação da posição da administração fiscal na relação
tributária e definiu-se os direitos e deveres dos contribuintes.
Finalmente, veio também definir-se os direitos e deveres da fiscalização tributária.
E, no sentido de adequar à LGT, assim como proceder à harmonização com os
diversos códigos dos impostos, foi revisto o CPT.
Contudo, com a entrada em vigor da LGT, bem como a reforma do Código de
Processo Civil, tornou-se necessário uma extensa e profunda adaptação às suas
disposições dos vários códigos e leis tributárias, nomeadamente do CPT.
Pelo que se impôs proceder à modificação da sistematização e disciplina daquele
diploma, bem como definir objetivos gerais de simplicidade e eficácia, tendo, então,
em sua substituição surgido o CPPT.
Assim, com o Decreto-Lei n.º 433/99, de 26 de outubro, foi revogado o CPT, a partir
da entrada em vigor do CPPT, que ocorreu em 1 de janeiro de 2000.
Visou-se, assim, alterar os mecanismos processuais, tendo em vista garantir uma
maior justiça tributária e alargar o processo tributário em todas as suas vertentes.
Com o RCPIT (atual RCPITA) e RGIT, veio reforçar-se a eficácia do processo
sancionatório fiscal e aduaneiro, pelo reforço dos meios de ação afetos à descoberta
e tratamento dos casos de infração fiscal, no sentido de combater, com celeridade,
as situações de incumprimento das obrigações fiscais consagradas na lei.
Em conclusão, verificamos que, de facto, estas reformas fiscais, vieram consagrar
significativas garantias materiais e processuais.
Não obstante, não podemos deixar de verificar que tiveram, também, na sua génese
a adoção de práticas nos moldes a que a máquina administrativa está habituada.
Assim, ao menor sinal de risco de perda ou oscilação da receita, é o próprio
legislador que, de imediato, consagra alterações no sentido do regresso à obtenção
de receitas normais, quer seja através da abertura do leque de situações que
passam a ser tributadas, quer pelo aumento de situações em que é possível o
recurso a métodos indiciários ou presunções, ou ainda através da limitação ou
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
32
mesmo perda de benefícios fiscais até então consagrados, bem como pela
implementação de regimes de coleta mínima, pelo agravamento de taxas ou pela
criação de regimes de exceção.
Assistimos, assim, que ainda que no plano da teoria se consagrem princípios de
valoração da condição humana e importantes limites à tributação, no plano da
prática qualquer reforma tributária tem em vista um sistema tributário produtor de
receitas, pois que existe uma forte dialética entre o poder e o tributo.
Com efeito, o poder político será tanto mais forte e estável, quanto mais consiga
aplicar corretamente os recursos e promover a justiça, realizar a cobertura das
despesas do Estado e, em simultâneo, realizar a satisfação dos fins públicos e das
necessidades coletivas.
5. Justiça Fiscal
5.1 Justiça
Atento ao que se vem dizendo forçoso será tomar como ponto de partida a justiça,
começando desde logo pelo seu próprio conceito.
No entanto, tentar defini-la não é de todo uma tarefa fácil já que a sua definição varia
consoante o contexto sociocultural em que cada individuo se insere, bem como nas
suas próprias convicções individuais (sejam elas a nível cultural, moral, religioso,
moral ou filosófico). O seu significado tem sido objeto de estudo ao longo do tempo e
de debates intensos, existindo as mais variadas correntes filosóficas e doutrinárias
na definição deste conceito em si controverso. Na tentativa de estabelecer um
conceito básico de justiça, a partir do qual o debate filosófico teria lugar.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
33
Com vista a revelar um pouco desta problemática, tomemos como exemplo o
trabalho desenvolvido por Chaïm Perelman, um dos mais importantes teóricos da
Retórica no Século XX. Perelman distingue entre a “fórmula formal ou abstrata da
justiça” e as “fórmulas concretas da justiça”. Contudo, definindo-a em sentido
abstrato, como um princípio segundo o qual «os seres de uma mesma categoria
essencial devem ser tratados de uma mesma forma»9.
9 Na sua obra "Ética e Direito", Perelman debruçou-se sobre a análise do conceito de "justiça", a
partir de um ponto de vista lógico, vai examinar os diferentes sentidos da noção de justiça concreta, para deles extrair um substrato comum – a igualdade. Para o efeito, identifica seis conceções da justiça concreta (admitindo a maioria delas ainda numerosas variantes), que se afirmaram na civilização ocidental, desde a Antiguidade até nossos dias, a saber: 1) A cada qual a mesma coisa - todos devem ser tratados de igual modo, independentemente de qualquer particularidade distintiva (única concepção puramente igualitária). Perelman critica esta concepção, e, de forma irónica, assinala que, sob este prisma, o único ser perfeitamente justo seria a morte, inexorável e universal.
2) Aa cada qual segundo seus méritos – que exige um tratamento proporcional à presença e ao grau de determinada qualidade (mérito) em cada um. Não se exige, portanto, a igualdade de todos, mas um tratamento proporcional a uma qualidade intrínseca, ao mérito do indivíduo. Para Perelman, partindo-se desta conceção, pode-se chegar a resultados absolutamente distintos, bastando que não se conceda o mesmo grau de mérito aos mesmos atos dos indivíduos. Logo, o que vale é o esforço, a causa da ação e não o seu simples resultado.
3) A cada qual segundo suas obras - que requer um tratamento proporcional ao resultado das ações, sendo que o único critério do tratamento justo é o resultado da ação dos indivíduos. Esta fórmula de justiça é aplicada por exemplo para classificar candidatos num exame ou concurso.
4) A cada qual segundo suas necessidades – tem em vista diminuir o sofrimento daqueles que não têm condiçoes para satisfazer suas necessidades essenciais. Nesta conceção não é tido em consideração o mérito dos indivíduos ou da sua produção, antes visa reduzir o sofrimento daqueles que conseguem satisfazer as suas necessidades essenciais. Pelo que, devem ter um tratamento diferenciado. Para este autor a legislação dos países ocidentais, no século XX, que defendem os direitos sociais e adotaram medidas como o salário-mínimo e o subsidio de desemprego, inspirou-se nesta fórmula de justiça.
5) A cada qual segundo sua posição - a aplicação desta fórmula supõe que os individuos, com os quais se pretende ser justo, estão repartidos por regra, mas não necessariamente, em classes hierarquizadas. Esta conceção assenta na superioridade de indivíduos em resultado da hereditariedade (ou do nascimento), sendo muito usada na hierarquização social das sociedades aristocráticas e esclavagistas, onde as diferenças de tratamento são efetuadas em função de critérios como a raça, a religião e a fortuna.
6) A cada qual segundo o que a lei lhe atribui - o juiz deve aplicar uma regra pré-estabelecida. Existe um sistema pre-estabelecido de regras de direito, razão pela qual em relação aos factos se podem verificar resultados diferentes, conforme o ordenamento jurídico a ser aplicado.
Em todas essas conceções de justiça há um elemento comum: A igualdade de tratamento para seres iguais. Porconseguinte, pode-se definir a justiça formal ou abstrata como um princípio de ação segundo o qual os individuos de uma mesma categoria essencial devem ser tratados da mesma forma.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
34
A discordância e confusão sobre aquilo em que a justiça consiste advêm,
justamente, da necessidade de especificar em fórmulas concretas quais são as
categorias de pessoas que devem ser tratados da mesma forma, assim como o que
significa exatamente “ser tratado da mesma forma”. Podemos considerar todos os
seres humanos como pertencendo à mesma categoria ? Ou podemos introduzir
categorias diferentes ? Podemos ainda especificar diversas modalidades de
tratamento da mesma forma: segundo o mérito, o trabalho, a necessidade, etc ?
Estas são pois algumas das questões que se levantam e cuja resposta não é
certamente fácil e muito menos consensual ou pacífica.
O tema, como assinala o Professor de filosofia política John Rawls, que se refere a
esta questão logo no início da sua obra “Uma Teoria da Justiça”, procedendo à
distinção entre o conceito e as conceções de justiça. Segundo o conceito de justiça, «as
instituições são justas quando não há discriminações arbitrárias na atribuição de direitos
e deveres básicos e quando as regras existentes estabelecem um equilíbrio adequado
entre as diversas pretensões que concorrem na atribuição dos benefícios da vida em
sociedade»10.
O conceito de justiça em Rawls assume, por isso, um conteúdo mais abrangente do
que o alcançado por Perelman. Devendo a justiça compreender instituições nas
quais não há lugar a discriminação arbitrária, mas que, a seu ver, deveriam
estabelecer um equilíbrio quanto aos benefícios, assumindo assim um caráter
institucional, um caráter público e, consequentemente, político e só depois um
procedimento individual.
A conceção contemporânea de justiça tem procurado definir o que significa
rigorosamente ser tratado como igual na atribuição institucional de direitos e
deveres, bem como, definir os aspetos segundo os quais diferentes indivíduos
devem ser tratados como iguais. Verificando-se, atualmente, quando se fala em
igualdade uma grande controvérsia quer quanto ao seu conteúdo quer quanto às
suas implicações.
10 John Rawls, “Uma Teoria da Justiça”, Lisboa, Editorial Presença, 1993, 1.ª Edição, Pág.29.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
35
Quanto a este tema, destacam-se três grandes correntes de conceções de justiça no
pensamento político contemporâneo11: a liberal, a comunitarista e a liberal igualitária,
que se apresentam, como se segue, em resumo útil.
i. A Conceção Liberal
De forma abreviada esta conceção é mais individualista e, por vezes, faz mesmo a
apologia do egoísmo, caraterizando-se por dar ênfase à liberdade negativa, ou de
não interferência externa e coerciva, entendida como proteção de uma esfera
individual inviolável.
A nível económico a questão essencial radica na eficiência dos mercados,
atendendo ao mercado livre e sua proteção.12
ii. A Conceção Comunitarista
Por sua vez, o comunitarismo assenta na ideia segundo a qual os indivíduos não
existem enquanto tal, ou pelo menos não se pode dar sentido à sua existência
autónoma a não ser encarados no seio das suas relações e interações sociais. Para
o comunitarismo, o todo social é real enquanto o individuo é uma construção.
iii. A Conceção Liberal Igualitária
Nesta conceção o modelo liberal igualitário defende a igualdade das liberdades
fundamentais, bem como, a relevância da igualdade de oportunidades e de
distribuição equitativa em termos económicos.
11 Uma vez que o utilitarismo não encerra em si uma conceção de justiça em sentido estrito, ou seja, uma especificação do conceito geral de justiça, não foi propositadamente incluído como uma corrente, nos termos acima citados, não obstante a sua relevância.
12 Robert Nozick, afirma que os indivíduos têm direitos e alguns tão fortes e abrangentes, que suscitam a questão do que, se é que alguma coisa, o Estado e seus funcionários podem fazer. Desta forma, para Nozick, o Estado deve ser mínimo, limitado às funções estritas de proteção contra força, roubo, fraude, imposição de contratos, etc. Para Nozick, é injusto compensar os desfavorecidos em prejuízo das trocas livres, pois que as pessoas são titulares de suas posses, desde que adquiridas justamente, e, nesse sentido, “ser titular” significa “ter um direito absoluto de dispor livremente delas como quiser, contanto que isso não envolva força nem fraude”. O indivíduo é livre para fazer o que quiser com seus recursos, e ninguém terá direito de tirá-los do indivíduo.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
36
Esta ideologia radica numa base individualista, pois que confere prioridade à
igualdade das liberdades, mas, também, é solidária, atendendo ao papel que
reserva à igualização do ponto de partida dos indivíduos, bem como da parte de
riqueza que lhe cabe, enquanto definida pelas regras institucionais da sociedade em
que vivem.
Na filosofia política atual esta conceção está muito associada a uma justificação
neocontratualista, assumida no pensamento de John Rawls.
5.2 O Estado e a Justiça
Em face do que já se disse, a questão da justiça fiscal é, assim, um domínio
privilegiado de juristas, de filósofos e de alguns politólogos, sendo uma questão, em
regra, menos considerada pelos economistas.
Segundo os teoremas da economia do bem-estar a partir do qual se procura definir o
objeto e método de como materializar um padrão de justiça, o mercado apenas
realiza uma afetação eficiente dos recursos. O mercado livre, do jogo da oferta e da
procura tem falhas, mas tende a ser eficiente. Dá a cada um o seu mérito, a sua
sorte.
Embora eficiente, o funcionamento do mercado não é justo. Aí surge a subjetividade
da justiça. Que padrão de justiça deve ser alcançado, o que é que é justo ?
O Contributo dos filósofos remonta, pelo menos, a Aristóteles, com a sua distinção
entre justiça comutativa e justiça distributiva.
O termo “justiça” vem do latim “justitia” que significa conformidade com o direito e
sentimento de equidade.
Aristóteles considera a justiça a maior das virtudes, pois esta visa o “bem do outro” e
como sendo única e exclusiva da sociedade. Pelo que, toda a cidadania está ligada
a um conceito de justiça.
Distingue entre justiça comutativa e justiça distributiva.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
37
A justiça distributiva é a que se observa na distribuição pela polis, isto é, pelo
Estado, de bens, honrarias, cargos, assim como responsabilidades, deveres e
impostos. Assim, a justiça distributiva, comparados dois sujeitos entre si e dois
objetos, será justo, se atingir a finalidade de dar a cada um aquilo que lhe é devido,
na medida de seus méritos. Por conseguinte, o critério utilizado como critério de
justa repartição aos indivíduos é o dos méritos de cada um.
Enquanto que na justiça corretiva, visa o restabelecimento do equilíbrio rompido
entre os particulares: a igualdade aritmética, isto é, desempenha função corretiva
nas relações entre as pessoas.
Segundo Aristóteles, a justiça corretiva necessitava da intervenção de uma terceira
pessoa, responsável por decidir eventuais conflitos nas relações entre as pessoas,
que ficava ao encargo do “dikastés” (juiz). Este era, para Aristóteles, a
personificação da justiça, pois, as pessoas recorrem ao do “dikastés”, como um
intermediário, que irá resolver o conflito, sendo justo para ambas as partes, tratando-
as de maneira igual.
Para John Locke (Séculos XVII-XVIII) os indivíduos no Estado natureza têm direito a
um conjunto de necessidades básicas, que não têm a ver com as liberdades
fundamentais enquanto individuo propriedade.
O que é justo que se realize no meio social para justificar um meio distributivo, para
alocar alguma riqueza e coloca-la ao serviço dos outros. Quem é rico deve pagar
mais porque é socialmente correto ajudar quem precisa, mas não porque o pobre o
mereça. Por conseguinte, é uma ajuda dada não com a perspetiva de melhorar a
condição dos outros, mas antes em proveito próprio, ou seja, como forma de
alcançar a plenitude eterna.
Para Adam Smith (Século XVIII), o pobre deve ser ajudado não porque isso seja
uma forma de realização pessoal de quem ajuda, mas porque o pobre é uma pessoa
que tem direito ao mesmo que qualquer outra pessoa.
Para este filósofo e economista britânico, nas liberdades fundamentais do Estado
natureza não há pobres. Então se no Estado Social eles existem, é porque o modelo
social funcionou mal ou não funciona. Deste modo, os pobres devem ser ajudados
por direito próprio.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
38
Para Kant (Séculos XVIII- XIX), considerado como o principal filósofo da era
moderna, defendeu um conjunto de princípios que legitimam a ação pública.
Segundo ele, os pobres devem gozar de algumas isenções, de tributação reduzida
ou ausência de tributação.
Para Jeremy Benthan, (Séculos XVIII- XIX), filósofo e jurista, todos devem beneficiar
de todos os bens sociais, nenhum lhe deve ser restringido.
Stuart Mill (Século XIX), vem ampliar a questão da distribuição, falando na
distribuição como algo que se impõe ao modelo social, mas que é um direito, é uma
política distributiva e não redistributiva.
Para este filósofo e economista britânico devem ser implementadas politicas para
que todos tenham um padrão de vida social comum.
Para Herbert Spencer (Séculos XIX-XX), nos modelos sociais há sempre ricos e
pobres, aptos e não aptos.
Os inaptos não devem ser ajudados, logo os pobres não devem ser ajudados, é o
chamado Darwinismo social.
Para John Rawls 13 (Século XX), procura desenvolver a teoria da justiça no sentido
do que deve ser garantido aos sujeitos, para garantir o bem social.
Rawls concebe a justiça de uma forma restrita, reservada à distribuição correta de
bens materiais e imateriais mais básicos da sociedade, ocupando-se deste modo
dos chamados bens primários: liberdades, oportunidades, rendimento e riqueza, e
também as bases sociais do respeito próprio (consequência de uma sociedade bem
ordenada).
Os bens sociais primários assumem por isso uma relevância crucial, na medida em
que são aquilo que os cidadãos livres e iguais necessitam para poderem exercer na
prática os seus dois poderes morais: a capacidade para uma conceção do bem e a
capacidade para um sentido de justiça.
13 Em face de John Rawls defender importantes princípios e teorias, e de este ter sido um filósofo influente, que contribuiu para a mudança dos sistemas políticos, e uma vez que o tema justiça é, só por si, bastante vasto, não constituindo o tema da nossa dissertação, apenas iremos abordar a conceção de justiça para este autor do século XX.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
39
Para Rawls a estrutura principal da sociedade é pois o objeto da justiça, sendo
constituída por um conjunto principal de instituições sociais organizadas
singularmente e em conjunto com vista à correta distribuição de direitos e deveres
entre todos.14
Para tanto, Rawls desenvolve as seguintes fórmulas: A primeira formulação de
carater geral, enraizada num princípio relativo à distribuição dos bens primários
através da estrutura básica «Todos os valores sociais – liberdade e oportunidade,
rendimento e riqueza, e as bases sociais do respeito próprio – devem ser
distribuídos igualmente, salvo se uma distribuição desigual de algum desses valores,
ou de todos eles, redundar num benefício para todos»15.
A segunda formulação apresenta-se como uma extensão dos direitos individuais
básicos da primeira formulação, clarificando esses aspetos, assinalando que as
desigualdades sociais e económicas deverão estar em conformidade, com vista a
permitir que:
a) Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais extenso sistema de liberdades
básicas que seja compatível com um sistema de liberdades idêntico para as todas
as outras (Princípio da diferença);
b) As desigualdades económicas e sociais devem ser distribuídas para que,
simultaneamente, se possa razoavelmente esperar que elas sejam em benefício de
todos e, por outro lado, decorram de posições e funções às quais todas tenham
acesso.
Todavia, esta formulação não admite a possibilidade da desigualdade quanto à
distribuição do valor liberdade. Mas Rawls apresenta essa possibilidade quanto aos
aspetos económicos e sociais, pois que diversas experiências em comunidades
utópicas revelaram que ao não ser assim, isto é, não existindo essa desigualdade
como um incentivo, o sistema desmoronaria e a sociedade cairia na pobreza.
Porém, a desigualdade só é admissível caso esteja associada a posições a que
todos tenham acesso.
14 Entende Rawls que se uma estrutura básica estiver delineada de acordo com os princípios de justiça, então a sociedade é justa sejam quais forem os resultados finais obtidos por todos e cada um dos membros da sociedade. Não consistindo a justiça na afetação de bens a pessoas concretas, o que poderia ser arbitrário, mas antes na distribuição através de regras institucionais criadas de forma justa.
15 Vide John Rawls, ob. Cit., pág. 69.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
40
Segundo este autor, a justiça assim concebida, assente nos dois princípios
assinalados, apenas poderá ser aplicada em sociedades que não se encontrem
afetadas por condições de escassez, pois nestas a liberdade não assume uma
prioridade máxima atendendo à falta de bens de primeira necessidade.
As liberdades a que Rawls se refere são civis e políticas, compondo aquilo que,
vulgarmente se deve designar por direitos de cidadania.
Para Rawls o sujeito tem necessidades que se satisfazem através de bens. A
questão que se coloca é como regular o acesso a esses bens, para que se verifique
uma maximização da utilidade dos bens, salvaguardando os interesses dos bens.
Isto faz-se através do mercado, é nele que eu adquiro os bens, é nele que se eu
ofereço as minhas capacidades.
Partindo da ideia de sociedade como um sistema de cooperação, mas também de
conflito entre indivíduos livres e iguais, quais são os princípios da justiça que podem
estabelecer um adequado equilíbrio quanto às revindicações respeitantes às
vantagens e encargos dessa cooperação, quer em termos de direitos e liberdades
básicas, quer ainda em matéria económica e social ?
Rawls procura esclarecer o que é uma sociedade justa de pessoas livres e iguais,
fundada num sistema equitativo e de cooperação.16
Para tanto, a Teoria da Justiça liga ideias básicas de cooperação, liberdade e
igualdade a uma conceção de bens primários, a qual é construída com vista a
formular uma conceção substantiva de justiça, distribuidora de benefícios e encargos
que resulta da cooperação dos cidadãos livres e iguais de forma equitativa.17
16 O modelo societário desenvolvido por Rawls na Teoria da Justiça, tem por base sociedades democraticamente constituídas em toda sua plenitude, o que implica forçosamente tolerância a nível cultural e religioso. Ou seja, Rawls tem em mente sociedades desenvolvidas como são os casos das europeias e norte americanas.
17 Pelo que, os bens sociais incluem as liberdades, as oportunidades de acesso aos poderes e posições sociais, a riqueza e os rendimentos e também o respeito próprio, como consequência indireta de uma distribuição justa dos bens anteriores.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
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Os bens sociais primários são distribuídos por uma estrutura básica da sociedade,
constituída por um conjunto de instituições sociais, as quais funcionam de modo
coordenado entre si. Sendo disso exemplo a constituição politica, os tribunais, as
formas de reconhecimento da sociedade, a natureza da família, a regulação dos
mercados, etc. A estrutura básica assume assim um papel preponderante na sua
teoria, sendo ela o objeto da justiça.18
Cabe ainda, nesta fase, abordar os princípios enformadores dos bens sociais
primários na estrutura básica. Temos assim:
O primeiro dos princípios diz respeito às liberdades de distribuição igualitária, como
sejam o direito de votar, de ser eleito, liberdade de expressão e pensamento,
reunião e associação, direito à liberdade e integridade física e os direitos e
liberdades que especificam o “Domínio da lei”: deve ainda ser garantido de forma
plena, e não apenas formal, o acesso a cargos políticos, condição basilar ao
exercício da cidadania.
O segundo é referente às oportunidades, rendimentos e riqueza subdividindo-se em
duas categorias:
1.ª - Igualdade de oportunidades em sentido liberal, intimamente ligada a um
princípio não discriminatório de acesso a funções e posições na sociedade, em
virtude da “lotaria natural” que cabe a cada individuo em função do nascimento ou
outro qualquer critério. 19
O individuo havia de querer que todos tivessem a mesma medida de direitos e
deveres. Todos devem ter o mesmo conjunto de direitos, o mesmo conjunto de
liberdades, direitos e deveres.
Todos são iguais no merecimento, iguais aos olhos do modelo social.
18 A aplicação da estrutura básica às instituições assenta em regras de âmbito geral, em detrimento de interesses particulares enquanto tal. A formação da justiça na estrutura básica está, assim, intrinsecamente, ligada ao domínio político. O qual compreende as relações entre as pessoas, as famílias, as associações e, ainda, as comunidades específicas mas com objetivos gerais idênticos. Por fim, o domínio político é também o domínio do Estado e como tal do poder coercivo.
19 Neste repto, Rawls, contrariamente a Adam Smith, de modo a poder satisfazer a igualdade
equitativa de oportunidades, determina que haja correções a nível da estrutura básica e não apenas uma simples aplicação de não discriminação, com vista a evitar a concentração de riqueza e propriedade, bem como o acesso à educação, independentemente, do rendimento familiar.
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2.ª – O princípio da diferença, pelo qual se requer que sejam criadas ao nível da
estrutura básica as condições necessárias tendentes a que as diferenças de
rendimento e riqueza sejam usadas para melhorar a situação dos mais
desfavorecidos (aqui se incluem não só aqueles que se encontram diminuídos pela
sua condição económica de nascimento, mas também critérios de outra índole,
como a saúde física e psíquica, a inteligência, a perseverança, os talentos naturais,
etc., os quais não devem reverter apenas para os seus detentores).
Para consagração desse princípio, o Estado deve atuar através de um mecanismo
de incidência negativa de impostos, procedendo, posteriormente e equitativamente,
à sua distribuição em função das necessidades e à correção das assimetrias
assinaladas.
As desigualdades económicas e sociais só se justificam se resultarem vantagens
para todos ou decorram de posições ou funções às quais todos tenham acesso.
É possível que as distribuições nos meios sociais sejam diferentes, se aqueles que
recebem mais têm mais aptidões e as alcançam em condições iguais para todos.
É a designada teoria de “chão comum para todos”. Existem diferenças, mas
alcançadas em pé de igualdade à partida.
As posições mais favoráveis são alcançadas em regime de “concorrência aberta” e
não motivadas por razões de ascendência social ou privilégios de família por
exemplo. Assim, alguns vão ter menos e outros vão ter mais, mas isso é justificado
e, por isso, de acordo com a ação pública, os que têm menos devem ser ajudados.20
20 No que concerne ao princípio da diferença, cabe ainda que tecer as seguintes apreciações. Para
este princípio, o benefício de todos atinge-se mediante a maximização da posição daqueles que estão pior colocados à partida (grupos específicos étnicos, mulheres, crianças, etc.), o que, inevitavelmente, conduz a uma aproximação entre os extremos ou uma igualização existencial, atendendo à sua característica distributiva. Rawls manifesta assim uma preocupação social no sentido de corrigir “a lotaria social”, ao não excluir nenhum indivíduo em função das contingências do seu nascimento. Manifestando, deste modo, uma clara uma preocupação em estender o direito à vida não só ao campo biológico (a nascer) mas também incluindo um nível de vida próprio consentâneo com a dignidade humana. Para tanto, defende correções ao nível da estrutura básica da sociedade com vista a garantir a igualdade de oportunidades para todos, distinguindo-se assim, nesta parte, do princípio de Pareto, o qual nada faz para compensar aqueles que são menos beneficiados em função da “lotaria natural”. Conclui este autor que as desigualdades económicas e sociais devem satisfazer duas condições: ser consequência do exercício de cargos e funções abertos a todos em circunstâncias de igualdade equitativa de oportunidades, bem como ser para o maior benefício dos membros menos favorecidos da sociedade.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
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É desta conjugação resultante entre o princípio da diferença e a igualdade equitativa
de oportunidades que surge a “igualdade democrática”.
Rawls, no entanto, hierarquiza os princípios quanto ao âmbito da sua aplicação. 21
Por último, importa abordar o Princípio do pluralismo
Os modelos, as redes sociais são extremamente pluralistas.
As pessoas desenvolvem-se nas redes. Pelo que, o modelo social desenvolveu-se
imenso, pois que hoje fazemos parte de grupos muito heterogéneos, que interagem
entre si.
Este pluralismo gera um conflito social que é saudável, pois cada grupo tenta
maximizar os sues interesses.
Neste sentido, a ação pública é necessária para acautelar o interesse de cada
grupo, para que uns não absorvam outros, ou seja, para que não façam desaparecer
os mais fracos.
Questiona, assim: Quais seriam as bases de uma politica social ?; O cidadão
comum, o homem médio colocado fora do seu meio social (chamada posição
original), qual seria o padrão que iria escolher ?; Que princípios seriam escolhidos
para regular o meio social do qual vão fazer parte ? 22
21 Estabelecendo prioridades e coloca no topo o primeiro princípio, o da liberdade, o qual só poderá
ser objeto de restrições, exclusivamente, em casos muito especiais de fome generalizada, excluindo, assim, a possibilidade deste princípio ceder perante necessidades como o aumento do bem-estar, da eficiência ou sequer em função da melhoria da igualdade de oportunidades ou da maximização das expetativas dos mais desfavorecidos, valores estes que integram o segundo princípio e surgem hierarquicamente logo abaixo da liberdade. Por fim, surge o princípio da diferença, cuja aplicação deve surgir através de um enquadramento institucional que garanta o respeito pelas liberdades e pela igualdade equitativa de oportunidades, tendo em vista manter a primazia dos plenos direitos de cidadania que os princípios da justiça fundamentam.
22 Rawls, com forma de concretização e aplicação da justiça nos termos por si pré concebidos propõe,
na sua obra, como ponto de partida a colocação dos representantes da sociedade numa posição ficcionaria designada por “posição originária”, que se traduz num status quo em que os indivíduos, representantes de uma sociedade livre e democrática, são colocados em pé de igualdade de direitos no procedimento de escolha de princípios que irão nortear a sociedade a integrar. No leque de soluções que lhes é apresentado e onde assentaram as suas escolhas, consta a conceção de justiça oferecida por Rawls, aqui anteriormente desenvolvida. Isto é, nos princípios morais que tornam uma sociedade justa. Assim, cada indivíduo pode escolher de maneira autónoma os princípios da justiça da futura sociedade política, desde que obedecendo aos critérios de justiça na forma previamente consagrada por Rawls. Logo de seguida, partindo da posição originária, surge a grande inovação trazida por Rawls na sua teoria, a qual o destaca em relação a outros autores e que se traduz no facto de para excluir que as partes contratantes procurem vantagens unilaterais e ajuízem com parcialidade, pois que as concebe
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
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6. Alguns Problemas Atuais do Estado Fiscal
O Estado Fiscal está hoje confrontado com alguns problemas, aos quais iremos em
seguida fazer referência.
Desde logo, no atual contexto de globalização em que a atividade económica é cada
vez mais complexa, acompanhada de um desenvolvimento tecnológico altamente
sofisticado, é cada vez mais visível o afastamento entre o universo dos cidadãos de
um Estado e o universo dos contribuintes que suportam financeiramente esse
mesmo Estado, como é o caso daqueles que não dispõem de capacidade
contributiva.
A par desta questão, verificamos, igualmente, em Portugal, relativamente ao imposto
sobre o rendimento, que a tributação tende a concentrar-se nos rendimentos do
trabalho, pois que a existência de rendimentos que estão sujeitos IRS, que se
apresenta como imposto real, proporcional e de taxa ou alíquota moderada, temos
uma tributação do rendimento pessoal que, na prática, acaba por ser suportada
basicamente pelos trabalhadores dependentes. Donde, a distribuição de
rendimentos que uma tributação pessoal e progressiva do rendimento devia
proporcionar acaba por operar dentro de universo bastante limitado, ou seja, que a
tributação pessoal e progressiva do rendimento se restringe aos rendimentos dos
trabalhadores por conta de outrem, os quais estão longe de espelhar o conjunto de
rendimentos que compõem o rendimento nacional.
sob o “véu da ignorância”. Inspirado na filosofia contratualista (este, importante filosofo, é marcadamente contratualista) mas apenas num contexto hipotético, que impede os representantes de conhecer, restringido o seu conhecimento a uma teoria limitada do bem e à ideia de bens sociais primários. Estas restrições, previamente colocadas pelo “véu da ignorância”, garantem a razoabilidade na escolha de um sentido de justiça na forma como é concebida por Rawls. Com efeito, ao serem colocados na posição originária, os representantes são cautelosos nas suas escolhas, optando pela oferta que melhor lhes permite maximizar o mínimo de bens sociais primários a atribuir a cada cidadão inserido numa sociedade organizada, ajuizando segundo um critério de razoabilidade. O que Rawls visa é assegurar um sistema organizado em que ninguém cai ou fica abaixo de um nível mínimo daquilo que se deve entender como sendo o limiar da dignidade humana, a que cada cidadão deve ter direito desde que nasce. Contudo, não limita aquilo que são as livres aspirações ou possibilidades naturais e económicas de cada um. Para tanto, deixa um espaço bastante vasto ao desenvolvimento dessas capacidades, mas tendo sempre como pano de fundo os princípios elencados. Deste modo, As escolhas efetuadas pelos representantes, colocadas em prática através da intervenção do estado na vida social e económica da sociedade, enformam o contrato social, servindo a base e limite positivado através acento constitucional.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
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Ao facto de nem todos os cidadãos serem contribuintes acresce o facto do número
dos contribuintes “nómadas”, isto é, empresas e profissionais que facilmente se
deslocam a sua sede ou residência para países ou territórios com uma carga fiscal
menos gravosa. Razão pela qual, os impostos indiretos começaram de novo a
ganhar a simpatia do legislador e da doutrina.
É que, em virtude dos contribuintes “nómadas” se subtraírem aos impostos diretos,
não resta outra alternativa, senão a de sujeitar aos impostos que incidem sobre o
consumo (indiretos), pese embora, o agravamento destes impostos vá afetar
também os mais desprotegidos.
Outro problema atual do Estado Fiscal prende-se com a resposta que ao aumento
da carga fiscal. De facto, em face do aumento da intervenção do Estado, com o
propósito de realização de fins públicos, que visam a satisfação das necessidades
coletivas dos seus cidadãos, a consequência óbvia foi o incremento das
necessidades financeiras do Estado.
Por um lado, a nível interno, devido ao facto dos Estados atingiram níveis de carga
fiscal elevados, fez com diversos países apostassem claramente na diminuição de
impostos, tendo para o efeito, encetado reformas fiscais orientadas para a
diminuição da carga fiscal.
Por outo lado, a globalização, a começar pela globalização económica, em vez de
abrir caminho a que todos os países tenham livre acesso a tudo, conduz, ao inverso,
a que alguns, os países mais poderosos, se apropriem tendencialmente de tudo.
Pelo que, não se assiste, por conseguinte, à disponibilização crescente de tudo a
favor de todos, mas sim à reserva de quase tudo a cada vez menos.
De facto, a nível económico, assistimos ao facto de os Estados entrarem numa
concorrência fiscal sem precedentes. Concorrência essa que, numa primeira fase,
foi vista como benéfica e, consequentemente, acolhida com simpatia pela doutrina.
Contudo, a manutenção e aceleração dessa concorrência, não tardou a dar-nos
conta que a concorrência fiscal pode ser prejudicial e comprometer as receitas
fiscais dos Estados.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
46
Com efeito, a par de afetar a mobilidade dos fatores de produção, leva, igualmente,
como já referimos à deslocação da tributação do capital para o trabalho, um
fenómeno, de resto, já visível hoje em dia, uma vez que as empresas e os
profissionais altamente qualificados circulam com grande facilidade.
Coloca-se então o problema já não da dimensão máxima do Estado Fiscal, mas
antes o da sua dimensão mínima, ou seja, do mínimo de existência estadual.23
Outro fenómeno contemporâneo, que vem desequilibrar o Estado Fiscal prende-se
com o poder da administração fiscal. Ou seja, a crescente deslocação do poder em
sede fiscal da administração, pois que, tradicionalmente, lhe competia proceder à
liquidação e cobrança da generalidade dos impostos, e atualmente desempenha o
papel de uma administração de controlo, limitada basicamente ao controlo e
fiscalização da gestão dos impostos, levada a cabo predominantemente pelos
contribuintes, através da autoliquidação. Mesmo em sede de IRS a liquidação tem
por base a declaração dos contribuintes, limitando-se a administração fiscal a
realizar operações meramente matemáticas.
23 Em face desta problemática, assinala o Professor Casalta Nabais in “Por um Estado Fiscal Suportável – Estudos de Direito Fiscal”, editora Almedina, pags.66 e 67: «Daí a tomada de posição sobre uma tal concorrência fiscal tanto pela OCDE como pela União Europeia. O que se traduziu, em sede da OCDE, na aprovação em 1998 de um Relatório sobre a concorrência fiscal prejudicial como problema mundial e, em sede da União Europeia, a aprovação de um Código de Conduta relativo à fiscalidade das empresas. Documentos que são a expressão mais visível do início do estabelecimento de uma disciplina a nível internacional tendencialmente global, ou seja, ao nível a que a concorrência fiscal se verifica. Uma ideia sobre cada um destes documentos. O Relatório da OCDE criou um Forum para as práticas fiscais prejudiciais, que foi encarregado de identificar os regimes fiscais preferenciais potencialmente prejudiciais dos países membros e, bem assim, os países que, de acordo com os critérios definidos no Relatório, configurem paraísos fiscais. Para além disso, definiu os princípios directores relativos ao tratamento dos regimes preferenciais prejudiciais dos 29 países membros, adaptou uma série de 19 recomendações dirigidas à luta contra as práticas fiscais prejudiciais e fixou um calendário para os países membros identificarem, declararem e suprimirem as características prejudiciais dos seus regimes preferenciais. Por seu turno, o Código de Conduta da União Europeia relativo à fiscalidade das empresas é uma espécie de gentlemen’s agreement, integrado por um compromisso político, que visa combater a concorrência fiscal prejudicial através de medidas que sejam susceptíveis de ter incidência sensível na localização das actividades económicas na Comunidade Europeia, sejam estas levadas a cabo por empresas diferentes, sejam exercidas dentro de um grupo de sociedades. Quanto às medidas fiscais abrangidas, devemos considerar como tal todas as medidas fiscais que afectem a localização das actividades económicas, qualquer que seja a sua base jurídica ou forma de concretização (disposições legislativas, disposições regulamentares e simples prática administrativas, que possam ser consideradas como potencialmente prejudiciais. Nestas se integram, designadamente as que se traduzam num nível de tributação efetivo, incluindo a taxa zero, significativamente inferior ao normal aplicado no Estado-membro em causa. Resulte isto quer da taxa nominal do imposto, quer do processo de determinação da matéria coletável, quer de qualquer outro factor pertinente, como isenções ou deduções à colecta».
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
47
Significa isto que a administração fiscal desempenha sobretudo uma função de
controlo ou fiscalização.
Esta questão levanta problemas, principalmente no que diz respeito ao reforço do
poder da administração face à responsabilidade na luta conta a fraude e evasões
fiscais.
Ora, uma luta eficaz contra as múltiplas e variadas formas de evasão fiscal, constitui,
nos dias de hoje, uma tarefa, nas palavras do Casalta Nabais uma luta
“verdadeiramente titânica”, em especial para os governos com suporte democrático.
Com efeito, é insustentável a situação a que uma parte considerável e crescente de
contribuintes que se consegue furtar ao cumprimento das suas obrigações fiscais,
fugindo com assinalável sucesso aos impostos. Insustentável quer pela receita
perdida quer pela discriminação fiscal que provoca.
Na verdade, uma vez que os impostos reduzem o rendimento disponível ou a
riqueza detida, verifica-se, logo à partida, um motivo de ordem económica para que
os contribuintes busquem alternativas de reduzir ou evitar os tributos. Contudo, tais
procedimentos são ilegais e prejudiciais, tanto para o Estado, como para os
restantes contribuintes.
Com efeito, atendendo a que a evasão fiscal provoca uma diminuição de receitas
nos cofres do Estado, resulta, em consequência, num prejuízo para a economia
nacional, bem como, para os contribuintes cumpridores.
Um fenómeno que como observa Casalta Nabais «coloca a questão de saber se,
através desta via, não estamos de algum modo a regressar à situação que com algumas
excepções se manteve até ao triunfo do estado constitucional, em que certas classes,
ou seja, o clero e a nobreza, estavam excluídos da tributação que, assim, incidia apenas
sobre os membros do terceiro estado.
Naturalmente que a fuga aos impostos aparentemente nada traria de mal ao mundo se
todos os contribuintes estivessem em condições de fugir e de fugir em condições de
igualdade. Ou seja, se o exercício dessa fuga operasse no quadro de uma concorrência
perfeita» 24
24 José Casalta Nabais, “Por um Estado Fiscal Suportável – Estudos de Direito Fiscal”, editora
Almedina, pags. 71 e 72.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
48
Relativamente a esta questão, importa ainda referir que os contribuintes que confiam
na administração fiscal estão menos predispostos para se furtar às suas obrigações
fiscais do que aqueles que não confiam. Pelo que, é essencial minimizar a tendência
de evasão e aumentar o cumprimento fiscal voluntário, tendo papel importante nesta
tarefa a promoção de uma imagem de uma administração honesta. Para o efeito, a
administração fiscal deverá, igualmente, tornar o seu sistema mais eficaz e mais
célere.
Posto isto, torna-se de facto forçoso uma luta adequada e eficaz contra a evasão
fiscal, em claro respeito pela Constituição e a lei e respeito com e as liberdades que
decorrem de um Estado Fiscal.
Ora, no que concerne a esta questão, foi entendido, durante muito tempo, a
administração fiscal impedida de intervir na luta contra a evasão aos impostos, por
força desta se situar no âmbito do legislador e não da administração.
Contudo, em face do insucesso da luta contra a evasão fiscal, que a partir de certo
momento se começou a verificar, devido à impraticabilidade das soluções legais
preconizadas, impos que se optasse por outra via, concretizada pela função
administração fiscal, mormente através fiscalização, o que veio colocar exigências
relativas aos meios à disposição dessa atividade administrativa.
Em face do considerável e crescente número de contribuintes que se consegue
furtar ao pagamento de impostos, bem como, em virtude da crescente
internacionalização das empresas, na luta contra a evasão fiscal tem, igualmente um
papel, preponderante as designadas “cláusulas anti-abuso”.
Contudo, as múltiplas formas, que a evasão e fraude fiscais apresentam, dificilmente
poderão encontrar-se previstas nos diversos Códigos de cada imposto todas as
situações. Pelo que, relativamente a esta temática o legislador português veio,
através Lei n.º 30-G/2000 de 29 de Dezembro, introduzir uma cláusula geral de luta
contra a evasão e fraude fiscais 25, o que foi concretizado através do aditamento do
nº 2 ao Art. 38.º da LGT. 26
25 Relativamente aos ordenamentos onde são reportadas cláusulas (ou doutrinas judiciais) gerais anti-abuso assinala Gustavo Lopes Courinha, “A Cláusula Geral Ati-abuso no CAAD: a Insustentabilidade de uma Jurisprudência Contraditória – Comentário às Decisões dos processos 47/2013, 51/2014 e 131/2014” in “Desafios Tributários”, com coordenação de Nuno Barroso e Pedro Marinho Falcão, Vida Económica, 2015, págs. 99 e 100 que «…o elemento normativo desempenha, assim, uma função de garantia da aplicação coerente do sistema, auxiliando o aplicador na obtenção de soluções teleologicamente consideradas. Deste modo, a CGAA funciona como instrumento de aperfeiçoamento do sistema e impedimento de contorno da lei Fiscal, por ser, desde logo, uma manifestação da teoria da fraude à lei». 26 «2 - São ineficazes no âmbito tributário os atos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução,
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
49
Por último importa referir que, na luta contra a evasão fiscal tem, igualmente um
papel, preponderante o acesso à informação bancária.
Com efeito, para desempenhar a sua função de fiscalizar e inspecionar se os
contribuintes desempenharam corretamente a sua tarefa, tendo em vista a
liquidação do imposto a entregar nos cofres do Estado, é necessário, igualmente
dispor do meio que lhe permita ter acesso à informação bancária, pois que na atual
economia, generalizaram-se as relações bancárias tanto em relação aos
contribuintes singulares como quanto às empresas.
E esse acesso à informação bancária deverá sê-lo no sentido de ser excluído ou
dificultado de tal modo que redunde na impossibilidade prática de a administração
desempenhar a sua função fiscalizadora ou inspetiva.
Em Portugal o Acesso a informações e documentos bancários encontra-se previsto
no Art. 63.º-B, da LGT.
Relativamente a esta questão importa ainda referir que o levantamento
administrativo do sigilo bancário é, atualmente, um problema que ultrapassa o estrito
domínio do direito fiscal e os próprios espaços nacionais, pois que a globalização, é
um fenómeno que se verifica em todos os domínios e não apenas no domínio fiscal.
7. Princípios Estruturantes do Sistema Fiscal Português
7.1 Considerações Gerais
Em face do que temos vindo a dizer, o tributo, tem no Estado Moderno, um papel
essencial.
É, hoje, unanimemente reconhecido que à administração pública, a qual engloba a
administração fiscal, a qualidade institucional e orgânica do próprio Estado, com o
objeto direto e imediato de prossecução de fins públicos.
eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efetuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas.».
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
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Como é, hoje também, reconhecido que a administração tributária deixou de ocupar
a posição de omnipresença e monopólio da relação tributária. Assim, não podemos
olhar o contribuinte como detendo na relação jurídico tributária um estatuto menor e
de mera passividade. Antes, requer-se que, nos tempos de hoje, este ocupe uma
posição atuante e colaboradora.
Assim, a relação existente entre o Estado e os contribuintes gera um vínculo
estabelecido pela ordem jurídica. Com efeito, a relação jurídica tributária, que se
estabelece entre a administração fiscal por um lado, e o contribuinte por o outro,
implica regras.
Pelo que, no exercício dos poderes fiscais o Estado tem que atuar de acordo com os
princípios e normas jurídicas que o disciplinam.
Destarte, cabe-nos agora abordar alguns dos princípios, embora de forma sintética,
que devem nortear a atuação da administração, importando desde logo referir o que
se entende por “princípios”.
Relativamente a esta temática, assinala Paula Rosado Pereira que «Os princípios
constituem traves mestras que dão à ordem jurídica uma ideia de unidade e uma
lógica própria. Permitem uma sistematização, uma ordenação e uma ponderação
dos aspectos valorativos subjacentes aos regimes consagrados na ordem jurídica
em causa. Deste modo, os princípios de direito fornecem uma justificação para as
normas concretas, constituído a sua base e explicando as razões da sua existência
e do seu teor.
Sintetizando as características dos princípios de direito que nos parecem mais
relevantes, salientamos que estes são abstractos (ou seja, dotados de um nível de
abstracção superior ao das normas), têm um peso significativo e um papel
estruturante fundamental na ordem jurídica a que pertencem. Os valores essenciais
e as orientações gerais que veiculam concretizam-se em regras aplicáveis aos casos
particulares, às quais servem de fundamento. Os princípios de direito exprimem,
pois, os valores nucleares e as traves mestras estruturantes de uma área de direito
(ou, nalguns casos, do sistema jurídico como um todo).» 27
27 Paula Rosado Pereira, “Lições de Fiscalidade – Volume II – gestão e Planeamento Fiscal Internacional”, no Capitulo 6 “Em Torno dos Princípios do Direito Fiscal Internacional”, Almedina, 2015, págs. 201 e 202.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
51
No Direito Fiscal podemos identificar dois grupos de diretrizes orientadoras: os
princípios de raiz constitucional e os princípios inerentes ao procedimento tributário.
No que aos princípios de raiz constitucional diz respeito, temos o princípio da
legalidade, o princípio da segurança jurídica, o princípio da proteção jurídica, o
princípio da igualdade e o princípio do Estado Social.
No que concerne aos princípios inerentes ao procedimento tributário, encontram-se
desde logo definidos no Art. 55.º da LGT, que estabelece que “A administração
tributária exerce as suas atribuições na prossecução do interesse público, de acordo
com os princípios da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da
imparcialidade e da celeridade, no respeito pelas garantias dos contribuintes e
demais obrigados tributários”
7.2 Os Princípios Constitucionais Fiscais
É através da arrecadação de impostos que o Estado exerce as atividades públicas
com objetivo de alcançar o bem comum. Todavia, essa arrecadação não pode ser
exercida de forma arbitrária. Pelo que, o legislador constitucional, com intuito de
proteger a sociedade da criação excessiva e arbitrária de impostos, limitou o poder
de tributar.
Os princípios constitucionais fiscais desempenham, assim, uma função relevante na
criação, orientação e entendimento na aplicação das normas jurídicas fiscais.
Deste modo, os princípios constitucionais fiscais que regem a tributação vêm
estabelecer limites de natureza formal (relativos a que e como se tributa), e de
natureza material (relativos ao que e ao quanto se tributa), na criação e aplicação
das normas jurídicas fiscais.
Princípio da Legalidade
O princípio de legalidade, expresso no artigo 103.º n.º 2 da CRP impõe que os
impostos e os seus elementos essenciais, ou seja a incidência, a taxa, os benefícios
fiscais e garantia dos contribuintes, bem como, a definição dos crimes fiscais e
regime geral das contra-ordenações fiscais, têm que obrigatoriamente de ser criados
por lei.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
52
O princípio da legalidade, no ordenamento jurídico português é, assim, acolhido no
sentido de exigência de lei em sentido formal. Isto é, a matéria tributária relativa aos
elementos essenciais dos impostos, é da competência “relativamente reservada” da
Assembleia da República (Art. 165.º, nº 1, alínea i) e nº 2 da CRP).
Assim, os impostos apenas podem ser criados e regulamentados pelo órgão que
representa diretamente o povo soberano, isto é, a Assembleia da República. De
facto, o Art. 165.º, n.º 1, alínea i) estabelece que as matérias relativa a impostos são
da reserva relativa da Assembleia da República. Dito de outo modo, os impostos
apenas podem nascer ou de uma lei da Assembleia da República ou de um Decreto-
Lei autorizado pelo Governo, desde que devidamente habilitado por uma lei de
autorização legislativa, conforme dispõem os n.os 2, 3 e 4 do Art. 165.º, da CRP.
Se este pressuposto formal não se verificar, os impostos serão ilegais.
Assim, desta regra constitucional resultam, claramente dois limites, um para o órgão
legislador obrigado a legislar em matéria tributária nos termos de rigorosa reserva
absoluta; outro para o órgão aplicador do direito, na medida em que exclui o
subjetivismo na sua aplicação, o que pressupõe a proibição da analogia e da
discricionariedade, ou seja, na determinação do sentido das normas fiscais e na
qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam dever ser observadas as regras
e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis. Assim, na interpretação não
se deve “cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento
legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as
circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em
que é aplicada.” (n.º 1 do Art. 9.º do CC). É, pois, forçoso recorrer ao elemento
sistemático e também à ratio legis.
Princípio da Segurança Jurídica
O princípio constitucional da segurança jurídica está inerente ao postulado que
prevê um sistema jurídico estável e previsível, de modo a que o cidadão saiba a todo
o momento quais as regras jurídicas que determinam a sua vida quotidiana.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
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Com efeito, em Direito Fiscal, facilmente se alcança a importância da necessidade
de determinação e precisão das normas fiscais, para um sadio desenrolar das
atividades económicas, sendo essencial que os cidadãos e a comunidade possam
depositar confiança na ordem jurídica.
De facto, o princípio do Estado de Direito democrático postula uma ideia de proteção
da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na ação do Estado,
o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas
expetativas que lhe são juridicamente criadas. Visa-se, assim, proteger a segurança
jurídica dos cidadãos, sendo que a respetiva salvaguarda opera em dois planos: no
da estabilidade do direito e no da proteção da confiança.
O primeiro pressupõe que o direito não esteja em permanente mutação, levando a
que possa haver algum grau de certeza quanto às normas legais em vigor, encargo
que nos dias de hoje não se afigura fácil para os juristas, quanto mais para o comum
dos cidadãos.
O segundo pressupõe que as normas tributárias sejam elaboradas com clareza e
rigor, no sentido de permitir aos cidadãos compreender o respetivo alcance, e
determinar as suas condutas.
No que concerne ao à atuação dos legisladores, este princípio ínsito na ideia de
Estado de Direito democrático, limita-o em dois sentidos: proibição de normas
retroativas e exclusão da livre revogabilidade e alteração das leis fiscais.
O primeiro sentido encontra-se expresso no Art. 103.º, nº 3 da CRP e o segundo tem
expressão principalmente na limitação ou exclusão da “livre revogabilidade”, pois
que está em causa a tutela dos direitos adquiridos ou dos direitos subjetivos,
essencialmente que merecem especial proteção.
Na LGT a questão da retroatividade está expressa no Art. 12.º.
Outra dimensão do princípio da segurança jurídica ocorre com a obrigação de
qualquer decisão da administração fiscal ter de ser comunicada ao seu destinatário,
devendo esta ser devidamente fundamentada e conter a indicação taxativa das
disposições legais aplicáveis, conforme n.º 3 do Art. 268.º, da CRP e Art. 77.º da
LGT.
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Princípio da Igualdade e Princípio da Capacidade Contributiva
O princípio da igualdade é um princípio jurídico-constitucional, transversal a todo o
ordenamento jurídico.
Em sede do Direito Fiscal expressa-se na obrigação universal de todos os cidadãos
se encontrarem sujeitos ao pagamento de impostos.
Ora, uma das dimensões do princípio da igualdade é a proibição do arbítrio, ou seja,
devem ser tratadas de forma igual as situações iguais, e de forma desigual as
situações desiguais. Neste sentido, a obrigação do pagamento de impostos é
efetuada em função da capacidade contributiva, isto é, através de uma justa
repartição dos encargos fiscais, permitindo, assim, que todos contribuam de acordo
com as suas possibilidades, para a realização do bem comum.
Dentro deste princípio da igualdade tributária enquadra-se, assim, ainda outro
subprincípio: o da uniformidade, no âmbito do qual se sustenta que a repartição dos
impostos pelos cidadãos obedece ao mesmo critério, idêntico para todos. E, esse
critério reside no facto que a incidência e a repartição dos impostos fiscais se deve
fazer segundo a capacidade económica ou de riqueza.
Por conseguinte, para aferir da capacidade contributiva estabelece-se três critérios
de riqueza relevantes que demonstram a capacidade económica do contribuinte: o
rendimento, enquanto riqueza que o contribuinte obtém; o património, enquanto
riqueza que possui, e o consumo, enquanto riqueza que gasta – Art. 104.º da CRP.
Implica, assim, igual imposto para aqueles que dispõem de igual capacidade
contributiva (igualdade horizontal) e diferente imposto para aqueles que dispõem de
diferente capacidade contributiva, na proporção desta diferença (igualdade vertical).
A capacidade contributiva tem, igualmente, uma vertente negativa ligada ao princípio
da igualdade (Art. 13.º da CRP), em que não poderão ser valorados no tipo legal de
imposto (agravamento ou desagravamento) fatores como o sexo, raça, língua,
território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação
económica, condição social ou orientação sexual.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
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E, tem, também, uma vertente positiva em que o tipo legal de imposto só deve
referir-se a elementos económico-financeiros, isto é, atender ao rendimento líquido
de encargos, à utilização que dele se faça e ao património. São estes elementos que
devem ser tidos em consideração para a fixação da prestação contributiva.
Deste modo, se cada contribuinte paga na medida das suas possibilidades, o
princípio da capacidade contributiva representa um pressuposto de justiça fiscal no
que respeita à distribuição dos impostos pelas pessoas.
Com efeito, ao estabelecer-se um critério de pagamento tendo em conta a
capacidade contributiva de cada um, supõe que os contribuintes com maior
capacidade económica venham a pagar um imposto mais elevado e que os
contribuintes com menor capacidade económica, suportem um imposto mais
reduzido.
Este princípio, também, se expressa na obrigação de existirem medidas
diferenciadoras de modo a obter uma igualdade entre contribuintes.
É o que ocorre, por exemplo, com a discriminação positiva da família, ou as
deduções à coleta em sede de IRS em função do número de filhos.
Princípio da Proteção Jurídica
No que concerne ao princípio da proteção jurídica, consagra o direito dos
contribuintes poderem recorrer à justiça tributária para fazer valer os seus interesses
legítimos.
Neste sentido, todos os atos em matéria tributária que lesem direitos ou interesses
legalmente protegidos, são impugnáveis ou recorríveis nos termos definidos na lei.
Este princípio encontra-se expresso no Art. 20.º da CRP e no Art. 9.º da LGT.
As garantias previstas aplicam-se quer a favor dos particulares quer a favor da
administração pública.
Bem como, o direito de acesso à justiça e de recurso aos tribunais engloba, nos
termos do Art. 20.º da CRP, o direito à informação jurídica e o patrocínio jurídico.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
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Princípio do Estado Social
Como manifestações do princípio do Estado Social refere a alínea b) do Art. 81.º , da
CRP, que “Incumbe prioritariamente ao Estado no âmbito económico e social:
Promover a justiça social, assegurar a igualdade de oportunidades e operar as
necessárias correções das desigualdades na distribuição da riqueza e do
rendimento, nomeadamente através da política fiscal;”, e no n.º 1 do Art. 103.º, nº1
“o sistema fiscal visa (…) uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza”.
Assim, são definidas orientações para que a tributação se faça através da
progressividade das taxas dos impostos e pela tributação do capital, bem como da
não tributação das prestações sociais e dos mínimos de existência e tendo em conta
os rendimentos gastos com as despesas com a habitação, saúde, educação,
segurança social.
Os limites constitucionais para o sistema fiscal têm, assim, em conta dois momentos:
a) Finalidades do sistema: finalidade financeira, que que se visa a satisfação das
necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e finalidade extra-
fiscal, na medida em que se visa repartição justa dos rendimentos e da riqueza fiscal
(Art. 103.º CRP);
b) Contornos do sistema fiscal: imposto único e progressivo sobre o rendimento
pessoal, tributação real como regra da tributação do rendimento das empresas;
tributação do património deve contribuir para a igualdade entre os cidadãos;
tributação do consumo adaptada ao desenvolvimento económico e à justiça social
(Art. 104.º CRP).
Princípio da Proporcionalidade
Em obediência ao princípio da proporcionalidade a administração fiscal deve
escolher, dentro dos diversos meios ou medidas idóneas e congruentes, de que
disponha a menos gravosa ou causem menos danos. Deve intervir para que se
consiga compatibilizar o interesse público e os direitos dos particulares, sendo aqui o
princípio da proporcionalidade um fator de equilíbrio, garantia e controlo dos meios e
medidas a praticar.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
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O princípio da proporcionalidade, surge, assim, como um dos limites do poder
discricionário em prol dos direitos fundamentais.
A administração não tem, pois, que ater-se apenas na lei formal, mas também a
outros conceitos, normas e princípios, que devem ser observados em cada caso
concreto, ponderando para encontrar a melhor solução ao interesse público e em
respeito pelos direitos dos particulares.
No princípio da proporcionalidade, como é adotado na doutrina e jurisprudência
moderna, cuida-se, fundamentalmente, de aferir a compatibilidade entre meios e
fins, de molde a evitar restrições desnecessárias ou abusivas contra os direitos
fundamentais.
Assim, nos atos a praticar a administração terá que ter em conta, as seguintes
diretrizes: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito.
Em primeiro, deve proceder a uma avaliação, para que o ato a praticar se revele, na
utilização da medida adequada e idónea para atingir o fim pretendido (conformidade
do ato praticado com os fins a realizar).
No que diz respeito à necessidade, caracteriza-se na ideia de que a medida a adotar
é necessária para atingir o fim proposto, não podendo ser utilizada uma medida
menos lesiva, sendo que uma medida será exigível ou necessária quando não for
possível escolher outro meio igualmente eficaz e menos lesivo.
Dito de outro modo, consiste em verificar a necessidade ou exigência dos atos que
se pretende praticar, pois que, o Estado deve empregar as medidas menos lesivas
ou onerosas para o cidadão. Exige-se, portanto, uma ponderação entre a medida
adequada e outras, igualmente adequadas para atingir o mesmo fim, para que se
possa optar pela menos lesiva.
Quanto à proporcionalidade em sentido estrito este realça a ideia de equilíbrio entre
valores e bens (princípio da justa medida).
Distingue-se da proporcionalidade em sentido lato na medida em que esta envolve
considerações sobre a adequação entre meios e fins e a utilidade de um ato para a
proteção de um determinado direito, enquanto a proporcionalidade em sentido estrito
apenas envolve a relação concertina entre duas grandezas.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
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No Direito português, refere o Professor Gomes Canotilho que o princípio da
proporcionalidade em sentido amplo, também conhecido como princípio da proibição
do excesso, se encontra previsto na CRP nos artigos 18.º, n.º 2; 19.º, n.º 4 e 266.º,
nº 2.
7.3 Os Princípios inerentes ao Procedimento Tributário
Tendo em vista a regulamentação da relação jurídica tributária, no âmbito do
procedimento e processo tributário, são estabelecidas normas legais que conferem à
Administração Tributária um poder dever administrativo, que se carateriza pelos
poderes que lhe são atribuídos e pela obrigatoriedade do seu exercício.
Acresce que, os poderes conferidos à Administração Tributária conducentes à
realização dos seus fins, enquanto sujeito ativo da relação jurídica tributária, têm,
também, de ser exercidos com respeito pelos direitos e garantias dos contribuintes,
enquanto sujeitos passivos.
A atuação da Administração Tributária encontra-se, assim, regulada por lei que lhe
atribui poderes e, também, deveres.
Princípio da Decisão e da Celeridade
O princípio da decisão e da celeridade está expresso nos artigos 56.º e 57.º da LGT.
O Art. 56.º expressa o dever da administração tributária se pronunciar sobre todas
as questões da sua competência que lhe sejam apresentados pelos contribuintes.
A expressão “da sua competência”, é utilizada no sentido global, isto é, não do órgão
em concreto, mas sim da administração tributária, pelo que, não afasta o dever de
pronúncia na eventualidade de o assunto não ser apresentado ao órgão ou
autoridade competente para a pronúncia.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
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Está, assim, implícito que, nos casos em que a entidade da administração tributária
a quem for apresentado a questão não for competente, material ou territorialmente,
para se pronunciar sobre aquela, mas se trate de matéria da competência de um
órgão ou autoridade da administração tributária, o documento apresentado deverá
ser enviado oficiosamente à entidade competente, para que esta se pronuncie, como
resulta, aliás, do disposto no n.º 2 do Art. 61.º da LGT.
Já, no caso no caso de a administração tributária não ter competência material para
se pronunciar sobre o assunto que lhe seja apresentado, não há lugar a pronúncia
nem de decisão da administração tributária, devendo, no entanto, que dar
cumprimento ao preceituado no Art. 41.º do CPA 28.
No n.º 1 deste Art. 56.º da LGT indicam-se vários meios através dos quais devem
ser apresentadas as pretensões dos interessados, como sejam as reclamações,
recursos, representações, exposições e queixas, mas inclui-se também uma
referência genérica a “quaisquer outros meios previstos na lei”. Assim, o que releva
é o que pretende o interessado, sendo indiferente a designação que se possa
considerar mais adequada ao meio através do qual a apresenta.
No n.º 2 encontram-se estabelecidos, os casos em que não existe o dever de
decidir, a saber:
“a) A administração tributária se tiver pronunciado há menos de dois anos sobre
pedido do mesmo autor com idênticos objeto e fundamentos;
b) Tiver sido ultrapassado o prazo legal de revisão do ato tributário.”
O Art. 57.º da LGT estipula que o procedimento tributário deve estar concluído em
quatro meses, devendo os atos do procedimento administrativo ser praticados no
período de oito dias.
A exigência de celeridade é suportada pela definição de prazos de caducidade e
prescrição bem como para que a sua atuação seja eficaz.
28 “Artigo 41.º - Apresentação de requerimento a órgão incompetente
1 - Quando seja apresentado requerimento, petição, reclamação ou recurso a órgão incompetente, o documento recebido é enviado oficiosamente ao órgão titular da competência, disso se notificando o particular. 2 - Nos casos previstos nos números anteriores, vale a data da apresentação inicial do requerimento para efeitos da sua tempestividade.”
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
60
Os órgãos administrativos devem, pois, providenciar pelo rápido e eficaz andamento
do procedimento, quer seja recusando e evitando tudo o que for impertinente ou
dilatório, como ordenando e promovendo tudo o que for necessário ao seguimento
do procedimento, com vista a uma justa e oportuna decisão.
Não obstante, a par desta vertente negativa, de proibição da prática de atos inúteis,
o princípio da celeridade tem um conteúdo positivo, na medida em que impõe à
administração tributária que providencie pelo rápido andamento do procedimento e
pela eficácia das diligências efetuadas.
Neste sentido, a administração tributária deve, realizar todas as diligências
necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material,
como lhe é imposto pelo disposto no Art. 58.º da LGT, pelo que não pode, invocar
razões de celeridade, para deixar de averiguar factos cujo conhecimento seja
relevante para a decisão.
Por último importa referir que, pese embora, a abstenção da prática de atos inúteis
ou dilatórios constituir um dever que é imposto à administração tributária, não se
prevê diretamente, para os casos de violação de tais deveres, sanções, quer de
carácter processual ou quaisquer efeitos a nível dos direitos em causa no
procedimento.
Princípio da Justiça
É corolário de um Estado Social Democrático, consistindo na faculdade de cada um
em ter aquilo que lhe é devido, devendo a administração agir visando a equidade do
caso concreto.
Para o Professor Freitas do Amaral, o princípio da justiça traduz-se num conjunto de
valores que impõem a obrigação de dar a cada um o que lhe é devido, em função da
dignidade humana, distinguindo justiça coletiva da justiça individual. A primeira,
corresponde ao respeito dos direitos humanos, e a justiça individual, que remete
para a ideia de igualdade, proporcionalidade e a boa-fé.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
61
O princípio da justiça envolve uma dimensão procedimental, isto é, projeta-se sobre
o modo ou os termos da prossecução da decisão, na medida em que a própria
exigência da dignidade de cada pessoa implica a presença do princípio da justiça na
atuação da administração.
Este princípio vem, desde logo, enunciados no n.º 2, do Art. 5.º da LGT não
constituindo, portanto, um fim da tributação, um objetivo a prosseguir por ela, mas
antes um limite fundamental que a mesma deve respeitar na prossecução dos seus
fins.
Encontra-se igualmente enunciado no Art. 55.º da LGT.
Princípio da Imparcialidade
O sistema jurídico português assenta também no conteúdo da imparcialidade
administrativa em normas de proibição de privilégios e de discriminação.
A materialização e o desenvolvimento da imparcialidade do sistema jurídico e fiscal
é efetuado numa estreita conexão com o princípio da igualdade, mas não a ponto de
torná-los sinónimos. A imparcialidade será uma vertente do princípio da igualdade.
Neste sentido, como já referimos, o princípio da igualdade é norteador de toda a
atividade administrativa e constitui um limite ao seu modo de atuar.
Pela ligação do princípio da igualdade, quanto à imparcialidade pode-se dizer que,
pelos mesmos motivos, a administração tributária deve ser transparente e neutral,
pelo que na sua atuação deve ser objetiva, isenta e ponderada quer estejam em
causa interesses públicos ou privados.
Trata-se de um princípio que limita o exercício do poder discricionário, cuja violação
gera a invalidade dos atos praticados e, consequente violação da legalidade
administrativa.
Não obstante, o decisor deve ter em consideração todos os interesses relevantes
para a decisão, excluindo todos aqueles que se revelarem inapropriados à situação
concreta.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
62
Nesta perspetiva, este princípio comporta uma vertente positiva, a imparcialidade
determina parâmetros racionais, com o objetivo de se ter em consideração todos os
fatores ou elementos que relevam para a decisão.
Este princípio proíbe, ainda, que o agente que decida ou participe na decisão,
quando tenha algum interesse próprio, intervenha no respetivo procedimento.
A imparcialidade envolve, assim, uma exigência de isenção entre quem decide e o
objeto ou o destinatário da decisão.
Assim, o princípio da imparcialidade comporta uma vertente negativa (Art. 69.º do
CPA), para que se verifique a imparcialidade, tem que existir uma neutralidade
administrativa em relação aos interesses alheios, salvaguardando-se, deste modo, a
independência e isenção do decisor.
Princípio do Inquisitório
Quanto ao princípio do inquisitório, expresso no Art. 58.º da LGT, impõe no âmbito
do procedimento tributário o dever da administração efetuar todas as diligências
necessárias à satisfação do interesse público, na procura da verdade tributária, não
devendo esta ficar subordinada à iniciativa do autor do pedido.
Ora, o princípio do inquisitório justifica-se pela obrigação de prossecução do
interesse público imposta à atividade da administração – Art. 266.º, n.º 1 da CRP, e
é corolário do dever de imparcialidade que deve nortear a sua atividade – Art. 266.º,
n.º 2 da CRP.
Deste modo, à luz do princípio supra, a administração tributária deve realizar todas
as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da
verdade. Para essa averiguação pode utilizar todos os meios de prova admitidos em
direito, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido, em conformidade
com o Art. 58.º da LGT.
Relativamente à apresentação de provas em processo tributário cumpre ainda
informar que, nos termos do disposto pela alínea f) do Art. 69.º do CPPT, os meios
probatórios no procedimento tributário de reclamação graciosa são limitados à forma
documental e aos elementos oficiais que os serviços disponham, sem prejuízo do
órgão instrutor poder ordenar outras diligências indispensáveis à descoberta
material.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
63
Assim, apesar desta limitação dos meios de prova nada obsta à realização de
diligências complementares que o órgão instrutor ordenar, o que está em sintonia
com o princípio do inquisitório, que impõe no âmbito do procedimento tributário o
dever da administração efetuar todas as diligências necessárias à satisfação do
interesse público, na procura da verdade tributária, não devendo esta ficar
subordinada à iniciativa do autor do pedido (Art. 58.º LGT).
Este dever imposto à administração tributária de averiguar a verdade material não
dispensa, no entanto, os interessados particulares da obrigação de colaborarem na
produção de provas, como se prevê no Art. 59.º da LGT.
Princípio da Colaboração
Um dos princípios fundamentais do procedimento tributário é o princípio da
colaboração, tipificado no Art. 59.º da LGT.
O objetivo deste é promover a colaboração entre a administração fiscal e os
cidadãos.
Relativamente a este princípio, cujas atuações quer da administração tributária quer
dos contribuintes, se encontram elencadas, de uma forma não taxativa, nas alíneas
do n.º 3.º, do Art. 59.º, da LGT, importa destacar que a colaboração que a
administração tributária pode impor aos sujeitos passivos deve ser adequada e
proporcional aos objetivos a atingir, como deriva do princípio constitucional da
proporcionalidade que deve limitar toda a atividade administrativa a que já aludimos.
Princípio da Participação
A participação dos contribuintes na formação das decisões que lhes digam respeito
pode efetuar-se, sempre que a lei não prescrever em sentido diverso.
A CRP, no seu Art. 267.º, n.º 5, reconhece, também, aos cidadãos o direito de
participação na formação das decisões e deliberações.
No procedimento tributário o direito de audição encontra-se expressamente
consagrado no Art. 60.º da LGT, apenas podendo ser dispensado, nos casos
previstos naquela disposição.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
64
E, o direito de participação dos interessados na formação das decisões que lhes
digam respeito encontra-se também consagrado no CPA ( Art.os 121.º a 124.º),
sendo que, nos termos da alínea c) do Art. 2.º da LGT, aquele diploma é
expressamente aplicável às relações jurídico-tributárias.
Assim, para determinação do âmbito do Art. 60.º da LGT deve, também, atender-se,
embora subsidiariamente, ao regime decorrente daquelas normas.
7.4 Direito Fiscal Internacional
Pese embora, termos referido que na presente dissertação que nos iremos limitar à
apreciação das questões suscitadas no âmbito do direito interno sem proceder à
análise em sede de direito internacional, não podemos deixar de, genericamente,
referir, que o sistema fiscal português tem por objetivo cumprir os princípios de
direito fiscal, e uma vez que Portugal é membro da UE, também, os princípios, em
regra, seguidos pelos Estados-Membros da UE. 29
Bem como, a existência de relações económicas entre entidades situadas em
diferentes jurisdições, pode implicar que os sujeitos passivos fiquem, muitas vezes,
total ou parcialmente, sujeitos a uma dupla tributação, uma vez que estes ficam
sujeitos a tributação no país da fonte dos rendimentos e no país de residência.
Pelo que se levantam a questões de saber onde se consideram localizadas as
operações que dão origem aos rendimentos auferidos e, consequentemente, quem
tem responsabilidade para tributar tais rendimentos, se o Estado da fonte onde
foram gerados esses rendimentos, se o Estado de residência do beneficiário efetivo
desses mesmos rendimentos, ou se ambos.
Assim, para além, dos princípios já abordados, constituem ainda princípios
enunciados pela doutrina e jurisprudência nacional, internacional e europeia, cujo
impacto nos regimes fiscais dos Estados-Membros da EU não deve ser subestimado
os princípios da neutralidade, equidade, não discriminação, territorialidade
residência, transparência, reciprocidade, simplicidade, princípio da nacionalidade e
princípio da eficiência.
29 Sem, contudo, se proceder à análise dos princípios de per si.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
65
Os Princípios de Direito Internacional vêm permitir que se apreenda melhor a lógica
e os valores subjacentes à ordem jurídico-tributária internacional e às respetivas
normas. Podendo ser considerados dois tipos distintos de princípios fundamentais,
em face das suas características e do papel que desempenham no contexto do
Direito Fiscal Internacional: os princípios estruturais e os princípios operativos.
Os princípios estruturais assentam em valores de justiça, equidade e eficiência e
definem a estrutura e características fulcrais, bem como, os valores fundamentais da
ordem jurídico-tributária internacional. Nesta medida, constituem a base da ordem
jurídica, norteando a organização entre os Estados.
No que diz respeito, ao facto de os sujeitos passivos poderem ficar, total ou
parcialmente, sujeitos a tributação em diferentes jurisdições, estes princípios visam
prevenir ou eliminar a dupla tributação internacional.
São considerados como princípios estruturais do Direito Fiscal Internacional o
Princípio da soberania, o Princípio da equidade e o Princípio da neutralidade.
No que concerne aos princípios operativos refere Paula Rosado Pereira que
«referem-se a aspectos substanciais da repartição entre os Estados do poder de tributar
e da eliminação da dupla tributação. Estes princípios têm um grau de abstracção inferior
ao dos princípios estruturais, sendo maior a sua proximidade relativamente às normas.
Por tal motivo, os seus reflexos ao nível das regras jurídicas (tanto do direito interno dos
Estados como das CDT por estes celebradas) são mais concretos do que os dos
princípios estruturais.
Nestes termos, os princípios operativos norteiam as soluções concretas e os regimes
consagrados no âmbito do DFI, no que toca ao tratamento fiscal das situações
tributárias internacionais»30
São menos abstratos que os princípios estruturais, tendo contudo, de ser coerentes
com o conteúdo destes e espelhar os valores por estes definidos.
Podem ser identificados os seguintes conteúdos, tendo em conta a respetiva em
funcionalidade:
(i) Quanto à repartição entre os Estados do poder de tributar: Princípio da
Residência, Princípio da fonte e Princípio do estabelecimento estável;
30 Paula Rosado Pereira, “Lições de Fiscalidade – Volume II – gestão e Planeamento Fiscal Internacional”, no Capitulo 6 “Em Torno dos Princípios do Direito Fiscal Internacional”, Almedina, 2015, pág. 204.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
66
(ii) Quanto á amplitude do poder de tributar dos Estados: Princípio da Universalidade
e Princípio da limitação Territorial
(iii) Outros aspetos substanciais da tributação: Princípio da eliminação da dupla
tributação no Estado da residência, Princípio da tributação como entidades
independentes, Princípio da tributação distinta e sucessiva de sociedades e sócios e
Princípio da não-discriminação tributária.
No âmbito da UE, como corolário do mercado europeu, assumem especial
importância os princípios da proporcionalidade e da não discriminação, pois que os
países da UE têm que conciliar as suas políticas fiscais internas com os princípios
comunitários fundamentais, em face das liberdades fundamentais do tratado, a
saber: livre circulação de pessoas, livre circulação de bens, livre circulação de
serviços e livre circulação de capitais, bem como, o direito de estabelecimento no
espaço da União.
Com efeito, na EU a política fiscal é abordada com a preocupação principal de
proibir que os Estados utilizem, os seus ordenamentos tributários, para a colocação
de entraves às quatro liberdades fundamentais.
Pretende-se, assim, essencialmente, garantir aos agentes económicos que poderão
atuar em iguais condições em qualquer local dentro do espaço comunitário.
Os artigos 110.º a 113.º do e do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia
dão corpo ao princípio de não discriminação no comércio entre os Estados-
Membros.
Apesar deste capítulo do Tratado especificamente dedicado à fiscalidade se reduzir
aos quatro artigos, outras disposições do mesmo podem servir, e têm servido, de
base à atuação das instituições comunitárias em matéria fiscal.
Bem como existe uma diversidade de disposições legais, regulamentares e
administrativas entre os Estados-Membros, que visam impedir que os Estados-
Membros adotem medidas que falseiem ou ameacem falsear a concorrência,
favorecendo certas empresas ou certas produções.
De igual modo vários estudos foram sendo elaborados, tendo a evolução da política
fiscal da UE sido sempre encarada numa perspetiva de harmonização das
legislações dos Estados.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
67
CAPÍTULO III
A CIDADANIA FISCAL
1. Considerações Gerais
2. O que é a Cidadania Fiscal ?
3. A Ética Fiscal
3.1 Ética Fiscal Privada
3.2 Ética Fiscal Pública
i. A Liberdade
ii. A Igualdade
iii. A Segurança
iv. A Solidariedade
4. O direito fundamental de cobrar impostos
4.1 Relação Jurídica entre Fisco Imperfeita
4.2 Relação Jurídica entre Fisco Perfeita
5. Conceção Ético-Jurídica da Justiça Fiscal
6. Os Deveres de Cooperação ou Colaboração enquanto Obrigações
Acessórias
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
68
1. Considerações Gerais
Ser cidadão implica antes de mais o reconhecimento de importantes direitos civis,
políticos e sociais.
Porém, o papel social e regulador do Estado tendo em vista a garantia dos direitos
dos cidadãos exige avultados investimentos públicos, justificando, assim, a
imposição da carga fiscal, pois que os impostos constituem a principal fonte de
receita estadual.
Pelo que, o pagamento de impostos não deve ser considerado apenas como uma
obrigação imposta pela lei, como também, como um dever fundamental de todos os
cidadãos.
No atual Estado de Direito, a simbiose entre a cidadania e a democracia comporta a
afirmação da responsabilidade comunitária dos cidadãos contribuintes para a
realização das tarefas fundamentais do Estado (Art. 9.º da CRP). Em consequência,
o dever fundamental de pagar impostos constitui o preço da nossa cidadania,
enquanto afirmação de um dever de todos, assente no princípio da capacidade
contributiva, e configurando igualmente um direito dos cidadãos à eficácia fiscal dos
poderes públicos.
Assim, para que o cidadão possa exigir os seus direitos dos entes públicos, os seus
deveres deverão ter sido observados.
Neste sentido, afirma Diogo Freitas Do Amaral «a cidadania não é só fonte de
privilégios: também é fundamento de obrigações cívicas. Todo o cidadão está sujeito
aos chamados “deveres de cidadania” - nomeadamente, o dever de acatar a
Constituição e as leis do país, o dever de participar na defesa da Pátria, o dever de
votar, o dever de pagar impostos» 31
31 Diogo Freitas do Amaral, 2007, Apud Paulo Marques, em “O elogio do imposto”, Wolters Kluwer Portugal sob a marca Coimbra Editora, 1.ª Edição, 2010, pág. 22.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
69
Assim, é de acentuar a inevitabilidade dos impostos como meio de alcançar a
capacidade financeira para satisfação das necessidades coletivas que incumbem ao
Estado, uma vez que os direitos dos cidadãos implicam a existência de custos cuja
sustentação não pode ser conseguida apenas com base no funcionamento normal
do mercado, nomeadamente respetivo preço, antes necessitando dos mecanismos
exclusivos do ius imperii do Estado Fiscal de Direito.
Com efeito, o preço fixado pelas entidades públicas pode não corresponder ao valor
que se formaria livremente no mercado, como são por exemplo os casos dos preços
públicos fixados relativamente às tarifas dos serviços públicos em que o preço fixado
não chega a cobrir o custo total da produção.
Em síntese, no atual Estado de Direito, os impostos constituem um preço: o preço
que pagamos por termos a sociedade que temos, ou seja, por dispormos de uma
sociedade assente na liberdade.
Pelo que, no atual Estado Fiscal, os impostos constituem inevitavelmente um dever
de cidadania, cujo cumprimento a todos nos deve honrar.
2. O que é a Cidadania Fiscal ?
Não ousaremos aqui propor respostas definitivas mas antes prestigiaremos as
perguntas às respostas, partindo, deste modo, de algumas questões tais como: que
exige a ética fiscal dos poderes públicos e dos cidadãos obrigados ao pagamento de
impostos ? Ou que princípios ou valores devem inspirar a atuação dos poderes
públicos e dos cidadãos para que a relação fiscal possa ser considerada justa ?
Sem nos esquecermos que o princípio da capacidade contributiva constitui um pilar
central da estrutura jurídico-fiscal portuguesa, como claramente se encontra
consagrado nos n.os 1 e 2 do Art. 104.º da CRP.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
70
Como refere Casalta Nabais “«A ideia de cidadania fiscal. A cidadania pode ser
definida como a qualidade dos indivíduos que, enquanto membros activos e
passivos de um estado-nação, são titulares ou destinatários de um determinado
número de direitos e deveres universais e, por conseguinte, detentores de um
específico nível de igualdade». 32
Por um lado, uma cidadania implica que todos suportem o Estado, isto é, que todos
tenham a qualidade de destinatários do dever fundamental de pagar impostos na
medida da respetiva capacidade contributiva (Art. 4.º, n.º 1, da LGT).
Por outro lado, os cidadãos têm o direito de ser adequadamente informados sobre a
origem e aplicação dos recursos públicos, fiscalizando a transformação dos tributos
pagos em obras e serviços de qualidade. O que implica que tenhamos um sistema
que se encontre balizado por estritos limites jurídico-constitucionais.
Para tanto, torna-se necessário sensibilizar a população para a função socio-
económica dos impostos e criar condições para uma relação harmoniosa entre o
Estado e o cidadão, de modo, a que seja dado a conhecer aos cidadãos sobre
administração pública bem como os incentivar a acompanhar a aplicação dos
recursos públicos.
Para o efeito, mostram-se fundamentais atividades de formação e educação, quer
no sentido moral, quer no sentido prático no sentido de ensinar os procedimentos
associados ao cumprimentos das obrigações fiscais, que visem transmitir a
mensagem de que os impostos são necessários para o bem comum, sendo
condenável evitar o pagamento dos mesmos.
De facto, a relação do Estado com a sociedade vem sendo edificada juntamente
com a história da própria humanidade. Analisar esta relação é, pois, falar sobre o
poder e sobre a vida em sociedade, como se organiza de forma a proporcionar aos
seus cidadãos o acesso aos recursos básicos que lhes possibilitem viver com
dignidade.
32 José Casalta Nabais, “Por um Estado Fiscal Suportável - Estudos de Direito Fiscal”, Almedina
2005, pág. 93.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
71
Na base dos conflitos entre o Estado e o contribuinte temos por um lado, a relação
entre a carga fiscal suportada e os serviços públicos prestados à população, e por
outro lado, a corrupção, o desvio de verbas públicas, a má aplicação dos dinheiros
públicos, o descuido com o património público, que não estimula o pagamento
voluntário dos impostos, antes, serve de pretexto para justificar a fuga e a fraude
fiscal.
Administração e a sociedade devem, assim, pugnar pela proteção das receitas
públicas, por forma a contribuir para uma tributação mais justa e para uma gestão
administrativa participativa e de efetividade no cumprimento das necessidades da
população.
E, o relacionamento dos contribuintes com a administração tributária,
nomeadamente no que diz respeito ao cumprimento das suas obrigações fiscais,
deve pautar-se por princípios de economia de custos, acessibilidade, simplicidade e
celeridade de resposta, prevenindo-se e sancionando as condutas de evasão e de
fraude fiscais.
Esta dualidade fiscal exprime mesmo uma ideia de alcance mais vasto, uma vez que
tem subjacente a primazia da liberdade.
Ainda na esteira de Casalta Nabais, na obra supra citada nas págs. 34 e 93, uma
noção de cidadania comporta três elementos constitutivos:
1) A titularidade de um determinado número de direitos e deveres numa sociedade
específica;
2) A pertença a uma determinada comunidade política (normalmente o Estado), em
geral vinculada à ideia de nacionalidade;
3) A possibilidade de contribuir para a vida pública dessa comunidade através da
participação.
Afirma ainda este autor que, «a cidadania traduz um determinado nível de igualdade
de todos os pertencentes a uma comunidade humana, concretizado num conjunto
de direitos e deveres universais.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
72
Conjunto este que, ao fim de uma bem conhecida evolução, se concretizou em
direitos e deveres de natureza pessoal (cidadania pessoal), direitos e deveres de
natureza política (cidadania política) e direitos e deveres de carácter social
(cidadania social). Com efeito, com o fim da distinção entre cidadania activa e
cidadania passiva ou, o que vem dar no mesmo, com a universalidade do direito de
voto, foi estendida a cidadania plena a todos os membros da comunidade.
Pelo que o estado passou a ter por suporte activo todos os membros da respectiva
comunidade. Ou seja, a existência e o funcionamento do estado passou a ser
assunto de todos.». 33
Pelo que, defende ainda este autor que, com a universalidade do direito de voto, foi
estendida a cidadania plena a todos os membros da comunidade todos os membros
da comunidade são, por um lado, suportes económicos do Estado, bem como
constituem, por outro lado, os seus suportes políticos. Verificando-se, por
conseguinte, que todos temos simultaneamente o dever de suportar financeiramente
o Estado e o direito e dever de ter uma palavra a dizer sobre os impostos que
estamos dispostos a pagar.
Relativamente, à questão em apreço, não podemos também de deixar de aludir a
posição de Eduardo Paz Ferreira, quando observa que «Estamos a assistir, de um
modo muito nítido, ao nascimento de uma nova cultura de cidadania fiscal. Há uns
anos, a fraude e a evasão fiscais eram encarados com muita tolerância na
sociedade portuguesa, aliás à semelhança de muitos países do sul da Europa, como
a Itália e a Espanha. Mais recentemente, tem emergido uma maior consciência
cívica por parte dos cidadãos. Aquilo a que os americanos chamam o tax payer, ou
seja, o contribuinte, pretende saber, com exactidão, se está a ser tratado como os
outros que fogem ao fisco. Essa fuga, por exemplo, em matéria empresarial, traduz-
se na criação de condições especialmente favoráveis para certas empresas que
escapam às obrigações tributárias relativamente às suas congéneres que cumprem
com o estipulado fiscalmente.». 34
33 José Casalta Nabais, “Por um Estado Fiscal Suportável - Estudos de Direito Fiscal”, Almedina 2005, págs. 34 e 35.
34 Eduardo Paz Ferreira, in Entrevista, Revista TOC, n.º 105, Lisboa, Dezembro 2008, pág. 8.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
73
Ainda na senda de Eduardo Paz Ferreira, defende aquele autor que, «Ultrapassados
os tempos em que os tributos eram considerados como uma punição imposta aos
vencidos da guerra, os impostos são, como todos sabemos, um dever de cidadania
e, também – perspetiva menos sublinhada-, um direito de cidadania. Ao pagarmos
impostos estamos a decidir em que modelo de sociedade queremos viver e que
meios estamos dispostos a proporcionar ao Estado.»35
Prosseguindo aquele autor que, «A nossa perceção da bondade da aplicação do
dinheiro que a este fim sacrificamos condiciona, de forma decisiva, a nossa atitude
em face da carga fiscal e da sua legitimidade. Pagamos impostos porque queremos
ter o direito de exigir ao estado que ele faça a melhor utilização destes recursos para
a otimização do bem-estar social e económico.
O crescente preço que pagamos para ter a sociedade civilizada, de que nos falava
Wendell Holmes, levou-nos, por outro lado, a ser cada vez mais exigentes no
escrutínio e análise daquilo que é feito com o nosso dinheiro…». 36
3. A Ética Fiscal
O dever de contribuir não é ainda alheio à tensão entre o interesse individual e o
interesse coletivo
Com efeito, pensar o direito fiscal atual e a ética que deve norteá-lo implica que se
reflita sobre questões que envolvem uma sociedade pluralista, desigual, injusta e
que se constitui a partir de um confronto permanente de distintas visões do mundo.
Neste sentido, a ética, perante uma sociedade marcada pelo individualismo, onde as
pessoas aparecem cativas dos seus próprios interesses e impulsos, e a vida social
não passa de uma associação de indivíduos que prosseguem fins individuais, tem
dificuldades de legitimação.
35 Eduardo Paz Ferreira, “Inspeção Tributária e Justiça Fical”, in “Desafios Tributários”, com coordenação de Nuno Barroso e Pedro Marinho Falcão, Vida Económica, 2015, pág. 68.
36 Idem, págs. 68 e 69.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
74
Não obstante, por outo lado, assistimos também à superação deste individualismo
que marca esta modernidade, na medida em que se verifica um avanço na
consciência e no apelo à defesa dos direitos que efetivam a dignidade da pessoa
humana.
É, pois, a partir dos novos desafios que se colocam ao homem contemporâneo que
devemos repor a pergunta dos fins últimos, quer na nossa dimensão individual, quer
quanto à nossa atuação coletiva.
A fiscalidade, enquanto atividade humana, implica a exigência ética da construção
de uma sociedade justa do ponto de vista dos sacrifícios de cada um deve, em
ordem a um bem maior do ser comum.
É, assim, impossível pensar a fiscalidade fora de uma perspetiva ética de justiça e
cidadania fiscais.
O ser humano é ético ou não. Um dos sentidos desta afirmação é que o ser humano
pode optar pelo rumo que imprimir às suas decisões e ações ao longo da sua vida.
É aqui que intervém a ética como orientação da vida, quer em relação aos seus
comportamentos pessoais quer em relação às ações coletivas, como é o caso do
poder de tributar conferido ao Estado.
Destarte, a ética propõe um estilo de vida visando a realização do individuo, em
conjunto com os outros, no âmbito de uma comunidade sociopolítica.
A ética fiscal, neste contexto, é um decisivo princípio mediador entre a necessidade
de recursos por parte do Estado e a liberdade de cada cidadão relativamente ao seu
comportamento em face dessa necessidade potestativa.
A ética fiscal revela-se, por conseguinte, numa profunda dialética entre a
individualidade e a comunidade e num equilíbrio entre lei e liberdade. Pelo que,
neste sentido, podemos afirmar que ética fiscal é justiça.
De facto, na fiscalidade nas sociedades modernas podemos descortinar duas
dimensões: a das situações concretas dos indivíduos, das famílias dos grupos, ou
seja dos contribuintes singulares ou coletivos, residentes e não residentes e não
residentes (dimensão micro) à da relação das grandes instituições, das nações, ou
seja, da relação entre o Estado enquanto titular de soberania e, em consequência,
do poder ou não tributar os seus cidadãos (dimensão macro).
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
75
Considerando que o pagamento de impostos implica uma diminuição da capacidade
financeira do cidadão e, em consequência, uma menor capacidade financeira para
este adquirir os bens e serviços que ambiciona, o imposto terá sempre para quem
paga um aspeto negativo, o que desde logo, desponta um motivo económico para o
seu não pagamento.
Pelo que, se torna imprescindível que esse aspeto negativo seja colmatado com os
benefícios que o cidadão recebe por viver numa sociedade organizada, que nunca
lograria atingir se vivesse isolado, nomeadamente no acesso saúde, educação,
infra-estruturas.
A cidadania, não é assim, uma fonte só de privilégios, mas também um fundamento
de obrigações cívicas. Todo o cidadão é sujeito de deveres de cidadania enquanto
membro de um Estado, devendo respeitar a Constituição e as leis. É, assim, titular
ou destinatário de um conjunto de direitos e deveres.
É, pois, necessário olhar o pagamento de impostos como um dever cívico, um dever
de cidadania, que todos têm a obrigação de observar.
A ética fiscal desdobra-se, assim, em duas vertentes distintas mas não
necessariamente antagónicas: ética fiscal privada e a ética fiscal pública.
3.1 Ética Fiscal Privada
Trata-se de uma ética de condutas que norteia o cidadão-contribuinte que tem o
dever fundamental de pagar impostos de acordo com a sua capacidade contributiva.
Assim, o dever de pagar o imposto não é tido como um castigo, mas antes como
contribuição. Sendo a capacidade contributiva considerada a capacidade de pagar o
imposto enquanto soma da riqueza disponível, depois de satisfeitas as necessidades
elementares de existência, sem reduzir injustamente o padrão de vida do
contribuinte e sem prejudicar as suas atividades económicas, sob pena de configurar
situações de confisco.
Pelo que, para o cidadão-contribuinte não é ético contribuir a menos para o
montante da riqueza social, em proporção daquilo que suas faculdades lhe
permitiam pagar, ou seja, o contribuinte não pode contribuir menos do que lhe
permite a sua capacidade contributiva, sob pena de saírem prejudicados outros
concidadãos com menos recursos.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
76
3.2 Ética Fiscal Pública
A ética fiscal pública é enformada por quatro valores superiores: a liberdade, a
igualdade, a segurança e a solidariedade.
i. A Liberdade
Que consiste na aceitação da opção fiscal a ser adotada pelo contribuinte, desde
que respeitada a sua capacidade contributiva.
As condutas ilegítimas que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da
prestação tributária bem como a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos
ou outras vantagens patrimoniais suscetíveis de causarem diminuição das receitas
tributárias, em Portugal encontram-se tipificadas nos art.os 103.º e 104.º do RGIT.
Por outro lado, à AT cabe aceitar, como regra, a liberdade de gestão fiscal dos
agentes económicos. A iniciativa económica privada deve exerce-se livremente, em
conformidade com o estabelecido pela Constituição e pela lei e tendo em conta o
interesse geral, nos termos do disposto pelo n.º 1 do Art. 61.º da CRP.
Na opinião conceituada de Casalta Nabais «A ideia de estado fiscal, vista pelo
prisma dos indivíduos — que o mesmo é dizer pelo prisma dos suportes passivos
dos contribuintes dum tal estado —, significa o reconhecimento da livre
disponibilidade económica dos particulares». 37
Entende-se que, no atual contexto de um mundo globalizado, em que as pessoas,
as mercadorias, os serviços e os capitais circulam livremente, o desenvolvimento
económico de um país não pode depender só do Estado. A iniciativa privada tem
também um papel relevante, devendo haver plena liberdade de escolha, cabendo a
cada um investir onde, quando e como lhe convier, e deve contribuir para o aumento
da competitividade.
37 José Casalta Nabais, “O Dever Fundamental de Pagar Impostos”, Colecção Teses, Almedina, Coimbra 1998, pág. 204.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
77
Aos Estados cabe criar condições de atração para captar o investimento,
nomeadamente através do sistema fiscal.
Assim, a par de se estabelecerem benefícios fiscais o legislador fiscal deve permitir
a chamada poupança fiscal, sendo lícitos certos negócios fiscalmente menos
onerosos, no intuito a minimizarem os custos fiscais que resultam das atividades
desenvolvidas pelos contribuintes, que a doutrina designa por planificação fiscal (tax
planning).
Um dos elementos essenciais da liberdade económica dos contribuintes constitui
justamente a gestão fiscal e as operações de planeamento tributário.
A este respeito assinala Joaquim Cardoso Da Costa que «ninguém sustentará que
não seja lícito aos contribuintes — cidadãos e empresas abster-se de praticar actos
que constituam pressupostos de determinados tributos, ou praticar outros que, por
exemplo, dêem azo a deduções na matéria colectável. Dito de um modo mais geral:
que lhes não seja lícito conduzir a sua vida, os seus negócios, os seus
investimentos, tentando escolher um “caminho” fiscalmente isento ou menos
pesado. Têm os cidadãos, em virtude da liberdade de escolha de que usufruem, a
possibilidade de efectuar, legalmente, o melhor planeamento fiscal da sua vida que
conseguirem». 38
Não obstante, o exercício dos direitos dos contribuintes no âmbito da gestão fiscal
(tax planning) tem que ser conforme à Constituição e à lei bem, bem como não pode
exceder os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou
económico desses direitos (Art. 334.º do CC). Ou seja, a chamada poupança fiscal,
que visa minimizar os custos fiscais dos cidadãos e das empresas, não pode efetua-
se através do que se designa por evasão fiscal.
38 Joaquim Pedro Formigal Cardoso da Costa, “A evasão e fraude fiscais face à teoria da interpretação da lei fiscal” — Fisco n.º 74/75, Ano VIII, Lisboa, Janeiro-Fevereiro 1996, págs. 41 e 42.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
78
Neste sentido, o Conselheiro Freitas Ferreira «a diminuição dos impostos a pagar
efectua-se através do que se designa por evasão fiscal (“tax avoidance”) e que outros
apelidam de elisão fiscal, que se traduz na prática de actos ou negócios lícitos mas que
a lei fiscal qualifica como não sendo conformes com a substância da realidade
económica que lhes está subjacente ou serem anómalos, anormais ou abusivos. Nesta
qualificação detecta-se, ao contrário do que sucede na gestão fiscal, a intenção do
legislador de abranger tais actos ou situações pela tributação e de acordo com os
padrões ditos normais para a realização de tais actos ou operações. Estar-se-ia, assim,
perante uma poupança fiscal realizada através de factos ou situações que o legislador
tem a intenção de cobrir mas que, por esta ou aquela razão, não se encontram
expressamente previstos pela lei fiscal ou, se nela previstos, são realizados em
condições diferentes das normais, e que a lei fiscal, através de normas gerais ou
especiais anti-abuso, combate, promovendo as correcções de impostos a que haja lugar
tomando por referência os factos, situações ou condições que são escolhidos como
referência».39
ii. A Igualdade
No sentido de que todos que estiverem na mesma situação devem ser tratados de
forma igual.
O princípio da igualdade é um princípio jurídico-constitucional, transversal a todo o
ordenamento jurídico.
A nível do Direito Fiscal, expressa-se na obrigação universal de todos os cidadãos
terem o dever de pagar de impostos. Consistindo, uma das dimensões do princípio
da igualdade a proibição do arbítrio. Assim, deve ser tratada de forma igual as
situações iguais, e de forma desigual as situações desiguais.
A este respeito assinala Sérgio Vasques «Em primeiro plano, o princípio da igualdade
tributária exige a generalidade do imposto, exige que todos o sofram sem privilégio ou
exceção — todos os cidadãos, todos os residentes ou todos os sujeitos de direito. Em
segundo plano, o princípio da igualdade tributária exige a uniformização do imposto. O
mesmo é dizer, exige que se trate o que é igual de modo igual, o que é diferente de
modo diferente e na medida exata da diferença».40
39 Manuel Henrique de Freitas Ferreira, 2005, Apud Paulo Marques in “O elogio do imposto”, Wolters Kluwer Portugal sob a marca Coimbra Editora, 1.ª Edição, 2010, pág. 37.
40 Sérgio Vasques, “Globalização e Igualdade Tributária, Colóquio: Os efeitos da globalização na
tributação do rendimento e da despesa”, Ciência e Técnica Fiscal, n.º 188, Centro de Estudos e Apoio
às Políticas Tributárias, Administração Geral Tributária, Lisboa, 2000, pág. 433.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
79
Destarte, em termos fiscais, a obrigação do pagamento de impostos é mediada em
função da capacidade contributiva, ou seja, os encargos do Estado Social de Direito
devem ser repartidos equitativamente por todos os contribuintes, em conformidade
com o princípio da igualdade dos sacrifícios patrimoniais, decorrendo a aplicação
dos critérios da capacidade contributiva e do rendimento real.
Na esteira de Vítor Faveiro salientava-se que «como indivíduos, os contribuintes
diferem entre si quanto aos graus de capacidade contributiva, obviamente que, em tal
plano, o princípio de igualdade tem por objecto, quanto às pessoas; o tratamento igual
de todos os que tenham igual capacidade contributiva segundo os critérios tomados pela
lei na tipificação das realidades de incidência; e, quanto às coisas — objecto de
impostos reais ou bases reais da capacidade em impostos pessoais —, devem estas ser
tomadas pelo legislador em tratados em termos de igualdade pelo aplicador da lei de
incidência».41
Nos termos do Art. 13.º da CRP todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e
são iguais perante a lei. Assim, nas palavras dos constitucionalistas Gomes
Canotilho e Vital Moreira «A proibição do arbítrio constitui um limite externo da
liberdade de conformação ou de decisão dos poderes públicos, servindo o princípio da
igualdade como princípio negativo de controlo. Nesta perspetiva, o princípio da
igualdade exige positivamente um tratamento igual de situações de facto iguais e um
tratamento diverso de situações de facto diferentes».42
Na Constituição, o princípio da legalidade do imposto, conjugado com o da
anualidade, reflete-se também nos preceitos contidos nos artigos 103º, n.º 2, 104º,
n.º 1 e 165º, n.º 1 alínea i).
Resulta assim que, no âmbito da fiscalidade o legislador não tem em vista a
igualdade estática ou redutora, mas antes que se iguale o que deve ser igualado e
se diferencie o que deve ser diferenciado.
A este propósito não podemos deixar de referi a o que refere o constitucionalista
Jorge Bacelar Gouveia «O ponto de viragem que se estabelece é a ideia de que a
igualdade, mais do que a dimensão estática da lei, seja positiva ou negativa, propicia
por parte da própria lei uma busca activa da mesma, que passa a ser uma igualdade,
não da lei, mas através da lei.
41 Vítor Faveiro, “O Estatuto do Contribuinte — A Pessoa do Contribuinte no Estado Social de Direito”,
Coimbra Editora, Coimbra, 2002, pág. 831. 42 J. J. Gomes Canotilho, & Vital Moreira, “Constituição da Republica Portuguesa, Anotada”, 4.ª Edição Revista, Volume I, Coimbra: Coimbra Editora, 2007, pág. 339.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
80
Nisto consiste o princípio da igualdade social como correcção e adequação do princípio
da igualdade desenvolvido em ambiente de Estado Social, o qual se ergue ao nível das
opções do Estado, que deixa de ser neutro, para assumir este programa de
transformação da realidade constitucional. A aplicação do princípio da igualdade social,
como aspecto nuclear do princípio social, especifica-se por intermédio da adopção de
mecanismos mais cogentes de discriminação positiva, abstractamente concedendo
vantagens a certos grupos de pessoas em situação de perda inicial, que de outra forma
não poderiam beneficiar da lógica do princípio da igualdade. Daí que se possa falar hoje
de um Direito da Igualdade Social, que tem precisamente por objecto espelhar todas as
transformações que ao nível do Direito — embora esta temática em muito o ultrapasse
— acontecem com o fito de alcançar essa preocupação social, essencialmente através
de esquemas de discriminação positiva».43
No que concerne à questão da discriminação positiva dos contribuintes salientamos
o facto de nos casos dos benefícios fiscais, permanentes ou temporários
dependentes de reconhecimento da administração tributária, quando o sujeito
passivo beneficiário, tenha deixado de efetuar o pagamento de qualquer imposto
sobre o rendimento, a despesa ou o património e das contribuições relativas ao
sistema da segurança social, e se mantiver a situação de incumprimento, o ato
administrativo que os concedeu cessa os seus efeitos, nos termos do disposto pela
alínea a), do n.º 5 do Art.14.º, do EBF.
iii. A Segurança
Que pugna pela não tributação desconforme com a Constituição e a lei. Evitando-se,
assim, a tributação-surpresa dos contribuintes.
Assim, tal como se encontra consagrado no n.º 3, do Art. 103.º da CRP «Ninguém
pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da
Constituição, que tenham natureza retroativa ou cuja liquidação e cobrança se não
façam nos termos da lei».
43 Jorge Bacelar Gouveia, “Manual de Direito Constitucional”, Volume II, Almedina, Coimbra, 2005, págs. 941 e 942 .
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
81
Pelo que, o legislador está impedido de criar ou aumentar impostos retroativamente.
Com efeito, no que concerne à aplicação da lei tributária no tempo, dispõe o Art. 12.º
da LGT que as normas tributárias aplicam-se aos factos posteriores à sua entrada
em vigor, não sendo permitida a criação de impostos retroativos.
Acresce que, a lei só dispõe para o futuro, ainda que lhe seja atribuída eficácia
retroativa, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos
que a lei se destina a regular (Art. 12.º do CC).
A Constituição da República Portuguesa estabelece no nº 2 do Art. 103.º que
“Ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos
termos da Constituição, que tenham natureza retroativa…”
Pelo que o disposto no Art. 12.º da LGT deverá ser aplicado em conformidade
aquela norma constitucional.
Este princípio postula, deste modo, uma ideia de proteção da confiança dos
cidadãos e da comunidade na estabilidade da ordem jurídica e na constância da
atuação do Estado.
E, para que exista essa confiança é necessário que as normas jurídicas gerem nos
cidadãos expetativas de continuidade do comportamento estadual.
Em matéria de impostos uma norma é retroativa quando se refere a factos ocorridos
anteriormente à sua entrada em vigor, tenham tais factos o valor de factos tributários
ou de factos impeditivos.44
Assim, a lei fiscal apenas rege para o futuro, não sendo permitido a aplicação da lei
nova a factos anteriores à sua entrada em vigor.
Segundo Lima Guerreiro, nos termos deste preceito legal é a lei em vigor no
momento da sua emissão que afere a validade dos atos da administração
tributária.45
44 Neste sentido Alberto Xavier, “Manual de Direito Fiscal I”, Manuais da faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa 1974, págs. 196 e 197.
45 António Lima Guerreiro, “Lei Geral Tributária — Anotada”, Editora Rei dos Livros, Lisboa, 2001, pág. 89.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
82
Para os constitucionalistas Gomes Canotilho e Vital Moreira perante imposições
fiscais retroativas, parece existir, para além de uma ofensa ao princípio geral de
irretroatividade das obrigações públicas em geral, como também ao princípio do
Estado de direito democrático (Art. 2.º), naquilo em que este pressupõe a
salvaguarda de um mínimo de confiança e segurança dos cidadãos, que os ponha a
salvo de inesperadas e arbitrárias imposições de novas obrigações.46
Como refere Vítor Faveiro, uma vez que as leis que criam impostos ou agravam as
taxas, restringem os direitos individuais de disposição plena e livre dos próprios
haveres, para este autor, a publicidade que a CRP é essencial, pois que as torna
suscetíveis de ser conhecidas por todos os cidadãos, em tempo de estes, por efeito
da prática de certos atos que podem limitar os seus direitos de livre disposição dos
seus bens, poderem optar livremente antes de esses atos serem praticados.
Prossegue ainda Vítor Faveiro, no sentido de que a admissão da retroatividade das
leis tributárias constituiria a mais grave e ostensiva negação do próprio Direito, e na
confiança dos cidadãos na ordem jurídica.
De facto, violar-se-ia o mínimo de certeza e de segurança que as pessoas devem
poder depositar na ordem jurídica, o que ofende de modo ostensivamente
inaceitável e intolerável, claramente o princípio da segurança jurídica e da confiança
dos cidadãos e da comunidade que hão de poder depositar na ordem jurídica.
Por último, entendemos ainda ser relevante referir que para Clotilde Palma «Um dos
elementos essenciais do Estado de Direito é a certeza ou segurança, que, atenta a
peculiaridade do Direito Fiscal, assume especial relevância neste domínio,
concretizando-se, designadamente, na previsibilidade e calculabilidade da
tributação. De facto, o Direito Fiscal é de todos os ramos de Direito aquele onde a
segurança jurídica mais releva, porquanto, atentos os valores em causa, os
cidadãos não podem estar sujeitos a decisões imprevisíveis, destituídas de regras
que lhes atribuam a previsibilidade e transparência desejáveis. Em suma, a
realidade fiscal deve poder ser controlada pelos contribuintes a quem devem ser
46 J. J. Gomes Canotilho, & Vital Moreira, “Constituição da Republica Portuguesa, Anotada”, 4.ª Edição Revista, Volume I, Coimbra: Coimbra Editora, 2007, págs. 1092 e 1093.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
83
dadas a conhecer e a computar, de forma clara, precisa e antecipada, as respetivas
obrigações fiscais. O princípio da confiança na lei fiscal, um dos princípios
informadores do Estado de Direito, implica precisamente a previsibilidade e a
mensurabilidade ou calculabilidade dos encargos fiscais».47
iv. A Solidariedade
Enquanto prestação pecuniária, coativa, unilateral, definitiva e sem carácter de
sanção, o imposto pago ao Estado ou outros entes públicos, tem em vista a
satisfação de fins públicos, ou seja a realização de bens e serviços que, pelas suas
características, podem ser utilizadas simultaneamente por todos.
Pelo que, o pagamento de impostos assente essencialmente na capacidade
contributiva, está estreitamente conexo com o princípio da solidariedade social.
Efetivamente, pagar os impostos constitui uma obrigação que tem como objetivo
custear as despesas coletivas, nomeadamente com saúde, educação, segurança,
saneamento, transporte e cultura.
Sem a intervenção pública que as receitas provenientes do pagamento de impostos
permite, ficaria certamente comprometido o nível mínimo de satisfação coletiva de
bens e serviços essenciais à dignidade humana.
Aqueles que têm maior capacidade contributiva têm, pois, o dever de solidariedade
obrigatória de contribuir em maior proporção para a realização das tarefas
fundamentais do Estado.
A justiça tributária está, assim, também ligada com o ser solidário, na medida em
que os desprotegidos e carentes, que não podem suportar o ónus fiscal do Estado,
vão beneficiar dos bens e serviços coletivos, por força dessa solidariedade tributária,
mediante a arrecadação e distribuição das receitas provenientes do pagamento de
impostos dos cidadãos-contribuintes, com capacidade para tanto.
47 Clotilde Celorico Palma, 1995, Apud Paulo Marques, em “O elogio do imposto”, Wolters Kluwer Portugal sob a marca Coimbra Editora, 1.ª Edição, 2010, pág. 54.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
84
Com efeito, muitos fins humanos só podem ser alcançados desde que os indivíduos
se associem e partilhem entre si esforços ou meios de ação. Só assim, é que se
torna possível realizar empreendimentos superiores às forças individuais.
A este propósito, importa referir que assinala Vítor Faveiro que «O tributo e mais
designadamente o contributo fiscal de ordem pecuniária para a satisfação financeira das
necessidades colectivas ou para a realização de fins públicos equiparados, é, assim, um
elemento inato e inerente à qualidade de socialidade da pessoa humana: Se o homem
não pode viver ou realizar-se, como tal, senão em sociedade, é obviamente, a pessoa
humana, como ser social, que, por um lado, participa da existência de necessidades
colectivas para se realizar como ser social e, por outro lado, tem de contribuir para a sua
satisfação e para a realização de todos. De onde resulta que é da pessoa-cidadão que o
Estado recebe a legitimidade de estabelecer e exigir impostos».48
Poderão os defensores da liberdade económica questionar este papel do Estado
Social em garantir a solidariedade entre todos os cidadãos por via do tributo.
Contudo, a este propósito, perfilhamos o entendimento de Marco Aurélio Greco, o
qual evidencia que «Não se trata de a liberdade valer mais que a solidariedade ou a
solidariedade mais que a liberdade. Não há predomínio de um sobre o outro. Há, isto
sim, necessidade de compor liberdade com solidariedade e solidariedade com
liberdade. Vale dizer: um não pode aniquilar o outro, não é por levantar a bandeira
da capacidade contributiva que isto pode levar a um aniquilamento da liberdade
individual de agir e de escolher os seus caminhos; também não é a bandeira da
liberdade que pode atropelar a capacidade contributiva pura e simplesmente
escapando da tributação que deveria haver se e na medida em que ocorrer
manifestação de capacidade contributiva».49
O Estado de John Rawls é, igualmente, muito útil para esta reflexão.50
48 Vítor Faveiro, “O Estatuto do Contribuinte — A Pessoa do Contribuinte no Estado Social de Direito”, Coimbra Editora, Coimbra, 2002, pág. 186.
49 Marco Aurélio Greco, 2004, Apud Paulo Marques in “O elogio do imposto”, Wolters Kluwer Portugal sob a marca Coimbra Editora, 1.ª Edição, 2010, págs. 60 e 61.
50 Parece-nos, pois, mais uma vez oportuno seguirmos alinhavando alguns apontamentos sobre a
justiça tributária, tendo como pano de fundo a visão filosófica de John Rawls.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
85
4. O Direito Fundamental de Cobrar Impostos
A cidadania além da relação do cidadão com o poder comporta uma ligação entre o
reconhecimento de importantes direitos e a afirmação da responsabilidade
comunitária dos cidadãos-contribuintes.
No Moderno Estado Fiscal de Direito, o dever fundamental de pagar impostos
constitui, como já vimos, um dever ético-social de todos, sendo esta uma importante
manifestação da cidadania fiscal.
Neste sentido, a conceção de Casalta Nabais «o estado fiscal implica uma cidadania
de liberdade cujo preço reside em sermos todos destinatários do dever fundamental
de pagar impostos».51
Em Portugal, a conceção de cidadania adquire consistência jurídica na própria CRP
que, logo na sua Parte I, enumera, define e garante os direitos e deveres
fundamentais, começando por estabelecer alguns princípios, passando depois aos
direitos, liberdades e garantias pessoais, de participação política e dos trabalhadores
e concluindo com os direitos e deveres económicos, sociais e culturais.
Este autor defende a liberdade do individuo em escolher a sua posição económica e social numa sociedade democrática. Ora, melhores condições de vida, mais acesso aos bens de consumo, mais renda, no modelo de Rawls implica maior pagamento de impostos, contribuindo assim para o aumento da poupança colectiva, ou seja, produzindo mais receita tributária em benefício daqueles que não alcançam igual posição económica. Para Rawls, sonegar tributos é sonegar a receita dos mais pobres, portanto, é tornar ilegítima a riqueza particular e o sistema jurídico que a fomenta: injusto. Numa sociedade democrática há bens primários, cuja característica principal é a de serem essenciais à sobrevivência digna de todos os indivíduos. Assim, falar em justiça social, versa-se sobre a necessidade de aproximar as pessoas, de se cuidar pela redução das desigualdades. Tarefa que alberga todas as esferas sociais, e que deve ser compreendido em sentido amplo, de modo a acolher desde as normas de tutela laboral àquelas relacionadas à oferta de educação, segurança, cultura, informação etc. Pelo que, a todos os cidadãos devem ter acesso obrigatório a uma casa, escola, saneamento básico, alimentação, saúde, salários dignos, cultura. E, a oferta dos bens desta natureza é de obrigação do poder público. No campo da tributação estes bens primários hão-de ser protegidos da tributação, e é justamente em nome desta proteção que os governos democráticos estão legitimados à coleta de tributos. Nesse sentido, a teoria desenvolvida por John Rawls vê nas instituições básicas da sociedade o enfoque principal da justiça. Para ele, os sistemas sociais devem ser estruturados de maneira que a distribuição resultante seja justa, para que se possa falar em justiça fiscal.
51 José Casalta Nabais, “Por um Estado Fiscal Suportável — Estudos de Direito Fiscal”, Almedina, Coimbra, 2005, p. 34.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
86
Assim, por ser tratar de um direito fundamental, a ideia jurídica de cidadania
repercute-se em todos os quadrantes do direito.
No que concerne à cidadania fiscal, uma reflexão sobre o tema envolve aspetos
relacionados com a ética fiscal, como já atrás afirmamos e, por conseguinte,
enformada por o valor solidariedade.
Deste modo, a melhor doutrina refere a existência de uma relação procedimental
entre dois sujeitos (ativo e passivo) não necessariamente antagónica, mas
sobretudo de colaboração recíproca (Art.os 59.º da LGT e 9.º do RCPITA).52
A relação tributária que se estabelece entre o fisco e o cidadão deve ser, segundo
alguma doutrina, contemporaneamente pensada sob dois prismas, a saber: Perfeita
e Imperfeita:
4.1 Relação Jurídica entre Fisco Imperfeita
Do ponto de vista dos efeitos desta relação, podemos afirmar que ela é imperfeita.,
uma vez que o cidadão-carente é protegido, tem apenas a posição de sujeito credor
da solidariedade do Estado e, o Estado, por sua vez, tem meramente a posição de
sujeito devedor desta solidariedade.
Neste sentido, estes cidadãos desprotegidos têm o direito à não tributação do
mínimo de existência, pois que são apenas credores da solidariedade.
A sua cidadania fiscal constitui esse direito à não tributação do mínimo de
existência, ou mínimo social, índice considerado justo de bens e serviços de primeira
necessidade, abaixo do qual as pessoas simplesmente não podem participar da
sociedade como cidadãos livres.
Porém, a questão da cidadania fiscal não se esgota, aqui. Para que se verifique uma
proteção fiscal aos cidadãos desprotegidos, terá que existir, recursos disponíveis
para uma atuação solidária e justa por parte do Estado.
52 Nesta linha, Lima Guerreiro refuta “a imagem de uma Administração Tributária toda poderosa perante um contribuinte em posição de mera sujeição. O procedimento tributário desenvolve-se em estrita e constante cooperação entre o contribuinte e a administração tributária” , in “Lei Geral Tributária — Anotada”, Editora Rei dos Livros, Lisboa, 2001, pág. 268.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
87
4.2 Relação Jurídica entre Fisco Perfeita
Aquela em que a relação jurídica entre fisco e cidadão-contribuinte, quanto aos seus
efeitos, é perfeita, ou seja, há obrigações mútuas e recíprocas.
A ideia de cidadania fiscal, defendida por Casalta Nabais, deixa antever que a
existência de uma cidadania fiscal em que relação jurídica entre fisco e cidadão-
contribuinte, quanto aos seus efeitos, é perfeita, pois que pressupõe que os
cidadãos que têm o dever de suportar o ónus financeiro do Estado, ou seja, têm o
dever fundamental de pagar tributos na medida da respetiva capacidade
contributiva. O que permite que o contribuinte tenha uma margem de liberdade para
atuar, desde que não viole expressa e diretamente os a Constituição e a lei. Essa
liberdade dos cidadãos-contribuintes tem, portanto, limites.
Pelo que, para além de se verificar sobre a licitude ou ilicitude da conduta do
contribuinte, isto é, a de saber se a conduta se materializou antes ou depois do facto
económico, cabe também verificar se o contribuinte adotou uma forma ética para
pagar o tributo, proporcional e razoavelmente de acordo com a sua capacidade
contributiva. Isto é, se o fez valendo-se dos meios jurídicos de forma adequada ou,
pelo contrário, se abusou dos meios jurídicos para sofrer carga fiscal inferior à sua
capacidade económica.
5. Conceção Ético-Jurídica da Justiça Fiscal
A teoria da justiça do pensador americano John Rawls tornou-se uma das obras
centrais da filosofia política contemporânea, sendo ainda hoje alvo de muitos
comentários, críticas, aperfeiçoamentos ou desdobramentos.
John Rawls representa o empenho da filosofia política em estabelecer parâmetros
éticos para a redefinição do modelo de justiça distributiva.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
88
É evidente o carácter ético da sua teoria, na medida em que a sua visão filosófica se
materializa nas seguintes pretensões morais de validade:
a) a pretensão de tratamento igual entre as pessoas;
b) a pretensão de consistência entre discurso e ações;
c) a pretensão de adoção de perspetivas.
Para falarmos em Justiça Fiscal numa sociedade democrática é necessária uma
forte regulação na distribuição de bens na estrutura básica da sociedade, bem como
a existência de cidadãos-contribuintes que contribuem para o fundo comum público
destinado a garantir a oferta de bens e de serviços impossíveis de serem
assegurados, com equidade, a todos os cidadãos, se apenas fossem assegurados
pelo mercado.
A garantia da oferta básica de tais bens e serviços passa pela não tributação dos
desfavorecidos, pois que se assim não o fosse redundaria na perda da dignidade no
âmbito económico, político, social e jurídico-fiscal.
Como já referimos, o pensador americano John Rawls pugna pela liberdade do
indivíduo em escolher a sua posição económica e social numa sociedade
democrática a saber, melhores condições de vida, mais acesso aos bens de
consumo, mais rendimento. Defendendo este autor a contribuição dos mais
afortunados, em termos económicos, deve ser maior, produzindo receita fiscal em
benefício daqueles que não desfrutam igual posição económica, contribuindo, assim,
para o cumprimento dos princípios de igualdade e proporcionalidade na distribuição
da carga fiscal.
Dito de outro modo, pode-se enriquecer, é certo, mas, todavia, em nome do ideal de
justiça tributária, paga-se mais impostos sobre a riqueza acumulada.
Numa sociedade há bens e serviços indispensáveis à sobrevivência digna de todos
os indivíduos, a eles todos devendo ter acesso. Sendo a sua prestação compete ao
poder público, ainda que o Estado se possa socorrer do mercado para os garantir.
Tanto mais evoluída será, pois, a sociedade democrática, do ponto de vista da
tributação, quanto mais ela garantir a prestação daqueles bens e serviços primários
e outros que, igualmente, possam contribuir para o padrão de dignidade humana dos
seus cidadãos, sem o recurso ao mercado.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
89
6. Os Deveres de Cooperação ou Colaboração enquanto Obrigações Acessórias
Nos termos do disposto pelo Art. 59.º da LGT a relação jurídica tributária pauta-se
pelo dever de colaboração, recíproco, entre os órgãos da administração tributária e
os contribuintes.
Conforme já referimos, nem sempre os particulares tiveram tanta intervenção e,
mesmo, poder no seio da relação jurídica-tributária, como têm hoje em dia. Ora, as
várias fases que se foram desenvolvendo, relativas ao procedimento de
determinação, liquidação e cumprimento das obrigações fiscais para os particulares,
fizeram despoletar a criação de um conjunto de normas com características próprias,
cujos destinatários são os próprios sujeitos passivos.
O cumprimento destas normas está assegurado por díspares tipos de sanções
administrativas ou penais, sanções essas que podem mesmo ser aplicadas ainda
que não exista uma dívida de imposto.
A criação de tais normativos tem como fim definir, delimitar e regulamentar os
deveres de cooperação e de colaboração, enquanto deveres de prestar não-
pecuniários, ou seja, autênticas obrigações de conduta, que têm uma importância
significativa na relação jurídico-tributária.
Podemos afirmar que deveres de cooperação ou deveres de colaboração são, pois,
como assinala Saldanha Sanches que, o conjunto de deveres de comportamento
que resultam das obrigações que têm por objeto prestações de facto e de conteúdo
não diretamente pecuniário, com o objetivo de permitir à administração fiscal
investigar e determinar os factos fiscalmente relevantes.
Assim, a par das prestações fiscais pecuniárias, existem também as prestações não-
pecuniárias, que possibilitam a determinação exata das primeiras.
Por conseguinte, os deveres de colaboração granjearam um grande protagonismo
nos nossos dias, acompanhando as reformas que foram sendo empreendidas no
âmbito da gestão tributária.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
90
Tais deveres de cooperação que temos vindo a falar, são designados pelo sistema
fiscal português por obrigações acessórias ou obrigações declarativas acessórias.
Todavia, alguma doutrina não acolhe de bom grado o caráter de acessoriedade que
o legislador português adotou para qualificar estas obrigações.
Relativamente a estas obrigações o Prof. Saldanha Sanches defende que ao
atribuir-lhes esta terminologia, estar-se-á a relativizar a importância que a mudança
de paradigma do processo de gestão fiscal trouxe consigo.
Com efeito, ao contrário do que sucedia anteriormente, em que os contribuintes se
limitavam ao pagamento do imposto, a evolução do ordenamento jurídico tributário
trouxe a necessidade do aparecimento de inúmeros deveres de conduta em face
dos contribuintes passarem a assumir um papel principal em todo o processo de
autoliquidação.
Defende ainda aquele autor que os códigos dos diferentes impostos denominam
legalmente por “obrigações acessórias” refere-se ao «conjunto de novos deveres
integrados em obrigações de facere e cuja existência deixou de estar dependente da
verificação da obrigação de dare.». Ou seja, estes deveres ocorrem quer haja ou
não uma obrigação principal de pagamento de imposto, não correspondendo assim
aos “deveres acessórios” das obrigações tal como conceptualizados pela doutrina
civilista, facto que, por si só, basta para fundamentar que têm uma autonomia e uma
existência própria.53
Por essa razão, não parece sensato designar estas obrigações por acessórias,
tendo em conta o fim as mesmas assumem atualmente no ordenamento jurídico-
tributário.
Acresce que, como já vimos, o eventual incumprimento dos deveres de cooperação,
independentemente do pagamento ou não da obrigação principal, por configurar
uma violação de uma imposição legal, poderá gerar a responsabilidade contra-
ordenacional do sujeito passivo infrator.
53 José Luís Saldanha Sanches, “A Quantificação da Obrigação Tributária – Deveres de Cooperação,
Autoavaliação e Avaliação Administrativa”, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, N.º 173, Lisboa: Centro de Estudos Fiscais, 1995, págs. 70 a 87.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
91
Num primeiro plano temos aqueles deveres de cooperação que têm uma ligação
estreita com os deveres de prestação pecuniária do sujeito passivo. Nesta situação,
temos o caso em que os sujeito passivo, pelo facto de preencher uma determinada
norma de incidência, nos termos da qual é devedor de imposto, e está,
simultaneamente, sujeito a um dever de declarar. Contudo, esta obrigação de
declarar é autónoma na medida em que a lei prevê sanções para o seu não
cumprimento, sanções essas que existem por si só, independentes do dever de
prestação.
De igual modo, a mera constituição de uma sociedade para o exercício de uma
atividade económica no intuito de obter lucro, gera o cumprimento de um dever
declarativo, que é alheio ao principal motivo da sua constituição. Sendo o momento
de cumprimento deste dever, anterior ao início da atividade da sociedade, ele não
depende, como é evidente, da efetiva existência de rendimentos, ou sequer da
expetativa da sua produção. O dever existe desde logo, no momento em que se
forme a intenção de início de uma atividade.
Com a declaração em causa pretende-se dar a conhecer à administração fiscal a
existência de um sujeito passivo que pode potencialmente auferir rendimentos
sujeitos a tributação.
Assim, no caso do nosso exemplo, para que exista o dever de pagamento de IRC é
necessário, desde logo, que exista uma sociedade comercial. Num segundo
momento, para que se constitua uma dívida de IRC, é necessário que essa
sociedade obtenha lucro ou que a administração esteja legalmente na posse de
elementos que permitam que tal lucro se presuma.
Todavia, para que exista um dever de declarar, quer o início de atividade (Art. 118.º
do CIRC), quer a declaração periódica de rendimentos (Art. 120.º do CIRC), quer a
declaração anual de informação contabilística e fiscal (Art. 121.º do CIRC), é
suficiente que essa sociedade exista, ao preencher na totalidade a previsão legal
que está ligada aos deveres declarativos.
Pelo que, a norma de incidência da factualidade que origina o nascimento do dever
de uma prestação pecuniária não é a mesma que torna obrigatório o cumprimento
de deveres declarativos ou outros deveres de cooperação.
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CAPÍTULO IV
A RELAÇÃO JURÍDICA TRIBUTÁRIA
1. Elementos Estruturais da Relação Jurídica-Tributária
1.1 Sujeitos da Relação Jurídica-Tributária
i. Os Substitutos Tributários
ii. Os Sucessores Tributários
iii. Os Responsáveis Tributários
1.2 Objeto e o Facto da Relação Jurídica-Tributária
1.3 A Garantia da Relação Jurídica-Tributária
2. A Relação Jurídica-Tributária
2.1 A relação jurídico-tributária obrigacional
2.2 A Relação Jurídico-Tributária Complexa
3. A Evolução do Modelo de Gestão do Sistema Fiscal
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
93
1. Elementos Estruturais da Relação Jurídica-Tributária
Em Sentido lato, relação jurídica é qualquer relação da vida social que seja
juridicamente relevante, isto é, a que o direito atribua efeitos.
Em sentido restrito é a relação da vida social que o direito regula mediante a
atribuição a uma pessoa de um direito e a imposição a outra pessoa de um dever
jurídico ou de uma sujeição.
A doutrina analisa a relação nos seguintes elementos: sujeitos, objeto, facto e
garantia.
O n.º 2, do Art. 1.º da LGT estabelece que “Para efeitos da presente lei, consideram-
se relações jurídico-tributárias as estabelecidas entre a administração tributária,
agindo como tal, e as pessoas singulares e coletivas e outras entidades legalmente
equiparadas a estas.”
A relação jurídica tributária, por ser espécie de relação jurídica, tem a mesma
estrutura. Contudo, há certas peculiaridades da relação jurídica tributária que devem
ser levadas em consideração.
Desde logo a relação jurídica é regulada pelo Direito Tributário, que é ramo do
Direito Público e, por isso, as respetivas normas são coercivas e estando o Estado,
no âmbito do seu poder de autoridade, investido do ius imperii.
Este vínculo é, assim, enformado pelos poderes que o credor detém com os
correspondentes deveres impostos ao sujeito passivo da relação e forma o núcleo
central da obrigação.
Além disso, a relação jurídica tributária está diretamente fundamentada sempre na
lei, por força do consagrado no n.º 3, do Art. 103.º da CRP, nos termos do qual
“Ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos
termos da Constituição, que tenham natureza retroativa ou cuja liquidação e
cobrança se não façam nos termos da lei.”
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
94
São, assim, em resumo útil, os seguintes os elementos estruturais da relação
jurídica tributária:
1.1 Sujeitos da Relação Jurídica Tributária
A disciplina dos impostos dá origem a um conjunto de relações de carácter jurídico
que se estabelece entre o credor tributário e o contribuinte.
Este vínculo é enformado pelos poderes que o credor detém com os
correspondentes deveres impostos ao sujeito passivo da relação.
Assim, ao dever jurídico imposto ao sujeito passivo (devedor) corresponde um direito
subjetivo do sujeito ativo (credor).
O artigo 18.º da LGT dá-nos as noções de sujeito ativo e sujeito passivo da Relação
tributária.
Nos termos do n.º 1 do Art. 18.º da LGT, designa-se por sujeito ativo da relação
tributária a entidade de direito público titular do direito de exigir o cumprimento das
obrigações tributárias, quer diretamente quer através de representante.
E, nos termos do n.º 3 da mesma disposição legal o sujeito passivo «é a pessoa
singular ou coletiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos
termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como
contribuinte direto, substituto ou responsável».
Podemos ter, assim, como sujeito passivo da relação jurídica tributária uma pessoa
singular ou coletiva bem como entidades ou situações de facto a que o legislador
fiscal atribui relevância, sem que estas se tratem de uma pessoa jurídica, como por
exemplo é o caso do agregado familiar ou das sociedades irregulares.
A crescente importância dos substitutos ou responsáveis nas relações tributárias
determinou a sua inclusão naquela definição.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
95
Para além de figurarem como intervenientes tradicionais deste vinculo o sujeito ativo
e o sujeito passivo, surge também a figura de um terceiro, que será também ele um
sujeito desta relação.
A fim de tornar mais seguros e mais fáceis o lançamento e a cobrança dos impostos,
a lei fiscal, para além da imposição da conduta específica de prestar ou pagar uma
soma em dinheiro, a administração pode impor igualmente a pessoas que não são,
originariamente, as vinculadas ao dever da prestação tributária, outros deveres de
prestação de facto, conexos com a situação de facto ou de direito que dá lugar à
tributação.
Nesses casos, estamos perante condutas de facere, meramente acessórias da
conduta principal.
Com efeito, por vezes, estes deveres recaem sobre pessoas ou entidades, que tanto
podem ser privadas como públicas, em relação às quais se verificam os factos ou
situações típicas de determinado imposto independentemente de vir a ter lugar
quanto a elas uma efetiva obrigação tributária.
Estas pessoas ou entidades, apesar de estranhas à obrigação fiscal, estão ligadas
aos factos ou situações tributárias, encontrando-se em posição de prestar à AT uma
colaboração fundamental para a descoberta e fixação concretas das várias
situações passíveis de imposto, bem como no despiste de eventuais fraudes.
Por conseguinte, temos assim, em primeiro lugar, a figura do sujeito passivo
originário (direto), em relação à qual se verifica o facto tributário e, em segundo
lugar, a figura do sujeito passivo não originário (indireto), que sem ter uma relação
pessoal e direta com o facto tributário, ainda assim, é chamado, por outros motivos,
ao cumprimento de obrigações tributárias, geralmente relacionadas com outros.
Nestes casos, existem três categorias diferentes: os substitutos tributários, os
sucessores tributários e os responsáveis tributários.
Note-se que não cabem neste elenco as situações de representação legal voluntária
(Art. 16.º da LGT) e de gestão de negócios (Art. 17.º da LGT), pois que a qualidade
de sujeito passivo continua a pertencer aos representados e donos de negócios.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
96
i. Os Substitutos Tributários
Nos termos do n.º 2 do Art. 20.º da LGT a «substituição tributária é efetivada através
do mecanismo da retenção na fonte do imposto devido»
A substituição tributária verifica-se quando a lei determina que um sujeito ou uma
entidade se substituam àquele relativamente ao qual se verificou o facto tributário,
ocupando o seu lugar na obrigação de imposto.
Relativamente à substituição tributária, refere Ana Paula Dourado que: “A retenção
na fonte aparece como um novo sistema de liquidação do imposto na Grã-Bretanha,
no início do séc. XIX («stoppage at source»), relacionado com a introdução do
imposto sobre o rendimento, e foi generalizado após a segunda Grande Guerra o
método designado por «pay-as-you-earn». A este novo sistema são atribuídas
muitas vantagens, designadamente, por facilitar a cobrança do imposto, antecipar a
entrada das receitas no Estado, reduzir os comportamentos de evasão fiscal, e, do
ponto de vista do devedor originário, diminuir-lhe os esforços fiscais” 54
ii. Os Sucessores Tributários
Nos termos do disposto no n.º 2, do Art. 29.º «As obrigações tributárias originárias e
subsidiárias transmitem-se, mesmo que não tenham sido ainda liquidadas, em caso
de sucessão universal por morte, sem prejuízo do benefício do inventário».
Destarte, a dívida de imposto não se extingue com a sua morte.
Os herdeiros, aceitando a quota da herança, sucedem ao falecido no seu património
ativo e no passivo. Respondem também pelas dívidas fiscais, sem prejuízo de a sua
responsabilidade estar limitada, nos termos gerais ao valor dos bens recebidos,
como resulta das regras do direito das sucessões.
iii. Os Responsáveis Tributários
Nas palavras de Ana Paula Dourado, «[a] responsabilidade carateriza-se pela
acessoriedade, porque depende da existência de uma relação tributária obrigacional
principal» 55
54 Ana Paula Dourado, “Caracterização e Fundamento da Substituição e da Responsabilidade
Tributárias”, Ciência e Técnica Fiscal n.º 391, Centro de Estudos Fiscais, julho-setembro de 1998, págs. 39 e 40.
55 Idem, pág. 55.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
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Dependendo do tipo de relação existente entre os devedores originários e os
devedores não originários, a responsabilidade tributária pode ser solidária ou
subsidiária.
A responsabilidade diz-se solidária nos casos em que o credor tributário pode optar
entre exigir a prestação integral àquele responsável ou ao sujeito passivo originário,
sendo que a prestação por parte de um liberta o outro, sem prejuízo do direito de
regresso, de natureza civil, do pagador sobre o outro.
É o caso, nos termos do n.º 1, do Art. 21.º da LGT, da responsabilidade de cada
contribuinte na pluralidade de contribuintes por força do mesmo facto tributário, salvo
disposição em contrário (comunhão ou de contitularidade de rendimentos), a
responsabilidade dos sócios de sociedades de responsabilidade ilimitada e dos
membros de entidades com igual regime de responsabilidade civil, nos termos do n.º
2, do Art. 21.º da LGT) e a responsabilidade dos gestores de bens ou direitos de não
residentes sem estabelecimento estável em território português relativos ao
exercício do seu cargo nos termos do Art. 27.° da LGT.
A responsabilidade é subsidiária verifica-se se o terceiro responsável apenas
responde depois de verificada a insuficiência patrimonial do devedor originário, para
o efeito.
Nos termos do disposto no n.º 1, do Art. 23.º da LGT a «responsabilidade subsidiária
efetiva-se por reversão do processo de execução fiscal». Assim, com a reversão
contra o responsável subsidiário, relativamente à execução fiscal que corria contra o
sujeito passivo originário, passa o património daquele sujeito passivo não originário
a responder pela dívida.
Por último importa afastar do âmbito da sujeição tributária, o estipulado no Artigo
18.º, nº 4 da LGT.
Em conformidade com o estabelecido naquela disposição legal, não é considerado
sujeito passivo quem suporte o encargo do imposto por repercussão legal (alínea
a)), nem, nos termos da alínea b), quem deva prestar informações sobre assuntos
tributários de terceiros (por exemplo bancos ou advogados), exibir documentos (por
exemplo repartições públicas, conservatórias ou notários), emitir laudo em processo
administrativo ou judicial ou permitir o acesso a imóveis ou locais de trabalho.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
98
1.2 Objeto e o Facto da Relação Jurídica-Tributária
Tratando-se de relação jurídica, obviamente haverá sempre necessidade de
uma lei ou de um contrato estabelecendo um elo entre duas ou mais pessoas, com
referência a um determinado objeto.
Assim o objeto da relação é aquele que é constituído pelo próprio conteúdo do
vínculo, ou seja, pelos direitos e deveres que nele se integram. Por conseguinte,
como cada direito de um dos sujeitos encontra-se por contrapartida um dever do
outro.
A relação jurídica tributária tem como objeto principal a obrigação do sujeito passivo
proceder ao pagamento do imposto. Contudo, a relação jurídica tributária não
comporta apenas esta obrigação do pagamento do imposto. Ela comporta também
as designadas prestações acessórias: as prestações positivas (de fazer) e negativas
(de não fazer), bem como o direito a juros compensatórios e indemnizatórios e o
direito à dedução, reembolso ou restituição do imposto (Art. 30.º da LGT).
Como já referimos a relação tributária que se estabelece entre Administração e o
contribuinte tem como finalidade a arrecadação de receitas para os cofres do Estado
para a prossecução e a concretização de bens do interesse público. Como tal, o
pagamento de impostos é, por excelência, a obrigação principal (n.º 1, do Art. 31.º
da LGT).
A obrigação de pagamento do imposto constitui-se quando se verifica algum dos
factos previstos nas normas de incidência do respetivo imposto. Uma vez nascida a
obrigação do imposto, torna-se então necessário torna-la líquida e exigível. Isto é,
liquidar o montante de imposto a pagar e efetuar a respetiva notificação ao
contribuinte.
A par da obrigação principal, existem ainda outras obrigações com natureza
secundária mas que, sem elas, a obrigação principal careceria de toda a sua eficácia
e suporte sobre o sistema fiscal. Falamos, portanto, das chamadas obrigações
acessórias. A maior parte dos deveres tributários acessórios implicam um
comportamento positivo por parte do contribuinte, tratam-se, assim, das chamadas
prestações acessórias de facere.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
99
Tratam-se de obrigações que englobam um conjunto de deveres que têm por objeto
prestações de facto com vista a permitir à AT a determinação e a inspeção de factos
fiscalmente relevantes sobre a situação tributária dos sujeitos passivos de imposto.
Nos termos do disposto no n.º 2 do Art. 31.º da LGT “ São obrigações acessórias do
sujeito passivo as que visam possibilitar o apuramento da obrigação de imposto,
nomeadamente a apresentação de declarações, a exibição de documentos fiscalmente
relevantes, incluindo a contabilidade ou escrita, e a prestação de informações”
Assim, as obrigações ou acessórios têm por base o dever geral de colaboração
relativo à relação entre os órgãos da AT e os contribuintes, previsto no artigo 59.º da
LGT, onde se exige que seja uma cooperação de boa-fé de ambas as partes.
Resulta assim do exposto, que, tal como na teoria geral da relação jurídica civil, em
sede fiscal também se torna relevante fazer a distinção entre o objeto imediato da
relação de imposto e o objeto mediato da relação de imposto.
Nesta matéria cumpre destacar as considerações do Professor Braz Teixeira, para o
qual o objeto da relação fiscal é realidade distinta do objeto do imposto com a qual
não deve ser confundido.
Enquanto o objeto do imposto é o bem, a situação de facto ou a atividade sobre que
incide a tributação, o objeto da relação corresponde, quer, ao conjunto dos poderes
do sujeito ativo e dos correlativos deveres do sujeito passivo, e, como, à prestação a
que está obrigado.
Para este autor, o objeto da relação fiscal engloba, assim, duas realidades distintas:
A primeira, geralmente designada por objeto imediato, que constituem os direitos e
deveres de que são titulares os sujeitos da relação; a segunda, conhecida na
doutrina pela designação de objeto mediato, que é como que a concretização
desses direitos e deveres, isto é, aquilo sobre que incidem.
A questão é ilustrada tomando como exemplo o caso do IRS. De acordo com este
autor, o objeto do imposto serão os rendimentos do trabalho em dinheiro ou em
espécie e o objeto imediato da relação serão os poderes e deveres que, uma vez
verificados os pressupostos de facto da relação, a lei atribui ao sujeito ativo ou
impõe ao sujeito passivo e, por fim, o objeto mediato, serão as prestações que
constituem objeto daqueles direitos e deveres.56
56 António Braz Teixeira, “A Relação Jurídica Fiscal”, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, N.º 4, Centro de Estudos Fiscais, 1962, pág. 75 .
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
100
1.3 A Garantia da Relação Jurídica-Tributária
No que diz respeito às garantias, existem normas tributárias que regulam o
cumprimento e fiscalização relativas à obrigação de pagar impostos e asseguram a
coercibilidade do sistema tributário e dos créditos tributários ou que respeitam às
garantias dos contribuintes.
As que regulam as obrigações relativas ao cumprimento da obrigação principal de
pagar imposto constam, em particular, dos códigos do respetivo imposto, incluindo
as chamadas obrigações acessórias. Ou seja, tratam-se de normas que,
designadamente, regulam as obrigações de declaração, contabilização, escrituração
e comunicação.
As normas relativas à fiscalização são aquelas que regulam a atividade inspetiva da
AT, que estão, na sua generalidade, previstas no RCPITA.
Existem, ainda, normas sancionatórias do incumprimento dos deveres tributários por
parte dos contribuintes, incluindo as obrigações acessórias, que estão, na sua
generalidade, previstas no RGIT.
As normas relativas aos créditos tributários são aquelas que garantem qualquer
forma ou modo de assegurar a efetividade do crédito. Isto é, reforçam a crédito no
sentido de lhe conferir a certeza de que o seu direito será satisfeito.
Desde logo, o direito do credor o património do devedor constitui a garantia geral
dos créditos tributários, dispondo ainda a AT dos privilégios creditórios previstos no
CC ou nas leis tributárias, bem como do direito de constituição, nos termos da lei, de
penhor ou hipoteca legal e do direito de retenção de quaisquer bens sujeitas à ação
fiscal de que o sujeito passivo seja proprietário, nos termos previstos na lei.
De igual modo, havendo fundado receio de frustração da cobrança dos créditos ou
de destruição ou extravio de documentos ou outros elementos necessários ao
apuramento da situação tributária dos contribuintes, a AT pode requerer
providências cautelares para garantia dos seus créditos (arresto e arrolamento).
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
101
As normas relativas às garantias dos contribuintes são aquelas que lhe atribuem
direitos gerais (v.g. o direito à informação, fundamentação, notificação,
indemnização) e de deveres que são impostos à AT (v.g. decisão, celeridade,
colaboração).
Constitui, ainda, garantias dos contribuintes o direito a impugnar os atos praticados
pela AT quer pela via administrativa, nomeadamente através da reclamação
graciosa, revisão oficiosa e recurso hierárquico, quer pela via judicial,
designadamente, com a impugnação judicial, oposição à execução fiscal e ação
administrativa.
2. A Relação Jurídica-Tributária
O que gera a relação existente entre credor e devedor é o vínculo estabelecido pela
ordem jurídica.
Este vínculo é composto pelos poderes que o credor detém com os correspondentes
deveres impostos ao sujeito passivo da relação e forma o núcleo central da
obrigação.
A relação jurídica tributária carateriza-se numa autêntica relação obrigacional
complexa que se traduz numa obrigação principal, em deveres secundários e em
deveres acessórios de conduta que gravitam, na maioria das vezes em torno do
dever principal.
Uma relação nestes moldes, como temo vindo a analisar, só foi possível através de
um processo de transformação do sistema tributário, que veio trazer uma maior
intervenção do administrado.
Para que entendermos melhor os contornos estruturantes desta relação jurídica,
enquanto relação obrigacional complexa, apresentamos numa primeira parte, a
relação jurídico-tributária obrigacional e, numa segunda parte, a relação jurídico-
tributária complexa.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
102
2.1 A Relação Jurídico-Tributária Obrigacional
A obrigação fiscal corresponde, no seu conteúdo, ao conceito característico de
obrigação do direito civil, ou seja, o respetivo vínculo é composto em duas faces: ao
dever jurídico imposto ao sujeito passivo (devedor) corresponde um direito subjetivo
do sujeito ativo (credor), sendo que o vínculo que os une constitui a chamada
relação de obrigação, relação obrigacional, ou apenas obrigação.
A obrigação fiscal é, como a obrigação civil, um vínculo jurídico pelo qual alguém
fica adstrito a entregar a outrem uma prestação, porém, com características que o
diferenciam dos vigentes no direito civil.
Desde logo, a obrigação fiscal, em face da necessidade que o Estado tem de obter
meios para que possa satisfazer a realização de determinadas tarefas que se
predem com as necessidades coletivas dos seus cidadãos (fins públicos), têm a sua
origem e conteúdo definidos na lei. Enquanto, as obrigações civis têm a sua fonte
nos contratos, nos negócios jurídicos unilaterais, na gestão de negócios, no
enriquecimento sem causa, ou seja, na norma individual que os sujeitos
interessados autonomamente definem para si, a obrigação fiscal.
Outra característica que o diferencia a obrigação fiscal da obrigação civil, é que
enquanto esta ultima tem a natureza de obrigação de direito privado – “inter partes” -
a obrigação fiscal é uma obrigação de carácter misto. Predominante, tem origem no
Direito Público do Estado, na medida, como observa o Professor Braz Teixeira, é
uma obrigação em sentido verdadeiro e próprio, a qual nasce com a verificação dos
pressupostos que integram a previsão do “tipo” legal, mas depende do
comportamento dos particulares quanto à causa real da constituição do vínculo
jurídico, do qual nasce o dever de prestar.
Assim, a relação jurídica fiscal estrutura-se nos moldes dum vínculo obrigacional, por
força do qual o contribuinte fica sujeito ao dever de efetuar uma prestação
pecuniária ao Estado, prestação essa que o Estado tem o direito de exigir.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
103
Contudo, a posição jurídica dos contribuintes não se esgota apenas no dever de
efetuar uma prestação, pois que, os protege. Com efeito, no exercício dos poderes
fiscais o Estado tem que atuar de acordo com as normas jurídicas que o disciplinam,
ou seja, que os órgãos da administração atuem conformemente à lei. E, esta tutela
é-lhes conferida através de adequados meios da defesa da legalidade, quer de
carácter contencioso, quer de carácter gracioso.
Na verdade, por força das normas que regulam as obrigações tributárias surgem,
entre o Estado e os contribuintes, direitos e deveres recíprocos que formam o
conteúdo de uma relação especial: a relação jurídica tributária. Verifica-se assim que
do ordenamento jurídico-tributário não surge apenas a obrigação de pagar e o
correspetivo direito de exigir o crédito por parte da administração fiscal, mas também
um conjunto de direitos e deveres tanto da entidade pública como dos sujeitos
passivos, que têm um conteúdo e natureza diferentes.
2.2 A Relação Jurídico Tributária Complexa
Para a doutrina maioritária além da relação jurídico tributária se configurar como
uma relação obrigacional, é também uma relação complexa.
Complexa na medida em que para além de ter como objeto a prestação de imposto,
a lei fiscal impõe ainda, por vezes, a outras pessoas que se encontram ligadas aos
pressupostos que dão origem ao vínculo tributário, mas que são estranhas à
obrigação de imposto, determinados deveres jurídicos, positivos ou negativos,
destinados a possibilitar o conhecimento do imposto, ou seja, a facilitar uma
aplicação tanto quanto possível rigorosa das normas de incidência dos impostos –
as designadas obrigações acessórias da relação jurídica tributária.
Desta forma, a relação jurídica tributária engloba a totalidade do conjunto de deveres
e direitos subjetivos de natureza fiscal, mesmo que não se traduzam em quaisquer
deveres de prestação pecuniária, nomeadamente os deveres acessórios da
obrigação fiscal que constituem autênticos deveres.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
104
3. A Evolução do Modelo de Gestão do Sistema Fiscal
A relação contribuinte – Estado, no âmbito fiscal, não foi sempre configurada da
forma hoje em dia existente.
No modelo de gestão do sistema fiscal atual o Estado, através da Administração
enquanto órgão executório, aplica a lei fiscal através do lançamento, da liquidação e
da cobrança dos impostos.
Ao invés, no passado estas atividades eram realizadas com o propósito de localizar
os sujeitos passivos para depois se determinarem os factos tributáveis que lhe
poderiam ser imputados. De seguida, procedia-se ao cálculo do imposto devido e
assim se conseguir o cumprimento da prestação devida. Os deveres dos sujeitos
passivos consistiam em meros deveres de prestação pecuniária com algumas,
poucas, obrigações de conduta.
Era diminuta a relevância atribuída às declarações do contribuinte, apesar de
constituírem um dever jurídico quanto à sua prestação e quanto ao respetivo
conteúdo, já sendo previstas sanções para eventuais infrações tributárias como a
recusa de entregar declarações ou a prestação de declarações inexatas.
O ato tributário era, assim, tido como o modo de determinação da dívida fiscal no
qual a Administração assumia um papel soberano.
Por um lado, o ato tributário traduzia-se num modo de exercício dos poderes do
Estado, através da Administração, que procedia à criação de um dever de prestação
pecuniária a cargo do cidadão. Por outro lado, o ato tributário que intervinha em
situações que, à partida, seriam de exceção, constituindo a reação do ordenamento
jurídico a comportamentos ilícitos por parte dos sujeitos passivos.
Todavia, tal como começamos por referir, ao longo dos tempos, o modelo das
tarefas financeiras de arrecadação de meios financeiros para o Estado evoluiu ao
longo dos tempos, levando a uma gradual redução do papel desempenhado pela
Administração e o consequente aumento da participação dos particulares nos
procedimentos de aplicação da lei fiscal.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
105
Na base para a mudança do modo de gestão do sistema fiscal esteve a elevada
complexidade de quantificação da obrigação tributária que recaía sobre a atividade
da Administração, bem como assenta em assunto de tal importância assenta num
pressuposto basilar, segundo o qual melhor do que ninguém, são os contribuintes
que se encontram em posição de conhecer, da forma mais profunda e rigorosa, uma
matéria que pertence à sua esfera patrimonial.
Acresce que, supor um Estado que toma sobre si o encargo de detetar as realidades
sujeitas a imposto, sem intervenção do contribuinte, implicaria que a máquina do
Estado fosse dotada de um serviço vasto e perfeito que envolveria naturalmente
uma enorme despesa e que dificilmente seria capaz de detetar todos os factos
tributáveis, designadamente aqueles que são produzidos em condições suscetíveis
de serem ocultados.
Por outro lado, o isolamento do Estado em relação ao contribuinte poderia causar
neste um sentimento de desconfiança e de permanente autodefesa, podendo
mesmo conduzir à eliminação do sentido de responsabilidade moral ou da própria
reprovação ética da fuga ao imposto.57
O primeiro passo que marca o atual sistema vigente de repartição de funções entre
administração e o contribuinte surge com o disposto no Art. 84.º do Código da
Contribuição Industrial (1963), em que a competência para a liquidação da
contribuição industrial que sempre pertenceu às então denominadas repartição de
finanças, passou a ser efetuada pelo próprio contribuinte que auferia rendimentos do
grupo A. Consequentemente, nestes caso, a liquidação deixou de ser uma
competência da Administração para se tornar num dever do contribuinte.
57 Neste sentido Domingos Martins Eusébio, “A declaração tributária de rendimentos”, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, N.º 75, Centro de Estudos Fiscais, 1968, pág. 23. «Sem abdicar da autoridade que lhe advém da função administrativa, escreve o Dr. Vítor Faveiro, o Estado deve facilitar a intervenção do contribuinte no processo de liquidação, em todos os atos ou por todas as formas de que possam advir os seguintes resultados: melhor conhecimento da matéria coletável com o mínimo dispêndio do serviço de fiscalização, maior facilidade, para o contribuinte, de conhecer os termos em que é definida a sua obrigação de pagar o imposto; maior fomentação do espírito de compreensão do dever cívico de se sujeitar à justa tributação e da consequente noção de responsabilidade pela intervenção em atos vinculativos (Boletim da DGCI, de 1959, I semestre, p.143).».
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106
Acresce que, o atual Art. 59.º, nº 2 do CPPT e Art. 75.º, n.º 1 da LGT refletem,
também, a preocupação do legislador em limitar o poder administrativo de que
anteriormente a administração estava investida, ao atribuir, no atual sistema, efeitos
jurídicos às declarações e aos comportamentos declarativos do sujeito passivo, as
quais se presumem verdadeiras, deveres esses que a lei lhe confere.
Aliás, o método da declaração do sujeito passivo constitui uma prática corrente nos
sistemas fiscais modernos, que pode ser aplicado a qualquer tipo de matéria
tributável, tendo por objetivo o seu valor real e não uma simples aproximação a esse
valor.
A intervenção subsidiária da Administração reflete-se, igualmente, no facto de a
autoliquidação, a substituição tributária e o pagamento por conta em sede de IRC
serem comportamentos do contribuinte que lhes são atribuídos pela lei.
O tipo de imposto em que a administração tem menor interferência que se reflete um
pouco por todas as fases da relação jurídica tributária, é o IVA. Com efeito, o sujeito
passivo de IVA está vinculado a uma série de deveres de cooperação e de direitos,
nomeadamente, entregar o imposto que o próprio liquida, declaração de início, de
alteração e cessação de atividade, organização de contabilidade, emissão de faturas
e entrega da declaração periódica, como resulta dos artigos 27.º a 52.º do CIVA,
tendo, em consequência, a administração um papel secundário e complementar.
Para além disso, o sujeito passivo do IVA ao proceder à determinação do montante
de imposto que é exigível a um determinado sujeito passivo, pelas vendas que lhe
efetuou ou pelos serviços que lhe prestou, tem também o direito de poder deduzir o
imposto que havia pago na compra de bens e serviços necessários ao exercício da
sua atividade (Art. 22.º, nº 1 do CIVA), tendo apenas que entregar a diferença entre
estas duas quantias.
Verificamos, assim, que no IVA é ao sujeito passivo a quem cabe a realização de um
conjunto de tramitações equivalentes aos passos tradicionalmente dados pelas
entidades públicas: o lançamento, a liquidação e a cobrança do imposto.
Por conseguinte, neste caso, a Administração só é chamada a atuar quando o
contribuinte não cumpra com os seus deveres ou os cumpra de forma imperfeita.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
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CAPÍTULO V
CONCLUSÕES
1. Considerações Finais
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
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1. Considerações Finais
Ao modelo de Estado Social vem associado a utilização do imposto como
instrumento de política quer social quer económica.
Como princípio do Estado Fiscal surge a forma jurídica de constituir, organizar e
limitar o poder de tributar, pelo que o Estado Fiscal torna-se, assim, o aspeto
financeiro do Estado, isto é, a condição necessária ao seu funcionamento, não só
como forma de obter recursos para o seu financiamento, como também num modo
de atuação pública.
Na realidade, no Estado contemporâneo, todos os fins públicos são suportados por
meios financeiros públicos, ou seja, todos os direitos têm por suporte
essencialmente a figura dos impostos. Pelo que, dever-se-á olhar para a tributação,
não como mero instrumento de manter a máquina fiscal, mas antes, como um
instrumento fundamental da concretização dos direitos fundamentais, e, por
conseguinte, um contributo para o princípio da dignidade da pessoa humana.
É à AT que compete «administrar os impostos, direitos aduaneiros e demais tributos
que lhe sejam atribuídos, bem como exercer o controlo da fronteira externa da União
Europeia e do território aduaneiro nacional, para fins fiscais, económicos e de
proteção da sociedade, de acordo com as políticas definidas pelo Governo e o
Direito da União Europeia.».58
É comum perspetivar a AT, como uma entidade odiosa que se intromete e viola, no
desempenho das suas funções, os direitos do cidadão.59
Não obstante, esta visão odiosa, que entende a AT como mera cobradora de
impostos, é extremamente redutora, para além de juridicamente insustentável, pois
que toda a atividade da AT deve obediência à Constituição e à lei.
58 Art. 2.º do Decreto-Lei 118/2011, de 15 dezembro.
59 Com efeito, é usual afirmar-se que muitos procedimentos que enformam a actividade da AT e também alguns atos (administrativos e materiais) configuram-se como atos impositivos, o que provoca uma intrusão na esfera jurídica dos cidadãos.
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109
Alcançar e sedimentar de um modo efetivo a ideia de que a AT não deve ser
considerada como uma mera recetora de dinheiros provenientes dos impostos a que
os cidadãos estão sujeitos, não é, no entanto, uma tarefa fácil.
Tal desiderato, implica, sobretudo, um forte empenho, na tarefa de educação
tributária, que constitui uma das componentes específicas da denominada educação
para a cidadania.
Pretende-se por esta via, prover que se interiorize, solida e gradualmente, a
consciência coletiva da importância do Estado e dos seus meios de financiamento
com vista à realização dos fins públicos, em benefício de todos os cidadãos.
Contudo, por outro lado importa acentuar ab initio, que no outro lado da relação
jurídico tributária está o contribuinte, que não prossegue como objetivo fundamental
o interesse público, mas antes o seu próprio interesse, portanto, o interesse
individual que se materializa no direito à planificação em matéria tributária
(planeamento fiscal). Por conseguinte, os contribuintes atuam de acordo com as
suas convicções de gestão, tendo em vista, por meios lícitos, tornar menos onerosa
a sua prestação.
O cidadão constitui um elemento fulcral da relação tributária, pois que, sem sujeitos
não faz sentido falar em direitos.
De facto, o sujeito passivo, como elemento em relação ao qual se verificou algum
dos factos, previstos na lei, quer de consumo, quer de detenção de riqueza ou atos
reveladores de rendimento, é visto como o centro de interesse de imputação
económica.
Do ponto de vista dos destinatários do imposto, impõem-se-lhes mais do que uma
mera resignação ou aceitação do pagamento do imposto. Espera-se, igualmente,
que estes assumam e interiorizem a consciência coletiva dos fins comuns e da
comunidade.
E, é esta consciencialização que vai traduzir um maior grau de acatamento e
respeito pelas leis tributárias, num reforço de legitimação da ação do Estado.
Existe, assim, uma intima ligação entre a interiorização psicológica do dever de
pagar impostos, a satisfação das necessidades coletivas e o poder de atuação do
Estado.
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110
Cada cidadão possui uma consciência moral que influência o seu comportamento.
Com efeito, o individuo é condicionado por valores morais que o levam a decidir
como atuar, qual a sua atitude em face das normas vigentes.60
Assim, tendo em consideração a diversidade de comportamentos que os
contribuintes possam ter perante as obrigações fiscais, em função dos
constrangimentos morais dos cidadãos, que influenciam esse comportamento, a
administração tributária deve pugnar por um sistema fiscal eficiente e justo, pois que
a perceção, por parte dos contribuintes, da existência de injustiça leva a um
aumento do incentivo para agir em desobediência à lei fiscal e furtar-se aos seus
deveres fiscais.
Acresce que, para além das motivações de natureza pessoal, comportamental e
psicológica que influenciam, significativamente, o comportamento dos contribuintes,
Também a conduta da própria administração tributária e o Estado, bem como as
normas fiscais e atitudes dos outros contribuintes, os influenciam nas suas atitudes.
Pelo que, a atuação dos contribuintes, face ao cumprimento das suas obrigações
fiscais, não é desprovida de sentimentos nem de considerações morais, mas antes
ponderadas pelo seu contexto institucional e social.
De facto, na sua qualidade de contribuintes, as ideias, sentimentos e perceções dos
cidadãos, afetam a sua moralidade tributária, na medida em que o nível de
satisfação destes com o governo, a confiança no Estado, a eficácia do sistema e um
nível de cumprimento fiscal elevado, são igualmente, fatores que têm um impacto
elevado para cultivar a motivação dos contribuintes e, em consequência, no
cumprimento das suas obrigações fiscais.
Destarte, a confiança é um valor importante para cultivar a motivação do
contribuinte.
E, a criação e manutenção dessa confiança depende do compromisso do Estado
para agir em conformidade com as necessidades dos seus cidadãos, cujo
desenvolvimento do sistema fiscal está em estreita proximidade com o poder.
60 Relativamente, ao cumprimento das obrigações fiscais importa, igualmente, referir que o cumprimento fiscal é uma ato mais abrangente do que o mero pagamento do imposto devido, pois há que considerar ainda o conjunto de todas as obrigações acessórias, essenciais à liquidação do imposto.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
111
Outra das estratégias para incentivar os contribuintes a cumprirem, voluntariamente,
as suas obrigações fiscais consiste em melhorar a informação prestada pela AT,
bem como, pela criação de programas de educação fiscal.
Com efeito, defende a investigadora Cidália Maria da Mota Lopes in “Fiscalidade –
Outros Olhares” 61 é necessário apostar na “educação do contribuinte” e , ao mesmo
tempo, aumentar e qualificar os recursos humanos da autoridade tributária no
combate à evasão fiscal e à economia paralela.
A educação fiscal tem, assim, uma importância primordial, como uma política do
Estado, para através de ações pedagógicas se incutirem princípios sociais e
culturais, que tenham como objetivo estimular o cumprimento voluntário e consciente
dos deveres fiscais do cidadão, enquanto membro de uma sociedade.
Nesse sentido, a administração tributária, através dessas ações pedagógicas,
deverá transmitir os conhecimentos básicos, que expliquem a finalidade dos
impostos e quais os requisitos elementares do sistema fiscal, na medida que essa
informação ajudará os cidadãos a perceber e a compreender a realidade fiscal,
nomeadamente quanto à função social dos impostos.
Com efeito, a educação fiscal constitui um instrumento de divulgação de informação
com o objetivo de transmitir ao cidadão uma consciência social e da importância da
necessidade de financiamento do Estado através da obtenção de impostos, para a
realização dos seus fins, sendo, neste contexto, que a educação fiscal surge como
processo educativo para a construção e exercício da cidadania.
É pois, essencial que nos conteúdos da educação fiscal sejam abordadas questões
relacionadas com a responsabilidade cívica, nomeadamente, como a solidariedade,
o papel do cidadão no Estado, o respeito pelos outros, a honestidade, a cooperação
para o financiamento das necessidades públicas, a responsabilidade social do
Estado, dar a conhecer o sistema fiscal português - origem e finalidade das normas
tributárias, qual a natureza e missão da AT, a relação entre os impostos e a
capacidade contributiva dos distintos agentes económicos, bem como da relevância
do cumprimento das obrigações fiscais.
61 Cidália Maria da Mota Lopes, “Fiscalidade – Outros olhares”- “A psicologia fiscal e os custos psicológicos em Portugal: uma nova abordagem”, Vida Económica, 2013, págs. 179 e seguintes.
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112
A educação fiscal tem como objetivo transmitir valores e atitudes favoráveis à
responsabilidade fiscal dos contribuintes no sentido de o afastar da prática de
condutas contrárias à lei e fraudulentas.
A educação fiscal é, assim, uma prática de extrema importância para todos os
cidadãos contribuintes, na medida que os ajudará a perceber e a compreender a
realidade fiscal, nomeadamente quanto à função social dos impostos.
Muito embora, a educação se revele, de facto, uma prática essencial, em Portugal
ainda está muito pouco desenvolvida.
Num passado, recente, por exemplo, foi divulgado um incentivo da AT, que consiste
no sorteio da “Fatura da Sorte”, no âmbito do qual são atribuídos prémios, às
pessoas singulares que efetuaram aquisições de bens ou serviços em território
nacional e que tenham solicitado a fatura da aquisição de bens e/ou serviços com o
seu número de identificação fiscal.
Trata-se, sem dúvida, de uma medida que teve o mérito de ter chamado a atenção
mediática do público em geral, contudo gerou, também, alguma controvérsia, pois
que foi igualmente afirmado que mais importante que a atribuição de prémios, é uma
estratégia punitiva para os contribuintes não cumpridores, bem como o aumento de
recursos qualificados da AT.
De facto, o sorteiro da “Fatura da Sorte” pode ser visto como uma recompensa
positiva para o comportamento honesto do contribuinte e, em consequência,
constituir um incentivo para o cumprimento fiscal e para a consciência fiscal.
Não obstante, esta medida tem, também, efeitos perversos, na medida em que se
verifica o aumento dos custos administrativos e de contexto dos contribuintes.
Com efeito, o Estado, deve desenvolver medidas cujo objetivo seja captar mais
contribuintes para dentro do sistema e não, como acontece com o sorteiro da
“Fatura da Sorte”, onerar os contribuintes, que já estão no sistema, com mais custos
de cumprimento, uma vez que têm agora a missão de inspecionar os sectores de
risco, pedindo fatura.
Acresce que, a atribuição de prémios em detrimento da educação do contribuinte
pode ser uma forma rápida e popular da obrigação do dever de cidadania de pedir
fatura, contudo, é duvidoso, que se aumente a consciência fiscal dos cidadãos.
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Em conclusão, no atual contexto do Estado Social, os impostos deixaram de ser
mera fonte de receita para o Estado, para passarem a ser utilizados como
instrumento de realização de justiça. Pelo que, é fundamental a implementação de
um programa de educação fiscal para que se se reforce a confiança na relação entre
os contribuintes e o Estado.
Pelo que, é necessário, por um lado, sensibilizar os contribuintes para a importância
da cultura física e tributária, no sentido de lhe transmitir valore e atitudes favoráveis
à responsabilidade fiscal e, por outro, dar-lhe a conhecer o valor económico e a
repercussão social dos bens e serviços públicos.
A par do programa de educação fiscal, é necessário, igualmente, uma administração
forte e qualificada, no sentido apostar, na prática, com medidas certas dirigidas às
pessoas certas para o combate á fraude e evasão fiscal, bem como, existirem
recursos, humanos e materiais, qualificados e com formação adequada e contínua,
pois que a complexidade do sistema fiscal e sucessivas alterações legislativas assim
o exigem.
Este será, contudo, um processo de longo prazo.
O Estado Fiscal e a Cidadania Fiscal
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